Breve comentário sobre \"Dois irmãos\" (Milton Hatoum) e \"Esaú Jacó\" (Machado de Assis)

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Breve comentário sobre Dois irmãos (Milton Hatoum) e Esaú e Jacó (Machado de Assis) Por Caio Augusto Leite A primeira impressão que se tem ao começar a ler Dois irmãos de Milton Hatoum é a de que já vimos essa história antes: dois gêmeos inconciliáveis. É verdade que não faltam exemplos do tema na literatura ocidental de irmãos que não se dão: Caim e Abel o primeiro deles, Esaú e Jacó é outro exemplo, e – para chegar onde quero – Pedro e Paulo da obra Esaú e Jacó do nosso Machado de Assis. Logo nas primeiras páginas, coloridas pelo cenário tropical de uma Amazônia natural e ao mesmo tempo urbana (já um contraste significativo), cria-se uma armadilha: de que é apenas um reconto de uma história já conhecida acrescida da cor local manauara. Não é. Antes importante parte do enredo do que mera paisagem de plano de fundo, o ambiente tropical em que nos coloca Hatoum (também manauara) está a serviço da linguagem e do tema que se desenrola com o passar dos acontecimentos, também uma Manaus que constantemente “briga” dentro de si mesma para comportar ao mesmo tempo a exuberância natural e a urbanização cada vez mais sentida nas páginas pós-Golpe Militar em que vemos como essa conquistada harmonia vai sendo desfeita – importante é a cena da destruição da Cidade Flutuante nesse sentido. O conflito dos gêmeos Yaqub e Omar, portanto, está inserido dentro de um sistema que a qualquer instante pode desabar e que desaba: basta atentarmos para a narração do jovem Nael, tateando com a linguagem e com o único recurso que lhe resta, a memória, reconstruir a Manaus e a família de Halim (portanto sua família) a partir da colcha de retalhos que é o pensamento do narrador, nada surge em ordem totalmente cronológica e as lembranças emergem do memorialista ora de sua vivência, ora da lembrança da vivência de outros, de Halim, de Domingas, de Zana, até mesmo de Yaqub: o único que não parece contribuir para esse quadro memorialístico é o gêmeo Omar (pai do rapaz), não lembro (e posso estar enganado) de nenhuma passagem em que pai e filho (que durante todo o romance adia a revelação) conversam diretamente (o único ponto em que Nael diz que não odiou Omar foi durante o velório do professor Antenor Laval). A comunicação rompida é o rompimento com a própria origem, talvez isso explique a vontade de contar a história dos dois irmãos, como que tentando reconstituir sua própria origem, mantendo vivo um passado que se desfaz no tempo. Onde está Machado de Assis agora? Sim, podemos ainda encontrar semelhanças

com o penúltimo romance do mestre, o que dizer da obsessiva Rânia que se dá aos irmãos (e ao narrador, por metonímia ao pai deste) e a nenhum outro homem, é ou não é uma espécie de Flora recriada e radicalizada? A passagem do desenho de Flora ecoa na passagem de Rânia imaginando as duas fotos unidas numa só (criando as duas mulheres um ser que unisse as características que um tinha e que no outro faltava e vice-versa). Se na personagem machadiana havia a possibilidade da escolha, em Hatoum a escolha se faz impossibilitada pelos laços de sangue, embora em nenhum momento haja estranhamento dentro da família no “relacionamento” de Rânia com os irmãos e com o sobrinho, o escândalo estaria mais na esfera social que na familiar uma vez que Zana nunca realmente deu atenção à filha, nem aos gêmeos em si, sua atenção está sempre voltada a Omar; e Halim nunca quisera mesmo ter filhos, se este demonstrava maior desprezo por Omar é porque este gêmeo nunca consegue se libertar do seio materno, atrapalhando a sua vida conjugal com Zana (um conflito edípico? Talvez). Mas vamos aos gêmeos. Se Pedro e Paulo possuem uma intriga latente que nunca parte para as vias de fato e que ao final do romance, com a morte da menina Flora e com a promessa no leito de morte da mãe, parece – já que não se harmonizaram totalmente – aquietar-se; com Omar e Yaqub o mesmo não ocorre, as cenas de violência física que os dois protagonizam levam, por exemplo, ao exílio forçado de Yaqub para o Líbano e mais tarde ao exílio voluntário para São Paulo onde se torna um importante engenheiro. Já Omar, mesmo com suas escapadelas, é personagem que só funciona nos lupanares de Manaus sob a proteção da mãe, da irmã, de Domingas e das prostitutas da cidade, Omar é dionisíaco como o mar revolto, Yaqub é apolíneo, sob a guarda dos números, da ordem. É que os gêmeos machadianos, vaticinados pela Cabocla do Castelo, teriam “as coisas futuras”, já os gêmeos manauaras, ignorantes de um destino, precisam a todo instante firmarem sua identidade para não se perderem no espelho do Outro, é fundamental a passagem em que Omar marca o rosto do irmão após uma crise de ciúmes tornando-o diferente de si. Yaqub se diferencia pelo amor à disciplina – o impecável uniforme no Sete de Setembro, o casamento, o estudo universitário, o emprego de engenheiro, o (implícito?) apoio ao regime militar – Omar pelo seu avesso – as roupas sempre sujas fedendo a bebida das noites de esbórnia, as diversas mulheres, a não conclusão do estudo fundamental, o dinheiro ganho com expedientes ou dado pela apaixonada Zana, a fama de revolucionário que o leva para a torturante prisão. Se ao fim Machado nos dá um quadro apaziguador, embora ainda cheio de pequenas desarmonias, em que os dois gêmeos alcançam cargos importantes dentro da

República recém-declarada, Hatoum nos entrega um quadro de aporia: a morte de Halim sozinho no sofá da casa, a morte de Domingas sozinha na rede de Omar, a morte também sozinha de Zana no galinheiro do pai (que também morrera sozinho no Líbano) sem conseguir uma promessa parecida com aquela que a mãe de Pedro e Paulo os fazem jurar em seu leito de morte e, portanto, sem a tão desejada harmonia entre os irmãos. Por fim a venda da casa transformada em loja indiana com o apoio de Yaqub e dos altos oficiais do governo militar (bem como a mudança de Manaus, um passado que já não existe mais), naquela casa cheia de vida resta apenas um estreito corredor ligando aos fundos do imóvel: a herança de Nael, a parte que resiste física e mentalmente através daquele pedaço de chão e de memória que nos lega a história que este nos conta. Assim como os gêmeos dos romances são díspares, também os romances o são. A obra de Hatoum é comparável, pelo caráter que tende ao mutável, a Omar/ Paulo e a de Machado, na inclinação pelo harmônico, a Yaqub/ Pedro. Referências bibliográficas: HATOUM, Milton. Dois irmãos. Editora Companhia das Letras, 2012. ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Penguin Classics: Companhia das Letras, 2012.

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