Breve história do Rio Grande do Sul : da Pré-História aos dias atuais

Share Embed


Descrição do Produto

BREVE HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO SUL da Pré-História aos dias atuais

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

José Carlos Carles de Souza Reitor

Neusa Maria Henriques Rocha Vice-Reitora de Graduação

Leonardo José Gil Barcellos

Vice-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação

Lorena Terezinha Geib

Vice-Reitora de Extensão e Assuntos Comunitários

Agenor Dias de Meira Júnior Vice-Reitor Administrativo

UPF Editora

Simone Meredith Scheffer Basso Editora

CONSELHO EDITORIAL

Alexandre Augusto Nienow Alvaro Della Bona Altair Alberto Fávero Ana Carolina Bertoletti de Marchi Andrea Poleto Oltramari Angelo Vitório Cenci Cleiton Chiamonti Bona Fernando Fornari Graciela René Ormezzano Renata Holzbach Tagliari Rosimar Serena Siqueira Esquinsani Sergio Machado Porto Zacarias Martin Chamberlain Pravia

BREVE HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO SUL da Pré-História aos dias atuais

Mário Maestri

2010

Copyright © Editora Universitária Maria Emilse Lucatelli Editoria de Texto

Sabino Gallon Revisão de Emendas

Sirlete Regina da Silva

Projeto gráfico, diagramação e produção da capa

Este livro no todo ou em parte, conforme determinação legal, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa e por escrito do autor ou da editora. A exatidão das informações e dos conceitos e opiniões emitidos, bem como as imagens, tabelas, quadros e figuras, são de exclusiva responsabilidade dos autores.

ISBN – 978-85-7515-720-6

UPF EDITORA Campus I, BR 285 - Km 171 - Bairro São José Fone/Fax: (54) 3316-8373 CEP 99001-970 - Passo Fundo - RS - Brasil Home-page: www.upf.br/editora E-mail: [email protected]

Editora UPF afiliada à

Associação Brasileira das Editoras Universitárias

Sumário Alguns esclarecimentos necessários ................................................................... 7 I – A ocupação do território Da luta pelo território à hegemonia da sociedade pastoril-charqueadora escravista / 11 1 A ocupação luso-brasileira do atual Rio Grande do Sul ................................ 13 2 A Pré-História nos atuais territórios do Rio Grande do Sul ......................... 47 3 Os sete povos missioneiros ............................................................................. 62 4 Tropas e tropeiros no Sul do Brasil ................................................................ 78 5 A escravidão no Rio Grande do Sul ................................................................ 90 6 Escravidão, fazenda e charqueada ................................................................. 96 7 Escravidão e luta de classes no Rio Grande do Sul..................................... 109 8 Camponeses europeus proprietários no Rio Grande do Sul ....................... 125 II – O Império Consolidação e superação da sociedade escravista / 137 9 A independência e o Rio Grande do Sul ....................................................... 139 10 O Primeiro Reinado, a Abdicação e o Rio Grande do Sul ......................... 150 11 A Farroupilha – a insurreição dos grandes estancieiros .......................... 163 12 O sentido social da Guerra Farroupilha .................................................... 174 13 O Rio Grande do Sul após a Guerra Farroupilha ..................................... 185 14 Rio Grande do Sul: da guerra do Paraguai à desescravização ................ 198 15 A imigração colonial-camponesa italiana .................................................. 208 III – A República Velha “Consolidação e Crise da Autonomia Mercantil-Capitalista” 16 A República no Rio Grande do Sul ............................................................. 223 17 1893: a guerra civil federalista................................................................... 240 18 O sentido histórico do castilhismo ............................................................. 248 19 Rio Grande do Sul: a industrialização na República Velha ...................... 268 20 O nascimento do movimento operário no Rio Grande do Sul ................... 280 21 O Rio Grande do Sul, o tenentismo e a rebelião de 1923 .......................... 296 22 O Rio Grande do Sul e a Revolução de 1930.............................................. 309 IV – Ditadura & Democratização Da inserção na produção capitalista nacional à internacionalização neoliberal 1930-2010 / 317 23 RS: da Revolução de 1930 ao fim do Estado Novo .................................... 319 24 A deposição de Flores da Cunha e o Estado Novo no Rio Grande do Sul 332 25 Estado Novo e o movimento social – 1937-1945 ........................................ 341 26 1945-1964: o sul e a crise do nacional-desenvolvimentismo .................... 355

27 O Rio Grande do Sul e a ditadura militar: 1964 a 1984 .......................... 375 28 O Rio Grande do Sul de 1985-2002: privatização e bloqueio ................... 394 29 Os anos do desencanto – Germano Rigotto e Yeda Crusius (2002-2010) ... 409 30 A economia rio-grandense – 1930-2009 ..................................................... 421 Principais obras consultadas ........................................................................... 442

6

Alguns esclarecimentos necessários O presente ensaio foi preparado para os alunos do curso de História do Rio Grande do Sul, I e II, da UPF, nos anos 1996-2009. Objetivou apresentação geral da história dos atuais territórios sulinos nos 330 anos que separam os dias atuais da fundação de Sacramento, em 1680, nas margens do Prata. As fronteiras geográficas deste estudo são, portanto, os limites políticos do Rio Grande atual, superados apenas quando imprescindível para a compreensão de temas abordados. Registramos a arbitrariedade e os limites indiscutíveis desse recorte, ainda mais em região como o extremo-sul do Brasil, de passado fortemente inserido e determinado pela história da bacia do rio da Prata. Estão dadas as condições e impõem-se histórias unitárias dessas regiões por sobre as fronteiras nacionais. Nos últimos anos, publicamos quatro breves ensaios sobre a história rio-grandense, como cadernos e, a seguir, livros. O presente livro mantém a divisão político-cronológica original: a ocupação do território; o Império; a República Velha; o Estado Novo até os dias atuais. O primeiro capítulo apresenta leitura muito sintética do processo político, social e econômico da ocupação dos territórios sulinos, da Pré-História às décadas finais do Império. Procura, sobretudo, fornecer visão geral inicial de cenário abordado a seguir de forma mais sistemática e detalhada. A essa primeira parte se seguem as abordagens da pré-história; das missões guaranítico-espanholas; dos caminhos tropeiros sulinos; da econômica pastoril-charqueadora; da chegada dos colonos-camponeses de língua alemã. A apresentação do período imperial no Sul aborda mais amplamente a independência no Brasil, com o objetivo de apresentação minimamente compreensível da inserção rio-grandense naquele evento e de suas influências na revolta liberal-separatista de 1835-45. A continuidade no período imperial, da ordem pastoril-charqueadora escravista colonial permitiu maior ênfase da análise político-social desse período, com destaque para a Guerra Farroupilha. Com a abordagem da imigração colonial-camponesa italiana, procurou-se delinear importante base da superação econômico-social que determinaria fortemente a gênese singular do Rio Grande republicano. A muito recente consciência do caráter dominantemente escravista da antiga formação social sulina enfatiza ainda mais o claro desequilíbrio entre o conhecimento da história político-social do Império e da República Velha no Sul, em favor do segundo período. Atraso que assenta fortemente raízes na paradoxal ausência de uma história categorial-sistemática geral da produção pastoril rio-grandense. Sobre esses enormes hiatos se levantam os mitos fundadores e apologéticos da sociedade sulina, cuidadosamen-

te cultuados e defendidos. Um melhor conhecimento da crise do escravismo sulino lançará, igualmente, luzes novas sobre a própria história política do fim do Império. A consolidação da República federalista permitiu a reorganização fortemente autonomista do Rio Grande, que encontrou singular intérprete no republicanismo rio-grandense, de clara orientação antioligárquica, singularidade em todo o Brasil. Uma realidade em crise aguda no final da República Velha. A abordagem da Revolução de 1930 e do Estado Novo no Sul exigiu referência mais extensa à história nacional, à qual o Rio Grande se subsumiu tendencialmente, em condições decrescentemente favoráveis. Este último e mais próximo período histórico é paradoxalmente pouco estudado, em relação à República Velha, pela historiografia sul-rio-grandense. Talvez porque registre o fracasso fragoroso das classes dominantes regionais para se tornarem caudilhos da sociedade sulina. Faltam-nos também estudos sistemáticos sobre importantes momentos históricos, como as tentativas de relançamento econômico, político e social do Rio Grande durante os governos de Flores da Cunha (1930-1937) e de Leonel Brizola (1958-1962), seus objetivos, suas bases sociais e as razões regionais de seus fracassos. Praticamente não temos estudos mais detidos sobre a história do Rio Grande durante a ditadura (1964-1985) e após ela, com destaque para o governo de Antônio Britto, que literalmente liquidou a longa obra regional autonomista iniciada na República Velha pelo castilhismo-borgismo e relançada, fortemente, por Leonel Brizola. Nos últimos trinta anos, investigamos, de forma sistemática, direta ou indiretamente, algumas das importantes questões abordadas. No presente trabalho, somos profundamente devedores de obras mais ou menos conhecidas de múltipos e valiosos estudiosos. Em razão da natureza do texto, eles foram arrolados, mais comumente, apenas na bibliografia final, parte da enorme produção disponível sobre a sociedade sul-rio-grandense. Hoje já é humanamente impossível acompanhar toda a produção sobre o passado sulino, mesmo se nos limitarmos à bibliografia universitária, nas áreas da história, sociologia, arquitetura, economia, etc. Essa ausência de referências mais diretas aos autores nos quais nos apoiamos não deve jamais ser compreendida como proposta de originalidade, nem mesmo no que se refere a muitas interpretações centrais deste trabalho. No presente trabalho, grita a ausência de uma história da cultura riograndense, abordando sobretudo a língua, literatura, música, arquitetura, como registros, expressões e elementos constituintes do desenvolvimento histórico-social sulino. Realidades sobre as quais realizamos investigações parciais e contamos com preciosos trabalhos de sínteses. Essa ausência se deve, sobretudo, à assinalada confecção do presente trabalho, como texto

8

dos dois semestres referentes à história sulina, nos quais raramente conseguimos concluir plenamente o programa proposto. O referido avanço da historiografia rio-grandense – e da própria história – e o enorme esforço exigido por interpretação mais acabada da formação social sulina circunscrevem nossa consciência do caráter exploratório e certamente imperfeito de nosso estudo, que, se os azares da sorte não nos impedirem, pretendemos aperfeiçoar, retocar e corrigir e ampliar. Portanto, constitui uma leitura em construção, que ousamos compartir e, quem sabe, discutir, com nossos eventuais leitores.

9

I

A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO

Da luta pelo território à hegemonia da sociedade pastoril-charqueadora escravista

1 A ocupação luso-brasileira do atual Rio Grande do Sul O quadro geográfico Apesar de a história do Rio Grande do Sul não ser produto do seu meio geográfico, ele agiu fortemente sobre as comunidades humanas que ali viveram nos últimos milênios. Nesse sentido, há determinações e permanências geoecológicas que atuaram e atuam poderosamente sobre as comunidades humanas que ocuparam e ocupam esses territórios. No Rio Grande do Sul, como em qualquer outra região do mundo, a relação entre história e geografia foi e é mediada pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais e pelas relações sociais de produção em que as comunidades em questão se inserem. Os territórios sulinos fazem parte de um espaço geográfico mais amplo, o Cone Sul da América Meridional, em geral, e a bacia oriental do rio da Prata, em especial. Aproximadamente, essa última sub-região é delimitada pelos rios Paraná e Uruguai, ao oeste; pelo rio da Prata, ao sul; pelo oceano Atlântico, ao leste. Podemos dividir os territórios sulinos em quatro grandes regiões geoecológicas: a Planície Litorânea, ao longo da costa atlântica; o Planalto Meridional brasileiro, ao norte e ao noroeste; o Escudo Sul-RioGrandense, no centro-sul, e a Depressão Central. A Planície Litorânea, formada pela acumulação de sedimentos arenosos, com mais de seiscentos quilômetros de extensão, batida pelos ventos, sem enseadas e baías que protejam e facilitem a navegação, estreita-se ao norte, comprimida pelo mar e pelas altas escarpas do Planalto. No centro e no sul, quando a Planície Litorânea se alarga, domina a paisagem monótonas planícies de terras pobres e de praias de dunas de areias brancas. No século 18, as regiões da Planície Litorânea, entre o mar e as lagoas, ao norte do Rio Grande, eram denominadas de Estreito. O Planalto Meridional brasileiro alcança sua altura máxima – uns 1.400 m – nas proximidades do oceano Atlântico e decresce à medida que se aproxima da fronteira com a atual Argentina, onde se funde com o pampa sul-rio-grandense. A região tem clima frio e seco, muitos rios, profundos vales e alguns vastos campos abertos. Quando da chegada dos colonizadores europeus, possuía densa cobertura florestal subtropical, dominada pelo pinheiro-do-paraná e pelos ervais. As Encostas Superior e Inferior do Planalto Rio-Grandense realizam a transição entre a Depressão Central e o Planalto Meridional.

13

A Depressão Central, de clima mais quente e mais úmido, com coxilhas baixas, é formada pelos vales de grandes rios – Jacuí, Vacacaí, Ibicuí, etc. – que recebem as águas trazidas pelos seus afluentes das regiões mais elevadas. Nos anos 1500, os vales desses rios encontravam-se cobertos por importantes florestas em galeria. Desde tempos recuados, a Depressão Central foi importante eixo de comunicação entre o litoral, o Planalto e o Escudo Sul-Rio-Grandense. Finalmente, dominam o Escudo Sul-Rio-Grandense as ondulações das coxilhas e dos coxilhões e as alturas mais abruptas dos cerros, que chegam a ultrapassar os quinhentos metros de altura. Essa região – o pampa – é coberta por tapetes de gramíneas e por vegetação rasteira. Faz parte de uma vasta extensão de campos com coxilhas contínuas que se estende além mesmo dos rios da Prata e Uruguai.

Partição do mundo Segundo o Tratado de Tordesilhas (1494) – Capitação da Partição do Mar Oceano –, os atuais territórios sulinos caberiam à Coroa espanhola. No sul do atual Brasil, a linha divisória imaginária passava próxima à ilha de Santa Catarina ou à atual cidade de Laguna. Porém, apenas tardiamente essas regiões interessaram às Coroas ibéricas, despreocupação devida a múltiplos fatores. A longa e inóspita costa – 620 km – e a própria plataforma continental dificultavam a navegação e penetração a partir do litoral. Com dificuldades, os navios aportavam em apenas três pontos da costa – as fozes do rio Mampituba, do rio Tramandaí e, sobretudo, do rio Grande. Porém, após vencida a barra do rio Grande, o complexo lagoas-rio Jacuí constituía bom eixo de comunicação com parte das terras do interior. Os atuais territórios sulinos não possuíam minas de minerais valiosos e eram povoados por comunidades relativamente escassas, considerandose as vastidões territoriais – estima-se que na época da chegada dos europeus uns cem mil nativos vivessem nessa região. Os territórios eram pouco próprios à produção da cana-de-açúcar e encontravam-se distantes dos mercados europeus. Portanto, essas paragens inseriam-se dificilmente nos esquemas mercantis coloniais de ocupação e de exploração das Américas. Enquanto outras regiões do continente eram conquistadas pelas Coroas ibéricas, para estabelecer fazendas escravistas, encomiendas, explorações minerais, etc., os atuais territórios sulinos permaneceram dominados por, grosso modo, três grandes complexos civilizacionais nativos americanos. No Planalto Meridional e na Serra viviam comunidades jês de caçadores, coletores e horticultores incipientes que exploravam ativamente a caça e a coleta do pinhão. Por muito tempo, elas habitaram aldeias de ca-

14

sas subterrâneas, substituídas mais tarde por cabanas. Os pampas eram os territórios de caçadores, coletores, pescadores e horticultores incipientes, caracterizados pelas boleadeiras, pela funda e pelas grandes lanças. O nome genérico desses povos – charruas – era também o de um dos seus dois grandes braços – charruas e minuanos. No litoral, nas margens das lagoas, nos vales dos rios Uruguai, Jacuí e Ijuí viviam comunidades guaranis de caçadores, pescadores, coletores e horticultores de floresta tropical e subtropical, tecnologicamente mais desenvolvidas. Os guaranis teriam eliminado ou absorvido grupos de caçadores, coletores e pescadores especializados na exploração dos recursos da orla atlântica sul-rio-grandense e introduzido na região as técnicas horticultoras. Tratava-se, portanto, de comunidades domésticas não classistas. Essas comunidades americanas realizaram o primeiro processo de ocupação do atual Rio Grande do Sul desbravando e explorando os territórios; descobrindo os vaus dos rios, os boqueirões das serras, as fontes de água potável; eliminando animais selvagens; aclimatando plantas agricultáveis, etc. A ocupação europeia subsequente foi preparada, facilitada, apoiada e condicionada por essa domesticação territorial pioneira. A importância da toponímia sulina de origem guarani registra essa contribuição – rios Taquari, Jacuí, Vacacaí; lagoa dos Patos, Mirim, etc. A ocupação lusitana do Sul constituiu processo duplamente conflituoso. Os colonizadores lusitanos e espanhóis, organizados em sociedades estatais e de classe, disputaram o controle desses territórios entre si e com as comunidades nativas domésticas, destruídas, submetidas, absorvidas. Concentrada na exploração e na proteção das minas de Prata do vicereinado do Peru, a Coroa espanhola entregou à Companhia de Jesus a tarefa de reunir, em reduções, missões ou povos, as populações nativas de imensas regiões dos territórios sul-americanos que lhes pertenciam, segundo o Tratado de Tordesilhas. As missões jesuíticas espanholas da América Meridional serviriam como uma espécie de escudo contra a expansão lusitana em direção à estratégica foz do rio da Prata e, sobretudo, das cobiçadas minas de prata andinas. Esperava-se que as missões permitissem a consolidação do domínio mercantil da Coroa hispânica sobre esses territórios, inserindo essas comunidades na sociedade de classes articulada no contexto do império hispânico. Os diversos territórios missioneiros dividiam-se em províncias submetidas a um provincial jesuíta. As diversas províncias possuíam suas reduções, com suas instalações urbanas, plantações, estâncias, invernadas, ervais, etc. As comunidades missioneiras submetiam-se, civilmente, às autoridades coloniais hispano-americanas e, eclesiasticamente, ao padre geral da Companhia de Jesus, que dependia diretamente do papa. As populações missioneiras pagavam uma capitação ao soberano espanhol, que assinalava

15

a dependência direta ao chefe do Estado. No sul da América, as missões jesuíticas ensejaram a formação de modo de produção e sociedade singular, imbricada e subordinada ao império espanhol.

Guaranis e jesuítas Em 1610, criou-se a grande província jesuítica do Paraguai. De 1610 a 1637, os jesuítas espanhóis fundaram as províncias guaraníticas do Itatim, Guairá, Paraguai e Uruguai. As reduções do Tape, pertencentes à província do Uruguai, localizavam-se na margem oriental do rio Uruguai, no noroeste do atual Rio Grande do Sul, no Planalto e ao longo dos rios Ibicuí e Jacuí. A província do Tape tinha 18 reduções. A primeira, San Nicolás, foi fundada em maio de 1626, por jesuítas e missioneiros escapados dos ataques dos mamelucos paulistas às reduções de Itatim e Guairá. Logo reduções foram organizadas nos vales do Caí, do Jacuí, do rio Pardo e do rio Pardinho. De 1580 a 1640, durante a Unificação Ibérica, o reino de Portugal viveu sob a suserania de soberanos espanhóis. Em razão desse fato, a Coroa espanhola permitia a penetração dos seus súditos portugueses nas possessões hispano-americanas, com destaque para Buenos Aires. Nesse então, os Países Baixos eram as mais ricas possessões hispânicas na Europa. A Unificação Ibérica envolveu Portugal e suas colônias na guerra de independência nacional das Províncias Unidas, o que ensejou a libertação daquelas adiantadas regiões, vanguarda da revolução burguesa na Europa (Holanda). A partir de 1626, os mamelucos paulistas atacaram, saquearam, destruíram e reduziram à escravidão parte da população das reduções jesuíticas do Guairá e do Itatim. Em 1630, os holandeses conquistaram a capitania de Pernambuco e, a seguir, importantes portos negreiros lusitanos na África – Gabão, Rio Real, Fernando Pó, São Jorge da Mina, Cabo Lopo Gonçalves, etc. –, causando falta de trabalhadores africanos escravizados aos escravistas luso-brasileiros. O desenvolvimento do mercado de americanos escravizados impulsionou o destruidor assalto dos mamelucos paulistas às missões jesuíticas espanholas. Talvez vinte mil missioneiros tenham sido levados do Sul para a capitania de São Paulo e, a seguir, muitos deles, para outras regiões do Brasil, para labutar duramente como cativos nas plantações açucareiras, em roças, vilas, etc. No Sul, antes da viagem para a capitania de São Paulo, os caciques e os guerreiros mais combativos eram mortos, para que não organizassem movimentos de resistência. O mesmo ocorria com os velhos e as crianças que atrasavam a marcha. Esse verdadeiro genocídio tem sido apresentado pela historiografia nacional-patriótica brasileira como obra meritória. No Brasil, em geral, e no estado de São Paulo, em particular,

16

praças, ruas, redes de televisão, etc. foram e são batizados com o nome de “bandeirante”. Em 1969, importante centro militar paulista de informação, tortura e extermínio de resistentes à ditadura militar foi batizado como Operação Bandeirantes. Em fins de 1636, o português Antônio Raposo Tavares entrou com bandeira de cento e cinquenta luso-brasileiros e mil e quinhentos tupis na província do Tape e acampou às margens do rio Taquari, devastando a região. A redução de Jesus-Maria foi arrasada após resistir por cinco dias ao ataque escravizador. As missões de Santana, San Cristóbal e San Joaquín também teriam sido rapinadas. Em 1637 e 1638, outras duas expedições atacaram os povos missioneiros localizados nessas paragens. Estima-se que as missões do Tape tivessem uns trinta e cinco mil habitantes, uma população considerával para a realidade demográfica da época, mesmo europeia. A reconquista portuguesa de portos escravistas nas costas africanas em mãos holandesas contribuiu para o fim das operações dos mamelucos paulistas de caça ao homem em territórios missioneiros espanhóis, já que se regularizou o abastecimento de trabalhadores africanos escravizados, diminuindo o mercado de nativos feitorizados. A partir de 1640, com o início da guerra de independência de Portugal da Coroa espanhola, os luso-brasileiros que penetraram na América Espanhola foram recebidos como inimigos. Até então, a Coroa espanhola tolerava os ataques preadores dos mamelucos paulistas às missões, já que proviam de braços escravizados a produção das colônias luso-brasileiras, alimentando as rendas reais hispânicas.

Vitória missioneira Em 1641, uma bandeira de quatrocentos paulistas e três mil tupis, comandada por Jerônimo Pedroso de Barros, chegou ao Tape. Após violentos combates, os escravizadores foram batidos, em 25 de março de 1641, nas barrancas do rio M’Bororé, afluente do rio Uruguai, por quatro mil missioneiros, que portavam, além das armas tradicionais, arcabuzes e rústicos canhões de bambus gigantes, reforçados com couros, confeccionados sob instrução jesuítica. Os invasores foram perseguidos até se perderem nos matos da região. Conta a tradição que atacantas foram devorados pelos vencedores, que, apesar de cristianizados, rememoraram os banquetes antropofágicos, cerimoniais que se seguiam tradicionalmente aos combates na tradição tupi-tupinambá. A vitória missioneira pôs fim às incursões dos mamelucos paulistas. Nesses combates destacou-se o chefe guarani-missioneiro Inácio Abiaru. Em 1636-8, para se proteger dos ataques vicentinos, os guaranis missioneiros do Tape transferiram-se para a margem direita do rio Uruguai. As

17

razias dos bandeirantes e a consequente migração das reduções para regiões a oeste do rio Uruguai determinaram importante desorganização das reduções jesuíticas e despovoamento relativo dos atuais territórios sul-riograndenses. A mão de obra nativa escravizada fortaleceu, porém, a economia mercantil e escravista luso-brasileira. Em 1634, os povos da margem oriental do rio Uruguai receberam, cada um, lote de umas cem cabeças de gado para formar seus rebanhos. A criação animal – gado vacum, cavalar, muar, ovino – era essencial atividade da economia missioneira nas ricas pastagens naturais sulinas. Desconhecedoras da economia pastoril, as comunidades guaranis eram mais facilmente conquistadas para reagrupamento em pueblos, que negava e superava a organização doméstica tradicional, já que lhes garantia farta dieta de proteína animal, colheitas mais abundantes e segurança relativa diante dos encomenderos espanhóis e dos escravizadores lusitanos. Quando da retirada para a outra margem do rio Uruguai, os guaranis missioneiros deixaram os gados nos atuais territórios do Rio Grande do Sul, nas margens meridionais do rio Jacuí, para que se reproduzissem. Como as condições ambientais dessas regiões eram excelentes para a multiplicação natural dos rebanhos, os animais reproduziram-se rapidamente. Nos anos 1611-17, os espanhóis levaram igualmente gados, em balsas, para a ilha do Vizcaíno, na desembocadura do rio Negro, e em terra firme, próximo da barra do rio San Salvador, na Banda Oriental do rio Uruguai (futuro Uruguai), para que se propagassem. Animais dispersos teriam cruzado incessantemente da margem direita do rio Uruguai ao longo desses anos. As manadas guaraníticas reproduziram-se e expandiram-se para o litoral, alcançando a orla atlântica e avançando para o sul. As vaquerías del Mar (vacarias do Mar) foram formadas pela confluência da expansão dos rebanhos missioneiros, dos gados introduzidos na Banda Oriental, dos animais chegados através do rio Uruguai. Essas vacarias ocupavam as pastagens que iam da margem direita do rio Jacuí até o rio Negro, no atual Uruguai, superando a seguir essa barreira em direção ao sul. Com a formação das vacarias, os atuais territórios sulinos passavam a possuir considerável riqueza. Em razão da distância dos centros consumidores, o couro e as carnes dos animais tardaram a ser aproveitados sistematicamente por espanhóis e portugueses. As importantes manadas de gados selvagens localizadas entre os rios Negro, Camaquã, Jacuí e o litoral – as vacarias do Mar – eram mantidas como uma espécie de reserva estratégica pelas Missões. Os vaqueiros missioneiros atravessavam periodicamente o rio Uruguai para extrair rebanhos das vacarias. Os territórios da Campanha – 50 mil km2 – constituíam enorme hacienda, trilhada continuamente pelos vaqueiros missioneiros e

18

habitada pelas comunidades charruas, sobretudo, que se especializaram igualmente na caça predatória desses animais.

Crise lusitana Em fins do século 17, após a expulsão dos holandeses do Nordeste, a fundação de colônias açucareiras pelas grandes potências europeias – Inglaterra, Holanda e França –, sobretudo nas Antilhas e no Caribe, determinou profunda crise na economia mercantil e colonial portuguesa, que passou a colocar com dificuldade os açúcares das capitanias luso-americanas na Europa. A Coroa portuguesa procurou superar as dificuldades relançando a procura das minas, ensaiada nos primeiros anos da ocupação territorial, antes da organização da produção açucareira escravista, e desenvolvendo projetos coloniais mercantis alternativos. Durante a Unificação Ibérica (1580-1640), sobretudo comerciantes cristãos novos de judeus lusitanos tiveram acesso à bacia do Prata, onde se estabeleceram e desenvolveram rica atividade comercial, trocando, em Buenos Aires (1580), por prata andina e couros, sobretudo africanos escravizados, bens da costa do Brasil (açúcar, cachaça, fumo, algodão, etc.) e produtos manufaturados, principalmente ingleses. Nesse então, os mercadores portugueses, em razão da decadência do mercantilismo lusitano, transformavam-se já em correia de transmissão da produção manufatureira inglesa. Apesar da obrigação de exportar sua produção e importar o que necessitavam pelo oceano Pacífico, via Porto Belo, os proprietários portenhos, bonaerenses e da região utilizavam-se do contrabando no rio da Prata para tais fins. Em 1640, com a Restauração lusitana, o mercado platino fechou-se para os lusitanos, com graves sequelas também para as classes proprietárias do Prata, carentes sobretudo de mão de obra escravizada, por causa da escassa população nativa regional. Em 20 de janeiro de 1680, os portugueses fundaram a colônia do Santíssimo Sacramento, na margem oriental do Prata, nos atuais territórios uruguaios, diante de Buenos Aires. A colônia localizava-se em territórios indiscutivelmente pertencentes à Espanha, segundo o Tratado de Tordesilhas. Os espanhóis haviam ocupado a margem ocidental do rio da Prata, mas despreocuparam-se com a margem oriental, chamada também de Banda dos Charruas, por ser dominada por aquelas comunidades. Nos primeiros tempos, esses territórios eram utilizados apenas para extração de madeiras, levadas para Buenos Aires. Com a cidadela de Sacramento, a Coroa portuguesa pretendia vender cativos e outros produtos aos espanhóis e nativos e extrair, direta e, sobretudo, indiretamente, couros dos gados selvagens das

19

riquíssimas vacarias da Banda Oriental. Com o contrabando, seria obtida a cobiçada prata chegada do vice-reinado do Peru. Desde fins século 17, uma extração episódica de couro, sebo e língua dos gados era feita, sobretudo nas margens das lagoas, por espanhóis e portugueses que ali chegavam em barcas e lanchões. Com a fundação da colônia do Sacramento, essa produção de couros intensificou-se fortemente na Banda Oriental. Em razão das carcaças dos animais mortos e, portanto, da farta carne abandonada no local, cachorros chimarrões e animais selvagens multiplicaram-se abundantemente. A Coroa espanhola não podia aceitar a intrusão e o contrabando lusitanos na região. A feitoria fortificada foi cercada, em agosto de 1680, por mais de duas centenas de soldados espanhóis, apoiados por três mil guerreiros missioneiros, que atacaram e se apoderaram de Sacramento, morrendo mais de cem portugueses nos duros combates. Porém, em 1681 a colônia foi recuperada, diplomaticamente, pelos lusitanos. Sobretudo a partir de 1689, a colônia conheceu importante desenvolvimento econômico, produzindo trigo, charque e, sobretudo, couro, no contexto de um ativo contrabando. A extração de couro e a própria colônia de Sacramento decliniariam apenas com a fundação de Montevidéu pelos espanhóis, em 1726, que ensejou um melhor controle da campanha. Até 1777, Sacramento foi o grande ponto de atrito entre as Coroas ibéricas na América Meridional, passando das mãos portuguesas para as espanholas, e vice-versa, por inúmeras vezes – agosto de 1680, janeiro de 1683, março de 1705, novembro de 1716, outubro de 1762, dezembro de 1763, maio de 1777. Os espanhóis responderam prontamente à ambiciosa expansão lusitana no sul da América. Em 1682, dois anos após a fundação de Sacramento, guaranis missioneiros começaram a atravessar o rio Uruguai para fundar novas reduções no noroeste dos atuais territórios rio-grandenses. Formavam os Sete Povos da Banda Oriental do rio Uruguai as reduções de São Miguel (capital), São Nicolau, São Borja, São Luiz Gonzaga, São Lourenço, São João Batista, Santo Ângelo.

Nação missioneira A nova ocupação estendeu o controle dos Sete Povos – mais ou menos legal e efetivo – sobre grande parte dos atuais territórios do Rio Grande do Sul e da Banda Oriental (futuro Uruguai). No Planalto, os gados missioneiros ocuparam os campos, e os ervateiros missioneiros exploraram parte das matas da região. Nos pampas, já em 1683, os vaqueiros da missão de São Miguel chegaram até os territórios da atual cidade de Bagé. Porém, em 1688, a oposição dos nativos locais, refratários ao projeto missioneiros, em

20

virtude do menor nível de desenvolvimento civilizatório do que os guaranis, determinou o fracasso da missão de Santo André dos Guenoas e barrou a ocupação da região por missioneiros e portugueses até meados do século 18. Os Sete Povos possuíam administração própria e permitiam melhor gestão dos recursos econômicos pastoris, agrícolas, ervateiros, etc. da região e melhor proteção desse flanco do Vice-Reinado do Peru, ameaçado com a fundação da colônia do Sacramento pelos luso-brasileiros em 1680. No início do século 18, as Missões Ocidentais e Orientais do rio Uruguai possuíam trinta povos e uns cento e vinte mil habitantes. Os Sete Povos teriam trinta mil habitantes, sobretudo guaranis, ainda que ali vivessem nativos charruas, minuanos, etc. – população significativa, considerando-se a realidade demográfica da época. Então, a população de Portugal ultrapassaria apenas um milhão e meio de habitantes. As missões jesuíticas espanholas eram poderosa arma contra a expansão lusitana em direção ao Prata. Elas serviam de proteção das povoações hispânicas dos ataques de comunidades nativas independentes e como guarda pretoriana quando de eventuais movimentos de insubordinação contra o regime e as autoridades coloniais, pelas classes subalternizadas e proprietárias criollas. Requisitadas pelos governadores de Buenos Aires, as tropas missioneiras participaram ativamente do longo esforço militar espanhol pela posse da colônia do Sacramento. As missões sofreram as desgastantes sequelas dessas mobilizações, já que os guerreiros missioneiros eram os agricultores, pastores, ervateiros, etc. armados. As Missões incorporavam também esses vastos territórios ao espaço econômico colonial hispânico, já que exportavam couros, erva-mate, mulas, etc., sobretudo para pagar os impostos de capitação e adquirir o que não produziam. Em 1675, os lusitanos fundaram a vila de Desterro (atual Florianópolis) e, após levantarem a colônia de Sacramento, em 1680, estabeleceram a povoação de Santo Antônio dos Anjos da Laguna (c.1684), para apoiar aquela cidadela. Laguna demarcava o limite meridional da ocupação luso-brasileira nas Américas, antes da distante colônia do Sacramento. Por longas décadas, o atual litoral sul-rio-grandense constituiu uma espécie de terra de ninguém entre Laguna e Sacramento, já que os guaranis missioneiros ocupavam, controlavam e exploravam as regiões das Missões, do AltoUruguai e boa parte da Depressão Central e do Escudo Sul-Rio-Grandense, desinteressados no litoral. Como era habitual na época, as comunicações entre o Rio de Janeiro, a ilha de Santa Catarina e Laguna eram feitas essencialmente por mar. Não temos notícias precisas sobre quando foi estabelecida a comunicação por terra, pelo litoral, entre Laguna e Sacramento. Conhecida como o “Caminho do Mar” ou “Caminho da Praia”, essa rota, trilhada pelas comunidades nativas havia séculos, teria sido aberta por desertores ou retirantes de Sacra-

21

mento, a partir de 1683. Até inícios do século 18, os lusitanos limitavam-se a trilhar, periodicamente, os atuais litorais uruguaio, sulino e catarinense, indo e vindo de Sacramento e de Laguna, sem se interessarem igualmente por essa regiões.

Primeiros lusitanos no Sul Era mais antigo o conhecimento dos atuais territórios sulinos pelos luso-brasileiros. Na segunda metade do século 16, embarcados em lanchões, os vicentinos penetravam pela barra do rio Grande e escambavam cativos, cera, caça, alimentos, etc. por produtos manufaturados com os guaranis que vinham pescar, mariscar e caçar nas costas das lagoas. Tratava-se, porém, de atividade de pouco sentido econômico para ambas as partes. Um século mais tarde, no litoral e nas margens das lagoas, lusitanos e espanhóis caçavam gado missioneiro bravio das vacarias do Mar para extrair couros, línguas e sebo e produzir algum charque. Os espanhóis que obtinham licença dos jesuítas e do cabildo de Buenos Aires para tais atividades eram chamados de “corambreros”; os que se dedicavam a elas clandestinamente, segundo parece em maior número, eram conhecidos como “changadores” – étimo talvez originado da palavra “jangada”, que usavam para atravessar o rio Uruguai com suas montarias. A exploração dos gados das vacarias do Mar por corambreros e changadores era prática extrativista-mercantil de caráter pré-capitalista, de baixo desenvolvimento técnico, organizada por “capitalistas” lusitanos e espanhóis, realizada, sobretudo, com a mão de obra livre, paga com salários, couros e animais. Não era incomum o uso marginal de cativos nessa produção. As manadas eram perseguidas por cavaleiros armados com longas lanças de taquara, com lâminas em forma de meia-lua. Imobilizados pelo corte do garrão, os animais eram mortos por peões ou cativos, que lhes extraíam a língua, o couro e o sebo e produziam, eventualmente, algum charque. Com o passar dos anos, cavaleiros nativos pampianos foram utilizados nessas atividades. Nos anos 1695, a descoberta pelos paulistas das “Minas Gerais do Ouro”, na região do rio das Velhas, entre as atuais cidades mineiras de Sabará e Caetés, poria fim ao desinteresse lusitano pelos atuais territórios sulinos, em razão da possibilidade de exploração dos gados dos territórios do atual Rio Grande do Sul. Com o desenvolvimento da economia mineradora, cresceu enormemente a necessidade de animais para a alimentação e, sobretudo, para o transporte. No Brasil Central, as mulas passaram a ser utilizadas intensamente para levar e trazer cargas através da Serra, em direção ao litoral. No Sul, os Sete Povos criavam mulas, que eram em

22

parte vendidas em Buenos Aires, Assunção e nas minas andinas. A partir de 1703, em virtude do novo mercado consumidor, os luso-brasileiros começaram a levar, sobretudo, muares pelo litoral, da colônia do Sacramento para Laguna, pelo caminho da Praia. Em 1705, a colônia de Sacramento caiu em mãos espanholas. Então, gados começaram a ser retirados das vacarias do Mar. Em 1716, a colônia de Sacramento voltou ao domínio lusitano. Desde 1769, após a fundação da comandância de Rio Grande, em 1737, como veremos a seguir, o Rio Grande do Sul luso-brasileiro foi aquinhoado com o direito exclusivo de criar e exportar “bestas muares” para o resto do Brasil, monopólio suspendido apenas quando da Regência (1831-1840). O privilégio constituiu esforço da administração lusitana de garantir atividade econômica que facilitasse a ocupação dos territórios sulinos, estratégicos para a defesa da colônia do Sacramento. Talvez em 1702, os administradores dos Sete Povos, sabedores da existência de grandes campos no nordeste do Planalto, protegidos – ao norte, sul e leste – por densos pinheirais, enviaram vaqueiros para introduzir gados na região, a fim de criar reservas de animais. Ao se propagarem, os animais deram origem à vacaria dos Pinhais ou Campos da Vacaria, nas duas margens do rio Pelotas, mais tarde também explorada pelos lusitanos. Em 1723, uma expedição partiu de Laguna para o Rio Grande portando presentes para conquistar o apoio dos nativos minuanos, tradicionais inimigos dos guaranis missioneiros. Alguns caciques, agraciados com nomes portugueses e título de “cabo-mor” e de “capitão”, comprometeram-se com a defesa dos portugueses de Laguna e da colônia do Sacramento. Em 1725, obedecendo a instruções da administração colonial portuguesa, a fim de organizar e facilitar a extração de gados e a defesa de Sacramento, partiu de Laguna expedição luso-brasileira de 31 homens, entre eles diversos cativos africanos. A “frota de João de Magalhães” chegou até a margem setentrional da barra do Rio Grande e estabeleceu currais no Estreito, iniciando o primeiro movimento luso-brasileiro de ocupação territorial dos atuais territórios sul-rio-grandenses.

Caminho do mar Inicialmente, os gados chegados da colônia de Sacramento ou retirados dos atuais territórios do Rio Grande do Sul eram levados, pela costa, até Laguna, onde eram embarcados ou charqueados. As carnes produzidas eram enviadas para Santos, Rio de Janeiro, Salvador, etc. As dificuldades dessa rota eram muitas. Os animais atravessavam a nado os canais, descansando nos bancos-de-areia da assoreada barra do Rio Grande; a seguir, venciam, também a nado, os rios Tramandaí, Mampituba e Araranguá, ocasião em

23

que muitos deles eram arrastados para o mar, afogando-se. Em 1740, a Fazenda Real portuguesa cobrava cem réis para passar uma cabeça de gado para a margem Norte. Em 1780, possuía duas embarcações capazes de atravessar umas quarenta cabeças de gado cada vez. Em 1727, os animais começaram a subir do litoral para o planalto pelo morro dos Conventos, nas proximidades de Laguna, depois de trilharem o perigoso litoral. Esse caminho ficou conhecido como a Estrada da Serra ou Estrada dos Conventos. Após vencerem a serra, as tropas uniam-se aos gados que seguiam para o norte pelo caminho tropeiro do Planalto, onde havia muito se criavam animais. A nova rota determinou a decadência de Laguna como centro intermediário entre o Sul e as regiões mais ao norte. Desde os anos 1730, os animais chegados dos campos de Viamão subiram a Serra, tomando a direção do rio Rolante (afluente do rio dos Sinos). Essa rota foi conhecida como o “Caminho de Viamão”. Após alcançar os campos de Cima da Serra e atravessar o rio Pelotas, vencer coxilha Rica, os gados embocavam o caminho de Curitiba, em direção à feira de Sorocaba, a uns cem quilômetros da vila de São Paulo. Fundada em 1654, a povoação de Sorocaba foi elevada, em 1661, à situação de vila. A seguir, cresceu com o comércio de animais e, a partir de 1750, como posto de recolhimento de impostos sobre os animais comerciados. Para taxar a passagem dos gados pelo caminho de Viamão, a Coroa organizou, bem mais ao sul, o Registro da Guarda (Velha) de Viamão, nas proximidades da qual nasceria a povoação e futura vila de Santo Antônio da Patrulha. O caminho de Viamão ligou os territórios sulinos à mais antiga rota boiadeira Curitiba/Sorocaba/São Paulo/Minas Gerais. Uns mil e quinhentos quilômetros separavam a Guarda (Velha) de Viamão de Sorocaba. Em geral, esse caminho era constituído por uma sucessão de campos, com fartas pastagens e abundantes aguadas. Ao alcançarem o sertão de Lages, os tropeiros conduziam as tropas por trezentos quilômetros, por estreitos caminhos, varando rios, brejos, matas. Quando das primeiras viagens, ao subirem a Serra, os tropeiros descobriram as vacarias dos Pinhais, formada pelos guaranis missioneiros no início do século 18, como visto. Desde então, levaram animais da vacaria para Sorocaba. Mais tarde, tropas muares trazidas dos atuais territórios argentinos foram contrabandeadas para Sorocaba, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A extração sistemática dos gados sulinos determinou a formação de estâncias – inicialmente locais de descanso para os gados – nos campos de Viamão e no Estreito. Inicialmente, as estâncias eram humildes ranchos de adobe, cobertos de palha, com uma roça de subsistência e alguns currais para os gados, povoadas pelos estancieiros e alguns cativos e peões. Mais tarde, o esgotamento das vacarias do Mar e dos Pinhais determinou a for-

24

mação dos primeiros criatórios na região. Apenas então o termo “estância” tornou-se sinônimo de fazenda pastoril.

Primeiras sesmarias A partir dos anos 1730, foram concedidas as primeiras sesmarias no litoral norte e no Estreito – Torres e Tramandaí (1732), Osório e campos de Viamão (1740), Gravataí, etc. Em 1734, assinalavam-se 27 estâncias entre Tramandaí e Rio Grande. Habitualmente, a sesmaria consistia de “três léguas em quadro”, ou seja, pouco mais de treze mil hectares, constituindo doação gratuita e plena, sem qualquer ônus, a não ser o dízimo de Cristo, sob a obrigação dos sesmeiros de ocupá-las e explorá-las. Era comum que os sesmeiros explorassem havia alguns anos as terras que requeriam à Coroa. No Sul, para obterem uma sesmaria, os requerentes declaravam, comumente, condições de povoar as terras em gados e trabalhadores, em geral escravizados. Tratava-se de reprodução do padrão latifundiário, escravista e mercantil da ocupação e exploração da terra comum no resto da colônia. Para proteger e apoiar essas atividades fundaram-se os povoados de Nossa Senhora da Conceição de Viamão, próximo ao rio Guaíba, e um reduto fortificado, a tranqueira (estacada para fortificar) de Santo Amaro, na bacia do Jacuí. Nos campos de Viamão, desde os primeiros tempos, plantavam-se também cana-de-açúcar e mandioca, igualmente com o braço escravizado. O alto preço dos salários do trabalho do homem livre pobre na época, em geral, e na região, em especial, em razão da possibilidade de se dedicarem a explorações de subsistência e a baixa rentabilidade da atividade pastoril-tropeira determinavam que, desde os primeiros tempos, as estâncias fossem povoadas com alguns trabalhadores escravizados, fato que explica, ao lado das práticas agrícolas, o registro precoce de cativos nos primeiros mapas estatísticos da região. O alto preço dos cativos e a baixa acumulação ensejada pela atividade pastoril-tropeira e pela agricultura praticada na região contribuíram para a lentidão inicial do povoamento dos atuais territórios sul-rio-grandenses. Até 1737, luso-brasileiros e hispano-americanos dividiram informalmente, sem confrontos significativos, o domínio dos atuais territórios sulinos. Os luso-brasileiros ocupavam as regiões a leste da lagoa dos Patos e do rio Guaíba – os campos de Viamão e o Estreito. Nesse então, as terras ao norte da barra do Rio Grande dependiam da capitania de São Paulo. Os guarani-missioneiros dominavam as Missões, o Alto-Uruguai e grande parte dos pampas meridionais – a Campanha. O Planalto Médio e os campos de Cima da Serra eram terras controladas, mais ou menos efetivamente, pelas guaranis missioneiros e habitadas por comunidades nativas. Com o estabe-

25

lecimento do caminho de Viamão, o nordeste sul-rio-grandense passou a ser trilhado e dominado por tropeiros luso-brasileiros. As lagoas, o rio Jacuí e a Serra serviam como fronteira natural entre os territórios controlados pelos luso-brasileiros e pelos hispano-missioneiros, afastando fisicamente os oponentes ibéricos. Ao menos em teoria, tal divisão garantia à Coroa espanhola a proteção do vice-reino do Peru, ainda que não lhe garantisse uma defesa efetiva da expansão lusitana em direção às regiões do rio da Prata, em virtude do controle lusitano de fato do atual litoral sul-rio-grandense. Em fevereiro de 1737, a Coroa portuguesa rompeu o equilíbrio regional, fundando o forte e presídio (sede de presidência) de Jesus-Maria-José, na margem meridional do rio Grande. A seguir, foi instituída a Comandância Militar do Rio Grande de São Pedro, dependente do Rio de Janeiro, com sede na povoação e com autoridade sobre as terras ao sul da barra do Rio Grande. Os campos de Viamão e o Estreito dependiam, administrativamente, da capitania de São Paulo, como visto. Em 1751, a povoação de Rio Grande foi elevada ao status de vila, instalando-se a primeira Câmara Municipal, com autoridade sobre todas as possessões portuguesas na região.

A conquista do pampa O brigadeiro José da Silva Pais (1679-1760) comandou a expedição que, após socorrer a colônia de Sacramento, sitiada desde 1735 por espanhóis e missioneiros, fundou a futura vila de Rio Grande, onde a seguir se estabeleceriam colonos chegados do Rio de Janeiro, de Laguna, de Sacramento e das ilhas dos Açores. Duzentos nativos foram trazidos de São Paulo para trabalhar na organização da nova povoação. A fundação de Rio Grande apoiou-se, em grande parte, no trabalho dos nativos, que participaram das construções das fortificações do porto, do Estreito, de São Miguel, etc. O salário, alimentação e tratamento seriam tão precários que, já em janeiro de 1738, 34 nativos e quatro nativas desertavam do trabalho das fortificações de Rio Grande. Acordos entre o comando militar e comunidades minuanas facilitaram o abastecimento dos recém-chegados, sobretudo em gado, alimento fundamental para os povoadores. A ocupação lusitana dessas regiões deu-se por meio da aculturação, escravização, combate e extermínio das comunidades nativas, processo ainda não objeto de estudos historiográficos sistemáticos. Em Rio Grande estabeleceu-se poderoso regimento de seiscentos soldados Dragões, tropas portuguesas de elite. O oficial máximo do corpo ganhava 80$000 réis mensais; os soldados, 27 vezes menos – 3$000. As deserções eram frequentes, em razão do atraso dos soldos e das difíceis condições de

26

trabalho e de existência. Com a nova cidadela, os luso-brasileiros realizavam o segundo grande movimento de ocupação dos atuais territórios sulinos. A vila-porto de Rio Grande permitia que os lusitano-brasileiros apoiassem a sitiada colônia de Sacramento e explorassem as regiões da Campanha próximas à povoação, estabelecendo igualmente uma importante extração de couros dos animais selvagens dos campos mais próximos. Para povoar os novos territórios, casais chegados, sobretudo, de Sacramento e de Laguna alojaram-se em Rio Grande e terras próximas da aglomeração foram distribuídas especialmente àqueles que tivessem condições de povoá-las com animais e trabalhadores escravizados, como visto. Fazendas e currais foram levantados nas pastagens circunvizinhas para apoiar as tropas, produzir couro, sebo, língua, carne verde e algum charque. Nas vizinhanças da vila, organizaram-se roças e plantações de trigo, centeio, cevada, milho, feijão, ervilha, etc., sobretudo para o abastecimento da povoação e alguma exportação. Inicialmente, os trigos sulinos alimentavam as guarnições da região. A seguir, foram exportados, sobretudo para o Rio de Janeiro, mas também para a Bahia, Pernambuco e Portugal. Com as novas plantações, apoiadas em grande parte no trabalho escravizado, os colonos recém chegados punham fim às atividades produtivas sustentadas principalmente na caça predatória dos gados pelo couro, praticada intensamente, enquanto abundou o gado, após 1737. A produção triticultora garantia uma maior rentabilidade do que as tropas, permitindo a fixação de um maior número de lusobrasileiros, que se apoiaram na mão de obra escravizada, como assinalado. Porém, a ocupação da região ficou, no geral, restrita às proximidades de Rio Grande.

Tratado de Madrid Em 1750, iniciou-se grande movimento expansionista luso-brasileiro nos atuais territórios sulinos. O Tratado de Madrid, pactuado entre Portugal e Espanha, em 13 de janeiro daquele ano constituiu tentativa de solução pacífica global das desavenças territoriais ibéricas na América do Sul. No relativo à América Meridional, o acordo determinava a passagem de Sacramento ao domínio da Coroa espanhola e a entrega aos lusitanos dos territórios missioneiros ao oriente do rio Uruguai. Nesses anos, decaíra a produção andina de Prata e, portanto, o interesse de portugueses e dos espanhóis por aquela região. Os espanhóis recebiam também as Filipinas e as Molucas na troca. Com o tratado, os espanhóis garantiam-se o domínio do Prata e despreocupavam-se olimpicamente com a sorte e com os direitos das populações

27

missioneiras, que eram expropriadas de suas vilas, de suas terras, de seus ervais, de suas estâncias e de enorme parte dos rebanhos. O artigo XVI do tratado dizia: “Das povoações ou aldeias que cede sua Majestade Católica na margem oriental do rio Uruguai, sairão os missionários com todos os móveis e efeitos, levando consigo os índios para os aldear em outras terras de Espanha [...]; se entregarão as povoações à Coroa de Portugal, com todas as suas casas, igrejas e edifícios e a propriedade e posse do terreno [...].” Em 1751, tratado secreto acertou o uso conjunto das forças militares ibéricas no caso de resistência missioneira. Os missioneiros deveriam se agasalhar na Banda dos Charruas (Uruguai) ou na outra margem do rio Uruguai, já fortemente ocupada por comunidades missioneiras, o que determinaria fome, miséria e morte para milhares de habitantes dos Sete Povos. Dos atuais territórios sulinos, apenas os terrenos nas margens meridionais do rio Ibicuí permaneceriam com a Espanha. Ali se encontravam algumas das mais ricas estâncias missioneiras. Para colonizar as Missões, a Coroa portuguesa mandara vir mais de quinhentos casais das ilhas atlânticas, sobretudo das ilhas dos Açores e da Madeira, sob a promessa de terras, ferramentas, sementes, ajuda de custo, etc. A cada casal seriam entregues 272 hectares de terra – “um quarto de légua em quadra”. Logo novos imigrantes chegados das ilhas juntaram-se aos iniciais. Até 1754, uns três mil açorianos estabeleceram-se no Rio Grande do Sul – dois terços da população luso-brasileira da região de então. A proposta de ocupação de importantes regiões do Sul do Brasil com pequenos proprietários provenientes das ilhas foi a primeira tentativa da administração lusitana de desenvolver na região uma economia camponesa que facilitasse o domínio dos territórios, produzisse braços para os exércitos coloniais e meios de subsistência para as tropas locais. A iniciativa estava fadada ao fracasso em razão da inexistência de mercados para o escoamento de uma produção policultora. Ao chegar ao Rio Grande, o general de batalha português Gomes Freire de Andrade (1757-1817), comissário lusitano da expedição demarcadora, concedeu sesmarias no Chuí, em Viamão, em Cima da Serra, no vale do rio dos Sinos, no Jacuí, no Caí, no rio das Antas, na vacaria dos Pinhais, incentivando fortemente a extensão da ocupação latifundiária, mercantil e escravista do território pelos luso-brasileiros. Em setembro de 1752, os responsáveis pela demarcação dos limites sul das colônias ibéricas encontraram-se em Castilhos Grande e, em inícios de outubro, punham o primeiro marco divisório. Além de militares, a expedição luso-espanhola comportava astrônomos, diplomatas, engenheiros e geógrafos. Foi barrada por tropas missioneiras comandadas por José Tyarajú – Sepé –, alferes real de São Miguel, na coxilha de São Sebastião, no atual município de Bagé, já em territórios daquela redução. Diante da vontade de resistência e do forte inverno, os ibéricos assinaram armistício com as tro-

28

pas missioneiras em 14 de novembro de 1754, voltando os portugueses para Sacramento e os espanhóis para Montevidéu.

Guerra Guaranítica Finalmente, em 16 de janeiro de 1756, após marchas e contramarchas, um exército hispano-lusitano de 2.600 homens, poderosamente armado e artilhado, reuniu-se nas cabeceiras do rio Negro, de onde partiu para as missões. Em inícios de fevereiro, num dos primeiros confrontos entre as tropas ibéricas e missioneiras, caiu morto em combate “um índio de grande valor chamado Sepé”. Apesar do antagonismo histórico, os missioneiros foram apoiados por combatentes charruas, minuanos, guenoas e outros, chamados, segundo parece, ao desconhecimento dos jesuítas. Entretanto, não houve o apoio efetivo dos povos da margem direita do rio Uruguai aos missioneiros do Tape, nem mesmo acordo profundo entre estes últimos, na condução da resistência aos ibéricos. Em 10 de fevereiro de 1756, nos campos de Caaibaté, 1.800 missioneiros, armados de lanças, arcos e flechas e algumas peças de artilharia “feitas de madeira e forradas de couro”, tentaram abrir negociações e impedir o avanço das tropas ibéricas, que contavam com mais de 3.700 combatentes e 19 canhões. De forma coordenada, as artilharias portuguesa e espanhola abriram fogo, desorganizando os missioneiros. A seguir, mais de mil missioneiros teriam sido perseguidos e massacrados. Em 16 de maio de 1756, após refregas menores, os ibéricos entravam triunfantes em San Miguel, encerrando a Guerra Guaranítica (1753-6). Em razão das decisões do Tratado de Madrid (1750), a Comissão Demarcadora fundara, em 1752, entre os rios Jacuí e Pardo, a fortificação de Jesus-Maria-José, para onde foram transferidos soldados Dragões de Rio Grande. Por décadas, a “tranqueira do Rio Pardo” foi a fronteira extremooeste das possessões lusitanas, visitada por coureadores espanhóis e local de partida de expedições para caçar animais pelo couro na Banda Oriental. Colonos açorianos foram estabelecidos em caráter precário em terras tidas como devolutas, entre o rio Pardo e o rio Jacuí. Nos arredores da povoação, que se encontrava em territórios missioneiros, plantou-se trigo e produziram-se charque e couros, fortemente apoiado na mão de obra escravizada. A aglomeração conheceu uma importante contribuição com o estabelecimento, na sua parte norte, da aldeia de índios de São Nicolau, com guaranis retirados das missões, como veremos oportunamente. A resistência guaranítica às tropas ensejou que os missioneiros, mesmo derrotados, permanecessem em seus pueblos, ainda por bem mais de meio século, o que impediu que os colonos açorianos apenas chegados partissem

29

para as Missões. Em 1752, o estabelecimento de algumas dezenas de casais nas margens do arroio Dilúvio, no porto do Dornelles, e a seguir na região norte da península (futura rua da Praia), onde era maior a profundidade e, portanto, melhor a navegabilidade do rio, consolidou a formação da futura aglomeração urbana de Porto Alegre. Muito logo, o pequeno arraial cresceu rapidamente, em razão das qualidades evidentes da localização: encontrava-se na encruzilhada das regiões então dominadas pelos luso-brasileiros e possuía um ótimo porto de águas profundas e um sítio elevado de fácil defesa. Essas características contribuíram para que a povoação se tornasse, a partir de 1773, sede da capitania e, a seguir, da província e do estado do Rio Grande do Sul. Nos primeiros cinquenta anos, o desenvolvimento de Porto Alegre assentou-se sobremaneira na plantação e exportação do trigo. Durante o século 19, a aglomeração constituiu o principal centro de distribuição de mercadorias da Depressão Central. Em 1824, a localização de colonos alemães nas suas proximidades fortaleceu o dinamismo econômico da aglomeração, à margem da acumulação econômica ensejada pela produção pastoril-charqueadora, na Campanha e no litoral sul.

Afluxo populacional Em 1757, por causa da demora na demarcação das novas fronteiras, da não evacuação dos missioneiros dos Sete Povos e temendo-se ofensiva hispânica, as tropas lusitanas recuaram para Rio Pardo. Na retirada, arrastaram consigo alguns milhares de guaranis missioneiros, que foram levados para as povoações de São Nicolau de Rio Pardo, São Nicolau de Cachoeira (do Sul) e para a Aldeia de Nossa Senhora dos Anjos (Gravataí). Sob o jugo lusitano, os missioneiros foram obrigados a trocar seus nomes guaranis por portugueses. A ação visava fornecer mão de obra para as classes dominantes sul-rio-grandenses e debilitar as forças militares hispânicas, que recorriam sistematicamente aos missioneiros em suas operações antilusitanas. A obrigação de tomar nome português almejava e viabilizava a destruição da forte identidade guarani-missioneira. O controle de parte das populações missioneiras permitiu que os proprietários luso-brasileiros minorassem a enorme falta e carestia de trabalhadores a serem explorados nas fazendas, nas plantações, nas roças, nas vilas, etc., realizadas fortemente com o trabalho escravizado africano, de custo relativamente elevado. Nos anos seguintes, os guaranis missioneiros seriam intensamente utilizados na produção mercantil regional. Esse significativo deslocamento populacional, essencial à formação do sul luso-brasileiro, foi praticamente desprezado pela historiografia sulina tradicional

30

como importante composição do núcleo básico da formação da população sul-rio-grandense. Em 1781, o cartógrafo, engenheiro-militar e brigadeiro Francisco João Roscio, comandante militar e governador da capitania de São Pedro em 1801-3, referiu-se aos habitantes da aldeia de Gravataí registrando a visão das classes dominantes da época sobre essa população subalternizada: “Este povo é bastante bisonho e falto de indústria e capricho. São fortes e sofredores de trabalho com bastante aptidão e habilidade. Servem de grande socorro a este Continente em todos os trabalhos grosseiros e fortes: mas são inconstantes e acostumados a fugir tanto homens como mulheres [...].” Registre-se a ênfase na resistência dos ex-missioneiros às condições de trabalho a que eram submetidos através da fuga, que denotava as relações semisservis a que estavam submetidos. A grande migração dos missioneiros derrotados deu-se em direção à Banda Oriental do Uruguai. Acredita-se que alguns milhares de missioneiros estabeleceram-se no atual Uruguai, guaranitizando profundamente a região, onde se empregaram nos campos, como peões, e em Montevidéu (1724), como chacreiros, artífices, etc. Guaranis missioneiros incorporaram-se, igualmente, aos toldos charruas e minuanos do pampa uruguaio. Ainda que decaída, permaneceu importante a população de origem guarani nas Missões até, como veremos oportunamente, ao grande êxodo de 1828, também em direção à Banda Oriental. Em 1760, o Rio Grande passou a capitania, com sede na vila homônima, independente de Santa Catarina e dependente do Rio de Janeiro. A subalternidade determinava que as concessões de sesmarias fossem feitas pelo governador do Rio de Janeiro. Em inícios de 1761, o Tratado de El Pardo, entre Portugal e Espanha, anulou o Tratado de Madrid, de 1750, mantendo as fronteiras anteriores no sul da América entre as possessões de Portugal e de Espanha – as missões continuaram espanholas e Sacramento português. No mesmo ano, a Espanha, a França, Nápoles e a Sicília, sob o reino dos Bourbons, uniram-se contra a Inglaterra e, consequentemente, contra Portugal, seu pequeno e tradicional aliado-subalterno.

Grande ofensiva Os espanhóis aproveitaram a Guerra dos Sete Anos (1756 e 1763) para uma grande ofensiva no Prata. Em outubro de 1762, as tropas castelhanas e missioneiras assaltaram e apoderaram-se da colônia de Sacramento. Em 19 de abril de 1763, o forte de Santa Teresa, na fronteira sul da capitania de Rio Grande, caía, sem resistência. Mais grave ainda, e em 24 do mesmo mês, a vila e o porto de Rio Grande e o Norte eram entregues, também praticamente sem luta aos castelhanos, obrigando a administração luso-brasi-

31

leira e grande parte da população da vila e dos arredores a recuar para os campos de Viamão. Colonos açorianos presos em Rio Grande foram levados para Maldonado (1755), no sudeste da Banda Oriental, onde se estabeleceram, muitos deles definitivamente. Nessa época, aproximativamente, a vila de Rio Grande teria 1.500 habitantes; a futura Porto Alegre, quinhentos; a aldeia de Nossa Senhora dos Anjos (Gravataí), mil guaranis missioneiros, e a tranqueira do Rio Pardo, umas duzentas famílias. As populações de Viamão e de Santo Amaro eram ainda menores. Ao todo, o Rio Grande luso-brasileiro possuiria umas quatrocentas fazendas de gado, oitenta delas no Estreito. Em 10 de fevereiro 1763, em virtude da assinatura do Tratado de Paris entre os beligerantes, a colônia do Sacramento foi devolvida aos lusitanos, permanecendo, porém, os espanhóis no domínio da vila de Rio Grande e, portanto, comandando a entrada e saída para as terras do interior. Em julho de 1767, os jesuítas espanhóis foram expulsos dos Sete Povos e de todas as possessões hispânicas, que passaram à administração secular espanhola, acelerando-se a decadência em que já viviam. Em 1774, para consolidar a conquista da Campanha, os espanhóis construíram o forte de Santa Tecla, a poucos quilômetros da atual cidade de Bagé. Com Rio Grande em mãos espanholas, a sede da capitania fora transferida para a capela de Viamão, elevada à situação de vila e, em 1773, a freguesia de São Francisco dos Casais. Apesar da nova dignidade, a futura Porto Alegre só foi elevada ao status de vila em 1810 e, de cidade, em 1822. Foi também em virtude da ocupação de Rio Grande pelos espanhóis que São José do Norte se desenvolveu como principal ponto de defesa lusitana do Estreito. Em razão do domínio espanhol, muitos açorianos que viviam adjacências de Rio Grande retiraram-se da região, estabelecendo-se nas terras mais férteis da Depressão Central, sobretudo ao longo da mais protegida margem esquerda do rio Jacuí, sob a proteção da tranqueira de Rio Pardo. Nas novas regiões, prosseguiram a plantação de cereais, sempre apoiados na força de trabalho familiar e de trabalhadores escravizados. Os capitais obtidos nos trigais foram investidos na compra de cativos para a criação animal e para a produção de charque. As terras eram obtidas como sesmarias ou compradas a muito baixo preço. O status quo regional desequilibrara-se claramente em detrimento dos luso-brasileiros. A perda de Rio Grande e do Norte impedia o ingresso marítimo ao interior da capitania. Em 6 de julho de 1767, o Norte foi reconquistado pelos portugueses, garantindo um porto marítimo com contato com o interior. Porém, apenas em 26 de março de 1776, o forte de Santa Tecla, e no dia 1º de maio do mesmo ano, Rio Grande e a Campanha foram retomados aos espanhóis, por poderoso exército luso-brasileiro de mais de sete mil homens – o maior jamais enviado pela Coroa portuguesa à América, o que

32

registra a importância da operação. Em resposta, uma poderosa expedição espanhola assaltou e apoderou-se facilmente da ilha de Santa Catarina, em fevereiro, e da Colônia, em junho de 1777. Dessa feita, os espanhóis desmantelaram a fortaleza de Sacramento.

Viradeira lusitana A morte de dom José I de Portugal, em inícios de 1777, e a ascensão ao trono de sua filha, dona Maria I, permitiram a viradeira que depôs o poderoso marquês do Pombal (1699-1782) e seu projeto reformista-ilustrado, entregando novamente o controle direto do governo e do Estado lusitano à grande aristocracia terratenente. Um dos primeiros resultados da nova acomodação do poder foi a assinatura, em 1º de outubro de 1777, do Tratado Santo Ildefonso, que reconhecia a soberania espanhola sobre a colônia de Sacramento e sobre as Missões, em troca da retirada espanhola de Santa Catarina. O forte de Santa Tecla e os territórios do meridião sulino passaram, novamente, ao domínio espanhol. O tratado instituiu os Campos Neutrais na fronteira entre os territórios meridionais de Espanha e Portugal. Doravante, as terras entre a lagoa da Mangueira e a lagoa Mirim e a costa atlântica não poderiam ser ocupadas por nenhuma das Coroas ibéricas. Entre os objetivos da decisão encontrava-se a vontade de demover o contrabando luso-brasileiro com o Prata. Essa verdadeira terra de ninguém tornou-se verdadeira pátria dos contrabandistas. A reconquista de Rio Grande e o Tratado de Santo Ildefonso, garantindo a posse da campanha aos lusitanos, permitiram a efetiva ocupação de grande parte dos pampas rio-grandenses. Após a reconquista do porto marítimo de Rio Grande, muitos dos oficiais chegados para a campanha militar contra os espanhóis receberam ou simplesmente se apoderaram de importantes sesmarias nos pampas, onde organizaram fazendas pastoris. Em pouco tempo, as terras acessíveis esgotaram-se completamente. Nos anos 1780, a produção mercantil sulina centrava-se na triticultura, na exportação de muares e na produção de couros, já fortemente produzida em estâncias pastoris, definidas comumente como fazendas chimarras, em razão do domínio nelas dos gados selvagens. Como vimos, nos anos 1750 os ilhéus chegados ao Sul destinados a ocupar as Missões fundaram ou fortaleceram povoações em Viamão, no litoral, no Estreito (Torres, Mostardas, Bojuru, Gravataí) e ao longo da margem setentrional do Jacuí (Porto Alegre, Triunfo, Taquari, Santo Amaro, Rio Pardo). Com a imigração açoriana, a Coroa pretendia organizar economia camponesa policultora que fornecesse filhos e alimentos para as tropas militares da região, como assinalado. Por diversas razões, com o passar dos anos, boa parte dos ilhéus abandonaria

33

a produção agrícola pela criação animal. Inicialmente, a produção pastoril alimentava o mercado local com carne, produzia couros e exportava tropas, sobretudo de muares. Em fins do século 18, a decadência da produção mineradora no Brasil Central determinou a retração do consumo de mulas sulinas. Então, a produção triticultura e, sobretudo, a atividade charqueadora (1780) impediram que a produção mercantil escravista sul-rio-grandense se deprimisse ainda mais. Nos anos 1830, a exportação muar para Sorocaba, em São Paulo, retomou fôlego, com as novas necessidades nascidas da produção cafeicultora, então em forte expansão. O café era levado do vale do Paraíba do Sul para o litoral em bolsas de couro transportadas por milhares de mulas. Os trigais sulinos foram plantados nas proximidades da lagoa dos Patos, ao longo dos rios Jacuí e Taquari e nas cercanias de Rio Pardo. A produção era comercializada e embarcada no porto de Porto Alegre e exportada para o Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Portugal, tendo contribuído significativamente para primeira expansão econômica de Porto Alegre. De 1813 a 1816, o Rio Grande do Sul chegou a exportar, em média, anualmente, mais de dez mil e quinhentas toneladas de trigo ao ano. A atividade permitiu uma primeira introdução sistemática de mão de obra escravizada no Sul e financiou o estabelecimento de charqueadas e a construção de embarcações de cabotagem. A importação significativa de cativos africanos novos era apoiada pela proibição, desde meados do século 18, da escravização de nativos, que continuaram sendo, não raro, reduzidos, nos fatos, a condições semisservis de trabalho.

A corte no Rio de Janeiro Em inícios de 1808, a transferência do aparato administrativo do império português para o Rio de Janeiro e a consequente liberalização do comércio internacional, sem uma proteção aduaneira pertinente, determinaram que a exportação tritícola sulina sofresse, nas restantes províncias, a dura concorrência do trigo estadunidense. Este último passou a pagar, a partir de 1827, como as outras mercadorias, apenas 15% de taxa alfandegária. A mesma depressão conheceria a produção artesanal e pequena mercantil da colônia diante dos produtos manufaturados importados, sobretudo ingleses, o que fortaleceu a economia escravista e as relações de produção e de dominação pré-capitalistas. A partir de 1811, com a ocupação temporária lusobrasileira da Banda Oriental, a expansão dos criadores sulinos em direção àqueles territórios e o saque dos rodeios orientais favoreceram a explosão da produção pastoril-charqueadora rio-grandense, contribuindo para a frustração definitiva da triticultura.

34

Diversas causas contribuíram para que o trigo sulino fosse alijado do mercado do Brasil e mundial: a incidência da ferrugem (1811), as dificuldades dos transportes, a carestia da mão de obra livre e escravizada, o escasso desenvolvimento das técnicas produtivas, a inadequação da triticultora à produção escravista, a produtividade irregular do produto, a concorrência do trigo estadunidense. Sobretudo o desenvolvimento da produção charqueadora tornou ainda mais rentável a criação animal, concentrando os capitais regionais disponíveis. Em 1822, o Rio Grande alimentava-se com o trigo trazido do exterior. Foi a produção pastoril-charqueadora escravista que consolidou a economia mercantil sulina e, portanto, o Rio Grande do Sul luso-brasileiro. Antes mesmo da ocupação do litoral, a partir dos anos 1720, praticava-se uma produção artesanal de charque e de couros no Estreito e nas margens das lagoas, alimentada pelos gados selvagens abundantes na região. A partir da segunda metade do século 18, charqueava-se ativamente no vale do Jacuí. A atividade saladeiril sulina foi impulsionada pelas grandes secas de 1777-8 e 1791-2 no nordeste do Brasil. Essas facilitaram o desenvolvimento da produção escravista de carnes salgadas sulina ao dizimarem os gados daquelas regiões, que alimentavam a produção do Ceará e do Piauí, tradicionais fornecedores de carne-de-sol para o resto do Brasil. As pastagens mais abundantes e o clima mais benigno e regular do sul da América permitiam uma produção pastoril significativamente mais rentável em relação à nordestina. Com a expulsão dos espanhóis do porto e da vila de Rio Grande, em 1776, os territórios vizinhos a essa povoação foram rapidamente ocupados por fazendas pastoris. Então, uma importante atividade saladeiril organizou-se, sobretudo, nas margens do arroio Pelotas, dando origem à importante povoação de São Francisco de Paula, futura vila de Pelotas, que se distinguiria como grande centro charqueador e escravista do Rio Grande do Sul. Charqueadas surgiram também nas margens das lagoas, no rio Jacuí, no rio Guaíba, etc. Até os anos 1830, Rio Pardo abasteceu a capital com charque. A localização das charqueadas nas margens das vias aquáticas nascia da necessidade do escoamento da produção. As condições de trabalho na produção saladeiril eram muito duras, determinando que funcionasse quase inteiramente com mão de obra escravizada. Nesse então, no Rio Grande e no Brasil, a escassa população livre conseguia sobreviver, ainda que fosse como pequeno posseiro, em razão da abundância relativa de terras, sem se assalariar sob condições draconianas. Por décadas, as charqueadas, com de sessenta a cem cativos, financiaram o ingresso de grandes quantidades de trabalhadores africanos escravizados no Sul. Sobretudo, ensejaram a rápida ocupação dos pampas do Rio Grande do Sul e do norte do Uruguai por fazendas pastoris latifundiárias voltadas

35

à criação de animais para o abate, em grande parte apoiada no trabalho escravizado. Em 1785, 64,22% das 841 propriedades sulinas recenseadas tinham mais de mil hectares.

Terra ocupada A produção charqueadora, grande eixo articulador das atividades econômicas das classes dominantes sulinas, sofreu sempre a dura concorrência das carnes salgadas do rio da Prata, de campos mais produtivos e, inicialmente, exportadas pelo porto de Montevidéu . Desde 1780, o Estado colonial hispano-americano concedera a liberdade comercial àquelas regiões, no contexto do império hispânico, as quais, a seguir, também não pagariam direitos sobre o ingresso do sal e sobre a exportação do charque. A superioridade dos charques platinos devia-se à melhor qualidade dos campos, dos gados e da mão de obra trabalhadora livre empregada nas charqueadas do Uruguai e da Argentina. Era igualmente significativa a melhor qualidade do porto de Montevidéu e de Buenos Aires em relação a Rio Grande. O Prata conheceria, igualmente, fortes investimentos de capitais ingleses. Em geral, as charqueadas sulinas prosperaram sobretudo quando crises políticas tumultuaram a produção do Prata, como o saque dos rebanhos orientais pelos criadores sulinos, o cerco do porto de Montevidéu e Buenos Aires, etc. Estudos arqueológicos e históricos registram a pobreza relativa de muitas fazendas sulinas ainda em início do século 19. A sede, o galpão, as senzalas teriam construção e acabamento rústicos; seus primeiros ocupantes alimentavam-se, sobretudo, de carne; eram poucos os manufaturados importados, etc. Sobretudo a partir de 1830, o charque sulino encontrou um mercado em forte expansão em razão do desenvolvimento da produção escravista de café. A carne salgada era um tradicional alimento do trabalhador escravizado e da população pobre, ainda que consumido com parcimônia. Os homens ricos alimentavam-se com a carne de animais apenas abatidos – “carne verde”. Nesse contexto, com o impulso da produção charqueadora escravista sulina a partir de 1780, os pampas sulinos foram totalmente ocupados por fazendas pastoris, em boa parte a partir do uso da mão de obra escravizada, como assinalado. O desenvolvimento e integração da atual região Norte do Rio Grande do Sul conheceram um processo diverso. Nos anos 1753-6, a derrota missioneira pelas tropas luso-espanholas despovoou relativamente os Sete

36

Povos. Muitos missioneiros foram massacrados, dispersados, transferidos para povoações portuguesas. Outros cruzaram o rio Uruguai e mudaram-se para a Banda Oriental. As missões prosseguiram sua decadência, sob administração laica espanhola, após a expulsão dos jesuítas, em 1767. Parte das terras missioneiras foi entregue a colonos espanhóis e alguns criadores luso-brasileiros insinuaram-se na região. Porém, bem ou mal, as populações missioneiras detinham ainda o controle de importantes fazendas coletivas. Em inícios de 1801, aproveitando as hostilidades entre os reinos espanhol e português, em razão das guerras napoleônicas, os Campos Neutrais, até o rio Jaguarão, foram incorporados ao Brasil. Em agosto, tropas irregulares luso-brasileiras, apoiadas por comunidades missioneiras descontentes com a administração civil espanhola, apoderaram-se dos Sete Povos e, em novembro de 1801, de São Borja. Então, o Rio Grande do Sul assumiu praticamente sua conformação atual. O capitão João de Deus Mena Barreto (1769-1849) foi nomeado governador civil das Missões. A administração portuguesa aprofundou os desmandos do governo civil espanhol. Como prêmio, oficiais luso-brasileiros receberam sesmarias nos campos conquistados. Após prestar serviços por cinco anos nas missões, os militares tinham direito de requerer sesmarias. Iniciava-se, assim, a povoação luso-brasileira daquelas regiões, em detrimento das antigas fazendas coletivas missioneiras, que em poucas décadas desapareceriam completamente. Entretanto, até no mínimo 1828, a ocupação dessas regiões pelos criadores luso-brasileiros teria sido lenta. Em 1810, a crise colonial no Prata, com a Revolução de Maio, em Buenos Aires, ensejou movimento independista no Paraguai, de onde o governador espanhol Velasco pediu socorro à Coroa lusitana, que propunha colocar o vice-reinado sob a guarda de Carlota Joaquina, irmã do rei espanhol Fernando 7º, prisioneiro de Napoleão. Em maio de 1811, o tenente José de Abreu Mena Barreto (1770-1827) foi enviado a Assunção pelo capitão-geral do Rio Grande, para acertar secretamente o apoio militar à repressão dos patriotas paraguaios. Fortes tropas luso-brasileiras foram colocadas à disposição de Velasco em São Borja. A intervenção contrarrevolucionária no Paraguai não prosperou. As tropas luso-brasileiras partiram do Rio Grande do Sul em direção à Banda Oriental, igualmente a pedido do vice-rei Francisco Élio, encurralado em Montevidéu pelas tropas patrióticas orientais de José Artigas (1764-1850) e de Buenos Aires. Em 21 de julho de 1911, um Exército de Pacificação da Banda Oriental luso-brasileiro, com quatro mil soldados, cavalaria e artilharia, ingressou na região e ocupou Melo, a fortaleza de Santa Teresa, Rocha e Maldonado, enquanto a armada espanhola, sediada em Montevidéu, bloqueava o porto de Buenos Aires.

37

A oligarquia comercial portenha, na direção da Junta Revolucionária, negociou a devolução da Banda Oriental ao vice-rei espanhol Francisco Élio, em troca do fim do bloqueio do porto de Buenos Aires. A traição do autonomismo oriental levou ao abandono pelas tropas luso-brasileiras da Banda Oriental e ao início da ruptura de José de Artigas e dos patriotas orientais com a direção unitarista portenha. A intervenção militar luso-brasileira de 1811 propiciou o início de forte expansão dos criadores rio-grandenses em direção dos territórios orientais. Em 1o de julho, antes de penetrar profundamente na Banda Oriental, o comandante das tropas luso-brasileiras fundou a povoação de Bagé. A apelação da aglomeração se deveria ao nome de cacique charrua (Ibage/Ipage) que se estabelecera, com sua gente, nas margens do arroio, nas fraldas de um cerro próximo. Outros redutos militares levantados na fronteira originariam novas povoações – Alegrete, Quaraí, etc.  que articulavam constelações de estâncias pastoris. Em 1816, chamada novamente pelos grandes proprietários de Montevidéu e de Buenos Aires, poderosa tropa luso-brasileira retornaria à Banda Oriental para pôr fim, após duríssima resistência patriótica oriental de quatro anos, à revolução independentista capitaneada por José Artigas na Banda Oriental e no Prata. Na época, o caudilho oriental propunha a unidade federalista das províncias do Prata, contra o projeto exclusivista de Buenos Aires e amplo programa de democratização da propriedade da terra, em implantação desde 1814. À cabeça da Banda Oriental e da Liga Federal, reunindo a Banda Oriental, Córdoba, Corrientes, Entre Ríos, Santa Fé, Misiones, Artigas reconhecera a propriedade da terra aos pequenos e médios donatários, poseedores e ocupantes e distribuíra estâncias entre os gaúchos, changadores, negros, charruas, etc. que combatiam nas tropas orientais – os donatários artiguistas. No final do século 18, inícios do século 19, o caudilho secundara Félix de Azara na implementação da distribuição de pequenas estâncias pastoris – em uns dois mil hectares, em geral – para a população pobre da campanha oriental. Esse projeto – arreglo de los campos – pretendia por limites à expansão das fazendas escravistas luso-rio-grandenses ao norte do rio Negro. Ele fracassara em virtude da oposição dos grandes proprietários de Buenos Aires, de Montevidéu e, sobretudo, da ofensiva militar luso-rio-grandense de 1801. Em 1816-1828, a ocupação militar luso-brasileira da Banda Oriental ensejaria a proliferação de fazendas pastoris escravistas de rio-grandenses, com destaque para as regiões da Banda Norte. Apoiada pelos grandes proprietários de Montevidéu e Buenos Aires, a ação luso-brasileira constituiu intervenção contrarrevolucionária que abortou o mais elevado projeto democrático quando da independência do

38

Vice-Reinado do Prata. Sua vitória ensejou a expansão da produção pastoril-escravista e pôs fim à enorme pressão social que aquele movimento já motivava no Rio Grande do Sul, sobretudo por meio da fuga de cativos que iam se arrolar nas tropas artiguistas.

Caminho novo da Vacaria A ocupação das Missões – 40 km2 – permitiu, nos anos 1816, que se estabelecesse o chamado “Caminho Novo da Vacaria” ou “Estrada das Missões”, que ligava os campos de Vacaria, no Nordeste do Rio Grande do Sul, a Santo Ângelo, importante local de criação muar, nas Missões. Esse caminho nativo, conhecido e percorrido habitualmente pelos tropeiros e ervateiros missioneiros no século 18, escoaria igualmente as tropas muares contrabandeadas da atual Argentina. Mais tarde, diversas povoações surgiram ao longo do Caminho Novo da Vacaria – Cruz Alta (1821), Passo Fundo (1827), Carazinho, Lagoa Vermelha, etc. A nova rota determinou a decadência relativa do Caminho de Viamão e do nordeste sulino. Desde 1816, o cabildo dos povos missioneiros e administradores lusobrasileiros dos Sete Povos vendiam, a preços mínimos, ou concediam, gratuitamente, terras missioneiras e não missioneiras, ensejando que militares, tropeiros e criadores, chegados sobretudo de São Paulo, Curitiba, Lages e Laguna, organizassem fazendas criatórias nas antigas estâncias missioneiras. Segundo o comerciante francês Nicolau Dreys, que teria vivido no Rio Grande do Sul em 1817-28 e publicou, em 1839, sua Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul, a população missioneira caíra de vinte mil habitantes, em 1801, para oito mil, em 1814. O despovoamento maciço dessa região por minuanos e, sobretudo, guaranis iria se dar no fim da guerra de independência da Banda Oriental. Em 1828, após ocupar e saquear as Missões, o caudilho oriental Fructuoso Rivera convencera a população missioneira a acompanhá-lo com talvez quatrocentas mil cabeças de gado retiradas da região, para se estabelecerem no noroeste do atual Uruguai, onde muito logo seriam reprimidos, escravizados plena e parcialmente e massacrados. Em seu “Relatório ao Conselho Geral” de dezembro de 1830, o presidente da província sulina, o pernambucano Caetano Lopes Gama, visconde de Maranguape (17951864), escrevia: “Os Sete Povos [...] estão quase extintos. Santo Ângelo, São João, São Luiz e São Nicolau não têm um só índio. São Borja, São Lourenço e São Miguel, apenas 38.” Expropriada de suas estâncias coletivas, boa parte da população missioneira emergiria no Prata como gaúchos, empregando-se saltuariamente como trabalhadores pastoris, ou seja, peões, nas fazendas do Rio Grande,

39

Uruguai, Entre Rios, Corrientes, etc. O vocábulo peão/peón provém do latim vulgar pedone, ou seja, pedestre. Na península Ibérica designava-se como peão/peón o homem que andava ou combatia a pé. A palavra era, igualmente, usada para referir o trabalhador braçal não especializado. No sul do Brasil e no Prata, o termo peón/peão (pião, no Rio Grande) passou a designar, sobretudo, o trabalhador pastoril contratado para trabalhar montado no trato dos animais. Não raro, o termo “peão” é tido como sinônimo de “gaúcho”, o que pode induzir a engano. O gaúcho nem sempre trabalhava como peão, e o peão não era, necessariamente, um gaúcho. Nos pampas da Argentina, do Uruguai e, secundariamente, no Rio Grande do Sul, a apropriação oficial ou de fato das terras e dos gados selvagens pelas classes dominantes ensejou a formação de população dispersa, comumente sem raízes fixas, formada por europeus pobres, por mestiços, por guaranis, minuanos e charruas aculturados e semiaculturados, sem acesso de fato à terra. Dominando a montaria e o manejo do gado, essa população masculina livre era denominada no Prata de gauchos e, no Rio Grande, de “gaúchos”. Não há feminino para o nome, sendo a mulher do gaúcho conhecida por “china”, como veremos. Era comum que o gaúcho se empregasse saltuariamente nas fazendas pastoris como peão. Não se conhece com certeza a origem etimológica da palavra “gaúchogaucho”. Acredita-se que provenha de vocábulo americano. Huachu ou huakcho, em quíchua, importante idioma andino, significa “órfão”, “vagabundo”, “sem raízes”. Na língua araucana, falada no sul do Chile e da Argentina pelos mapuches, huaso descreve o habitante do campo, e gatchu, “amigo” ou “parceiro”. “Guasca”, ou seja, tira de couro, palavra utilizada no Rio Grande como sinônimo de gaúcho, origina-se do quíchua – uaskha. O domínio das comunidades nativas pelas classes dominantes regionais era também justificado pela pretensa excelência racial dos luso-brasileiros. Os guaranis missioneiros, os charruas, os minuanos, os caingangues aculturados eram tidos como etnicamente inferiores. A expropriação de suas terras comunitárias era compreendida como decorrência inevitável de uma superioridade racial, religiosa e de civilização. A china, o guasca, o bugre, o gaúcho eram profundamente desprezados pelas chamadas “elites” sul-riograndenses.

Trabalhadores solteiros O mercado de trabalho na produção pastoril era escasso. As grandes propriedades pastoris exigiam limitada mão de obra. Um capataz e uns dez peões eram suficientes para levar adiante uma fazenda pastoril extensiva de treze mil hectares, com cinco mil cabeças de gado. A apropriação lati-

40

fundiária e a destinação das terras nativas à produção pastoril extensiva determinaram o baixo desenvolvimento demográfico, superado, mais tarde, no norte do Rio Grande do Sul, pelo advento da imigração e da exploração agrícola colonial-camponesa. Temendo que os trabalhadores criassem raízes e reivindicassem a posse da de terra, os latifundiários permitiam apenas que os cativos, capatazes e posteiros – responsáveis pelo controle das divisas da fazenda – se casassem e levantassem um casebre nas terras da propriedade. As fazendas não eram igualmene capazes de utilizar as esposas e filhos de seus trabalhadores, que deveriam ser alimentados. Em geral trabalhadores solteiros, os peões dormiam nos galpões, sobre os pelegos e arreios, aproximando-se e afastando-se do fogo segundo a estação. Trabalhavam pela comida, moradia e algum salário monetário, no contexto de relações de produção claramente pré-capitalistas. Era habitual que, quando se aborreciam, pedissem as contas para se perderem nos campos indivisos ou para refluir para a nesga de terra que ocupavam em geral com a família. O crescimento da população cativa nas estâncias seria fenômeno valorizado, mas não incentivado pelos estancieiros, ao menos durante o período de tráfico transatlântico livre de trabalhadores escravizdos. Efetivamente, os criadores privilegiavam a compra de cativos homens, em razão do caráter masculino da produção pastoril. Apenas começamos a conhecer essa realidade em virtude de estudos recentes sobre os territórios sulinos e as estâncias de rio-grandenses do norte do Uruguai, exploradas com cativos, em verdadeira continuação socioeconômica dos campos da Campanha e da fronteira do Rio Grande do Sul. Os levantamentos populacionais registram expansão da população escravizada no Rio Grande, mesmo após a abolição do tráfico internacional, em 1850. Os dados pontuais conhecidos sugerem expansão positiva da população cativa nas fazendas pastoris, talvez favorecido pela forma de produção e pela alimentação, e crescimento negativo nas charqueadas e nas aglomerações urbanas, onde a reposição da mão de obra escravizada seria garantida pelo tráfico internacional, interprovincial e intermunicipal. Em inícios do século 19, como assinalado, ainda que a incorporação das terras do Alto-Uruguai, das Missões e dos Campos Neutrais aos territórios sul-rio-grandenses não tenha sido seguida, em muitos casos, por uma exploração econômica intensiva, o Rio Grande do Sul luso-brasileiro assumia, grosso modo, sua atual conformação político-geográfica. Nas décadas seguintes, um movimento expansivo interno, realizado, sobretudo, nas encostas do Planalto Rio-Grandense, concluiria a definitiva conformação política, social, demográfica e econômica do setentrião rio-grandense, aprofundando suas relações com o resto do país, no contexto da forte autonomia regional que o país conheceria até os anos 1930.

41

Ocupação colonial-camponesa Desde inícios dos anos 1730, manadas de gados eram extraídas da vacaria dos Pinhais, no nordeste do Planalto Rio-Grandense, e levadas para Sorocaba, em São Paulo, e dali, sobretudo, para Minas Gerais e Rio de Janeiro. Mais tarde, quando decaiu a mineração andina, tropas muares foram trazidas dos atuais territórios argentinos pelo Caminho Novo da Vacaria, no Planalto, como visto. Quando da Independência, em 1822, apesar de integradas economicamente pela economia tropeira, eram difíceis os contatos do Planalto, sobretudo com as regiões ocidentais da Depressão Central, em razão dos sertões da Encosta Inferior e Superior do Planalto semicontrolados por comunidades nativas. De julho de 1824 até o início da Guerra Farroupilha, em 1835, chegaram levas de colonos de língua alemã atraídos pela concessão gratuita de sementes, ferramentas, animais, auxílio monetário inicial e, sobretudo, colônias de 78 hectares. O assentamento de colonos-camponeses na Encosta Inferior do Planalto, em São Leopoldo (1824), São Hamburgo, São Sebastião do Caí (1848), Santa Cruz do Sul (1849), Estrela (1853), etc. destinava-se a fornecer braços para os exércitos dos Braganças; abastecer a capital sulina em gêneros alimentícios; facilitar os contatos entre a Depressão Central e o Planalto; diminuir o desequilíbrio demográfico entre a população livre e a escravizada; valorizar os territórios. Nos primeiros trinta anos de imigração, uns oito mil imigrantes entraram no Rio Grande do Sul. O crescimento dessa população deveu-se, sobretudo, à forte expansão demográfica endógena, impulsionada pela necessidade dos pais do trabalho familiar para a exploração das colônias. A existência de um mercado seguro para a produção colonial contribuiu fortemente para o sucesso da colonização colonial-camponesa germânica. Porto Alegre, com doze mil habitantes em 1830, consumia e reexportava a produção colonial para outros centros distribuidores – Rio Pardo, Rio Grande, etc. Por sua vez, a produção colonial apoiou significativamente o desenvolvimento da capital sulina, pouco articulada com a produção pastoril e charqueadora da Campanha, escoada através de Pelotas e Rio Grande. A colonização dessas regiões e o estabelecimento de contatos seguros e mais fáceis entre Porto Alegre, o Planalto Médio e os campos de Cima da Serra foram completados, desde 1875, com a chegada de milhares de colonoscamponeses do nordeste da Itália. Em razão da Lei de Terras, de 1850-54, eles foram obrigados a comprar glebas financiadas, de uns 20 hectares, em média, na Encosta Superior do Planalto – inicialmente, nas atuais Caxias, Bento Gonçalves, Garibaldi. A colônia de Silveira Martins foi instalada com braços italianos nas proximidades de Santa Maria, na Depressão Central.

42

A Lei de Terras punha fim à distribuição gratuita de terras aos imigrantes. A lei fora promovida pelos grandes proprietários escravistas, angustiados com o fim do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados, em 1850. Assim, esperava-se que os novos-chegados fossem obrigados, no mínimo, a trabalhar por alguns anos nos latifúndios, a fim de obter meios para adquirir a sonhada propriedade. A consolidação e expansão da sociedade colonial-camponesa em importantes regiões do Rio Grande do Sul geográfica e ecologicamente impróprias à produção pastoril latifundiária foi impulsionada pelo Estado imperial, em detrimento da vontade e dos interesses dos grandes criadores sulinos. Por longos anos, as sociedades articuladas a partir desse modo de produção voltado para a produção dos meios de subsistência e mercantilização dos excedentes viveram sob a hegemonia e domínio dos estancieiros e da produção pastoril-charqueadora escravista. Mais tarde, integrariam o bloco políticosocial que disputaria a direção política e econômica da sociedade regional com os antigos senhores do Rio Grande do Sul. Concomitantemente à ocupação, a partir de 1824, da Encosta Inferior do Planalto por colonos-camponeses de língua alemã, expandia-se a ocupação territorial das regiões das Missões, do Alto-Uruguai e do Planalto Médio, dificultada nas décadas anteriores pelas escarpas da Serra, ao sul, e pelo caudaloso rio Uruguai e suas abundantes florestas em galeria, ao norte e a oeste. O planalto sul-rio-grandense fora sempre mais acessível desde as capitanias do norte, de onde chegaram, no século 17, os bandeirantes preadores de cativos que dizimaram as reduções do Tape. Mais tarde, seguindo os mesmos caminhos, criadores paulistas ocupariam os campos de Curitiba, Guarapuava, Lages, Vacaria, Passo Fundo, Cruz Alta. Apesar de concessões de sesmarias nessas regiões, ao contrário da Campanha e da Depressão Central, a ocupação do Planalto não foi movimento oficial organizado pela administração, dando-se, sobretudo, pela posse dos campos e da compra de terras, sucessivamente legalizadas, sobretudo a partir 1850. De 1822, quando da Independência, até 1850, quando da aprovação da Lei de Terras, vigeu interregno no qual a apropriação privada de terras devolutas se deu nos fatos pela ocupação e posse, uma indiscutível concessão do centralismo político bragantino às classes proprietárias provinciais, que literalmente se banquetearam com as terras reúnas. A Lei de Terras permitiria que os “posseiros” legalizassem as grandes propriedades que haviam ocupado nos anos anteriores e subsequentes a 1850.

43

A ocupação do norte À exclusão do nordeste do Planalto – Lagoa Vermelha e Vacaria –, ligado mais estreitamente com Porto Alegre e a Depressão Central pelo antigo “Caminho de Viamão”, quando da Independência, em 1822, o Planalto Médio estava ainda parcialmente ocupado por comunidades nativas e descendentes dos mamelucos. Comunidades caingangues (coroados) chegadas do norte em meados do século 18, após a crise dos Sete Povos, estabeleceram-se em regiões florestais do Planalto, de onde atacavam os tropeiros, sobretudo na passagem dos matos Castelhano e Português. Nos anos 1820, enquanto colonos-camponeses de língua alemã ocupavam a Encosta Inferior do Planalto, os administradores das Missões vendiam e concediam propriedades nos campos de pastagens dos territórios missioneiros e não missioneiros – nas Missões, no Alto-Uruguai e no Planalto Médio – a militares, tropeiros e criadores. Esse movimento, acelerado com a migração missioneira de 1828 em direção ao Uruguai, facilitou a apropriação privada latifundiária não sesmeira dessas regiões, em detrimento das comunidades nativas e caboclas. Como parte desse processo, fazendeiros instalaram-se nos campos de Cruz Alta, ensejando que a freguesia do Divino Espírito Santo de Cruz Alta, criada em 1821, fosse transformada, em 1834, em vila e sede do município homônimo, com sessenta mil quilômetros quadrados – 20% do território sulino na época. Em 1827-8, fundava-se Passo Fundo, elevado à condição de freguesia em 1847 e de município em 1857. As vilas de Cruz Alta, Palmeira das Missões e Passo Fundo localizaram-se em regiões de campo aberto, próprias à economia pastoril. A expansão das fazendas criatórias nos descampados determinou a dizimação e expulsão das comunidades nativas para o interior das matas da região. Até os anos 1890, a atividade econômica no Planalto Médio, no Alto-Uruguai e nas Missões articulou-se, sobretudo, em torno da criação animal, da produção ervateira e da pequena produção agrícola cabocla de subsistência. Nos campos de pastagens dominavam as grandes propriedades, dedicadas à criação e à exportação de mulas. Segundo o historiador Paulo Zarth, em 1851 os animais cavalares e muares representavam mais de 60% da população das fazendas do Planalto, contra apenas uns 37% de animais vacuns. A importância de cavalares devia-se à necessidade de éguas para a produção de mulas. Em 1854, Cruz Alta exportava para Sorocaba cerca de oitenta mil mulas anuais, criadas ou invernadas no município. O comércio muar começou a decair em 1860 e, a partir de 1880, com a generalização das ferrovias no Centro-Sul, entrou em agonia. Então, a ocupação vacum das fazendas da região, em torno de 50% em 1880, alcançou 90% no início da década seguinte. Com o declínio da era muar e a consolidação do transporte

44

ferroviário, as tropas vacuns passaram a ser enviadas em grande quantidade para as charqueadas. Os trabalhadores pastoris das fazendas do Planalto eram, sobretudo, descendentes de nativos e de cativos, com clara diferença com a população gaúcha dos territórios meridionais. Era também significativa a população escravizada nas fazendas pastoris da região. Os mais ricos fazendeiros possuíam uns trinta trabalhadores escravizados. Havia, porém, fazendas sem cativos. Os trabalhadores escravizados levantavam cercas de pedra, trabalhavam nas olarias, transportavam lenha, plantavam roças, trabalhavam na produção da erva-mate e nas lides pastoris – cativos campeiros. Os trabalhos domésticos eram monopólio das mulheres. Em 1857, o município de Passo Fundo, com 8.200 habitantes, possuía 1.692 cativos (21%).

Riqueza pública Os ervais das terras devolutas eram considerados propriedade pública e as câmaras municipais regulavam, taxavam e atribuíam sua exploração. Em 1850, as taxas sobre os ervais eram a principal renda municipal de Cruz Alta, então polo econômico e capital política do Planalto. O extrativismo da erva-mate dava-se com a exploração das árvores espalhadas pelas florestas, que, de refúgio das comunidades nativas, passaram a ser ocupadas por uma população cabocla que raramente ascendeu à posse legal das nesgas de terra nas quais plantava suas roças, de onde extraía boa parte dos bens necessários à subsistência. Nesse então, as terras florestais eram desprezadas pelos criadores. A produção ervateira, empreendida pelos caboclos em favor de empresários, no contexto de relações claramente pré-capitalistas, era realizada com instrumentos e métodos rudimentares que não se modificaram até inícios do século 20. Como vimos, os ervateiros produziam grande parte dos seus meios de subsistência em suas explorações e eram pagos pela produção da erva com mercadorias, que podiam também ser retiradas nos armazéns dos seus empregadores. O beneciamento da erva-vate era comumente feito por trabalhadores escravizados. A erva-mate era transportada, com grandes dificuldades, em carretas, até os portos fluviais de Rio Pardo, para ser expedida pelo rio Jacuí, ou de Itaqui, pelo rio Uruguai. Nos anos 1860, sem campos de pastagens para se expandir, os criadores passaram a se apropriar das regiões florestais, expulsando as comunidades caboclas, obrigadas a procurar terras em regiões mais distantes ou a se empregar como peões nas fazendas da região. O fim do tráfico transatlântico e a expansão da cafeicultura ensejavam forte alta do preço do cativo no Centro-Sul, para onde eram enviados os trabalhadores escraviados do

45

Rio Grande do Sul e de todo o Brasil. Nas décadas seguintes, a população cabocla pobre trabalharia também na preparação da infraestrutura que permitiu a ocupação colonial-camponesa de territórios da região (estradas, desmatamento, demarcação de terras, etc.), sem, porém, participar na repartição das terras. O processo de expansão dos latifúndios foi facilitado pela Lei de Terras, votada em setembro de 1850 e regulamentada em 1854, que proibia a distribuição gratuita de terras e facilitava a legitimação, com ônus baixo para os grandes proprietários, das “posses”, caminhos trilhados pelos potentados da região para legalizar e expandir suas propriedades e se apoderar dos antigos ervais coletivos. Algumas vezes, os comerciantes de erva-mate e as câmaras municipais defenderam os ervateiros para não prejudicar seus negócios e não perder os direitos sobre os ervais. Quando necessário, os latifundiários eliminavam fisicamente os ervateiros que se mobilizavam em defesa de suas terras. Apesar de derrotada, a população cabocla lutou pela posse da terra, o que jamais ocorreu de forma tão enfática no meridião riograndense. O crescimento demográfico das populações colonial-camponesas alemãs, italianas, polonesa, etc. e o esgotamento das terras das Colônias Velhas impulsionaram significativamente o mercado e o valor das terras no norte do Rio Grande. A partir de 1890, com a implantação da estrada de ferro São Paulo–Rio Grande, companhias colonizadoras compraram terras florestais aos novos detentores, para serem loteadas e vendidas aos imigrantes. A ocupação por colonos-camponeses das terras florestais do Alto-Uruguai, das Missões e do Planalto Médio completaria a ocupação dos territórios sulinos. Desde então, a solidez da estrutura latifundiária determinou que a expansão da fronteira agrícola impulsionada pelo pequeno proprietário se desse para fora dos territórios sulinos, transformando o Rio Grande de importador em exportador de mão de obra e capitais. O primeiro questionamento dessa realidade iria se dar quando do governo de Leonel Brizola (1958-61) e conheceria modificação muito parcial com a retomada da luta pela terra nos últimos anos da ditadura militar, em 1979, nessas regiões, pelo movimento que daria origem ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).

46

2 A Pré-História nos atuais territórios do Rio Grande do Sul A história da ocupação humana das Américas é recente. Acredita-se que as formas hominídeas mais recuadas – os australopitecos – surgiram nas savanas da África Oriental há três ou quatro milhões de anos. Nas Américas, jamais foram encontrados traços arqueológicos de hominídeos ou de espécies de homo habilis, homo erectus e homo sapiens posteriores. Possivelmente, o homo sapiens sapiens – gênero ao qual pertencemos – apareceu na face da Terra há uns cem mil anos. É crível que comunidades de homo sapiens tenham colonizado o continente americano em uma época relativamente recente, chegadas, em pequenos grupos, em levas sucessivas, através do estreito de Bering, inicialmente, e, mais tarde, do oceano Pacífico. Os primeiros colonizadores americanos espalharam-se pelas três Américas, especializando-se na exploração dos diferentes habitats. Nesse processo expansivo, estabeleceram-se na bacia Oriental do Prata, possivelmente há mais de 12 mil anos. O mais antigo traço indireto de ocupação humana regional remonta a 12.500 anos. No longo período histórico em que se desenvolveu a ocupação humana das Américas, variou significativamente o clima terrestre, o que determinou importantes e essenciais modificações na flora e na fauna das diversas regiões americanas, com importantes decorrências para a população humana. O mesmo ocorreu quanto aos atuais territórios do Rio Grande do Sul. Há 1.640.000 anos, iniciou-se a chamada Era Quartenária, caracterizada pelas grandes glaciações. Os especialistas subdividem esse longo período em dois subperíodos: o Pleistoceno e o Holoceno. Durante o primeiro imperaram fortes glaciações, com breves fases climáticas interglaciais, quentes e úmidas. Durante o segundo, o Holoceno, que se iniciou há uns 13 mil anos, e continua até hoje, o clima abrandou-se significativamente. Os especialistas subdividem o Holoceno em três grandes etapas climáticas: Pós-Glacial, Ótimo Climático e Atual. Segundo parece, vivemos num período interglacial. Entretanto, hoje o clima começa a ser determinado de forma patológica pela ação humana, o que é novo na história da humanidade. A ocupação humana do continente americano iniciou-se no final do Pleistoceno, quando de sua última glaciação. Nessa época de temperaturas baixas, o estreito de Bering encontrava-se coberto de geleiras e podia ser atravessado a pé. Durante o Pleistoceno, as paisagens da América do Sul eram muito diferentes das atuais. No final do último período glacial, importantes geleiras avançavam profundamente no interior do sul do continente, desde a cordilheira dos Andes e do polo Sul. Essas geleiras e ventos meridionais gelados

47

e cortantes determinavam um clima muito duro na Bacia Oriental do Prata – clima seco, com poucas chuvas; verões curtos e invernos frios e longos. As condensações das águas do mar em geleiras recuavam os oceanos, descobrindo parte da plataforma marítima. O clima do Pleistoceno determinava que, nos atuais territórios rio-grandenses, os grandes campos abertos predominassem fortemente sobre as florestas, que sobreviviam apenas ao longo dos “raquíticos” rios e dos vales das Encostas Inferior e Superior do Planalto Rio-Grandense. Nevava intensamente nas regiões mais elevadas da Serra.

Megafauna O clima e o meio geoecológico favoreceram o desenvolvimento de uma variada fauna de mamíferos de grande porte. Nos imensos e frios campos sulinos e no próprio Planalto, igualmente descampado, pastavam tranquilamente mastodontes, hipopótamos, tatus de até quatro metros, preguiças gigantescas de dois a seis metros de comprimento, cavalos de pequeno porte, entre outros animais. Essas e outras bestas eram caçadas por imponentes tigres dente-de-sabre. Os restos fossilizados desses animais registram suas passadas existências nesses territórios. Sabemos pouco sobre os primeiros caçadores-coletores que ingressaram nas bacias Oriental e Ocidental do Prata, sobre os quais não possuímos relatos arqueológicos. Entretanto, em alguns sítios arqueológicos foram encontrados variados instrumentos de pedra – lascas, percussores, raspadores, talhadores, etc. Esses artefatos faziam parte de um instrumental mais rico, no qual se encontrariam ferramentas simples de madeira, de ossos, de chifres, de dentes, etc., que não chegaram até nossos dias em razão da pouca resistência dos materiais com que eram produzidos. Os primeiros habitantes dos atuais territórios sulinos, em número extremamente reduzido em relação às populações atuais, viveriam em pequenos grupos, mantendo-se da caça dos grandes, médios e pequenos animais da região; da coleta de raízes, de frutos, de moluscos, de vermes, etc.; da pesca de peixes, de crustáceos, etc. Não temos informação sobre os eventuais refúgios e moradias dessas comunidades, pois, certamente muito rudimentares, não deixaram traços arqueológicos. Há 13 mil anos, iniciou-se a transição que pôs fim ao último período glacial. O clima mais quente do Holoceno determinou o recuo das geleiras e, lentamente, o nível do mar elevou-se. Porém, por longo tempo, o clima permaneceu seco e pouco chuvoso. Sob o efeito da nova realidade climática, a flora e a fauna transformaram-se com lentidão, mas inexoravelmente. Após o período Pós-Glacial, a uns oito mil anos, iniciou-se o Ótimo Climático, com uma duração aproximada de quatro mil anos. A substituição do clima seco e

48

temperado pelo úmido, quente e chuvoso desenvolveu os rios e as florestas. Nos atuais territórios sulinos, importantes matas subtropicais passaram a ocupar os vales dos rios – florestas em galeria –, as margens das lagoas, as encostas e o próprio Planalto, onde os pinheirais se tornaram abundantes. Os descampados do Pleistoceno resistiram ao novo clima em importantes regiões, sobretudo dos territórios meridionais do atual Rio Grande do Sul – o pampa. No próprio Planalto, os campos de Cima da Serra mantiveram-se como supervivências daqueles recuados tempos. Nas escarpas da Serra, ao longo do litoral, desenvolveu-se a rica e exuberante mata Atlântica, da qual possuímos hoje apenas traços em extinção. Também se metamorfoseou a fauna, profundamente dependente da flora. A megafauna não sobreviveu às modificações climáticas e ao recuo dos grandes campos de pastagem. Desapareceram os animais de maior porte e instalou-se uma fauna que se manteve até os dias de hoje, sem grandes variações – antas, capivaras, veados, ratões do banhado, etc.

Caçadores-coletores de florestas subtropicais No Holoceno, a ocupação humana dos atuais territórios sulinos cresceu e especializou-se. Durante o período Ótimo Climático, o Planalto e as Encostas da Serra constituíam um ambiente agradável no verão e frio no inverno. De seis a quatro mil anos antes do presente, nessas regiões se desenvolveu uma importante civilização de caçadores-coletores. Essas comunidades especializadas na exploração das florestas subtropicais de araucárias ocuparam a vasta região povoada de pinheirais compreendida entre as regiões meridionais do atual estado de São Paulo, as encostas do Planalto sul-riograndense, o oceano Atlântico e o nordeste da Argentina. Sabemos pouco sobre os caçadores-coletores das florestas de araucária do Planalto Meridional brasileiro. Eles viviam da caça, da coleta, da pesca, adaptados intimamente ao meio local. Segundo as estações, deslocavam-se através do habitat conhecido a fim de explorar não raro intensamente os diferentes nichos ecológicos. Isso talvez explique a pobreza e a raridade dos sítios arqueológicos encontrados. Os principais artefatos líticos dessa cultura eram furadores, percussores, picões, raspadores, talhadores, machados manuais rudimentares, etc. Os pinhões e a caça dos animais atraídos pelo fruto do pinheiro constituíam importantes fontes de alimentos dessas comunidades humanas. Nos territórios do atual Rio Grande do Sul, privilegiavam como locais de acampamento os vales dos arroios, dos córregos e dos rios, sobretudo os que descem do Planalto para a Depressão Central. Essa ocupação parece se interromper na cota trezentos, isto é, na altura onde os pinheirais desapa-

49

recem e, com eles, seus frutos. Também não temos informações sobre o tipo de moradia dessa cultura. Por volta de dois mil anos antes do presente, quando o clima das atuais regiões sulinas assumiu as feições que possui atualmente, as comunidades que viviam nessas paragens conheceram importante aceleração de suas técnicas produtivas ao introduzirem entre seus recursos tecnológicos a cerâmica, a construção de casas subterrâneas e a horticultura, ou seja, a domesticação e exploração incipiente de plantas úteis. Mais tarde, as moradias subterrâneas foram substituídas por toldos. Os especialistas divergem na explicação dessa revolução produtiva, que é apresentada comumente como devida à chegada de comunidades de língua jê ou como produto da própria evolução dos grupos nativos da região. Talvez, comunidades protojês teriam incorporado conhecimentos trazidos por povos mais avançadas recém chegados. Porém, é considerado como quase certo que a introdução da horticultura deveu-se ao ingresso dos guaranis na região em questão. O certo é que, há dois mil anos, comunidades de caçadores, coletores e horticultores incipientes do Planalto Meridional de língua jê viviam, em grupos esparsos, em uma ou mais residências de maiores dimensões – circulares ou elípticas, subterrâneas ou semissubterrâneas – cobertas por galhos de árvores, de uns dois metros de altura e quatro a cinco metros de largura. Essas comunidades construíam, igualmente, pequenas instalações, de dois metros por dois, que seriam utilizadas como depósito de alimentos. As residências coletivas localizavam-se no topo das mesetas, de onde dominavam as regiões circunvizinhas. Cada aldeia controlaria um vasto território, necessário a sua subsistência. A agricultura intensiva tem destruído boa parte dos relitos dessas comunidades, sem uma proteção efetiva por parte das autoridades públicas.

Ciclo produtivo As civilizações do Planalto praticavam uma incipiente horticultura, assentada sobretudo no cultivo da abóbora, da mandioca doce, do milho, do porongo, do tabaco, etc. Em Antecedentes indígenas, trabalho no qual nos apoiamos substancialmente para a presente apresentação sintética da préhistória sul-rio-grandense, o arqueólogo e historiador Arno Kern reconstitui os ciclos produtivos gerais desses povos. No verão, os habitantes do Planalto permaneceriam nas aldeias, alimentando-se com as primeiras espigas de milho, plantadas nas várzeas dos rios. O resto da colheita era deixado intacto até março/abril, para a produção da farinha invernal e para o replantio, feito, acredita-se, no mais tardar, em maio, antes do inverno. Durante a bela estação, os homens das comunidades explorariam os recursos em caça e co-

50

leta, sobretudo nos vales dos rios e riachos, e as mulheres se ocupariam das plantações e se dedicariam à coleta nas proximidades das moradias. Nesses tempos, a caça, a pesca e a coleta contribuíam substancialmente para a alimentação das comunidades humanas. No outono, de abril a junho, procedia-se à caça dos papagaios e de outros animais que se alimentavam do pinhão e à coleta do fruto do pinheiro. Com a chegada do frio invernal, forte nas regiões mais elevadas do Planalto, a comunidade retirava-se para o interior das residências. Na primavera, o ciclo produtivo reiniciava-se, com a exploração dos diversos nichos ecológicos, o que explicaria a existência de grande número de acampamentos esparsos, localizados pelos levantamentos arqueológicos, apesar da população relativamente diminuta. Temos informações mais ricas sobre as comunidades de língua jê do Rio Grande do Sul durante os tempos históricos. Essas comunidades – denominadas de “botocudos”, “bugres”, “coroados”, “guaianás”, “caingangues”, etc. – viviam em pequenas aldeias de vinte a vinte e cinco famílias e cinco a seis residências, sob a autoridade de um cacique, nos locais mais altos da mata. As residências, construídas com estacas e cobertas de palhas, eram divididas em quatro aposentos, ocupados por igual número de famílias. Os caingangues tinham traços mongoloides, a pele de cor parda, estatura mediana, cabelo preto e liso e mãos e pés pequenos.

Grandes chefes As diversas comunidades caingangues e seus chefes obedeciam a um cacique principal, geralmente oriundo de uma mesma família, com real poder sobre a comunidade. Segundo parece, o cacique principal – paí – designava o território das diversas comunidades, escolhia os caciques subordinados das comunidades isoladas e cedia as mulheres da tribo como esposas. Comumente, os caciques principais eram também sacerdotes-feiticeiros. Entre os jês, praticava-se a divisão sexual e etária do trabalho, como habitual nas comunidades vivendo semelhantes níveis de civilização. As mulheres permaneciam sob a autoridade masculina e o adultério feminino era duramente castigado. Os homens podiam repudiar as esposas. A população comum praticava a monogamia e os caciques e grandes caçadores podiam ter diversas esposas. Alguns país tiveram mais de doze mulheres. Havia, portanto, um forte desequilíbrio no relativo ao poder e aos privilégios em favor dos homens e em detrimento das mulheres. Os caingangues viviam da caça, da coleta, da pesca e de uma horticultura incipiente. Eles colhiam frutas nativas, eram grandes meladores e conheciam a erva-mate – esta última, quando aspirada como pó pelas na-

51

rinas, pelo sacerdote-feiticeiro, funcionava como entorpecente cerimonial. Conhecia-se igualmente uma bebida alcoólica – a chicha. A coleta do pinhão tinha papel econômico significativo. A exploração dos pinheirais era feita de abril a junho, quando os homens subiam às árvores e derrubavam, com uma taquara, as pinhas e os pinhões, que eram recolhidos pelas mulheres em cestos carregados às costas – jacás. Os pinhões eram preparados para se conservar por diversos meses. Os homens subiam também às árvores para colher o mel e ovos de pássaros. A madeira, a palmeira e a taquara tinham grande importância no artesanato jê. A taquara servia de matéria-prima para diversos objetos, entre eles chapéus, ventarolas e cestos. Os homens andavam nus e as mulheres portavam vestes tecidas com fibra de urtiga brava, que deixavam os braços descobertos. Essas comunidades não praticavam a antropofagia. Elas aprisionavam cativos, que eram submetidos a uma servidão branda, já que a escravidão produtiva não tinha nenhum sentido, em razão do escasso nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais dessas comunidades, que ensejava baixo ou quase nulo excedente produtivo. Não raro, esses prisioneiros eram vendidos aos paulistas, como cativos. Por quase dois milênios, os jês ocuparam plena e extensivamente esses territórios. A seguir, foram assimilados, aculturados e exterminados pelos colonizadores europeus – luso-brasileiros, alemães, italianos, etc. A história da destruição/assimilação dessas comunidades apenas começa a ser escrita.

Povos do litoral As planícies costeiras dos atuais territórios sulinos sofreram importantes transformações ambientais durante o Quartenário. No Pleistoceno, quando dos períodos glaciais, as águas do mar recuaram, deixando descobertas amplas parcelas da plataforma marítima. O litoral sulino foi ocupado precocemente por comunidades de caçadores e coletores marinhos especializados, que acampavam preferencialmente nas margens das lagoas, das lagunas e dos manguezais formados pelo recuo marinho, locais ricos em recursos alimentícios. As comunidades litorâneas exploravam também intensamente os vales dos pequenos riachos que correm das encostas orientais do Planalto para o litoral. São raros os traços de acampamentos nas regiões meridionais do litoral, onde predominavam as praias abertas, de dunas de areia branca, algumas vezes com mais de vinte metros de altura, bastante pobres em alimentos. As comunidades paleolíticas litorâneas dedicavam-se sobretudo à caça, à pesca e à coleta marinha e dominavam a navegação costeira próxima, rea-

52

lizada em rústicas embarcações cavadas num tronco de árvore. No mar e nas lagoas, pescavam cações, camarões, corvinas, miraguaias, tainhas, etc. Coletavam mariscos, mexilhões, ostras, etc. Caçavam animais diversos nas encostas da Serra (antas, capivaras, ratões-do-banhado, etc.) e nas praias (lobos-marinhos, pinguins, etc.) Há seis mil anos, após o período Pós-Glacial, iniciava-se o período Ótimo Climático, com altas temperaturas, clima úmido e abundantes chuvas. A nova situação climática determinou o surgimento de uma rica e exuberante flora e fauna tropicais, sobretudo nas encostas marítimas da Serra. Por essas épocas, novas comunidades de pescadores e coletores marinhos especializados, chegadas do norte, penetraram e dominaram os atuais territórios costeiros sulinos, estabelecendo-se nesse riquíssimo habitat, sobretudo nas margens das lagunas e lagoas do litoral, formadas pela regressão marítima. Os restos de esqueletos fossilizados sugerem que esses colonizadores paleolíticos da orla atlântica tinham um bom porte e uma boa estrutura óssea. Os resquícios arqueológicos de seus corpos revelam-nos também que seus dentes se desgastavam rapidamente, em virtude da inevitável mastigação dos grãos de areia, quando do consumo de moluscos e alimentos obtidos nessas regiões. A superposição de sedimentos em virtude da intensa e longa exploração dos mesmos nichos geoecológicos marinhos originou, sobretudo entre cinco e dois mil antes de nossa era, pequenas colinas, de até cinquenta metros, de restos de alimentos – aves, moluscos, peixes, etc. –, situadas próximas às enseadas e mangues, tradicionalmente conhecidas como sambaquis (concheiras). Os sambaquis são verdadeiros arquivos arqueológicos sobre a história dessas comunidades. Tombados e, portanto, formalmente protegidos, têm sido objeto de depredação de consequências irremediáveis no que se refere ao conhecimento do passado dessas regiões.

A cor da vida Os novos ocupantes do litoral enterravam seus mortos no meio dos sambaquis cobertos com hematita vermelha em pó – o que dava aos cadáveres a cor dos vivos – sinal inquestionável do uso de recursos mágicos, pré-religiosos. Vestígios arqueológicos encontrados nos sambaquis sugerem a utilização de estaqueamento relacionado com fogueiras e abrigos, sobre os quais pouco sabemos. Essas comunidades dominavam as técnicas de polimento de pedras e de ossos. Muitos dos objetivos líticos dessa cultura – agulhas, bigornas, furadores, lâminas, lascas, pilões, pontas de flechas, raspadores, talhadeiras, etc. – foram produzidos com pedras roladas trazidas dos vales dos rios e dos riachos das encostas orientais do Planalto. Essas comunidades conheciam arcos, flechas e lanças e utilizavam intensamente os ossos

53

de animais e as conchas de grandes moluscos na confecção de instrumentos. Porém, não conheciam a cerâmica. Para o cozimento dos alimentos selecionavam-se pedras, que eram aquecidas em grandes fogueiras e, a seguir, depositadas em recipientes com água (possivelmente de couro), onde os alimentos eram colocados. As pedras – termóforas – aqueciam a água em que se coziam os alimentos. Grande quantidade de restos de fogueiras e de termóforas, muito oxidadas, é encontrada nos sambaquis. As comunidades litorâneas praticavam intensamente a pesca. Utilizavam linhas com anzóis e pequenos pesos e conheciam a técnica da pesca com redes, com as extremidades inferiores afundadas com pesos e as superiores mantidas flutuando, possivelmente com porongos. Essas técnicas são praticadas até hoje por comunidades de pescadores artesanais do litoral sulino. Pequenas esculturas polidas, de cunho realista ou abstrato, representando animais – arraias, baleias, cetáceos, corujas, pombas, tatus, etc. –, eram executadas em pedras duras e, algumas vezes, em ossos de baleia. Esculturas desse tipo foram encontradas longe das regiões em que foram produzidas, sugerindo o alto valor que eventualmente possuíam e os contatos, não necessariamente diretos, mantidos pelos povos litorâneos com as comunidades vizinhas. Os pescadores e coletores marinhos navegavam, próximos às praias, em embarcações rudimentares. Gravuras rupestres – sulcos em rochas geralmente geométricos – foram descobertas no litoral e nas ilhas próximas. Porém, não há certeza de que estejam relacionadas com a cultura dos sambaquis. Os traços da cultura material e espiritual das comunidades dos sambaquis podem ser encontrados ao longo do atual litoral rio-grandense. Segundo parece, os grupos humanos litorâneos teriam ensaiado, igualmente, uma penetração em direção às terras do interior, já que foram identificados registros dessa cultura em vias de acesso ao interior, como o vale do rio Jacuí. Os caçadores, pescadores e coletores marinhos especializados não ocupavam mais o litoral sulino quando os europeus ali chegaram, nos primeiros anos do século 16. Nesses anos, a região era dominada por comunidades de língua jê (guaianás) e, sobretudo, de língua tupi-guarani (guaranis). Os guainás teriam chegado ao litoral através dos vales dos rios que correm desde as alturas da Serra. Os guaranis teriam ali penetrado pelos vales dos rios do interior, entre eles o do Jacuí. Os especialistas não sabem em que medida as comunidades dos sambaquis foram eliminadas, expulsas ou assimiladas pelos novos colonizadores, tecnologicamente mais aparelhados.

54

Comunidades pampianas No final do Pleistoceno, comunidades de caçadores e coletores paleolíticos estabeleceram-se nos grandes descampados das atuais Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul. Elas conheceram um lento, mas efetivo processo de desenvolvimento civilizatório nesses territórios, onde permaneceram ininterruptamente por mais de dez mil anos. Nos tempos históricos, foram denominadas pelos europeus, especialmente, como “charruas” e “minuanos”. Atualmente, a denominação “charrua” descreve os povos charruas e minuanos. Essas comunidades de caçadores, pescadores e coletores nômades pampianas jamais romperam contato com os campos abertos, seu principal habitat. Seus sítios arqueológicos encontram-se disseminados por todo o atual Uruguai, mas sobretudo no vale do rio Negro; na zona litorânea, no nordeste e no sul das Missões, na atual Argentina; na planície, no meridião e nos descampados de Cima da Serra, no atual Rio Grande do Sul. Foram igualmente descobertos sítios arqueológicos na encosta do Planalto, em cavernas e abrigos dos vales dos tributários da margem esquerda do rio Jacuí, sobretudo. No Uruguai e no Rio Grande do Sul, próximos às lagoas, sítios arqueológicos pampianos mais tardios localizam-se sobre pequenas colinas ou pequenas elevações artificiais de terra, de forma circular, oval ou elíptica, os cerritos. Os caçadores e coletores de campos abertos exploravam ativa e sazonalmente – segundo parece, durante a primavera e parte do verão – os recursos naturais das zonas alagadiças e das regiões próximas do mar e das lagoas, onde se alimentavam com capivaras, emas, moluscos, pássaros, peixes, ratões-do-banhado, tatus, veados campeiros, etc. A alimentação variava e enriquecia-se nos sítios próximos às encostas do Planalto. Como outras comunidades paleolíticas, esses grupos pampianos possuíam importante parafernália instrumental produzida com madeira, pedra, ossos, chifres e dentes de animais – agulhas, anzóis, furadores, lâminas bifaciais, pontas de lanças e de flechas, raspadores, etc. Elas manejavam com maestria longas lanças, de uns três metros, e flechas de pontas de sílex e arcos de porte médio. Possuíam, igualmente, uma espécie de tacape, utilizado em combate. As boleadeiras eram o seu instrumento mais característico. As três bolas de boleadeiras – duas maiores e uma menor – podiam ser esféricas, para caça de animais e aves em campo aberto, e de pontas arredondadas, destinadas possivelmente à guerra. Para lançá-las, os pampianos rebolavam o conjunto sobre a cabeça, segurando-o por uma bola. Eles usavam também o laço de couro. No início do século 20, as boleadeiras eram ainda utilizadas por trabalhadores pastoris e constituem o principal

55

símbolo material da cultura gaúcha, ao lado do chimarrão, do churrasco e do laço, também de origem nativa. Essas comunidades gravaram imagens e desenhos, realistas ou estilizados, em abrigos e cavernas, rochas e pedaços de pedras isoladas – pegadas de pássaros e de felinos, signos abstratos e geométricos, etc. Os primeiros cerritos teriam sido construídos há, aproximadamente, dois mil anos, quando as comunidades pampianas começavam a dominar a técnica da cerâmica e a praticar uma horticultura incipiente, com destaque para a mandioca. Segundo parece, também elas conheceram a horticultura com a chegada dos guaranis. A cerâmica pampiana era pouco desenvolvida e de acabamento rústico, raramente decorado. O significado dos cerritos divide os especialistas. Como se encontram também em zonas elevadas, não se trata de amontoamentos de terras realizados para prevenir inundações. Há indícios de que tiveram funções cerimoniais e grupais pouco conhecidas. Os indícios de ocupação humana encontram-se sobretudo nas proximidades, não sobre os cerritos, utilizados sobretudo como local de sepultamento.

Luta desesperada A partir dos últimos dois milênios, as comunidades pampianas sofreram a pressão dos colonizadores guaranis que penetraram em parte de seus territórios. Essas comunidades de caçadores, pescadores, coletores e horticultores de floresta tropical e subtropical tinham como um dos seus principais habitats as florestas em galerias dos vales dos rios e das lagoas. Pampianos e guaranis disputaram o controle de importantes nichos geoecológicos nessas regiões. Os pampianos opuseram-se à invasão de seus territórios pelos recém-chegados. A partir de inícios do século 16, os caçadores, coletores e pescadores pampianos opuseram-se, com igual destemor, mas com resultados menos efetivos, ao avanço do colonizador europeu, processo que se concluiria nos anos 1830. Quando da difusão de rebanhos de gados europeus nos pampas a oriente do rio Uruguai, os nativos pampianos deixaram de se deslocar, caçar e guerrear a pé, servindo-se desde então para tal do cavalo, o que lhes permitiu explorar as manadas de gado, primeiro de forma predatória, a seguir como criadores muito incipientes, revolucionando suas formas de vida. A montaria teria aumentado a capacidade produtiva dessas comunidades e desqualificado as mulheres em relação aos homens. Os charruas passaram a construir seus abrigos com couros animais – toldos – e prefeririam como alimentação a carne de potro à bovina. Os charruas e minuanos do pampa uruguaio e sul-rio-grandense disputavam as manadas de gado com os guaranis missioneiros e com os espa-

56

nhóis, com os quais chegaram a pactuar acordos de não agressão. Os lusoportugueses aproveitaram-se dessas contradições para conquistar o apoio dos minuanos na extração de couros e na colonização territorial do Sul. O ataque de nativos charruas confederados, de novembro de 1701, às missões de Yapeju, teria sido instigado pelos portugueses de Sacramento. De 6 a 10 de fevereiro de 1702, a ação motivou forte retaliação de um exército hispano-missioneiro de dois mil homens, que, com armas de fogo, mataram centenas de minuanos no rio Yí e levaram quinhentas crianças e mulheres pampianas para a missão de Santo Ângelo. Os charruas e minuanos do pampa uruguaio e rio-grandense vestiam uma espécie de calção de algodão – xiripá – enrolado da cintura até os joelhos. Nas costas, até os calcanhares, portavam “capas” de couro, “descarnadas e sovadas com o pelo” contra o corpo, atadas ao pescoço por uma tira do mesmo material. Essas comunidades consumiam grande quantidade de carne mal-assada de avestruz e de outros animais – churrasco – e eram aficionadas ao consumo do mate. Com a chegada dos europeus, os pampianos, que viviam em toldos feitos com couro, passaram a caçar o gado e a portar, igualmente, uma longa faca, embainhada em couro, presa, enviesada, às costas, hábito herdado pelos futuros gaúchos da região. Em inícios do século 19, Alcides D’Orbigny descreveu do seguinte modo os charruas e minuanos: “[...] cor morena oliva ou castanho pronunciado, estatura média, 1 metro e 688 milímeros. Formas hercúleas. Frente arredonda. Rosto largo, achatado. Nariz muito curto e chato, de fossas largas e abertas. Boca muito grande. Lábios grossos e muito salientes. Pômulos salientes. Traços masculinos e pronunciados. Fisionomia fria [sic], geralmente feroz [sic].” De cabelos pretos, grossos e lisos, teriam pouca pilosidade corporal. É pouco estudada a contribuição pampiana à colonização europeia do Rio Grande do Sul. Os minuanos e charruas forneceram gados, couros, caça, etc. aos lusitanos, durante e após a fundação da colônia de Sacramento, em troca de bebidas, tabaco, ferramentas, freios de ferro, etc. Parte dessa população começou a ser incorporada, como mão de obra subalternizada nas primeiras arreadas e faenas de couro ou, mais tarde, quando da formação das estâncias e fazendas sulinas. Minuanos arrebanhavam manadas para os tropeiros luso-brasileiros que trilhavam o Caminho do Mar e apoiaram o estabelecimento das primeiras estâncias nos atuais territórios sulinos, a partir dos anos 1720. Quando da fundação de Rio Grande, os minuanos foram utilizados como soldados e peões. Eles roubavam frequentemente couros aos faeneros para vendê-los. Com os guaranis missioneiros e, mais tarde, os cativos africanos, os cavaleiros pampianos, espoliados de seus territórios tribais, com escasso acesso às manadas de gado, agora privatizadas, passaram a viver em boa parte

57

do roubo dos gados das estâncias, ensejando dura resposta dos criadores e das autoridades da região. Objeto de reiteradas campanhas de extermínio, eles contribuiriam para a formação do segmento social subalternizado conhecido como “gaúcho”. Minuanos e charruas tentaram defender inutilmente seus interesses pondo-se a serviço dos caudilhos, sobretudo da Banda Oriental. Eles constituíram parte das mais aguerridas tropas de José Artigas nos anos seguintes a 1811, na luta pela independência e autonomia da Banda Oriental. As comunidades que se mantiveram refratárias ao contato com os colonizadores, armadas com suas boleadeiras e longas lanças, foram combatidas e eliminadas pelos europeus. Em fins dos anos 1830, o francês Nicolau Dreys lembrava que os charruas – que haviam ocupado da “Lagoa Mirim até o rio da Prata” – e os minuanos – que povoavam “o terreno de Oeste até as margens do Uruguai” –, dizimados, cruzaram o rio Uruguai para se estabelecer “no país de Entre Rios”. Dizia o francês que subsistiam apenas “alguns indivíduos”, que ficaram nos “domínios de seus antepassados”, “incorporados com a população local”. O último grupo nômade pampiano independente teria sido massacrado em inícios dos anos 1830, ao final da “limpeza” dos campos no Uruguai, pelo então presidente Fructuoso Rivera, em boa parte a pedido dos criados rio-grandenses estabelecidos nos departamentos setentrionais do Uruguai.

Horticultores guaranis Grupos de caçadores, coletores, pescadores e horticultores de floresta subtropical e tropical de língua tupi-guarani foram as últimas grandes comunidades nativas a penetrar nos atuais territórios rio-grandenses. Esses povos viviam níveis civilizacionais superiores aos das comunidades estabelecidas no litoral atlântico, no Planalto Meridional ou nos pampas sulinos. Em razão de sua importância numérica e do fenômeno das reduções jesuíticas, nossos conhecimentos sobre os guaranis são superiores aos das outras comunidades nativas. O berço histórico da civilização guarani encontra-se no setentrião da América do Sul. Por volta de quatro mil anos antes de nossa era, nas regiões do Médio Amazonas, desenvolveu-se importante civilização de horticultores, caçadores, coletores e pescadores, organizados em aldeias e residências coletivas, que praticavam uma língua definida como prototupi-guarani. Essas comunidades conheciam a cerâmica e fabricavam redes de dormir de algodão. Entre três e dois mil anos atrás, crê-se que, em virtude das transformações climáticas naquelas regiões ou da expansão demográfica, comunidades de língua tupi-guarani iniciaram processo milenar de migração e ocupação de importantes regiões da América do Sul. Em razão do rela-

58

tivo atraso da arqueologia amazônica, não conhecemos ainda com precisão a rota da expansão migratória. Um braço dessa cultura – tupi/tupinambá – evoluiu em direção à foz do Amazonas e, a seguir, para o sul, ao longo da estreita faixa litorânea, de uns duzentos quilômetros de extensão, em média, coberta pela exuberante mata Atlântica. Foi com ele que os lusitanos se depararam e se defrontaram nas primeiras décadas da colonização do litoral da América Lusitana. O outro, o braço guarani, dirigiu-se para o oeste e, seguindo os vales dos afluentes extremo-ocidentais da margem direita do Amazonas e, a seguir, os rios Uruguai e Paraná, instalou-se em importantes regiões da América do Sul – atuais Paraguai, Mato Grosso, Uruguai, Rio Grande do Sul, etc. Nos atuais territórios do Rio Grande do Sul, os guaranis estabeleceram-se ao longo das margens das lagoas, do litoral Atlântico e dos vales dos rios Uruguai, Jacuí, Ibicuí, Ijuí, Piratini. Os tupi-guaranis eram grandes canoeiros e jangadeiros. Eles escavavam troncos de mais de trinta metros para fabricar canoas capazes de transportar sessenta remadores. Em Os trinta povos guaranis, o padre Arnaldo Bruxel descreve o guarani: “[...] era de estatura média, compleição robusta, cabeça grande, rosto largo e ovalado, olhos pequenos e vivos, nariz levemente achatado, dentadura firme e sem cáries, tez bronzeada, barba rala, cabelos pretos e lisos [...].” No litoral, os guaranis desalojaram/absorveram as comunidades nativas de caçadores, coletores e pescadores litorâneos especializados.

Horticultura feminina A horticultura era o elemento organizador das atividades sociais e produtivas guaranis. Essas comunidades evoluíam ao longo das florestas de galeria dos vales quentes e úmidos dos grandes rios, onde podiam plantar os gêneros vegetais que domesticaram nos trópicos. Os rudimentares instrumentos de pedra e de madeira não lhes permitiam plantar em campos abertos, mais resistentes. O principal produto da horticultura tupinambá era a mandioca amarga. Ao contrário, os guaranis apoiavam sua alimentação no milho e no aipim, sobretudo. Eles plantavam, igualmente, abóboras, algodão, batata-doce, feijões, etc. O amendoim, com alto teor de gordura, rico em proteínas e muito energético, era outro importante recurso da horticultura tupi-guarani. Essas comunidades trabalhavam o algodão e utilizavam intensamente o tabaco, que possuía funções mágicas. Em pequenos porongos, os guaranis bebiam uma infusão de água e erva-mate, servindo-se de canudos de taqua-

59

ra, beberagem da qual se originaram o chimarrão e o tererê. Os guaranis também praticavam a coleta de frutas selvagens e eram grandes meladores. O principal instrumento agrícola era o machado de pedra polida, com o qual os homens abriam as clareiras nas matas, e o bastão de plantar – saraquá –, ferramenta essencialmente feminina. Na divisão sexual e etária guarani do trabalho, as mulheres, responsáveis pela horticultura, suportavam a maior parte do esforço produtivo – transporte e confecção da alimentação, cuidado dos filhos, confecção de artefatos, etc. O trabalho nas hortas era realizado pela manhã, até o meio-dia. Os guaranis possuíam civilização relativamente desenvolvida, apesar de desconhecerem a centralização política. As aldeias localizavam-se geralmente próximas a um curso d’água e no meio ou na orla de uma floresta. Absolutamente autônomas, eram formadas com três a seis residências comunitárias, habitadas por núcleos familiares de produtores aldeões independentes. As aldeias guaranis raramente ultrapassavam duzentos habitantes. As residências coletivas – malocas –, levantadas geometricamente equidistantes de um pátio central, eram construídas em madeira e palha, sem divisórias interiores, com três entradas, duas nas extremidades, uma no centro. As famílias nucleares viviam em nichos habitacionais de cerca de 10 m2 – as ocas. Imperavam uma grande solidariedade e coesão entre os moradores de uma mesma residência, em geral membros ou associados a uma família ampliada. As maiores residências teriam uns 140 m2. As famílias, as residências coletivas e as aldeias eram as unidades societárias, produtivas e guerreiras dessas comunidades. Elas correspondiam ao desenvolvimento das forças produtivas materiais das comunidades guaranis. Após alguns anos, seis ou sete, as aldeias eram deslocadas para mais alguns quilômetros de distância, sobretudo em razão do esgotamento dos recursos da região em caça, pesca e coleta e da decomposição das condições ambientais da localidade.

Sociedade pré-classista Em geral, cada residência tinha um principal, que exercia sobre os outros habitantes da moradia, como vimos, geralmente seus parentes e associados, níveis de autoridade não despótica. As aldeias possuíam um chefe – morubixauá ou tubichá –, desprovido igualmente de poder autocrático. O guarani comum era monogâmico. Os grandes aldeões podiam possuir mais de uma esposa (poliginia). Um homem com diversas mulheres tinha direitos sobre a produção das roças das esposas e exercia sua autoridade sobre uma grande descendência e parentela. Podia facilmente formar uma maloca, tornando-se um principal.

60

As diversas famílias aldeãs possuíam suas hortas e seus pertences individuais e familiares. Porém, cada residência possuía instrumentos e implementos – como os vasilhames de cerâmica para o cozimento dos alimentos, entre eles o saboroso beju – que eram de domínio da residência. Os objetos e os frutos do esforço coletivo da unidade residencial, como a prensa para produzir a mandioca, os assadores da mandioca, etc., eram denominados de abambaé. Os guaranis não alcançaram o estágio civilizatório do conhecimento religioso. Suas crenças eram essencialmente animistas. O poder mágicodivinatório encontrava-se distribuído sobretudo entre os homens, sem qualquer forma de institucionalização. Quem quisesse e pudesse apresentava-se como detentor dos poderes de pajés ou karaís. Os últimos, investidos de maiores poderes e conhecimentos, moravam apartados das aldeias, afastados das relações familiares e clânicas. Portanto, podiam exercer seu poder em diversas delas. Era rica a mitologia guarani. Entre suas principais crenças, em geral comuns às comunidades tupinambás, encontrava-se a da Terra-Sem-Males – uma região a ser descoberta onde a comunidade tribal viveria livre de todo e qualquer esforço produtivo, já que as flechas iriam caçar nas matas, os machados abateriam por si mesmos as árvores e os bastões enterrariam as sementes. Na Terra-Sem-Males, as mulheres seriam eternamente jovens e os guerreiros jamais ficariam desprovidos de cativos, para matar e devorar em banquetes antropofágicos. O mito expressava a contínua tensão vivida por essas comunidades na dura luta cotidiana pela reprodução das condições materiais de existência. Pecam por otimismo as apresentações da sociedade tupi-guarani como um quase reino da abundância. A esperança média de vida de um tupi-guarani era muito baixa. Os tupi-guaranis conformaram sociedade pré-classista, onde os produtores familiares independentes, sobretudo os chefes de família, gozavam de autonomia quase absoluta. Os jovens guaranis usufruíam de uma grande liberdade sexual, restrita às jovens do período que ia da puberdade ao casamento. Entre as tradições guaranis encontrava-se a de sacrificar os inimigos presos nos terreiros das aldeias e devorá-los em banquetes. Segundo parece, esse hábito, com conteúdos simbólicos e de grande efeito psicológico sobre os inimigos, estaria ligado também à dificuldade relativa dessas comunidades de obterem proteínas animais suficientes para a comunidade. Não raro, na faixa litorânea e nas proximidades de rios e de lagoas piscosas, a maior parte dos recursos proteicos tupi-guaranis provinha da pesca, não da caça, por causa dos relativamente escassos recursos cinegéticos propiciados pela América do Sul. Até a introdução dos gados nos pampas americanos, os guaranis não conheceram criação de animais para consumo, de grande, médio ou pequeno porte.

61

3 Os sete povos missioneiros Em 1607, fundou-se a província geral jesuítica do Paraguai, independente das províncias do Peru e do Brasil, abrangendo o Paraguai, o leste da Bolívia, a Argentina, o sudoeste do Brasil e o Uruguai atuais, num total de aproximadamente setecentos mil quilômetros quadrados. De 1610 a 1634, foram fundadas três subprovíncias, com suas respectivas reduções. A província do Guairá, com dez reduções, fundadas entre 1610 e 1628, localizavase no atual estado do Paraná. A província do Itatim, organizada de 1631 a 1633, com seis reduções, ficava ao norte de Assunção (1537), nas bacias dos rios Paraná e Uruguai. A província do Tape, na bacia do rio Uruguai, possuía 16 reduções, organizadas entre 1626 e 1634. As reduções da província geral do Paraguai baseavam-se nas Leis das Índias e nas experiências dos missionários em outras regiões das Américas – Brasil, Peru, México. O projeto jesuítico era o mesmo para todo o Novo Mundo: reunir em aldeia diversas comunidades nativas, submetê-las à autoridade colonial e convertê-las ao cristianismo e ao que se considerava como civilização. Jamais houve estratégia jesuítica de construção de “império teocrático-cristão”, autossuficiente, nas Américas – Império Universal. Após algumas décadas, quando as comunidades nativas estivessem estabilizadas, elas se transformariam em doutrinas, ficando sob a autoridade eclesiástica dos bispos e, portanto, das Coroas ibéricas, responsáveis pela administração religiosa nas colônias. Desde sua fundação, os povos missioneiros espanhóis estavam submetidos às audiências, órgãos judiciárioadministrativos criados pela Coroa ibérica para assessorar os vice-reis. A mesma submissão às autoridades coloniais e metropolitanas ocorria quanto às reduções jesuíticas portuguesas. Para formar uma redução – também chamada de “doutrina”, “povo” ou “missão” – reuniam-se três, quatro ou mais aldeias nativas, no Sul, geralmente guaranis. Em média, as aldeias guaranis tinham uns 150 habitantes e possuíam um chefe, sem poder discricionário sobre os aldeões. Portanto, as reduções formavam-se com mais de 450 habitantes. Tomada a decisão de se constituir um pueblo, procurava-se um terreno elevado e plano, de uns cem hectares, no alto de uma colina, próxima a um curso d’água, com abundante caça e pesca. Era fundamental que o terreno fosse rico em matas para que não faltassem lenha para combustível e madeiras para as construções. As zonas florestais eram igualmente propícias à horticultura guaranítica. Nos primeiros tempos, as comunidades guaranis negavam-se a abandonar seus territórios, preferindo fundar as reduções próximas às matas e aos rios conhecidos. Essas reduções formavam-se pela simples reunião das diversas residências coletivas, de diversas aldeias, em torno de uma rústica

62

igreja, feita de pau-a-pique e coberta de palha. Nesses primeiros tempos, os padres pouco opinavam sobre a localização da aldeia e as decisões das comunidades. Para melhor visibilidade e defesa, os terrenos vizinhos às reduções eram desmatados e procurava-se que não mais de 15 km separassem duas missões. Mais tarde, sobretudo quando as missões se localizavam mais distantes umas das outras, a comunicação entre as aglomerações missioneiras era facilitada por pousadas e foram levantadas pontes rústicas e organizados serviços de transporte de canoas nos principais córregos e rios. A gênese e o sucesso das reduções devem-se à confluência das necessidades guaraníticas com os interesses geopolíticos da Coroa espanhola, no contexto dos objetivos missionários jesuíticos e pontificais. Quando essa convergência de interesses se dissolveu, nos anos 1750, a Coroa espanhola sacrificou as missões aos seus interesses diplomáticos e a impressionante experiência civilizacional foi liquidada impiedosamente. O interesse guarani no processo missioneiro era claro. No momento da fundação das missões, havia décadas que as comunidades guaranis eram atacadas, dizimadas e escravizadas por expedições de luso-brasileiros e pela opressão dos encomenderos hispano-americanos. Os guaranis viviam em um trágico e angustioso impasse civilizacional, já que não conseguiam se sobrepor aos invasores europeus.

Nação guarani-missioneira A proposta da adoção do cristianismo e de redução sob a proteção dos jesuítas e da Coroa espanhola significava às comunidades guaranis uma garantia mínima contra os ataques que sofriam. A organização em reduções determinou, igualmente, significativo salto na organização social e produtiva dessas comunidades. Em verdade, a reunião de aldeias guaranis em missões e a articulação de diversas missões entre si tenderam a formar uma grande nação guarani-missioneira, ainda que jamais tenha havido real articulação estatal entre as missões. É crível que a decisão de abandonar as formas tradicionais de vida e de se concentrar em aldeias reunindo diversas comunidades generalizou-se entre os guaranis quando experiências pioneiras se mostraram positivas. Após os primeiros sucessos, comumente os próprios caciques procuravam os jesuítas propondo que formassem reduções em seus territórios. O sucesso do movimento missioneiro deveu-se, essencialmente, à decisão e à vontade das comunidades guaranis. Apenas assim compreenderemos como uns setenta missionários conseguiram reduzir e administrar em torno de cem mil guaranis. Em 1697, uma cédula real espanhola identificou o cacique ao nobre espanhol. Na aceitação da proposta reducional teria desempenhado papel im-

63

portante o fato de que os caciques e os principais, que nas comunidades tradicionais praticamente não possuíam autoridade efetiva sobre os membros das aldeias, nas reduções passassem a formar uma verdadeira burocracia, funcional e hereditária, detentora de privilégios materiais e imateriais e de autoridade efetiva sobre as populações missioneiras. A proposta reducional significava também um caminho para a superação da organização gentílica tradicional e para o ingresso crescente dessas comunidades numa sociedade de classes, processo ainda incipiente quando da destruição dessa experiência. Era igualmente grande o interesse da Coroa espanhola no desenvolvimento das reduções. Os imensos territórios da bacia dos rios Paraná e Uruguai inseriam-se dificilmente nos esquemas de exploração colonial hispano-americanos. A Coroa espanhola encontrava-se impossibilitada de incorporar efetivamente essas regiões às suas possessões e, consequentemente, de proteger esse flanco do Vice-Reinado do Peru e da estratégica bacia do Prata, ameaçado pela expansão luso-brasileira em direção ao oeste e ao sul. A ocupação e a proteção dessas regiões pelas comunidades guaranis missioneiras mostraram-se uma opção viável por mais de um século. As milícias missioneiras tiveram um papel fundamental no combate ao expansionismo luso-brasileiro nessas regiões. Juridicamente, as reduções dependiam do governador de Buenos Aires, das Reais Audiências e do Vice-Reinado do Peru. Para facilitar sua formação e seu fortalecimento, a Coroa espanhola permitiu uma autonomia relativa dos Trinta Povos e proibiu que os espanhóis penetrassem sem licença em seus territórios. Os grandes proprietários fundiários e encomenderos da região opunham-se a essa autonomia, que lhes impedia o acesso a importantes territórios e, sobretudo, vedava-lhes a impiedosa exploração da mão de obra nativa. Mais tarde, a antipatia de parte da historiografia hispanoamericana e brasileira à experiência missioneira refletiu essa oposição das classes proprietárias coloniais ibéricas a uma organização social comunitária que lhes dificultava a exploração do braço americano e a apropriação de importantes territórios. Para caracterizar a dependência direta dos povos missioneiros aos soberanos espanhóis, cada família reduzida pagava, anualmente, uma taxa de capitação, em dinheiro, equivalente a um peso. Os fundos necessários para o pagamento eram obtidos com a exportação açúcar, algodão, couros, erva-mate, melaço, mulas, panos de algodão e lã, entre outros produtos. Em meados do século 18, uma mula era vendida por uns quatorze pesos em Santa Fé ou Buenos Aires. Os guaranis recém-reduzidos estavam isentos do pagamento dessa taxa por dez anos. O mesmo ocorria com os caciques e seus primogênitos. Parte dos recursos obtidos com a capitação financiava os honorários dos aproximadamente setenta jesuítas que trabalhavam nas reduções.

64

Tradição espanhola e guarani As reduções adaptavam as tradições aldeãs e habitacionais guaranis às normas gerais ditadas pela Coroa espanhola para a formação de aglomerações urbanas coloniais. As plantas das missões tinham a forma de um tabuleiro de xadrez. O centro da aglomeração localizava-se em uma grande praça quadrada, de uns 150 m de lado, para onde convergiam as outras ruas, com 13 a 15 m de largura, tudo segundo as tradições urbanísticas coloniais hispânicas. A igreja, o asilo-orfanato-albergue, dois pátios e o cemitério localizavam-se no lado sul ou norte da praça. Essa localização garantia que o sol, no verão, não batesse demasiadamente forte sobre a casa dos padres e que iluminasse fartamente a igreja, pelas estreitas janelas laterais. A igreja localizava-se, imponentemente, no ponto de fuga da grande avenida que desembocava na praça. Nas reduções, as igrejas possuíam fundamental função simbólica e ideológica. Eram construções jamais vistas pelos guaranis, no que se refere às dimensões e à imponência. Nas primeiras missões, elas eram apenas galpões rústicos, cobertos de palha, construídos com os materiais e as técnicas nativas. Mais tarde, usou-se adobe na construção das paredes dos templos. A seguir, os muros foram levantados em lajes de arenito e em adobe e receberam coberturas de telhas coloniais. Os pesados telhados das igrejas exigiam uma sustentação impossível de ser assegurada pelos muros de adobe ou de laje. Gigantescos troncos de madeira de lei foram usados como colunas ou pilastras. As madeiras eram trazidas pelos rios e arrastadas por dezenas de juntas de boi. Com os troncos armavam-se as estruturas e, a seguir, os vãos eram preenchidos com lajes ou com adobe. Essa técnica construtiva permitia levantar imponentes construções, apesar de limitar a altura dos edifícios e de lhes dar a forte impressão de peso, comuns a todas as igrejas missioneiras. As igrejas eram construídas para abrigar toda a comunidade de uma redução. Nos domingos e nos dias santos, a população local acorria numerosa à “missa do povo”. Em geral, as igrejas tinham três naves – mais raramente cinco – e cinco portas: três na frente e duas ao lado. As maiores igrejas tinham sete portas. Na fachada principal da igreja localizava-se uma galeria frontal coberta e espaçosa, com importantes funções cerimoniais e simbólicas – pórtico. Ela servia de local de reunião antes de importantes atividades religiosas, como os batizados, casamentos, etc. Os visitantes de alto status eram recepcionados sob o pórtico, onde podiam assistir, protegidos do sol, aos exercícios militares, realizados na praça, ou a outras atividades festivas.

65

A residência dos padres encontrava-se no fundo do primeiro pátio – ao redor do mesmo, localizavam o quarto do porteiro, a escola, a sala de música e de dança, a sala de armas, o asilo-orfanato-albergue, etc. Em torno do segundo pátio concentravam-se as instalações produtivas. A horta e o pomar dos padres, murados, com uns dois a três hectares, localizavam-se atrás dessas construções. A ala residencial dos jesuítas era formada por umas quatro ou cinco peças quadradas, de 25 a 36 m2 de área, além da cozinha, do refeitório e de uma adega subterrânea, de uns 12 m2, com dois metros de altura, localizada sob o refeitório ou a cozinha. Essas dependências eram assoalhadas com ladrilhos hexagonais, fabricados nas olarias das missões. Todo o conjunto encontrava-se protegido por muros de adobe defendidos da chuva por telhas. Portas fechadas à chave, ao menos durante a noite, vedavam o ingresso à ala residencial dos sacerdotes. Era absolutamente proibida a entrada de mulheres nessas dependências, mesmo as mais idosas. O cotiguaçu – casa grande – era uma espécie de asilo-orfanato-albergue, amuralhado, situado ao lado do cemitério. Ele acolhia os órfãos, as viúvas, as mulheres abandonadas, as esposas de maridos que estavam viajando e as mulheres de vida “censurável”. Como vimos, a grande liberdade sexual relativa da sociedade guarani escandalizava a forte sexofobia ocidental-cristã dos colonizadores e, ainda mais, dos sacerdotes. As hóspedes do cotiguaçu moravam em peças coletivas, ligadas a um pátio interno por corredores cobertos. Uma porta, com duas chaves, uma externa e a outra interna, controlava o ingresso e a saída da moradia, impedindo qualquer liberdade de movimentação para as hóspedes-prisioneiras.

Rico artesanato As reduções possuíam de trinta a quarenta oficinas: ferraria, marcenaria, olaria, sapataria, tecelagem, tornearia, etc. Em geral, em razão das suas dimensões, as olarias e as carpintarias localizavam-se fora da povoação. Por questões de higiene, o mesmo ocorria com os matadouros e os açougues. As oficinas funcionavam sobretudo no primeiro semestre – a segunda parte do ano era dedicada privilegiadamente às plantações. As residências da população missioneira erguiam-se nos três lados da praça opostos à igreja e às instalações centrais. Na medida do possível, as residências localizavam-se equidistantes da igreja, como ocorria nas aldeias guaraníticas com as moradias coletivas em relação ao grande terreiro central. Esse zoneamento urbano tradicional guarani expressaria simbolicamente que todas as residências e todos os moradores da redução possuíam o mesmo status – o que, como vimos, nas missões já não correspondia plenamente à realidade social.

66

Inicialmente, as comunidades guaranis moraram nas grandes residências coletivas comunitárias, sem divisórias internas. A seguir, sob a influência moralizadora jesuítica, as grandes moradias foram divididas em seis a oito pequenos apartamentos familiares, de 25 a 36 m2. Até então, as residências monofamiliares eram desconhecidas dos guaranis. As moradias eram levantadas perpendicularmente à praça, o que permitia o crescimento ordenado da cidade. Espécies de bairros – cacicados – reuniam a população das antigas aldeias, geralmente formadas por famílias aparentadas. Cada bairro possuía um ou mais caciques e um regedor, que representava o cacicado no cabildo, órgão administrativo máximo da redução. Portanto, a antiga comunidade aldeã guaranítica não se dissolvia completamente nas reduções. Ao contrário, mantinha-se geográfica e socialmente coesa no contexto da distribuição geometricamente uniforme das ruas e das residências das reduções. Inicialmente, as residências foram construídas com os materiais tradicionais das aldeias guaranis nativas – troncos, galhos e palha, sobretudo. A escolha pelas comunidades guaranis desse material, leve e facilmente substituível, devia-se ao deslocamento periódico das aldeias a cada seis ou sete anos, por razões econômicas e ambientais, como assinalado. O caráter sedentário das comunidades missioneiras permitiu que as residências, as igrejas e as demais instalações fossem levantadas em materiais mais resistentes – telhas, adobe, lajes de arenito, tijolos de barro secados ao sol. Grandes coberturas, de duas águas, com uns cinco metros de cumeeira, com galerias (alpendres) de dois a três metros de largura, protegiam as construções e os muros de adobe da chuva. As moradias podiam ser embranquecidas com o pó de caracóis queimados, pulverizado e dissolvido em água. Mais tarde, as paredes foram levantadas em pedra até uma altura de, no mínimo, oitenta centímetros. Dessa altura em diante, usava-se o adobe. As moradias não possuíam janelas, assoalhos ou chaminés, recursos arquitetônicos desconhecidos pelos guaranis. O assoalho era de chão-batido. O fogo era mantido aceso no centro da moradia, como tradicional nas residências comunitárias guaranis. Fora das reduções mais visitadas encontravam-se albergues – tambos – com seus respectivos currais e dependências, onde os forasteiros permaneciam, com suas carretas, tropas e animais, gratuitamente, por três dias. As instalações impediam que os visitantes penetrassem nas aldeias, o que garantia também que não entrassem em contato com as jovens solteiras, pondo em perigo a ordem moral da redução. Como assinalado, nas comunidades guaranis tradicionais, os jovens púberes solteiros de ambos os sexos gozavam de ampla liberdade sexual relativa. Os jesuítas desdobravam-se para pôr fim a uma socialização sexual americana que consideravam obra do demônio e fruto de costumes promíscuos.

67

Separados na morte Os padres e os corregedores falecidos no cargo eram sepultados nas igrejas, como, na época, era habitual e de direito aos membros da nobreza. A população missioneira era enterrada em cemitérios ornamentados por canteiros com flores. Os túmulos eram assinalados com lajes deitadas no chão, com o nome e a data de falecimento do sepultado. O centro do cemitério era dominado por uma grande cruz de pedra. Como na igreja, também no cemitério e no além-túmulo era reprimida qualquer promiscuidade sexual. Havia as alas dos homens, das mulheres, dos rapazes e das raparigas. Possivelmente, após algum tempo, os ossos dos mortos eram retirados das sepulturas, abrindo vagas para novos sepultamentos. Os cemitérios tinham uma ou duas capelinhas. As vítimas da peste eram enterradas em valas comuns, guardadas por sentinelas, fora das cidades, já que era hábito guarani chorar e conversar sobre a cova dos mortos e, não raro, manipular o cadáver de um familiar morto e sepultado. Um século após as primeiras reduções, como os ancestrais, os guaranis missioneiros acreditavam ainda ser a morte um produto de fenômenos e acidentes extraordinários, naturais ou sobrenaturais, jamais uma decorrência natural do próprio envelhecimento. Uma realidade que sugere o caráter singular e superficial da cristianização dessas comunidades e a incompatibilidade no mínimo parcial desse processo com as condições de existência dessas populações. As comunidades guaranis tradicionais desconheciam qualquer forma de organização estatal ou de coerção policial suprafamiliar e supra-aldeã. As decisões aldeãs e a vida cotidiana ordenavam-se a partir dos hábitos e dos costumes tradicionais e, sobretudo, do consenso comunitário, realidades determinadas pelo nível de desenvolvimento socioprodutivo da sociedade aldeã-comunal. Essa realidade modificava-se significativamente, já que as reduções se encontravam imbricadas na organização estatal do império colonial espanhol. Ao se reunirem para formar reduções, as aldeias guaranis abandonaram seu estágio pré-estatal para se inserir e se submeter ao aparelho estatal espanhol, ainda que relativamente. O governo das reduções era calcado sobre as determinações municipais espanholas. O cabildo possuía poderes legislativos, executivos e judiciários. Ele era formado pelo corregedor, espécie de prefeito e presidente do tribunal de justiça; pelo tenente-corregedor, que funcionava como vice-prefeito; por dois alcaides urbanos, com funções judiciárias; por dois alcaides da irmandade, encarregados das questões rurais; pelos regedores, responsáveis pelos bairros, e pelo alferes real, encarregado das questões militares. Além dos membros do cabildo, havia outros funcionários municipais – escrivãos, al-

68

guazis, contadores, fiscais, etc. As autoridades municipais reuniam-se com os caciques todos os dias, se possível sob a direção dos jesuítas, no corredor do primeiro pátio, para informações, consultas e deliberações. Proposto pelos padres e pelos caciques, o corregedor era nomeado pelo governador de Buenos Aires, muitas vezes a milhares de quilômetros da redução em questão. Todos os anos, ao completarem sua gestão, os membros do cabildo elegiam seus substitutos e demais funcionários, após consultarem o padre. Os membros masculinos da comunidade missioneira certamente participavam, mais ou menos, dessa escolha, pois os caciques dos diversos cacicados serviam de correia de transmissão entre a população missioneira e o cabildo. Havia insígnias honoríficas distintivas para os cargos civis. Os membros do cabildo sentavam-se em local separado na igreja, signo de grande distinção.

Policiar e punir Nas comunidades guaranis, o consenso aldeão regia a vida da comunidade. Nas reduções, órgãos e instituições repressivas homogeneizavam e ordenavam as relações comunitárias, ainda que o grande elemento social aglutinador das missões seguisse sendo o consenso das comunidades reduzidas, garantido pelo acesso quase igualitário aos meios de produção e aos frutos do trabalho social. As terras e os bens acumulados pela comunidade – ervais, gado, igreja, instalações, estâncias, vacarias, residências coletivas, etc. – eram propriedades comunitárias missioneiras. No interior da sociedade missioneira não havia modo de se apropriar sistematicamente do excedente social através da apropriação privada ou funcional dos meios de produção. Guardas realizavam turnos de três horas, das 21 às 6 h. As crianças eram instruídas a denunciar os delitos e as infrações dos pais e dos adultos. O corregedor e os alcaides distribuíam a justiça e os casos mais complexos eram revisados pelos padres e, se fosse necessário, pelo provincial. Decisões de casos conflituosos eram realizadas na Espanha. Como habitual na Europa feudal, a tortura era usada para extorquir confissões. As reduções possuíam cárceres, onde os prisioneiros eram imobilizados em cepos ou grilhões pelos pés, pulsos ou pescoço. A distribuição da justiça missioneira tinha um sentido medicinal e corretivo, mais do que punitivo e repressivo. Para a justiça medieval da época, as penas físicas eram geralmente associadas às galés e à pena de morte. Na justiça missioneira, na punição de delitos e de crimes, açoites e mutilações substituíam as detenções e a pena máxima. Os homicídios eram punidos com oitenta ou mais açoites; a imoralidade pública, com trinta a sessenta; a feitiçaria, embriaguez e outros delitos menores, com até vinte e cinco chicotadas.

69

As condenações a um número elevado de chibatadas eram ministradas em sessões diárias, sucessivas ou intercaladas. Os punidos eram castigados na grande praça, diante da população missioneira. Após os açoites, o réu beijava a mão do padre. O castigo físico era uma instituição correcional universalmente aceita na chamada Idade Média e em boa parte da Idade Moderna. Para os guaranis, que não conheciam o castigo físico, ser chicoteado publicamente era uma dolorosa vexação. Até o século 19, no Brasil, trabalhadores escravizados eram condenados pela Justiça imperial até a mil e quinhentas chicotadas. Os jesuítas descriam da possibilidade da educação plena dos adultos. Portanto, o convencimento e a conversão das crianças e dos jovens desempenharam um papel essencial no magistério jesuítico. Durante boa parte do dia, os filhos eram separados dos pais, para se dedicar ao aprendizado da religião e às atividades produtivas. De manhã, diante da igreja, as crianças e os jovens recitavam, em dois coros, o catecismo e as orações. Depois, iam à missa. A missa diária não era obrigatória para os adultos. Às 17 ou 18 horas, as crianças e os jovens participavam novamente da doutrina e rezavam o rosário. Durante o dia, eles eram alimentados pela comunidade. À noite, faziam a refeição com a família. Ao serem incorporados à sociedade dos adultos, os jovens de ambos os sexos dissociavam-se em maior grau de concepções religiosas e morais em contradição com as tradições e práticas guaranis incorporadas à sociedade missioneira.

Autonomia guarani A educação dos jovens missioneiros voltava-se para as coisas da alma e da produção. Apenas os filhos dos caciques e as crianças mais dotadas do sexo masculino aprendiam a ler, a escrever e a contar. Nos primeiros tempos, os sacerdotes ocupavam-se diretamente da formação dos jovens. A seguir, a tarefa foi entregue a mestres missioneiros. Com o tempo, as missões produziram uma verdadeira elite intelectual guaranítico-missioneira. Foi sempre grande a autonomia cultural das comunidades reduzidas. A única língua falada era o guarani e o ensino era ministrado nesta língua. Na verdade, o guarani era a principal língua dessas regiões. Em Assunção e Corrientes, os próprios espanhóis comunicavam-se comumente em guarani. Acusaram-se os jesuítas de não ensinarem o espanhol para manter os missioneiros na submissão. O uso da língua da terra nas atividades administrativas e culturais parece ter sido exigência e imposição permanentes da própria comunidade guarani. As reduções ensejaram um verdadeiro movimento cultural guarani-missioneiro. Os sacerdotes jesuítas escreveram dicionários, gramáticas, peças sacras e traduziram livros religiosos ao

70

guarani. Alguns sermões, histórias e exemplos edificantes foram escritos na língua por intelectuais missioneiros. Houve caciques que redigiram em guarani histórias de seus povos, infelizmente perdidas. Em 1700, como resultado da importante atividade cultural guaranimissioneira, fundou-se uma tipografia nos Sete Povos, que teria se mantido ativa por 25 anos, no mínimo. A última publicação missioneira conhecida seria de 1727. Conhecemos alguns escritos produzidos por intelectuais missioneiros, sobre fatos diversos, entre eles, a tradução ao espanhol de sete cartas, de 1753, protestando contra a entrega das Missões em troca de Sacramento, e uma descrição da batalha de 3 de outubro de 1754. Apenas em inícios de 1808, com a chegada da família real e do aparato administrativo superior do reino lusitano ao Rio de Janeiro, o Brasil colonial teria uma imprensa funcionando sistematicamente. Como vimos, os jesuítas desconfiavam da possibilidade de converter efetivamente os guaranis adultos. Porém, estes últimos não eram descurados quanto às práticas religiosas. Todos os domingos e dias santos, havia missa geral. O sermão dominical, proferido pelo sacerdote, era a seguir repetido, e simplificado, por dois caciques bem falantes para os homens e mulheres, ainda mais que os guaranis prezavam sobremaneira a arte de bem falar. Havia missa matutina e rosário vespertino. Existiam duas congregações: a de Nossa Senhora destinava-se aos adultos; a de São Miguel, aos jovens. Os congregados eram numerosos e, não raro, comungavam mensalmente. Em casos muito especiais, sob a licença dos sacerdotes, praticava-se a comunhão diária, prática religiosa rara nessas épocas. Os adultos eram deixados bastante livres para participar ou não das cerimônias religiosas não obrigatórias. Os jesuítas sempre mostraram sensibilidade nos seus contatos com as comunidades guaranis e adaptaram, como puderam, os preceitos cristãos às tradições nativas. Porém, mantiveram estritamente o monopólio europeu sobre o sagrado, impedindo o acesso de missioneiros ao sacerdócio e à santificação. Não houve jesuítas e santos missioneiros, monopólio dos espanhóis natos e crioulos. Medida precacional que certamente mostrou toda sua importância quando da Guerra Guaranítica (1753-1756), quando os sacerdotes abandonaram os missioneiros na sua desesperada tentativa de resistência. Os caciques polígamos podiam escolher como esposa legal qualquer uma de suas antigas mulheres. Os sacerdotes apressavam os casamentos – em geral, o jovem com 17 anos e a jovem com 15 – em virtude da ampla liberdade sexual relativa já assinalada e, certamente, de uma ordem social que favorecia o crescimento demográfico. Os matrimônios eram celebrados aos domingos. À tarde, os noivos reuniam-se no pórtico da igreja, de onde eram conduzidos para o altar, coletivamente. Após, havia um banquete. Nas reduções mais ricas, os recém-casados recebiam um apartamento, alguns

71

metros de pano de algodão, etc. Para casar, os jovens deviam possuir os instrumentos de caça, pesca, guerra e os principais utensílios domésticos, que foram sempre muito simples. As famílias missioneiras teriam, em média, de três a quatro filhos.

Atividades produtivas A produção missioneira assentava-se sobre a agricultura, o artesanato e o pastoreio. Os guaranis eram grandes horticultores. Nas comunidades tradicionais, as hortas eram uma exploração familiar, sob a responsabilidade feminina, à exceção da abertura na floresta e limpeza dos campos de plantação. Nas reduções, cada núcleo familiar ocupava-se, durante quatro dias, nas roças familiares, de uns dois hectares. Segundo parece, a área familiar plantada pelos tupis do litoral brasílico não ultrapassava um hectare. Teria havido expansão da importância dos gêneros plantados na economia missioneira, sobretudo ao escassear relativamente o gado das vacarias. Os lotes eram ocupados por seis a sete anos e, após, nova extensão de floresta era derrubada, para dar espaço a outra exploração parcelar. Nas reduções, os missioneiros passavam a utilizar instrumentos de ferro, o arado e a tração animal, o que lhes permitia uma maior produtividade agrícola e o plantio em terras anteriormente impossíveis de serem trabalhadas com os instrumentos tradicionais, de madeira, osso, pedra. Nas sociedades missioneiras, a maior importância da produção agrícola e a desvalorização das atividades caçadoras e coletoras, em relação à economia tradicional guarani, determinaram a transferência da responsabilidade central dos trabalhos nos campos das mulheres para os homens. Os gêneros produzidos pela agricultura familiar encontravam-se na esfera do abambaé – isto é, dos bens de domínio familiar. Como nas comunidades tradicionais, a divisão sexual do trabalho continuou a organizar a produção missioneira. Livres da plena responsabilidade pelas plantações, as mulheres assumiram a importante função de fiadoras e tecelãs – lã e algodão –, atividades em geral realizadas no alpendre, diante das moradias. Às quartas-feiras e aos sábados, essa produção era pesada e a matéria-prima, distribuída nas oficinas dedicadas à atividade. A produção de tecidos de lã e de algodão significou um importante salto civilizacional para as comunidades guaranis, em razão do forte frio invernal dessas paragens. Os adultos trabalhavam nas roças comunitárias aos sábados e nas segundas-feiras. As crianças de sete anos para cima e os adolescentes ocupavam-se nas mesmas explorações durante a semana. Os jovens jamais ficavam inativos. Entre outras atividades, os rapazes limpavam as plantações, recolhiam lenha para as olarias, varriam as ruas, etc. As jovens colhiam

72

flocos de algodão, espantavam os pássaros dos milharais, etc. Nas segundas e nos sábados, pela manhã, em procissão, cantando, os adultos de ambos os sexos dirigiam-se aos campos agrícolas comunitários. A produção dessas plantações financiava o sustento dos sacerdotes, dos funcionários municipais, dos artesãos, dos vaqueiros, dos membros improdutivos da comunidade, etc. Parte das refeições das crianças e dos adolescentes era financiada pelo produto das hortas comunitárias, que se encontravam na esfera do tupambaé – isto é, dos bens pertencentes à comunidade. Já vimos que os trabalhos agrícolas concentravam-se no segundo semestre e a colheita era realizada no fim do ano. A introdução das práticas pastoris extensivas determinou que os missioneiros superassem a grande carência proteica tendencial conhecida pelas comunidades guaranis. Parece que a carne animal abundante facilitou a erradicação jesuítica das práticas antropofágicas guaranis tradicionais, sem grandes dificuldades. O couro constituía também importante matéria-prima para o fabrico missioneiro de vestimentas, móveis, utensílios diversos, entre outros objetos. Os jesuítas logo compreenderam que os gados vacum, cavalar, muar e ovino eram um dos maiores trunfos para a redução das comunidades guaranis. Em 1634, 1.500 cabeças de gado foram introduzidas e distribuídas entre os povos da margem esquerda do rio Uruguai. Quando essas comunidades missioneiras recuaram para a outra margem do rio, em razão dos ataques dos paulistas escravizadores, os animais migraram para a margem meridional do rio Jacuí, onde se desenvolveram formando as vacarias do Mar. Foram, certamente, constantes as inflitrações nos atuais territórios sulinos de gados chegados da outra margem do rio Uruguai. O desenvolvimento de manadas selvagens determinou importantes modificações ambientais nos campos nativos. As imensas manadas aplanavam os terrenos, em razão do peso dos animais, e levavam à extinção ou desenvolvimento de espécies vegetais, visto o consumo seletivo de certas plantas e a adubação ensejada por seus dejetos orgânicos.

Recurso proteico Sobretudo a partir de 1682, com o início da fundação dos Sete Povos, os atuais territórios do Rio Grande do Sul transformaram-se numa grande fazenda das missões. Nos anos 1700, quando a vacaria do Mar começou a se esgotar, por causa da extração de gados, vaqueiros dos Sete Povos introduziram milhares de animais nos campos de Cima da Serra, formando a vacaria dos Pinhais. Os gados eram introduzidos nos descampados cercados pelas florestas e, a seguir, derrubavam-se árvores para que, encerrados, se reproduzis-

73

sem. Nos anos 1730, essas reservas de gado foram descobertas e exploradas pelos tropeiros luso-brasileiros. A falta relativa de gado teria determinado uma intensificação da produção pastoril e, sobretudo, das práticas agrícolas. As vacarias do Mar e dos Pinhais eram enormes territórios abertos, onde pastavam manadas de gado selvagens. Cada missão dos Sete Povos tinha suas vacarias ou grandes estâncias, delimitadas por rios, riachos, matas, etc., subdivididas em sedes e postos, onde de dez a doze famílias de posteiros moravam em aldeias, de uns cem habitantes, domesticando e tratando os animais nos rodeios e cuidando para que não fugissem. As reduções tinham diversas estâncias pequenas, mais próximas – as invernadas –, nas quais se aproveitavam os acidentes geográficos – arroios, desfiladeiros, rios, serros, etc. – e construíam-se valas com plantações de espinheiros, para manter os gados. Todos os anos, de quarenta a cinquenta tropeiros, em expedições que podiam levar até dois meses, transportavam de três a dez mil cabeças de gado das vacarias ou das estâncias grandes para as invernadas. As invernadas dos Sete Povos localizavam-se no Planalto. Os gados eram conduzidos para elas através dos desfiladeiros onde se localizariam, mais tarde, as aglomerações luso-brasileiros de Santa Maria da Boca do Monte e Santiago do Boqueirão. Das invernadas os gados eram levados aos currais – mangueiras de pedra de grandes proporções – próximos aos povos. Dali, os animais eram retirados, pouco a pouco, para serem abatidos nos matadouros e retalhados nos açougues missioneiros ou para serem utilizados como meio de transporte. As famílias missioneiras recebiam carne duas vezes por semana e o couro era matéria-prima fundamental nas missões e importante produto de exportação. A produção de erva-mate foi outra atividade que assumiu essencial significado na economia missioneira. Inicialmente, o mate – bebida feita com a efusão da erva-mate – era tido como bebida mágica, utilizada pelos pajés. Por essa razão, seu uso fora reprimido pelos espanhóis e os usuários eram excomungados pela Igreja. Segundo a tradição, nas reduções os jesuítas teriam apoiado a difusão do consumo do mate para facilitar a repressão das beberagens guaranis tradicionais, realizadas com bebidas fermentadas de amendoim, mandioca, mel, milho etc., muito ricas em vitaminas – cauim. Segundo os sacerdotes, a moralidade missioneira sofria profundamente durante essas cerimônias libatórias. Diariamente, era distribuída uma cuia de erva-mate para cada família. Os missioneiros empregavam-se em longas, extenuantes e perigosas expedições para extrair a erva-mate de ervais distantes. Não temos informações precisas sobre como os jesuítas incentivaram o desenvolvimento de ervais naturais nas proximidades das missões, já que as técnicas de multiplicação em canteiros das mudas não eram conhecidas nessas épocas. A tra-

74

dição conta que, como as sementes devem fermentar antes de serem plantadas, os sacerdotes misturavam na sopa dos meninos sementes para que eles realizassem o trabalho de fermentação e dispersão, tradicionalmente feito pelos passarinhos, também fisiologicamente. Em 1750, os Sete Povos possuiriam uns setenta mil pés de erva-mate, ou seja, dez pés por família, o que constituía riqueza singular. A erva-mate era exportada em grandes carretas de duas rodas, com quase dois metros de diâmetro, principalmente para Buenos Aires, Santa-Fé, Chile e Peru. A erva entrava, igualmente, como equivalente nas trocas realizadas entre as próprias reduções.

Crise final Em 1640, Portugal iniciou a guerra de libertação nacional contra a Coroa espanhola. Imediatamente, a Espanha permitiu que os missioneiros obtivessem armas de fogo para proteger as reduções dos incessantes ataques paulistas, antes suportados pelos reis espanhóis, pois abasteciam em braços a produção açucareira do Brasil, importante fonte de recursos daqueles soberanos. Já no ano seguinte, nas margens do rio M´Bororé, afluente do rio Uruguai, os missioneiros obtiveram grande vitória, pondo fim às incursões dos escravizadores paulistas nessas regiões. Mais tarde, quando a Coroa espanhola tomou consciência dos importantes serviços militares prestados pelas milícias missioneiras, a licença tornou-se geral. As missões jamais tiveram exércitos profissionais. Os guaranis eram valentes e hábeis guerreiros. Enquanto podiam, os aldeões missioneiros realizavam exercícios militares mensais. Cada povo tinha oito companhias: quatro de cavalaria e quatro de infantaria. A infantaria armava-se com fuzis; a cavalaria, com longas lanças. As armas de fogo ficavam guardadas em um arsenal, sob chaves, localizado no primeiro pátio. Reunidos, os exércitos missioneiros teriam vinte mil homens, uma tropa considerável, tendo-se em conta a realidade demográfica da época. Apesar do caráter comunitário inicial da sociedade missioneira, o seu desenvolvimento tendia ao aprofundamento das diferenças sociais internas e das contradições com a administração colonial. Nos anos 1753-56, a oposição militar dos Sete Povos às Coroas lusitana e espanhola constituiu movimento de resistência seminacional missioneiro-guarani contra o intervencionismo ibérico na região. Em grande parte, a derrota parcial dessa resistência deveu-se às divergências internas sobre a melhor forma de enfrentar a ameaça ibérica e à incapacidade da articulação de resistência conjunta dos Trinta Povos. Mesmo assim, a resistência missioneira impediu a retirada radical das populações dos Sete Povos dos atuais territórios sulinos ainda por quase meio século. Ela seria consumada apenas com a migração voluntária dessas comunidades para o norte da Banda Oriental,

75

após a invasão das missões por Rivera, no final da guerra de independência uruguaia, em 1828. Discutiu-se e discute-se sobre o caráter da organização social e econômica das reduções guaraníticas. Alguns analistas definem-nas como organizações comunistas, comunitárias, conventuais, socialistas cristãs, etc. Porém, já foi assinalado o caráter anacrônico, mecanicista e superficial dessas definições. É certamente mais pertinente reconhecer a singularidade do modo de produção e da formação social missioneira, ainda que os Trinta Povos jamais tenham conhecido centralização ou autonomia total. Como vimos, o sucesso das reduções explica-se, sobretudo, pelo fato de a proposta missioneira ter assegurado aos guaranis um salto evolutivo no relativo à produção das condições materiais e espirituais de existência. A proposta reducional fecundou as instituições sociais e produtivas familiares e aldeãs gentílicas guaranis com superiores métodos e técnicas europeus de organização do trabalho e da produção. As missões permitiram salto de qualidade das comunidades guaraníticas em seu desenvolvimento histórico e socioprodutivo, capaz de ser incorporado por aquelas comunidades. Esse processo único na história da humanidade só foi possível porque os principais vetores europeus do processo – os sacerdotes jesuítas – interessavam-se, essencialmente, pela redução, evangelização, cristianização e civilização das comunidades reduzidas, não priorizando a extração e captação do trabalho excedente das comunidades missioneiras.

Salto histórico O mesmo podemos dizer da ação inicial da própria Coroa espanhola, que compreendia sobretudo a organização missioneira como muralha autofinanciada contra a incessante pressão dos luso-brasileiros em direção ao oeste. Entretanto, a mobilização das milícias missioneiras sob as ordens da Coroa espanhola debilitava fortemente essa sociedade, já que os missioneiros deviam se afastar de suas práticas produtivas durante o tempo de serviço militar. Sem empreender alienação sistemática e vultuosa do excedente missioneiro, as reduções jesuítico-guaranis redundaram em uma melhoria real nas condições de segurança e de existência das populações que nelas viveram. A experiência e os valores conventuais medievais tiveram um grande papel nesse processo. O desenvolvimento das produções comunitária – tupambaé – e familiar – abambaé –, no contexto de técnicas e métodos novos e tradicionais, permitiu divisão e produtividade do trabalho qualitativamente superiores às conhecidas pelas comunidades aldeãs guaranis gentílicas, sem que a sociedade missioneira conhecesse a apropriação privada dos meios de produção ou a distribuição mercantil de seus produtos. Nessas comunidades, o valor de uso dos bens sociais sempre predominou sobre o valor de troca, que se

76

efetivava quando aqueles produtos integravam os circuitos comerciais coloniais hispânicos. Na sociedade missioneira, os bens – sobretudo agrícolas –, produzidos na esfera do tupambaé financiavam a subsistência dos administradores, artífices, ervateiros, vaqueiros, etc., afastados dessas atividades. A equalização das trocas internas entre os agentes das diversas esferas produtivas era feita pela administração central, ou seja, no interior de uma missão, uma contabilidade social central substituía a transformação dos bens em mercadorias e sua realização no mercado, como meio de troca dos produtos das diversas esferas de produção e de consumo. Eram produtos que, portanto, jamais se transformavam em mercadorias no interior dessas comunidades. O fato de que a parte essencial da produção excedente ensejada pelo superior nível de divisão e de produtividade do trabalho fosse investida na própria comunidade apoiava a expansão ininterrupta da civilização missioneira. O caráter socialmente progressista da nova forma de organização aumentava o prestígio dos vetores ideológicos da nova organização – os jesuítas e o cristianismo. Esse prestígio explica o forte consenso existente nas reduções, não o autoritarismo jesuítico ou a tendência guaranítica à obediência. Os guaranis aderiram à proposta jesuítica porque lhes permitia construir uma organização social superior à que anteriormente conheciam e superar problemas históricos insolúveis então postos pela colonização ibérica. Quando julgaram interessante, missioneiros desertaram para se integrar, saltuária ou permanentemente, à caça ao gado pelo couro, propriciada sobretudo pelos portugueses da colônia do Sacramento. No momento em que a Coroa ibérica julgou não mais necessitar do apoio militar missioneiro para a defesa dos territórios americanos, as reduções tornaram-se uma contradição encravada no seio das colônias hispânicas, pois marginalizavam territórios e mão de obra significativos dos processos de exploração empreendidos pelas classes dominantes ibéricas e crioulas. No mesmo sentido, o desenvolvimento das populações missioneiras favorecia objetivamente a gênese tendencial de consciência nacional guarani, o que era inadmissível para os segmentos dominantes metropolitanos e coloniais. No novo contexto, impôs-se e foi implementada a destruição da radiosa experiência histórica jesuítico-missioneira.

77

4 Tropas e tropeiros no Sul do Brasil O termo “tropa” derivaria do francês troupe – “bando de pessoas ou animais”. O termo espanhol tropero e o português “tropeiro” seriam específicos da América Meridional, em geral, e da região do rio da Prata, em especial. Descrevem o financiador e os trabalhadores, especializados ou não, que se dedicavam ao transporte de quantidades de animais, sobretudo muares, cavalares e vacuns, de uma região para outra, através de longas distâncias. Tal prática não existia nas sociedades ibéricas como atividade profissional permanente. O ciclo tropeiro do Sul do Brasil desenvolveu-se, sobretudo, a partir do transporte e comercialização de mulas. Animal híbrido e estéril, o mulo e a mula resultam do cruzamento de jumento com égua ou de cavalo com jumenta. De cascos duros e grande resistência (carregam até 120 kg) e relativa velocidade, a mula adapta-se otimamente ao transporte de homens e de cargas, sobretudo em caminhos pedregosos e montanhosos. Foram as “mulas de sela e de cangalha” que garantiram, essencialmente, o transporte não aquático no Brasil colonial e imperial. Nos séculos 16, 17 e 18, as mulas foram utilizadas intensamente em múltiplas atividades de transporte de homens e mercadorias, sobretudo nas zonas de mineração da América hispânica e lusitana. Em razão das importantes necessidades de animais de transporte das minas de prata da América andina, desde 1562 desenvolveu-se fortemente a criação desses amimais nas ricas pastagens de Córdoba e de Tucamán, que possuíam barreiros salitrosos e águas salobras, capazes de fornecer o sal necessário aos animais. As bestas eram vendidas na grande feira de Salta, de onde seguiam para o Peru e outras regiões andinas, sobretudo pelos antigos caminhos incas. No século 18, os muares foram utilizados intensamente nas regiões auríferas e diamantíferas do Brasil. No século seguinte, o transporte do café do interior para os portos do litoral serviu-se abundantemente das resistentes mulas. A generalização do animal, incapaz de se reproduzir, supunha a expansão de criadores dedicados a sua produção. Os decretos reais de 22 e 24 de dezembro de 1764 concederam ao Rio Grande do Sul o monopólio da criação e de exportação de mulas para o resto do Brasil, determinando o confisco dos animais contrabandeados desde as possessões espanholas. Bem ou mal, o privilégio manteve-se até a Regência. Os muares criados no Sul eram capados com um ano de idade e levados para São Paulo com três, quando já podiam aguentar a dura viagem. Desde o início da exportação dos muares do Sul para o Brasil Central, em inícios do século 18, boa parte dos animais era introduzida no Rio Grande por contrabando da Argentina e do Uruguai atuais, apesar das proibições reais. Em fins do século 18, o militar, engenheiro e funcionário espanhol Fé-

78

lix de Azara propunha sobre a produção de cavalos e mulas do norte do Uruguai: “Os portugueses têm necessidade [desses animais] […] para abastecer ao Brasil e a suas minas, onde não se criam” devido à falta de bons campos. Portanto, afirmava: “Queixamo-nos de seus contínuos roubos de animais e não compreendemos que é impossível evitá-los enquanto não socorramos suas necessidades absolutas.” Assim, defendia “cortar esse mal pela raiz, vendendo-lhes o que lhes é de necessidade absoluta”.

Campos sem fim A economia pastoril e a atividade tropeira deviam-se às singulares condições geoecológicas e topográficas de vastas regiões do Cone Sul. Das margens setentrionais do rio da Prata para o norte, por mais de dois mil quilômetros, estende-se uma imensa extensão de campos semicontínuos, amplamente cobertos de gramíneas, com abundantes aguadas e capões, apenas interrompidos, aqui e ali, por matas mais cerradas, a qual se conclui a uns 100 km da atual cidade de São Paulo, onde se estabeleceu um Registro Real e, a seguir, a grande feira de animais de Sorocaba, em 1750. As regiões mais baixas e menos acidentadas desses imensos campos e, portanto, mais adaptadas à criação animal, em razão do clima e da flora, encontram-se nos territórios dos atuais Uruguai e Rio Grande do Sul. O pampa, com suas grandes planícies apenas onduladas cobertas de vegetação rasteira, ocupa praticamente todo o território uruguaio e as regiões oeste e sudoeste rio-grandenses. No Planalto Meridional brasileiro, com solos sobretudo de arenito e basalto, encontram-se importantes regiões de campos abertos, sobreviventes do último período glacial – os campos dos planaltos rio-grandense, catarinense, paranaense e paulista. Os campos de Cima da Serra, no Planalto Rio-Grandense, são formados pelos sucessivos campos de Vacaria, Passo Fundo, Palmeira e Cruz Alta. A oeste desses campos, nas Missões, o Planalto perde altura, confundindose com os pampas rio-grandense e argentino. Cruzando-se o rio Pelotas, no nordeste da divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, encontram-se, como assinalado, colinas verdejantes, a Coxilha Rica, nos campos de Lajens, cobertas de capim rasteiro e matas de araucárias, que desembocam nos Campos Gerais e, mais a leste, nos campos de Curitiba, já no atual estado do Paraná, antiga Quinta Comarca de São Paulo. A seguir, sucedem-se os campos paulistas. Avançando-se para o norte através dos campos paulistas, as pastagens abertas afunilam-se e começam a dominar os cerrados, com sua vegetação de árvores pequenas, retorcidas e isoladas, de casca grossa, sobre cobertura de gramíneas. A 100 km da atual cidade de São Paulo interrompe-se a sucessão de descampados. Como os animais muares, equinos e vacuns trazidos da América Meridional desembocavam, necessariamente, nesse verdadeiro

79

gargalo paulista, por onde não podiam mais avançar, pois escasseavam as pastagens, ali foi organizado, como proposto, em 1750, o importante registro e feira de Sorocaba (terra rasgada, em tupi), às margens do rio homônimo, onde os animais eram negociados e a seguir distribuídos para Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Maranhão, Piauí, Ceará, etc.

Feira muar de Sorocaba O povoado de Sorocaba foi fundado em agosto de 1654, como apoio à preia paulista de nativos. Muito logo, a aglomeração transformou-se em importante eixo do comércio muar. Em 1815, a vila possuía ruas não calçadas e casas de taipa telhadas, três vendas, quinze lojas, vinte tavernas e uma ponte de madeira para facilitar a passagem das tropas, facilidade muito rara na época. Uma importante atividade comercial e artesanal abastecia na povoação os tropeiros, vendendo “joias”, “tecidos”, “artigos de selaria”, “cuias” e “bombas” para chimarrão, etc. Era ativa a vida social, com casas para beber, comer, dançar, jogar; com corridas, prostíbulos, teatros, etc. No século 18, durante o ciclo minerador, a atividade tropeira articulou com o Centro-Sul os atuais territórios meridionais do Brasil – Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. De 1724 a 1750, passavam por Sorocaba uns mil animais por ano. De 1750 a 1780, o tráfico multiplicou-se por cinco. Nos cinco anos seguintes, dez mil animais foram registrados na vila. De 1826 a 1850, no contexto da expansão da economia cafeicultora, mais de trinta mil animais foram registrados em Sorocaba. No auge do comércio muar, em 1850-60, cem mil animais cruzavam o registro. A última feira realizou-se em 1897, quando o transporte ferroviário pôs fim à dominância do transporte muar. As tropas desenvolveram-se em razão do mercado consumidor ensejado pela descoberta das minas, em fins do século 17, o qual permitiu que os valiosos animais fossem levados para o norte, sobretudo desde os criatórios rio-grandenses, argentinos e uruguaios, através do litoral, inicialmente, e, a seguir, do nordeste do Planalto Rio-Grandense e do passo de Goio-En, mais a oeste.

Criação missioneira A prática pastoril a oriente do rio Uruguai nasceu do ciclo missioneiro. Desde 1610, como vimos, comunidades nativas foram reduzidas sob a proteção jesuítica nas províncias de Itatim, Guairá, do Paraguai e Uruguai. A partir de 1619, preadores paulistas atacaram as missões, que se transferiram para as margens ocidentais do rio Uruguai. Em inícios de 1630, foram introduzidos, inicialmente, 1.500 animais na província do Tape, nos atuais territórios rio-grandenses, trazidos desde a atual província argentina de

80

Corrientes. O gado desenvolveu-se rapidamente nos ricos pastos dessas regiões. Desde 1682, com o início da fundação dos Sete Povos, os missioneiros formaram enormes estâncias nas margens esquerdas do rio Uruguai, até a lagoa dos Patos, no atual Rio Grande do Sul, e no norte do Uruguai. Uma imensa estância, formada pelos rios Negro, Camaquã e pelo litoral, foi deixada como reserva – as vacarias do Mar. Em longas viagens, os tropeiros missioneiros transferiam gados das vacarias do Mar às estâncias e invernadas no Planalto. As estâncias das reduções do Tape eram ligadas por uma “Estrada Geral das Vacarias”, com centenas de quilômetros. Em inícios do 1700, os missioneiros formaram a vacaria dos Pinhais, no Planalto, nos dois lados do rio Pelotas. Os campos no atual estado de Santa Catarina, habitado por boiadas selvagens, eram conhecidos como “vacarias das Lagens”. Com o novo mercado das Minas Gerais do Ouro, os criadores paulistas com fazendas nos campos de Curitiba e Gerais, no atual Paraná, levaram animais para São Paulo, Santos, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Como as animálias não abasteciam suficientemente a região mineradora, buscaram-se animais no Prata e nas vacarias missioneiras. Explorados sobretudo pelo couro, os gados sulinos passaram a ter valor mercantil, desde que transportados aos mercados consumidores. Desde 1711, com a tropa pioneira de Brito Peixoto (1650-1735), os muares e cavalares passaram a ser levados da distante colônia de Sacramento, pelo litoral, à vila de Laguna (1684), em Santa Catarina, onde a faixa litorânea estreitava-se, impedindo a passagem das tropas em direção ao norte. Os animais muares eram embarcados e os bovinos charqueados na vila, para serem enviados a Santos, Rio de Janeiro, etc. O “Caminho da Praia”, ligando Sacramento e Laguna, com uns 1.300 km, tinha importantes limitações. As pastagens litorâneas rio-grandenses e catarinenses eram pobres, ainda que ricas em sal. As tropas sofriam durante a travessia, feita a nado, dos rios Grande, Tramandaí, Mampituba e Araranguá.

Primeiras tropas Em 1737, o lusitano Cristóvão Pereira de Abreu (1680-1755) acampou nas margens meridionais do “passo” do rio de São Pedro (Grande), à espera da expedição que fundaria o forte de Jesus-Maria-José, futura vila de Rio Grande. Segundo ele, aquele era o “o único (local) para passar animais e pôr cavalhada da parte do Norte”. Possivelmente exagerando, afirmou que, naquele ano, ao passar 1.200 vacas ao norte, perdera 281 afogadas (23,4%). Na travessia do canal, os animais serviam-se dos bancos de areia descobertos ou semidescobertos pela maré baixa. Mais tarde, duas embarcações transportavam mais de quarenta animais por viagem, sob pagamento, de uma margem a outra, como proposto em 1780 por Sebastião Francisco Bettamio.

81

A partir de 1731, após vencerem os perigosos obstáculos do litoral, as tropas de animais passaram a subir para o Planalto, nas proximidades de Laguna, pelo caminho do morro dos Conventos. No Planalto, tropeiros e tropas seguiam o caminho já consolidado Lages/Curitiba/Sorocaba. A nova rota foi denominada “Estrada da Serra” ou “dos Conventos”. Porém, logo o novo – e difícil – trajeto seria abandonado, em favor de percurso menos penoso. Em torno de 1735, chegadas dos campos de Viamão, as tropas subiam a Serra pelo vale do rio dos Sinos, tomavam a direção do rio Rolante, alcançavam os campos de Cima da Serra, cruzavam o passo Santa Vitória, para embocar a Coxilha Rica, em direção de Sorocaba. Era habitual que fossem vendidas para invernar nos Campos Gerais, no Paraná, para serem finalmente levadas para a célebre feira. Para recolher as taxas devidas, a Coroa fundou no sopé da serra riograndense o Registro ou Guarda (Velha) de Viamão, sede de destacamento militar (patrulha). Os registros eram comumente cedidos a particulares, geralmente por três anos, em leilão, em troca de indenização fixa. A administração fornecia ao arrematante guarda para executar os pagamentos devidos pela passagem. Mais tarde, a 6 km do pedágio de Viamão, nasceu a aglomeração de Santo Antônio da Patrulha, a pouco mais de 70 km da atual cidade de Porto Alegre. A rota Viamão, Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula, campos de Vacaria, passo Santa Vitória, Coxilha Rica – denominada de Caminho de Viamão, Caminho do Sertão, Estrada Real de Viamão, Caminho das Tropas, Real Caminho de Viamão – constituiu o principal caminho terrestre ligando os territórios sulinos à antiga rota tropeira Lages/Curitiba/ Sorocaba/São Paulo/Minas Gerais do Ouro, conhecida como Estrada Real. Na segunda metade do século 18, os Sete Povos missioneiros foram vergados e os nativos pampianos, dizimados ou encurralados no norte do futuro Uruguai. Então, tropeiros luso-brasileiros passaram a comprar mulas nos criadouros de Entre Rios, cruzar o rio Uruguai, nas regiões da atual cidade de Uruguaiana, tropear em direção da Boca do Monte (Santa Maria) e, dali, para Rio Pardo, onde atravessavam o rio Jacuí, em busca dos campos de Viamão e da Estrada Real. Ao longo dessa rota, que cortava horizontalmente o Rio Grande do Sul, localizaram-se a seguir as cidades de Uruguaiana, Alegrete, Santa Maria, Rio Pardo e Viamão.

Viagem longa e difícil Uns 1.500 km separavam a Guarda de Viamão da feira de Sorocaba. A subida da Serra era difícil e exigia vencer arroios, barrancos, elevações, matas, etc. No trecho, era comum os animais se afogarem e desbarrancarem. Em geral, após a etapa perigosa, o caminho abria-se através de sucessão de campos de pastagens e abundante água, iniciados pelos campos de Vacaria

82

e Coxilha Rica. Porém, quando os tropeiros alcançavam o sertão de Lages, engolfavam-se na temida Estrada da Mata. Eram 300 km de estreitos caminhos, de poucas pastagens e muitos brejos, rios e matas densas, sob a ameaça permanente de nativos e animais selvagens. Documento de 1811 descreveu a temida Estrada da Mata: “Há entre a vila de Santo Antônio da Lapa e a vila de Lages uma grande mata colocada toda sobre uma continuada planície, com nove campestres pelo meio, dos quais o maior terá meia légua de comprido, intermediada de alguns riachos vadeáveis, que somente em tempo de grandes invernadas momentaneamente impedem a livre passagem dos gados e condutores.” Exagerando, o autor do relato afirmava que no caminho se perderia “pelo menos da terça parte dos gados”. Apenas a partir de 1820, após quase um século de uso, a Estrada da Mata conheceria melhorias. Ao longo da Estrada Real surgiram casas e currais, criatórios, invernadas e, a seguir, povoados – Lages, Ponte Alta, Santa Cecília, Papanduva, Mafra, em Santa Catarina; Lapa, Tamanduá, Pitangui, Castro, Piraí, no Paraná; Itararé, Itapeva, Taquarivaí, Aracaçu, Pescaria, Itapetininga e Sorocaba, em São Paulo. Dois fenômenos históricos modificaram os rumos das tropas. Em fins do século 18 decaiu a produção mineradora, retraindo-se o consumo de mulas da região. Porém, nessa época se fortaleceu a produção charqueadora sulina, em substituição à produção nordestina, golpeada por secas que dizimaram seus rebanhos. O desenvolvimento da produção charqueadora determinou que os gados criados na Campanha fossem tropeados para as charqueadas das margens do arroio Pelotas, das lagoas e do rio Jacuí, de onde os couros, charques, etc. eram exportados pelo porto de Rio Grande. Decaiu a produção de mulas nessas regiões, as quais raramente eram enviadas para o norte. Os campos do setentrião rio-grandense, ao contrário, iriam se tornar local de criação e invernada de mulas. Em fevereiro de 1801, quando das guerras napoleônicas, a Espanha (aliada da França) invadiu Portugal (aliado da Inglaterra). Aproveitando a oportunidade, tropas regulares e irregulares luso-brasileiras ocuparam os Campos Neutrais, até o rio Jaguarão, estabelecendo quartel. Um pouco mais tarde, José Francisco Borges do Canto (1755-1805), natural de Rio Pardo, desertor anistiado do Regimento de Dragões, com algumas dezenas de luso-brasileiros e centenas de nativos, muito deles missioneiros, conquistou as Missões para Portugal. Após a ocupação, militares luso-brasileiros passaram a administrar os Sete Povos, determinando sua decadência, através da venda e distribuição de terras para estancieiros chegados sobretudo de Lages e de Curitibanos. Em 1828, como vimos, os guaranis missioneiros da região migrariam para o norte do Uruguai. Em 1808, recém-aportado ao Brasil, dom João impulsionou a ocupação dos sertões do Brasil e o extermínio das comunidades nativas. Nesse processo, mandou “descobrir, povoar e cultivar os campos de Guarapuava”, no

83

atual estado do Paraná, “infestados [sic] de gentios”. Essas regiões eram reivindicadas pelos hispano-americanos, como o seriam, a seguir, pela Argentina. As instruções reais determinavam que se abrisse estrada tropeira, através de Guarapuava, até a “capitania do Rio Grande do Sul”, unindo diretamente as Missões, centro de criação-invernada de mulas, e a grande feira de Sorocaba. Em 1809-1810, um forte destacamento militar demarcou caminho entre Curitiba e os campos de Guarapuava, através do qual foram levantados arranchamentos e quartéis. Nos inícios daqueles campos fundou-se um rústico forte, com o sugestivo nome de Atalaia. Em 29 de agosto de 1810, a fortificação foi atacada, por seis horas, por nativos que se tentara inutilmente atrair. Nos anos seguintes, exploraram-se e ocuparam-se regiões mais meridionais, em direção ao Rio Grande do Sul.

Caminho novo da Vacaria Em 1816, uma expedição partiu para finalizar o projeto de ligar diretamente as Missões a Sorocaba, através dos campos de Guarapuava. O nativo Jongong, que orientou a expedição desbravadora, temendo a belicosidade dos coroados das margens do rio Uruguai, tomou o caminho do leste e dos campos de Palmas, descobriu os Campos Novos, atravessou o rio Pelotas, chegou ao Campo do Meio, no Rio Grande do Sul, de onde prosseguiu até São Borja. Redescobria o antigo caminho ligando os campos de Vacaria a Santo Ângelo–São Borja, através do Planalto Médio, utilizado anteriormente por tropeiros e ervateiros missioneiros e por nativos. A abertura do caminho entre os campos de Vacaria e as Missões acelerou a substituição das antigas estâncias missioneiras por fazendas de plantação e pastoris e a ocupação do Planalto Médio, onde surgiram as povoações de Cruz Alta, Passo Fundo, Campo do Meio, Lagoa Vermelha, etc. A nova rota tropeira potenciou a tradicional introdução do gado muar através do rio Uruguai, desde Entre Rios e Santa-Fé e, até mesmo, desde o Paraguai. Esse contrabando se fortaleceu com a decadência da produção mineradora hispano-americana dos Andes, que disponibilizava mulas criadas na região. Desde então, quando os gados escassearam e encareceram-se no pampa, em razão do atrativo mercado das charqueadas, os tropeiros voltaram-se para os criadores das Missões e, a seguir, dos Campos de Cima da Serra, que se especializaram na invernada e na produção de animais de transporte. Essas regiões se encontravam mais próximas dos mercados consumidores paulistas. A nova reorientação da atividade muar determinou que os tropeiros chegados de São Paulo para comprar mulas ignorassem a rota tradicional que passava pelo passo Santa Vitória e por Santo Antônio da Patrulha para alcançar os campos de Viamão.

84

Desde então, era comum que as tropas muares partissem de São BorjaSanto Ângelo, seguissem o caminho de Cruz Alta/Mato Castelhano/Campo do Meio/Mato Português, atravessassem o rio Pelotas no passo do Socorro/ Pontão, a oeste do passo de Santa Vitória, para sair nos Campos Novos ou em Coxilha Rica, já em Santa Catarina. A nova rota foi denominada de “Caminho Novo da Vacaria”. Após o fim da Guerra Farroupilha, em 1845, a abertura do passo de Goio-En, antes controlado por comunidades coroadas, permitiu estabelecer finalmente caminho ligando as Missões diretamente a Sorocaba, através dos campos de Nonoai e Guarapuava, impulsionando a ocupação das Missões. A inauguração da “estrada das Missões”, ou “estrada de Palmas”, fez decair ainda mais o trânsito tropeiro pelo passo Santa Vitória/Coxilha Rica.

As tropas Conhecemos ainda pouco sobre os primeiros tempos das tropeadas. Em 1773, um viajante percorria no lombo de uma mula os 1.650 km do trajeto Viamão–Curitiba em 45 a 50 dias, avançando uns 35 km por dia, a 4,5 km por hora, se cavalgasse oito horas diárias. A viagem das tropas dos campos de Viamão à feira de Sorocaba era feita num tempo significativamente maior, com diversas interrupções, para que os animais se alimentassem e repusessem. Se os animais fossem xucros, a viagem era mais problemática, arriscada e demorada. Em geral, os animais invernavam nos Campos Gerais antes de serem levados para Sorocaba. Os rios e córregos eram superados em seus vaus. Para não perder os animais, os tropeiros esperavam que as águas baixassem. As mulas atravessavam a nado os rios mais caudalosos, ladeadas por canoeiros, seguindo a égua madrinha, puxada por cavaleiro, enquanto os tropeiros cruzavam-nos em rústicas embarcações. Além dos trechos de difícil travessia, os tropeiros preocupavam-se com a dispersão dos animais, sobretudo xucros. Quem devolvesse animais extraviados tinha direito a recompensa. Vaqueiros eram pagos por animais recuperados. As perdas por extravio, roubo, venda fraudulenta e morte durante o trajeto de uma tropa do Rio Grande até Sorocaba podiam ser pesadas, chegando, em casos extremos, a 30% dos animais. Há depoimentos que falam de tropas bem cuidadas, sob boas condições de viagem, sem perdas. Se os tropeiros eram roubados em seus animais, não era raro que as tropas chegassem ao seu destino acrescidas de animais arrebanhados durante o percurso... Os tropeiros preveniam-se com forte armamento contra ataques de serpentes, tigres, bandoleiros e nativos. As plantas venenosas, que floresciam em janeiro e fevereiro, quando da passagem das tropas, dizimavam os animais, com destaque para o timbó, cipó trepador, de galhos finos e pequenas flores brancas, no formato de espigas. Durante o trajeto, os homens e ani-

85

mais interrompiam a marcha para descansar e se alimentar. Lentamente, surgiram postos de descanso e pernoite, com currais e casas de moradia, que mais tarde comumente se orientaram à criação animal. No século 19, os animais eram comprados no Sul durante o inverno, em meados do ano ou nos primeiros meses do segundo semestre, a dinheiro. Com as primeiras chuvas, na primeira quinzena de setembro, apenas os pastos brotavam, tropeiros e tropas partiam para a longa viagem. Seis meses mais tarde, em fevereiro e março, os animais chegavam magros e cansados da travessia do sertão de Lages. Antes de partir para Sorocaba, os animais eram comumente vendidos nos Campos Gerais, no atual Paraná, onde eram invernados para, a seguir, serem comprados por tropeiros que os levavam para Sorocaba, onde a feira iniciava em abril ou maio e durava dois meses. Além de se dedicarem à criação bovina e cavalar e ao apoio à circulação das tropas muares, os campos ao sul de Sorocaba serviam para invernar os animais esgotados ou quando o mercado de Sorocaba se encontrava temporariamente saturado ou os preços deprimidos.

Viagem longa Um tropeiro que partisse de Sorocaba, após finalizada a feira, em maio, como era tradicional, para comprar e trazer animais dos campos de Viamão demorava-se de oito a dez meses na operação. Não era comum que um tropeiro realizasse toda a viagem, ida e volta, de Viamão a Sorocaba. Como assinalado, era hábito que os animais fossem trazidos do Sul até os Campos Gerais para serem vendidos a invernadores, que, a seguir, os cediam a tropeiros paulistas ou os enviavam para Sorocaba. O tropeiro pousava ao ar livre, sobre a carona dos arreios, coberto pelos pelegos e poncho, apoiando a cabeça no lombilho, em barracas ou no interior de “fortalezas”, construídas com as canastras, bruacas, arreios, etc. Proprietários cobravam pelo uso pelos tropeiros e animais de seus ranchos e potreiros. Temos poucas informações sobre esses aluguéis. No início dos anos 1820 se gastariam de 200 a 400 réis por cabeça para invernar animais. Havia instalações públicas denominadas de “reúnas”. As refeições eram rústicas. Durante o pouso, à noite, o cozinheiro da tropa preparava, em panela de ferro, refeição a base de feijão, arroz, mandioca e charque, linguiça, toucinho. O jantar era servido como almoço, requentado, quando da pausa do meio-dia. Bebiam-se aguardente e café forte, preparado com o grão moído e não coado. Preparava-se o “café tropeiro” lançando à água em ebulição um pouco de pó e, alguns minutos após, apagava-se um tição dentro dela, para que a borra do café aderisse ao mesmo. Bebiam-se chimarrão e cachaça. O fumo era habitual.

86

Os participantes de uma tropa eram denominados de “tropeiros”. Porém, de forma estrita, tropeiro era o armador da operação, que podia buscar sócios capitalistas para a empresa. O tropeiro acompanhava sua tropa ou entregava simplesmente o comando da operação a um ou mais capatazes ou administradores. Alguns tropeiros viajavam na companhia de capataz. Ricos tropeiros permaneciam em Sorocaba, enviando prepostos para comprar animais no Sul. Um tropeiro, um capataz e de seis a quinze peões, acompanhados de cachorros, conduziam tropas que podiam ter seiscentos ou mais animais, principalmente vacuns. Eram comuns tropas menores, de quarenta a cinquenta animais, sobretudo de muares, conduzidas por dois a três homens. Tropas de duzentos e trezentas mulas significavam enorme investimento, em razão do preço unitário significativo desses animais. As tropas muares, mais comuns, eram mais xucras, mas mais rápidas do que as bovinas.

Maior feira da América do Sul Em fins de 1830, segundo o francês Nicolau Dreys, o Rio Grande do Sul exportaria, por terra, para Santa Catarina e Curitiba de dez a doze mil animais vacuns, de doze a quinze mil mulas e de quatro a cinco mil cavalos. Se esses números estão certos, estimando-se em trinta mil cabeças levadas, em tropas de cem animais e cinco tropeiros, teríamos, no mínimo, mil e quinhentos vaqueiros envolvidos na atividade, caso realizassem apenas uma viagem ao ano. Em 1820, a população do Rio Grande do Sul ultrapassaria os 65 mil habitantes. Havia uma rudimentar especialização de funções na tropa. Os capatazes e os peões eram também denominados de “camaradas”. Cativos de confiança eram utilizados na atividade tropeira. O batedor explorava os caminhos e os passos e organizava a passagem das tropas nas vilas e registros. O contador, contramadrinheiro ou sota-capataz controlava que os animais não se perdessem ou fossem furtados. Viajando à frente da tropa, era responsável pela definição dos caminhos e dos locais de poso. Um menino de 12 a 14 anos, o madrinheiro, conduzia a égua-madrinha, que, com um cincerro ao pescoço, era seguida pelos muares. O arribador era cavaleiro experiente responsável pela recuperação dos animais extraviados. O cozinheiro cuidava do trem da tropa e das refeições. Os tocadores eram os peões que viajavam atrás das tropas, tocando-as. São ainda pouco conhecidos os salários praticados nas tropas. Em 1820, um armador pagou 22$000 para o capataz e 12$000, 11$000, 10$000, 8$000, 5$000 e 4$000 mil-réis para os dez camaradas responsáveis por uma boiada de 445 animais e cinco cavalos, levada para Taubaté possivelmente dos Campos Gerais. Havia, portanto, forte diferença entre os peões, mais ou menos especializados nas diversas funções, como apenas assinalado.

87

Nos primeiros tempos, os tropeiros eram luso-brasileiros, castelhanos (santafesino, correntinos, paraguaios, etc.), nativos aculturados (tapes, guaranis missioneiros etc.), cativos e libertos, crioulos e africanos. Nas tropas falavam-se português, castelhano, guarani, etc. Essa comunidade linguística permitiu a introdução e consolidação do uso no Brasil de termos quíchuas, astecas e araucanos, como abacate, aspa, chácara, charque, chiripá, guaiaca, mate, pampa, pilcha, poncho, tomate etc. O gaucho, gaúcho ou gaudério, incorporou-se crescentemente às tropeadas. Esse tipo humano surgiu na primeira metade do século 18, sobretudo nos pampas do Prata, como grupo social singularizado. Ele podia ser um castelhano pobre, descendente de um náufrago, um desertor, um cativo fugido e, sobretudo, um nativo aculturado, que tomara uma nativa charrua, minuano ou guarani como mulher, para viver, independente, nos pampas argentinos, uruguaios e rio-grandenses, em geral dos gados chimarrões. Gados e campos sobre os quais não podia estabelecer relações de propriedade. Na Argentina, era igualmente filho de nativos pampas e espanholas sequestradas. O gaúcho era tipo social execrado, discriminado e temido. Nativos guaranis, pampianos, etc. que se incorporaram à produção pastoril também assumiram o status de gaúchos.

Gaúcho serrano Originalmente, no Planalto Rio-Grandense, o tropeiro que chegava de São Paulo para comprar mulas e cavalos era chamado de biriva, beriva ou biriba, termo de origem guarani, com o sentido de pequeno ou pouco, que passou a seguir a designar o campeiro serrano. Ainda no século 20, a palavra era usada, com sentido pejorativo, como sinônimo de vaqueiro de Santa Catarina, Paraná, São Paulo. Os tropeiros paulistas viajavam para o Sul acompanhados por alguns homens de confiança, fortemente armados, portando altas somas para a compra dos animais, sempre em dinheiro. O uso da moeda de cobre dificultava o transporte de numerário. As moedas portuguesas e brasileiras de cobre de inícios do século 19 de dez, vinte e quarenta réis exigiam para a compra de tropa de uns trezentos mil-réis, quase cem quilos em moedas, a carga de uma mula. Tropeiros transportavam dez ou mais mulas com moedas! A camaradagem era completada no Rio Grande, após a aquisição da tropa. Em meados do século 19, tropeiros do planalto sul-brasileiro começaram a aparecer na feira de Sorocaba. Com a expropriação das fazendas jesuíticas, missioneiros empregavam-se como peões nas estâncias e fazendas. A tropeada era uma atividade intermediária e improdutiva. Os lucros obtidos pelo capitalista provinham da venda, no Norte, por preços superiores aos pagos pelos animais no Sul, aos quais eram acrescidos os gastos gerais com o deslocamento dos animais. Os tropeiros financiavam a compra

88

dos animais; os direitos de passagem; a alimentação; os salários dos camaradas; os gastos com os animais de montaria, com armas, arreios, bruacas, cangalhas, freios, selas, etc. indispensáveis para a viagem. As tropas levavam cargueiros de ferradura, para consertos, a fim de que os animais de montaria e transporte não estropiassem os cascos em caminhos empedrados. Logo surgiram ferreiros ao longo do caminho tropeiro.

Um ótimo negócio Em fins de 1820, um tropeiro, após adquirir uma mula no Rio Grande por um ou dois mil-réis, pagar pouco mais de três mil-réis em impostos, arcar com os gastos com a passagem de rios, o municio e os salários dos tropeiros, a perda dos animais, etc., vendia os burros em Sorocaba por 27 milréis. Durante a Guerra Cisplatina (1825-28), o preço do animal elevou-se às nuvens. Alguns tropeiros, como o barão de Iguape, o barão de Antonina ou a família Pinheiro Machado, amealharam fortunas na atividade. Se os lucros dos tropeiros eram grandes, a remuneração dos camaradas, sobretudo dos menos especializados, era pequena, não superando de muito o salário mensal de um peão. Em geral, para as classes subalternizadas, a tropeada foi meio de sobrevivência e raramente forma de ascensão social. O lucro do armador era igualmente acrescido com o sobretrabalho dos peões, camaradas e cativos. O tropeiro portava poncho ou pala, segundo a estação; cobria-se com chapelão de feltro, de copa baixa e abas largas flexíveis, ou, ao contrário, capa alta e aba estreita e dura. O lenço de seda servia para filtrar a água a ser bebida e para proteger o rosto da poeira. Vestia camisa de algodão com um jaleco ou colete e ceroulas folgadas do mesmo pano, com bainha em franjas ou em crivo. Na cintura, levava um pano colorido ou uma guaiaca de couro curtido, com bolsos para portar moedas e objetos pessoais, que sustentava o facão – lapeana – e a garrucha. As enormes esporas atadas às botas de cano longo, às vezes dobrado, eram sinais de distinção social. Os peões, camaradas e cativos vestiam-se de forma sumária, com rústicos ponchos de lã e um pano enrolado entre as pernas e pela cintura, à moda indígena, preso à cintura pelo tirador – espécie de avental de couro – ou por um cinturão de couro. Em fins do século 19, o xiripá foi substituído pelas bombachas, segundo parece em razão da influência da guerra contra o Paraguai (1865-1870). As esporas, nem sempre de ferro, eram atadas aos pés descalços por tentos de couro. O poncho de tecido rústico de lã protegia o tropeiro durante as viagens e servia-lhe de cobertor à noite. O estabelecimento de ferrovias nas regiões mineradoras diminuiu rapidamente o consumo de mulas. Nos anos 1890, com a chegada das ferrovias ao Planalto, a tropeada de longa distância decaiu igualmente. Nos anos 1950, com o desenvolvimento das rodovias e o surgimento dos primeiros caminhões boiadeiros, a atividade tropeira desapareceu, mesmo em médias distâncias.

89

5 A escravidão no Rio Grande do Sul O trabalhador escravizado ingressou nos atuais territórios rio-grandenses antes do início da ocupação oficial luso-brasileira do Sul, em 1737, e contribuiu fortemente para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Tal foi o dinamismo do escravismo no Sul que a população servil sulina teria deixado de crescer apenas nos anos 1870, após grandes quantidades de cativos terem sido vendidas para as fazendas cafeicultoras do Centro-Sul. Em 1680, a fundação da colônia de Sacramento teve como um dos seus objetivos a venda de cativos na bacia do Prata. Trabalhadores escravizados estiveram presentes nas primeiras expedições em direção ao Sul. Em 1725, João de Magalhães partiu de Laguna para explorar e ocupar o Estreito com trinta e um acompanhantes, entre eles “homens pardos escravos”. Por volta de 1695, com a descoberta das Minas Gerais do Ouro, as terras e os rebanhos sulinos passaram a interessar fortemente os luso-brasileiros. A mineração exigia carne para as escravarias e animais para o transporte. A partir dos anos 1720, tropas começaram a ser levadas do Sul para os mercados do Brasil Central. Paulistas e lagunenses estabeleceram invernadas, currais e estâncias no litoral Norte, no Estreito, nas margens dos rios Gravataí e dos Sinos, nos campos de Viamão. Nesses anos, produziam-se algum charque e couros naquelas regiões. Quando escasseou o gado alçado, iniciou-se a criação de animais. As primeiras atividades econômicas desenvolvidas no Sul eram pouco rentáveis e não exigiam trabalhadores numerosos e trabalho sistemático e extenuante, como as plantações açucareiras e as minas. Ainda que trabalhadores livres tenham participado dessas primeiras atividades – colonos, espanhóis, indígenas aculturados, etc. –, foi importante a participação de cativos, em virtude da impossibilidade da constituição no Sul, como no resto do Brasil, de um significativo mercado de trabalho livre. Os homens livres pobres exigiam salários altos para não se estabelecer, mesmo em caráter precário, como produtores livres em região onde abundavam as terras e os gados. Após a fundação de Rio Grande, em 1737, são abundantes os registros da presença de trabalhadores africanos e afro-descendentes no Sul. Os cativos trazidos quando ou após a fundação da vila labutavam nas construções urbanas; em plantações de gêneros de subsistência na periferia da aglomeração; na produção de alimentos, gados, charque e couros, nos campos vizinhos; como domésticos; nas olarias; na estiva; nos transportes terrestres e aquáticos; no artesanato, etc. Nos anos seguintes à fundação de Rio Grande, os povoadores que se estabeleceram na região, quando podiam, traziam consigo um ou mais cativos. Os próprios soldados do regimento de Dragões ocupados na defesa de Rio Grande possuíam comumente um servidor escra-

90

vizado, que ofereciam como fiança quando se ausentavam da praça. Durante a licença, os cativos trabalhavam no serviço e nas obras de fortificação. Se seu escravizador desertasse, passavam ao domínio da Fazenda Real. Nos anos 1750, com a chegada de colonos açorianos, surgiram importantes plantações de trigo nos arredores de Rio Grande, nas margens das lagoas, ao longo do rio Jacuí. Em fins do século 18, Rio Pardo, Cachoeira, Encruzilhada e Triunfo eram importantes centros triticultores. Os trigos sulinos abasteciam as necessidades locais e seus excedentes eram exportados. Com os capitais acumulados no trigo, os colonos dedicados à triticultura compravam mais cativos. Sobretudo em torno das primeiras aglomerações, desenvolveu-se importante produção de gêneros de subsistência, voltada à satisfação das necessidades da população local e à exportação para as outras capitanias. Nas chácaras, plantavam-se cana-de-açúcar, frutas, fumo, legumes, mandioca, milho, etc. Elas possuíam abundantes árvores frutíferas – figueiras, laranjeiras, limoeiros, marmeleiros, pessegueiros, videiras, etc. As explorações agrícolas suburbanas possuíam também criações de pequenos animais, como galinhas, ovelhas, patos, porcos, etc. Também produziam um pequeno artesanato. Essas variadas atividades ocupavam significativa mão de obra escravizada. Em geral, as aglomerações do Sul e do resto do Brasil eram cercadas por um cinturão verde de pequenas propriedades, exploradas com o braço escravizado negro. Na Colônia e no Império, nas cidades e nos portos, o transporte de homens e mercadorias era praticamente monopólio servil. Dificilmente se encontraria um homem livre trabalhando como negro no transporte de volumes, pequenos ou grandes, para si ou para outrem. Os cativos carregadores permaneciam em determinadas praças ou esquinas, à espera de serem contratados. Era também habitual que cativos trabalhassem como marinheiros e remadores no importante transporte fluvial, lacustre e marítimo. Nos anos 1820, no Sul, havia em torno de oitenta passos reais, arrendados para privados, onde trabalhadores escravizados atravessavam os passageiros em canoas, sob pagamento. A caça ao gado para a produção de couros foi uma atividade importante dos primeiros tempos da ocupação luso-brasileira do Rio Grande do Sul. Cativos podiam ser utilizados no preparo e no transporte dos couros. Por décadas, as vacarias de corambre foram fundamental fonte econômica da colônia do Sacramento, fundada em 1680. Muito logo, foram povoadas com estâncias dedicadas à criação de animais cavalares e, sobretudo, de gado vacum semisselvagem e selvagem por seus couros, sebo, graxa, com muito baixa utilização das carnes, em razão do caráter estreito dos mercados acessíveis – estâncias chimarrãs.

91

Primeiras charqueadas A partir de 1780, o acelerado desenvolvimento da produção de charque, que relançou poderosamente a criação animal, consolidou o Sul como importante região escravista. As muito duras atividades saladeiras apoiavam-se, quase essencialmente, na mão de obra escravizada. A elevada rentabilidade relativa da economia charqueadora produzia incessantemente capitais necessários à importação sistemática de cativos novos chegados da África. A prática charqueadora ensejou, igualmente, a ocupação dos pampas sulinos por fazendas de rodeio dedicadas à criação animal, pelo couro e pela carne, comumente povoadas com peões e, sobretudo, trabalhadores escravizados, os cativos campeiros. A fazenda pastoril teria conhecido expansão demográfica positiva da população servil, o que era extremamente raro no Brasil escravista, que dependia essencialmente do tráfico transatlântico para a reposição da mão de obra feitorizada. O primeiro levantamento demográfico sulino conhecido, de 1780, portanto, quando apenas iniciavam as práticas charqueadoras e pastoris sistemáticas, sugere a importância do cativo nesses recuados tempos. Excluindo-se os nativos “bravios”, os homens e mulheres escravizados constituíam 28% do total dos habitantes; os nativos aculturados, 19%; os “brancos”, 53%. Destaque-se que, ao contrário da população livre, sobretudo até o fim do tráfico transatlântico, em 1850, a pirâmide etária da população escravizada era formada por um elevado número de jovens e adultos em idade produtiva e uma limitada quantidade de crianças e velhos. O trabalhador escravizado desempenhou um importante papel na economia e na sociedade sulinas até 1884-5, quando, por meio das alforrias com cláusula de prestação gratuita de serviço, os escravizadores rio-grandenses pretenderam prolongar, em geral por sete anos, sob outra forma, a exploração dos ex-cativos. Em 1888 aboliu-se finalmente a escravidão. A constituição, no Sul, a partir de 1824, de núcleos de camponeses europeus proprietários de pequenas parcelas de terra – colônias – não visava à substituição do trabalho feitorizado. O acesso do pequeno produtor à terra livrava-o da necessidade de vender sua força de trabalho por salário irrisório, sob a ameaça do desemprego e da fome. A curto e a médio prazo, a colonização colonial-camponesa dificultava a formação de exército rural de reserva de desempregados, obrigados ao assalariamento – uma das razões da permanente oposição dos estancieiros à imigração camponesa. As elevadas taxas de natalidade da população colonial-camponesa e a venda de trabalhadores escravizados sulinos para a cafeicultura a partir do fim do tráfico transatlântico de trabalhadores, em

92

1850, contribuíram para a queda absoluta e relativa da população afro-sulina. Sabemos pouco sobre as origens do afro-rio-grandense. Nos séculos 18 e 19, os cativos que viviam no Sul eram “novos” ou “crioulos”. Crioulos eram os cativos nascidos no Brasil; novos ou de nação, os trazidos recentemente da África. Após viverem algum tempo no Brasil, aprenderem uma profissão e dominarem um pouco da língua portuguesa, os cativos novos eram chamados de “ladinos”. O cativo novo não manteve seu nome africano. Em geral, possuía apenas um pré-nome, ao qual se acrescentava sua profissão ou naturalidade, brasileira ou africana. É assim que tínhamos um João Pedreiro, um José Pernambuco, um Manuel Congo. O fato de ter recebido, como “sobrenome” a procedência africana permite entrever as regiões da África que privilegiadamente serviram de sementeiras ao tráfico. Temos informações sobre os primeiros africanos trazidos ao Sul. João Ferraz realizou o levantamento completo do primeiro livro de batizados do Rio Grande do Sul – 16/6/1738 a 28/8/1753. A transcrição apresenta como batizados, ou pai e mãe de batizados, quase uma centena de africanos vindos de possessões angolanas (congos, angolas, massanganos, benguelas), das possessões moçambicanas (moçambiques), da Costa da Mina (minas) e do Cabo Verde (cabos-verdes). Inicialmente, os africanos trazidos de Angola seriam maciçamente majoritários. Em quase 80% dos casos, as mães dos primeiros afro-rio-grandenses foram embarcadas no atual litoral angolano. Essa documentação sugere também a importante miscigenação racial da época. Seguidamente, encontram-se referências a mães escravizadas dando à luz filhos de homens livres – em boa parte “soldados dragões” – e proprietários registrando filhos tidos com suas cativas. Era grande a desproporção na época entre homens e mulheres livres. Segundo João Ferraz, “um quinto do total geral dos primeiros povoadores batizados eram portadores de sangue africano”. A importância dos cativos “angolanos” na população africana sulina não seria fato restrito a essas épocas. No Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul encontram-se três listas referentes ao tráfico negreiro sulino durante 1802 e 1803. Possivelmente, registram parte substancial dos africanos escravizados introduzidos no Sul nesses anos. De um total de 1.195 cativos, 1.104 eram, com certeza, africanos. Nessa época, a produção charqueadora escravista, em desenvolvimento, ensejava a importação de grandes quantidades de africanos para essa atividade e para as fazendas pastoris em formação. Os cativos eram igualmente empregados nas plantações de trigo e de subsistência e em outras atividades. Trazidos sobretudo do Rio de Janeiro, os africanos eram introduzidos principalmente pelo porto de Rio Grande e distribuídos pela capitania. Se os dois anos em questão são representativos, os “angolanos” constituíram a parte essencial da população afro-sulina também em inícios do século 19.

93

Os “angolas” eram ainda o grupo majoritário. Tratava-se de quimbundo do antigo reino do N’Dongo, provenientes das regiões do Kuanza, no centro da atual Angola. A seguir, vinham os “benguelas”, ou seja, povos ovimbundos “exportados” através do porto de São Filipe de Benguela, fundado em 1617 pelos lusitanos, no sul angolano. Os “congos”, quarto grupo em importância, eram cativos quicongos do antigo reino do Kongo, no norte de Angola de hoje. O terceiro grupo, os “manjolos”, era constituído por originários do reino de Holos, a oeste do reino Lunda, em Angola. Os “minas” eram africanos exportados da Costa da Mina, na atual Gana. “Quissamas”, “cassanges”, “songas”, “cabundas”, “ambacas”, “ganguelas”, “mohumbes” eram também “angolanos”. Os “messambes” eram, possivelmente, provenientes de Moçambique. Não foi possível identificar a origem africana dos “rebolos”. Portanto, os cativos arrancados de Angola compreendiam – no mínimo – mais de 80% do total dos assinalados na listas. As possessões lusitanas na atual Angola desempenharam importante papel no tráfico negreiro lusitano. Principalmente quando as outras potências negreiras europeias – Holanda, França, Inglaterra, etc. – dominaram o comércio escravista do golfo da Guiné, ao norte do Equador. Ao contrário dos enclaves lusitanos nos atuais territórios de Moçambique, a costa angolana encontrava-se próxima aos portos do Brasil, principalmente aos do Brasil Central. Durante os séculos 17, 18 e 19, foi íntimo o relacionamento entre Luanda e o Rio de Janeiro, o grande porto escravista do Brasil, juntamente com o de Salvador, na Bahia. No século 19, o Rio de Janeiro, principal porto negreiro do Brasil, abastecia tradicionalmente de trabalhadores feitorizados o Sul. A importância de Angola cresceu a partir de janeiro de 1815, quando o tráfico ao norte do Equador tornou-se ilegal para lusitanos e brasileiros, em virtude das pressões inglesas. Entretanto, o Rio Grande recebeu, em diferentes épocas, quantidades significativas de cativos provenientes de outros portos do Brasil. Em suas Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil, escrita momentos antes da Independência, o charqueador lusitano Antônio José Gonçalves Chaves (1781-1837) arrolou o ingresso de cativos chegados de diversas regiões do Brasil. Nessa lista, após o porto do Rio de Janeiro, destacam-se os portos de ilha de Santa Catarina, de Salvador e de Montevidéu. Em Triste pampa: resistência e punição de escravos em fontes judiciárias no Rio Grande do Sul, Solimar Oliveira Lima assinalou a origem de africanos escravizados em todo o Rio Grande do Sul levados à Justiça sulina de 1818 a 1833. Segundo seus dados, os “minas” aparecem já como primeira nacionalidade, ainda que superados, amplamente, pelos diversas comunidades angolanas, se somadas. Levantando as alforrias registradas nos Livros de Lançamento Ordinários da Cidade de Pelotas, em 1832-1849, Ana Regina Simão registrou a nacionalidade de 39 cativos. Também segun-

94

do este levantamento, os cativos “minas” seriam já claramente majoritários no município nas duas últimas décadas do tráfico transatlântico; ao contrário, os “angolas” decaem e os “congos” desaparecem. Em seu estudo da produção charqueadora escravista, baseado nos inventários do 1º e 2º Cartórios de Órfãos de Pelotas, Euzébio Assumpção arrolou a nacionalidade de trabalhadores escravizados pertencentes a charqueadores do município nos anos 1780 a 1888. Também segundo seus dados, os minas são largamente dominantes. Esses dados reafirmam a grande dominância de cativos “minas” nesses anos, o que certamente explica a conspiração insurrecional descoberta pelos escravistas em 1848 nas charqueadas pelotenses, envolvendo trabalhadores escravizados dessa origem. Apenas somados os cativos provenientes das costas angolanas aproximam-se, numericamente, dos cativos “minas”. Rafael Copstein publicou levantamento do livro de “Entradas e saídas de escravos em geral fugidos e que não respondem por crime algum”, de dezembro de 1856 a julho de 1859, da cadeia pública de Rio Grande. Dos 144 africanos ali arrolados, 114 foram registrados com seus sobrenomes. Também esse levantamento revela modificações em relação aos dados do início do século, expressando uma superioridade relativa de cativos provenientes do golfo da Guiné. O estudo aponta um acréscimo do número de trabalhadores escravizados chegados de Moçambique. Os dados até agora disponíveis sugerem uma forte modificação do perfil da origem do cativo introduzido no Rio Grande do Sul de 1737 a 1850. Até inícios do século 19, seria indiscutível a dominância de cativos chegados das costas angolanas, sobretudo “angolas”, “congos” e “benguelas”. A partir de início do século 19, com a proibição do tráfico transatlântico ao norte do Equador, teria crescido o ingresso no Sul de cativos chegados de Moçambique. Porém, já nas primeiras décadas do século, dominariam os cativos vindos do golfo da Guiné, inicialmente “minas”, a seguir, “nagôs”. Os cativos de diversas origens chegados da costa de Angola continuaram significativos. Ao lado das nacionalidades dominantes, os dados conhecidos assinalam também uma multiplicidade de naturalidades dispersas, de valor numérico escasso. Isso sugere que, no Sul, como no resto do Brasil, para milhares de cativos às difíceis condições de existências sob a escravidão juntava-se, comumente, um doloroso isolamento cultural e linguístico.

95

6 Escravidão, fazenda e charqueada Os historiadores divergem sobre a importância do trabalho escravizado na atividade pastoril, base fundamental da produção sulina até fins do século 19. Problema de difícil resolução, sem estudos monográficos sobre as diferentes regiões criatórias durante o século e meio de escravismo sulino. Porém, algumas determinações gerais enquadram a questão. Inicialmente, é imprescindível compreender a forte distinção entre as fazendas chimarrãs e as fazendas crioulas ou de rodeio, realidade própria de toda a região da bacia do Prata. Nas fazendas chimarrãs, de grandes dimensões, o gado vivia selvagem e semisselvagem e era abatido, em geral sur-place, pelo couro, sebo e graxa. Essas propriedades exigiam poucos trabalhadores, ainda que sustentassem comumente população excedente, em razão do subaproveitamento das carnes. As fazendas de rodeio, de menores dimensões, surgidas sobretudo após a gênese da produção charqueadora de grande porte, nos anos 1870, exigiam esforço relativamente mais intensivo e um número menor de braços. A mercantilização das carnes determinava uma maior racionalização da produção e do uso do braçao trabalhador. Foram especialmente essas últimas estâncias que determinaram a história do Rio Grande do Sul, por mais de um século. Os gados vacum, cavalar e muar eram originários sobretudo dos animais introduzidos pelos jesuítas, na margem direita do Uruguai, e pelos espanhóis de Buenos Aires, na margem setentrional do rio da Prata. Nas estâncias, invernadas e vacarias missioneiras, esse gado se reproduziu abundantemente em razão das excepcionais condições naturais – poucos animais predadores; inverno e verão benignos; pastos, aguadas e capões abundantes, etc. Nas Missões, o trabalho pastoril era feito a cavalo e reduzia-se, no essencial, à vigilância e ao amansamento dos rebanhos realizados pelos “posteiros” – famílias de missioneiros. Após a introdução dos animais no sul da América, as comunidades nativas pampianas – charruas e minuanos, sobretudo – passaram a se servir com grande habilidade do cavalo e a praticar a caça ao gado, pela carne e pelo couro. A técnica da doma em campo aberto, o laço, o churrasco, o mate, o poncho, o pala e o tirador, as boleadeiras foram invenções dos cavaleiros missioneiros e pampianos. No Sul, no geral, a criação, as técnicas e os hábitos pastoris foram continuação do período missioneiro. Nos séculos 18 e 19, missioneiros e nativos pampianos constituíram os primeiros vaqueiros sulinos e importante reserva de mão de obra. Apesar da evolução conhecida durante os 150 anos de escravismo sulrio-grandense, mesmo nas fazendas de rodeio, as atividades pastoris apoia-

96

ram-se essencialmente na reprodução natural extensiva dos animais. Em virtude da experiência cultural, das determinações do meio e das condições materiais de produção, as técnicas criatórias pastoris luso-brasileiras continuaram a tradição missioneira, sem modificações essenciais, a não ser no que se refere às relações sociais de produção. As grandes fazendas extensivas dominaram sempre a produção pastoril. Nos anos 1830, o francês Nicolau Dreys lembrava a importância das divisas naturais: “Estância perfeita, e que mais segurança oferece [...] é aquela que é cercada por limites naturais, como morros íngremes, matos impenetráveis, e melhor que tudo, rios profundos, pois dali não pode sair o gado vagabundo [...].” Apenas a partir dos anos 1870 os campos começariam, lentamente, a ser cercados com arame, primeiro liso, a seguir farpado, criando-se um maior número de potreiros, invernadas e campos.

Poucos trabalhadores Nas fazendas voltadas para a criação dos animais pelo couro e pela carne, apenas as atividades extraordinárias da criação, como a constituição dos rodeios e seu manejo periódico, exigiam maior número de trabalhadores, pequeno em relação às plantagens escravistas. O pastoreio extensivo ocupava reduzido número de trabalhadores. Em 1821, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) referiu-se a uma fazenda com seis mil animais onde trabalhavam apenas onze homens. Os dados primários conhecidos confirmam que, no século 19, de forma geral, um peão ocupava-se de seiscentos a novecentos animais. A forte tendência gregária e estacionária do gado bovino facilitava a criação em campos não cercados, através da formação de rodeios. Para tal, durante semanas, cavaleiros reuniam o gado bravio em um terreno aberto e plano, no centro do qual se plantava um tronco de madeira. O esforço inicial de constituição do rodeio, através de domesticação mínima do gado vacum, exigia um número considerável de trabalhadores. A seguir, como o gado se aquerenciava ao local, mantendo-se em suas cercanias, caso não interviessem elementos extraordinários, como seca, fortes tempestades, etc., bastava um punhado de vaqueiros para reuni-lo, periodicamente, no rodeio, para que não dispersasse e para realizar os principais trabalhos pastoris – marcação, castração, cuidado das bicheiras, separação das tropas, etc. Em Costumes do Rio Grande do Sul, de 1883, João Cezimbra Jacques (1848-1922) descreve as práticas pastoris, registrando a longa permanência das mesmas, desde a formação dos primeiros rodeios no Sul luso-brasileiro:

97

“Os trabalhos nas estâncias são variados e dependem pela maior parte do rodeio, o qual não é mais do que a reunião dos gados em um certo lugar do campo, para onde se os levam facilmente, devido ao hábito em que estão já esses animais; reunir assim o gado chama-se parar o rodeio, o que tem lugar para os fins seguintes: marcar o gado, castrar os touros e potros, tosar as éguas, apartar novilhos e vacas para tropas que vão para as charqueadas e os açougues, curar os animais e contá-los [...].”

Rodeios custosos Era comum que as fazendas chimarrãs mantivessem seus gados selvagens, em razão dos gastos exigidos pelos rodeios. Nos primeiros tempos, nas fazendas de rodeio mais ricas faziam-se de dois a três grandes rodeios anuais. O ideal era a reunião semanal dos gados, em pequenos rodeios, nos quais se subdividiam as fazendas bem exploradas. O viajante francês Arsène Isabelle (1807-1888) assinalava que o gado era marcado antes do inverno, para que não ocorressem bicheiras. De abril a julho e de setembro a outubro, procedia-se à capação dos touros de mais de três anos. Nicolau Dreys (1781-1843), que viveu no Rio Grande do Sul diversos anos, afirmou que nos grandes rodeios semestrais marcavam-se e castravam-se os animais. Para o francês, uma fazenda de mil animais, “havendo vacas em proporção suficiente”, produzia quatrocentas cabeças ao ano. Também segundo suas estimativas, uma légua quadrada (4.356 ha) comportaria a criação de 1.500 a 2.000 cabeças de gado, uma lotação de um animal por 2,5 ha. Apenas os novilhos de “cinco anos para cima” eram vendidos às charqueadas. A taxa de desfrute dos fazendeiros – percentual da participação do abate sobre o total do rebanho – seria de 6-10% dos rebanhos. A atividade pastoril latifundiário-mercantil assentou-se sobre baixo nível tecnológico e excepcionais condições de procriação natural dos rebanhos. O essencial da renda do fazendeiro não provinha exclusivamente do sobretrabalho dos escassos e caros trabalhadores. Devia-se, em boa parte, à captação de trabalho excedente produzido em outras esferas da sociedade, obtida em razão do monopólio da terra (renda fundiária). A isso se devem as condições de vida e de trabalho relativamente distintas que os cativos conheciam no pastoreio e na charqueada, ainda que não devamos romantizar as condições pastoris de labuta, duras e perigosas. Nessa produção pastoril extensiva, de claro caráter pré-capitalista, não havia condições materiais objetivas de acumulação crescente de riquezas através de crescentes níveis de intensidade e duração do trabalho. A atividade pastoril era realizada por cavaleiros, isolados ou em pequenos grupos, em espaço geográfico semidesabitado. Apenas em inícios do século 20, a prá-

98

tica pastoril sulina introduziu-se na esfera de produção capitalista. Então, a renda do capital, criada com a inversão em pastagens artificiais, centros de manejo, inseminação artificial, etc., começou a se sobrepor à renda da terra. Até hoje, esse processo não se completou, mantendo-se em parte do Rio Grande a criação extensiva, através do pastoreio contínuo. O trabalhador escravizado custava relativamente caro, sobretudo considerando-se a baixa produtividade da fazenda pastoril. Em verdade, um cativo podia valer uma boiada! Ainda mais o cativo croulo ou habituado a um trabalho especializado e complexo, como o pastoreio extensivo. Se o cativo fugisse, causava prejuízo ao escravista. Era sempre perigoso entregarlhe um cavalo e enviá-lo a trabalhar sem vigilância. O africano não conhecia o pastoreio extensivo; muitos não conheciam sequer o cavalo. Tudo parecia afastar o cativo das práticas produtivas propriamente ditas. Em geral, o trabalho pastoril era menos penoso se comparado às duríssimas condições de trabalho nas fazendas açucareiras, mineração, charqueadas. Compreende-se por que havia homens livres habituados e dispostos a realizar essas tarefas, como peões. Em razão disso, a presença do cativo nas práticas pastoris foi negada pela historiografia tradicional, por motivos apologéticos, algumas vezes cabalmente. Para essa, a fazenda pastoril, célula de base da formação social sulina, teria desconhecido relações sociais escravistas. Na estância teriam dominado, sempre, relações de camaradagem entre os fazendeiros e os peões. Nessa leitura romantizada, o trabalho pastoril seria mais um jogo do que um esforço produtivo. No passado, o Rio Grande campeiro não teria conhecido a exploração e a luta de classes. Porém, o trabalhador feitorizado esteve presente em fazendas sulinas, sobretudo nas mais ricas, em praticamente todas as regiões do Rio Grande, como comprovam a documentação primária. Porém, a comprovação da existência de cativos nessas propriedades obriga-nos a definir seu estatuto no trabalho, ou seja, se o trabalhador escravizado era elemento subordinado, acessório e aleatório ou estrutural e sistêmico nessa forma de produção. Exige a explicação do paradoxo do uso de uma mão de obra cara em produção de baixa rentabilidade, na presença ao menos aparente de um trabalhador livre alternativo relativamente abundante, sobretudo no século 19.

Fazendas e chácaras Mesmo claramente dominante, a partir da constituição da produção charqueadora, a criação pastoril não foi a única prática produtiva rural no Sul. Ao lado das fazendas de rodeio tínhamos propriedades dedicadas à agricultura mercantil, sobretudo nas proximidades dos centros urbanos – as chácaras. Nelas o trabalhador escravizado assumia papel de destaque.

99

Apesar da dificuldade da associação criação pastoril à plantação, em época em que não existiam cercas de arame, muitas fazendas dedicavam-se à criação e à agricultura mercantis, realizada em porções de terras cercadas por matas, valos, cercas de plantas espinhosas, etc. Nessas propriedades, o trabalhador cativo era ocupado prioritariamente no trato da terra. Principalmente as mais ricas fazendas pastoris dominantes comportavam tarefas não pastoris que constituíam um semimonopólio servil. Era difícil que uma propriedade rural não possuísse plantação de subsistência – abóbora, batata-doce, cana-de-açúcar, feijão, mandioca, melancia, milho, moganga, moranga, trigo, etc. Produção que podia também ser encaminhada para o mercado. O beneficiamento dos cereais, a produção artesanal de charque, o preparo da farinha de mandioca e de milho para o consumo, a conservação dos caminhos e das estradas, o abastecimento em água e em lenha, o fabrico de tecidos rústicos, sapatos, velas de sebo, artefatos em couro, os trabalhos em madeira, a produção oleira, o serviço doméstico na sede eram atividades executadas habitualmente pelos cativos. A abertura de valas divisórias e as tradicionais cercas de pedra eram outras duras e infindáveis tarefas servis. Além de trabalhar nas atividades privilegiadamente servis, já que mais penosas, o cativo ocupava-se como campeiro, sobretudo nas fazendas mais extensas e mais ricas, onde era elemento constitutivo praticamente essencial. A documentação registra de forma positiva e abundante a existência e a difusão do “cativo campeiro”. No caso em que suas atividades se reduzissem sobretudo ao trabalho com os animais, as condições de existência desse trabalhador melhoravam relativamente em relação às dos trabalhadores assenzalados, como também registra a documentação histórica. As melhores condições relativas do trabalho pastoril explicariam por que no Planalto, após a Abolição, os cativos ocupados na agricultura desertaram das fazendas, permanecendo apenas os “negros campeiros, laçadores, peleadores e domadores”. Porém, não devemos superestimar as condições de existência do cativo campeiro. O trabalho nos campos, sob as intempéries, no trato de animais bravios, era duro e perigoso. A documentação primária mostra que os cativos campeiros fugiram das fazendas, em alguns casos maciçamente, quando as condições foram propícias. Conhecemos no mínimo tentativa insurreicional organizada precisamente por cativos campeiros em Piratini, em 1865. A utilização de cativo nas práticas pastoris propriamente ditas foi significativa, como comprova a documentação coligida. Apenas estudos mais detidos revelarão o equilíbrio entre a mão de obra escravizada e a livre nas fazendas pastoris, variável sobretudo entre as fazendas pequenas e grandes, pois o braço livre é registrado com menor precisão na documentação disponível. Em 1839, Nicolau Dreys ressaltou: “A estância é servida ordina-

100

riamente por um capataz, e por peões, debaixo da direção daquele; às vezes os peões são negros escravos, outras vezes e mais comumente são índios ou gaúchos assalariados: sua ocupação consiste em velar sobre os animais, contê-los nos limites da estância, reuni-los, guardá-los e apartá-los quando é mister.” O fato de os inventários post-mortem apontarem, sobretudo no caso de ricas fazendas, um número significativo de cativos não deve nos levar à subestimação da mão de obra livre nessa atividade. Os trabalhadores livres – agregados, capatazes, peões, etc. – empregados nas estâncias não eram arrolados nesses documentos. Não raro, a família do fazendeiro podia ser extensa, ocupando-se comumente os seus filhos homens nos trabalhos pastoris. Havia fazendas de menores dimensões exploradas pelos proprietários e seus familiares, sem condições de assalariar um peão ou comprar cativos, caso sobrevivesse apenas da criação animal. Porém, o cativo parece ter sido parte da mão de obra utilizada necessariamente nas tarefas pastoris nas grandes fazendas criatórias, em razão de condições históricas superadas apenas nos últimos momentos da escravidão. A produção assalariada exige quantidade excedente de trabalhadores juridicamente livres, impossibilitados de produzir seus meios de existência e, portanto, obrigados à produção de sobretrabalho pela venda de sua força de trabalho por valores irrisórios. Uma população de produtores livres não proprietários teria crescido nos pampas argentinos, uruguaios e, secundariamente, rio-grandenses, sobretudo após a crise crescente das Missões, a partir de meados do século 18. Com a invasão das Missões Orientais, em 1828, e transferência das populações guarani-missioneiras para o norte do Uruguai, essa dispersão se aceleraria. Nos anos 1830, Nicolau Dreys lembrava que o gaúcho, chegado das “margens do Rio da Prata”, empregara-se como “peão” “em todo o território banhado pelo Paraguai, Paraná e Uruguai, até o Oceano”, onde havia “estâncias ou charqueadas”. Segundo ele, o gaúcho formara-se pelo contato da “raça branca com os indígenas”; não teria “mulheres”, às quais mostrava “pouca atração” [sic], o que dificultaria sua “multiplicação”. Nicolau Dreys lembra que os excepcionais cavaleiros portavam o “xiripá”, o “cingidor”, o “poncho”, a “faca”, a “espada”, as “boleadeiras”, o “laço” e a “pistola” – quando podia comprar – e que fabricavam, eles mesmos, boa parte de seus meios de trabalho e indumentárias. Assinala que eram “nômades”, de disposições “taciturnas e apáticas”, e que passavam o tempo a “dançar”, “jogar, tocar ou escutar uma guitarra”, trabalhando apenas quando lhes faltava o dinheiro.

101

Autonomia social relativa Reproduzindo a visão dominante dos grandes proprietários, Nicolau Dreys pontifica que os gaúchos circulariam pelos campos abertos dos pampas argentinos, uruguaios e rio-grandenses, sem “chefes, sem leis, sem polícia”, respeitando apenas “a propriedade” dos seus empregadores. Efetivamente, categoria social juridicamente livre, detentora parcial dos seus instrumentos de trabalho e subsistência (cavalo, arreios, laço, etc.), os gaúchos locomoviam-se através de territórios não cercados, ainda que juridicamente apropriados, trabalhando apenas para obter os recursos monetários necessários à compra de bens e serviços que julgavam imprescindíveis. A liberdade jurídica e a relativa independência econômica do gaúcho na produção de seus meios de sobrevivência e a disponibilidade de campos abertos e gado selvagem, ainda que já apropriados, garantiam-lhe relativa autonomia diante dos fazendeiros-empregadores. Podiam abandonar o trabalho sem se expor à fome, quando quisessem, não sendo, portanto, obrigados a trabalhar, ininterruptamente, sob condições não queridas. Desgostoso com o empregador, estafado com o trabalho, aborrecido com a lide, o gaúcho pedia as contas, abandonava sua função de peão e perdia-se nos campos, onde podia abater semiclandestinamente o gado para se alimentar e para vender os couros aos bodegueiros das beiras dos caminhos ou itinerantes. Essa liberdade relativa tendia a acrescer os salários dos peões. O fazendeiro encontrava-se quase desarmado diante da semiliberdade da mão de obra livre, determinada pela não apropriação/controle efetivo dos campos, já que, se aumentasse o salário do peão, apenas aprofundaria a sua autonomia, como gaúcho. Para manter o peão na fazenda restava-lhe apenas como alternativa não coercitiva conceder terra para que fundasse família, o que ameaçava a posse latifundiária da terra e onerava a produção com o sustento de comunidade familiar de difícil incorporação ao trabalho. No Prata, desde que se impôs a falta de mão de obra, o gaúcho era obrigado a se empregar nas fazendas por meios extraeconômicos. Se não portasse consigo a “papeleta de conchabo”, ou seja, papel assinalando a fazenda onde trabalhava, era preso, enviado para o exército, obrigado a se assalariar pela força, etc. A escassez de mão de obra foi sempre um forte handicap negativo para as explorações pastoris platinas. A documentação oficial do século 19 relativa ao Rio Grande do Sul registra a existência de população livre pobre flutuante, apresentada como formada por terríveis criminosos, vagabundos, vagos, etc., refratários ao trabalho, que trilhavam sem controle o interior da província. Em 1830, Caetano Maria Lopes Gama, presidente da província

102

do Rio Grande do Sul, sugeria que os “homens criminosos”, “vadios”, “vagabundos”, “viciosos”, que pululavam na província, “sem ubi certo”, atentando contra a “segurança individual e a propriedade”, tivessem seus direitos cidadãos restringidos e fossem “remetidos para o serviço da Esquadra ou para algum outro de semelhante utilidade pública”, igual ao que era praticado no Prata. Na falta da coerção econômica, pelas razões assinaladas, procurava-se forçar, pela coerção física (jurídico-policial), o homem pobre a vender sua força de trabalho em condições que permitissem alta extração de sobretrabalho. Em palavras simples, o presidente da província sulina propunha a instituição de uma semisservidão que forçasse o gaúcho e o homem livre pobre a se empregarem nas fazendas pastoris, charqueadas e outras atividades, por salário e remuneração ínfima, como peões. Tentava-se, nos fatos, pôr fim ao seu modo de vida e produção livres, proposta que, no Rio Grande do Sul, caiu no vazio, precisamente em razão da existência da escravidão, instituição que garantia a submissão plena do produtor ao seu explorador. Nas condições históricas dadas, os criadores sulinos mais ricos constituíram núcleos centrais de trabalhadores escravizados que lhes garantiam mão de obra permanente, de forma dominante nas atividades mais pesadas, de forma associada ao trabalho livre, nas lides pastoris. Nas épocas de pico da produção pastoril – formação de rodeios, realização de rodeio, formação de tropas, etc. – os fazendeiros contratariam homens livres afeitos à prática pastoril como peões e serviam-se dos seus posteiros, moradores, agregados. Com o núcleo de trabalhadores escravizados, as fazendas jamais se despovoavam de trabalhadores e as exigências salariais dos homens livres eram deprimidas pela presença de cativos nas mesmas práticas produtivas.

O peão e o cativo Em 1832, o conde de Piratini pôs no papel as instruções ao capataz de sua enorme estância da Música, onde trabalhavam cativos e peões. No artigo 35, o latifundiário determinava que o “pião Américo”, que recebia um “sellário” mensal de 8$000, fosse despedido, “salvo se ele quiser ficar pelo de 6$4000” – uma redução salarial de 20%! Sem a certeza do trabalho de seus cativos, o conde pouco magnânimo não trataria com tanta desenvoltura seus peões. A documentação sugere, igualmente, um melhor tratamento dos cativos arrolados como campeiros. A descrição da liberdade gozada pelo gaúcho, que resultou em recriminações intermináveis das autoridades públicas no passado e em relatos históricos líricos no presente, teria entrado em crise a partir dos anos 1870, quando os campos começaram a ser cer-

103

cados, o que determinou aumento relativo da produtividade da economia pastoril e consequente desemprego de peões. Naqueles anos, o maior controle sobre as propriedades, a repressão ao abigeato, o desenvolvimento vegetativo da população livre pobre, a restrição do mercado de trabalho na produção pastoril, a destruição crescente da economia cabocla florestal no Planalto, etc. teriam contribuído para formação de um crescente exército rural de trabalhadores livres desempregados, obrigados a vender sua força de trabalho. Esse processo teria permitido a venda crescente de cativos das fazendas sulinas para a cafeicultura do Centro-Sul. Um “Relatório do Ministério da Agricultura” de 1884 anota o Rio Grande como o maior exportador de cativos entre 1874 e 1884, com nada menos do que 14.302 trabalhadores escravizados expatriados para os centros produtores de café! Toda uma realidade ainda não objeto de estudos monográficos sistemáticos. Desde sua formação, os rebanhos sulinos eram potenciais fontes alimentares. O problema era fazer chegar a carne animal aos mercados consumidores. O transporte de gado vivo, por terra e por mar, tinha limites. A não solução da dificuldade de transporte reduzia o valor do animal quase ao do seu couro, sebo e graxa. Não raro, o gado vivo valia menos que seu couro, em razão do custo para retirá-lo e prepará-lo. No Sul, por muito tempo, exportaram-se apenas gado em pé, couros e sebo, o que explica a importância das práticas agrícolas locais durante a segunda metade do século 18. A solução do problema foi a salgação das carnes, pois permitia que a proteína animal alcançasse o próprio exterior a baixo preço. A conservação das carnes através da salgação é hábito milenar. As comunidades nativas da América conservavam a carne secando-a ao sol – charqui. Portugueses e espanhóis praticavam tradicionalmente a salgação do peixe. No sul do Brasil, a carne salgada foi conhecida sob o nome americano de “charque”. No início do século 17, na América Meridional, tentou-se a valorização dos rebanhos por meio da exportação de carnes salgadas. Em 1698, no mínimo, os lusitanos da colônia de Sacramento exportaram experimentalmente charque. Antes da fundação oficial de Rio Grande, em 1737, charqueava-se artesanalmente no litoral sulino. Com o estabelecimento dos luso-brasileiros no Sul, desenvolveram-se a caça e, posteriormente, a criação dos animais por sua carne e couro. Em fins da ocupação espanhola, charqueava-se em Rio Pardo e Viamão. Em 1776, os lusitanos reconquistaram Rio Grande e seu porto. Em 1779-80, iniciou-se a prática charqueadora como atividade sistemática e significativa, favorecida pelas grandes secas nordestinas de 1777, 1779 e 1793, que dizimaram os rebanhos e golpearam a produção de carne seca da região. Em 1780, o lusitano José Pinto Martins, charqueador no Aracati, Ceará, mudou-se para o Sul e estabeleceu-se na região da futura São Francisco

104

de Paula – Pelotas – onde, salvo engano, levantou a primeira charqueada permanente de maior porte no Sul. A região encontrava-se estrategicamente localizada, próxima dos pampas e da saída ao mar. Durante os séculos 18 e 19, o charque constituiu um tradicional alimento, sobretudo da população pobre e servil. Nesses anos, a prática charqueadora foi essencial ao desenvolvimento da fazenda de criação sulina, sobretudo na Campanha e na fronteira. Com ela, as fazendas pastoris multiplicaram-se através dos pampas, dedicadas a uma produção essencialmente mercantil. O estabelecimento da prática charqueadora intensiva no Sul do Brasil viabilizou uma forte expansão da ocupação da Campanha, da fronteira e, a seguir, no norte da Banda Oriental, por fazendas pastoris, ensejada por importante movimento de concessão de sesmarias, a partir da reconquista de Rio Grande, em 1776. Esse processo se acelerou durante o governo do marquês de Alegrete (1814-1818). Com o expansionismo luso-brasileiro na Banda Oriental, a partir da crise do regime colonial espanhol nessa região, em 1810, a fome de terra para a produção de gados premitiu o maciço estabelecimento de fazendas pastoris escravistas nos territórios uruguaios ao norte do rio Negro por criadores sul-rio-grandenses. Esse movimento foi consolidado pela ocupação da Banda Oriental pela Coroa portuguesa e, a seguir, pelo Império (1816-1828). Tabela 1 - Propriedades territoriais no Rio Grande do Sul - 1785 Área (Ha) Menos de 20 De 20 a 50 De 50 a 100 De 100 a 200 De 200 a 500 De 500 a 1.000 De 1.000 a 5.000 De 5.000 a 10.000 De 10.000 a 20.000 Mais de 20.000 Totais

Nº propriedades 53 2 22 3 177 36 232 143 151 22 841

% 6,30 0,24 2,61 0,35 21,05 4,28 27,59 17,00 17,95 2,61 100

Fonte: SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul. Século XVIII. São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1984, p. 54, apud ZARTH, Paulo.

Charqueadas rudimentares A princípio, as instalações de José Pinto Martins eram rudimentares: varais, galpões cobertos de palha, alguns tachos de ferro para extrair a gordura dos ossos através da fervura com água. O saladeiro do lusitano possuía

105

vinte cativos trabalhando como campeiros, carneadores, graxeiros, salgadores, sebeiros, etc. Quatorze outros trabalhavam em atividades dependentes da charqueada. O arroio Pelotas nasce na serra dos Tapes e, após aproximadamente 60 km de curso, deságua no canal São Gonçalo. No século 19, nas margens do arroio concentrava-se o principal polo saladeiril sulino, com umas trinta charqueadas trabalhando lado a lado. O núcleo nasceu de um loteamento destinado à charqueação, o que sugere práticas saladeiris desenvolvidas anteriormente no Sul, talvez antes da reconquista de Rio Grande, negando, assim, o pioneirismo de José Pinto Martins. Até a crise final da escravidão no Brasil, a charqueada foi movida pelo braço escravizado. Em média, uns sessenta cativos trabalhavam nas charqueadas sulinas. Algumas charqueadas ultrapassavam os cem trabalhadores feitorizados. Em 1877, o saladeiro do rico barão de Butuí possuía 158 trabalhadores feitorizados. Impunha-se a íntima associação trabalho escravizado/charqueada. A produção do charque exigia trabalho intenso, pesado e prolongado. Nessa atividade, de organização claramente manufatureira, somente a baixa remuneração do produtor direto garantiria altos lucros. Após a expulsão, massacre e absorção das comunidades nativas, eram abundantes as terras livres. Como vimos, para o homem livre pobre era preferível viver como “semivagabundo” nos pampas – gaúcho – ou ocupar uma nesga de terra florestal – caboclo – a trabalhar sob tais condições. No Brasil e no Sul, não havia ainda população livre abundante desprovida totalmente dos meios de subsistência e, portanto, obrigada a trabalhar por salários aviltantes. Nas condições histórias da época, para o charqueador o trabalho compulsório não era a melhor solução; era, nos fatos, a única alternativa. As condições de trabalho em uma charqueada escravista eram duras. A produção charqueadora era atividade sazonal, realizada sobretudo de outubro a maio. Ela exigia dos trabalhadores escravizados jornadas de 16 ou mais horas, realizadas em boa parte à noite, segundo parece, para manter a temperatura das salmouras do tanque estável. No interregno da produção saladeiril, os cativos pelotenses trabalhariam na produção oleira e na construção civil, como revelaram as pesquisas da historiadora, arquiteta e urbanista Ester Gutierrez sobre as charqueadas pelotenses. Era comum que as charqueadas tivessem olarias e muitos charqueadores possuíam vários prédios urbanos na cidade. No inverno, quando se interrompiam os trabalhos nos saladeiros, cativos passavam a se ocupar das mais pesadas, duras e sujas funções da construção civil. Os cativos charqueadores trabalhavam sem cessar. Muitas vezes, sob o incentivo do “bacalhau” dos feitores – no Sul chamados de capatazes – e de pequenos goles de aguardente, o trabalhador escravizado literalmente desfalecia de cansaço e de sono em seu posto de trabalho. Então, era transportado para a senzala ou, nos casos mais graves, para o barracão pulguen-

106

to dos enfermos – “hospital”. Dormiria e se recomporia um pouco até que o capataz viesse chamá-lo para o trabalho. As duras condições de existência dos cativos charqueadores faziam deles as vítimas preferenciais das epidemias que varriam o Brasil. Em novembro de 1855, o vapor Imperatriz aportou em Rio Grande, vindo do Rio de Janeiro e de Santa Catarina. Trazia passageiros contagiados com a “cólera asiática”. Como a “quarentena” praticamente jamais era aplicada com rigor, a doença teria se difundido, inicialmente, nas charqueadas e, a seguir, nas cidades de Pelotas, Jaguarão e Rio Grande. Os cativos e a população pobre teriam sido os mais tocados. Em Pelotas, teriam falecido, apenas em dezembro, 62 pessoas. A população rural, mesmo escravizada, teria ficado à margem desse flagelo, como registra a investigação do historiador Mateus Couto sobre a população escravizada em Pelotas e Herval. Os primeiros saladeiros trabalhavam com instalações simples: os animais eram abatidos nos campos; as carnes eram guardadas em telheiros rudimentares; mulas bruaqueiras transportavam o charque; apenas alguns cativos se esforçavam na produção, etc. Portanto, não eram necessários grandes capitais para levantar uma improvisada charqueada, à exceção dos cativos. As instalações rudimentares da charqueada de José Pinto Martins constituíram verdadeiro avanço da técnica produtiva em relação a essa exploração primitiva. Sobretudo a partir de meados do século 19, a produção charqueadora refinou-se com a introdução da máquina a vapor para a extração da gordura animal, a generalização dos galpões em material cobertos de telhas, canchas em cimento alisado, pequenas estradas de ferro ligando os galpões das instalações ao arroio Pelotas, etc.

Avanço tecnológico Nos últimos anos da escravidão, as unidades charqueadoras mais aperfeiçoadas constituíam verdadeiras manufaturas escravistas. Nessa época, Pelotas, centro da produção saladeiril, possuía empresas extremamente organizadas e aparelhadas. As mangueiras e os bretes comunicavam-se racionalmente com as canchas, cimentadas e cobertas, onde os animais eram esfolados e despedaçados. As bestas, golpeadas nos bretes pelos “desnucadores”, caíam sobre “zorras” – vagonetes correndo sobre trilhos de ferro – que as levavam até as canchas. Outras instalações essenciais das charqueadas eram os galpões em material para trabalhar as carnes, para armazenar o sal e as “pilhas” de couro e de charque e os tanques de salmoura. Máquinas a vapor operavam nas graxeiras, que se encontravam a alguma distância do corpo central da charqueada.

107

Nessas instalações pouco se perdia dos animais. Charque, couro, graxa, sebo, guampas, crina, cinza, etc. eram exportados para outros pontos do Brasil e para o exterior, através do porto de Rio Grande. O couro era uma importante matéria-prima utilizada pelas manufaturas e indústrias europeias e estadunidenses. Em diversas épocas do Rio Grande colonial e imperial, com maior ou menor sucesso, charqueadas foram levantadas no rio Jacuí-Ibicuí, nas lagoas dos Patos e Mirim, em Porto Alegre, em Rio Grande, em Jaguarão, em Cachoeira, no canal São Gonçalo, ao longo do rio Jacuí, etc. Em inícios do século 19, Porto Alegre exportava grandes quantidades de charque, couros de boi, sebo e chifres. Em virtude de sua situação privilegiada em relação à localização dos rebanhos rio-grandenses e uruguaios, ao porto de Rio Grande e às vias fluviais, o arroio Pelotas tornou-se o grande centro charqueador sulino. Consequentemente, um grande polo escravista. Na cidade, e sobretudo na margem direita do arroio Pelotas, concentravamse milhares de cativos. Pelo porto de Rio Grande passavam, anualmente, embarcações carregadas de trabalhadores escravizados destinados em boa parte às charqueadas pelotenses. Em 1884, quando a maioria dos cativos sulinos foi libertada, em geral sob a obrigação de trabalhar gratuitamente de um a sete anos, a cidade e arredores possuíam cinco mil cativos. Dois mil trabalhavam nas charqueadas. Charque queria dizer cativo assenzalado, trabalhando duro e vivendo mal. Durante mais de cem anos, a classe charqueadora viveu sobressaltada com a possibilidade do ato de rebeldia individual e coletivo do trabalhador feitorizado. O desamor ao trabalho, a sabotagem da produção, a fuga, o aquilombamento, a insurreição, o ato de sangue contra o capataz e o escravista fizeram parte de um cotidiano próprio à produção escravista, sobretudo assenzalada.

108

7 Escravidão e luta de classes no Rio Grande do Sul Entre as formas de oposição do cativo à escravidão – fuga, justiçamento, quilombos, revoltas, etc. –, a oposição ao trabalho foi a que mais profundamente determinou a escravidão. Nenhuma ação escravista se sobrepôs efetivamente ao profundo desamor do cativo às tarefas produtivas feitorizadas – desatenção, desinteresse, “corpo mole”, sabotagem do trabalho, etc. Tal realidade deu origem à visão das classes proprietárias do “negro preguiçoso e irresponsável”. O mercenário alemão Carl Seidler, que chegou ao Rio Grande do Sul como membro das forças armadas de Pedro I, em 1825, observou: “O negro só trabalha quando instigado pelo medo a seu dono e a seu chicote; logo que escapa das vistas desses dois potentados [...] deita-se imediatamente a dormir [...].” O cativo trabalhava mal porque era um trabalhador escravizado, não porque era negro. O “negro preguiçoso e boçal” do engenho tornava-se o quilombola industrioso do mocambo. O sistema escravista aniquilava tendencialmente a iniciativa, o interesse e as forças do produtor direto. O trabalhador escravizado podia até mesmo produzir mais do que um homem livre, mas sempre sob a ameaça do castigo físico e estreitamente vigiado, o que onerava a produção. Porém, dificilmente produziria melhor. São compreensíveis as razões do desinteresse do cativo pelo trabalho. Ele labutava a contragosto já que, de seu ponto de vista, não recebia remuneração alguma. Considerava como tempo de trabalho dedicado ao escravizador mesmo o período de trabalho em que produziam os parcos valores devolvidos como alimentação, vestuário, etc. Ao proprietário negreiro era interessante “consumir” o mais rapidamente possível um trabalhador escravizado na produção e substituí-lo por um cativo novo, jovem, saudável e mais maleável. Comumente, o cativo despertava cedo, trabalhava todo o dia e, durante parte da noite, cumpria o “serão”. Sem controle da duração da jornada de trabalho, o produtor feitorizado protegia sua sobrevivência biológica diminuindo ao máximo a intensidade do trabalho. A sabotagem dos instrumentos e das instalações produtivas, a encenação de enfermidade, um autoferimento, etc. serviam para interromper uma atividade exaustiva, mesmo por algumas poucas horas e à custa de um castigo. Os cenários quase idílicos sobre a escravidão construídos pela historiografia neopatriarcalista contemporânea, de cativos impondo suas razões por meio de negociações com os escravizadores, reproduzem habitualmente as visões dos escravistas sobre o cativeiro e se apoiam em generalizações abusivas e romanceadas de situações singulares e limites.

109

Tratado e trabalhando como um bruto, comumente o cativo brutalizava-se. O baixo nível cultural do trabalhador escravizado limitava o próprio desenvolvimento da produção escravista, que sempre se apoiou em técnicas e instrumentos rústicos. São igualmente ideológicas as identificações atuais entre o trabalho livre e escravizado. As condições escravistas de produção exigiam altíssima extração de trabalho excedente do cativo e era impossível ao escravizador permitir que a massa trabalhadora servil se elevasse intelectualmente. Uma população escravizada culturalmente homogênea e adaptada à nova realidade era perigosa e explosiva. Uma elite de cativos produtivos com nível cultural desenvolvido criaria problemas à ordem negreira. As duras condições de vida e de trabalho sob o cativeiro determinavam taxas de mortalidade elevadas. Até 1850, as baixas nas filas dos trabalhadores escravizados eram supridas, sobretudo, pelo tráfico transatlântico de cativos, o que exigia incessante treinamento dos trabalhadores apenas chegados da África. Em razão dessas de outras características do escravismo colonial, as tentativas de motivar, de remunerar ou de elevar o nível da produtividade do trabalho escravizado foram limitadas e incompletas, ainda que sejam fundamentais à compreensão do regime servil e de sua muito forte coesão social. Durante toda a vigência da escravidão colonial, a coerção física foi a principal responsável pela continuidade da ordem social e da produção de bens pelo trabalhador escravizado. Sem o tronco, o bacalhau, a palmatória e o patíbulo, a escravidão não subsistiria.

Necessária vigilância A produção escravista só era possível sob determinadas condições e não se desenvolvia além de certos limites. O trabalhador assenzalado necessitava ser enquadrado por feitores que organizavam e animavam o trabalho. Os feitores – homens livres ou cativos privilegiados – eram em número superior ao necessário para a coordenação técnica da produção. A vigilância dos trabalhadores devia continuar mesmo quando se interrompia a produção. Tudo isso onerava a produção escravista. Mesmo vigiado, o trabalho do cativo era, em geral, menos produtivo, se comparado ao de um trabalhador livre. Em 1820, Auguste de Saint-Hilaire, cientista e observador arguto e metódico, julgava que um trabalhador francês livre faria sozinho, num pomar, o trabalho que ocupava quatro cativos. Ele agregou que, mesmo amedrontado, o trabalhador escravizado labutava mal e lentamente. O trabalho escravizado inibia tendencialmente o desenvolvimento das técnicas, máquinas e instrumentos. Numa época em que as inovações tecnológicas surgiam sobretudo do cotidiano produtivo, não de investigações

110

e trabalhos científicos, ao homem instruído e interessado no resultado da produção era desonroso trabalhar com as mãos. Mesmo os avanços técnicos oriundos do “estrangeiro” eram incorporados lenta e imperfeitamente ao cotidiano produtivo escravista colonial. Os arados trazidos pelos colonos açorianos no Sul jamais foram realmente adotados pela produção escravista. Inculto, desinteressado e oposto ao trabalho, o cativo estava apto apenas ao manejo de máquinas robustas e simples. A imobilização, pelo escravista, de capitais na compra do trabalhador dificultava também a aquisição de instrumentos refinados e caros. Os charqueadores pelotenses eram obrigados a contratar homens livres – brancos e negros – para manejar as máquinas que requeriam maior atenção e habilidade. Os instrumentos agrícolas de base da escravidão foram pesados e robustos machados e enxadas. Louis Couty (1854-1884), médico e cientista francês que, em fins dos anos 1870, estudou as charqueadas rio-grandenses e os saladeiros do Prata, acreditava que a menor competitividade do charque sulino em relação ao platino devia-se ao fato de o trabalhador escravizado ser produtor inferior ao trabalhador livre. O cativo tinha também de ser mantido pelo escravista mesmo durante o interregno produtivo – entressafra, inverno, etc. – quando, em geral, tendia a ser desviado para outras atividades, mais ou menos rentáveis, caso fosse possível. A oposição do cativo ao trabalho escravizado inibiu tendencialmente o desenvolvimento dos instrumentos e técnicas. Nos séculos 16, 17 e 18, essa resistência surda não questionou a ordem escravista, pois não havia alternativa ao trabalhador escravizado, em razão da inexistência maciça de operários livres totalmente desprovidos de meios de subsistência e, portanto, obrigados a trabalhar por salários irrisórios. Mesmo com baixa produtividade/homem, a produção escravista alcançava alta rentabilidade, explorando duramente o trabalhador não raro até a morte. A partir de meados do século 19, o escravismo começou a inibir o desenvolvimento da produção. No Rio Grande do Sul, já na segunda metade do oitocentos, o trabalho escravizado dificultava a evolução técnico-produtiva nas charqueadas, nos meios de transporte, nas obras públicas, etc. Mesmo assim, garantiu a expansão da produção, em geral, e das práticas pastoril, em particular, superando a escassez crônica de mão de obra conhecida no Prata. A resistência ao trabalho, associada a outros fatores, levou o escravismo ao esgotamento e contribuiu para a possibilidade da superação, ainda que tardia, da economia feitorizada por formas superiores de produção baseadas no braço livre. Como veremos oportunamente, mais do que na escravidão, o dinamismo regional sulino apoiou-se, sobretudo, no trabalho colonial-camponês e na acumulação que propiciou. O suicídio, o justiçamento, a fuga, os quilombos, as rebeliões foram outras importantes formas de resistência do trabalhador escravizado, que

111

fizeram parte do dia a dia do escravismo e preocuparam os escravizadores sulinos. Em números absolutos, eram poucos os casos de suicídio de cativos, como de homens livres. Porém, eram e são importantes depoimentos sobre as condições gerais da existência no cativeiro, que explicam comumente as razões subjacentes ao ato autocida, mesmo quando o cativo não sabia explicar por que tentara o autocídio. Um cativo podia se suicidar por temer ser vendido, castigado, separado de amigos. Ele se matava após atentar contra o escravista ou o capataz, por medo do castigo brutal, ou em razão da negativa do proprietário de alforriálo, mesmo sob pagamento. Mesmo quando fracassava, o suicídio prejudicava o escravista, pois o autocida perdia valor de venda. Um cativo suicida, desesperado pelo excesso de trabalho, podia ser imitado pelos companheiros. Assim, a eventualidade do suicídio servia como trava a uma crescente exploração do trabalhador, ainda que provisória. Crenças religiosas levavam o cativo, sobretudo o africano, ao suicídio. Os poucos estudos específicos sobre o suicídio de trabalhadores escravizados no Brasil tropeçam em importantes dificuldades. São pouco confiáveis os levantamentos estatísticos contemporâneos à escravidão que se referem principalmente ao século 19. Quanto ao suicídio, a situação é ainda mais crítica. Por razões morais, sociais e religiosas, o autocídio entre os homens livres era comumente apresentado como acidente ou morte natural. Na Colônia e no Império, negava-se ao suicida o repouso em camposanto. Comumente, o autocídio de um cativo era anunciado como resultado de um acidente ou enfermidade, pois a ação depunha contra o proprietário. Acreditava-se que um negro de um bom branco não atentaria contra a vida. Assassinatos de cativos eram apresentados como autocídios. Estudos mais detidos do autocídio servil desvelarão aspectos ainda obscuros do escravismo. Teria sido o suicídio mais comum entre os trabalhadores escravizados urbanos? Se essa proposta é correta, qual seria a sua razão? Teriam os africanos procurado a morte mais frequentemente do que os crioulos? Tal preferência se deveria a crenças religiosas e a uma maior exploração e isolamento social e cultural? Esses estudos permitiriam também um melhor conhecimento de registros de movimentos servis que terminaram em suicídio. Os autocídios de cativos eram noticiados comumente pelos jornais, sobretudo se ocorriam nas cidades onde os periódicos eram editados, o que denota a preocupação dos escravizadores com tais atos. Algumas autoeliminações eram divulgadas em outras províncias. Em 16 de janeiro de 1866, o jornal Echo do Sul, de Rio Grande, noticiou que, em Porto Alegre, um cativo suicidara-se enforcando-se no “quintal da casa de seu primeiro senhor [...]”. Talvez recriminação velada por venda não desejada. Algumas vezes, avançava-se nas prováveis razões do ato. Na mesma cidade, um cativo doméstico

112

enfurecido tentara ferir sua escravizadora, uma preta e uma criança. “Não podendo executar o seu nefasto propósito [...] o monstro [sic] suicidou-se com uma facada no peito e um golpe fundo no pescoço.” Também em Rio Grande, dias antes, uma cativa lançara-se ao poço da residência do escravista. Era comum os relatórios e falas provinciais registrarem laconicamente esses sucessos. Sobretudo os papéis judiciários do Império referem-se ao autocídio de cativos, já que, quando morria um homem livre ou escravizado, a lei determinava que se estabelecesse o “auto de exame de corpo de delito”. Em 1836, um processo informa que naquele ano Jacinta se jogara, com seus dois filhos, Ana e Gabriel, num poço da residência de seu escravizador. Tendo sobrevivido, a infeliz respondeu diante da lei escravista pela morte dos filhos. A historiadora Ana Regina Simão encontrou referências a seis tentativas de autocídio servil nos processos crimes de 1832 a 1849 de Pelotas. Um dos processos informa que, em dezembro de 1844, três cativos, João, Manuel e Pedro, consignados pelo proprietário a um Bernardo José de Almeida, tentaram suicídio coletivo. Três dos seis suicidas, todos homens, encontraram a morte. Em cinco casos, os suicidas utilizaram “instrumento cortante” e, em um, “cordas”. Os atos foram praticados preferencialmente na casa dos escravizadores. Os proprietários não gostavam que seus bens fossem ameaçados. Comumente, os suicidas fracassados eram castigados. No livro de registro de 1857-9 da cadeia pública de Rio Grande encontra-se anotado ingresso de um cativo que deu entrada no estabelecimento para ser punido por ter cometido “tentativa de suicídio”.

A mão que fere A escravidão prendia o trabalhador escravizado ao seu escravizador. A riqueza do escravista dependia do ritmo, da duração e da qualidade do trabalho do cativo, feitorizado rígida e permanentemente pelo seu proprietário ou por um preposto. Na residência urbana e rural, o cativo doméstico – apesar de algumas vezes relativamente privilegiado – vivia dia e noite sob os olhos e as mãos do escravizador. Em geral, o cotidiano do cativo dependia do arbítrio do escravista, que exigia trabalho, respeito, submissão. A sociedade escravista almejava um escravo que se pensasse como propriedade do seu senhor ou vivesse neutralizado pelo hábito da escravidão e pelo medo do castigo. Na medida do possível, os escravistas controlavam os mais distintos aspectos da vida do trabalhador escravizado. O proprietário e a sociedade escravista procuravam enquadrar estritamente o trabalho, a religião, o lazer, o treinamento servil, etc., de forma direta e indireta. No século 19, as posturas municipais eram muito precisas quanto ao comportamento dos ca-

113

tivos nos centro urbanos e às punições em que incorriam ao desobedecerem às determinações. Os cativos lutavam para conquistar e manter espaços de autonomia, mesmo relativos. No contexto do baixo desenvolvimento das forças produtivas e do alto nível de exploração do cativo, as relações sociais entre escravizador e escravizado eram tendencial e dominantemente violentas. Em outras palavras, o escravizador era necessariamente “ruim”, não podendo, jamais, ser “bom”, sem comprometer a produção e a ordem instituída. A violência explícita ou latente era imprescindível ao funcionamento do sistema escravista. A lei e a moral dominantes naturalizavam a tortura do trabalhador, um direito e um dever privado dos escravistas. Sobretudo após a Independência, em 1822, o Estado procurou regular o castigo do escravizado para coibir excessos individuais que pusessem em perigo o bom funcionamento da instituição. A Igreja exigia que os cativos fossem castigados, com prudência. No início do século 18, o padre Benci escrevia: “Para trazer bem domados e disciplinados os escravos, é necessário que o senhor lhes não falte com o castigo, quando eles se desmandam e fazem por onde o merecerem”. O escravizado respondia comumente de forma violenta às condições de vida e de trabalho servis. Essa violência emergia no trabalho, nas relações com seus companheiros de cativeiro, na forma como ele próprio se autocompreendia. Podia explodir em formas violentas de oposição e luta contra os escravizadores e contra a escravidão – a revolta, a sublevação, a fuga, etc. A violência do cativo resultava em atos individuais contra o escravizador, sua família, seus capatazes e prepostos. A família escravista não podia jamais esquecer que coabitava com o seu “inimigo doméstico”, que o homem brutalizado podia, num ato explosivo ou calculado, tornar-se um “bruto assassino”. A sociedade escravista vivia sob o temor da ira do cativo, realidade que habita ainda, no medo do negro criminoso, o imaginário dominante no Brasil atual. Nos anos 1860, o poeta Castro Alves registrou o medo das classes proprietárias do Brasil da vingança sangrenta do trabalhador escravizado no poema “Bandido negro”, no qual defendeu, em plena vigência da escravidão, o caráter político e social do justiçamento dos escravistas por seus trabalhadores: “Somos nós, meu senhor, mas não tremas/ Nós quebramos as nossas algemas/ Pra pedir-te as esposas ou mães./ Este é o filho do ancião que mataste./ Este – irmão da mulher que manchaste.../ Oh! não tremas, senhor, são teus cães.” Em plena vigência da ordem escravista, o jovem baiano elevava a resistência servil, vista como ato criminoso, a ação socialmente positiva e libertadora. Nos primeiros tempos da escravidão, o escravista martirizava com requintes o cativo que atentava contra os responsáveis de sua desdita. Entretanto, o Estado procurou, desde sempre, reservar-se o direito sobre a vida

114

do trabalhador escravizado. A pena de morte era comumente aplicada aos trabalhadores que atentavam mortalmente ou feriam com gravidade escravistas e feitores. No Brasil e no Rio Grande do Sul, era comum um cativo ser condenado a mil ou mais chibatadas, o que podia constituir uma pena de morte ministrada em doses homeopáticas. As chicotadas eram aplicadas em sessões diárias de, em geral, cinquenta golpes, à exceção do domingo, dia santificado, no qual o algoz não podia trabalhar, sem incorrer em pecado maior. A prática permitia que as feridas fossem reabertas durante as sucessivas semanas do castigo.

Diante da igreja das Dores Em Porto Alegre, inicialmente, os cativos eram torturados na rua da Praia – atual rua dos Andradas – junto ao Pelourinho, erguido em 1810 diante da igreja das Dores. Um viajante francês referiu-se a essa tortura pública: “[...] cada dia, das sete às oito horas da manhã, pode-se assistir, em Porto Alegre, a um drama sangrento. Ponto de reunião – a praia – ao lado do Arsenal, defronte a uma Igreja, diante do instrumento de um divino legislador, vereis uma coluna erguida num maciço de alvenaria e ao pé... uma massa informe [...] é um negro!” Em 1847, ao serem proibidos os castigos públicos, foram transferidos para a Casa de Correção, na ponta do Arsenal. As execuções eram também feitas junto ao Pelourinho. Daí a denominação popular do local: Largo da Forca. A forca teria sido também levantada na praia do Arsenal, futura praça da Harmonia, hoje Brigadeiro Sampaio. O Código Criminal de 1830 determinava que as execuções não fossem feitas “na véspera de domingo, dia santo ou de festa nacional”, e que o condenado fosse “conduzido pelas ruas mais públicas até a forca”. Durante o trajeto, o “porteiro” lia “em voz alta” a sentença, nas esquinas das ruas e no local do patíbulo. Réus não condenados à pena máxima eram obrigados a assistir à execução de cúmplices e a dar três voltas em torno do patíbulo. O medo da morte ou do martírio não deteve o braço do cativo desesperado. Em 1844, o presidente da província de Minas Gerais escrevia em seu relatório, meses após ter assumido o governo, que já enviara ordens para a execução de treze cativos acusados de terem matado escravistas ou seus familiares. A documentação policial e judiciária e os jornais do Império são prolixos no registro de tais fatos. Segundo o relatório provincial de 1864, em Porto Alegre dois padeiros lusitanos foram “barbaramente [sic] assassinados a golpe de achas de lenha” por três trabalhadores escravizados, que fugiram após o atentado. O mesmo relatório registra que, em 1863, num ermo de Rio Pardo, um jovem cativo de dezesseis anos matara sua exploradora. Em fevereiro de 1866, o

115

jornal Echo do Sul, de Rio Grande, registrou a condenação à morte do preto Machado por ter justiçado o capataz da sua charqueada. Em 1867, Maria foi julgada, na capital, pelo afogamento de filhos de seus proprietários. Estudando as charqueadas pelotenses, o historiador Euzébio Assumpção arrolou, no período 1832-88, 55 justiçamentos e doze tentativas, perpetrados por cativos sobretudo contra feitores nas charqueadas pelotenses. Portanto, mais de uma ocorrência por ano no período, se considerarmos o tempo em que as charqueadas não funcionaram, durante a Guerra Farroupilha (1835-1845). O historiador Sérgio da Costa Franco realizou pioneiro levantamento dos processos referentes à Junta Criminal que funcionou de 1818 a 1831 em Porto Alegre, com alçada sobre a capitania. Dos 115 processos atinentes a cativos analisados, 87 tratavam de homicídios, 27 na pessoa do amo ou de seus familiares e oito na de capatazes. Dos acusados, 56 eram crioulos, 55 africanos e quatro de nacionalidade indeterminada. Apenas doze eram mulheres, das quais nenhuma foi condenada à morte. De 1821 a 1829, doze réus foram condenados à morte e executados: nove cativos, um liberto e dois homens livres brancos. Sérgio da Costa Franco lembra que, em relação à diminuta população do Rio Grande do Sul da época, esses números denunciam um “clima de tensão social além da expectativa”.

Deus é grande, o mato é maior! A fuga era a maneira mais simples, segura e rápida de o cativo libertarse. Durante a escravidão, o Brasil conheceu importante população de escravizados fugidos. Sabemos de fugas de cativos da colônia do Sacramento, fundada em 1680, para os pampas do interior. Em 1738, meses após a fundação de Rio Grande, registra-se a fuga de um cativo. Trabalhadores escravizados ou libertados sob a condição de prestação gratuita de serviços fugiam no Sul momentos antes da Abolição, em maio de 1888. Segundo a época, a região e a conjuntura política variavam os destinos dos fujões. Alguns procuravam serras e matas para se aquilombar; outros simplesmente desapareciam entre a população livre que desbravava os sertões. Quando as aglomerações urbanas cresceram, fujões passavam por citadinos livres de “cor”. Alguns cativos punham-se sob a proteção de um proprietário. Sem nada ter pago pelo trabalhador, ele seria menos exigente. “Acoutar” um fujão constituía delito. No Rio Grande, desde o período colonial, os trabalhadores escravizados fugiam para além das fronteiras do Brasil. Em geral, o cativo que alcançasse os territórios castelhanos era ali recebido como homem livre. Após a Independência, em 1822, tratados contrários a esse princípio foram impostos

116

pela diplomacia imperial, sobretudo no que se refere ao Uruguai. Na Banda Oriental, em Corrientes, Entre Rios, etc., o ex-cativo podia se empregar sobretudo nas fazendas da região. No Sul, como em outras regiões fronteiriças do Brasil, a possibilidade de se expatriar teria diminuído a importância de outras formas de resistência. No Império, os escravistas noticiavam nos jornais a fuga, as características físicas e a gratificação oferecida pela captura do fujão. Nos anúncios sulinos, comumente se lia que o cativo teria como “destino a fronteira”. Segundo o Diário de Rio Grande, de 9 de março de 1867, Joaquina foi presa em Jaguarão, “ao passar para o Estado Oriental”. Não há, porém, que extremar esta raia como garantia de salvação – eram muito importantes as estâncias escravistas de rio-grandenses, nos territórios setentrionais do Uruguai. Já em 1821, no diário de sua viagem ao Rio Grande do Sul e ao Uruguai, o Saint-Hilaire apontava entre as justificativas do governo imperial para a guerra contra José Artigas (1816-1820) a proteção concedida por ele aos cativos fugidos do Brasil. O naturalista francês assinalava que os ex-cativos rio-grandenses eram tidos como os mais valentes soldados de Artigas, o mais popular dos caudilhos platinos, que prometeu e concedeu a liberdade os cativos e terra para os deserdados. Os escravistas sulinos organizavam razias no Uruguai para sequestrar antigos cativos ali refugiados ou negros livres. As fugas causavam prejuízos aos escravizadores. Alguns fujões não eram recapturados. Outros eram detidos meses e anos após a fuga. Mesmo quando aprisionados, os fujões causavam danos. No mínimo desde 1574, os escravistas eram obrigados a gratificar os captores e a pagar os gastos com os cativos aprisionados. O fato de todo cativo dever ser vigiado para que não escapasse pesava duramente no bolso do escravizador. Um fujão recapturado tinha seu valor de venda depreciado. Os homens-do-mato dedicaram-se à caça ao trabalhador escravizado fugido, ofício que foi regularizado nos anos 1720. Salvo engano, em junho de 1773 foi nomeado o primeiro capitão-domato do Rio Grande. Em março de 1798, a Câmara de Porto Alegre fez o mesmo para o distrito da vila, determinando as rondas que o recém-nomeado deveria fazer à noite. Como vimos, as primeiras fugas de cativos sulinos seriam bastante anteriores. Em A cidade de Pelotas, Fernando Luiz Osório relata a entrada, “gloriosa e triunfal”, dos capitães-do-mato na cidade, “a cavalo, trazendo a cabresto o negro fugido, mãos atadas para as costas e por um maneador ou corda ao pescoço, preso à argola da barrigueira dos arreios”. O último homem-do-mato de Pelotas guardaria na parede de sua residência o cartaz que servira para oferecer seus serviços: “Aqui mora o senhor Damázio de [...]. Empregado público do governo. Capitão-do-mato, hábil para descobrir negros fugidos, de dia e de noite, sempre às ordens.”

117

Caçador de homens O caçador do trabalhador fugido era geralmente um mulato ou um liberto ou, mais raramente, um cativo. Armado e auxiliado por cães, era pago distintamente se o fujão fosse capturado em uma cidade distante de sua residência ou em um quilombo. Para um homem pobre – branco, mulato ou preto –, prender um fujão era uma quase loteria. Tal fato unia a população livre contra o cativo. O fujão preso era duramente castigado, para que não repetisse a aventura e para servir de exemplo. No momento em que nomeou seu capitão-do-mato, a vereança, de Porto Alegre mandou aprontar ferro para queimar com “F” de “fujão” os cativos capturados em quilombos e providenciou o tronco para executar os castigos. Costumava-se castigar os fujões com o porte de correntes, gargalheiras, calcetes, etc. O tronco e o “bacalhau” eram aplicados sem parcimônia. Segundo parece, mesmo quando presos, os cativos portavam ferros. O castigo podia ser a morte, sobretudo quando o fujão era responsável por crimes ainda mais graves. Em setembro de 1821, Antônio, benguela, fugiu após matar o capataz que queria obrigá-lo a açoitar um companheiro. Ele, o capataz e outros cativos cortavam lenha nas margens do rio Gravataí, nas cercanias de Porto Alegre. No processo instaurado sobre essa morte, encontra-se anexado o “auto de reconhecimento” da cabeça do africano que um capitão-do-mato trouxera de um assalto a um quilombo. O cativo fugia apesar da vigilância e dos castigos que esperavam os capturados. Os motivos das fugas seriam muitos. Cativos fugiam para não serem vendidos ou porque queriam ser vendidos. Fugiam do trabalho penoso, da pouca comida, dos castigos constantes. Fugia-se de uma vida penosa e medíocre. Na Colônia e no Império, existiu uma significativa população flutuante de trabalhadores fugidos ou presos à espera de serem devolvidos. Nos jornais estão estampados anúncios sobre a fuga de jovens, crianças e velhos, de ambos os sexos, ainda que os fujões, em sua maioria, fossem homens, em geral na plenitude de suas forças. Em 1849, 57 escravistas declararam a perda, nos anos anteriores, de 134 cativos em Rio Pardo, ou seja, 5% da população servil municipal. Segundo o levantamento de Rafael Copstein no livro de Entrada e saída de escravos em geral fugidos e que não respondem por crime algum, em média, 112 cativos haveriam fugido e sido presos, anualmente, na cadeia pública de Rio Grande nos anos 1856 a 1859, ou seja, 7% da população escravizada do município. No último cálculo não estão computados os cativos que fugiram e não foram capturados; no primeiro, não estão incluídos os que foram capturados. A historiadora Rita Gattiboni analisou os anúncios de fuga individuais de 74 cativos em Rio Grande nos anos 1859 e 1861-67. Dos fujões, 77% eram homens, que escaparam, em grande número, dos barcos do porto. 40% dos

118

fugidos tinham de 12 a 35 anos. Nos fujões havia equilíbrio entre africanos e crioulos. Estima-se que até 20% dos soldados enviados, em 1865-70, para lutar e morrer no Paraguai fossem cativos alforriados sobretudo para substituir homens livres convocados. O Rio Grande do Sul foi a província que contribuiu com maior número de soldados durante esse sangrento conflito, durante o qual cativos fugiram para assentar praça no Exército e na Marinha. Muito mais numerosos seriam os libertos e homens livres pobres, comumente negros e mestiços, que escapavam antes e após a convocação. Em levantamento de mais de dezesseis mil pequenos anúncios de compra, venda, aluguel e fuga de cativos de 1829 a 1884, o arquiteto e historiador Günter Weimer definiu como perfil geral do fujão no Sul os cativos adultos de sexo masculino. Os anúncios teriam revelado um bom número de crianças entre os fugitivos e um significativo aumento do número de fugas durante a Guerra Farroupilha (1835-45). Segundo parece, durante esse confronto as fazendas despovoaram-se de cativos, que teriam fugido para o Uruguai e para as matas, sobretudo. Levantamento após a Guerra Farroupilha, estudado pelo historiador Silnei Petiz, apontaria uns novecentos cativos pretensamente refugiados no Uruguai durante aquele confronto. Alguns cativos fugiam apenas com a roupa do corpo; outros levavam o que podiam. Muitas das fugas não tinham destino certo e eram fruto da ocasião ou de ato impensado. Não raro esmagados pela vida sob a escravidão, os cativos não possuíam, no geral, condições psicológicas, culturais e materiais para planejar planos elaborados. Porém, há também casos registrados de fugas planejadas em detalhes. Em 1887, quando a escravidão entrava em agonia, charqueadores pelotenses enviavam ainda partidas de capitães-demato à serra dos Tapes, com ordem de prender, atar, açoitar e – se houvesse resistência – matar a tiros trabalhadores escapados das charqueadas. Muitos dos capturados e castigados eram ex-cativos, alforriados sob a condição de prestarem, por alguns anos, gratuitamente, serviços aos seus ex-proprietários, e alguns outros, homens maiores de sessenta anos. Portanto, homens livres que, legalmente, não poderiam ser castigados fisicamente.

Quilombos no Rio Grande do Sul O quilombo – comunidade de trabalhadores escravizados fugidos estabelecidos em um ermo qualquer – foi a mais segura maneira de um cativo se libertar da escravidão. Sob diversos nomes, temos registros de comunidades quilombolas em quase todas as regiões que conheceram a escravidão colonial. Os cativos fugiam das plantações, fazendas, charqueadas, etc. para se estabelecer em local de difícil acesso ou afastado do mundo escravista, onde fundavam comunidades de produtores independentes ou associados. As atividades econômicas desses grupos eram diversas e determinadas sobretudo pelo contexto geoeconômico da região.

119

Nas Minas Gerais, quilombos dedicavam-se à cata clandestina de ouro e de diamantes. Na Amazônia, comunidades de quilombolas ocupavam-se do extrativismo de ervas da floresta. O produto dessas práticas era trocado com comerciantes e regatões que visitavam periodicamente os quilombos. Nos arredores das principais aglomerações urbanas, pequenos quilombos viviam do furto e do abastecimento da população citadina em caça, lenha, ovos, etc. Quilombos viviam da rapinagem. O quilombo mais comum no Brasil foi o agrícola. Ao fugir, o cativo libertava a principal constituinte das forças produtivas da escravidão: sua força de trabalho. Sobretudo nos primeiros séculos, a terra abundava na América. As ferramentas eram roubadas durante a fuga ou substituídas por instrumentos de pedra, de madeira, de ossos, etc. A produção agrícola policultora era completada com a pequena criação, a caça, a coleta, a pesca, o saque. Quando um quilombo se estabilizava e aumentava a produção, o saque tendia a ser substituído pelo escambo com a sociedade escravista, por meio do qual se obtinham armas, ferramentas, ferro, pólvora, aguardente, tecidos, etc. Esse intercâmbio garantia melhores condições de vida aos quilombolas ao inseri-los em divisão mais ampla do trabalho. Alguns quilombolas empregavam-se como jornaleiros nas fazendas das vizinhanças. Os quilombos agrícolas baseavam a sua economia na agricultura itinerante de cereais e tubérculos praticada com ferramentas simples, em geral, de ferro. Parte dessa produção ou das atividades por ela sustentadas possibilitava a aquisição de bens de difícil ou impossível confecção no quilombo, como já assinalado. De forma geral, a comunidade agrícola quilombola viveu inserida no contexto da sociedade escravista, ainda que relativamente autônoma a ela. No entanto, a produção escravista foi sempre dominante, em razão da produtividade mais elevada, da maior exploração dos trabalhadores e da maior inserção no mercado internacional. O quilombo rural tendia a estabelecer relações pacíficas e de intercâmbio com a formação escravista. O mundo escravista entrava, inevitavelmente, em choque com as comunidades agrícolas de cativos fugidos. Se o quilombo crescia, questionava a posse monopólica da terra. Os territórios quilombolas eram cobiçados em virtude da expansão natural da propriedade escravista e da valorização que a ocupação quilombola determinava à terra. Os cativos fugidos e seus descendentes eram riquezas vivas. Capturálos era uma forma de enriquecimento rápido, ainda que perigoso. O quilombo constituía ameaça à ordem negreira, já que constituía uma alternativa aos trabalhadores escravizados a nativos e, não raro, a homens livres pobres, negros, mulatos e, não raro, brancos. Não raro, quilombos participaram de conspirações antiescravistas ou de movimentos plebeus rebeldes – Cabanagem, Balaiada, etc., como lembra Clóvis Moura em seu trabalho clássico Rebeliões da senzala, escrito nos anos 1950. Interesses econômicos

120

particulares levavam alguns proprietários a proteger quilombos e quilombolas. A política escravista foi sempre a destruição das comunidades.

Quilombos sulinos Com a fundação da Colônia do Sacramento, em 1680, cativos fugiam da cidadela para homiziar-se entre os charruas e minuanos, contribuindo na formação da população gaucha. Dos anos 1720 até quase a Abolição, em 1888, o escravismo desempenhou significativo papel no Sul. Parcelas do território rio-grandense conheceram importantes concentrações de cativos. No entanto, não se registraram nos territórios sulinos quilombos de vulto, a não ser o até hoje jamais confirmado quilombo do Camizolão, durante a guerra contra o Paraguai, em 1867, com mais de cem cativos. No Sul, o cativo fugia comumente para a fronteira. Certamente, diversos milhares de trabalhadores escravizados alcançaram a liberdade desse modo durante os 150 anos de escravismo sulino. No Sul, as serras abruptas e matas impenetráveis só eram comuns – Serra e Planalto – em regiões até tardiamente habitadas por “bugres ferozes”. Nos séculos 18 e 19, no Rio Grande do Sul, dominou a pequena concentração de uma dezena ou pouco mais de fujões. Os primeiros quilombos sulinos datam, possivelmente, do início da ocupação lusitana. Na primeira metade do século 18, cativos fugiam de seus escravizadores; na segunda metade, nomeavam-se já capitães-do-mato. É abundante a documentação do século 19 sobre quilombos no Rio Grande do Sul. Em setembro e outubro de 1829, o jornal O Amigo do Homem e da Pátria noticiava que um iate proveniente de Rio Grande abrigara-se de ventos adversos junto à ilha Barba do Negra, na lagoa dos Patos. Um pequeno barco mandado à ilha, com um marinheiro branco e quatro cativos, para buscar lenha, fora atacado por mais de trinta quilombolas, armados de espingardas e lanças. Os quilombolas perseguiram os marinheiros e tentaram a abordagem do iate, que zarpou imediatamente. O historiador Moacyr Flores relata que uma expedição, com “160 soldados de linha e mais 30 artilheiros”, mandada para reprimir o quilombo, afundara uma pequena embarcação em que nove quilombolas – seis homens e três mulheres – tentavam fugir. As tropas encontraram na ilha “roças de feijão e de milho, quatro casas prontas e duas ainda em construção”. Em 9 de janeiro de 1833, o Observador, de Rio Grande, noticiava sobre pequena concentração de quilombolas na ilha dos Marinheiros. Seu chefe seria o negro Lucas – ali estabelecido havia dez anos – e o quilombo seria formado por seis homens e quatro mulheres. Após a morte – à traição – do chefe quilombola, o quilombo foi visitado pelo delegado de polícia e guardas nacionais. No quilombo foram encontrados “uma grande casa com vários repartimentos, alguns couros de vaca, quatro deles com a marca do sr. Antô-

121

nio José Afonso, muita carne, graxa, sebo, panelas de ferro, chocolateiras, garrafas, frascos, garrafões, uma lança, grande porção de lenha cortada e amarrada [...]”. Esse inventário sugere a prática da rapinagem e de relações mercantis com a vila de Rio Grande. Diversos quilombos localizaram-se nas cercanias de Pelotas, grande concentração sulina de trabalhadores escravizados. Temos informações, para o primeiro quinquênio dos anos trinta, de um pequeno grupo de quilombolas, comandado por Manuel, ex-padeiro, que era secundado por Antônio, de nação cabunda. O grupo, que superaria uma dezena de quilombolas, praticava a rapinagem e o “rapto” de cativos e, sobretudo, cativas. Diversos quilombolas teriam sido presos e mortos em agosto de 1835. Em 1835, o africano Simão Vergará, forro, proprietário de uma venda na Boa Vista, em Pelotas, foi acusado judicialmente de vender armas e pólvora aos quilombolas da serra dos Tapes. Em razão da grande concentração de cativos, o município de Pelotas e, sobretudo, a serra dos Tapes abrigaram pequenos quilombos até praticamente a Abolição. O município de Rio Pardo, outro importante polo escravista, também agasalhou quilombos. Na década 1847-57, a administração provincial destinou verbas para o aniquilamento de comunidades quilombolas na região, possivelmente formadas em virtude de importantes fugas de cativos ocorridas durante a Guerra Farroupilha (1835-1845). No Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul encontra-se a documentação referente à expedição de 1847 que destruiu um quilombo na Serra do Distrito do Couto. Tratava-se de comunidade de treze homens e sete mulheres vivendo em dois ranchos. Seis quilombolas foram presos e dois morreram resistindo. Os restantes fugiram. Na região, existia outro quilombo, inutilmente procurado. Há referências a outros quilombos no antigo município de Triunfo, em Rio Pardo, em Rio Grande, Gravataí, Santa Maria, Porto Alegre e em outras regiões do Rio Grande do Sul. O fim da escravidão, em 1888, pôs fim ao fenômeno quilombola ao encerrar a divisão entre trabalhadores livres e escravizados. Desde então, no Brasil e no Rio Grande do Sul, descendentes de cativos e de negros livres passaram a integrar, de forma solidária, semiautônoma ou autônoma, as lutas das classes subalternizadas por terra e trabalho, sob o constante handicap negativo da discriminação racial, como lembra Adelmir Fiabani em Mata, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes [1532-2004].

Insurreições escravas A documentação histórica do Brasil escravista registra inúmeras insurreições de trabalhadores escravizados. A maioria foi reprimida antes da deflagração. Algumas tiveram de ser derrotadas militarmente; outras eram

122

apenas produto da imaginação dos escravistas temerosos de um Haiti no Brasil. A possibilidade de uma sublevação aterrorizava os escravistas. No século 19 o Código Criminal registrou esse temor. Ele punia como crime de insurreição o complô de vinte ou mais cativos para obter violentamente a liberdade. A pena mínima para os “cabeças” do movimento era de quinze anos de “galés”. A máxima, a morte. O Código Criminal escravista reduzia a um só crime – insurreição – fenômenos servis de significados diversos: tentativas coletivas de fuga; explosões servis contra um feitor odiado e, até mesmo, movimento contra a ordem escravista. Em geral, é difícil saber os objetivos exatos dos conspiradores. A insurreição contra a ordem instituída é a forma mais elevada da luta na sociedade capitalista. O mesmo não ocorria no escravismo. Para o trabalhador feitorizado, o caminho mais fácil e seguro para a liberdade era a fuga para o exterior ou para o interior do país. Por diversos motivos, eram muito difíceis insurreições servis mesmo regionais. Uma insurreição em todo o Brasil era materialmente impossível. A classe dos trabalhadores escravizados era étnica, cultural e socialmente heterogênea; seu nível cultural era muito baixo; ela vivia dispersa em inúmeras unidades produtivas esparramadas no país, etc. Porém, foi o abandono das fazendas cafeicultoras, sobretudo paulistas, pelos cativos, numa verdadeira insurreição incruenta, que assentou o golpe final na escravidão no Brasil, em 1887-8. As rebeliões, revoltas e insurreições de trabalhadores escravizados determinaram profundamente o escravismo no Brasil. Os escravizadores foram obrigados a se cercar de feitores e agregados para se proteger de tais acontecimentos. O próprio paternalismo com que tratavam os trabalhadores domésticos constituía uma defesa contra o cativo assenzalado. O fato de o mundo escravista se assentar sobre uma importante massa de trabalhadores feitorizados condicionou profundamente a história social e política do Brasil até 1888. As classes exploradoras tinham sempre presente que suas riquezas e vidas dependiam do controle do “inimigo doméstico”. A historiografia sulina tradicional jamais se referiu às diversas tentativas de insurreições, revoltas e rebeliões servis. Nicolau Dreys, que viveu no Rio Grande do Sul de 1817 a 1827, relatava em sua Notícia descritiva: “Os negros do Rio Grande [...] várias tentativas fizeram em tempos diferentes, para imprimir a toda a população negra um movimento insurrecional [...].” Apesar do possível exagero da afirmação no relativo à amplidão das conspirações – “toda a população negra” –, é clara sua referência à ocorrência de movimentos anteriores à época em que escrevia. A primeira revolta de trabalhadores escravizados conhecida seria a dos cativos da Feitoria do Linho Cânhamo, de 1822. No início do século 19, o libambo de prisioneiros – certamente em sua maioria cativos – que trabalhavam na abertura do Caminho Novo, na Costa do Rio (hoje Voluntário da

123

Pátria), revoltou-se, tendo os presos fugido para os matos ou ilhas próximas. Em 1838, descobriu-se uma conspiração em Porto Alegre. Em 1841, falouse de tentativa de sublevação na província. Em 1848, os “escravos minas” tentaram se revoltar em Pelotas. Em 1859, a presidência da província registrou “insurreições servis” em Rio Pardo, Piratini, Herval, Encruzilhada e Capivari. O mesmo ocorreu em 1863 em Gravataí e Taquari; em 1864, em Porto Alegre; em 1865, em diversos pontos da fronteira; em 1868, em Porto Alegre, cativos tentaram se sublevar, em possível combinação com prisioneiros paraguaios. Temos também registros de movimentos em 1881 e 1887 em Pelotas. Pesquisas mais detalhadas apontarão outros casos. Mesmo que nem todos os movimentos tivessem a mesma importância e alguns fossem produto dos temores dos escravistas, impressiona o número de ocorrências, sobretudo a partir de 1859, fenômeno que exige ainda explicação. Para alguns movimentos temos informações mais detalhadas. É o caso de Pelotas em 1848. Apesar de ainda não sabermos a real amplitude do acontecimento, a correspondência entre as autoridades civis, policiais e militares publicada pelo jornal O Rio-Grandense, de Rio Grande, sugere um movimento de vulto sufocado antes da data prevista para a deflagração – 6 de fevereiro de 1848. O plano envolveria apenas cativos minas, abundantes em Pelotas e nas charqueadas e olarias dos arredores. Os minas eram africanos provenientes das regiões do antigo forte de São Jorge da Mina, na atual Gana. No Sul, talvez fossem conhecidos como “minas” todos os cativos embarcados no litoral do golfo da Guiné. Dezenas de cativos foram presos e até mesmo uma canhoneira foi posta à disposição das autoridades pelotenses para garantir a “ordem” social. Uma importante revolta ocorreu em 1865, quinze anos após o fim do tráfico, quando do início da guerra contra o Paraguai, após a derrota do sul escravista na Guerra de Secessão estadunidense (1861-1865). Com importantes ramificações, o movimento teria tido o apoio e sido fomentado pelo partido uruguaio Blanco, que lutava contra a intervenção no país do Império e da Argentina liberal-mitrista. Em 1868, durante a guerra contra o Paraguai, ocorreu outra tentativa de insurreição, desta vez em Porto Alegre, na qual teriam sido envolvidos prisioneiros paraguaios, que contavam com relativa liberdade na cidade. A última revolta dos cativos sulinos teria ocorrido em dezembro de 1887, no auge da campanha abolicionista, nas charqueadas de coronel Junius Brutus Cássio de Almeida, em Pelotas. O movimento terminou com a vitória parcial dos trabalhadores negros, que alcançaram a liberdade sob a condição de trabalhar ainda por alguns anos nas charqueadas.

124

8 Camponeses europeus proprietários no Rio Grande do Sul As primeiras experiências de colonização territorial com agricultores parceleiros policultores foram feitas nos anos 1740 com casais provenientes das ilhas dos Açores. O Rio Grande do Sul foi um dos principais destinos dessas populações. Boa parte dos camponeses especializou-se na triticultura e, mais tarde, no pastoreio. Por motivos diversos, não prosperaram as tentativas de instaurar sociedade camponesa subsidiária à economia latifundiária, exportadora e escravista. Entre as principais razões desse fracasso esteve, certamente, a dificuldade de escoamento da produção policultora. Em 25 de novembro de 1808, recém-chegado ao Brasil, o príncipe e regente dom João decretou a liberdade de acesso à posse de terras aos estrangeiros residentes no país. Até então, apenas os súditos portugueses podiam ser proprietários fundiários. A medida visava criar população camponesa e promover a colonização de regiões desabitadas. Por décadas, a Coroa lusitana e, a seguir, o governo imperial incentivaram esse tido de imigração europeia. Essa imigração não pretendia substituir o braço escravizado ou branquear a população trabalhadora do Brasil, ao menos como objetivos de curto e médio prazo, como comumente proposto. As pequenas colônias voltadas à produção de gêneros de subsistência não deveriam concorrer com a produção latifundiária de exportação. A imigração colonial-camponesa iniciou mais de seis décadas antes da Abolição, num momento em que os escravistas lutavam – e lutariam ainda por longos anos – para manter e ampliar a introdução de trabalhadores africanos, não para extingui-la. Mesmo após o fim do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados, em 1850, os escravistas desdobraram-se para manter o cativeiro, até 1888, não para aboli-lo. A substituição do trabalho compulsório pelo assalariado exigia a formação de população de trabalhadores juridicamente livres e incapazes de produzir seus meios de produção. Ao entregar ao imigrante terra, gratuita ou financiada, o Estado criava população refratária ao mercado de trabalho livre. Por décadas não houve razão que obrigasse a população colonialcamponesa a vender essencialmente a sua força de trabalho por preço vil. De Colônia o Brasil passara à sede do Império português. Com a imigração de camponeses pequenos proprietários e a consequente constituição de uma agricultura de gêneros de subsistência, procurava-se melhorar o abastecimento em gêneros alimentícios das cidades e dos latifúndios e proporcionar braços para os exércitos reais. Uma forte população de camponeses livres contrabalançaria também as multidões de trabalhadores escravizados africanos e afro-descendentes. Tratava-se, sobretudo, de um perigo social, não racial. Com a formação de núcleos de camponeses proprietários, pretendia-se ocupar, proteger e defender regiões despovoadas e estratégicas

125

da cobiça das nações estrangeiras e dos ataques de nativos e quilombolas. Em virtude das tradicionais disputas territoriais com a Espanha na América Meridional, o sul do Brasil foi uma das principais regiões a acolher colonos-camponeses europeus não lusitanos. A partir de meados dos anos 1880, nos momentos finais da escravidão, centenas de milhares de imigrantes, sobretudo italianos, foram atraídos, principalmente a São Paulo, para substituir os trabalhadores escravizados rebelados ou fugidos das fazendas cafeicultoras do Centro-Sul. Nesse então, a escassez de braços escravizados inibia havia anos o desenvolvimento da produção cafeicultora, que conhecia forte tensão expansiva em razão do aumento do preço do café no mercado mundial. A verdadeira revolução abolicionista desbloqueou o impasse escravista, que limitava o desenvolvimento das forças produtivas materiais do país, pondo fim ao modo de produção escravista colonial e à divisão entre trabalhadores assalariados e trabalhadores escravizados. As multidões de imigrantes atraídos ao Brasil contribuíram fortemente para a conformação de um verdadeiro exército rural e industrial de reserva, formado por trabalhadores desempregados e desprovidos de meios de subsistência. Com o passar dos anos, a importante expansão demográfica da população colonial-camponesa, no contexto de falta relativa de terras, fortaleceu esse exército rural de desempregados também no sul do Brasil. Em 1819, com a chegada de imigrantes suíços do cantão de Friburg criou-se a primeira colônia europeia não lusitana no Brasil, nos arredores do Rio de Janeiro. Com Nova Friburgo pretendia-se superar o crônico desabastecimento da corte. Por esses anos, os gêneros alimentícios na capital do Brasil alcançavam elevados preços. Na ocasião, teriam sido introduzidos 1.790 colonos. A experiência de Nova Friburgo fracassou por diversas razões – crise política da Independência, distância das terras dos mercados consumidores, etc. Grande parte dos colonos dispersou-se, dedicando-se a outras atividades, entre as quais a produção cafeicultura, então em gestação. A Constituição outorgada por dom Pedro, em 1824, era política e administrativamente centralizadora e autoritária. Concedeu, porém, aos grandes proprietários o direito de se apoderarem das terras reúnas ao abolir a Lei de Sesmaria e estabelecer, nos fatos, o padrão de ocupação por posses. Porém, o poder imperial reservou-se a questão da colonização, determinando que o poder de criar colônias permanecesse nas mãos do Poder Executivo e, portanto, do imperador. De 1822 a 1830 foram fundadas “sete colônias oficiais e uma particular”, sob a chancela do imperador.

Europeus não lusitanos Nos primeiros anos do Império, era candente a questão dinástica e latejavam as feridas abertas pela Independência e pelo golpe anticonstitucio-

126

nal de Pedro I de 1823. As classes dominantes escravistas viam com maus olhos qualquer privilégio concedido aos lusitanos e temiam que o imperador promovesse a reunificação do Brasil e Portugal. Os novos colonos não podiam ser camponeses portugueses. A escolha de alemães deveu-se à vontade da imperatriz alemã dona Leopoldina, da casa de Habsburgo (Áustria), e, sobretudo, à situação interna dos Estados germânicos, que, na época, possuíam grande população disponível, já que carente de terra e de trabalho. O médico alemão Anton Von Schaeffer, que chegara ao Brasil um ano antes da Independência, foi nomeado por dom Pedro major da Guarda Imperial e contratado para alistar interessados em emigrar e se estabelecer no Brasil. Foi nocivo o fato – elucidativo das intenções imperiais – de que fosse responsável, ao mesmo tempo, pelo alistamento de voluntários para fundar colônia e de mercenários para os exércitos imperiais. Sobretudo a partir de 1825, o imperador aferrou-se à política expansionista lustiana no Prata, fortemente apoiada pelos criadores sul-rio-grandenses, carentes de terras. Já na Europa houve grande confusão entre o arrolamento de camponeses e de mercenários. Aos últimos prometeram-se as regalias dos colonos, quando desmobilizados. Aos primeiros escondeu-se cuidadosamente o perigo de terminarem arrolados nos exércitos do imperador! Em 1824 fundou-se a colônia de São Leopoldo, sobretudo com camponeses chegados dos Estados alemães, nas proximidades de Porto Alegre, no sopé da Serra, na Imperial Feitoria do Linho Cânhamo, até então explorada por trabalhadores escravizados. O primeiro presidente da província, o paulista José Feliciano Fernandes Pinheiro (1774-1847), autor da primeira história propriamente dita do Rio Grande do Sul – Anais da Província de São Pedro –, apoiou ativamente o projeto imigratório, ganhando a seguir o título de visconde de São Leopoldo. As condições do contrato eram generosas: os emigrantes receberiam, gratuitamente, a passagem, 77 ha de terra “de campo e de mato demarcadas”, ferramentas, sementes, animais, subsídios por dois anos, etc. As primeiras famílias assentadas receberam, além do prometido, um rancho, bois mansos, cavalos, éguas, vaca de leite, porcos, galinhas. Os lotes iniciais foram demarcados precariamente e eventuais posseiros e proprietários foram despejados das terras a serem colonizadas. Trabalhadores escravizados da feitoria prepararam moradias e roças aos primeiros colonos. Com as dificuldades econômicas nascidas dos imensos gastos realizados pelo governo imperial quando da sublevação independista na Banda Oriental – guerra Cisplatina (1825-1828) –, as facilidades passaram a ser executadas parcialmente, gerando forte agitação na colônia, sobretudo em 1825 e 1830. De 1824 a 1830, 5 350 emigrantes de língua alemã estabeleceram-se no Rio Grande do Sul. Essa ocupação colonial-camponesa interrompeu-se nas bordas da floresta, nos primeiros contrafortes da Serra Geral, à cota trezentos, altura em que começam a abundar os pinheirais. Com a fundação

127

da colônia, pensava-se defender os territórios sulinos, abastecer a capital rio-grandense, formar população livre capaz de produzir filhos que servissem nos exércitos imperiais. A ocupação colonial-camponesa rentabilizava terras imprestáveis ao latifúndio e garantia rendas à economia provincial, oriundas dos tributos e taxas a serem pagos pelos novos pequenos proprietários. A fundação de São Leopoldo facilitava os contatos da capital e da Depressão Central, sobretudo, com o centro-norte do Rio Grande do Sul, diminuindo o isolamento relativo em que se encontrava a região. Apenas alguns tropeiros chegavam a São João de Montenegro, vindos de Vacaria e dos Campos de Cima da Serra, algumas vezes por ano, para se abastecer e vender produtos. As florestas da encosta do Planalto Rio-gandense eram habitadas por populações nativas de língua jê, que resistiram sistematicamente à intrusão dos invasores. Nos anos seguintes, as comunidades nativas da região foram aniquiladas pela expansão da colonização alemã, no sopé da Serra, dos rebanhos, no Planalto e, mais tarde, pela ocupação italiana da Encosta Superior. A história da destruição dos nativos não foi escrita e pouco sabemos de mais preciso sobre os bugreiros – brasileiros e imigrantes alemães e italianos – contratados para combater e eliminar os últimos habitantes nativos da Serra. Em geral, a historiografia e a literatura ficcional em prosa rio-grandense registram apenas os ataques sofridos pelos colonos, apresentando as populações nativas da região como bugres e selvagens.

Sem direito à história Nos anos 1850, em livro sobre o Rio Grande do Sul, o alemão Joseph Hörmeyer, antipático e preconceituoso com as comunidades nativas, assinalava que nas “regiões ameaçadas foram formados pelo Governo companhias próprias (pedestres) dos colonos mais robustos, destinados apenas para a perseguição dos bugres”. Comunidades caingangues do curso superior do rio Caí atacaram desesperadamente os primeiros colonos-camponeses alemães que penetravam em seus territórios históricos, sendo violentamente combatidas. Salvo engano, o primeiro confronto grave entre imigrantes e nativos da Serra ocorreu em 26 de fevereiro de 1829, resultando na morte de três alemães. Em 1831, os imigrantes teriam penetrado mais profundamente nos territórios caingangues, que, em resposta, atacaram os invasores em 8 de abril do mesmo ano, resultando do confronto a morte de mais três imigrantes e o sequestro de uma menina. Em 15 de maio, onze homens, mulheres e crianças foram mortos durante um outro ataque. A dura resposta das autoridades teria feito os nativos refluir para as encostas da Serra. Vinte e dois anos mais tarde, em 8 janeiro de 1852, um novo ataque na Colônia do Mundo

128

Novo (Taquara), fundada em 1846, motivou a morte de um colono e o sequestro de sua mulher, sua filha e dois menores. Em março do mesmo ano, tropas policiais e vaqueanos recuperaram os prisioneiros e massacraram o cacique e seus seguidores. Esse não teria sido o último ataque dos nativos. Ao contrário de Nova Friburgo, São Leopoldo prosperou fortemente. A seguir, essa comunidade camponesa serviu de modelo paradigmático às colônias criadas sobretudo em Santa Catarina – São Pedro de Alcântara (1829); Paraná – Rio Negro (1829) e no Espírito Santo. Seu sucesso deveu-se à qualidade das terras e, sobretudo, à sua localização. Estabelecidos às margens do rio dos Sinos, a uns 30 km de Porto Alegre, os colonos-camponeses escoavam sem dificuldades seus produtos para a capital provincial. Ainda em 1824, tentou-se fundar a colônia de São João das Missões, com pouco mais de sessenta agricultores que o governo queria afastar de São Leopoldo. Nas Missões, a colônia de São João buscava consolidar a conquista dessas regiões, realizada em 1801. A centenas de quilômetros da capital, sem poder fazer chegar seus produtos aos centros consumidores por vias fluviais, o núcleo colonial não chegou a se estabilizar. Os colonos dispersaram-se ou foram conduzidos para São Borja. Em 1826, também por razões geopolíticas, o presidente da província fundou as colônias de Três Forquilhas, com alemães protestantes, e de São Pedro de Alcântara, com imigrantes católicos, em Torres, próximas à fronteira litorânea com Santa Catarina. Indistintamente, os papistas e reformados das colônias de Três Forquilhas e de São Pedro vegetaram na pobreza, em razão da baixa qualidade das terras e, principalmente, da distância dos mercados consumidores provinciais. Isolados e esquecidos, os colonos germânicos terminaram semiacaboclados, quase se confundindo com as populações brasileiras que ali viviam, praticamente à margem das trocas mercantis sistemáticas. A existência semivegetativa das colônias de São Pedro e de Três Forquilhas desmente pateticamente aqueles que veem o fator étnico como elemento determinante do sucesso colonial. Os mesmos alemães que construíram com muito trabalho e relativo sucesso seu futuro em São Leopoldo vegetaram sem glória, em uma economia seminatural, no noroeste do Rio Grande do Sul. A colonização colonial-camponesa parcelar devia-se aos interesses imperiais e regionais estratégicos, estranhos aos objetivos a curto e médio prazos dos grandes proprietários. Era necessária à ocupação e à defesa dos territórios, já que a produção escravista inibia o desenvolvimento de população livre, em geral, e de pequenos proprietários, em particular. A colonização parcelar apoiava e não entrava em contradições com a produção escravista hegemônica, desde que se realizasse em terras impróprias ao plantacionismo e não se expandisse de forma significativa, capaz de subverter política e socialmente o padrão latifundiário dominante da posse da terra.

129

Oposição permanente A imigração camponesa europeia não se destinava a fortalecer o muito raquítico mercado de trabalho livre, como também não tinha como objetivo pôr fim à escravidão, ainda que, em um sentido histórico, as pequenas colônias baseadas no trabalho familiar livre fossem forma de produção mais adiantada do que a escravista. Portanto, os grandes proprietários escravistas tinham algumas razões para apoiar e poucas para se opor à imigração colonial-camponesa. Porém, de forma geral, eles se opuseram sempre à colonização, mesmo das terras impróprias ao latifúndio. Os recursos do Estado eram escassos e eles viam com maus olhos que os dinheiros imperiais e provinciais fossem destinados à colonização, mesmo que parcialmente. A pequena propriedade e o trabalho livre antagonizavam-se com os horizontes sociais e mentais dos grandes proprietários de terras e de trabalhadores. A distribuição gratuita de terras impedia que eles lucrassem com o processo. A propriedade latifundiária iria se manter, e se mantém, hegemônica no Rio Grande e no Brasil, obrigando essa brecha camponesa a se expandir apenas nos espaços que não detinha ou disputava. Apenas a partir dos anos 1979 as comunidades camponesas conseguiriam se mobilizar pela concessão de terra, inicialmente no Sul, a seguir no resto do país, ainda que com sucesso muito relativo. Durante o I Reinado (1822-1831), os escravistas preocupavam-se com as concessões feitas pelo imperador ao governo inglês, que pressionava pelo fim do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados, já que interessado em monopolizar e reorientar o comércio com a costa africana. Temiam, portanto, que a colonização colonial-camponesa fortalecesse a luta abolicionista. Os grandes escravistas abominavam, igualmente, os sonhos imperialistas de dom Pedro na América e eram antipáticos às tropas mercenárias estrangeiras, espinha dorsal do exército imperial. Eles viam a imigração como parte de política externa e interna imperial que desaprovavam. Quando se sentiram mais fortes, puseram fim às iniciativas colonizadoras do Executivo imperial. Em 15 de dezembro de 1830, a Lei de Orçamento do Império, votada pelo Parlamento imperial, proibia gastos com a colonização, inclusive com o pagamento de funcionários. Quando conseguiram derrubar o príncipe português, puseram fim, por longos anos, à chegada de colonoscampones europeus. A colonização colonial-camponesa sul-rio-grandense seguia o padrão de ocupação territorial romano, com a distribuição de glebas contínuas articuladas com um centro administrativo-comercial. Assim, foram demarcadas glebas de uns 70 ha (colônias), em formas contínuas, nos dois lados de caminhos abertos nas matas. Através das picadas e de estradas locais, todas as colônias encontravam-se ligadas às sedes urbanas coloniais. Esses núcleos populacionais organizavam os contatos políticos, sociais e, sobretudo, econômicos com a capital da província e sediavam a administração colonial, o

130

comércio, profissionais liberais, serviços variados. Os emigrantes conformaram a primeira comunidade camponesa homogênea a consolidar-se no contexto da sociedade latifundiária e escravista sulina, como visto. A entrega de colônias no sul do Brasil, primeiro gratuitas, a partir de 1850-4, financiadas, para trabalhadores europeus sem terra ou com pouca terra constituiu reforma multitudinária do padrão latifundiário da terra. Ela construiu, sob a hegemonia da escravidão colonial, dinâmico modo de produção camponês. Nas décadas seguintes, a capacidade de expansão autossustentada deste último assentaria as bases demográficas e econômicas para o surgimento de dinâmica produção artesanal, manufatureira e, finalmente, industrial, que singularizaria fortemente o sentido do desenvolvimento da formação social rio-grandense. As populações pobres do Brasil foram mantidas à margem dessa distribuição de terras. Tradicionalmente, divide-se o processo de ocupação colonial-camponês de São Leopoldo-São Hamburgo em três grandes períodos: implantação, desenvolvimento, regressão. Nos primeiros tempos, da chegada, em 1824, ao início dos anos 1840, durante a instalação dessa economia parcelar, dominou sobretudo a agricultura policultura de subsistência, centrada na produção da abóbora, batata-doce, centeio, feijão, mandioca, milho, tabaco, etc. A implantação da economia colonial-camponesa deu-se pela adaptação das técnicas e hábitos produtivos camponeses europeus às condições sociais, econômicas e geoecológicas locais. A agricultura de coivara – abertura de clareiras na floresta através da utilização do fogo e rotação das terras, até seu esgotamento – foi adotada e adaptada por essa produção, demonstrando que a agricultura rudimentar do caboclo devia-se sobretudo às condições geográficas, econômicas e demográficas. Um colono descreveu os trabalhos iniciais na roça: “Fazíamos uma pequena derrubada, picávamos em seguida os ramos das árvores, amontoando-os para queimar quando estivessem secos, porque não nos animávamos a por fogo na derrubada toda, com receio de fazer devastações do mato.” A técnica nativo-cabocla da coivara, adaptada pelo colono-camponês, não pode ser desclassificada como simples “atraso das técnicas de cultivo”. Ela se impunha em razão da escassez relativa de força de trabalho em relação à abundância de terra. A insuficiência de adubo animal, pelo número reduzido de cabeças de gado dos colonos, determinava, igualmente, a migração constante das plantações, primeiro, no interior da propriedade e, a seguir, para fora dela. A criação de galinhas, porcos, gado leiteiro fornecia ovos, banha, leite, etc. O excedente dessa produção voltada à subsistência era comercializado, permitindo a compra aos comerciantes dos manufaturados e dos gêneros de primeira necessidade impossíveis ou difíceis de serem fabricados nas colônias. Já nessa época, ao longo das linhas e nas sedes coloniais, organizaram-se os primeiros curtumes, moinhos d’água, ferrarias, marcenarias, etc.

131

Orientação mercantil Em 1831, no contexto da proibição do Parlamento imperial dos gastos com a imigração camponesa – salários, subsídios, demarcação de terras, etc. –, a colônia de São Leopoldo foi elevada ao status de “capela curada”, recebeu capelão e juiz de paz e passou a depender da Câmara de Porto Alegre. Os juízes de paz eram eleitos entre os cidadãos nacionais. No início dos anos 1830, a sede da colônia de São Leopoldo possuiria umas 230 moradias, de madeira e tijolos, e uns mil habitantes, entre nacionais e alemães. A povoação possuía pequenas alfaiatarias, destilarias, engenhos, ferrarias, funilarias, curtumes, olarias, selarias, sapatarias, etc. A seguir, nos anos 1840 a 1860, logo que possível, a produção agrícola colonial excedente passou a ser encaminhada para ser vendida sobretudo em Porto Alegre, principalmente por alemães que se estabeleceram como comerciantes. Vendendo a produção excedente, os colonos-camponeses compravam, também dos comerciantes locais, o que não produziam – açúcar, ferramentas, pólvora, tecidos, etc. Muito logo, o capital comercial passou a se apropriar de grande parte do trabalho excedente produzido na unidade colonial-camponesa, sobretudo adquirindo os gêneros que produzia a preços baixos e vendendo o que necessitava a preços elevados. A abundância relativa de terra ensejou um forte incremento demográfico da população colonial-camponesa alemã, que no geral praticava na Europa o controle da natalidade. No Rio Grande do Sul, os filhos eram mais braços para a lavoura do que bocas a serem alimentadas. Em geral, eles começavam a trabalhar aos seis anos de idade. Dados da primeira metade do século 19 apontam famílias camponesas alemãs com nove filhos em média, o que ensejou uma primeira expansão demográfica e territorial em direção à Encosta da Serra, das Colônias Velhas para as Colônias Novas. Mesmo sendo proibido pela legislação, temos registros de cativos na sociedade colonial, onde conheceu status marginal, por razões econômicas. Cativos trabalhavam para brasileiros e imigrantes enriquecidos, sobretudo nas aglomerações coloniais, no comércio, artesanato, trabalhos domésticos, transportes terrestre e fluvial, etc. Isso tem ensejado generalizações arbitrárias, envolvendo as práticas colonial-camponesas, para as quais o uso do braço servil era absolutamente antieconômico. Durante toda a escravidão, o preço de um cativo equivalia a diversas colônias. Para os trabalhos na roça, o pequeno proprietário contou sempre com a mulher e os filhos, postos na labuta muito duramente. Dos anos 1860 a 1890, já plenamente instalada, a economia colonialcamponesa de São Leopoldo-Novo Hamburgo reforçou seus vínculos através do setor comercial, sobretudo com a capital, principalmente após ser ligada a Porto Alegre por estrada de ferro, que chegou à sede da primeira colônia em 1874 e a São Hamburgo, dois anos depois. Então, a agricultura

132

colonial-camponesa especializou-se sobretudo na produção de batata, feijão, mandioca, milho. Novas regiões foram envolvidas nesse processo, com a expansão da sociedade colonial-camponesa, designadas como Colônias Novas, em relação às pioneiras – Colônias Velhas. Nestas últimas, a partir dos anos 1890, viveram-se acelerada queda tendencial da fertilidade da terra e elevada divisão dos lotes rurais. Nesse contexto, até os anos 1930 a comercialização do milho e da mandioca regrediu, já que esses produtos passaram a ser utilizados sobretudo no engorde de suínos dedicados à produção da banha, produto então em acelerada valorização. Após o término da Guerra Farroupilha, em 1845, em dezembro de 1849 fundou-se a primeira colônia provincial sulina, com imigrantes da Pomerânia e da Renânia, na Depressão Central, ao pé da Encosta Inferior da Serra, ao longo da nova estrada Rio Pardo–Cruz Alta. Os primeiros colonos de Santa Cruz do Sul receberam, como era tradicional, de forma gratuita, lotes de 77 ha, ferramentas, sementes, ajuda, etc. A seguir, em virtude da aprovação da Lei de Terras, de 1850-4, pelo Parlamento imperial, que proibiu a distribuição gratuita de terras, financiou-se a compra das colônias pelos imigrantes. Como também era tradicional, os colonos recém-chegados levantaram rústicas moradias junto aos caminhos e organizaram roças de subsistência, adotando e adaptando, como nas Colônias Velhas, técnicas e produtos da produção cabocla. Nesses primeiros difíceis tempos praticamente não houve produção artesanal na colônia. Ao contrário de São Leopoldo e São Hamburgo, a colônia de Santa Cruz não possuía rios navegáveis que escoassem facilmente a produção até a capital. Em verdade, devia encaminhá-la, por mulas e carroças, através das picadas e, a seguir, pela nova estrada, até Rio Pardo, que se encontrava a 40 km. A localização da colônia objetivava também ocupar essas paragens, tradicional refúgio de quilombolas. A dificuldade do transporte determinou o desenvolvimento da colônia de Santa Cruz, que apenas em 1905 se integrou à rede ferroviária Porto Alegre–Uruguaiana. Desde o início, os colonoscamponeses dedicaram-se à policultura de subsistência, para se manter, e à produção de gêneros comerciáveis, para financiar o pagamento da dívida colonial e do que eram obrigados a comprar. Já em 1851 os administradores da colônia apontavam o fumo como possível sustentáculo de Santa Cruz. Sem delongas, o produto mostrou-se como ótima opção para a esfera mercantil da economia colonial-camponesa. O plantio do fumo exige trabalho intensivo; as terras de Santa Cruz adaptavam-se bem ao cultivo do produto; a relação preço/peso permitia que o fumo fosse exportado, apesar dos caros fretes, em carroças e mulas bruaqueiras. Logo o fumo despontou como principal cultura de “exportação”, após o feijão e o milho. Nos anos 1865, iniciou-se verdadeira disparada na produção do produto, que transformaria mais tarde a região no segundo centro fumicultor mundial.

133

Um bom negócio Já em meados de 1880, o governo provincial recuperava, com o pagamento da dívida e de impostos diversos, os investimentos feitos com a colônia de Santa Cruz, em grande parte devido ao fumo. Magnânima com as rendas provinciais, a planta foi déspota com os agricultores dedicados a sua produção, agrilhoando-os a uma espécie de servidão de homens livres que se mantém até hoje, como assinala o historiador Olgário Vogt em seu já clássico trabalho A produção do fumo em Santa Cruz do Sul. Os colonos-camponeses, incapazes de escoar suas mercadorias, eram mantidos desinformados sobre os preços de mercado, em Porto Alegre, do fumo e de outros produtos. Eram, portanto, obrigados a vender a produção para os comerciantes das picadas, seus patrícios, articulados com o comércio da sede colonial e da capital. Não apenas em Santa Cruz, a economia colonial-camponesa foi incessante e duramente explorada pelo capital comercial, que comprava sua produção a baixo preço e vendia os produtos manufaturados e outros de que necessitava a preço elevado, como assinalado. Nesses tempos, a produção fumageira era semi-intensiva, ficando o crescimento e a secagem da planta a cargo da natureza. O fumo “de galpão” tinha folha escura, destinada à charuteria. Os comerciantes eram, em geral, mais instruídos, mais informados e gozavam de real prestígio cultural, político e econômico entre os colonos-camponeses. Os comerciantes sugeriam as técnicas e variedades a serem plantadas e forneciam as mercadorias consumidas pelos colonos, assentando os valores das compras em caderno para serem descontados quando da entrega da produção. Na função de banqueiros, os comerciantes cobravam taxas sobre os capitais emprestados e, não raro, sobre os saldos que guardavam para os colonos! O monopólio comercial permitiu que os comerciantes das picadas e os mais fortes “enfardadores”, de Santa Cruz e de Porto Alegre, remunerassem apenas parte do trabalho realizado pelo colono-camponês na sua gleba, materializando violenta transferência de renda do campo para a cidade, da economia colonial-camponesa para o capital comercial. A incessante expropriação da economia colonial-camponesa apoiou, mais tarde, o surgimento no município de manufaturas dedicadas à fabricação de cigarros e ao comércio de fumos, de capitais regionais e nacionais. Essas empresas deslocaram rapidamente os comerciantes. A seguir, as empresas nacionais sofreram duramente a concorrência da estadunidense Brazilian Tobacco Corporation (Souza Cruz), que introduziu na região os fumos claros para o cigarro, que produzia para o mercado nacional. Dos anos finais da República Velha a 1950, a economia colonial-camponesa na região de São Leopoldo e São Hamburgo perdeu significado econômico, restringindo-se às zonas rurais mais distantes. Nesse contexto, a região consolidou sua atual característica urbana e industrial, intimamente incor-

134

porada à região metropolitana rio-grandense, acelerando-se a migração em direção às Colônias Novas, mais ao norte, na Encosta da Serra, no Planalto, nas Missões, no Alto-Uruguai e além das fronteiras rio-grandenses. Sobretudo em razão do pequeno tamanho das propriedades rurais nos Estados germânicos, boa parte dos emigrantes havia vivido na Europa, parcial ou totalmente, da exploração de diversas habilidades artesanais. O historiador e arquiteto Günter Weimer propõe que, entre 1.862 imigrantes evangélicos do sexo masculino chegados à colônia de São Leopoldo, poucos não possuíam aptidões não agrícolas. Os colonos-camponeses almejavam a autossubsistência e procuravam produzir tudo o que pudessem. No interior de cada unidade produtiva colonial-camponesa desenvolvia-se uma ativa produção artesanal doméstica, masculina e feminina, voltada à produção de instrumentos de trabalho, vestuário, conservação de alimentos, etc. Quanto menor era o nível de mercantilização da produção de uma unidade colonialcamponesa, maior importância ocupava a produção artesanal no seu interior. Desde os anos 1840, com a consolidação dos estabelecimentos colonialcamponeses, sobretudo ao longo das picadas e nos pequenos núcleos urbanos, surgiram unidades artesanais especializadas voltadas à satisfação das necessidades regionais – ferramentas, insumos, beneficiamento, objetos domésticos, vestuário, etc. Essa produção teria passado por quatro grandes fases: instalação, expansão, especialização, estagnação/crise/metamorfose. De 1830 a 1845 organizaram-se e adaptaram-se as primeiras práticas e unidades artesanais em São Leopoldo. Nesses primeiros tempos, a madeira e o couro foram utilizados intensamente por essa produção artesanal. A primeira matéria-prima era abundante na região; a segunda era um subproduto de baixo preço, fornecido sobretudo pelo abate de animais, nos campos de Cima da Serra e na Campanha. Nos anos 1890, com a chegada do transporte ferroviário à Depressão Central, ao Alto Uruguai e às Missões, houve uma forte migração das Colônias Velhas germânicas e italianas para essas regiões, onde se estabeleceram novas unidades camponesas ao estilo das iniciais. Com o esgotamento das terras florestais disponíveis no norte do Rio Grande, a expansão agrícola ultrapassou as fronteiras do estado.

135

II

O IMPÉRIO

Consolidação e superação da sociedade escravista

9 A independência e o Rio Grande do Sul Portugal vivia difícil situação em fins da segunda década do século 19. Os franceses haviam sido expulsos do país, mas os ingleses mantinham-se no comando de um grande exército lusitano que esgotava as rendas públicas. Com a liberdade comercial no Brasil, a navegação e o comércio português declinaram. O Brasil passava de fonte de ganhos a consumidor das rendas lusitanas. Nobres portugueses viviam e gastavam seus proventos no Brasil. Requerimentos, despachos e recursos lusitanos eram decididos no Rio de Janeiro. Em Lisboa, em nome de dom João VI (1816-1826), uma junta governativa tentava, inutilmente, opor-se ao nepotismo britânico, à crise econômica e ao avanço do liberalismo. Em agosto de 1820, um grupo de burgueses da cidade do Porto e de oficiais das guarnições do Norte do país promoveu um pronunciamento constitucionalista que, em semanas, conquistou Portugal. Em janeiro de 1821, uma Assembleia Constituinte e legislativa – as Cortes – iniciou os trabalhos em Lisboa. Quanto a Portugal, as Cortes eram muito liberais. A nova Constituição garantiu a soberania da nação, delimitou os poderes reais, dissolveu a Inquisição, franqueou o serviço público à cidadania, instituiu a liberdade de imprensa, extinguiu os privilégios eclesiásticos, assegurou os direitos individuais e de propriedade. Portugal era um país agrícola atrasado e o passado esplendor devia-se essencialmente à exploração das colônias, com destaque para a americana. Quanto ao Brasil, o liberalismo português era recolonizador. As Cortes expressavam sobretudo as reivindicações da burguesia mercantil lusitana, dependente do antigo exclusivismo comercial com as colônias. Constituíam, igualmente, reação à mudança da sede da monarquia e do Império português para o Rio de Janeiro. As Cortes justificavam a recolonização afirmando que os territórios do Brasil constituíam parte dos territórios lusitanos. O comércio entre a Europa e as outras partes do reino português, entre elas o Brasil, seria novamente privilégio dos “navios [...] de construção e propriedade portuguesa”, pois se trataria de comércio interno. Pretendia-se pôr fim ao status de reino do Brasil e acabar com sua unidade administrativa, ligando cada província do Brasil à sede do governo, em Lisboa, Portugal. Nas Cortes, 130 deputados representavam as províncias lusitanas europeias e apenas 75, as brasileiras. Garantia-se, assim, a plena hegemonia constitucional dos interesses comerciais portugueses sobre o Brasil e sobre todo o império. Os deputados do Rio Grande do Sul às Cortes jamais chegaram a Portugal – o padre-mestre João de Santa Bárbara (18061868) e o major-engenheiro José Saturnino da Costa Pereira (1771-1852),

139

irmão do jornalista Hipólito José da Costa, ambos nascidos na colônia do Sacramento. A notícia da revolução do Porto foi bem recebida nos grandes centros urbanos do Brasil. Os comerciantes lusitanos simpatizavam com a proposta recolonizadora, implícita nos pronunciamentos constitucionalistas. No início, a maioria dos “homens bons” do Brasil – no geral pertencentes às classes proprietárias – apoiou o ideário liberal e antiabsolutista e manteve-se em relativa inatividade política. Pronunciamentos constitucionalistas determinaram a formação de Juntas Governativas no Pará, em 1o de janeiro, e na Bahia, em 10 de fevereiro de 1821, onde era forte o comércio lusitano. Esses governos se independentizaram do Rio de Janeiro e ligaram-se às Cortes portuguesas. Em Pernambuco, guarnecido militarmente desde a revolta independista de 1817, as tropas realistas abafaram a adesão à Revolução do Porto. O fim da unidade administrativa provincial foi a primeira consequência do movimento constitucionalista no Brasil.

A hora e a vez lusitana As Cortes exigiam que dom João voltasse a Portugal e que Lisboa tornasse a ser a capital do Império. O indeciso soberano discutia com seus ministros medidas que desarmassem o movimento constitucionalista e impedissem que ele ganhasse o Brasil. Porém, pouco fazia de concreto, sobretudo por falta de alternativas viáveis. Em 26 de janeiro de 1821, no Rio de Janeiro, soldados, padres, comerciantes e funcionários portugueses promoveram pronunciamento que obrigou o soberano e seu herdeiro a jurarem submissão à futura Constituição que estava sendo discutida em Portugal e a abrirem o governo a pessoas comprometidas com as Cortes. Os proprietários brasileiros das cidades e dos campos mantiveram-se à margem dos sucessos. Em 26 de abril de 1821, no Rio Grande do Sul, quando o juramento real foi conhecido, como não se cumpria a determinação de que as câmaras realizassem o mesmo ato, a guarnição militar de Rio Grande, ligada ao liberalismo recolonizador lusitano, depôs o sargento-mor e comerciante Mateus da Cunha Telles, “magnata português”, e em Porto Alegre ocorreu forte movimentação contra os governantes interinos da província – o tenente-general Manoel Marques de Souza, o ouvidor Joaquim Benardino de Senna Ribeiro da Costa e o vereador Antônio José Rodrigues Ferreira. Em História popular do Rio Grande do Sul, de 1882, o então jovem republicano rio-grandense Alcides Lima (1859-1936) descreve o pronunciamento: “Pelas duas horas da madrugada estavam na praça, em frente à residência do governo, o batalhão de infantaria e artilharia armado e muni-

140

ciado de pólvora e balas, conduzindo duas bocas de fogo. Ao som do rebate reuniram-se-lhe imediatamente todos os corpos existentes em Porto Alegre e fizeram comparecer a sua presença o ouvidor da comarca, o juiz de fora, o cônego vigário-geral e o desembargador [...]. E depois, obrigando-os a irem trazer o governo interino, a câmara e o clero, fizeram jurar a Constituição no meio da praça, ao raiar da aurora, que foi saudada com 21 tiros.” O movimento interpretando a vontade das Cortes portuguesas ocorria em duas cidades onde os interesses comerciais lusitanos eram muito fortes: Porto Alegre e Rio Grande. Auguste de Saint-Hilaire, que se encontrava na província sulina, assinalou que o movimento não fora “obra do povo”, isto é, dos homens livres ricos do Rio Grande do Sul, mas “sim das tropas estimuladas pelos comerciantes” portugueses. O naturalista francês, partidário da restauração monárquica na França e, portanto, da autoridade de dom João, lembrou que no Sul as tropas lusitanas tinham sido “desgraçadamente” penetradas pelas ideias “ultraliberais”. Entretanto, o pronunciamento pró-liberal lusitano não se consolidaria no Rio Grande do Sul, como ocorrera no Pará, na Bahia e no Maranhão, mantendo-se o poder nas mãos das forças ligadas a dom João. A seguir, em 21 de maio, o padre José Rodrigues Malheiros Trancoso Soutomaior, que participara do movimento, foi remetido ao Rio de Janeiro e muitos “praças do batalhão de artilharia e infantaria que tomaram parte” nos acontecimentos foram “distribuídos pelas fronteiras”. Assim, a administração, ainda ligada ao absolutismo joanino, tentava vergar o constitucionalismo pró-Cortes no Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro, vencido pelos acontecimentos, dom João decidiu partir. Em 7 de março, temendo que sua volta a Portugal ensejasse a autonomia do reino americano, nomeou dom Pedro como chefe do “governo provisório do Brasil” e partiu, relutante e temeroso, em 26 abril. Antes da viagem, ele e seus acompanhantes saquearam os recursos do Banco do Brasil, trocando o ouro por moeda papel, sem qualquer valor, quebrando as finanças do reino do Brasil. Com a partida de dom João, com 23 anos, dom Pedro abocanhava parte do poder real sem esperar pela morte do pai. Cinco dias antes, precipitara a partida do rei dissolvendo, à força, uma assembleia dos eleitores paroquiais que reivindicava a formação de uma Junta Governativa dependente das Cortes. Dom Pedro encontrava-se no mando da mais rica província do Império português. Logo, porém, veria sua autoridade, primeiro, restringida e, após, ameaçada. Em abril de 1821, em Portugal, as Cortes declaravam os “governos provinciais” do Brasil independentes e sujeitos a Lisboa, pondo legalmente fim à administração autônoma do Brasil. Antes que a decisão fosse conhecida no Brasil, as juntas do Pará, da Bahia e do Maranhão, onde era, como visto, forte a presença do comércio

141

português, submetiam-se às Cortes, rompendo totalmente sua dependência ao Rio de Janeiro. Outras províncias – São Paulo, Minas Gerais, etc. – aproveitaram a dualidade de poderes e o conflito de autoridade entre a ex-sede administrativa no Rio de Janeiro e a nova, em Lisboa, para se autogovernar, registrando o forte interesse das classes dominantes daquelas regiões pela autonomia provincial radical ou pela independência.

Grandes esperanças Após a partida do pai e soberano, dom Pedro procurou consolidar sua posição e se reaproximar das forças constitucionalistas do Rio de Janeiro, desgostosas com a repressão de 21 de abril. Prometeu antecipar os benefícios da Constituição; aboliu taxas; determinou o respeito ao direito de propriedade e de liberdade individual. Os comerciantes e a guarnição militar portuguesa – a Divisão Auxiliadora – procuravam pôr também o Rio de Janeiro sob mando de uma Junta Governativa dependente de Lisboa. Em 5 de junho de 1821, a tentativa de dom Pedro de postergar o juramento às bases da Constituição portuguesa ensejou um pronunciamento militar daquela orientação. Sem alternativa, o príncipe submeteu-se ao partido lusitano no Rio de Janeiro, demitiu o ministério, aceitou a formação da Junta exigida. Sua regência tornava-se uma paródia, com o poder sobre o Rio de Janeiro a fugir-lhe das mãos. Desgostoso, pensava em retornar a Portugal. Tudo levava a crer que as Cortes lusitanas haviam vencido, ao menos substancialmente, no seu processo de recolonização do Brasil. Em 31 de julho de 1821, dom Pedro decretou a anexação da Banda Oriental (Uruguai) ao reino do Brasil sob o nome de província Cisplatina. Depois de quatro anos de dura luta contra as fortes, bem armadas e experientes tropas luso-brasileiras, treinadas nas batalhas napoleônicas, José Artigas (1764-1850) e seus gaúchos, índios e negros foram irremediavelmente vencidos na batalha de Taquarembó, em 22 de janeiro de 1820. Sem saída, o caudilho oriental exilou-se em setembro do mesmo ano no Paraguai do Doutor Gaspar de Francia, onde viveria até a morte. Em 20 de agosto de 1821, assumiu o quarto e último governador e capitão-geral do Rio Grande do Sul, o brigadeiro João Carlos de Saldanha Oliveira e Daun (1790-1876), então com 31 anos, nomeado em 13 de abril por dom João, seu padrinho de batismo, antes de partir. O militar, que recebera ordens de sufocar o constitucionalismo, mostrou-se fiel defensor da monarquia portuguesa, das Cortes e da união do Brasil a Portugal. As vitórias do projeto recolonizador português eram superficiais. As classes proprietárias das províncias brasileiras organizavam-se e perdiam as esperanças no constitucionalismo lusitano. Em setembro de 1821, movi-

142

mento em prol da coroação de dom Pedro agitou o Rio de Janeiro. O príncipe saberia da conspiração. Em setembro de 1821, decretos e instruções das Cortes extinguiam o reino do Brasil e reafirmavam que juntas provinciais, subordinadas a Portugal, governariam as províncias. Dom Pedro deveria voltar a Lisboa. As decisões, conhecidas no Brasil em 9 de dezembro, fortaleceram a proposta de segmentos proprietários do Brasil de entronizar o herdeiro português como imperador, garantindo, assim, a autonomia do Brasil. Na manhã de 16 de outubro, antes de as disposições recolonizadoras das Cortes serem conhecidas no Brasil, em Porto Alegre, o cel. Antero José Ferreira de Brito, ajudante de ordens do tenente-general Manuel Marques de Souza, e o oficial Antônio Manuel Correia da Câmara, futuro diplomata, com outros militares, tentaram destituir o brigadeiro Saldanha e formar junta governativa. Os militares, partidários da “independência do Brasil, sem detença” e opostos ao absolutismo e ao constitucionalismo lusitano, diziam contar com o apoio da câmara de Porto Alegre, das tropas de linhas, de milícias e de populares armados. Porém, foram facilmente debelados e ao menos dois deles, Antero José Brito e Manuel Marques de Souza, foram enviados para o Rio de Janeiro em dezembro. Em História do Rio Grande do Sul, o historiador Guilhermino César lembra que os oficiais sediados na capital dividiam-se em três grandes posições: “A facção radical postulava a ruptura imediata do Reino do Brasil com o de Portugal e a instituição da república – eram os chamados carbonários; a facção moderada queria a independência sob o cetro do Príncipe Regente; a ultramontana, ou conservadora, era pelo status quo.” Alguns sonhavam com uma independência republicana para o Rio Grande do Sul, certamente unida à Província Cisplatina, onde os criadores rio-grandenses possuíam imensas propriedades, e, eventualmente, federada às províncias argentinas de Corrintes e Entre Rios.

O inimigo interno A historiografia nacional tem dificuldade em explicar as causas da explosão das colônias espanholas em repúblicas e da formação de um Estado centralizado monárquico e unitário brasileiro. Fortes tendências sugeriam que o Brasil iria se dividir quando da independência. A plantagem monocultora escravista foi a principal unidade econômica colonial do Brasil. A produção regional era exportada para Portugal e, dali, para a Europa, pelos portos da costa. De Portugal chegavam os manufaturados europeus. O tráfico internacional de trabalhadores repunha os cativos destruídos na produção. Após 1808, as províncias do Brasil comercializavam diretamente com a Europa. O padrão agroexportador criava fraca comunidade de interesse

143

entre as províncias. O Brasil sempre fora espécie de mosaico de regiões produtivas semiautônomas, onde as classes dominantes crioulas detinham importante parte do poder. Facções dominantes regionais tendiam a almejar a independência total. Quando da crise do regime colonial-absolutista, as classes dominantes regionais defrontavam-se com importantes questões. Era necessário se independentizar de Portugal, pôr fim ao semimonopólio lusitano do comércio, defender o tráfico escravista das pressões abolicionistas inglesas. As classes proprietárias das diversas províncias eram monarquistas autoritárias ou constitucionalistas, republicanas, federalistas, separatistas, etc. A grande preocupação dos donos de terras e de homens era independentizar-se sem ameaçar a ordem escravista, base da organização social e produtiva. Havia poucos anos, os trabalhadores escravizados da ilha de Saint-Domingues haviam se sublevado, derrotado exércitos europeus, liquidado social e, não raro, fisicamente os proprietários escravistas, fundado, em 1804, o Haiti, primeiro território americano livre da escravidão. O Estado monárquico, autoritário e centralizado do Brasil foi filho da escravidão. A independência deu-se segundo as necessidades dos ricos comerciantes negreiros e plantadores escravistas provinciais. Os poderosos comerciantes de cativos, sobretudo do Rio de Janeiro, tiveram grande importância nessa modalidade de independência. A solução vitoriosa construiu-se com a adesão, em setembro de 1821, das principais facções proprietárias crioulas do Sudeste ao projeto unitarista, centralizador, conservador e constitucionalista, que propunha romper com Portugal e entronizar o herdeiro da Coroa lusitana. As Cortes esfacelaram a unidade administrativa do Brasil, esperando recolonizar ao menos parte da ex-colônia. Esse projeto foi derrotado e o Brasil surgiu como um Estado centralizado. A vitória do unitarismo consolidou-se em virtude da sufocação do ideário republicano, separatista e federalista dos setores livres e proprietários não hegemônicos. Então havia três grandes correntes políticas. Uma era a dos comerciantes, militares e funcionários portugueses vivendo no Brasil, que apoiava a recolonização constitucional do Brasil. Quando esta solução entrou em crise, seus partidários voltaram para Portugal ou aderiram à independência sob a direção do príncipe português, que lhes afiançava seus interesses na América. A explosão do Brasil em repúblicas seria um golpe duríssimo para os interesses mercantis lusitanos, que ficariam sob o arbítrio dos novos senhores das repúblicas de fala portuguesa. A segunda e maior corrente era formada por plantadores e comerciantes escravistas, crioulos, mas também portugueses, altos funcionários e comerciantes ligados aos ingleses e aos franceses. Mesmo quando simpáticos a soluções federalistas e separatistas, esses grupos optaram por independência ordeira e pela monarquia dual, se possível. Era o partido da “ordem” e da “estabilidade” política e social.

144

Republicanos e separatistas A corrente republicana reunia raquíticos setores médios – caixeiros, clérigos, jornalistas, mestres-escolas, suboficiais, etc. – favoráveis ao liberalismo e ao federalismo. Alguns almejavam a independência de suas províncias. Em junho de 1822, a convocação por dom Pedro de uma Constituinte transferiu para mais tarde a discussão sobre o caráter do novo Estado, sobretudo no que se refere ao grau de autonomia das províncias, sucedâneo para a sonhada independência provincial ou confederação republicana. Aqueles setores esperavam obter, no mínimo, o direito de eleger parlamentos e governos provinciais, controlando parte das rendas regionais. A convergência das duas últimas facções políticas – o partido da ordem e o republicano – criou o heterogêneo “partido brasileiro”. Todos os grupos em liça opunham-se à emergência social e política dos segmentos subalternizados e defendiam a manutenção da ordem escravista. Eram, nesse sentido, profundamente antidemocráticos. Jamais propuseram a liberdade para os trabalhadores escravizados ou o acesso a terras para a população livre pobre. O claro caráter escravista, oligárquico, elitista da independência do Brasil ensejou a construção de um Estado que não se consubstanciava em uma sociedade nacional – nação. Em 9 janeiro de 1822, estreitando-se os contatos entre o partido brasileiro e o regente, dom Pedro desobedeceu às Cortes e permaneceu no Brasil – o dia do “Fico”. Sem ter notícia do acontecimento, em 1o de fevereiro, a Câmara de Porto Alegre escrevera ao regente pedindo que não abandonasse o reino. No Rio Grande do Sul, em 9 de janeiro de 1822, o cel. Manoel Carneiro da Silva Fontoura discursara sobre a necessidade da permanência do regente: “[...] devemos ser considerados como um povo na mocidade das nações, possuindo todos os recursos que formam e engrandecem um império [...] não podemos de nenhum modo, nem por consideração alguma, consentir no decretado regresso de Vossa Alteza Real.” Parte substancial dos partidos brasileiro e português das províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, onde eram fortes os interesses negreiros e escravistas, aderiu à proposta do regente. No Sul, onde a economia charqueadora-pastoril se assentava fortemente na escravidão, o unitarismo era determinante também para a melhor manutenção da província Cisplatina como parte do reino do Brasil, o que garantiria da melhor forma os interesses dos criadores sul-rio-grandenses com enormes propriedades pastoril-escravistas sobretudo nas regiões setentrionais do Uruguai. No Rio de Janeiro, a Divisão Auxiliadora tentou responder à insubordinação e foi submetida em 11 de janeiro, sem combates, e enviada para Portugal. Ao saber do Fico, as Câmaras de Porto Alegre, Rio Pardo e Rio Grande expressaram seu regozijo, ou seja, as classes proprietárias desses municípios aderiam à manutenção do status do Brasil como reino, sob a

145

regência de dom Pedro e a autoridade de uma Constituição, que se esperava fosse liberal e federativa. Em 16 de janeiro de 1822, dom Pedro nomeou o paulista José Bonifácio, que passara a maior parte de sua vida na Europa, como funcionário lusitano, para a pasta dos Negócios do Interior, da Justiça e dos Estrangeiros. Dias mais tarde, determinou-se que todos os decretos das Cortes fossem necessariamente sancionados pelo regente. Em 16 de fevereiro, o “primeiroministro” iniciou a reconstrução da unidade política do Brasil, convocando o Conselho de Procuradores Gerais das províncias. No dia seguinte, proibiu-se o desembarque de tropas lusitanas no Brasil. Nos fatos, construía-se a independência em relação a Portugal. Logo Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul designariam seus representantes. Nessas quatro províncias os interesses escravistas eram muito fortes. No Rio Grande do Sul, em fins de fevereiro de 1822, elegeu-se governo de nove membros, escolhido pelos eleitores de paróquia, segundo as instruções das Cortes de setembro do ano anterior. A eleição expressou a oposição do “povo” à “tropa” de obediência “corcunda”, isto é, lusitana. Em 21 de fevereiro de 1822, em Porto Alegre, dois eleitores partidários das Cortes foram corridos a pedradas. Porém, as deliberações suspenderam-se sem resultados. O partido patriota não era ainda forte para impor sua vontade plenamente. No dia seguinte, diante da neutralidade do brigadeiro Saldanha, elegeu-se governo de conciliação que expressou a decisão dos eleitores de obedecerem ao rei português, às Cortes e ao regente e de “não voltar atrás da categoria de Reino”. Portanto, o Brasil deveria manter o status de reino independente, com Constituição própria, eventualmente como monarquia dual.

Brasileiros contra corcundas A manutenção do brigadeiro Saldanha, ligado a dom João e à monarquia portuguesa, como chefe do governo sulino deveu-se a sua capacidade de tergiversação, ao apoio que contava entre as tropas e os comerciantes lusitanos e à sua possível adesão à proposta da monarquia dual. Nesse momento, Saldanha sofria já a oposição do “partido brasileiro” ou “patriota” do Rio Grande do Sul. Os outros membros do governo sulino eram o marechal-decampo João de Deus Mena Barreto (vice-presidente), representante do partido brasileiro; o advogado Manuel Maria Ricalde Marques, secretário dos Negócios Públicos; o brigadeiro José Inácio da Silva, secretário dos Negócios da Guerra; o brigadeiro Félix José de Mattos; Manoel Alves dos Reis Louzada, vigário de Rio Pardo; Fernando José de Mascarenhas Castello Branco; Francisco Xavier Ferreira e o desembargador José Teixeira da Matta Barcelar. Praticamente não participaram do governo os grandes estancieiros da província.

146

Em 6 de março de 1822, o brigadeiro Saldanha comunicou a José Bonifácio a eleição e o envio para o Rio de Janeiro de um dos membros do novo governo. Em 9 de março, chegava ao Rio de Janeiro a divisão naval que deveria levar dom Pedro a Portugal. Ela voltaria três semanas depois, de mãos vazias, deixando novecentos soldados arrolados por dom Pedro, que, a seguir, viajou para Minas Gerais para neutralizar o partido autonomista local. Era a primeira vez, desde que chegara ao Rio de Janeiro, em 1808, que abandonava a corte! Nos meses seguintes, fortaleceu-se o apoio do partido brasileiro ao regente e cresceu o antagonismo do novo governo com as Cortes. Em 22 de junho de 1822, o brigadeiro Saldanha, chefe do governo sulino, comunicou ao Rio de Janeiro que as Câmaras municipais haviam escolhido, em 19 de junho, o vigário-geral Antônio Vieira da Soledade como representante no Conselho de Procuradores Provinciais. Com o ato, as classes dominantes sulinas aderiam, organicamente, ao governo central em formação. Em 3 de junho de 1822, com o crescente antagonismo entre as Cortes e o governo brasileiro em organização, este determinou a convocação de Assembleia Constituinte e Legislativa, a se reunir no Rio de Janeiro. A decisão não descartava a possibilidade de monarquia dual, com duas sedes, dois governos, duas assembleias e uma só monarquia. Essa decisão quebrou a unidade do governo e das classes proprietárias sulinas. Em 13 de julho, o brigadeiro Saldanha oficiou a José Bonifácio que seu governo anunciara a convocação da Assembleia Constituinte e, ao mesmo tempo, apresentou sua demissão do governo. Ele se opunha a uma Constituinte que não consultara a “vontade dos povos” e as Cortes portuguesas e que ocasionaria a independência, ao menos, da “parte Meridional do Brasil”. Na América do Norte, a Inglaterra vergara-se à independência das treze colônias e mantivera o controle das regiões norte da antiga colônia – o Canadá. As cortes esperavam manter, no mínimo, o controle sobre a Bahia e o norte do Brasil. O historiador e jornalista positivista e republicano Alfredo Varela (1864-1943) assinalou que Saldanha era partidário da “alta empresa da regeneração do país e do mantimento de sua ‘categoria de reino’, dentro de uma só nacionalidade, dentro da sociedade comum aos dois hemisférios; mas repudiava [...] o projeto que de fato a fragmentava, assegurando não só a independência do Brasil como a total separação, sob uma coroa diversa.”

Primeiros combates Com sua renúncia, o brigadeiro Saldanha tentava organizar movimento contra a Constituinte brasileira. Para desorganizar a tentativa, os membros do governo ligados ao projeto autonomista articulado em torno de dom

147

Pedro aceitaram a demissão apenas em 27 de agosto. O brigadeiro contava ainda com fortes partidários na província. Finalmente, em 29 de setembro ele seguiu para o Rio de Janeiro, assumindo o governo o rio-grandense João de Deus Mena Barreto (1769-1849). Era a primeira vez que as classes dominantes regionais mantinham tal poder sobre a província. Em 23 de agosto de 1822, durante reunião do Grande Oriente do Brasil, sob a influência do liberal exaltado Gonçalves Ledo, determinou-se que “irmãos” viajassem para Minas Gerais, Pernambuco, Santa Catarina, Espírito Santo e Rio Grande do Sul, a fim de aliciarem adeptos para a causa da independência, do constitucionalismo e da maçonaria. Francisco Xavier Ferreira e seus sobrinhos João Rodrigues Ribas e Domingos Rodrigues Ribas foram citados para viajar ao Sul. O movimento independentista fortalecia-se nas províncias do Sudeste e no Sul. Porém, parte do reino do Brasil – Bahia, Cisplatina, Maranhão e Pará – permanecia sob o controle de juntas ligadas a Lisboa. Em agosto de 1822 iniciaram-se os confrontos militares na Bahia. Pressionadas pela população, as tropas lusitanas abandonaram Pernambuco, que enviou delegados ao Conselho de Representantes, no Rio de Janeiro. Pernambuco era outra província com a produção profundamente assentada na exploração do trabalhador escravizado. Em 7 de setembro de 1822, aumentando a pressão das Cortes lusitanas, proclamou-se a independência. A partir de 4 de outubro, a notícia do rompimento com Portugal foi conhecida no Rio Grande do Sul, com a chegada à província de emissários do Rio de Janeiro. Segundo parece, eles participaram ativamente das manifestações públicas de apoio ao novo governo. Alfredo Varela possuía documento do governo do Rio de Janeiro instruindo, detalhadamente, como se daria a adesão das autoridades e do “povo” ao novo governo. Em 12 de outubro, na praça da Matriz, em frente à sede do governo provincial, às nove horas, formados o Corpo de Guaranis e a 1a da Milícias, com a presença do governador das armas, dos vereadores municipais, do juiz de fora, de autoridades e de grande número de “populares”, leu-se proclamação aclamando a independência e dom Pedro. A seguir, efetuaram-se diversas celebrações – missa solene, procissão, Te Deum, luminárias, etc. Determinou-se que “as festas públicas” durassem “nove dias e três meses”. Em 12 de outubro, dom Pedro declarava publicamente que aceitava o título de “Imperador Constitucional do Brasil”, prometendo que juraria uma Constituição votada pela Assembleia, desde que “fosse digna dele e do Brasil”. Os termos condicionais assinalavam o início da sua ruptura com o programa liberal e constitucional, que jamais abraçara. Desde 1817, a província Cisplatina estava ocupada militarmente por tropas luso-brasileiros, que intervieram a pedido dos grandes proprietários de Montevidéu, do interior e de Buenos Aires, atemorizados pelo ativismo

148

político e social artiguista, o qual impulsionava independência federativa para a ex-província do rio da Prata, associada à distribuição de terras para os gaúchos, nativos e negros, projeto aplicado nos anos 1814 e 1815. Os fazendeiros sul-rio-grandenses tinham importantes propriedades na região, com destaque para os territórios ao norte do rio Negro, exploradas com o braço escravizado, sobretudo. Um oficial português, Álvaro da Costa Souza e Macedo, sublevou a guarnição lusitana em prol da manutenção dos laços com Portugal. Tropas chegadas do Rio Grande do Sul, comandadas pelo tenente-general José de Abreu, debelaram a rebelião. O oficial e parte das tropas lusitanas retiraram-se para Portugal. Em 16 de outubro de 1822, José Feliciano Fernandes Pinheiro, o doutor Joaquim Bernardino de Senna Ribeiro da Costa e o cidadão Antônio Martins Basto foram eleitos deputados do Rio Grande do Sul à Assembleia Constituinte. O marechal-de-campo Francisco das Chagas Santos assumiu como suplente, pois José Feliciano Fernandes Pinheiro – futuro visconde de São Leopoldo – encontrava-se em Lisboa. Os trabalhadores escravizados, em grande parte africanos, desconheceram ou acompanharam apaticamente os fatos que levaram à Independência. Algumas senzalas agitaram-se e foram reprimidas, pois aqui e ali se acreditou que, com a ruptura dos vínculos com Portugal, abolira-se também a escravidão. Para centenas de milhares de trabalhadores escravizados urbanos e rurais a vida continuaria sem modificações. Os grandes proprietários haviam sido vitoriosos: o Brasil emergia como Estado soberano e as multidões de cativos permaneciam na secular submissão.

149

10 O Primeiro Reinado, a Abdicação e o Rio Grande do Sul Fora superficial a aliança dos grupos sociais proprietários e livres que participaram da Independência. Os federalistas, constitucionalistas e separatistas, socialmente débeis, temendo o perigo lusitano e servil, aceitaram a solução unitarista e monárquica imposta pelos grandes proprietários escravistas, desde que sob uma ordem liberal, federativa e constitucional. Apenas se apoderou do poder, dom Pedro abriu hostilidades, primeiro, contra os liberais e, a seguir, contra os constitucionalistas conservadores. Após setembro de 1822, serviu-se dos irmãos Bonifácios para golpear liberais, constitucionalistas e federalistas. José Bonifácio (1763-1838), com 59 anos, era o principal intérprete do jovem regente e do bloco social dos grandes proprietários e comerciantes escravistas. Nascido em São Paulo, passara a maior parte de sua vida em Portugal. De certo modo, era um brasileiro virtual. Dom Pedro apoiou a perseguição de José Bonifácio aos constitucionalistas. Em 12 de outubro de 1822, a aclamação do imperador deu-se sem que assumisse o compromisso de aceitar a futura Constituição. Em inícios de novembro, concordou com a deportação de “patriotas”. Em 1º de dezembro, quando da coroação, jurou aceitar a Constituição, desde que fosse “digna” dele. Em 3 de maio de 1823, a Constituinte reuniu-se. Ao abrir os trabalhos, dom Pedro conclamou os deputados a redigirem Constituição que se baseasse na “sabedoria dos séculos” e que rejeitassem as constituições francesas de 1791 e 1792. José Bonifácio apoiou-o servilmente e o padre constitucionalista José Custódio lembrou que “o julgar se a Constituição que se fizer é digna do Brasil, só compete a nós como representantes do povo”, ou seja, dos proprietários organizados em assembleia. Em 21 de maio, o governo obteve a rejeição, por 35 votos contra 17, de projeto apresentado por Antônio Martins Basto, representante do Rio Grande do Sul, de anistia de constitucionalistas radicais e republicanos anteriormente presos. Nos meses seguintes, José Bonifácio dirigiria o governo e orientaria os trabalhos parlamentares autoritariamente, obtendo que a Constituição entregasse ao imperador o poder de nomear e demitir os ministros e os presidentes das províncias, o que feria profundamente as esperanças federalistas e liberais.

150

Ventos reacionários Modificara-se o cenário internacional. Por toda a Europa, o absolutismo levantava a cabeça. Em Portugal, as forças absolutistas sublevaram-se e vergaram, em maio de 1823, o constitucionalismo. Com o retorno do realismo, fortaleciam-se os partidos absolutista e português no Brasil. Em fins de julho, dom Pedro demitiu os irmãos Bonifácios por apoiarem a proposta parlamentar de expulsão dos portugueses hostis à Independência. A ruptura do imperador com os Bonifácios expressava o fortalecimento do “partido português”. Em 3 de julho de 1823, as tropas portuguesas abandonavam a cidade de Salvador. Apesar de o Brasil estar em guerra com Portugal, dom Pedro alistou soldados e suboficiais lusitanos, como já fizera anteriormente, adquirindo, assim, tropas dedicadas a ele e aos interesses lusitanos, não ao novo Estado. Em julho de 1823 soube-se na corte que no mês anterior dois oficiais de Porto Alegre, filhos do marechal Mena Barreto, presidente da Junta Governativa, com suas tropas, haviam jurado, em presença das autoridades, obediência ao imperador e se pronunciado pela concessão a ele do veto absoluto sobre as iniciativas da Assembleia Constituinte e Legislativa. O pronunciamento anticonstitucional foi punido superficialmente. A queda dos Bonifácios mostrava a vontade de dom Pedro de se autonomizar do “partido patriota” e governar autocraticamente em nome de todas as facções proprietárias, com destaque para os grandes proprietários e comerciantes escravistas, segundo seus interesses dinásticos. O pronunciamento de Porto Alegre e a adesão de outros setores proprietários ao anticonstitucionalismo demonstravam que eram fortes os sentimentos antiliberais entre o que restara do partido português e, sobretudo, por parte de muitos proprietários e comerciantes escravistas, que, obtida a independência, sonhavam com o retorno à “tranquilidade” social e política do velho reinado. Em 5 de novembro de 1823, dois oficiais portugueses espancaram o boticário e patriota David Pamplona. Apesar de nascido nos Açores, ele era acusado de ser o autor de artigo ofensivo a militares lusitanos arrolados por dom Pedro. Os pronunciamentos de deputados contra a impunidade dos oficiais justificaram pronto golpe militar. Em 12 de novembro, dom Pedro saiu da residência imperial, à frente de um forte destacamento militar, para fechar a Assembleia Geral Legislativa e Constituinte. Nos dias seguintes, o imperador publicou proclamações justificando o ato, impôs a censura, perseguiu e prendeu liberais e constitucionalistas.

151

Escravistas e corcundas O golpe de Pedro I recebeu o apoio do partido corcunda e dos setores mais conservadores do partido brasileiro, entre os quais os grandes comerciantes e proprietários de trabalhadores escravizados. Entre as diversas manifestações de adesão destacou-se a de 17 de dezembro de 1823, do cabildo de Montevidéu, formado sobretudo pelos grandes comerciantes e proprietários da Banda Oriental, onde existia guarnição de dois mil veteranos lusitanos, que praticamente pediu a volta ao absolutismo. Em 13 de novembro de 1823, dom Pedro nomeou Conselho de Estado, com dez membros, para elaborar, sob a sua orientação, projeto de Constituição, que em início de 1824 estava concluído. Desconhecendo promessa de mandar votar o projeto por Assembleia Nacional, limitou-se a enviá-lo às Câmaras municipais e a sancioná-lo, em 25 de março. A seguir, governou por dois anos sem convocar o Legislativo. A Carta de 1824 normalizava as conquistas civis dos homens livres, a representatividade política muito limitada das classes proprietárias, a autoridade superior do imperador, a liberdade individual e o direito de propriedade. Dom Pedro concedia o inevitável e apresentava a Constituição autoritária como concessão real, não como expressão da passada ruptura das classes dominantes do Brasil com o absolutismo lusitano. Ao lado dos três poderes burgueses criava-se o poder Moderador, privativo do monarca, sobrevivência do absolutismo, adaptação política à ordem escravista. Entre outras atribuições, este poder garantia ao imperador a dissolução do Legislativo, composto por uma Câmara de Deputados temporária e pelo Senado vitalício. A Assembleia funcionava quatro meses por ano, podendo o imperador prorrogá-la. Nela, a província do Rio Grande do Sul dispunha de três deputados. O imperador escolhia os senadores em lista tríplice, o que lhe garantia o controle da Câmara Alta. As eleições eram indiretas, em dois graus e censitárias – portanto, votavam e eram votados apenas os rentistas, ou seja, os grandes proprietários. O imperador exercia o Poder Executivo, escolhendo os ministros e os presidentes provinciais. A última atribuição punha fim à esperança de autonomia federativa provincial, já que os conselhos gerais das províncias poucos poderes detinham, pois o imperador devia aprovar suas decisões. Como nos tempos coloniais, a Câmara Municipal continuou sendo o principal órgão político das classes dominantes locais. Em nível provincial, continuava funcionando o Conselho Administrativo, ligado ao presidente da província. A organização judiciária sulina era constituída pelos juízes de paz, pelos juízes municipais e pelos juízes de direito. Até 1874, os recursos eram apresentados à Relação do Rio de Janeiro. O primeiro presidente da província do Rio Grande do Sul foi o desembargador paulista José Feliciano Fernandes Pinheiro (1824-1826), futuro viscon-

152

de de São Leopoldo, que seguia servindo o filho após servir fielmente o pai. O primeiro governador das Armas foi o general José de Abreu. Talvez a maior concessão imperial às classes proprietárias das províncias, expropriadas de qualquer poder político efetivo tenha sido a extinção da tradicional doação sesmeira de terras, privilégio do poder central. Desde então, passou a vigir o regime das posses, ou seja, o direito dos grandes proprietários de se apoderarem das terras tidas como devolutas que pudessem explorar. Facilidade extinta apenas em 1850-54, quando, em razão da interrução do tráfico transatlântico de cativos, em 1850, determinou-se o fim de apropriação-doação gratuita de terras, com o objetivo de criar classe de homens livres pobres sem propriedades, que viesse a substituir os trabalhadores escravizados. A chamada “Lei de Terras” concedeu o direito de reconhecimento das antigas “posses”, legalizadas no contexto de enormes abusos pelos grandes proprietários fundiários. A Constituição de 1824 facultava ao imperador herdar Coroas estrangeiras, permitindo a reunificação de Portugal e do Brasil. A cidadania não era reconhecida aos trabalhadores escravizados e às populações nativas. Então o Brasil tinha quatro milhões de habitantes, entre os quais um milhão e meio eram trabalhadores escravizados africanos ou nascidos no Brasil. No Rio Grande do Sul, a população era de uns 110 mil habitantes – uns 3% da população do Império. Em 2004, a população do Rio Grande do Sul era pouco mais de 5% da população brasileira. Consolidava-se o Estado no momento em que frustrava a construção de uma nação.

Fim do sonho A dissolução da Assembleia Geral Legislativa e Constituinte motivou protestos liberais e republicanos sobretudo na Bahia e em Pernambuco. O mesmo ocorreu quando da outorga da Constituição autoritária. No Rio Grande do Sul, a medida fortaleceu os liberais exaltados (farroupilhas) e os republicanos, ainda minoritários. Nas províncias de Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, causou importante rebelião separatista e republicana em 1824 – a Confederação do Equador –, afogada no sangue. O movimento pernambucano foi derrotado, pois, como em 1817, os grandes escravistas, temendo o futuro da escravidão e do tráfico negreiro, deram as costas aos revolucionários, que não se arriscaram a mobilizar os trabalhadores escravizados e as populações livres pobres. Os revolucionários haviam prometido abolir o tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados para atrair a simpatia da Inglaterra, o que os incompatibilizou com os plantadores escravistas. Isolados, os rebeldes foram derrotados e seus líderes, julgados e executados sumariamente, ao arrepio da própria Constituição de 1824.

153

Apenas a submissão pela força das tendências liberais e federalistas não garantia a estabilização do regime imperial, centralizador e autoritário. As dificuldades econômicas e soluções infelizes dadas por dom Pedro a diversas questões internas e internacionais restringiram as forças que sustentavam o regime, levando à sua deposição em 7 de abril de 1831. Apesar de ser fortemente beneficiária da Independência unitária, a Inglaterra vendeu caro o reconhecimento do novo Estado, arrancando ao imperador importantes concessões também para Portugal. Em agosto de 1825, o delegado inglês, enviado ao Rio de Janeiro para discutir o reconhecimento do novo Império, representando igualmente a Portugal, obteve tratado que concedia iguais direitos aos súditos portugueses e brasileiros; prometia não anexar colônias lusitanas; entregava a dom João o título honorífico de imperador do Brasil; garantia privilégios comerciais aos lusitanos, etc. Uma cláusula secreta assegurava que o Império indenizaria dom João e assumiria empréstimo feito na Inglaterra pelo governo de Portugal, para combater a independência do Brasil! As concessões eram prejudiciais ao Império. A outorga do título de imperador a dom João restituía a dom Pedro seus direitos na sucessão, permitindo a eventual reunificação do Brasil e de Portugal. Eram importantes os interesses econômicos lusitanos no Brasil e quase nulos os interesses brasileiros em Portugal: a igualdade interessava apenas aos lusitanos no Brasil. Em 1822, os negreiros angolanos quiseram anexar aquela colônia ao Brasil, o que transformaria o tráfico negreiro entre as duas regiões num mero movimento de populações no interior de um mesmo país, contornando as crescentes pressões inglesas contra o tráfico africano. Também teve final infeliz a aventura expansionista de dom Pedro no Prata. Desde a fundação da Colônia do Sacramento, em 1680, Portugal quisera estender as fronteiras da colônia americana até o rio da Prata, centro de poderosa atividade comercial e principal via de comunicação com o interior do continente. No Brasil, dom João interviera na Banda Oriental, sobretudo contra o patriota José Gervásio Artigas, que lutava pela independência democrática e federativa da província oriental do vice-reinado do rio da Prata, de 1811 a 1820, contra as tropas espanholistas, portenhas e imperiais. Em 1816-1820, tropas luso-brasileiras intervieram em defesa da Banda Oriental, em mãos de José Artigas e de suas tropas, formadas em boa parte por gauchos, descendentes de guaranis missioneiros, minuanos, charruas, guaicurus, cativos fugidos, etc. As tropas minuanas lutaram ao lado de Artigas, mantendo suas armas primitivas e sua independência. Artigas prometera e implementara a distribuição de terras a gaúchos, nativos, negros, etc. alistados em suas tropas, o que tendia a incendiar socialmente os pampas hispânicos e luso-brasileiros. Com o “Regulamento” de setembro de 1815, ele determinara que as terras e os gados dos proprietários contrários

154

à independência oriental e doadas pelo governo de Montevidéu (1810-1815) fossem repartidas aos “negros y zambos libres, índios, criollos pobres, viudas pobres com hijos, americanos casados com preferências a los solteros, y extranjeros”. Para pôr também fim ao exemplo subversivo do caudilho, após a invasão da Banda Oriental, em janeiro de 1817, tropas do Império, formadas por veteranos das guerras napoleônecas, estancieiros sulinos e seus capatazes e peões, ocuparam Montevidéu, pondo a seguir fim à ação do mais radical caudilho platense, que organizara e comandara a união federativa – Liga Federal ou União dos Povos Livres – das províncias Oriental, de Córdoba, de Corrientes, de Entre Ríos, de Santa Fé e das Misiones, que conclamara a adesão de todas as antigas províncias do vice-reinado. A intervenção também desarticulou tentativa de reconquista das Missões, comandada pelo filho adotivo de Artigas – Andrezito Artigas –, o guarani André Guacarari, que sitiou São Borja em 1816.

Gaúchos de lá e de cá No século 18, a fundação da Jurisdicción de Montevidéu (1724-30) estabeleceu o domínio espanhol sobre as regiões meridionais da Banda Oriental. As terras ao norte do rio Negro, escassamente ocupadas, pertenciam às Missões e eram habitadas por comunidades minuanas. Com a crise missioneira, fazendeiros castelhanos estabeleceram enormes propriedades nesses territórios – denuncias –, sobretudo para a caça ao gado chimarrão. Sobretudo após a articulação da produção charqueadora, em 1780, criadores sulrio-grandenses começaram a se infiltrar nesses territórios, à caça de gado chimarrão, inicialmente, e a seguir para estabelecer estâncias. No início do século 19, a Banda Oriental do Uruguai era território semidesabitado, com uns trinta mil habitantes, no máximo, ocupado sobretudo por enormes fazendas pastoris, que se esparramavam pelo interior, ou chácaras e estância menores, as quais se concentravam nas imediações das poucas cidades da região, localizadas sobretudo às margens do Prata, com destaque para a vila-porto de Montevidéu. Nesses primeiros tempos, Sacramento, fundada pelos portugueses em 1680, teria cinco mil moradores; Montevidéu, pouco mais de dois mil. O escravismo desempenhava papel secundário na região, onde dominava o gaucho, que surgira, em inícios do século 18, como tipo humano e grupo social significativo e singularizado do pampa. Etnicamente, o gaucho surgira da miscigenação de espanhóis pobres, náufragos, desertores, cativos fugidos, etc. com guaranis, charruas e minuanos aculturados ou semiaculturados. Socialmente, ele foi produzido pela impossibilidade de ascender ao domínio da terra e dos gados, pela monopolização pela Coroa espanhola dos

155

campos americanos e pela decisão do cabildo de Buenos Aires de estender sua autoridade sobre os gados chimarrãos. Essa população, de peso significativo na Banda Oriental, talvez sua principal pátria, vivia nos campos indivisos, caçando e pescando; empregava-se episodicamente em vaquerias, em faenas de couro, em operações de contrabando, nas grandes fazendas chimarrãs da Banda Oriental. O gaucho sobrevivia, igualmente, em pequenas posses de terras, que ocupava precariamente com sua mulher – china – e filhos, em conquista e defesa das quais lutaria nas montoneras artiguistas. Portanto, apesar da escassez populacional relativa, ao contrário do Brasil, terra de escravizadores e de escravizados, a Banda Oriental, assim como a outra margem do Prata, contava com uma massa aguerrida de homens livres e pobres, hábeis cavaleiros e destros guerreiros, dispostos a lutar pela independência de sua terra. Em 1821, antes mesmo da Independência, a ocupação militar luso-brasileira determinou a incorporação da Banda Oriental ao Reino do Brasil, como província Cisplatina, sancionada por decisão da oligarquia de Montevidéu, por intermédio do cabildo da cidade, sem autoridade efetiva para tal. Nos anos seguintes, Buenos Aires e a maioria dos habitantes da região expressaram seu descontentamento com a anexação. O controle luso-brasileiro da Banda Oriental permitiu que os gados fossem levados para as charqueadas sul-riograndenses, sem que fosse paga qualquer taxa e que fazendeiros, sobretudo sulinos, expandissem suas propriedades principalmente no norte da Banda Oriental. O regime luso-brasileiro e, a seguir, imperial sufocaria a oligarquia comercial de Montevidéu, deslocada em favor dos interesses do comércio do Rio de Janeiro, alienando o próprio apoio desse segmento anexionista. Organizada em torno da família Obes e suas ramificações – a Grande Família –, a oligarquia montevideana pró-brasileira constituiria, mais tarde, o núcleo central do Partido Colorado. Em 19 de abril de 1825, com o apoio dos comerciantes, estancieiros e charqueadores de Buenos Aires, um grupo armado desembarcou na margem norte do rio da Prata, comandado por Juan Antonio Lavalleja (17861853) – “Los Trinta e Tres Orientales” –, iniciando os combates pela libertação da Banda Oriental. Sentindo a mudança dos ventos, Fructuoso Rivera, general artiguista, antes que aderira ao inimigo lusitano, abandonou o Império, unindo-se aos revoltosos. Muito logo, com as tropas engrossadas por destemidos gauchos, praticamente toda a região encontrava-se nas mãos dos libertadores, menos Montevidéu e a Colônia do Sacramento, defendida pelas tropas e, sobretudo, pela Marinha do Império. Em 25 de agosto de 1825, na vila Florida, um governo provisório e uma Assembleia Constituinte proclamaram a independência da Banda Oriental do Uruguai, em associação com os Estados Confederados do Rio da Prata. O comandante das tropas imperialistas, o tenente-general Carlos Frederico de Lecor (1764-1836), barão de Laguna, nascido em Portugal, que comandara

156

a invasão e a ocupação da Banda Oriental, pediu reforços à província do Rio Grande do Sul. Em 4 de setembro, a brigada de Bento Manuel Ribeiro (1783-1855) derrotou Frutuoso Rivera. Em outubro, porém, 2.200 soldados imperiais foram vencidos em El Sarandi. Buenos Aires abastecia com facilidades as tropas uruguaias, e o Rio de Janeiro encontrava-se distante no palco dos combates. Para melhor organizar as operações, dom Pedro visitou rapidamente o Sul em fins de 1825. A longínqua guerra consumia recursos humanos e materiais de um Império empobrecido pela crise da economia mineradora em fins do século anterior, sem que se vislumbrasse ainda algum produto adaptado à exportação escravista. Os grandes proprietários do Império antipatizavam com uma aventura militar e imperialista, querida pelo imperador. Ao contrário, os criadores e charqueadores sul-rio-grandenses apoiaram firmemente a guerra imperialista, assim como capitalistas do Rio de Janeiro envolvidos no comércio do Prata. As campanhas militares de dom João haviam facilitado a expansão dos fazendeiros sulinos em direção à Banda Oriental. O movimento expansionista garantira a apropriação de terras tidas como desabitadas, sobretudo ao norte do rio Negro; o saqueio de manadas selvagens ou não; um maior controle da população seminômade da região. Essas estâncias foram povoadas em grande parte com trabalhadores escravizados. Os principais chefes da futura Revolta Farroupilha – Bento Gonçalves, Bento Manuel, Antonio de Sousa Neto, etc. – lutaram nas guerras de ocupação da Banda Oriental, como oficiais de milícia, nas quais, não raro, enriqueceram-se com a apropriação de cavalhadas e boiadas, como o fizeram caudilhos orientais. Bento Gonçalves da Silva (1788-1847), filho de rico fazendeiro de Camaquã, após desertar, em 1811, das tropas luso-brasileiras, lutou ao lado de José Gervásio Artigas, certamente atraído pelo projeto americanista do caudilho de federar a Banda Oriental, o Rio Grande do Sul, Entre Rios, Corrientes, etc. A seguir, estabeleceu-se em Serro Largo como fazendeiro e comerciante, casando-se com uma jovem proprietária.

Senhores da fronteira Nas campanhas seguintes, o futuro líder farroupilha progrediria nas forças armadas imperiais, chegando à situação de coronel do exército regular. Nos anos 1830, foi comandante do IV Corpo de Cavalaria do Exército, na fronteira do Rio Grande, e, a seguir, comandante supremo da Guarda Nacional do Rio Grande do Sul. Bento Manuel Ribeiro (1783-1855), outro líder farroupilha, ex-peão, filho de tropeiro, destacou-se igualmente nos combates da Banda Oriental, recebendo importantes extensões de terras na Cisplatina. Mais tarde se tornaria um quase vice-rei de Alegrete, na fronteira.

157

As pastagens da Banda Oriental eram melhores do que as sulinas, sustentando um maior número de cabeças de gado. Nas regiões ao norte do rio Negro, ao contrário das fazendas uruguaias, as propriedades sul-riograndenses possuíam habitualmente cativos, dedicados às tarefas domésticas, às plantações e às práticas pastoris. Por um longo tempo, o norte do Uruguai constituiu uma espécie de prorrogação do sul do Rio Grande do Sul, como assinala o historiador Eduardo Palermo em Tierra esclavizada: el norte uruguaio en la primera mitad del siglo 19. Em dezembro de 1825, em resposta às sucessivas derrotas militares que sofria, o Império declarou guerra à Confederação Argentina e bloqueou o porto de Buenos Aires, igualmente contra os interesses britânicos. Então, Buenos Aires concedeu cartas de corso a aventureiros que atacaram navios imperiais, com graves prejuízos para o comércio marítimo ao longo da costa do Brasil, outro motivo de enorme insatisfação para proprietários do Império. Em razão do bloqueio do Prata e da captura de naves estrangeiras, o governo imperial via-se obrigado a pagar pesadas indenizações às grandes potências. A insurreição de imigrantes europeus enviados para lutar no Uruguai, o golpe antiliberal em Portugal de abril-maio de 1828 e, sobretudo, a enorme derrota de 20 de fevereiro de 1827, na qual faleceu o marechal José de Abreu Mena Barreto, levaram dom Pedro e a administração imperial a acordar com Buenos Aires, em agosto do mesmo ano, como desejavam os ingleses, sobre a independência da Banda Oriental e a livre navegação do Prata. O fracasso dos exércitos imperiais, comandados pelo marechal-decampo Gustavo Henrique Brown, na batalha de Ituzaingó/Passo do Rosário teria se devido à literal defecção, sob a complacência de Lecor, das tropas comandadas por Bento Gonçalves, Bento Manoel, Antônio de Sousa Neto. Os coronéis rio-grandenses abandonaram os combates, mantiveram-se na imobilidade, atropelaram com sua cavalaria as tropas imperiais, etc. Nos fatos, as tropas rio-grandenses literalmente aderiram aos exércitos platinos, como lembra o historiador Newton Carneiro. A traição apenas disfarçada registrava a consciência dos criadores sulrio-grandenses sobre a incapacidade do Estado imperial de defender seus interesses na Cisplatina. Efetivamente, quando da Convenção para a Paz Preliminar, em 1828, o Império não conseguiu sequer assegurar os direitos dos fazendeiros sulinos no Uruguai nem indenizou suas perdas durante o conflito. Ituzaingó/Passo do Rosário teria expressado materialmente os acordos dos caudilhos rio-grandenses com o poder emergente no Uruguai e no Prata. A defecção punha por terra a capacidade imperial de prosseguir a guerra e anunciava as novas alianças das classes pastoris sulinas e sua ruptura com o Império, de sete anos mais tarde, quando da Guerra Farroupilha. O Império teria perdido 120 milhões de cruzados e oito mil vidas na guerra Cisplatina. Para a época, gastos imensos em vidas e recursos. Pio-

158

rando tudo, em abril de 1828 Frutuoso Rivera assaltou as Missões Ocidentais, incorporadas ao Brasil em 1801, levando dali dezenas de carretas de despojos, umas vinte mil reses e talvez seis mil guaranis missioneiros, que concordaram em partir e se estabelecer no norte do Uruguai, sob a proteção do caudilho oriental. A operação teria contado, igualmente, com a complacência dos grandes criadores rio-grandenses. Assinalando a proximidade dos grandes criadores do meridião sulino com o novo Estado uruguaio, o presidente Frutuoso Rivera impulsionaria, em 1831, a campanha de repressão aos gauchos e de extermínio dos charruas naquela região – Limpeza dos Campos –, a pedido dos estancieiros riograndenses, que puderam expandir suas estâncias escravistas na região. Essa campanha se efetivou através de massacres, à traição, de minuanos veteranos da então recente luta pela independência nacional. Convocados por Rivera, com quem mantinham laços estreitos, ao Potrero del Salsipuedes, para organizar captura de gados no Rio Grande do Sul, os minuanos foram massacrados de surpresa por mais de 1.200 soldados, prosseguindo, a seguir, outras emboscadas em Queguay, Estancia del viejo Bonifacio, em Mataojo, etc. O envolvimento de dom Pedro na questão dinástica portuguesa irritava os “homens bons” da nação. O reconhecimento português da Independência tornara o jovem imperador herdeiro da Coroa portuguesa. Em 1826, com a morte de dom João, seu pai, Pedro I, aceitara e, a seguir, abdicara da Coroa portuguesa em favor da filha, Maria da Glória (1819-1853), de sete anos. Na tentativa de acomodação com o partido absolutista português e as ambições dinásticas de seu irmão, dom Pedro concedeu a menina em casamento a dom Miguel, de 24 anos, chefe dos portugueses. Um casamento que jamais seria consumado.

Fim de reino Em razão da menoridade da filha, dom Pedro permaneceu como regente, outorgando aos portugueses uma Constituição, que, apesar de seu antidemocratismo, foi mal recebida pela aristocracia lusitana absolutista. Ao contrário do Brasil, Portugal desconhecia a escravidão. Portanto, com a nova carta a totalidade da população lusitana ascendia à cidadania, mesmo que limitada, o que era inaceitável para os nobres absolutistas, que se mobilizavam pelo retorno ao Antigo Regime, para afiançar seus privilégios. Em abril de 1828, em virtude da mudança ministerial na Inglaterra, as tropas daquele país que garantiam o acordo político-dinástico abandonaram Portugal, permitindo que os absolutistas se apoderassem do poder. O golpe desrespeitava os direitos de dona Maria da Glória e de dom Pedro, que interveio nos assuntos portugueses, apoiando o partido liberal e os interesses

159

de sua filha e seus, com recursos do Império, para enorme desgosto dos grandes proprietários do Brasil. A crise econômica da época, a péssima situação financeira do Estado imperial, o comportamento autocrático, o envolvimento na política portuguesa, o fracasso da aventura cisplatina, os privilégios concedidos aos lusitanos nos postos públicos civis, militares e religiosos, etc. corroíam o prestígio de dom Pedro junto aos grandes proprietários do Brasil. Também contribuiu para a deposição sua adesão às exigências inglesas de abolição do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados. No século 18, a Inglaterra dominara o tráfico de trabalhadores escravizados. No 19, a Revolução Industrial determinara que açúcar e tráfico perdessem importância para a economia inglesa. Então, a África Negra deixou de ser vista como sementeira de cativos para ser compreendida como território capaz de suprir parte das novas necessidades britânicas de matérias-primas e de mercados. Para tal, os reinos africanos escravizadores da costa deveriam ser destruídos, para facilitar a penetração inglesa e obrigar que os comerciantes negro-africanos se reconvertessem ao comércio de matérias-primas. A partir de 1810, a Inglaterra arrancou de Portugal, metrópole do maior importador de cativos da época, tratados restringindo o tráfico transatlântico. Após 1822, o Brasil passou a ser a principal nação independente importadora de trabalhadores escravizados. Uma das exigências inglesas para o reconhecimento do Brasil e para o apoio da política dinástica de dom Pedro em Portugal fora o fim do comércio internacional de trabalhadores escravizados. Em 23 de novembro de 1826, Pedro I subscreveu convenção que proibia o tráfico negreiro, três anos após a sua ratificação (13 de março de 1827). Então, o tráfico seria pirataria. As classes proprietárias brasileiras opunham-se ao acordo. Em fim do século anterior, a produção escravista mineradora esgotara-se, sem que fosse encontrada uma atividade sucedânea para empregar os trabalhadores escravizados. O marasmo da economia escravista criava reais condições para a abolição do tráfico, com a manutenção da escravidão. Porém, nas proximidades da corte desenvolviam-se as primeiras plantações de café, exigindo braços escravizados, o que reaqueceu o tráfico transatlântico após o consumo dos cativos subempregados. O desenvolvimento da cafeicultura sustentava também a expansão da produção charqueadora e pastoril do Rio Grande do Sul e do norte do Uruguai, assim como a criação e comércio de mulas. Todas essas atividades exigiam importante quantidade de trabalhadores escravizados.

160

Um país sem rei Em maio de 1826, instalou-se finalmente a Assembleia Legislativa. Controlando o Senado e o Executivo, Pedro I despreocupou-se majestaticamente com as reivindicações dos deputados provinciais. Muito logo a Câmara Baixa tornou-se o centro de acirrada oposição liberal anticentralista, que se fortaleceu após o desastre para o Império da Guerra Cisplatina, em 1828, e com a crise dinástica portuguesa e as concessões do imperador à Inglaterra referentes ao fim do tráfico transatlântico. Como o Rio Grande era considerado província populosa, seu Conselho Geral da Província possuía 21 membros. Foi instalado em 30 de novembro de 1828, com a maioria dos seus membros provindos dos segmentos sociais administrativos – funcionários, juízes, oficiais, sacerdotes, etc. Isso sugere que os grandes proprietários pastoris da Campanha, da fronteira, do norte do Uruguai não alcançavam, ainda, expressão política correspondente ao seu real e crescente poder econômico. A independência uruguaia quebrara a adesão e, de certo modo, a dependência dos fazendeiros sulinos ao Império. Com a degradação da situação econômica e os insucessos imperiais, fortaleceram-se as facções federalistas e liberais moderadas e radicais no Rio Grande do Sul e nas demais províncias do Brasil. Os acordos sobre o fim do tráfico alienavam a adesão ao imperador dos poderosos comerciantes de cativos do Rio de Janeiro. Em pouco tempo, dom Pedro passou a interpretar sobretudo o cada vez mais frágil partido dos lusitanos. Em setembro de 1830, a demissão do ministério do marquês de Barbacena, que governava apoiado no Parlamento, pôs fim à breve experiência parlamentarista. Em 1830, a vitória da Revolução de Julho em Paris, comandada pela burguesia liberal, com a participação da pequena burguesia e do operariado, que pôs fim à restauração bourbônica, modificou fortemente o cenário político europeu. Em setembro, ao se saber no Brasil das jornadas libertárias francesas que haviam deposto Carlos X (1824-1830), liberais de Pernambuco, do Rio de Janeiro e de São Paulo iluminaram as casas em sinal de alegria, em expressão pública de defecção com a monarquia e com dom Pedro. Em dezembro, Pedro I viajou para Minas Gerais, procurando ganhá-la à causa imperial, como fizera antes da Independência. Foi tão fria a acolhida dos proprietários mineiros que o imperador teria falado de abdicação quando voltava ao Rio de Janeiro. As festividades organizadas sobretudo pelos lusitanos e áulicos para celebrar o retorno do imperador e levantar os ânimos do seu partido ensejaram o confronto de 13 de março, a célebre noite em que voaram as garrafas, e as manifestações patrióticas que se seguiram, durante as quais ficou claro que dom Pedro perdera o apoio do “partido brasileiro”, ou seja, dos grandes proprietários do país, com destaque para o Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.

161

Com a crescente agitação liberal, um senador e 23 deputados liberais lançaram um ultimato ao imperador: entre os liberais insurgentes encontrava-se o deputado rio-grandense Cândido Batista de Oliveira (1801-1865). No dia 19, Pedro I nomeou ministério de brasileiros natos, que não obteve resultados, em vista da pouca relevância dos seus membros, incapazes de governar à margem da sombra do príncipe lusitano. Então, os líderes liberais discutiam a melhor forma de depor dom Pedro e as vantagens e desvantagens de uma organização republicana. Após grande manifestação pela reintegração do antigo ministério, com doze mil participantes, uma verdadeira multidão para a época, e a defecção das tropas militares da corte, dom Pedro abdicou em favor de seu filho, de cinco anos, em 7 de abril de 1831. A seguir, após negociar avaramente a venda de suas propriedades privadas no Brasil, embarcou para a Europa com a esposa, filha e um pequeno número de cortesãos. Em Portugal se envolveria diretamente na luta dos liberais lusitanos contra o absolutismo miguelista. Em 7 de abril de 1831, dia da real emancipação política dos proprietários do Brasil, senadores e deputados presentes na corte indicaram uma Regência Trina Provisória – o senador José Joaquim Carneiro de Campos, marquês de Caravelas, principal eminência do antigo regime; o senador Nicolau Pereira dos Campos Vergueiro, chefe da conspiração liberal e grande proprietário, e o brigadeiro Francisco de Lima e Silva, comandante efetivo das tropas da corte e grande proprietário, pai do futuro duque de Caxias. A deposição fora obra dos liberais exaltados, federalistas e, em sua maioria, republicanos. Porém, o poder terminava na mão dos liberais moderados, unitaristas e monarquistas. Os regentes confirmaram o ministério demitido, determinaram ampla anistia política, dispensaram oficiais e tropas estrangeiras, o que pôs, nos fatos, fim à hegemonia do exército imperial, substituído a seguir por guarda nacional, sob o controle dos grandes proprietários provinciais. Em 14 de julho votou-se a lei que determinava os poderes da regência e, em 17, a Assembleia-Geral elegeu a Regência Permanente – José da Costa Carvalho, João Bráulio Muniz e o brigadeiro Francisco de Lima e Silva. A nova situação sancionava o domínio direto dos grandes escravistas sobre o Império. No relativo às províncias, a grande medida foi a transformação, apenas em 1834, por meio de ato adicional à Constituição, dos Conselhos Provinciais em Assembleias Provinciais, com poderes legislativos sobre a educação pública, a segurança interna, as despesas e a administração provinciais, os meios de transporte, entre outras esferas. Entretanto, os presidentes das províncias continuavam sendo nomeados discricionariamente pelo poder central, o que desagradou profundamente os liberais e os federalistas, que exigiam sua eleição local e poder legislativo também para os municípios. O ato adicional transferia, igualmente, a responsabilidade da criação de colônias camponesas às províncias, em associação com o governo imperial.

162

11 A Farroupilha − a insurreição dos grandes estancieiros Em 7 de abril de 1831, a deposição de dom Pedro I, promovida pelos liberais exaltados (os farroupilhas eram federalistas e, muitas vezes, republicanos), levou ao poder os liberais moderados (os chimangos eram centralistas e, comumente, monarquistas). No poder, os liberais moderados promoveram reformas institucionais ampliando a base de apoio do regime regencial, sem satisfazer às reivindicações federalistas provinciais, que tinham como maior exigência a constituição de Assembleia Provincial com amplos poderes e, sobretudo, o direito de eleição direta pelos proprietários regionais do presidente da província. No Brasil, nos anos seguintes à Abdicação, em 7 de abril de 1831, os liberais federalistas promoveram movimentos políticos e armados no Ceará (1831-2), em Pernambuco (1831-5), em Minas Gerais (1833-5), na Bahia (1837-8), no Grão-Pará (1835-40), no Maranhão (1838-41), no Mato Grosso (1834), etc. Com a intervenção das camadas sociais subalternizadas livres e escravizadas, alguns desses movimentos ganharam forte conteúdo social, como a Balaiada (1838-41), no Maranhão, e a Cabanagem (1835-6), no Grão-Pará. No Rio Grande do Sul, o movimento liberal assumiu caráter separatista e republicano, apesar de essas orientações serem, possivelmente, minoritárias quando da eclosão da revolta, o que se modificaria quando da hegemonia plena dos estancieiros da Campanha, da fronteira e do norte do Uruguai sobre o movimento. Pelo fato de, no Brasil, os liberais exaltados serem conhecidos como “farroupilhas”, isto é, revolucionários, o movimento sulino passou para a história como Revolução Farroupilha. Constitui associação ingênua deduzir o qualificativo “farroupilha” de “farrapos”, que vestiriam os soldados republicanos nos momentos finais do conflito. Em 25 de dezembro de 1831, como parte da efervescência política determinada pela queda de Pedro I, fundou-se em Porto Alegre, salvo engano, a primeira loja maçônica sul-rio-grandense – Filantropia e Liberdade. É crível que o Gabinete de Leitura da Sociedade Continentino fosse centro de debate político aberto impulsionado por aquela loja maçônica. Em 1833, Bento Gonçalves, membro da Filantropia e Liberdade, teria recebido instruções e poderes da loja para estender a organização maçônica a Rio Grande ou Pelotas. A situação política de então, terreno fértil para esse tipo de organização clandestina, contribuiu para a difusão da maçonaria entre os liberais sulinos, ainda que não se possa e não se deva explicar o movimento farroupilha como resultado da ação conspirativa maçônica ou de qualquer outra ordem. Durante a revolta, maçons de Rio Grande e São Leopoldo optaram também pelo Império.

163

A conspiração liberal sulina precipitou-se após o republicano moderado Antônio Rodrigues Fernandes Braga, nascido no Rio Grande do Sul, assumir a presidência da província, sob indicação de Bento Gonçalves da Silva, importante chefe militar sulino e filho de rica e poderosa família de criadores, com importantes propriedades na Banda Oriental, em Cierro Largo. Com a designação de Fernandes Braga, a Regência procurava acalmar os grandes criadores sulinos, profundamente desencantados com o Império, que fora incapaz de impor sua hegemonia na Banda Oriental. Porém, logo o presidente da província se afastou dos farroupilhas e de Bento Gonçalves, fortalecendo a oposição entre liberais unitaristas e liberais federalistas, entre o governo central e as classes proprietárias regionais, com destaque para as da Campanha, da fronteira e do norte do Uruguai. Em 20 de abril de 1835, ao se abrirem os trabalhos da primeira sessão da Assembleia Provincial sulina, o presidente da província denunciou a existência de plano sedicioso para separar a província do Império e uni-la ao Uruguai, com o apoio de Lavalleja. O antigo capitão artiguista e herói da independência do Uruguai era compadre de Bento Gonçalves. A acusação, que se dirigia aos liberais extremados, em geral, e a Bento Gonçalves da Silva, em particular, não pôde ser comprovada pelo presidente da província, em sessão secreta, na qual os deputados farroupilhas eram maioria. Na época, Lavalleja encontrava-se marginalizado no Uruguai. Juan Antonio Lavalleja (1786-1853) comandara o movimento de independência do Uruguai, sendo, porém, deslocado, em favor de Fructuoso Rivera (1830-34; 1838-1843) e, a seguir, Manuel Oribe (1835-38), na direção daquele país. Naquele então, encontrava-se refugiado em Buenos Aires, sob a proteção de Juan Manoel de Rosas (1793-1877). Ele retomava parcialmente o programa artiguista ao propor uma federação da Banda Oriental, do Rio Grande do Sul, de Entre Rios e de Corrientes em um só grande Estado pastoril platino, contando para isso com agentes e fortes alianças no Rio Grande do Sul, entre eses Bento Gonçalves. Porém, essa proposta não seria aceita pela totalidade dos farroupilhas, entre os quais havia os que defendiam uma reorganização liberal, federativa, republicana e escravista do país, inspirada nos Estados Unidos da América. A história das intersecções entre as facções políticas farroupilhas e uruguaias no relativo ao programa e às alianças está ainda para ser escrita.

Vitória sem luta Em 19 de setembro, tropas farroupilhas reuniram-se nos arredores da capital. Fernandes Braga tentou reunir suas tropas da capital e mobilizar colonos em São Leopoldo para combater, segundo ele, um não bem elucidado levante formado sobretudo por “negros e índios”. Um breve encontro, à noite, entre a frágil resistência organizada pelo presidente da província serviu

164

para lançar por terra qualquer veleidade de resistência. No dia seguinte, as forças liberais entraram em Porto Alegre sob a chefia de Bento Gonçalves da Silva, José Gomes Vasconcelos Jardim e Onofre Pires da Silveira Canto. Nesse momento, o movimento rebelde congregava praticamente toda a oposição da província – liberais moderados monarquistas, liberais moderados republicanos, farroupilhas e separatistas. Muitos dos integrantes e apoiadores do movimento pretendiam apenas impor um presidente da província sulrio-grandense que expressasse as reivindicações das classes proprietárias regionais, não do poder central distante, sediado no Rio de Janeiro. No dia 20, pela manhã, o presidente Fernandes Braga embarcou em uma canhoneira, enquanto esperava o desenvolvimento dos acontecimentos, já que os rebeldes não penetravam na cidade. À noite, em virtude da defecção da Guarda Municipal Permanente, partiu para Rio Grande, após instruir o brigadeiro Gaspar Francisco Mena Barreto, comandante das forças militares provinciais, para que destruísse o armamento e entregasse Porto Alegre sem resistência. Na manhã de 21 de setembro, as tropas rebeldes penetraram na capital portando camisas amarelas e barretes vermelhos. Senhores de Porto Alegre, os liberais enviaram emissários às diversas regiões da província, apresentando e justificando o movimento como simples deposição de um presidente incapaz, faccioso e antiliberal. Na ocasião, reafirmou-se a adesão à Monarquia, ao unitarismo nacional e ao espírito liberal de 7 de abril de 1831. Vacante a Presidência, pelo abandono de Fernandes Braga da capital sob pressão dos revolucionários, a Câmara Municipal empossou o quarto vice-presidente, Marciano Pereira Ribeiro, chefe do partido farroupilha do Rio Grande do Sul. Bento Manuel Ribeiro, um dos maiores proprietários rio-grandenses, após se apoderar da estância missioneira espanhola de Yapeyú, nos atuais municípios de Alegrete, Barra do Quaraí, Quaraí e Uruguaiana, foi nomeado comandante das armas para que não se opusesse ao movimento. Acordo de não beligerância com Manuel Oribe, então na presidência do Uruguai, permitiu o deslocamento das tropas estacionadas na fronteira com aquele país, circunscrevendo um apoio de fato ao movimento. Independente ou federada, a separação da província sulina interessava à Confederação Argentina, ao Paraguai e ao Uruguai por afastar de suas fronteiras o agressivo e expansionista Estado Imperial. Os objetivos mais amplos dos chefes revolucionários expressaram-se, inquestionavelmente, nas medidas militares que tomaram, entre as quais a organização de uma flotilha. A esquadra liberal era formada por um brigue, um patacho, um iate, um cutter, uma canhoneira, um palhobote e três escunas. Praticamente sem exército, desde a dissolução das forças armadas bragantinas, a Regência contava com forte marinha, capaz de se deslocar rapidamente ao longo do litoral do Brasil.

165

Fim da unidade Inicialmente, à espera de decisões e reforços da corte, em Rio Grande, o governador Fernandes Braga controlou militarmente aquele porto e Pelotas, tentando fechar com quatro canhoneiras a saída ao mar aos revoltosos. Finalmente, em 23 de outubro de 1835, o presidente deposto partiu para o Rio de Janeiro. Com sua viagem para a corte, Pelotas, Piratini, Porto Alegre, Rio Grande e Rio Pardo encontraram-se nas mãos dos rebeldes, que se apressaram a tranquilizar os ricos comerciantes portugueses. No Rio de Janeiro, o regente Diogo Feijó (1784-1843), recém-empossado, ex-chefe do partido farroupilha de São Paulo, temendo a perda do Sul, nomeou José de Araújo Ribeiro, natural da província, primo de Bento Gonçalves e parente de Bento Manuel Ribeiro, como presidente do Rio Grande do Sul. Nesse momento, a atenção e as energias da Regência estavam voltadas para a revolta cabana no Pará, de 1835 a 1836, que assumiria claro sentido social, com a intervenção na luta das classes subalternizadas – caboclos, cativos, libertos, mulatos, nativos. Em 7 de novembro de 1835, o novo presidente chegou a Rio Grande trazendo a anistia para os rebeldes, proclamada em 23 do mesmo mês. Enquanto era bem acolhido pelos liberais moderados e recebia o apoio das Câmaras de Pelotas, São José do Norte e Rio Grande – onde eram fortes os grandes escravistas e os comerciantes, sobretudo portugueses –, os farroupilhas tramavam contra ele, protelando sua posse. Em dezembro, a fim de atrair os alemães, a Assembleia Provincial discutiu o pagamento dos subsídios aos colonos, anteriores a 1831, devidos pelo Império. Os revolucionários avançaram igualmente na facilitação da naturalização e na separação entre a Igreja e o Estado, propostas com amplo apoio entre os imigrantes, em boa parte protestantes. Finalmente, em 15 de janeiro de 1836, Araújo Ribeiro tomou ilegalmente posse da presidência em Rio Grande, ato impugnado pela Assembleia Provincial, sob controle dos farroupilhas, cinco dias depois. Em resposta ao ato legislativo, Araújo Ribeiro dissolveu a Assembleia, que não aceitou tal decisão, instaurando-se, assim, institucionalmente a dualidade de poderes. Nesse momento de grande impasse, o poderoso caudilho de Alegrete, Bento Manuel, procurava apoios para o governo central entre os liberais moderados, os portugueses e os brasileiros retrógrados, sobretudo de Pelotas, Rio Grande e São José do Norte. Em virtude de sua defecção, foi deposto da chefia das armas provinciais, sendo nomeado em seu lugar o major João Manuel de Lima e Silva, tio do futuro duque de Caxias, que combateria e derrotaria o movimento farroupilha. Em janeiro de 1836, tropa de sessenta brasileiros e trezentos colonos alemães de São Leopoldo, que se preparavam para invadir Porto Alegre, nas mãos dos rebeldes, foi dissuadida por líderes farroupilhas, sem a necessidade de violência. A seguir, os farroupilhas tentaram ativamente organizar

166

suas forças na colônia. Em São Leopoldo, havia um partido, minoritário, farroupilha, e um mais consistente, legalista. Entretanto, a maioria dos colonos procurou se manter neutra, não se imiscuindo na disputa. Concentrado na repressão do movimento cabano, o regente Feijó, que era acusado, não sem razão, de simpatia com os farroupilhas sulinos, optou por política de confronto moderado que não fechasse as portas à conciliação com os rebeldes. Para tal, apoiou-se, sobretudo, na poderosa Marinha e nas alianças regionais. Desde outubro de 1835, a província conhecia uma sucessão de pequenos confrontos. Um dos primeiros combates de vulto ocorreu em 17 de março de 1836, quando Bento Manuel derrotou os farroupilhas, matando mais de duzentos rebeldes. Outra derrota farroupilha estratégica ocorreu às 23h de 14 de junho de 1936, quando militares legalistas e civis, apoiados pelo grande comércio da cidade, em boa parte em mãos lusitanas, reconquistaram rapidamente a capital, que teve seu comando entregue ao velho marechal João de Deus Mena Barreto. Mais de setecentos farrapos e simpatizantes teriam sido presos na capital, entre eles o cônsul estadunidense, suspeito de simpatia com os insurgentes. Na desesperada tentativa de reconquistar Porto Alegre, a cidade foi sitiada e atacada por terra e por mar pelos farroupilhas, que terminaram perdendo nas operações praticamente sua pequena flotilha. A perda da capital, que jamais seria reconquistada pelos farroupilhas, assinalava a adesão ao Império do comércio, do artesanato e da população das colônias alemãs. Em 1841, a capital sulina foi agraciada pelo Império com o título de “Leal e Valorosa”, que mantém até hoje. Em 21 e 22 de junho de 1936, quando dos combates travados pela posse de Porto Alegre, Bento Gonçalves derrotou, no passo do Portão e no rio dos Sinos, tropas legalistas formadas com imigrantes alemães.

República escravista Nos meses seguintes, os combates prosseguiram de forma indefinida. Em 11 de setembro de 1836, após importante vitória farroupilha em Campos do Seival, entre Pelotas e Bagé, na qual os imperialistas tiveram 180 mortos, Antônio de Sousa Neto proclamou, após a batalha, a República Sulriograndense: “Camaradas! Nós que compomos a 1a Brigada do exército liberal, devemos ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independência desta província, a qual fica desligada das demais do Império e forma um Estado livre e independente, com o título de República Riograndense [...].” Netto era, igualmente, um grande proprietário de terras na Banda Oriental, exploradas pela mão de obra escravizada. As municipalidades de Jaguarão, Piratini, Serrito e outras, da fronteira e da Campanha, dominadas pelos grandes criadores da região, aderiram

167

prontamente à iniciativa. Rebeldes republicanos e monarquistas de orientação liberal conservadora, como Manuel Luís Osório (1808-1879), abandonaram o movimento em virtude da nova orientação. Surpreendido pela proclamação da República, Bento Gonçalves levantou o cada vez mais difícil cerco de Porto Alegre, iniciando a retirada em direção à Campanha. Na noite de 2 de outubro de 1836, a fim de passar suas tropas para a margem direita do rio Jacuí, Bento Gonçalves da Silva transportou grande parte de seus homens para a ilha do Fanfa. Atacado em difícil situação tática nos dias 3 e 4 por tropas de terra e por esquadrilha naval, Bento Gonçalves, Onofre Pires, Tito Lívio Zambeccari, Pedro Boticário, Corte Real e mais de mil soldados farroupilhas foram presos pelos imperialistas comandados por Bento Manuel. Após serem levados para a capital, os líderes rebeldes foram enviados presos para o norte do Brasil. Em razão da importante vitória, acreditando-se a um passo da vitória, os unitaristas julgaram os líderes rebeldes e entregaram-se à perseguição de farroupilhas e simpatizantes, fortalecendo a oposição ao governo central. Em 5 de novembro de 1836, em resposta à difícil situação em que se encontravam, os rebeldes reuniram-se na vila de Piratini e elegeram o primeiro governo da República Rio-grandense. Temendo o afastamento dos liberais conservadores e dos guardas-nacionais, o partido farroupilha – liberais exaltados – concordou com a eleição de Bento Gonçalves à presidência, substituído, enquanto estivesse preso, pelo moderado José Gomes de Vasconcelos Jardim (6/11/36-16/12/37), de mesma orientação. Aos farroupilhas couberam a vice-presidência – Antônio Paulino da Fontoura – e quatro dos seis ministérios. O major João Manuel de Lima e Silva foi promovido a general e confirmado como comandante-em-chefe das tropas republicanas, nas quais predominava fortemente a cavalaria, já que os rebeldes encontravam com dificuldades homens livres dispostos a combater a pé. A vila de Piratini, de 10 de novembro de 1836 a 14 de fevereiro de 1839, e a seguir, segundo a fortuna das armas, Caçapava, de 14 de janeiro de 1839 a 22 de março de 1840, e Alegrete foram capitais da nova República até que, nos momentos finais da guerra, quando os farroupilhas já eram incapazes de manter a posse de uma cidade, a administração governamental seguiu, em carretas, as últimas colunas rebeldes. Nesse momento, Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, São José do Norte encontravam-se nas mãos dos imperiais. Apesar do estado de beligerância, o governo republicano instituiu ministérios, repartições públicas, pensão para dependentes de militares mortos em combate e determinou que se abrissem escolas em todos os municípios. Foi organizado serviço de correios, com postos de trocas para cavaleiros. A melhoria dos meios de comunicação era outro objetivo do novo governo, já que, até então, as carretas trilhavam caminhos costumeiros,

168

acompanhando o divisor de águas das coxilhas. Uma tipografia e um jornal – O Povo – oficiais foram instituídos e interrompeu-se o pagamento da dívida com o Império.

Uma carta para a República Em razão da grande dependência dos territórios da República aos bens importados, foram organizadas manufaturas de carretas, curtume, erva-mate, ferraria, fumo, selaria, etc. utilizando-se trabalhadores escravizados, o que restringiu a importância da iniciativa. A economia da República Riograndense continuou se baseando na produção e exportação de gados e couros, realizados pelo Uruguai, por causa do controle imperialista do porto de Rio Grande e de São José do Norte. Nos fatos, se o governo uruguaio fechasse a fronteira aos farroupilhas, o movimento teria fenecido inexoravelmente por afixia. Mesmo controlando a saída do mar, não era fácil a situação do governo central, que armava com dificuldade suas tropas, enquanto os farroupilhas compravam armas, mantimentos e cavalos no Uruguai, em Entre Rios e Corrientes, já que controlavam Alegrete e as Missões. A situação da Regência tornou-se ainda mais difícil quando Bento Manuel se ligou novamente aos rebeldes, em virtude da nomeação de Antero José Ferreira Brito para a Presidência do Rio Grande do Sul, este seu desafeto pessoal. Em 28 de março de 1837, após renunciar à sua posição no exército imperial, em verdadeiro golpe de mão, Bento Manuel capturou o novo chefe provincial quando se dirigia a Alegrete, deixando o governo imperial do Rio Grande do Sul acéfalo. Em 8 de abril de 1837, os republicanos alcançaram outra importante vitória, capturando Caçapava. O subsequente abandono dos imperialistas de Rio Pardo e Triunfo permitiu que os farroupilhas assediassem novamente, pela segunda vez, a capital, a partir de 11 de maio, com 1.400 combatentes comandados pelo general Netto. As tropas que defendiam Porto Alegre, cercadas por trincheiras, contariam com uns dois mil homens, entre eles muitos “paisanos” voluntários. Uma Companhia de Voluntários Alemães participou da defesa da capital e os combates se estenderam a São Leopoldo. Porto Alegre foi bombardeada por pequenos canhões, com destruição de casas e mortes sobretudo de civis. O cerco da capital e o domínio de São Leopoldo mantiveram-se até 6-7 de fevereiro de 1838. Na tentativa de conquistar adesões, em 19 de dezembro de 1838 o jornal farrapo O Povo publicou o decreto que concedia a naturalização aos alemães de São Leopoldo e Três Forquilhas. Em 10 de setembro de 1837, quando a sorte sorria aos rebeldes, Bento Gonçalves fugiu da prisão, na Bahia, segundo parece com a ajuda dos maçons locais, e viajou para o Sul. Na chefia da República desde 16 de dezembro 1838, cedeu cartas de corso, regulamentou a emissão de moeda, concedeu cidadania aos colonos alemães, recrutou soldados a partir dos 14 anos, entre outras me-

169

didas. Caudilho pouco afeito aos princípios democráticos, resistiu longamente a convocar eleições para a Assembleia Constitucional e Legislativa. Para minimizar a contraditória situação de um Estado liberal sem Constituição e sem Assembleia nacional, foi convocado, em 18 de setembro de 1838, um Conselho de Procuradores Municipais, formado por um delegado de cada município, que se reuniu pela primeira vez em Caçapava em 21 de dezembro de 1839. À reunião não acorreram delegados de Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, Santo Antônio da Patrulha e São José do Norte. A capital e o litoral escapavam definitivamente aos rebeldes. Após organizarem suas tropas, os legalistas, no controle do litoral e da serra, contra-atacaram, obrigando os farrapos a levantar o cerco de Porto Alegre. Porém, em 30 de abril de 1838 as tropas republicanas tomavam Rio Pardo, nas margens do Jacuí, matando 370 e aprisionando 150 inimigos, em uma das maiores batalhas da guerra. A vitória republicana praticamente destruiu o exército imperial do norte.

Último cerco Em 15 de junho de 1838, aproveitando a boa conjuntura, sob o comando de Bento Manuel Ribeiro, os farroupilhas iniciaram o terceiro e derradeiro cerco da capital. Segundo parece, a iniciativa pretendia, sobretudo, manter tropas imperialistas ocupadas na defesa da cidade. O controle do litoral permitia ao governo central estrangular lentamente os republicanos, que se armavam apenas através do porto de Montevidéu, do qual dependiam perigosamente. Necessitando, desesperadamente, de uma saída para o mar, o governo farroupilha organizou o ataque de Laguna, no litoral de Santa Catarina. Para participar das operações, protegidos pela cavalaria republicana, dois lanchões – Seival e Rio Pardo – foram carregados, em imensas carretas, pelo Estreito, da lagoa até o rio Tramandaí, no litoral. A lancha Rio Pardo, comandada pelo italiano Giuseppe Garibaldi, afundou na altura de Araranguá, com muitos afogados, e a Seival participou da conquista de Laguna, em fins de julho de 1839. Garibaldi e Bisley haviam assinado carta de corso com a República, segundo a qual ela aparelharia os navios e os comandantes obrigavam-se a entregar a metade das presas ao governo e a indenizar os tripulantes e os armadores dos navios. A iniciativa trouxe pobres frutos para a República, perdendo os corsários, comumente, as presas e seus próprios navios. A conquista de Laguna permitiu que os farrapos abocanhassem quatro escunas de guerra, quatorze embarcações mercantes e dezesseis canhões. Após a conquista, a Câmara da vila proclamou a independência da província de Santa Catarina, sob o nome de República Juliana, e confederou-se com a sua coirmã sulina. Em 15 de novembro de 1839, a pronta resposta

170

imperial, com quatorze navios e importantes tropas, obrigou os republicanos a abandonar as posições conquistadas, onde não haviam alçado apoios efetivos entre as classes proprietárias e a população regional. Os navios capturados foram incendiados pelos farrapos. Em 16 de julho de 1840, perseverando na tentativa de conquistar porto marítimo, 1.200 republicanos atacaram, sem artilharia, São José do Norte. Após conquistarem a cidade, os farrapos entregaram-se a bebedeiras e excessos, permitindo que a cidade fosse reconquistada pelos imperialistas, trazidos por navios de guerra. Nos combates, os republicanos tiveram 181 mortes, e os defensores, apenas 72 baixas. Por sua resistência antirrepublicana e antifarroupilha, a vila recebeu o título de “Mui Heróica”. Em 23 julho de 1840, por meio de golpe patrocinado pelos liberais, dom Pedro foi declarado maior, assumindo o trono e o Poder Executivo. A anistia concedida aos republicanos em troca do fim dos combates foi rechaçada, já que não propunha a federação do Rio Grande do Sul com o Império e o reconhecimento da liberdade dos cativos e libertos para lutar nas tropas republicanas, como defendiam os farroupilhas. Entretanto, Bento Manuel pediu e recebeu anistia para si e seus seguidores, abandonando os republicanos em inícios de 1841. Outros grandes proprietários aproveitaram a oportunidade para se afastar dos combates. No mesmo ano, o governo central taxou em 25% os charques platinos que entravam no Brasil, concedendo importante reivindicação sulina e consolidando o apoio dos charqueadores do litoral.

Segundo reinado No início da década de 1840, no Rio de Janeiro, a expansão da cafeicultura escravista garantia crescentes ingressos ao poder central, sobretudo pela taxação das importações, permitindo que diminuísse a pressão fiscal sobre as províncias. Em abril de 1841, com a nomeação de gabinete conservador, encerrou-se a experiência liberalizante iniciada em 1831, quando da Regência. Ao contrário do que havia sido feito até então, o novo governo esforçou-se para mandar importantes tropas para o Sul e aplastar o movimento liberal e republicano. No Sul, o impasse da guerra desanimava muitos dos seus apoiadores. Em 1842, as atividades bélicas arrefeceram, assinalando o início da decadência da República Rio-grandense. Em novembro, o barão de Caxias, prestigiado pela repressão da Balaiada no Maranhão, onde massacrara os membros das classes subalternizads insurgidas, sobretudo africanos e afrodescendentes, assumiu a chefia da província e das tropas imperialistas. Caxias receberia do governo central o apoio necessário em homens e recursos para vergar os farroupilhas.

171

As tropas de linha e da Guarda Nacional, sob as ordens de Caxias, alcançavam 22 mil homens, enquanto os farroupilhas conseguiam reunir pouco mais de mil soldados, mal-armados e malabastecidos. Consciente das divisões entre os republicanos, Caxias interveio ativamente nas dissidências internas farroupilhas, já que contava com importantes recursos econômicos – 300 contos de réis – para corromper e comprar aliados entre os inimigos. Caxias dividiu suas tropas em três colunas e, em 11 de janeiro de 1843, atravessou o canal São Gonçalo, fronteira entre os territórios republicanos e imperialistas, sem encontrar resistência. Em novembro de 1842, em Alegrete, apesar das protelações de Bento Gonçalves da Silva, reuniu-se a Assembleia Constituinte da República Sul-riograndense, com 36 deputados e 12 suplentes, num momento em que era profunda a divisão entre os republicanos em razão do avanço imperialista. Na ocasião, José Mariano de Matos propôs inutilmente a abolição da escravatura. Sob a direção do deputado Antônio Paulino da Fontoura, os republicanos constitucionalistas reclamavam da ditadura pessoal de Bento Gonçalves. Em resposta, Bento Gonçalves estacionou tropas ao lado do prédio da Assembleia Legislativa, com inequívoco objetivo coercitivo. Bento Gonçalves foi reeleito presidente da República, mas teve de suportar a afronta da eleição de Antônio Paulino da Fontoura como vice. Em fevereiro de 1843, a morte de seu desafeto e chefe do partido farroupilha acirrou as contradições internas entre os republicanos. Acusado de ser o mandante da morte de Paulino da Fontoura, Bento Gonçalves da Silva matou Onofre Pinto em duelo. A seguir, renunciou à chefia do governo e ao comando do Exército, que foi transferido de Antônio Netto a David Canabarro, favorável à rendição. O projeto de Constituição da República Rio-grandense inspirava-se na Carta estadunidense, que assegurava os direitos aos cidadãos livres e desconhecia os dos trabalhadores escravizados, ignorando as lições da Revolução Francesa, que abolira a nefanda instituição escravista. Ao igual que o Império, a República Rio-grandense seguia se apoiando no trabalho escravizado.

Longa agonia Apesar de crescentemente senhoras do terreno, as tropas imperiais não alcançavam a dominá-lo plenamente. Quando encurralados, os farroupilhas escapavam ao cerco em que se encontravam, abandonando a Campanha e penetrando no Uruguai, onde possuíam enormes propriedades de terras. Algumas vitórias súbitas das tropas republicanas, como em São Gabriel, em 1843, mantinham o poder farroupilha precariamente em pé. Aproveitando a cada vez mais difícil situação dos republicanos, Caxias ocupou as cidades da Campanha e passou a varrer o interior com colunas móveis de cavalarianos, não dando trégua às dizimadas colunas farroupi-

172

lhas. Com a invasão de Alegrete, a República Rio-grandense perdeu sua última capital. Nas cidades, Caxias distribuía carne à população e contratava o serviço das famílias pobres, simpáticas aos imperiais ou aos farrapos, para costurar fardamentos para as tropas imperialistas, em uma clara política de conquista da simpatia dos sul-rio-grandenses livres. No Prata brilhava a estrela de Juan Manuel de Rosas, presidente-ditador da Confederação Argentina, que se mobilizou pela reunificação das antigas províncias do Vice-Reinado do Prata. Nesse momento, Manoel Oribe, seu aliado, dominava a campanha uruguaia e cercava Montevidéu, que resistia apenas em razão da contribuição econômica francesa. Rosas apenas aprovara licença de gastar o que fosse necessário para a conquista do Paraguai, ex-província do vice-reinado do Rio da Prata, independente, nos fatos, desde a Revolução de Maio, em 1810. Portugal sempre se esforçara em estender suas possessões até a margem setentrional do Prata, transformando-o, assim como seus tributários, em rio também lusitano. A política expansionista luso-brasileira recuara em 1828, quando da perda da província Cisplatina. A deposição de dom Pedro, em 1831, as crises regenciais e, sobretudo, a guerra farroupilha afastaram o Império do Prata, obrigado a lutar para não perder territórios já conquistados. Para a política imperial fora sempre prioridade impedir o surgimento de uma grande república hispânica platina em torno de Buenos Aires, que fizesse contrapeso ao Império. Para tal, reconhecera a independência do Paraguai e se esforçara para que outras nações o fizessem. Preparando já o retorno de seu intervencionismo no Uruguai e no Prata, o governo imperial fez o possível para pôr fim a um confronto que já vencera política e militarmente. Em 1844, Bento Gonçalves abriu discussões com Caxias, fazendo o mesmo, a seguir, Antônio Vicente da Fontoura e David Canabarro, separadamente. Sentindo-se marginalizado das discussões, Bento Gonçalves abandonou a luta e retirou-se para sua estância. Nos últimos meses da República, os chefes farroupilhas preocupavam-se apenas em sair da conjuntura nas melhores condições possíveis, recebendo indenizações do governo imperial, para as quais, não raro, passavam recibo. Em 1º de março de 1845 acordou-se a rendição farroupilha no tratado de Ponche Verde, apenas assinado pelos vencidos. O tratado é apresentado pelo historiador Moacyr Flores como uma verdadeira encanação para uso interno farroupilha. Propunha reconhecer como presidente da província a Caxias, que já mantinha, e manteria, a província sob ocupação militar; passar as dívidas republicanas ao Império; transferir os oficiais farroupilhas que assim o quisessem às tropas imperiais e libertar os soldados negros. Caso tivesse sido aceita – e não foi o caso –, a concessão dessa última reivindicação perderia qualquer sentido após o massacre da infantaria negra em Porongos e a entrega, por David Canabarro, às tropas imperiais como prisioneiros, dos últimos combatentes farroupilhas negros.

173

12 O sentido social da Guerra Farroupilha Algumas medidas dos chefes farroupilhas em relação ao trabalhador escravizado serviram para que historiadores ressaltassem o caráter libertário do movimento. Clóvis Moura, insuspeito pesquisador da história afro-brasileira, assinalou em seu importante trabalho Rebeliões da senzala, escrito nos anos 1950: “[...] afora a insurreição dos alfaiates, na Bahia, nenhum outro movimento foi tão enfática e ostensivamente antiescravista como o chefiado por Bento Gonçalves.” É prolixa a literatura sobre o decreto farrapo que mandava sortear e fuzilar um imperialista, caso fosse preso e açoitado um ex-cativo combatente do exército separatista, como ordenara determinação imperial. Grande parte dos trabalhos rurais e urbanos sulinos apoiava-se nas costas dos cativos. A produção charqueadora escravista permitiu a expansão da atividade pastoril, em geral, e das estâncias de rodeio, principal base da economia sulina. Os cativos labutavam nas fazendas criatórias, sobretudo nas maiores fazendas pastoris, nas atividades domésticas, de subsistência e pastoris. Sobretudo as grandes fazendas criatórias dependiam de núcleos permanentes de cativos campeiros empregados nas lides pastoris. A escravidão era a forma de produção hegemônica no Rio Grande do Sul. A exploração do trabalhador escravizado era a argamassa que consolidava a unidade das classes dominantes sul-rio-grandenses. Jamais os chefes farroupilhas pretenderam a abolição ou a reforma da ordem escravista. Apesar de contar com seus gaudérios, o Rio Grande do Sul jamais foi pátria de gaúchos, mas, sobretudo, terra de cativos. Em Raízes sócio-econômicas da guerra dos Farrapos, o historiador estadunidense Spencer Leitman lembra, pertinentemente: “Os chefes farrapos não eram revolucionários sociais empenhados em reestruturar as relações de classes. Na melhor das hipóteses, eram o produto do tempo, incapazes de ultrapassar as atitudes sociais tradicionais. Qualquer colapso nas relações tradicionais entre senhor e escravo, estancieiro e gaúcho, poderia desorganizar o sistema político e social vigente.” Defendendo a base de suas riquezas, os grandes criadores defendiam a escravidão, sem a qual deveriam se reorganizar com grandes dificuldades e perdas financieiras. Sobretudo nos primeiros tempos, os grandes estancieiros sulinos eram senhores de cativos, mais do que senhores de terra, que abundava relativamente, como assinala o historiador Setembrino dal Bosco, em sua investigação sobre a fazenda pastoril rio-grandense, de 1780 a 1888. Reconhecendo o caráter elitista do movimento farroupilha sulino, o historiador J. Pandiá Calógeras, em A política exterior do Império: da Regência à queda de Rosas, assinala que o se movimento diferenciava essencialmente da revolta cabana, no Pará, de 1835 a 1836, que classifica literalmente como

174

“subida à tona das fezes da população”, em virtude da intervenção no movimento de “mestiços de índios”. Por isso, o poder central sempre tratou os rebeldes sulinos com “medidas conciliadoras”, já que sabia que não poderia manter a hegemonia sobre a região sem a adesão dos grandes criadores, dos quais necessitava igualmente de forma imperiosa para avançar em sua política platina.

Mais terras Nos anos 1780, o desenvolvimento da produção charqueadora incentivara poderosamente as práticas criatórias no meridião sulino. Por isso, a partir de fins do século 18, oficiais, soldados e aventureiros obtiveram terras na fronteira, na Campanha, nas Missões, no Vale do Jacuí e, desde 1811, no norte da Banda Oriental, onde organizaram fazendas apoiadas no trabalho cativo. Nesse contexto, agricultores transformaram-se em criadores e a triticultura e agricultura cederam lugar à pecuária como base da riqueza regional. Nos anos 1830, a crise econômica e política da Regência atingiu a província de São Pedro do Rio Grande do Sul, que vivia fase de relativa bonança econômica. Durante a ocupação militar da Banda Oriental, em 1811 e 1816-1820, e a seguir, sob o regime da província Cisplatina (1821-1828), os gados orientais eram levados para as charqueadas sulinas, sem qualquer ônus, com graves prejuízos para os saladeiristas platinos. Na sociedade sulina de então, a vida urbana desenvolvera-se relativamente. Em 1830, Porto Alegre, com uns doze mil habitantes, ensaiava sua futura vocação comercial e enriquecia-se com a produção policultora colonial-camponesa alemã. Os principais sobrados no centro da aglomeração, com, em geral, dois andares, eram construídos em tijolos, cobertos de telhas, possuíam alicerces em pedra e amplas coberturas de telha canal. Tabela 2 - Evolução da população do município de Porto Alegre – 1780-1900 1780

1.500

1890

52.185

1803

3.927

1900

73.274

1807

6.035

1910

130.227

1820

12.000

1920

179.263

1848

16.90

1940

275.658

1858

18.465

1970

885.554

1872

34.183

1990

1.263.403

Fonte: SOUZA, Célia Ferraz de; MÜLLER, Dóris Maria. Porto Alegre e sua evolução urbana. Porto Alegre: EdUFRGS, 1998. p. 32.

Em 1833, Pelotas e seu termo, centros da produção charqueadora, contavam com 10.872 habitantes, entre os quais 5.623 trabalhadores escravizados. Muitos desses cativos eram africanos novos, recém-chegados da África,

175

trazidos para labutar duramente nos saladeiros, olarias, embarcações, etc. A vila de Rio Grande era outro importante centro, com um teatro, uma igreja, duas tipografias, três sociedades patrióticas. Na época, suas principais moradias possuíam dois andares e eram telhadas. A organização social sulina era bastante rígida. No topo da pirâmide encontravam-se os ricos charqueadores e os grandes fazendeiros. Ainda que os primeiros fossem, em geral, mais ricos, eram em número muito inferior, cabendo aos grandes fazendeiros escravistas a hegemonia econômica e social regional. A ordem institucional do Império determinava que o poder político regional de fato fosse exercido pelo poder central e, por intermédio dele, pelas classes escravistas hegemônicas do centro do Império. Os grandes proprietários rio-grandenses viviam em situação de subordinação relativa também à sua província. Porto Alegre, Rio Grande, Pelotas e Rio Pardo eram os grandes polos comerciais da província. Os comerciantes mais abastados, em boa parte ainda portugueses, tinham também posição de destaque na sociedade rio-grandense, ainda que sofressem a competição cada vez mais dura dos comerciantes franceses, ingleses, estadunidenses, alemães. Era também importante o número de médios e pequenos comerciantes. A deposição de Pedro I, em 7 abril de 1831, debilitara irremediavelmente o comércio lusitano no Império.

Grandes e pequenos senhores Os grandes proprietários fundiários valiam pelo número de trabalhadores escravizados que possuíam, inicialmente, e pela quantidade de quadras de terras, a seguir. Sobretudo com o defenestramento de dom Pedro, em abril de 1831, eles começaram a se dividir os poucos cargos públicos e as sinecuras imperiais regionais. Nas cidades, o livre pobre, mesmo de “sangue limpo”, possuía espaço social restrito. Ele podia se empregar no pequeno comércio, em humildes funções administrativas, como profissional liberal, etc. As atividades manuais eram sinônimo de condição servil. O cativo ocupava posição de destaque nas cidades e dominante nas charqueadas, olarias, transportes, em chácaras e plantações, na rústica produção de ponchos, cobertores de lã, etc. Ainda que possivelmente dominasse na população rural o homem livre – estancieiros e seus familiares, posteiros, moradores, agregados, peões, etc. –, a presença do cativo era sistêmica e imprescindível nas grandes fazendas pastoris. A produção escravista colonial dominava ferreamente a formação social sul-rio-grandense de então. Era baixa a produtividade das fazendas pastoris. Eram relativamente altos os salários dos peões e, ainda mais, o preço de compra de um cativo. Mesmo na fazenda de rodeio, dominava o pastoreio extensivo, de métodos criatórios rústicos, ocupando pouca mão de obra livre ou escravizada. Como

176

vimos, uma fazenda de uma légua de sesmaria, com pouco mais de 13 mil hectares, necessitava de um capataz e uns dez trabalhadores. De forma geral, na primeira metade do século 19 necessitava-se de 2,5 ha por animal vacum e de um trabalhador para seiscentas a novecentas cabeças de gado. Segundo a fertilidade dos campos, os rebanhos se reproduziriam, anualmente, de um terço a um quinto. Os fazendeiros venderiam anualmente de 10% a 6% da produção animal. Era grande a mortalidade animal em razão de secas, acidentes, animais selvagens, etc. A sucessão de bons e maus anos para a economia pastoril devia-se, sobretudo, aos azares do clima. Uma literatura nativista romântica dificulta traçar perfil real do gaucho, tipo humano dominante na Banda Oriental e nas províncias argentinas. Como vimos, etnicamente, ele resultara da miscigenação do espanhol, português, africano e nativo, com claro predomínio do último componente. A Guerra Guaranítica (1753-6) e a expropriação das fazendas das Missões (1801) levaram muitos guaranis missioneiros a se empregarem nas estâncias. Desde há muito, guaranis desertavam das missões, saltuária ou permanentemente, para se empregar na caça ao gado e ao couro, sobretudo na Banda Oriental, onde literalmente se agauchavam. Em 1801, as Missões teriam quatorze mil habitantes; em 1820, contavam ainda com 2.350 “índios”. Com a ocupação de Frutuoso Rivera e a migração missioneira para o norte do Uruguai, em 1828, a região se despovoara de seus habitantes primitivos. Com a ocupação dos campos sul-rio-grandenses e uruguaios, nativos charruas e minuanos que haviam escapado ao extermínio passaram a trabalhar nas estâncias pastoris da região como peões. Utilizado pelos proprietários nas lides do campo e militares, o gaúcho era considerado e tratado com desprezo. Os campos fisicamente indivisos permitiam a esse campeiro desprovido de terras abandonar as fazendas em que trabalhava para vagabundear pelo interior ou se instalar precariamente. Sobretudo no norte do Uruguai, esses gaúchos, poseedores e ocupantes de terras, comumente antigos corambreros, changadores, contrabandistas, constituíram base fundamental da revolução artiguista derrotada, como lembram os historiadores uruguaios marxistas Lucia Sala Touron, Nelson De La Torre, Julio Carlos Rodrigues, em Artigas: tierra y revolución. A documentação oficial sul-rio-grandense registra igualmente “bandidos” e “vagabundos” circulando pelos campos da província. Essa liberdade relativa do gaúcho obrigava os criadores rio-grandenses a manter núcleos de cativos dedicados às funções pastoris. Estancieiros, charqueadores, homens livres, gaúchos, nativos guaranis, minuanos e charruas, cativos negros, etc. foram envolvidos e participaram, em geral, “sem se misturar”, da Revolta Farroupilha, como o fariam mais tarde, já fortemente amalgamados como homens livres pobres, nas

177

guerras civis sulinas de 1893 e 1923. Porém, esses trabalhadores pastoris livres e escravizados jamais possuíram qualquer real comunhão de ideário, político e social, com seus patrões. Fazendeiros e charqueadores lutaram em 1835 para ampliar suas riquezas e seu poder. Nessas guerras, os peões, os gaúchos, os nativos e exescravos arrolados como soldados jamais defenderam seus reais interesses. Comumente, seguiram os ricos estanceiros nos combates como os seguiam na caça ao gado, nas operações corambreras, nos trabalhos pastoris, etc. Trocavam normalmente de bando quando o caudilho a que estavam ligados mudava de bandeira. Isso não quer dizer que a luta que se travava em 183545 não lhes dissesse respeito. Em 1831, a deposição de Pedro I atiçara as reivindicações federalistas e republicanas sulinas, recalcadas em 1822. As tímidas reformas liberais regenciais não se sobrepuseram às fortes tendências regionais autonomistas e separatistas, ainda que tivessem neutralizado os liberais e federalistas moderados. Eram claras as reivindicações gerais das classes proprietárias sulinas, quando da eclosão dos acontecimentos.

Reivindicações contraditórias Sem dependência econômica com o centro do país, vendendo seus gados para as charqueadas rio-grandenses ou uruguaias, com propriedades na província sulina e no norte do Uruguai, os grandes fazendeiros e os demais proprietários e homens livres viam com maus olhos o centralismo político de um Império que abocanhava grande parte das rendas sulinas. O descaso da corte com a província era patente. Os edifícios públicos eram pardieiros, o ensino praticamente não existia, não havia sequer uma ponte na província, apesar de uma ter sido iniciada nos anos 1820, em Rio Pardo. Apenas após 1831 os impostos imperiais foram separados dos provinciais. Os criadores reivindicavam, sobretudo, o fim dos impostos sobre as terras – dez mil-réis por légua quadrada – e sobre a entrada e a saída de gado na província, já que possuíam importantes propriedades no norte do Uruguai. Os charqueadores grunhiam contra a taxação do sal e a falta de proteção aduaneira do charque sulino. A carne-seca era um dos alimentos de base das classes subalternizadas e dos trabalhadores escravizados de todo o Brasil. Com o desenvolvimento da produção cafeicultora, os proprietários do Rio de Janeiro compravam quantidades crescentes de charque para as escravarias. Portanto, apoiavam o ingresso do produto do Prata sem taxas. Os charqueadores sulinos exigiam o fim dos impostos sobre a exportação dos couros e charque – seiscentos réis por quinze quilos de charque; o fim dos impostos sobre o sal e a interrupção do contrabando de gado para o

178

Uruguai; o livre ingresso do gado da Banda Oriental, como ocorrera legalmene durante o período cisplatino. O fato de que algumas das reivindicações e objetivos dos charqueadores e dos criadores fossem contraditórias e de que boa parte do grande comércio continuasse em mãos de lusitanos explica por que apenas um setor das classes proprietárias sulinas aderiu claramente à revolta. Ao contrário, o litoral e a capital permaneceram sempre em mãos dos imperialistas, em razão, sobretudo, da decisão das classes proprietárias locais. Apenas a incapacidade dos republicanos de conquistarem a adesão da burguesia comercial, das frágeis classes médias urbanas, dos estancieiros serranos, envolvidos com o comércio muleiro com Sorocaba, e dos pequenos proprietários colonial-camponeses explica por que os farroupilhas foram incapazes de controlar os principais centros urbanos, ficando arrinconados na Campanha. A Guerra Farroupilha jamais foi um movimento de todas as classes dominantes rio-grandenses. Durante a guerra, os mais ricos moradores da cidade de Pelotas teriam se refugiado em São José do Norte, temendo os farroupilhas. O próprio Antônio Gonçalves Chaves, charqueador liberal, amigo de Bento Gonçalves e sócio de Domingos José de Almeida, celebrizado por suas Memórias ecônomo-políticas, fugiu de Pelotas com seus cativos para levantar charqueada em Montevidéu, em cuja baía faleceu afogado. O medo da desorganização da produção escravista, essencial aos charqueadores, foi razão do pouco apoio de Pelotas aos farroupilhas. Em 1823 ocorrera violenta revolta servil na Guiana Britânica. Anos antes da guerra farrapa, no Uruguai, Lavalleja, Rivera e, a seguir, Oribe libertaram os cativos para incorporá-los aos seus exércitos. Em 1835 conheceu-se a mais importante revolta urbana de trabalhadores escravizados das Américas – a conspiração dos Malês, de Salvador –, conclusão de sucessão de revoltas e conspirações servis baianas iniciada em 1807. As classes proprietárias sulinas dividiram-se em um leque de posições que iam do republicanismo extremado ao legalismo fervoroso. A grande base social farroupilha foram sempre os estancieiros da Campanha, da fronteira e do norte do Uruguai. A incapacidade do Império de manter o poder sobre a província Cisplatina, onde possuíam imensas propriedades de terras e grande quantidade de cativo, ensejara, já em 1828, que importantes criadores discutissem a independência sobretudo das regiões pastoris da província e sua eventual federação com o Uruguai. O fato de a escravidão transpassar, mais ou menos, praticamente todas as atividades produtivas regionais permitiu fundamental convergência de opiniões unindo todos os proprietários sul-rio-grandenses: o movimento de 35 era disputa política entre as classes dominantes e era necessário manter as classes subalternizadas na dominação, com destaque para a população

179

escravizada. A necessidade dos farroupilhas de contar com o apoio subordinado das classes livres pobres da campanha ensejou uma primeira promoção retórica da população livre campeira – os gaúchos. A identidade de classe entre os farroupilhas e imperialistas explica a escassa selvageria dessa guerra, que jamais assumiu o caráter de confronto social, como na Balaiada, na Cabanagem ou, mais tarde, na Guerra Federalista (1893-95). Explica também a relativa facilidade da pacificação promovida pelo futuro duque de Caxias. Na Guerra Farroupilha não estavam em jogo a forma ou distribuição da propriedade, a organização social, a liberdade dos trabalhadores escravizados, o acesso à terra aos gaúchos. Discutiase, entre as classes dominantes do Império e regionais, a hegemonia política na província.

Negro não é gente O comportamento dos chefes farroupilhas diante dos cativos revela o conteúdo nulamente libertário da revolta. A Constituição republicana era clara: “A República do Rio Grande é a associação política de todos os cidadãos riograndenses”, isto é, dos “homens livres nascidos no território da República”. A escravatura permanecia com a pedra angular da organização social farroupilha, ao igual que no Império. Aos libertos jamais foi concedido o direito ao voto, nem mesmo nas eleições municipais. As terras confiscadas aos inimigos da República foram vendidas, arrendadas ou entregues aos fazendeiros republicanos, jamais repartidas entre ex-cativos e gaúchos. Bento Gonçalves e os demais chefes farroupilhas não embocaram o caminho seguido por José Artigas, que, havia apenas duas décadas, prometera e distribuíra terras aos gaúchos, aos negros, aos índios, aos changadores, etc. que combateram em suas fileiras. Nenhuma reforma do padrão de posse da propriedade ou social foi ensaiada pelos farroupilhas. Parte da confusão sobre o caráter do movimento farroupilha deve-se ao fato de ter mobilizado ex-escravos como soldados. Apenas na região de Pelotas, 304 cativos teriam sido libertados para lutar nas filas farroupilhas em 1836. Os corpos de Lanceiros Negros são apontados como exemplos do democratismo farroupilha. Nos últimos anos, toda uma narrativa populista desenvolveu-se em torno da luta desses trabalhadores escravizados arrolados nas filas farroupilhas para lutar pelos interesses de seus ex-escravizadores. A utilização de libertos nas tropas farroupilhas deveu-se à dificuldade dos chefes farroupilhas em arrolar homens livres. O historiador rio-grandense Moacyr Flores lembra: “Os chefes de polícia dos distritos desabafavam que não podiam mais efetuar recrutamento, porque os homens livres

180

fugiam para o lado legal; então Bento Gonçalves da Silva convidou os republicanos para subscreverem maior número de seus escravos no exército [...].” Em geral, as tropas farrapas eram constituídas pelos capatazes e peões dos grandes fazendeiros que voltavam aos seus afazeres após os combates. A República necessitava claramente de tropas permanentes. O alistamento de ex-cativos deveu-se também à necessidade farroupilha de formar uma infantaria de lanceiros, ou seja, de combatentes a pé, armados de longas laças, muito útil contra as cargas de cavalaria, corpo utilizado com sucesso pelos imperiais. O homem livre sulino considerava indigno lutar a pé. A presença de libertos nas filas farroupilhas explica-se também em razão da pusilanimidade das classes proprietárias. Um senhor, ou o seu filho, escapava do arrolamento substituindo-se por um cativo que era manumitido para servir como soldado. O general Antônio Souza Netto recriminava os “patriotas” pela “apatia” e “indiferentismo” para com a causa republicana. Um decreto farrapo ordenava que todos os “cidadãos e súditos da República, com exceção dos escravos”, trouxessem “em seus chapéus o Laço da Nação [...]”. O trabalhador escravizado não era considerado digno de portar as cores republicanas. Em A Revolução Farroupilha Moacyr Flores propõe que, “infelizmente, os farroupilhas não eram abolicionistas, pois se tivessem libertado os escravos, concedendo cidadania a todos, formariam um grande exército capaz de destruir o império”. Os chefes farroupilhas não podiam abolir a escravatura sem despovoar de trabalhadores suas fazendas e charqueadas do Rio Grande do Sul e do norte do Uruguai, o que feria seus interesses. Sobretudo por essa impossibilidade material, o movimento farroupilha nunca acenou com a emancipação dos cativos. Os liberais mais exaltados que propuseram medidas marginais nesse sentido foram facilmente calados. Os ex-cativos alistados no exército rebelde pertenciam aos inimigos ou ingressavam nas tropas após a indenização dos proprietários. Trabalhadores escravizados de escravistas sulinos adeptos do Império eram entregues para serem explorados por proprietários farrapos.

Solução de última hora Nem mesmo a libertação dos cativos pelos proprietários farroupilhas era desinteressada. Os proprietários de cativos cobravam pelos serviços prestados por seus trabalhadores à República. Os negros que lutaram nas tropas farrapas jamais o fizeram em pé de igualdade com os homens livres. Seus oficiais superiores foram sempre homens brancos. Nas tropas rebeldes, negros, gaúchos e índios marchavam, comiam e dormiam separados.

181

O soldado negro farroupilha não era um homem livre – seria após o fim da guerra. Se desertasse, era imediatamente punido e reescravizado. Durante a guerra, a República tratou com o Uruguai a devolução de trabalhadores escravizados fugidos. Nem mesmo a libertação de cativos para que lutassem nas tropas farrapas pode ser identificada como ato progressista. O Império também libertou cativos para combaterem os farroupilhas e concedeu carta de alforria e passagem para fora da província aos soldados negros que desertassem das fileiras rebeldes. Os soldados negros que desertaram das tropas farroupilhas tiveram, possivelmente, melhor sorte do que os que nelas permaneceram. A utilização de trabalhadores escravizados em guerras e revoltas inscrevia-se em uma antiga tradição do mundo colonial ibérico. Diversas vezes, sobretudo cativos domésticos foram armados, quando da defesa da Colônia do Sacramento. O Terço dos Henriques lutou com destaque contra os holandeses no século 17, comandado por oficiais e suboficiais todos negros. Mais tarde, combateu a confederação dos quilombos dos Palmares. Em 1817, os dirigentes da Revolução Pernambucana armaram negros escravos, in extremis, para se defenderem das tropas absolutistas luso-brasileiras, sem também porem fim à escravidão. Muitos soldados que lutaram na guerra de independência hispano-americana, com destaque para as tropas de Buenos Aires e da Banda Oriental, eram cativos libertados. Em todos os casos, tratava-se da defesa dos interesses de facções de proprietários escravistas com os próprios trabalhadores escravizados. A defesa de Montevidéu durante a Guerra Grande (1839-51) foi feita sobretudo por mercenários e cativos “alforriados”. A aceitação da anistia oferecida pelo Império, não a chamada paz de Ponche Verde, assinada apenas pelos farroupilhas, sancionou a volta à antiga correlação de forças entre as classes dominantes do Sul e do Centro. O Rio Grande do Sul permaneceria como parte integrante da nação e seguia a hegemonia econômica e social regional das classes pastoril-charqueadoras, essencial para a manutenção do Rio Grande no Império e para a implementação dos objetivos deste último no sul da América. Aceitava-se também a eventual hegemonia política regional relativa dos latifundiários do meridião, questionada, muito mais tarde, por novo bloco político-social ascendente, quando da República e do advento do castilhismo. Os trabalhadores escravizados, os gaúchos, os peões, os nativos que lutaram nas tropas farroupilhas e imperiais ajudaram a consolidar a nova correlação de forças entre as classes dominantes escravistas hegemônicas do Império e do Rio Grande. Literalmente, ajudaram a manter a cangalha social que os oprimia. Não há dúvidas sobre o caráter escravista dos chefes farroupilhas. Restaria-lhes ao menos a nobreza de terem exigido, quando da Paz de Ponche

182

Verde, o respeito à liberdade cedida aos cativos arrolados nas tropas rebeldes. Ao menos teriam protegido e defendido seus ex-soldados. O artigo IV da proposta do tratado, jamais aceita pelo Império, propunha que seriam “livres, e como tais reconhecidos, todos os cativos que” houvessem servido “à República”. Em 1839, dos 4.396 soldados das tropas de primeira linha farroupilha, 952 eram lanceiros negros, organizados em dois corpos daquela arma, comandados pelo cel. Teixeira Nunes. Com a crescente dificuldade dos farroupilhas de arrolar soldados livres, a proporção de ex-escravos deve ter crescido. Salvo engano, não temos ainda estudos detidos sobre a participação de ex-cativos nas tropas farroupilhas.

Classes perigosas Não era desinteressada a preocupação com os combatentes farroupilhas negros nos momentos finais da guerra. Qualquer tentativa de reescravização dos aguerridos soldados motivaria acirrado confronto e, talvez, uma guerrilha negra. Os negros armados se retirariam para o Uruguai, integrando as tropas opostas ao Império, capitaneadas nesse momento por Oribe, que mantinha cerco a Montevidéu, apoiado por Rosas, senhor da Confederação Argentina. A sorte dos lanceiros negros foi uma das grandes preocupações dos chefes rebeldes e legalistas quando da abertura das negociações de paz. Em verdade, essa questão teria ajudado a emperrar por longo período a rendição farroupilha. Não havia, literalmente, espaço social na província sulina para talvez mais de mil ex-cativos libertados, a não ser arrolados nas forças armadas, o que significaria manter na região fortes tropas ex-farroupilhas. A questão contribuiria para um dos mais indignos acontecimentos da guerra – a batalha no serro de Porongos, na madrugada de 14 de novembro de 1844. Os oficiais farroupilhas e a historiografia sulina explicaram como uma lamentável “surpresa” a derrota dos rebeldes em Porongos. O historiador estadunidense Spencer Leitman lembra que o fato se deveu a uma traição. A edição de uma carta do barão de Caxias pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul elucidou as razões da “surpresa” militar farroupilha que ensejou a grave derrota militar. Na missiva, Caxias ordenava ao coronel Francisco de Abreu que surpreendesse as tropas rebeldes no dia 14 de novembro e que não temesse o resultado do confronto. A infantaria inimiga – constituída sobretudo por ex-cativos – se encontrava desarmada: “[...] ela deverá receber ordem de um ministro e do General-em-Chefe para entregar o cartuchame sob o pretexto de desconfiança dela.” O general farroupilha David Canabarro cobrira-se

183

de infâmia. De fato, traíra suas tropas e combinara entregar parte de seus homens, desarmados, ao inimigo para que fossem massacrados. Caxias escreveu na carta os objetivos do ataque. Com uma grande derrota, esperava pôr definitivo fim à resistência dos rebeldes e acelerar a rendição pactuada em curso. Ele lembrava ao oficial subalterno que o “negócio secreto” estabelecido com David Canabarro levaria “em poucos dias ao fim da revolta desta província”, no que exagerava. O segundo grande objetivo era criar as melhores condições para uma solução senhorial do problema posto pelos ex-escravos armados – os lanceiros negros. Na carta, Caxias ordena, fria e hipocritamente: “No conflito, poupe o sangue brasileiro quando puder, particularmente de gente branca da província ou índios, pois bem sabe que esta pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro.” Caxias se distinguira no passado longíquo e próximo e se distinguiria no futuro pelo seu ódio de classe aos trabalhadores escravizados. A ordem era clara: o massacre era destinado apenas aos soldados negros, crioulos ou africanos. Como republicanos e imperiais organizavam acampamentos distintos para brancos, índios e negros, a missão do coronel Francisco de Abreu cumpriu-se com facilidade. Destaque-se que Francisco Pedro Buarque de Abreu (1811-1891), futuro barão de Jacuí, conhecido também como “Muringue”, grande proprietário de terras na fronteira com o Uruguai, iria se distinguir a seguir pela organização de expedições no Uruguai para roubar gado e capturar cativos escapados – ou tidos como tal –, nos anos 1849 e 1850. Essas operações, chamadas de “califórnias”, apresentadas como justas respostas dos criadores sulinos a violências orientais, serviram também de justificativa para a invasão da Banda Oriental pelos exércitos imperiais em 1851. Na madrugada de 14 de novembro de 1844 as tropas imperialistas caíram sobre os 1.200 soldados rebeldes, capturando-lhes a bagagem, abarracamento, armas, arquivos, estandartes, munições, a última peça de artilharia farrapa e 280 infantes negros. No ataque morreram cem lanceiros. Em Porongos desaparecia praticamente a infantaria negra farroupilha. Os soldados negros farroupilhas aprisionados no combate foram reescravizados e enviados para o Rio de Janeiro. Cobrindo-se ainda mais de infâmia, Canabarro entregou a seguir os restantes soldados negros às forças imperiais, que foram também embarcados para a corte, onde conheceram novamente a escravidão. A cor dos corpos caídos no campo da traição não deixava dúvida sobre o idêntico ódio dos chefes farroupilhas e imperiais aos trabalhadores escravizados. Nada mais normal que Bento Gonçalves da Silva, quando preso na fortaleza de Lage, no Rio de Janeiro, possuísse um negro doméstico para servi-lo e, ao morrer, em 1847, em Pedras Brancas (Guaíba), o grande chefe farrapo tenha legado aos herdeiros mais de meia centena de homens negros escravizados, juntamente com terras, bois e cavalos.

184

13 O Rio Grande do Sul após a Guerra Farroupilha Em setembro de 1837, Diogo Feijó renunciou à Regência, dando lugar a um ministério antiliberal, com representantes dos comerciantes de trabalhadores escravizados da corte e dos grandes proprietários do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Minas Gerais. O ministério expressava a unificação dos restauradores (corcundas) e dos liberais moderados (chimangos) em torno de uma política centralizadora, antifederalista e antiliberal, que expressaria os interesses dos grandes escravistas. O novo bloco político, que se autodenominou de “Regressistas”, os quais propunham retorno à situação anterior ao ato adicional, originou a seguir o Partido Conservador, em contraposição aos membros do futuro Partido Liberal, denominados de “saquaremas”. Os “regressistas” puseram fim aos ensaios de repressão ao tráfico de trabalhadores escravizados e promoveram a Lei Interpretativa do Ato Adicional, proposta em 1837 e aprovada em 1840, que restabeleceu o Poder Moderador e recriou, a seguir, o Conselho de Estado, fazendo recuar as limitadas autonomias provinciais. No mesmo sentido, a Reforma do Código do Processo Criminal entregou as funções policiais e judiciárias aos delegados e aos juízes, nomeados e subordinados ao chefe de polícia provincial, designado e dependente, por sua vez, ao Ministério da Justiça. Nesse sentido, aumentava fortemente o tacão político do poder central em relação às províncias, contra o qual os farroupilhas se haviam batiam. Nas décadas seguintes, o controle da política municipal, por intermédio de juízes e delegados nomeados pelo poder imperial, garantiu que as eleições para as Assembleias Imperial e Provincial fossem, invariavelmente, vencidas pelos partidos no governo. Como, após a renúncia ou demissão de um ministério, o imperador nomeava o presidente do conselho que organizaria as eleições, era ele, nos fatos, que designava o partido que venceria. Assim, durante todo o Segundo Reinado dom Pedro escolheu o partido e o ministério com os quais quis governar e governou. O fim das tímidas experiências descentralizadoras regenciais significava que os grandes proprietários de terras e de trabalhadores escravizados optavam por um regime centralizador e autoritário como a melhor forma de defesa da ordem negreira. Os escravistas – sobretudo do Sudeste e do Nordeste – rompiam com as forças federalistas e liberais regionais, conformando a grande aliança social que governaria no geral o país até a Abolição. E, em verdade, seguiriam mandando no país, metaforfoseada em oligarquia agrária, organizada nos novos partidos republicanos, durante toda a República Velha, à exceção do Rio Grande do Sul, onde venceria um novo bloco político-social pró-capitalista.

185

O controle do poder pelos grandes proprietários escravistas foi permitido pelo crescente dinamismo da cafeicultura fluminense, que ensejou, sobretudo após a reforma alfandegária de Álvares Branco, de 1844, com os importantes acréscimos das taxas sobre as importações, que o poder central, agora superavitário, limitasse a expropriação das rendas provinciais. Nesse contexto geral, a resistência final farroupilha foi sufocada em 1845, pondo-se fim para sempre à república dos criadores da Campanha, da fronteira e do norte do Uruguai.

Depressão liberal A Guerra Farroupilha causara importantes danos à economia sul-riograndense. A imigração colonial-camponesa, iniciada em 1824, praticamente se interrompera, em 1831, com a deposição de dom Pedro, o período regencial, a Guerra Farroupilha. Durante o longo período bélico foram mínimas os melhoramentos infraestruturais realizados no Sul, apesar das decisões administrativas do governo republicano, jamais plenamente implementadas. A derrota farroupilha causou profunda prostração política entre as classes dominantes pastoris, derrotadas política e militarmente, as quais tiveram de aceitar humilhações sobre humilhações. O futuro duque de Caxias, último chefe militar imperialista, foi designado como o primeiro presidente provincial sul-rio-grandense, consubstanciando verdadeira ocupação militar da província. Durante o primeiro governo provincial após a rendição, realizaramse algumas iniciativas no relativo às estradas, à educação, aos meios de comunicação, à melhoria das igrejas. Caxias determinou obras no caminho do Mundo Novo a Vacaria; mandou abrir nova estrada de Rio Pardo a Cruz Alta; facilitou a construção de cemitério extramuro em Porto Alegre; aumentou os salários dos funcionários públicos. Algumas ações foram realizadas no relativo à educação, que conhecia situação caótica. Em 1846, em todo o Rio Grande do Sul havia 51 escolas públicas primárias, 36 para meninos e 15 para meninas. De forma geral, a própria população livre era analfabeta. A educação era um privilégio dos filhos das classes proprietárias, quando muito. Em 11 de novembro de 1845, o Rio Grande do Sul recebeu a visita do imperador e da imperatriz, que visitaram Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Santo Amaro, São Gabriel, São José do Norte, São Leopoldo, Triunfo e Viamão. Numa afronta aos liberais e ex-farroupilhas, o itinerário praticamente desconheceu as regiões da Campanha e da fronteira, coração da resistência republicana, recentemente derrotada. A Caxias seguiram-se outros presidentes provinciais, indicados pelo poder central para breves períodos de governo, que pouco fizeram no relativo à infraestrutura provincial – transporte, educação, segurança, etc. Ainda que permanecesse o marasmo administrativo, a economia sul-rio-granden-

186

se rearticulou-se rapidamente, apoiando-se, como nos tempos anteriores, sobretudo na exportação de charques e couros e, cada vez mais, na sociedade e economia colonial-camponesa.

Reação econômica A Revolução Industrial europeia criara ampla classe operária, que necessitava e consumia crescentemente a nova bebida energizante – o café. A expansão da produção cafeicultora determinou a importação de multidões de trabalhadores africanos escravizados, tradicionais consumidores de charque. O transporte do café para o litoral necessitava de mulas, que portavam na cangalha o café em sacos de couro. As manufaturas e as indústrias europeias e estadunidenses consumiam, igualmente, grandes quantidades de couros como matéria-prima. Os latifundiários da província conheceram novamente a bonança econômica. Os couros e as carnes salgadas, que gozavam de garantias alfandegárias desde 1840, asseguraram uma situação superavitária para as rendas provínciais. A expansão da produção charqueadora explica a rápida rearticulação da população escravizada vergastada durante a Guerra Farroupilha pelas fugas e inclusão nas forças armadas. A introdução de cativos novos, chegados agora em grande número do golfo da Guiné, teria ensejado a importante conspiração dos cativos “minas” em 1848 em Pelotas. Em 1845, caingangues das margens do alto rio Uruguai e dos campos de Nonoai aceitaram se aldear, permitindo a abertura do passo de Goio-En, no rio Uruguai, e, portanto, que as exportações de mulas se fizessem então pelo Caminho Novo das Missões, o que ensejou, igualmente, mais rápida ocupação do Planalto Médio e das Missões, com a consequente pressão sobre as comunidades nativas regionais. Em fins de 1849, o governo provincial, seguindo intruções do governo imperial, fundava sua primeira colônia na Depressão Central, ao pé da Encosta Inferior do Planalto, ao longo da recém-aberta estrada unindo Rio Pardo a Cruz Alta. Formada por imigrantes alemães, a colônia de Santa Cruz do Sul destinava-se também a ocupar região desabitada e refúgio tradicional de quilombolas. Longe dos mercados e com dificuldades para escoar seus produtos, os colonos investiram na produção mercantil de fumo, de alta relação de peso-valor, resultando dessa atividade, no século 20, um dos maiores polos fumageiros do mundo. Em 1858, como reflexo da situação econômica positiva, fundou-se o Banco da Província, por iniciativa de comerciantes, com sede em Porto Alegre, de longa e destacada atuação no Rio Grande do Sul e, a seguir, no Brasil. O banco foi autorizado a emitir papel-moeda, mas pouco se serviu da prerrogativa. Mais tarde, desde 1875, o Rio Grande do Sul passou a possuir sua Caixa Econômica Imperial, que captava depósitos e fornecia empréstimos populares.

187

Era também importante o desenvolvimento da policultura e do artesanato colonial-camponês, o que contribuía para o acelerado desenvolvimento da capital, marginalizada da exportação e comercialização dos charques e couros da Campanha. Nesse contexto geral, a Depressão Central e a encosta da Serra desenvolviam-se demográfica e economicamente em relação à Campanha e à fronteira, que mantinham ainda a hegemonia econômica e política. Esse processo foi muito forte no fim do século, sobretudo após a ocupação da Encosta Superior do Planalto por colonos italianos, a partir de 1875. Em 1872-1890, a população da Serra e do Planalto aumentou 159%; a do litoral, 72%; a da Campanha, 93%.

Rearticulação liberal Apesar da expansão econômica, foi relativamente lenta a rearticulação política dos liberais sulinos. Em 1848, com a vigência de um ministério imperial conservador, o presidente provincial organizou o Partido Conservador no Rio Grande do Sul, o que motivou uma frágil resposta dos liberais minoritários, ainda deprimidos pela derrota militar e política. De 1848 a 1851, os conservadores mantiveram o controle da Assembleia Provincial rio-grandense. Nesses anos, a atuação dos liberais sulinos repetiu as críticas gerais ao centralismo imperial, as quais se concentravam na criação do chefe de polícia provincial, agora designado pelo poder central. Como vimos, a reação centralizadora antiliberal consolidara-se definitivamente, anulando grande parte das limitadas concessões liberal-federativas realizadas durante o período regencial. Em 1848-9, em Pernambuco, ocorreu a derrota da Revolução Praieira. O fracasso do último movimento liberal anticentralista assinalou o início do longo período de tranquilidade política do II Reinado, produto do forte dinamismo da economia exportadora cafeicultora do Rio de Janeiro e, a seguir, de São Paulo e da hábil defesa de dom Pedro dos interesses dos plantadores escravistas. Um acontecimento político platino permitiu a aproximação dos criadores da Campanha e da fronteira ao poder imperial, soldando parcialmente as fraturas deixadas pela revolta separatista de 1835-1845. Apenas cinco anos após o fim da guerra civil sulina, antigos chefes farroupilhas uniram-se aos ex-inimigos em uma empreitada comum, sob a odiada bandeira do Império. Em 1850, o caudilho argentino Juan Manuel de Rosas (1793-1877) encontrava-se, aparentemente, em seu auge. O Pacto Federal, de 1831, e a Lei de Aduanas, de 1835, proibindo a importação de produtos manufaturados produzidos nas províncias argentinas do interior, garantiram o equilíbrio entre unitaristas e federalistas, o que permitiria o início da longa hegemonia do rosismo. A reunificação das quatorze províncias na Confederação, a crescente influência no Uruguai, as vitórias sobre o imperialismo francês e inglês co-

188

locavam Rosas em condições de tentar construir a grande Argentina, em torno de Buenos Aires, como ocorrera com as ex-colônias luso-portuguesas, em torno do Rio de Janeiro. Para criar a grande república do Prata, Rosas – grande estancieiro, charqueador e comerciante – deveria conquistar, pela força, o Paraguai. No Uruguai, o blanco Manuel Oribe, aliado de Rosas, dominava a campanha e sitiava a cidade-porto de Montevidéu, mantida pelos colorados, sobretudo em razão do apoio econômico e militar francês. As tropas que defendiam Montevidéu eram formadas por 540 uruguaios, 690 ex-cativos e 2.865 mercenários franceses, argentinos, italianos, espanhóis, brasileiros, etc. Senhor do interior, Oribe proibia a transferência irregular de gados uruguaios para as charqueadas sul-rio-grandenses e garantia a liberdade dos trabalhadores escravizados fugidos do Rio Grande do Sul, já que a instituição fora abolida no Uruguai. Sem o contrabando do gado desde a Banda Oriental, com melhores campos e melhor porto, os charqueadores sulinos viam-se em difícil situação diante da concorrência do Prata. A política imperial no Prata tinha como principal objetivo impedir a reunificação do antigo vice-reinado, sob a hegemonia de Buenos Aires, o que tornaria o Prata e seus tributários rios interiores. O Império lutava pela internacionalização dos rios Uruguai, Paraná e Paraguai para viabilizar a exploração mercantil das importantes regiões sobretudo do Mato Grosso, que necessitavam exportar a produção através daqueles rios. A obtenção de direitos de navegação naqueles rios internos favoreceria a expansão territorial imperial em regiões em litígio, com a Argentina e, sobretudo, com o Paraguai. Em caso contrário, seriam fortes as tendências centrífugas daquelas regiões. O Império sonhava em retornar, como fosse possível, ao Prata, via Montevidéu, e manter o governo uruguaio maleável às suas exigências, ao igual do que ocorrera após a indendência oriental, sobretudo quando do governo de Fructuoso Rivera.

Proteção imperial Para vergar a hegemonia rosista e alcançar seus objetivos na bacia do Prata, a diplomacia imperial passou a apoiar o Partido Colorado, contra os blancos, de Oribe. O Império substituiu prontamente os franceses, quando retiraram o apoio econômico à defesa da Montevidéu, em troca de tratados leoninos, a serem materializados após a vitória. A ajuda foi feita através da casa bancária do futuro barão e marquês de Mauá. Em 6 de setembro de 1850, para não confrontar ainda diretamente a Rosas, o Império assinou acordo secreto com o governo da Defensa (Montevidéu) e o futuro barão de Mauá, que se responsabilizou pelo apoio material à defesa da cidade-porto. A expansão da economia mundial enriquecera aos criadores e charqueadores de Entre Rios e Corrientes, aliados de Rosas, que se rebelavam contra

189

o monopólio de Buenos Aires quanto ao comércio exterior. Aproveitando essas contradições, a diplomacia imperial acertou financiar e apoiar militarmente a rebelião do general Justo José de Urquiza (1801-1870), principal caudilho federalista. Apoiou, igualmente, a independência do Paraguai, fornecendo armas e instrutores militares para melhor defesa contra a Argentina rosista. Nesses anos, dos duzentos mil habitantes do Uruguai, quarenta mil consideravam-se brasileiros. Eles viviam sobretudo nas grandes estâncias escravistas ao norte do rio Negro, em uma época em que a escravatura fora abolida no país. Comportavam-se na região como se fossem os senhores da mesma. A diplomacia do Império e os fazendeiros rio-grandenses do norte do Uruguai mobilizavam-se por um Estado uruguaio fraco e subserviente. De 1817 a 1850, as razias sul-rio-grandenses nos territórios uruguaios teriam levado uns quatorze milhões de cabeças de gado para as charqueadas sulinas. Rosas e outros ricos saladeiristas de Buenos Aires e de Montevidéu militavam pelo fim dessa “hemorragia” do gado uruguaio em favor das charqueadas brasileiras. Capitaneados pelo ex-general farroupilha Antonio de Sousa Neto, os criadores rio-grandenses do norte Uruguai reivindicaram intervenção do governo imperial que restaurasse a hegemonia imperial na região, contestada agora pelo governo de Manuel Oribe. Em 1o de outubro de 1850, em seu relatório à Assembleia Legislativa Provincial, o presidente da província falava do Uruguai como uma quaseextensão do território imperial. “É fora de dúvida que os habitantes desta província têm sofrido no Estado Oriental graves violências pessoais e que têm visto suas avultadas riquezas sequestradas e destruídas por modo violento e injustificável. [...] centenares de estâncias, centenas de escravos e milhares de animais [...] têm sido arrancados de suas mãos pelos poder da força militar.” Na época, como indicado, a escravidão já fora abolida no Uruguai. Em virtude dessa situação de “violência”, o presidente da província, conselheiro Antônio Pimenta Bueno, sinalizava explicitamente aos grandes criadores e charqueadores sulinos para a futura intervenção imperial no Uruguai e no Prata. Segundo ele, o “governo do augusto Imperante do Brasil” tomara conhecimento dessa “violência” e, portanto, os “rio-grandenses” podiam já “confiar [nas] acertadas providencias” que poriam fim a “tais injustiças”. Em fins de 1849 e inícios de 1850, o general Francisco Pedro de Abreu, o barão do Jacuí, que secundara Caxias no massacre dos lanceiros negros farroupilhas, penetrara nos territórios uruguaios, nos departamentos de Salto e Taquarembó, com gaúchos e exilados colorados armados, saqueando a região e trazendo para o Rio Grande do Sul grandes quantidades de gado roubado. Essas operações ficaram conhecidas como “califórnias”. O fato de o governo imperial ter rejeitado as reclamações uruguaias e argentinas que exigiam a punição dessas violências em territórios uruguaios, incentivadas e apoiadas pelas autoridades centrais do Império no

190

Rio Grande do Sul, determinou a ruptura das relações diplomáticas e, a seguir, a consequente guerra entre a Argentina rosista e o Império, vencida sobretudo pelas tropas federalistas do general Justo José de Urquiza.

O sonho acabou As operações iniciaram no Rio Grande do Sul com a organização de uma forte expedição militar contra Oribe, o Exército Libertador, sob o comando de Caxias. Três quartos dessas tropas eram formados por gaúchos dos fazendeiros da Campanha e do norte do Uruguai, em boa parte ex-farroupilhas, que lutavam, agora, sob as ordens do antigo comandante-emchefe inimigo. Consciente da erosão do poder do seu aliado Rosas, Oribe capitulou sem opor resistência. O Brasil possuía também clara superioridade naval sobre a Argentina. Após a ocupação de Montevidéu, 28 mil soldados de Urquiza e do Império atravessaram o rio Uruguai e entraram em território argentino. Em 3 de fevereiro de 1852, os dois exércitos encontraram-se em monte Caseros, na Argentina, nas proximidades da fronteira com o Brasil e o Uruguai. Derrotado após frágil resistência, Rosas refugiou-se num navio inglês, partindo para a Europa. Acordos secretos entre o Império e Urquiza haviam acertado, entre outros pontos, o respeito pela Argentina da independência do Paraguai e o livre acesso dos navios civis e militares do Império aos rios interiores argentinos. A fragilidade do Estado argentino favoreceu, igualmente, a definição das fronteiras entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai em favor do Brasil. Os acordos impostos pelo Império determinavam a entrega ao Brasil do norte do Chuí, da lagoa Mirim, do rio Jaguarão; o direito de intervenção militar no Uruguai; o pagamento das somas emprestadas por Mauá, acrescidas de fortes juros, com o direito do credor de intervir nas contas uruguaias; a isenção de contribuições e de pagamento de direitos de exportação de gados do norte do Uruguai para o Rio Grande do Sul; a extradição sumária dos cativos fugidos no Uruguai e o direito dos criadores sulinos de terem cativos, apesar da abolição de escravatura no Uruguai, em 1842. O novo governo argentino garantia, igualmente, o tratado draconiano, que tinha a duração de dez anos. Com a derrota de Manuel Oribe e, a seguir, de Rosas, sem outra solução, o novo governo e a Assembleia Legislativa uruguaia referendaram as concessões do governo da Defensa (Montevidéu), que tornavam o Uruguai um quase-protetorado brasileiro. Então, os grandes proprietários sulinos mantiveram sua expansão territorial e domínio no norte do Uruguai. Nesses anos, umas 430 fazendas de criadores sul-rio-grandenses ocupavam quase 1.100 léguas quadradas do norte do Uruguai – 30% do território uruguaio.

191

Em inícios de 1850, dos 24 saladeiros uruguaios registrados em 1842, apenas uns três continuavam em atividade em razão da falta de gado, enviados para as charqueadas rio-grandenses. As manadas do interior haviam caído de seis a sete milhões de cabeças para pouco menos de dois milhões, em razão do abate determinado pelos exércitos em luta, das califórnias e das transferências para o Rio Grande do Sul. A economia e a sociedade uruguaia, já golpeada pela longa guerra civil, mergulharam em verdadeiro descalabro. Em 1852, seguindo tendência política nacional, fortalecida no Rio Grande do Sul pela convergência de objetivos no Prata dos grandes criadores e do Império, os chefes conservadores e liberais sul-rio-grandenses uniram-se em uma liga, com a hegemonia conservadora, que dominou a Assembleia Provincial por três anos, até 1855. No mesmo ano, conservadores e liberais dissidentes formariam uma contra-liga, que deu origem ao Partido Liberal Progressista. Com predomínio liberal, o PLP dominou a Assembleia provincial de 1856 a 1865. Finalmente, em 1862, acompanhando movimento nacional de recomposição liberal, nascia no Rio Grande do Sul o Partido Liberal Histórico, denunciando aliança entre liberais e conservadores. Os principais dirigentes da nova agremiação eram o general Manuel Luis Osório, Carlos von Koseritz e Félix Xavier da Cunha. Após a morte de Osório, em 1879, os liberais sulinos foram dirigidos, por longas décadas, pelo caudilho sul-rio-grandense Gaspar Silveira Martins (1835-1901).

Grandes fazendeiros Manuel Luís Osório, que lutara, inicialmente, ao lado dos farroupilhas, optara pelo Império quando da proclamação da República Rio-grandense. Devido a sua defecção, esse grande criador da Campanha, que possuía igualmente terras no Uruguai, foi agraciado com o título de barão e marquês de Herval. Gaspar Silveira Martins também era um grande proprietário de terras no meridião sulino e no Uruguai. O novo Partido Liberal recuperava a herança mítica do movimento farroupilha, sem propor o separatismo e a república. Apresentado em junho de 1863, seu programa retomava a luta contra o centralismo imperial e propunha a responsabilidade dos ministros, a temporalidade do Senado, as eleições diretas, a independência da magistratura, a representação das minorias, o serviço militar obrigatório, etc. Na economia, os liberais propunham o “livre jogo” das forças econômicas e abominavam qualquer forma de intervencionismo estatal ou público. Portanto, eram – como sempre haviam sido – favoráveis ao Estado mínimo, levantando-se contra qualquer taxação da produção e da propriedade. Viam a economia pastoril como a vocação natural do Rio Grande do Sul e o industrialismo, como irrealista esquisitice europeizante.

192

O Partido Liberal representava sobretudo os interesses dos grandes criadores da Campanha, da fronteira e do norte do Uruguai, região social e economicamente hegemônica. Em razão do papel significativo dos trabalhadores escravizados nas fazendas e nas charqueadas, os liberais sulinos opunham-se à reforma e abolição da escravatura, ao contrário de seus pares no resto do Brasil, comumente emancipacionistas. Em 1866-67, os liberais obtiveram a maioria dos parlamentares provinciais, mantendo-a até a República, em 1889. A lei eleitoral imperial determinava que os cidadãos com renda líquida anual de cem mil-réis elegessem um conselho formado por eleitores com renda de duzentos mil-réis. Estes últimos designavam os deputados gerais e os senadores, com rendas mínimas de quatrocentos e oitocentos mil-réis, respectivamente. Esse regime eleitoral censitário e oligárquico, baseado na renda, transformava a política em monopólio dos grandes proprietários de homens, de terras e de capitais. Em 1868, durante a guerra contra o Paraguai (1865-1870), os conservadores sulinos refundaram seu partido, tendo como patrono o general duque de Caxias, vencedor dos estancieiros farroupilhas, liberais, republicanos e saparatistas. Os conservadores eram monarquistas, centralistas e igualmente escravistas. Através do Império, em geral, eles representavam os grandes plantadores, comerciantes e escravistas. No Rio Grande do Sul, a força dos conservadores concentrava-se nas grandes cidades comerciais – Rio Pardo, Porto Alegre, Rio Grande, São José do Norte. Como os grandes fazendeiros sulinos eram, em geral, liberais, no Sul os conservadores foram sempre minoritários.

Limpeza das matas A paz, em 1845, e a volta do dinamismo da economia regional, impulsionada pelas necessidades da produção cafeicultora, permitiram a retomada da submissão das últimas comunidades nativas livres sulinas. Em 1o de março de 1846, quando da abertura da legislatura provincial, Caxias referiu-se à “segurança” na província, registrando seu racismo e elitismo: “Os poucos assassinatos que têm havido só mancham a última classe da sociedade, degredada de todas as luzes da religião e da civilização, e por causas tão animais e mesquinhas, como a inteligência dos bugres e dos escravos africanos que os cometeram.” Em 1845, pressionados desde o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, sobretudo caciques subordinados caingangues das margens do rio Uruguai, dos campos de Nonoai e de Guarapuava aceitaram aldear-se com sua gente, abrindo-se o Caminho Novo das Missões, em direção à feira de Sorocaba, pelos Campos de Guarapuava. Aproveitando a conjuntura, foram melhoradas e policiadas as picadas dos matos Português e Castelhano, para “afugentar os bugres selvagens” que ali atacavam “viajantes”.

193

Em virtude da forte pressão, em 1846 o cacique Nonoai aldeou-se com sua gente no toldo de mesmo nome. Em maio de 1850, o cacique principal Braga, que contaria, em 1837, com 1.430 seguidores e ocupava parte do mato Castelhano, aceitou também se reduzir, com 304 seguidores, nos Campos do Meio. O mesmo fez seu inimigo, o cacique Doble – Yu-toahê. Outros caciques – Condurá, Nhucoré, etc. – também abandonaram as matas. Aldeados, os nativos deixavam crescer os cabelos, abandonando a tonsura responsável pelo nome étnico-coroados. Os coroados viviam em subtribos de umas 20 a 25 famílias, sob a autoridade geral de um cacique maior ou principal, dedicados a práticas caçadoras, coletoras, pescadoras e horticultoras incipientes. A exploração cíclica de nichos ecológicos dispersos determinava economia itinerante e exigia o domínio de amplos territórios vitais. Sob forte pressão exterior, em 1855-60 em torno de 550 nativos apresentaram-se, anualmente, para se aldear, em uma época em que a população provincial era de trezentos mil habitantes. O objetivo fundamental da política provincial era a conversão das comunidades coroadas para práticas agrícolas sedentárias, que liberassem as regiões florestais para a colonização. Para alcançar essa meta, incentivou-se também a exploração dos antigos ervais missioneiros, o que sugere uma das origens étnicas dos caboclos ervateiros, de grande importância para a história da região nas décadas seguintes. As terras entregues aos coroados logo despertaram cobiças, comumente apoiadas pelas autoridades máximas da província. Já em 1851, o presidente Pedro Pereira de Oliveira, em seu relatório sobre o “Estado da Província”, opinava que não se devia “satisfazer todos os [...] caprichos” [sic] dos coroados, já que eram de “ordinário indolentes” e não queriam “trabalhar”. Segundo ele, a única solução para os nativos seria o trabalho semisservil: “[...] o mais conveniente expediente a tomar-se é mandálos tirar desses pontos em que se acham [reservas] e empregá-los convenientemente nos arsenais na Marinha ou em outras [...] estações públicas [...].” Após 1845, a população nativa livre decaiu tendencialmente sob os golpes dos bugrueiros, fazendeiros e caingangues aculturados, que participavam ativamente das campanhas de extermínio. Não foi melhor a sorte dos caingangues ou caingangues submetidos. Em 1853, o próprio presidente da província reconheceu que os coroados aldeados e livres eram pressionados incessantemente por fazendeiros e posseiros “com o fim de se apoderarem” dos seus “belíssimos campos”.

Ano maldito Em 1855, os ataques e a resistência dos caingangues semiaculturados conheceram verdadeiro paroxismo. Em princípios de julho, no aldeamento de Nonoai, no distrito de Passo Fundo, foram mortos “Joaquim de Macedo, um seu filho, um genro e um peão”, por “indígenas não aldeados”. O “índio

194

Luiz Portella e sua gente”, “inimigos da tribo” dos “assassinos”, enviados – e certamente fortemente armados – pelo subdelegado distrital contra os nativos, alcançaram-nos e massacraram-nos “no interior das matas”. Em 13 de agosto, vingando os “amigos” mortos, o “índio” Agostinho justiçou a Portela no “seu próprio rancho”. Oliveira Bello, presidente da província, assinalou em seu relatório que os nativos “assassinos” e os seguidores de Portela e de Agostinho viviam em “completa rivalidade”, vagando “pelos matos vizinhos sem quererem submeter-se”, empregando-se episodicamente nas fazendas. Segundo ele, os nativos eram utilizados pelos fazendeiros para praticar atos de sangue. Em dezembro de 1855, foram os “índios das tribos de Manoel Grande e de Pedro Nicafim” que justiçaram o fazendeiro “Clementino dos Santos Pacheco, um sobrinho, um filho, o capataz e um filho deste, e mais um escravo”. Desta vez, as autoridades policiais, mancomunadas com o padre Leite Penteado, diretor da reserva, enviaram tropas no encalço dos pretensos assassinos, sendo “mortos como resistentes ou com tal pretexto” o cacique Pedro Nicafim e diversos dos seus seguidores. O relatório da província que registra os fatos responsabiliza parcialmente o padre Penteado pelos acontecimentos e registra a desconfiança de que os sucessos teriam sido instigados por fazendeiros devido a “questões de terras”, ou seja, a expansão da fronteira pastoril e agrícola disputava as poucas reservas delimitadas para os antigos senhores da região. O certo é que, em razão desses e de outros massacres, decaía significativamente a população caingangue aldeada e livre do Planalto. Foi ainda mais dramática a sorte dos botucudos, igualmente do tronco liguístico macro-jê, do nordeste do Rio Grande do Sul. Em 1850, o presidente da província registrava em relatório: “Os índios botucudos fizeram alguns estragos nos distritos da Torres e Maquiné e foi por isso necessário ocorrer com algumas providencias. Será difícil intentar a catequese desses índios já porque pertencem a uma tribo mais indômita, já porque facilmente passam para o território de Santa Catarina [...].” “Providências” era o eufemismo que encobria o simples massacre dos nativos.

A paz e a ordem Após a derrota farroupilha, a retomada do controle social e territorial realizou-se sobretudo no relativo à população cativa, que aproveitara aquele confronto para se alistar nas tropas combatentes, fugir para o Uruguai e para a Argentina, aquilombar-se nas matas da província. Após a paz, as autoridades determinaram o arrolamento dos cativos fugidos durante a guerra. Um levantamento parcial provincial de fins dos anos 1840 aponta pouco menos de 950 cativos fugidos a 378 proprietários.

195

A partir de 1847, a repressão contra quilombolas foi forte no município de Rio Pardo. Em inícios daquele ano, um capitão-do-mato, quatro práticos e guardas nacionais assaltaram quilombo no distrito do Couto (Rio Pardo). Seis cativos foram capturados; “um preto e uma preta”, assassinados; “seis a oito negros e duas negras” escaparam. Os quilombolas habitavam dois “grandes ranchos” e viviam da agricultura, caça, coleta e pesca. Em novembro de 1848 registrava-se a existência de quilombos “nas imediações da cidade de Rio Pardo” e, em março de 1849, autorizava-se o delegado de polícia do município a “ajustar quatro ou cinco homens que sejam vaqueanos do lugar” para reprimi-los. Em setembro de 1850, o presidente da província recomendava aos escravizadores de Rio Pardo que vigiassem melhor e vendessem para fora do município os trabalhadores fujões. Após serem recapturados, eles escapavam novamente para a serra. No fim do ano, três cativos eram presos em “quilombos da cidade de Rio Pardo”. Em outubro de 1851, documento registra a possível existência de “quilombo” “no distrito do Couto”. Em 1853, o governo provincial alocou pouco mais de mil trezentos e quarenta mil-réis para a repressão a “quilombos existentes entre as nascentes do Rio Pardo e Taquari Mirim” e determinou que os cativos fossem entregues aos amos “depois de pagarem as despesas feitas”. Em fevereiro, expedição destruiu quilombo entre os arroios Sampaio e Taquari Mirim. Os capturados revelaram que recebiam “armas e mais objetos necessários para viverem no mato, a troco de serviços braçais”, de proprietário morador do Pinheiral. Em outubro de 1849, Antônio Cabinda, de quarenta anos, foi acusado de convidar trabalhadores escravizados para formar quilombo fora de Pelotas. Ele fora denunciado por Maria Mina, de vinte anos. Antônio afirmou que jamais tentara “seduzir” Maria e que apenas mandara que fosse buscar “à noite”, na sua “moradia”, a moeda que lhe pedira emprestada... Em abril de 1853, a presidência da província determinava que fosse posta à disposição da delegacia de polícia do termo de Pelotas a “força que [...] julgar indispensável para apreenderem [sic] desertores dos corpos do Exército”, que constava “existirem em um quilombo de pretos fugidos no segundo distrito” de Pelotas. Em meados de 1854, uma escolta de “12 praças” destruiu quilombo nas proximidades de Porto Alegre, na Estância de Gravataí, após forte resistência. Um dos repressores fora “gravemente” ferido e dois quilombolas, mortos. Foram encontrados no quilombo dois “desertores” da Companhia dos Inválidos, “seis” paisanos”, um “réu condenado a galés”, dois “pretos” e uma “preta”. O quilombo, com 17 membros – oito cativos e nove homens livres –, teria apenas três mulheres. Quilombolas que escaparam ao assalto foram presos mais tarde. Na época, era comum “soldados desertores” e “paisanos”, ou seja, homens livres e pobres, viverem em quilombos.

196

Prejuízo irreparável Nos últimos meses de 1854, foi batido um quilombo nas “matas da serra” da freguesia de Santa Maria da Boca do Monte. Um “preto” foi preso e outro, morto. Um processo foi instaurado para saber se o “preto” fora “morto em ato de resistência”, já que se tratava também de perda total de uma valiosa propriedade. Em dezembro de 1855, o governo provincial autorizou gastos com a repressão de quilombo na Serra Geral, nas imediações da colônia de Santa Cruz, como assinalado. Em janeiro de 1856, novamente, a Presidência da província autorizou a destruição de quilombos localizados “na Serra Geral próximo a Santa Cruz e sobre o arroio Castilhano, na mesma Serra”. Os gastos de tomadia seriam financiados pelos proprietários dos fujões. O quilombo seria formado por “escravos e desertores”. O ataque causou a captura, morte e dispersão dos quilombolas. Era, sobretudo, a ocupação das regiões desabitadas que impedia a formação de quilombos. Em 1849, a formação da colônia de Santa Cruz, entre Rio Pardo e a serra, restringiu a possibilidade de aquilombamento. Em inícios de 1857, uma patrulha de “vaqueanos e homens práticos” fora bater “dois quilombos” “nas serras do Taquari Mirim e rio Pardinho”, no município de Rio Pardo, sem resultados. A presidência da província arcou com os gastos. Em 1859, uma tropa marchou para “prender e dispersar os desertores e escravos” reunidos nas “imediações do serro do Roque”, também sem resultados. Em meados de 1863, o governo provincial pagou as despesas com a expedição de dois vaqueanos e 22 praças, enviada inutilmente contra quilombo “entre os rios Pardo e Pardinho”.

197

14 Rio Grande do Sul: da guerra do Paraguai à desescravização A derrota de Rosas e de Oribe, em 1852, facilitou a hegemonia do Império no Prata, com a abertura da navegação em direção ao Mato Grosso. Então, apenas o Paraguai obstaculizava os projetos imperiais na região. Em fins de 1854, o governo imperial enviou poderosa expedição naval contra Assunção, a fim de impor a abertura plena e incondicional da navegação dos rios internos daquela nação e suas reivindicações territoriais: quinze navios de guerra, com 130 canhões e 2.061 marinheiros e três mil soldados. Tropas foram concentradas no forte de Coimbra, no Mato Grosso, e em São Borja, na fronteira do Rio Grande do Sul, prontas para invadir o Paraguai. A operação redundou em enorme fracasso. A vitória imperial sobre Rosas-Oribe propriciou, igualmente, a consolidação e expansão dos criadores sul-rio-grandenses nos departamentos setentrionais do Uruguai, de onde enviavam seus animais para o Rio Grande do Sul, sem pagar qualquer taxa, em flagrante desrespeito aos interesses daquela nação. Em 1850, proprietários sulinos detinham 428 fazendas no Uruguai, com uma superfície total de quase quatro milhões e oitocentos mil hectares. Em 1845, um parlamentar lembrava na Câmara imperial: “Al pasar al outro lado del Yaguarón, señores, el traje, el idioma, las costumbres, la moneda, las pesas, las medidas, todo, hasta la outra banda del rio Negro, todo, señores, hasta la tierra, todo es brasileño.” Uma década mais tarde, em fins dos anos 1860, quanto caducaram os tratados despóticos impostos pelo Império, o presidente Bernardo Berro, do partido Blanco, esforçou-se para estender a autoridade nacional sobre o norte do Uruguai. Ensaiou a nacionalização da fronteira, pela distribuição de terras fiscais aos nacionais e fundação de vilas que arraigassem e difundissem a população, as leis, o idioma nacional. Em virtude dos escassos recursos, essas medidas pouco prosperaram. Em maio de 1862, fundou a vila de Cevallos – o conquistador da capitania de São Pedro –, atual Rivera, como atalaia contra o expansionismo imperial. Sobretudo, Berro mobilizouse pelo fim da escravidão apenas velada, sob a forma de contrato por quinze a vinte anos de trabalho, praticada ao norte do rio Negro, que facilitava a expansão rio-grandense em região carente de mão de obra, sobretudo após a Guerra Grande (1839-1851). Berro determinou um período máximo de seis anos para os contratos, apresentação da carta de liberdade dos negros introduzidos no Uruguai que fossem informados sobre a abolição da escravidão no país. Mais ainda, determinou não renovar os acordos leoninos pactuados pelo Império em 1851 com o governo da Defensa, que expiravam em 1861, após dez anos de vigência. A partir de então, o gado exportado pagaria uma pequena taxa de 4% sobre seu valor. Foi igualmente elevado o moderado

198

imposto pago na República sobre os gados e as terras de pastoreio, respectivamente, para 5% e 4%. Então, mais uma vez, os fazendeiros rio-grandenses recorreram, por intermédio do antigo líder farroupilha Antônio Souza Netto, ao governo imperial exigindo a intervenção naquele país. Também então, os objetivos expansionistas do Império no Prata apontavam na mesma direção que dos estancieiros escravistas rio-grandenses. Nos anos 1860, o Império possuía importantes reivindicações na região: a livre navegação e os limites entre os dois países. O Império exigia o direito de livre navegação nos rios Paraguai e Paraná, por onde eram exportados baunilha, borracha, diamantes, mate, ouro e outras mercadorias produzidas sobretudo no Mato Grosso. O transporte por terra das mercadorias daquela região era praticamente impossível, por ser longo, demorado e caro. O governo paraguaio condicionava essa questão à resolução dos problemas fronteiriços com o Império. O governo paraguaio defendia o estabelecimento das fronteiras segundo os tratados acordados entre Portugal e Espanha. O governo imperial exigia o reconhecimento do princípio do usus possidentis, ou seja, a expansão das fronteiras até os territórios que propunha manter sobre sua ocupação, exigindo que a fronteira se estendesse até o rio Apa, enquanto o Paraguai defendia como limites o rio Branco. A Argentina possuía, igualmente, importantes reivindicações territoriais no relativo ao Paraguai, exigindo territórios entre o rio Paraná e o Uruguai e entre o rio Bermejo e o Pilcomayo. A oligarquia portenha reinava sobre a Argentina desde a vitória de Pavón, em 17 de setembro de 1862. Sob o comando de Bartolomé Mitre, o liberal-unitarismo portenho almejava consolidar seu domínio vergando os dois grandes aliados das forças provinciais argentinas: o Partido Blanco, no governo do Uruguai, e sobretudo o Paraguai, que seguia considerando como província rebelde e desgarrada. Como Rosas, Mitre sonhava com a reunificação das províncias do ex-vice-reinado do Rio da Prata sob o tacão da oligarquia e dos interesses comerciais de Buenos Aires. Bartolomé Mitre aproximou-se do Império, almejando a construção de uma hegemonia compartida no Prata, em reorientação radical da política tradicional argentina. Enviou o oriental Venâncio Flores, até então oficial dos exércitos argentinos, contra o governo constitucional uruguaio de Bernardo Berro (1860-1864). O caudilho colorado desembarcou no Uruguai de navio da marinha de guerra argentina, para assumir a direção de tropas de três mil homens formadas por gaúchos de Corrientes, de caudilhos colorados e, sobretudo, de peões e capatazes dos estancieiros rio-grandenses da Banda Oriental. Enquanto apoiava ativamente Venâncio Flores, Mitre liberou o Império para intervenção militar no Uruguai, consciente de que tal ato ensejaria inevitável resposta do governo paraguaio. Em 1º de março de 1864, Bernardo Berro entregou a faixa presidencial a Atanásio Aguirre.

199

Entre outras duras reivindicações ao governo oriental, o Império apresentou através de José Saraiva a exigência da punição das autoridades orientais responsáveis por “violências” e a indenizações dos brasileiros pretensamente feridos nas suas pessoas e propriedades. De pouco serviu o ministro do Exterior oriental lembrar que haviam sido apresentadas apenas 63 reclamações em doze anos! O Império exigia, nos fatos, a submissão uruguaia. Em 4 de agosto de 1864, Saraiva apresentou ultimatum de três dias. Com o vencimeno do prazo e o abandono de Saraiva de Montevidéu, em 1º dezembro 1864 as poderosas tropas imperiais, organizadas no Rio Grande do Sul, atravessaram a fronteira uruguaia e, um mês mais tarde, em 2 de janeiro de 1865, após violento combate, apoiadas pelos aliados colorados, tomaram as defesas de Paissandu. O exército imperial contava com destacamento de 1.500 homens, sob a direção do ex-farroupilha Antônio Souza Neto. A batalha concluiu-se, de forma ignóbil, com o fuzilamento de oficiais e soldados uruguaios que haviam deposto as armas. Após a vitória, a esquadra imperial e os exércitos colorados sitiaram Montevidéu. O comércio de Montevidéu passou a pressionar pela entrega da cidadela, realizada em 20 de fevereiro de 1865, sob a presidência de Tomás Villalba, presidente do Senado. Praticamente desde a independência, Buenos Aires condicionara os contatos comerciais do Paraguai à sua submissão política e econômica. A derrota de Juan Manuel de Rosas, em 1852, pelas forças federalistas comandadas pelo general Urquiza havia, finalmente, permitido a retomada do Paraguai com o comércio internacional, em 1853, quando a Confederação Argentina decretara a navegação livre do rio Paraná. Desde o retorno da ditadura portenha, em 1862, o Paraguai passara a depender do porto de Montevidéu para manter seus contatos com o exterior. Com o Uruguai dominado de fato pelo Império, as duas margens do Prata se fechariam ao Paraguai, obrigando-o a se submeter, inapelavelmente, às exigências do Império e de Argentina mitrista.

O inimigo interno Em fins de janeiro de 1865, para aliviar a pressão sobre Montevidéu, 1.500 soldados blancos assaltaram Jaguarão. O ataque teria sido coordenado, ou motivado, por movimento insurrecional nas senzalas do sudeste rio-grandense, então principal centro escravista regional. Ao penetrar nos territórios sulinos, o coronel Basílio Munhóz lançara manifesto libertário: “O general em chefe do exército da vanguarda da República Oriental do Uruguai. Soldados! Vamos pisar o território que o império do Brasil nos há usurpado, é necessário que com vosso patriotismo reconquistemos seu domínio, fazendo tremular nele nossa bandeira, e dar a liberdade aos desgraçados homens de cor que gemem debaixo do jugo da escravidão, que a humanidade reprova [...]. Janeiro, 20 de 1865.” Nos dias seguintes ao ataque a Jaguarão foram reprimidas conspirações servis em Santa Isabel, Arroio Grande e Piratini, e dezenas de traba-

200

lhadores escravizados foram presos. Alguns uruguaios acusados de conspirar com os cativos foram também encarcerados. As revoltas estariam marcadas para inícios de fevereiro. Correspondência da época registra o medo dos escravistas de que se repetissem no Sul “tragédias iguais às de que foram atores bem célebres, Spartacus em Roma, e Tossaint-Louventure em São Domingos [...]”. Os blancos no Uruguai sempre contaram com uma eventual insurreição da massa escravizada sul-rio-grandense no combate do imperialismo brasileiro. O conflito no Uruguai chegaria rapidamente ao fim com o abandono da presidência da República por Atanásio Aguirre nas mãos do presidente do Senado, que se submeteu às exigências do colorado Venâncio Flores, do Império e dos criadores sul-rio-grandenses. Mais uma vez, os interesses do intervencionismo imperial coincidiam com as exigências dos criadores do meridião sulino. Sob o novo governo, os gados orientais continuaram sendo enviados para as charqueadas sulinas, sem qualquer ônus, e os rio-grandenses radicados no Uruguai reconquistaram os direitos de extraterritoriedade. As fazendas de rio-grandenses na Banda Norte seguiram funcionando com a mão de obra cativa mais de vinte anos após a abolição da instituição medonha no país, e os cativos fugidos do Sul seguiram sendo devolvidos sem qualquer dificuldade. O convênio entre o novo governo colorado e o Império foi firmado em 20 de fevereiro, aniversário da derrota imperial em Ituzaingó! Em resposta à invasão imperial do Uruguai, o governo paraguaio invadiu boa parte do Mato Grosso, para proteger o flanco norte do Paraguai e garantir o abastecimento em cavalos e gado. Para enviar expedição militar em apoio ao governo uruguaio, pediu, mas não recebeu, licença para que as tropas cruzassem a província de Corrientes. Anos antes, o mesmo direito de trânsito fora concedido ao Império, no caso de eventual confronto com o Paraguai. Mitre serviu-se da esperada invasão de Corrientes, fortemente povoada por descendentes de guaranis, para decretar guerra e tentar inutilmente galvanizar a população argentina contra o Paraguai, por meio da conformação da chamada Tríplice Aliança contra aquele país. Durante toda a guerra, Mitre defrontou-se com incessantes insurreições provinciais, que o obrigaram, ao final, a abandonar de fato os combates, para impor a ferro e fogo a hegemonia liberal-portenha sobre as províncias argentinas. Por sua situação geográfica, o esforço de arrolamento militar imperial apoiou-se sobremaneira sobre o Rio Grande do Sul. Dos 150 mil soldados convocados em todo o Império, em torno de 35 mil seriam rio-grandenses – ou seja, 20%! Ainda que a guerra tenha se iniciado atendendo a reivindicações dos grandes proprietários rio-grandenses no Uruguai, não contaria com o apoio destes, que não tinham terras nem, portanto, interesses naquelas regiões. Não possuíam igualmente capitais suficientes para participarem da apropriação subsequente das riquezas do país.

201

Cativos e paraguaios Extremamente mortífera, a guerra concluiu-se em 1870, com a derrota do Paraguai e a morte de Solano Lopez. Durante o confronto, foi forte a agitação servil no Rio Grande do Sul. Cativos fugiram e arrolaram-se nos batalhões dos Voluntários da Pátria; alforriados arrolados nas forças armadas desertaram no caminho das frentes de combate; cativos e soldados negros aquilombaram-se em grande número. Em julho de 1868 descobriu-se importante e ainda pouco estudada conspiração servil em Porto Alegre. Dionísio, Teodoro e Patrício, cativos de um negociante, arregimentaram grande número de trabalhadores escravizados para se sublevarem na noite de 24 de junho. A data fora transferida do Dia do Espírito Santo para a noite de São João, já que os conspiradores temiam “que muitas desgraças desnecessárias” ocorressem “com mortes de mulheres e crianças” “quando tivessem” que “tomar a praça do palácio”, que estaria “cheia de povo a assistir aos fogos e festas do Espírito Santo”. Patrício encomendara a cativo, morador do Caminho do Meio, “doze dúzias de cabos de lança para neles encravar-se facas e quaisquer outros instrumentos”. Os conspiradores reuniam-se em uma chácara do Caminho Novo, de onde partiriam à uma hora, em quatro “divisões”, para se apoderar de armas no quartel da Guarda Nacional, no “Laboratório Pirotécnico” e no “Arsenal de Guerra”. Um quarto grupo abriria a prisão. Os trabalhadores sublevados entrariam na cidade saudando a “liberdade”. Aproveitando inteligentemente a conjuntura política internacional, Patrício aliciou para o movimento os abundantes “prisioneiros paraguaios” que perambulavam, soltos, pela capital. O bem articulado plano foi denunciado pelo cativo Antônio Maria, que comunicou ao seu explorador o convite que recebera para participar do movimento. Temerosos de uma delação, os conspiradores convidaram companheiros da escravidão para a revolta, quando confiavam neles. Em caso contrário, foram chamados para um simples baile, no qual os conspiradores esperavam aliciá-los para a revolta. A presidência da província livrou o alcaguete da escravidão e da obrigação de assentar praça. Em dezembro de 1866, no início do confronto com o Paraguai, o ministério conservador suspendeu as eleições no Rio Grande do Sul, num momento em que os liberais controlavam a Assembleia Provincial, o que causou profunda insatisfação entre as classes proprietárias locais. Apenas em 1869-70 se realizariam novas eleições provinciais.

Desescravização do Rio Grande do Sul Nos anos 1860 e 1870, tomou corpo verdadeiro processo de desescravização do Rio Grande do Sul, de essenciais e ainda não perfeitamente eluci-

202

dadas influências para a história da região. A partir daqueles anos, cada vez mais aceleradamente, o Sul deixou de constituir uma das principais regiões escravistas do Brasil para assumir um novo perfil social e demográfico. A interrupção do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados, em 1850, determinara um rápido crescimento do preço do cativo. Então, os trabalhadores escravizados de todas as regiões do Brasil, das cidades e dos campos, passaram a ser vendidos para as fazendas cafeicultoras do Centro-Sul, onde se concentrou a imensa maioria da população servil brasileira. Tudo leva a crer que houve expansão vegetativa da população servil das fazendas pastoris sulinas. Esta mão de obra era utilizada nas estâncias e, possivelmente, reorientada parcialmente para centros consumidores, como o município de Pelotas, que manteve a exploração do trabalhador escravizado até os momentos finais da instituição. Com o aumento do preço dos cativos, o Sul transformou-se em exportador de trabalhadores escravizados para os cafezais. Um relatório do Ministério da Agricultura de 1884 anota a província sulina como o maior exportador de cativos entre 1874 e 1884, com 14.302 trabalhadores escravizados expatriados. Diversas transformações conhecidas pelo Rio Grande ensejaram e apoiaram esse processo de desescravização. Em inícios do 19, três quartos do gado das fazendas sulinas continuariam xucros. Em meados do século, o crescente amansamento do gado aumentou a produtividade das fazendas. Esse processo se acelerou na década de 1870, quando a economia pastoril conheceu importantes avanços, com o início do fim dos campos indivisos e a substituição dos valos e das raras cercas de pedras pelos novos aramados, primeiro lisos, a seguir farpados. Ao cercamento perimetral das estâncias seguiu-se a delimitação de mangueiras, bretes e banheiros, facilitando o manejo animal e a separação dos rebanhos – gado de cria, gado de engorde, gado de corte, etc. Foram também introduzidas melhorias genéticas nos rebanhos. Em inícios de 1870 chegaram a Uruguaiana os primeiros touros puros-sangues Durhan/Shorthorn, de origem inglesa. A introdução dessas melhorias foi lenta – eram ainda poucas as fazendas cercadas perimetralmente no fim da Monarquia. Porém, essas inovações iniciaram a lenta metamorfose da produção pastoril extensiva em atividade intensiva, processo ainda em curso no Sul. A nova realidade ensejou fenômeno ainda não suficientemente analisado. O cerco dos campos e os novos recursos produtivos diminuíam as necessidades de mão de obra para o trato dos gados e tornavam desnecessários os posteiros tradicionais. As cercas divisórias punham fim aos campos indivisos, fixando materialmente o caráter privado dos campos. Elas e as delimitações dos caminhos e estradas dificultaram e impediram a perambulação através dos campos, a carneação e a apropriação selvagem dos couros. Agora, o gaúcho que penetrava nos latifúndios, sem licença, passava de viajante a intruso

203

e ladrão. Com o fim de sua liberdade relativa, o campeiro foi obrigado a se fixar como trabalhador assalariado nas estâncias – peão. Em razão das novas condições produtivas, contando com uma crescente oferta de mão de obra livre para uma decrescente necessidade de trabalhadores, os criadores teriam deixado de comprar e passado a vender seus cativos para o Centro Sul, atraídos pela incessante valorização da mão de obra servil determinada pelas necessidades da produção cafeicultora. Esse processo exige ainda elucidação monográfica. Foram também importantes as melhorias nos meios de transportes provinciais. A navegação a vapor iniciou-se no Sul em 1830. Em fins dos anos 1850 havia seis vapores na província, generalizando-se esse tipo de transporte. Navios a vapor partiam de Rio Grande, navegavam pela lagoa dos Patos, chegavam a mais de 300 km foz acima do Jacuí. Partindo da Barra do Quaraí, navegavam 538 km pelo rio Uruguai. Anteriormente, a mão de obra fora utilizada intensamente na travessia dos rios e na navegação fluvial e de cabotagem.

Caminhos de ferro Na década de 1870, o Rio Grande do Sul conheceu também suas primeiras ferrovias. A partir de 1874, passou a funcionar a estrada de ferro Porto Alegre–São Leopoldo–São Hamburgo, com 44 km. O importante peso político do líder liberal Gaspar Silveira Martins, conselheiro do Império, permitiu que reivindicações, sobretudo, da metade sul do Rio Grande do Sul fossem satisfeitas pelo governo central – ferrovias, infra estrutura, etc. – mesmo durante o domínio de ministérios conservadores. Silveira Martins obteve, em 1872, do gabinete do visconde de Rio Branco, entre outras reivindicações sulinas, a construção da ferrovia Porto Alegre–Uruguaiana. Reeleito em 1877, conseguiu a construção do trecho ferroviário Rio Grande–Bagé. Ao governo imperial interessava diminuir a dependência do sul rio-grandense ao porto de Montevidéu. A partir de 1880, foi a vez de a margem do Taquari ser ligada a Cachoeira, Rio Pardo e Santa Maria. Em 1884, Rio Grande, Pelotas e Bagé contaram também com ferrovia. As estradas de ferro teriam desempregado homens livres e cativos utilizados no transporte de animais e mercadorias. Com a carência de cativos urbanos determinada pela mortalidade servil, pelas alforrias quando da guerra contra o Paraguai, pela venda dos cativos às fazendas cafeicultoras, as aglomerações urbanas brasileiras e sulinas desescravizaram-se, desaparecendo crescentemente o infatigável cativo urbano que buscava, trazia, levava, transportava, carregava, fabricava. Com a falta do cativo, recuou a produção doméstica, abrindo-se espaço às marcenarias, às carpintarias, às boticas, às sorveterias, às fábricas de cerveja e de sabão, aos armazéns de secos e molhados. Os capitais obtidos pela venda de cativos te-

204

riam sido investidos em equipamentos e serviços urbanos. Os negros cocheiros foram vendidos e desenvolveram-se cocheiras que alugavam carros para os transportes diários ou extraordinários. As tabacarias vendiam o cigarro e o charuto antes produzidos nas fazendas, chácaras e sobrados. Pequenas fábricas de bebidas desbancaram a produção dos licores e vinhos domésticos.

Vida cara A retração da economia doméstica urbana determinou a monetarização e o encarecimento dos produtos e serviços citadinos. Passou a custar caro aposentar velhos cativos num quartinho no fundo da residência. Utilizou-se cada vez mais a alforria para botar na rua um negro imprestável, prática que as municipalidades reprimiram. Em 1876, o Código de Posturas de Santa Vitória do Palmar multava o escravista que lançava seu cativo inválido ou valetudinário à rua. Com a falta do cativo, novos serviços urbanos nasceram ou se desenvolveram, sendo construídas as primeiras hidráulicas e redes de distribuição de água, os primeiros sistemas de transporte coletivo de passageiros, as primeiras e precárias redes cloacais. Em outubro de 1866 proibia-se a venda aos porto-alegrenses de água retirada do rio Guaíba e, dois meses mais tarde, iniciava-se a distribuição de água canalizada, fornecida pela Companhia Hidráulica Porto-Alegrense. A água era trazida, por encanamentos, do arroio Sabão até um reservatório localizado na praça da Matriz, de onde era distribuída em chafarizes ou abastecia as residências com “penas” particulares. As ruas centrais de Pelotas ganharam serviço de distribuição de água encanada em 1874, fornecido pela Companhia Hidráulica Pelotense. Em Pelotas, a instalação de penas de água nas moradias foi rápida. Em 1885, 50% das residências pelotenses possuíam penas. Em 1867, Porto Alegre ganhou seu serviço telegráfico. Em 1o de janeiro de 1870, inaugurava-se o Mercado Público da capital, imponente obra, de planta quadrada, com quatro torreões nos cantos e oitenta bancas externas e 72 internas. Pelotas possuía um amplo mercado público, construído em 1849-53. Superava-se o tempo em que cativos vendiam produtos, acocorados, aos passantes. Nos anos 1870, em Porto Alegre, carroças puxadas por burros recolhiam o lixo depositado em recipientes diante das residências. O serviço restringia-se às ruas centrais. Três anos mais tarde iniciava-se o primeiro serviço de transporte coletivo a vingar na capital, explorado pela Companhia Carris de Ferro Porto-Alegrense. A primeira linha ligava o Centro ao bairro Menino Deus. Nos anos seguintes, diversas linhas de bondes puxados a burros funcionavam com sucesso na cidade. Em 1873, Pelotas inaugurava o mesmo serviço, sob a responsabilidade da Cia. Ferro Carril de Pelotas. Também nessas atividades os cativos, com suas redes e cadeirinhas, já eram um anacronismo do passado.

205

Pouca luz Era também deficiente o serviço de iluminação das aglomerações urbanas sulinas. Apenas em 1832 a Corte permitiu a iluminação de Porto Alegre. Poucos anos mais tarde, as ruas centrais da capital receberiam lampiões “presos por ferragens à fachada das casas” e alimentados com azeite de baleia. Colocados nas esquinas, os pontos de iluminação eram acendidos e apagados, diariamente, apenas nas noites sem luar. Nas décadas seguintes, aumentou-se o número de pontos de iluminação e foram experimentados lampiões alimentados com “gás hidrogênio líquido” e “óleo kerosene”. Apenas em 1874 passou a funcionar um gasômetro no centro da cidade – Companhia São Pedro Brazil Gaz Limited. Os quinhentos combustores que queimavam o gás hidrogênio carbonado não eram alimentados por dutos condutores. A periferia da cidade era iluminada – quando o era – por lampiões a querosene. Pelotas recebeu seus 320 primeiros lampiões em 1846, abastecidos a óleo de baleia. Em 1848, os lampiões das ruas centrais passaram a ser alimentados com azeite. Os pontos de iluminação eram poucos e de baixa capacidade. Em 1875, a cidade recebeu 420 combustores de gás hidrogênio carbonato, voltando, em 1876, à alimentação tradicional e deficiente de querosene. A instalação de serviço de esgoto cloacal subterrâneo em Porto Alegre foi tardia, iniciando-se sua construção em 1907. Apenas em 1887 a Câmara Municipal de Pelotas promoveu concorrência pública para projeto de esgotos. Os trabalhos teriam iniciado nos últimos anos do século 19. Em 1873, a Companhia Carris de Ferro Porto-Alegrense e a Cia. Ferro Carril de Pelotas iniciavam o transporte de passageiros em coletivos, sobre trilhos, puxados a burros. O novo transporte coletivo punha, definitivamente, fim ao tempo em que cativos transportavam passageiros em redes e cadeirinhas. As municipalidades procuraram apoiar iniciativas que melhorassem o abastecimento urbano de alimentos. As Câmaras Municipais promoveram o desenvolvimento agrícola, através de núcleos agrícolas nos terrenos municipais. Imigrantes estabeleceram-se em lotes suburbanos, onde organizaram chácaras especializadas na produção de gêneros de subsistência – vinho, leite, aves, etc. Outra transformação social e econômica essencial dos anos 1870 foi o significativo ingresso na província de imigrantes, estabelecidos na Encosta Superior do Planalto, em regiões imprestáveis para o latifúndio, através da distribuição de parcelas de terra, financiadas para imigrantes europeus, sobretudo. A colonização das terras superiores da encosta da serra dava continuidade à imigração alemã. A entrega de terras a camponeses europeus constituiu a mais imponente reforma da estrutura fundiária da terra conhecida no Brasil. Entretanto, por lei, o cidadão brasileiro pobre não podia receber terras nas mesmas condições que os imigrantes, já que seu destino era trabalhar como mão de obra barata para os proprietários dos latifúndios.

206

Senhores do Sul Apesar das importantes transformações, os fazendeiros e charqueadores da parte sul da província continuavam a dominar a sociedade sulina. Em 1871 votava-se a chamada Lei do Ventre Livre, que, nos fatos, pôs, por quase dez anos, fim às discussões sobre a questão servil, sem melhorar as condições de existência dos trabalhadores escravizados. Os filhos das cativas nascidos após a lei seriam livres, mas teriam de trabalhar, sem remuneração, sendo tratados como cativos, até os 21 anos. No melhor dos casos, portanto, até 1892. Em 1871, o Rio Grande encontrava-se entre as principais províncias escravistas do Brasil, e os cativos desempenhavam ainda importante papel essencial nas charqueadas e importantes funções nas estâncias. Esse fato explica por que a maioria dos deputados imperiais sul-rio-grandenses votou contra a lei, expressando a defesa dos interesses charqueadores e pastoril-escravistas. Em 1872, os liberais, representantes dos grandes criadores, venceram estrondosamente as eleições provinciais, mantendo a hegemonia política até a República, sob o comando do caudilho Gaspar Silveira Martins. Nos anos 1878-85 e, brevemente, em 1889, a província foi governada por presidentes liberais e, à exceção desses anos, por conservadores. Como vimos, era o governo central que nomeava os presidentes provinciais. Silveira Martins apoiava a política dos grandes proprietários do Centro-Sul de manutenção da escravidão e se notabilizou durante os debates na questão por ter proclamado que “amava mais sua pátria do que o negro”, ou seja, para ele, como para seus representados, sua pátria era sua propriedade, que, a bem da verdade, em boa parte, ficava fora do Brasil, no norte do Uruguai. Em consonância com os liberais do Brasil, o Partido Liberal exigia a separação da Igreja do Estado, o voto para os estrangeiros e outras medidas que interessavam igualmente aos imigrantes alemães, cortejados tradicionalmente por Silveira Martins. Por longos anos, o ativismo liberal impediu a formação de um Partido Republicano sulino forte. Apenas em 1882 fundou-se o Partido Republicano Riograndense. No Rio Grande do Sul, os liberais representaram, até a República, os setores pastoris então hegemônicos. Ao contrário, o movimento republicano terminou expressando as facções sociais proprietárias ascendentes, sobretudo da Depressão Central, da Serra e do Planalto, sem espaço nos partidos Liberal e Conservador. Quando da República, a metade norte já dominava, econômica e demograficamente, o Rio Grande do Sul. Em 1874, um grupo messiânico de agricultores pobres de origem alemã – os muckers – foi duramente reprimido pelas forças militares no interior da colônia. O historiador rio-grandense René Gertz lembra que, apesar “de 36% deles terem nascido no Brasil, apenas 2% falavam alemão e português, os demais 98% falavam somente alemão: 57,3% eram totalmente analfabetos; 85% eram evangélicos”.

207

15 A imigração colonial-camponesa italiana Em 1808, a chegada da família real ao Rio de Janeiro marcou o início da vinda de levas de imigrantes europeus não portugueses ao Brasil. Alemães, austríacos, suíços, etc. partiram para o Novo Mundo atraídos, sobretudo, pela possibilidade da posse de terras. Essa imigração não se destinava a substituir a mão de obra escrava. Com a imigração de famílias camponesas a administração real procurava formar população de pequenos proprietários agrícolas que abastecesse as capitais provinciais de gêneros alimentícios, fornecesse filhos aos exércitos reais, constituísse contraponto à população servil, ocupasse territórios estratégicos. Nessa época, quase 50% da população do Brasil era formada por cativos e libertos. Após a Independência, dom Pedro apoiou a política imigratória durante seus nove anos de reinado. Com o fim das Regências, em 1840, o incentivo migratório foi retomado pelos governos do Segundo Reinado. Grandes levas de migrantes de língua alemã e, sobretudo, italianos estabeleceram-se em diversas regiões do Brasil, em terras incultas e impróprias à produção latifundiária e escravista. A partir de 1875, o Rio Grande do Sul recebeu sobretudo imigrantes chegados do norte da península Itálica. Desde 1861, o processo de unificação italiana e a incorporação da península à produção e ao mercado capitalistas pesaram sobre as condições de existência das populações rurais italianas. O artesanato rural foi golpeado pela expansão de uma produção industrial incapaz de absorver suficientemente os braços expulsos do campo. Os pequenos arrendatários do norte italiano sofriam sob o jugo dos altos aluguéis dos minifúndios, dos pesados impostos, dos rústicos métodos agrícolas, da baixa fertilidade da terra. O serviço militar despótico afastava por anos os jovens das aldeias. Populações camponesas do norte da Itália partiam comumente para trabalhar por alguns meses nos Estados vizinhos. O abandono da terra natal constituiu saída para a crise vivida por multidões de camponeses. Partiu-se para a América para fugir da fome, do trabalho fatigante, da desnutrição, do salário irrisório, do alto aluguel da terra, do serviço militar. A emigração era forma de revolta surda e silenciosa contra os donos da terra. Ela prometia um futuro risonho, no qual todos seriam signori. Os emigrantes que abandonavam sua aldeia aumentavam a oferta de trabalho para os que ficavam. Os bem-sucedidos ascenderiam à propriedade da terra no Novo Mundo. As rendas italianas engrossariam com as remessas monetárias. Como a Itália não contava com colônias, esperava-se que os imigrantes construíssem mer-

208

cados cativos para a indústria itálica no exterior. No Rio Grande do Sul e no Brasil, a esperança realizou-se apenas muito parcialmente. A emigração reforçava na Itália estruturas sociais arcaicas, pois o latifúndio e o autoritarismo social permaneciam intocados. Transportando os que partiam, empresas de navegação e de imigração enriqueciam-se. Após 1850, vendendo terras devolutas, as nações hóspedes povoavam-se com uma população camponesa livre. Em 1873, abateu-se sobre a Europa a primeira grande crise cíclica do capitalismo mundial. Devido a ela, os Estados Unidos, a Argentina e o Uruguai dificultaram a entrada de imigrantes. Por esses anos, o governo imperial delimitou 32 léguas quadradas de terras na Encosta Superior do Planalto, no nordeste rio-grandense, para serem loteadas e vendidas a colonos imigrantes. A partir de 1870, foram criadas as primeiras colônias imperiais na região. Cinco anos mais tarde, imigrantes nortistas começariam a se estabelecer na Serra em grande número.

Adeus à Itália De 1875 a 1914 o Rio Grande do Sul recebeu oitenta mil imigrantes, expulsos sobretudo da Lombardia, do Vêneto e do Tirol-Alto Ádige pela miséria e atraídos ao Novo Mundo pelo sonho da terra. Uma importante propaganda governamental brasileira sobre as vantagens do estabelecimento no Sul incentivava o fluxo migratório. Entre 1869 e 1962, 24 milhões de peninsulares partiram da Itália para diferentes regiões do mundo. No Mediterrâneo Ocidental, Gênova foi o principal porto de embarque italiano para o Rio Grande do Sul. Em geral, os navios que transportavam os expatriados eram modernos e seguros. Porém, a travessia era feita em terceira classe, em navios sobrecarregados e em condições higiênicas precárias. Tratava-se de viagem difícil, de aproximadamente um mês. São abusivas as analogias feitas entre a travessia dos emigrantes e a dos trabalhadores escravizados. Também não procedem as afirmações sobre enorme mortandade de passageiros nessas travessias. A taxa de mortalidade quando da viagem atlântica para as Américas era baixa, sobretudo entre velhos e crianças, especialmente as apenas nascidas. Imigrantes registraram comumente a qualidade e a quantidade da comida servida em relação à conhecida na Itália. A família imigrante que desembarcou no Rio de Janeiro era pequena, pois possuía de dois a três filhos, em média. Sem terra e sem trabalho, as classes subalternizadas italianas reprimiam a natalidade, sobretudo retardando os casamentos. O imigrante sulino tinha, em média, de 35 a 45 anos; a mulher, cinco menos. Eram numericamente poucos os recém-chegados desacompanhados ou solteiros. Do Rio de Janeiro, após a quarentena na Casa dos Imigrantes, na ilha das Flores, viajava-se para Porto Alegre, com ou

209

sem baldeação, em uma travessia de dez ou mais dias. Oito mil quilômetros quadrados da semidesabitada Encosta Superior do nordeste do Rio Grande do Sul, imprestáveis à produção pastoril, foram parcelados e destinados à colonização das três primeiras colônias imperiais sulinas – Caxias, Conde D’Eu (Garibaldi), Dona Isabel (Bento Gonçalves). Em 1877, uma quarta colônia, Silveira Martins, foi organizada em região florestal, em terras mais baixas, próximas a Santa Maria, no centro do Rio Grande. Mais tarde, quando escassearam e se esgotaram as terras das Colônias velhas alemãs e italianas, colônias novas foram abertas ao norte do rio das Antas, no Planalto Médio, no alto Uruguai e nas Missões, sobretudo quando estradas de ferro permitiram escoar a produção de regiões não servidas por vias fluviais. Com a ocupação das terras mais ao norte, o preço das colônias disparou. Em História agrária do planalto gaúcho, Paulo Zarth aponta variação de 1.000% do valor médio das terras de campo nativo no Planalto entre 1851 e o fim do século. As terras destinadas à colonização possuíam clima, flora, fauna e solos algo similares aos das regiões nativas de alguns dos imigrantes. Para outros, chegados da planície do norte italiano, constituíam paisagem desconhecida. Com duas estações nitidamente definidas, o clima subtropical do Rio Grande do Sul na Região Colonial sofre a influência das altitudes do Planalto – seiscentos a novecentos metros. A temperatura média na Encosta Superior do Planalto é de 14-16 oC. No verão, sobe além dos 30 oC; no inverno, chega a graus negativos nas zonas mais elevadas. O inverno é longo e úmido. Não raro, neva rapidamente. A precipitação pluviométrica varia em torno dos 1.700 milímetros. Nas regiões coloniais da encosta da Serra, dominavam as terras cinzentas, medianamente férteis, que, associadas ao clima quase temperado, eram propícias à videira, ao trigo, ao pinheiro e a diversas árvores frutíferas. Devido à altura, a fauna e a flora empobreciam-se em relação às da Depressão Central e da Campanha. A partir dos 300 m dominavam os pinhais – florestas de dois patamares, com pinheiros no andar superior e árvores e arbustos diversos no inferior.

Triste fim As terras destinadas à imigração não se adequavam ao pastoreio. Ao contrário, a região constituía espécie de barreira natural entre o Planalto, ocupado por fazendas pastoris, e a Depressão Central, local de importante concentração demográfica. A Serra era habitada por comunidades de caçadores, coletores, pescadores e agricultores incipientes, de língua jê. As comunidades nativas da região foram aniquiladas pela expansão da colonização alemã no sopé da Serra, dos rebanhos pastoris no Planalto e pela

210

ocupação italiana da Encosta Superior. Comunidades caingangues do curso superior do rio Caí  os caáguas – atacaram desesperadamente os primeiros colonos alemães que penetravam seus territórios históricos, sendo violentamente combatidas. Como assinalado, a história da destruição dos nativos não foi escrita e pouco sabemos sobre os bugreiros – brasileiros e imigrantes assalariados para combater e eliminar os últimos habitantes nativos dessa região. Em geral, a historiografia rio-grandense tradicional e o romance histórico regional registram apenas os ataques sofridos pelos colonos, apresentando as populações nativas como selvagens. O primeiro confronto grave entre imigrantes e habitantes da Serra ocorreu em 26 de fevereiro de 1829, com a morte de três colonos alemães. O último teria ocorrido em 1851, na Colônia de Taquara do Mundo Novo, com a morte de colono e o sequestro de sua mulher, filha e menores, recuperados por policiais e vaqueanos, que massacraram os nativos. O Planalto era acessível através dos cortes, nos contrafortes da Serra, criados pelos vales dos afluentes setentrionais do Jacuí. O vale do Caí era o principal caminho entre a Encosta Superior e a Depressão Central. Por ali passava o caminho que ligava Porto Alegre aos Campos de Cima da Serra. Os imigrantes que chegavam à capital eram alojados em um prédio especialmente destinado a eles ou dormiam nas ruas e praças próximas. Os que se dirigiam à Serra partiam da capital em pequenas embarcações, que navegavam pelo rio Caí por sete e mais horas. Os destinados a Silveira Martins faziam boa parte da viagem por barco e em carreta. Mais tarde, parte do trajeto seria feita por trem. A viagem até as colônias durava uns três dias. Era feita a pé ou no lombo de mulas, através de picadas e difíceis caminhos estreitos. Logo os caminhos foram transformados em estradas carroçáveis, ainda que precárias. Finalmente, os recém-chegados eram alojados no barracão dos imigrantes, ou enviados aos lotes coloniais, se já demarcados. A lei imperial de janeiro de 1854 ordenara a demarcação dos lotes coloniais. As medidas básicas das colônias eram a légua, o travessão e o lote. A légua era um quadrilátero de 5.500 m de lado, cortado no sentido longitudinal por caminhos estreitos e irregulares, de uns 6 a 13 km, abertos na mata – os travessões, linhas ou picadas. Em geral, as léguas possuíam 132 lotes. Os imigrantes não realizaram simples transposição da cultura italiana para o Sul, mas recriaram uma civilização diferente das conhecidas na terra de partida e na terra de chegada. No norte da Itália, os camponeses viviam em geral em aldeias – paesi. Partiam de madrugada para os campos, de onde voltavam ao entardecer. A vida aldeã ordenava importantes aspectos da existência camponesa. Devido ao alto valor da terra, os espaços habitacional e produtivo concentravam-se. As construções eram sobretudo de pedra.

211

No Rio Grande do Sul, os imigrantes foram distribuídos em lotes individuais, que lhes garantiam abundância relativa de terras. Perderam, para sempre, a vida no paese. Para diminuir o isolamento relativo, a residência colonial era erguida junto à linha, à beira do caminho, em local ensolarado. Uns 300 m separavam as moradias de dois lotes vizinhos. Os colonos-camponeses sentiam-se relativamente isolados em relação à Itália; no que dizia respeito à zona pastoril rio-grandense, viviam em regiões literalmente urbanizadas. As moradias eram construídas com tábuas rachadas e serradas de pinheiros e, mais raramente, com pedras e tijolos. As coberturas eram de tabuinhas de pinheiro – scandole – inicialmente e, a seguir, de chapas de zinco e telhas. Aproveitava-se o declive do terreno para o porão e a cantina. A casa, com uma porta e duas janelas dianteiras, possuía ampla sala de entrada (com funções sociais) e dormitórios. A cozinha era erguida nos fundos, em uma construção independente, a alguns metros, para prevenir a propagação da fumaça e eventuais incêndios, já que o fogo era mantido em rústico fogão de chão, sob as cinzas, enquanto se trabalhava na roça. Uma cobertura em madeira podia unir a cozinha à casa de dormir.

Salames e toucinhos Os assoalhos e os forros eram de tábuas, trabalhadas com cuidado para prevenir as frestas, já que os sótãos serviam para o armazenamento de cereais, e as cantinas, para o depósito de queijos, salames, toucinhos, carnes defumadas, etc. As aberturas eram fechadas com “venezianas” e portas cegas, de dobradiças de couro cru. O lote colonial possuía, igualmente, alambique, apiário, cantina, chiqueiro, estrebaria, forno, galinheiro, latrina, paiol, pombal, etc. Devido à abundância relativa de terras, essas instalações erguiam-se comumente de forma isolada. A cozinha, principal centro de reunião familiar, sobretudo no inverno, era a peça menos valorizada no relativo aos materiais e aos cuidados construtivos. O fogão – fogolare, facoler ou focolaro – era rústico. No chão, sob um quadrilátero contendo areia, acendia-se o fogo com madeira que produzisse pouca fumaça, já que ela escapava pela cumeeira, devido à inexistência de chaminés, difíceis de serem construídas em moradias de madeira. Uma corrente reforçada suspendia as panelas à altura necessária. Mais tarde, fogões seguros permitiriam que a cozinha fosse incorporada ao corpo central da residência. Feitas na cozinha ou no campo, as refeições eram relativamente abundantes. Às nove horas servia-se o merendin – polenta grelhada com salame ou com queijo, uma fritada de ovos, com cebola ou salame, café, vinho, etc.

212

Ao meio-dia a polenta acompanhava sopa de feijão reforçada com massas. À tarde, às 16 horas, servia-se eventualmente uma refeição mais simples – frutas, pão, polenta, salame, etc. Durante a janta, comentavam-se os trabalhos feitos e a fazer. Ela era preparada com maior atenção. A polenta era acompanhada com carne, molhos, salame ou queijos fritos, salada – radici, etc. Em relação ao norte da Itália, o imigrante conheceu regime alimentar superior quanto à variedade e à quantidade dos alimentos. Houve, porém, perda da tradição gastronômica peninsular, ocupando a carne de gado – churrasco – papel central na mesa, sobretudo quando dos batizados, casamentos, celebrações, etc. Habitualmente, 32 lotes ou colônias eram demarcados à direita e à esquerda dos travessões. Os lotes, em forma de um retângulo, possuíam 200 a 250 m de frente e 1.000 a 1.200 m de fundo. Eram cobertos parcial ou totalmente pelas matas. As colônias não eram uniformes quanto à fertilidade, à água e ao acesso aos mercados. Rios, córregos e fontes valorizavam sobremaneira os lotes coloniais, sendo também desiguais quanto ao tamanho. Apenas chegados, os imigrantes dedicavam-se à abertura de clareiras nas matas; ao levantamento de rústicos abrigos de pau-a-pique, cobertos de galhos; ao preparo das primeiras roças de milho, feijão, etc. A ocupação dos lotes era necessária para assegurar os direitos contratuais sobre eles. Eventualmente, a venda da madeira e o trabalho assalariado durante 15 dias por mês na abertura de estradas e caminhos financiavam os colonos até a primeira colheita. O estabelecimento nos lotes era um momento difícil. Era necessário adaptar-se à região e lançar as bases da economia familiar em uma terra agreste e semidesconhecida. Trabalhava-se muito. O pinhão, a caça e a coleta ajudavam nos primeiros tempos. Sobretudo os pioneiros conheceram condições muito duras de instalação. Os que se seguiram contaram com o apoio dos já chegados e com uma melhor infraestrutura – caminhos, estradas, delimitação dos lotes, sedes coloniais, etc. A tradição oral registrou sobretudo as duras condições dos pioneiros.

Passagem financiada As parcelas agrícolas eram vendidas por preços acessíveis. Os lotes e os eventuais subsídios governamentais – transporte no Rio Grande do Sul, estadia, ferramentas, sementes, etc. – deviam ser pagos em cinco a dez anos. As dívidas podiam ser refinanciadas. O título provisório era entregue quando 20% da dívida fosse paga; o definitivo, quando exaurida. Ao verem as inegáveis vantagens de emigrar para o Brasil, colonos italianos afluíram para a região em grande número. Inicialmente, os brasileiros pobres não

213

gozaram das facilidades oferecidas aos imigrantes na compra de lotes. Aos homens livres e libertos pobres nascidos no Brasil destinavam-se os trabalhos duros e mal-remunerados nos campos e cidades. A colonização de imigrantes europeus não portugueses foi a única grande democratização agrária implementada no Sul. O parcelamento da terra da Encosta Superior da Serra originou dinâmica economia de pequenas unidades agrícolas e artesanais, voltadas à subsistência e ao pequeno comércio. O lote era a unidade de base da economia familiar colonial. Praticava-se divisão etária, sexual e familiar das tarefas. Os homens responsabilizavamse pelos trabalhos ligados à agricultura mercantil e ao trato dos animais de maior porte. As mulheres ocupavam-se das tarefas caseiras, hortas e cuidados da pequena criação. Elas intervinham ativamente ao lado dos homens em praticamente todos os trabalhos agrícolas. Segundo suas forças, as crianças labutavam desde os seis anos. Havia tarefas artesanais masculinas e femininas e um verdadeiro desequilíbrio na divisão dos trabalhos em detrimento das mulheres e dos filhos. O relacionamento entre pais e filhos era mediado pelas duras exigências da produção. O castigo físico duro era habitual. A qualidade dos solos, a abundância relativa das terras e a escassez de mão de obra determinavam que a agricultura colonial se assemelhasse em algo à coivara indígena. Os métodos de cultivo eram rústicos. Ao se separar da complexa divisão do trabalho em que estava inserida na Itália, a produção agrícola e artesanal colonial viveu verdadeira involução tecnológica em relação àquele país. Sobretudo nos primeiros tempos, os colonos reduziram o número de seus instrumentos de trabalho, que se tornaram mais rústicos. Muitos gêneros produzidos na Itália foram abandonados. Na produção colonial, os instrumentos básicos foram o arado pequeno e a enxada. Uma carroça, uma junta de boi, uma boa mula ou cavalo, uma vaca leiteira eram também imprescindíveis à economia colonial. A área das parcelas coloniais era ocupada pelo potreiro – cercado; pelo parreiral – localizado nas encostas, próximo à residência; pelas terras agricultáveis – lavradas ou em capoeira. Plantava-se milho durante seis a dez anos. Após, a terra repousava durante dois ou três anos. Alternava-se o plantio do milho com culturas de inverno – centeio, cevada, trigo. Plantavam-se arroz, aveia, batata, cevada, feijão, milho, trigo, uva, etc. Criavamse galinhas, porcos e muitos filhos, que aumentavam a força de trabalho familiar. A abundância relativa de terras permitiu que a família camponesa interrompesse o controle da natalidade praticado na Itália. A abundância relativa de terra ensejava que os filhos fossem sobretudo braços para trabalhar, não bocas para comer. Em geral, os jovens casavam-se muito cedo e,

214

não excepcionalmente, as noivas chegavam ao altar grávidas. Os roliços primogênitos prematuros eram denominados jocosamente pela comunidade de setemin, ou seja, sete meses! A gravidez da noiva podia ser estratégia para acelerar um casamento ou a prova, para o noivo, da fertilidade de futura esposa. Sob a pressão da comunidade, dos chefes de família e o controle despótico da Igreja, a colona-camponesa transformou-se em uma verdadeira parideira, suportando duramente o esforço fisiológico, psicológico e físico de gestar, parir, elevar e criar grande número de filhos. Em 1920, em Caxias, a família colonial possuía, em média, de sete a oito membros. Algumas décadas mais tarde, quando escasseou terra e a agricultura se mecanizou, a sociedade colonial restringiu drasticamente a natalidade. Foi um fenômeno que registrou uma autonomia da sociedade colonial em relação ao clero e à Igreja em contradição à submissão piedosa proposta pela historiografia étnica e clerical da colonização, como demonstraram investigações como as realizadas pelo historiador Ismael Vanini em O sexo, o vinho e o diabo: demografia e sexualidade na colonização italiana no RS (1906-1970). Uma pequena produção de banha, graspa, manteiga, presunto, salame, toucinho, vinho, etc. abastecia a família e os centros urbanos próximos. Mudas trazidas da Itália ou obtidas em São Sebastião do Caí permitiram que parreirais fossem plantados. Muito logo os imigrantes contavam com um vinho de discutível qualidade para consumo próprio. As pipas eram armazenadas nos porões. O vinho mantinha-se por poucos meses devido ao desconhecimento das técnicas de conservação. Logo cresceu a qualidade dos varietais e, relativamente, dos vinhos, em razão de uma crescente e rendosa produção para o comércio. O colono-camponês jamais conseguiu produzir vinho de qualidade, melhorando relativamente a produção vinícola sulina apenas tardiamente, quando de sua industrialização. O alto preço do transporte das mercadorias das regiões coloniais até Porto Alegre e aos centros consumidores determinou que mercadorias como o vinho e a banha – de alto valor agregado – desempenhassem importante papel na economia colonial. Produtos como o milho eram dificilmente exportados. Árvores frutíferas eram plantadas em todo o lote colonial – bergamoteiras, caquizeiros, figueiras, laranjeiras, marmeleiros, pereiras, etc. Os frutos eram consumidos in natura ou transformados em geleias, compotas, etc., que garantiam sua conservação. Parte dessa produção era escoada para o mercado local.

215

Centros urbanos Os núcleos coloniais possuíam centros urbanos onde se localizavam a administração colonial, os serviços e artesanatos. As sedes e os outros núcleos coloniais mantinham contatos mais ou menos difíceis, em razão da precariedade dos caminhos e dos transportes, com as aglomerações urbanas. O transporte das mercadorias era feito com mulas bruaqueiras e por carroças puxadas a mulas, por picadas e estradas de trânsito difícil, sobretudo no inverno. Em 1910, Caxias, a principal cidade colonial, foi ligada à capital pela estrada de ferro, o que lhe garantiu um enorme impulso em seu desenvolvimento. Os núcleos urbanos eram erguidos no centro da colônia, se possível, em um terreno plano e elevado. Para tal, abria-se clareira na mata, quando necessário. Em Caxias aproveitou-se clareira aberta pela população nativa, daí o nome inicial da localidade – Campo dos Bugres. A área urbana era dividida, em retícula, por avenidas e travessas perpendiculares. Os quarteirões, de cem metros, eram ocupados pelas praças e logradouros públicos ou divididos em lotes urbanos (20 x 50 ou 40 x 60 m). Deve-se ao mesmo padrão de fundação semelhante paisagem urbana das cidades da região. As autoridades administrativas e religiosas, os artífices, os comerciantes, os raros lusófonos, etc. viviam nos centros urbanos. Não raro, a fundação da sede colonial foi posterior à fundação da colônia. As casas urbanas eram construídas com madeira, em geral de pinheiros, com um e dois andares. Se possível, os fundamentos e os porões eram levantados em pedra, aproveitando-se o desnível do terreno. O porão servia como cantina. No sótão dormiam os filhos homens e se armazenavam os cereais. Uma escada estreita e muito íngreme permitia a circulação entre o andar térreo e o sobrado. A obrigação de quitar a dívida colonial impedia qualquer tendência à economia de subsistência e ao acaboclamento. Os colonos deviam produzir excedentes monetarizáveis para pagar a dívida e não perder os lotes. A seguir, eram obrigados a pagar os impostos coloniais. O valor e o sucesso das colônias eram determinados pela fertilidade da terra e pela facilidade de escoamento da produção. Os últimos lotes coloniais dos travessões deram origem à expressão “o fim da picada”. No Rio Grande do Sul os colonos viveram condições de existência superiores às conhecidas no norte da Itália. Porém, não houve enriquecimento dos pequenos agricultores, que trabalhavam sobretudo para se manter. Com o excedente da produção, compravam dos comerciantes – primeiro, alemães e brasileiros; logo, italianos – açúcar, café, ferramentas, insumos, roupas, sal, etc. O comerciante vendia o que o colono não produzia, a alto preço, e

216

comprava, a preço baixo, para vender o excedente colonial nos mercados próximos e distantes. O pequeno comerciante das linhas articulava-se com o comércio de maior porte dos centros urbanos regionais. Os gêneros coloniais eram adquiridos e encaminhados pelos comerciantes dos travessões em mulas bruaqueiras ou em carretas aos centros urbanos regionais, de onde partiam para os portos fluviais do rio Caí. Dali, as mercadorias chegavam a Porto Alegre para serem consumidas ou reexportadas. As mais potentes carretas transportavam algo mais de mil e quinhentos quilogramas. No início, a exportação da produção colonial era intermediada pelo comércio alemão, estrategicamente localizado na encosta inferior do Planalto.

Senhores da riqueza As grandes casas comerciais realizaram a acumulação dos excedentes gerados pela produção colonial. Os agricultores entregavam suas reservas monetárias aos comerciantes das linhas, muitas vezes por juros insignificantes. Assim, os comerciantes financiavam seus negócios com a poupança colonial. A acumulação comercial dos valores produzidos pela economia colonial-camponesa financiou a industrialização da região, que se apoiou, igualmente, na dura exploração da mão de obra colonial-camponesa excedente. O processo de acumulação da riqueza colonial pelo comerciante foi registrado no magistral romance histórico O quatrilho, do ficcionista José Clemente Pozenato. Nas linhas e núcleos urbanos desenvolveu-se ativa produção artesanal. Praticamente cada travessão e núcleo colonial possuíam seus ferreiros, funileiros, oleiros, sapateiros, seleiros, etc. Moinhos e serrarias eram levantados estrategicamente para beneficiar o grão e a madeira locais. Pequenas empresas rurais e urbanas de maior porte beneficiavam a produção rural, fabricavam ferramentas, etc. Os pais dotavam os filhos com terras e as filhas, com um porco, uma mula, uma vaca leiteira, etc. Portanto, o trabalho avançado pelas filhas, desde criança, não era retribuído, sequer parcialmente, quando se casavam. Se houvesse recursos, novas propriedades eram abertas na região ou fora delas. Logo a economia colonial atravessou o rio da Antas em direção ao norte. Inexistindo recursos para adquirir terras, os filhos procuravam emprego, permanente ou sazonal, nos núcleos urbanos. Essa mão de obra, com fortes vínculos rurais, foi handicap positivo para a posterior industrialização da região, já que era remunerada abaixo do mínimo necessário para a subsistência, pois vivia e se alimentava nos lotes familiares.

217

Tem-se assinalado o abandono em que viviam os imigrantes por parte das autoridades brasileiras e consulares. Tais afirmativas devem ser relativizadas. As administrações brasileiras enquadravam pertinentemente as colônias até que fossem emancipadas, tornando-se municípios autônomos, ou frações de municípios já existentes. De forma geral, os colonos preferiam retardar a emancipação de suas colônias. Desde 1888, as autoridades governamentais italianas tentaram monitorar os emigrantes no exterior e utilizá-los segundo as necessidades do capitalismo peninsular. Para tanto, tendeu-se a defender o sentimento de italianidade e a dificultar a naturalização legal e de fato dos imigrantes. Essa política não alcançou maiores resultados. Os consulares italianos de Porto Alegre e outras autoridades visitavam frequentemente as colônias, produzindo relatórios que constituem importantes fontes históricas para o estudo da região. Porém, raramente se empenhavam na defesa das reivindicações coloniais diante das autoridades brasileiras. Na Itália e no Brasil, os camponeses eram desprezados pelas autoridades peninsulares. A rusticidade inicial da sociedade colonial tem sido apresentada como resultado de abandono que jamais existiu. Em 1875, quando da chegada dos primeiros imigrantes italianos, o Brasil era nação semirrural atrasada e escravista. Os principais meios de comunicação eram os rios e os lagos. As escolas eram raras. As classes dominantes brasileiras governavam a nação como dirigiam suas fazendas. O imigrante partira de uma Itália rural que recém se unificara. No Brasil, seu universo reduzia-se, sobretudo, à sua colônia, à sua linha, ao seu núcleo colonial. Por um lado, a produção camponesa, em parte voltada para o autoabastecimento, determinava tendencialmente o isolamento relativo dessa população; por outro, a esfera mercantil da produção colonial estabelecia e ordenava novas redes de comunicação e socialização. A original estruturação e inserção da economia colonial na sociedade sulina ensejaram realidade cultural e social singular, nova em relação à terra de partida e à terra de acolhida, como assinalado.

Geração analfabeta Mais de 50% dos imigrantes chegados ao Sul não sabiam ler. Jamais existiram escolas secundárias italianas na região, à exceção dos seminários. Apenas algumas dezenas de escolas primárias funcionaram precariamente. Praticamente sem subsídios, não prosperaram, já que deviam cobrar pelo ensino. Os colonos necessitavam dos braços dos filhos e poucos os enviavam às raras escolas italianas ou nacionais. Divididos entre os dialetos que falavam, o italiano e o português, boa parte da primeira geração ítalo-rio-grandense cresceu analfabeta. A realidade linguística do imigrante, a organização eco-

218

nômica colonial, as redes de socialização criadas pelo universo colonial, entre outros fenômenos, determinaram o universo linguístico da região. Os imigrantes conheciam pouco o italiano e falavam dialetos regionais. Os colonos não foram distribuídos nos lotes segundo suas proveniências. Colonos vizinhos falavam dialetos diferentes. Nas áreas rurais e nas pequenas cidades, os dialetos funcionaram por muito tempo como línguas veiculares. Com o passar dos anos, sob a dominância de um mundo relativamente homogêneo, submetidos às mesmas influências, no contexto de novas redes societárias locais e municipais, os dialetos se mesclaram e sofreram inevitáveis contribuições do português e dos falares dos colonos alemães, poloneses, suíços vizinhos. Na Zona Colonial Italiana impuseram-se diversas variantes de línguas veiculares – koiné –, misturas variadas de dialetos italianos com o português, onde predominavam os falares vênetos. No século 20, com o passar dos anos, o português avançou e continua avançando inexoravelmente como língua veicular da região. Esse fenômeno se deveu a fatores mais profundos do que a política de nacionalização autoritária implementada pelo Estado Novo, sobretudo de 1942 a1945, durante a Segunda Guerra. O abandono da Itália por multidões de camponeses teve profundo sentido político e ideológico. Os emigrantes partiam da Itália para se verem livres de seus patrões. Muitas vezes, essa decisão assumia um sentido quase revolucionário, expresso no grito angustiado e dolorido da massa camponesa explorada de “Viva l’America, morte ai padroni!”. (“Viva a América, morte aos patrões”). Porém, na América o imigrante não perseguia o sonho de pôr fim ao patrão, mas, sim, de se transformar em patrão. Nem que fosse em pequenino patrão de si mesmo e, sobretudo, de sua família. Mulheres, filhos e crianças foram os grandes explorados internos da economia colonial-camponesa. Junto com sua família, o produtor colonial era explorado, externamente, sobretudo pelo capital comercial, que extraía grande parte de seu trabalho excedente, vendendo-lhe caro os gêneros que não produzia e comprando barato seus produtos. A economia colonial-camponesa exigia a submissão econômica e produtiva das esposas e dos filhos ao pai de família, pequeno patriarca colonial. Demandava, igualmente, um forte esforço da fertilidade feminina a fim de produzir braços para a exploração, como vimos. O catolicismo romano, patriarcal, natalista e autoritário, apoiava e interpretava essas necessidades religiosa, ideológica e simbolicamente. É a propriedade colonial-camponesa, mais do que uma origem italiana, que explica a forte religiosidade católica colonial, nos limites já assinalados. A Igreja manteve-se próxima do movimento migratório, acompanhado por centenas de sacerdotes europeus. As igrejas, escolas, seminários, capelas e jornais clericais eram as principais instituições culturais e políticas, sobretudo no mundo rural. Especialmente o clero italiano e Roma sonha-

219

vam construir na América uma comunidade de fé e trabalho, distante do vírus socialista e sindicalista que infectava as classes trabalhadoras ibéricas do campo e da cidade. Quando chegaram os primeiros sacerdotes italianos, eles se dirigiam aos fiéis sobretudo em dialeto e viam com antipatia o unitarismo italiano, em razão da ruptura do Papado com o Estado italiano após a conquista de Roma, em 1870. Essa pregação dificultava a manutenção da identidade italiana e a nacionalização da imigração. A unidade econômica de base do mundo colonial era o lote. O núcleo de socialização era a linha, com sua capela e venda, tradicionais locais de reunião. Simples e rústicas, as primeiras capelas foram construídas, em mutirão, por iniciativa dos moradores das linhas. Sobretudo as linhas mais extensas possuíam mais de uma capela. Não raro, o nome das capelas sobrepunha-se ao da linha. O local, o padroeiro, o material, a designação dos responsáveis pelas capelas – os fabriqueiros –, etc. eram motivos de disputas locais. A capela era o centro cultural, político e religioso da linha. Anexos à capela localizavam-se o cemitério e o salão de festas. Algumas poucas vezes a capela possuiu uma escola. Com o passar dos anos, em alguns casos, pequenas aglomerações nasceram em torno da capela e da venda. Nos primeiros tempos, em virtude da ausência de sacerdotes, os padres-leigos ocupavam-se do terço, dos batizados, das cerimônias fúnebres e, mais raramente, da celebração de um arremedo de missa dominical, etc. A comunidade colonial-camponesa italiana jamais conseguiu expressar suas necessidades econômicas, políticas, sociais e ideológicas de forma autônoma. Foi representada, inicialmente, pelo corpo consular e, a seguir, por longos anos, sobretudo pelo clero católico. Mais tarde, essa representação foi fortemente apropriada pela burguesia urbana de origem italiana, que, com fortes raízes em Caxias do Sul, construiu literalmente narrativa colonial heróica de eterno final feliz sobre a imigração, na qual enfatizou a excelência étnica e predisposição italiana ao trabalho, como proposto por Dilse Piccin Corteze em Ulisses va in America. História, historiografia e mitos da imigração italiana no RS (1875-1914). É essa narrativa funcional à inserção singular e diferenciada da burguesia de origem italiana no discurso sobre as raízes do Rio Grande do Sul e no bloco das classes dominantes riograndenses e brasileiras, após ter abandonado as veleidades fascistizantes e exclusivistas, fortes nos anos anteriores à guerra. Coerente com o conteúdo inventado, essa tradição execra e não incorpora a luta pela terra, desde os anos 1979, dos colonos-camponeses, inicialmente de origem italiana, que resultou na fundação do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST). A Festa da Uva, celebração urbana da produção industrial-manufatureira, constitui o ponto alto da celebração periódica dessa leitura apologética do mundo colonial-camponês há décadas em dissolução, em razão da forte e crescente penetração do capitalismo no campo.

220

III

A REPÚBLICA VELHA Consolidação e Crise da Autonomia Mercantil-Capitalista

16 A República no Rio Grande do Sul Os grandes criadores da fronteira promoveram o movimento republicano e separatista de 1835-45. Em 1852 e 1864, os interesses intervencionistas do Império e dos criadores rio-grandenses coincidiram, aproximando os antigos inimigos. Em fins do século 19, o Partido Liberal sulino monopolizava o cenário político regional, em nome dos interesses pastoris, com destaque para os da metade sul da província. De 1878 a 1885, o Império foi governado por ministérios liberais. Em 1878, em Porto Alegre, fundou-se o Clube Republicano Bento Gonçalves. A seguir, fez-se o mesmo em outras cidades do interior. Os primeiros líderes republicanos eram, sobretudo, membros das frágeis classes médias sulinas urbanas, como o professor e intelectual Apolinário Porto Alegre, que desenvolveu ativo proselitismo emancipacionista e republicano na imprensa e entre os alunos de seu colégio, o Instituto Brasileiro. A seguir, as principais lideranças antimonarquistas foram jovens bacharéis em direito, filhos de famílias ricas e remediadas, chegados sobretudo da escola de direito de São Paulo, o que modificou o conteúdo da pregação republicana em sentido autoritário. Os jovens republicanos sul-rio-grandenses aderiram ao positivismo comtiano, que se tornou a ideologia oficial do partido. Nos anos 1860, a doutrina comtiana atraiu estudantes filhos de famílias proprietárias, com sua proposta de modernização conservadora através de ditadura republicana científica. Augusto Comte (1798-1857) defendia que a sociedade, ao alcançar o estágio de desenvolvimento positivo, deveria ser governada pelas elites, segundo os princípios positivos que reconhecessem as “necessidades sociais”. A sociedade industrial seria alcançada através do progresso na ordem. O princípio de “conservar, melhorando” opunha-se à revolução e ao exercício democrático do poder. Em 1957, Arthur Ferreira Filho, um dos derradeiros intérpretes do positivismo castilhista na historiografia sul-rio-grandense, definia apologeticamente o sentido da filosofia francesa no Sul: “A característica do castilhismo foi a conciliação da autoridade com a liberdade, e das novas ideias sociais, florescentes na Europa industrializada, com o espírito conservador e idealista, de uma província pastoril.”

Primeiros passos Em 1880, os republicanos elegeram dois vereadores em Porto Alegre. Na época, os principais líderes republicanos eram Francisco Xavier da Cunha, Apolinário e Apeles Porto Alegre. Em 23 de fevereiro de 1882, na capital, uma convenção regional, com mais de cinquenta delegados, elegeu comissão organizadora do Partido Republicano Riograndense (PRR). A comissão foi formada pelo médico Ramiro Fortes de Barcellos, engenheiro Demétrio Ribeiro, relojoeiro Luís Leseigneur, comerciante José Pedro Alves e professor

223

Apolinário Porto Alegre. Este último, agitador antiescravista e adepto da democracia radical de Jean-Jacques Rousseau, opôs-se às visões elitistas do positivismo comtiano e renunciou à designação. A defecção de Apolinário Porto Alegre deveu-se também à negativa dos jovens republicanos de proporem a abolição da escravatura sem indenização. Seu afastamento registrou a transformação da composição social do movimento republicano sulino. Em 1885, Apolinário Porto Alegre fundou uma natimorta União Republicana. Entre outras iniciativas, a convenção republicana decidiu convocar um congresso para o ano seguinte, apresentar candidatos às eleições e fundar um jornal. Júlio de Castilhos, jovem advogado, filho de criador remediado do Planalto, com 21 anos, foi designado relator da comissão responsável pela imprensa. Também participou do encontro José Gomes Pinheiro Machado, filho de abastado fazendeiro das Missões. No início de 1880, jovens estudantes rio-grandenses da Faculdade de Direito de São Paulo – Alcides Lima, Barros Cassal, Borges de Medeiros, Júlio de Castilhos, Pinheiro Machado, etc. – fundaram o Clube 20 de Setembro para celebrar a data magna do republicanismo sulino. Sob encomenda da associação, em 1882, Alcides Lima publicou uma História popular do Rio Grande do Sul e Joaquim Francisco de Assis Brasil, uma História da República rio-grandense. No ano anterior, Assis Brasil publicara, aos 24 anos, A República federal, defendendo a República presidencial federalista. Entre outros aspectos, o trabalho de Alcides Lima destacava a estância como celula mater da democracia pastoril sulina e defendia a pretensa pouca mestiçagem da população sulina. Assis Brasil ressaltava, igualmente, a importância do meio e da raça portuguesa na formação rio-grandense. Os dois trabalhos propunham a autonomia econômica e política do Rio Grande do Sul, expressando o projeto autárquico republicano sulino, e enfatizavam as raízes e vocação pastoril da província. Nesse sentido, repetiam o abecedário liberalpastoril, do qual os novos republicanos se afastavam com a fundação do PRR.

Difícil início Em 1884, fundou-se o jornal A Federação, de grande importância para o ativismo republicano, e realizou-se o I Congresso do PRR. Nas eleições de novembro, os republicanos não elegeram um só deputado, registrando a debilidade do movimento no seio das classes proprietárias sulinas, em uma eleição censitária e aberta. Apenas em 1885, o jovem e rico fazendeiro Joaquim Francisco de Assis Brasil, de São Gabriel, na Campanha, com 28 anos, elegeu-se à Assembleia provincial, repetindo o feito em 1887. Ele era o primeiro deputado republicano eleito por partido republicano no Rio Grande do Sul após a derrota farroupilha. Demétrio Ribeiro e Júlio de Castilhos eram os mais extremados positivistas. Entre outras medidas, o Congresso de 1884 propusera, para o futuro,

224

a transformação das províncias brasileiras em estados federados e, para o presente imediato, a temporalidade do Senado, a ampliação do direito do voto, a liberdade de associação e de culto, a secularização dos cemitérios, o casamento civil indissolúvel obrigatório e o registro civil de nascimento e óbitos. Quanto à abolição da escravatura, a grande questão da época, os republicanos consideravam-na como “melindroso assunto” e propunham que fosse resolvida segundo as necessidades de cada “província”. No Sul, defendiam que se desse de forma “imediata e pronta”, sob a direção da Assembleia provincial. Inicialmente, o PRR apoiava o abolicionismo sem se comprometer com o fim imediato e universal da instituição e, sobretudo, sem se opor à indenização dos proprietários. O PRR propunha medidas modernizadoras, como a criação de imposto territorial, a proteção das indústrias, a repressão ao contrabando, a intervenção do Estado na economia em áreas de interesse geral, caso o capital privado não pudesse ou não quisesse fazê-lo. Esses pontos do programa do PRR incompatibilizavam-no fortemente com os latifundiários, que se opunham ao imposto fundiário, ganhavam com o contrabando na fronteira, com destaque para o ingresso do gado uruguaio, e abominavam as propostas industrialistas, que diziam afastar o Rio Grande do Sul de sua “vocação natural”, a produção primária, sobretudo pastoril. Em 1870-75, começou-se a cercar os campos, motivando, a seguir, o desemprego na produção pastoril. Segundo parece, grande número de cativos empregados como peões foi vendida do Sul para as fazendas cafeiculturas do Centro- Sul. Em 1884 iniciou-se no Rio Grande do Sul um amplo movimento de emancipação dos cativos, em geral condicionado à prestação de serviços gratuitos por até sete anos, o máximo permitido pela lei. Os escravistas que libertavam seus cativos sob condições deixavam de pagar os impostos que oneravam aquela propriedade, sem abrir mão do trabalho gratuito desses. Até 1888, Pelotas, com suas ricas charqueadas, permaneceu um dos principais centros escravistas do Brasil. O movimento emancipacionista era forte nas cidades com fronteira com o Uruguai e a Argentina, onde havia décadas fora abolida a escravidão. A escravidão disfarçada seguia, porém, nos departamentos setentrionais do Uruguai, em razão da vitória da intervenção militar imperial de 1864.

Revolução abolicionista Foi a abolição da escravatura, não a ação republicana, que pôs fim à Monarquia. Desde 1850, com o fim do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados, cativos de todo o Brasil eram vendidos aos cafeicultores. Rapidamente, importantes regiões do país desescravizaram-se, chegando ao fim o consenso das classes dominantes sobre a instituição. Como os cafeicultores mantinham a hegemonia política geral, o Império reservou-se a

225

sorte da questão servil, impedindo medidas abolicionistas provinciais, o que postergou a abolição até 1888. A conjunção do movimento abolicionista radicalizado com as massas escravizadas levou a que, desde inícios de 1887, os cativos, sobretudo das fazendas paulistas, abandonassem crescentemente as fazendas. Quando o movimento se mostrou irreversível, os cafeicultores paulistas aderiram ao abolicionismo e ao imigrantismo. Havia anos que os escravizadores aceitavam a abolição, desde que fossem indenizados. Em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea sancionou o fim de instituição escravista colonial em agonia terminal. No ano seguinte, a Monarquia dos Braganças, por 66 anos sustentáculo político-institucional da organização social escravista no Brasil, ruiu como edifício sem fundamentos. O fim do escravismo dissolvera o modo de produção sobre a qual se fundara e se assentara o centralismo monárquico. Superava-se a necessidade das classes dominantes centrais do Brasil de defesa do tráfico transatlântico de trabalhadores, da submissão da população escravizada, da manutenção da ordem negreira. A forte divisão entre trabalhadores escravizados e trabalhadores assalariados chegava ao fim e iniciava-se o processo de consolidação do mercado de trabalho livre. Ao extinguir o modo de produção escravista que dominara as formações sociais colonial e imperial, a revolução abolicionista constituiu a única revolução social vitoriosa até hoje no Brasil. As antigas tendências separatistas arrefeciam no contexto do desenvolvimento de incipientes laços unitários, apesar de ainda serem muito fortes as reivindicações federalistas, em razão da inexistência objetiva de estrutura econômica nacional. Em verdade, como veremos, a República poria fim aos laços políticos unitários, permitindo o fortalecimento da autonomia regional federalista. Novas formas de produção e novas classes sociais exigiam novas e mais complexas formas de dominação. Agora, as classes proprietárias hegemônicas no país reivindicavam, não mais se opunham, o federalismo. Assim, as regiões mais ricas – Rio de Janeiro, São Paulo, etc. – geririam os recursos regionais, sem se responsabilizar pela sorte das parcelas empobrecidas de um país que, apesar da república, não emergia como nação. A República serviu também como golpe preventivo contra o importante movimento nacional reformista ensejado pelo abolicionismo. Influenciado por esse movimento, em junho de 1889 o visconde de Ouro Preto formara ministério liberal-reformista. Entre as reformas que propunha – voto secreto e ampliação do colégio eleitoral, liberdade de culto e de ensino, casamento civil, maior autonomia provincial, etc. – destacava-se a aprovação de uma “lei de terras” que facilitasse a democratização da propriedade fundiária, “respeitando o direito de propriedade”, importante reivindicação do movimento abolicionista.

226

O reinado que não houve Na Fala do Trono de 1889 o imperador reivindicara a aprovação de lei que regularizasse “a propriedade territorial” e facilitasse “a aquisição e cultura das terras devolutas”. Na ocasião, sugeriu lei que concedesse ao governo “o direito de desapropriar, para utilidade pública, os terrenos marginais das estradas de ferro, que não são aproveitados pelos proprietários e podem servir para núcleos coloniais”. Essas propostas impulsionariam o imigrantismo e satisfariam, ainda que parcialmente, às exigências de abolicionistas como André Rebouças e José do Patrocínio, que reivindicavam a distribuição das terras cansadas da Baixada Fluminense aos ex-cativos. Após a Abolição, a família imperial procurava substituir as bases de sustentação que perdia entre os fazendeiros pelo apoio dos subalternizados, sobretudo dos ex-cativos, que viam o trono como o responsável pelo fim da escravidão. A reviravolta reformista do imperador tentava assentar novas bases sociais para o Terceiro Reinado, inviabilizado com a defecção do principal pilar do regime monárquico, os cafeicultores escravistas, metamorfoseados de proprietários de trabalhadores escravizados em exploradores de assalariados, não mais interessados no centralismo monárquico. Em 30 de agosto, a vitória esmagadora dos liberais, permitindo a imposição das reformas propostas, apressou a conspiração republicana, impulsionada fortemente pelos políticos conservadores, caracterizada pelo historiador estadunidense Robert Conrad como verdadeira “contrarrevolução”. Nos fatos, a desatenção às reivindicações federalistas e a referência à questão agrária, que desagradavam profundamente aos grandes proprietários, selaram a sorte do reformismo liberal e do prosseguimento do novo regime imperial, pois não havia, nesse então, bloco social popular capaz de sustentar proposta reformista por mínima que fosse. Um telegrama noticiando o golpe militar republicano chegou à redação de A Federação, em Porto Alegre, na tarde de 15 de novembro: “O povo, o Exército e a Armada vão instalar um Governo Provisório que consultará a Nação sobre a convocação de uma Constituinte. Erguem-se aclamações gerais à República. Quintino Bocaiúca.” Nesse momento não havia ainda certeza sobre o conteúdo preciso da nova ordem imposta pelos militares. Conscientes da necessidade da adesão das importantes forças militares sediadas no Sul para a vitória do movimento, os líderes do PRR telegrafaram ao governo provisório propondo a nomeação, como governador, do marechal-do-exército José Antônio Correa da Câmara (1824-1893). O segundo visconde de Pelotas, de 65 anos, era senador do Império, fora ministro da Guerra e herói do conflito contra o Paraguai (1865-1870), sendo responsável pelo ataque ao reduto derradeiro de Solano López. Correa da Câmara, visconde de Pelotas, era amigo de Deodoro da Fonseca. Apesar de liberal, estava estremecido com os monarquistas.

227

Nos anos anteriores, os republicanos sul-rio-grandenses, com destaque para Júlio de Castilhos, haviam cortejado intensamente os militares, também influenciados pelo positivismo comtiano. Com a adesão da guarnição militar de Porto Alegre ao golpe militar, ruiu a tentativa de resistência, inspirada pelos liberais, em defesa do regime e do governo recém-eleito.

Guindados ao governo Júlio de Castilhos soubera conquistar a simpatia do marechal Deodoro da Fonseca, quando este fora presidente da província sul-rio-grandense por seis meses, em 1886. Junto com a designação do visconde de Pelotas à chefia do Rio Grande do Sul, o marechal determinou a nomeação de Castilhos como secretário do governo estadual. Outros republicanos integraram o governo riograndense. Também amigo do marechal Deodoro, Assis Brasil foi nomeado enviado extraordinário e ministro plenipotenciário do Brasil em Buenos Aires. Era indiscutível a hegemonia política dos liberais sul-rio-grandenses, liderados pelo carismático e poderoso senador Gaspar Silveira Martins, que fora um dos principais líderes políticos do Império, quando era conhecido como o “Rei do Rio Grande do Sul”. Gaspar Silveira Martins entregara o governo da província sulina nove dias antes do golpe republicano. Nas eleições provinciais de 1889, o Partido Liberal fizera 25 deputados; o Conservador, 11, e o Republicano, nenhum! O Partido Liberal representava sobretudo os interesses dos grandes criadores da Campanha – Alegrete, Bagé, Dom Pedrito, Itaqui, São Gabriel, Uruguaiana, departamentos setentrionais do Uruguai, etc. Nesse sentido, era o verdadeiro herdeiro do ideário liberal farroupilha de 1835-45, apesar de ter abandonado o programa separatista e republicano. Em 16 de novembro, no dia seguinte ao golpe militar, o líder liberal e monarquista Carlos von Koseritz escreveu: “Cidadãos [...], devemos evitar tudo o que possa perturbar o sossego público e causar derramamento de sangue entre irmão. Apelo, pois, para [...] amigos e partidários [...] a submeterem-se à nova ordem de acontecimentos e esperarem em paz o desenvolvimento dos mesmos.” A partir do dia 19, os liberais sulinos aderiram à República para reclamar, imediatamente, o reconhecimento dos direitos de que se julgavam detentores por serem o principal partido provincial. Os chefes do PRR, guindados ao governo sulino pelo novo poder nacional, tinham consciência de que os liberais representavam as classes dominantes regionais hegemônicas. Em A Federação, Castilhos pronunciou-se terminantemente contra a própria partição do poder com os liberais. Após o golpe, Silveira Martins, inimigo político do marechal Deodoro, foi preso em Desterro, Santa Catariana, e enviado ao exílio. Ele esperava ser entronizado como presidente do Rio Grande, em razão da hegemonia política dos liberais regionais!

228

Do governo ao poder O governo provisório regional nomeou juntas municipais tríplices: um republicano, um liberal, um conservador. Como os conservadores haviam participado ativamente do golpe, garantia-se a hegemonia do PRR nos municípios. No fim do ano formou-se a Guarda Cívica, que se transformaria, mais tarde, na Brigada Militar, importante pivô da nova ordem. No Rio Grande foram exonerados funcionários, juízes, delegados de polícia e oficiais da Guarda Nacional de orientação liberal-gasparista. No Sul, o movimento republicano de expurgo dos liberais tinha um sentido que ia além da mera pugna interoligárquica. Em inícios de fevereiro de 1890 ocorreu a primeira crise governamental regional. Júlio de Castilhos e os republicanos renunciaram aos seus postos no governo, rompendo com o visconde de Pelotas, ex-liberal e ex-gasparista, demasiadamente contemporizador para o gosto dos republicanos históricos rio-grandenses, ou seja, daqueles que haviam lutado pela república antes de 15 de novembro de 1889. Obrigado a escolher entre as duas facções em luta, Deodoro, na presidência do governo provisório, optou por aquela que apoiava incondicionalmente o novo regime – os republicanos do PRR. Em ato que registrou o crescente prestígio dos republicanos históricos, Júlio de Castilhos foi proposto como presidente do Rio Grande. Porém, temendo a reação dos oficiais sediados na região, indicou o general-de-divisão Júlio Anacleto Falcão da Frota (1836-1909), empossado em 11 de fevereiro de 1890. Castilhos reservou-se a vice-presidência do novo governo e seus correligionários assumiram antigos e novos postos, em inexorável processo de consolidação político-administrativa. O novo governo teve vida breve. Três meses mais tarde, Júlio da Frota, Júlio de Castilhos e os demais membros do PRR renunciavam ao governo estadual em razão de fortes divergências com o governo central. As novas necessidades de meios de pagamento, postas pelo fim da escravatura, exigiam mais abundantes meios de pagamento. Rui Barbosa, ministro da Fazenda, igualmente favorável à promoção da indústria, determinara o fim do padrãoouro e o curso forçoso do papel-moeda, posto em circulação por três bancos emissores privados, garantidos por apólices da dívida pública. A doutrina comtiana propunha a estabilidade orçamentária e os castilhistas temiam surto inflacionário, como realmente ocorreria. Os republicanos rio-grandenses opunham-se também a uma decisão que entregava o monopólio da distribuição das terras públicas e outros privilégios ao Banco Emissor do Sul, sediado em Porto Alegre, controlado por capitalistas ligados ao regime anterior.

229

A luta pelo poder Com o afastamento dos republicanos, em 10 de maio de 1890, o marechal Deodoro da Fonseca, ex-conservador, nomeou um militar para a chefia do Rio Grande, o general-de-divisão Cândido José da Costa (1845-1909), também ligado, no passado, àquele partido. Para vice-presidente foi designado Francisco da Silva Tavares (1844-1891), filho de rica e poderosa família de Bagé, ex-presidente do partido Conservador no Rio Grande do Sul, metamorfoseado republicano, como os demais conservadores. No ato da nomeação, Deodoro telegrafara-lhe: “Governo espera que aceiteis cargo primeiro Vice-Governador e que entreis logo em exercício.” O vice-presidente assumiu o governo em virtude da ausência de Cândido da Costa. Nenhum republicano histórico aceitou participar do novo governo, constituído quase que apenas por antigos conservadores. Sem delongas, Tavares procedeu ao desmonte da máquina político-administrativa do PRR. O poder regional efetivo deslizava das mãos dos republicanos históricos para as dos antigos conservadores. A dissolução, por tropas estaduais, de manifestação popular republicana, promovida pelo PRR, em honra à Abolição da escravatura, em 13 de maio de 1890, com um morto e cinco feridos, acelerou o fim do governo, deposto por forças militares, sob inspiração dos castilhistas, no dia seguinte, pouco mais de uma semana após a posse. Ao assumir o governo, em 25 de maio, o general Cândido da Costa aproximou-se imediatamente dos republicanos históricos, incorporando-os ao governo, consciente da impossibilidade de dirigir, naquele momento, o Rio Grande sem a participação do PRR. Na mesma época, no Rio de Janeiro, Castilhos negociou sua nomeação como primeiro vice-presidente em troca do apoio à candidatura de marechal Deodoro da Fonseca à presidência da República, sem consultar as bases do partido. Nos meses seguintes, Castilhos guiaria pessoalmente o PRR, abandonando a antiga direção coletiva republicana. Esse comportamento e a orientação política e social que tomava o partido determinaram importante dissidência no PRR, capitaneada por Barros Cassal (1858-1903), de Alegrete, e, a seguir, por Demétrio Ribeiro (1853-1933), da mesma região, em julho de 1890. Também o líder republicano Antão Gonçalves de Farias (1854-1836), de São Sepé, afastou-se de Castilhos e do PRR. Os dissidentes fundaram o jornal O Rio Grande. Comumente, os dissidentes eram fazendeiros que terminaram expressando, por sobre suas orientações republicanas e positivistas, os interesses da sociedade pastoril. A política republicana castilhista exasperava importantes facções das classes proprietárias sulinas. Em inícios de junho, em Porto Alegre, organizaram-se os liberais, os conservadores e os republicanos dissidentes em frente única contra o PRR – a União Nacional –, que reuniu, entre outros, o visconde de Pelotas, Francisco da Silva Tavares e Apolinário Porto Alegre.

230

Levando tudo A União Nacional, de vida efêmera, negou-se a participar do pleito de 1890 para a Assembleia Constituinte nacional em razão da poucas garantias. As listas eleitorais e a apuração eram feitas por juntas designadas pelos governos regionais. As normas eleitorais não contemplavam a representação das minorias. Na época, oficiais sediados no Sul propunham a necessidade, “a todo transe”, da vitória dos republicanos! Apoiados no comtismo, os republicanos do PRR desprezavam as manifestações eleitorais como expressão da vontade pública. Concorrendo praticamente sós, obtiveram maciça maioria, elegendo os três senadores e 16 deputados constituintes. Entrementes, os castilhistas organizavam seu poder no Rio Grande do Sul, nomeando juntas em lugar das Câmaras Municipais, substituindo funcionários, reorganizando a Guarda Nacional. Em 15 de novembro de 1890, no Rio de Janeiro, reuniram-se os deputados de todo o Brasil, que em três meses redigiriam a primeira Constituição republicana. A Carta magna organizou-se em torno dos princípios federalistas, presidencialistas, oligárquicos e elitistas. Os deputados constituintes sul-rio-grandenses primavam pela juventude e pelo federalismo radical – Júlio de Castilhos tinha, na época, trinta anos; Borges de Medeiros, 27. As classes trabalhadoras e as classes populares foram mantidas à margem dos trabalhos constitucionais, o que correspondia aos princípios liberais e positivistas hegemônicos. Durante os debates, um deputado baiano afirmou: “No Brasil ainda não há proletariado.” A hegemonia anarcoindividualista e anarcossindicalista no seio do nascente operariado sulino e brasileiro facilitava tal alijamento, já que esses movimentos defendiam a não participação nas atividades políticas institucionais, denunciadas como tentativa de cooptação burguesa do mundo do trabalho. Em verdade, em razão das leis eleitorais, a participação operária nos pleitos era um quasesuicídio, já que o voto se dava de forma descoberta.

Novos eleitores As propostas ultrafederalistas dos republicanos sul-rio-grandenses foram vencidas. Quando dos trabalhos da Constituinte, Castilhos e os representantes sulinos opuseram-se, inutilmente, ao convênio promovido pelo governo Deodoro, que reduzia em 25% as taxas de importação dos produtos industriais e agrícolas estadunidenses em troca de isenção para o café, açúcar e couros crus. Defendiam, assim, os interesses, sobretudo, das regiões coloniais alemã e italiana, em detrimento do grande latifúndio da Campanha. Júlio de Castilhos e 13 deputados sulinos apoiaram a eleição do marechal Deodoro da Fonseca à presidência; capitaneados pelo republicano dissidente Assis Brasil, seis outros votaram em Prudente José de Morais

e Barros (1841-1902), presidente da Assembleia e candidato da oligarquia cafeicultora paulista. A dissidência republicana significava ruptura política e social com o projeto do PRR, em nome, sobretudo, dos grandes criadores, que se aprofundaria e se consolidaria nas décadas seguintes, assumindo a forma de oposição armada geral. Em 16 de março de 1891, o general Cândido da Costa, presidente do Rio Grande do Sul, entregou o cargo ao segundo vice-governador, o médico Fernando Abbott, ferrenho castilhista, em razão da desistência de Castilhos, que se queria livre para as atividades político-partidárias. Em 25 de março o novo governante decretou a convocação da Assembleia Constituinte estadual para 25 de julho do mesmo ano. Seriam eleitos 48 deputados. As normas das eleições estaduais não permitiam também a representação das minorias. Segundo a Lei Alvim, a lista majoritária no único círculo eleitoral que abrangia todo o estado elegia todos os deputados. Em abril de 1891, um Partido Republicano Federal, criado para a ocasião, reuniu ex-liberais, conservadores independentes e republicanos dissidentes, que apresentaram, entre outros, candidatos da expressão de Antunes Maciel, Barros Cassal, Demétrio Ribeiro, Gaspar Silveira Martins e Tavares Bastos. O PRR acolheu candidatos do Centro Católico. As eleições constituintes regionais punham fim ao regime de renda mínima, dos tempos da monarquia, mas exigiam que os eleitores fossem alfabetizados. Apesar do contexto antidemocrático, as eleições registraram um radical avanço democrático em relação aos tempos da monarquia, em virtude da profunda modificação do corpo eleitoral. Uma das primeiras medidas republicanas, fixada no artigo 69 da Constituição nova, era que todo estrangeiro residente no país quando da proclamação da república seria naturalizado, se não se opusesse expressamente ao ato, num prazo de seis meses. Como boa parte dos imigrantes alemães e italianos sabia escrever, ainda que minimamente, a Serra tornou-se importante reduto eleitoral, em geral simpático aos republicanos e antipático aos grandes criadores da Campanha e da fronteira. Como veremos, já nessa época o setentrião sulino superava, demográfica e economicamente, o meridião. Em obediência às novas normas eleitorais, a participação eleitoral foi bem mais ampla do que a conhecida durante a Monarquia, na qual votavam apenas os homens ricos. Muitos dos novos eleitores pertenciam a segmentos sociais urbanos intermediários, amplamente identificados com as propostas reformistas e autoritárias do castilhismo. Os numerosos pequenos proprietários da Serra e no Planalto, sobretudo os colonos-camponeses, comerciantes, artífices, etc., de origem alemã, italiana, etc., também sustinham a nova ordem.

232

A Serra, a capital, a Campanha A oposição venceu em colégios eleitorais como Alegrete, Bagé e Dom Pedrito, expressando a clara oposição da sociedade pastoril ao castilhismo. Os republicanos obtiveram maciça vitória no Planalto e na Serra, registrando o novo bloco político-social que sustentaria a ordem castilhista-borgista. Em Porto Alegre houve quase empate. Apesar da denúncia da oposição sobre irregularidades, quase normais nesses pleitos, as eleições expressavam a nova correlação de forças nascentes no Rio Grande do Sul, estranha aos partidos e classes sociais dominantes quando da Monarquia. Os republicanos históricos haviam se transformado, indiscutivelmente, na principal força política regional. O candidato castilhista mais votado recebeu uns 29 mil votos; o da oposição, pouco mais de 18 mil. Três deputados do Centro Católico elegeram-se e, apesar da significativa votação, nenhum candidato oposicionista participou da Constituinte. Eleito para a Constituinte na lista do PRR, Assis Brasil assumiu, mais e mais, as funções de chefe da facção republicana dissidente. Anos mais tarde, em 1923, assumiria a direção da oposição liberal-pastoril rio-grandense que tomaria as armas contra os republicanos históricos. O projeto de Constituição, sob a responsabilidade de Assis Brasil, Ramiro Barcelos e Júlio de Castilhos, fora, nos fatos, redigido pelo último. Foi aprovado quase integralmente e as poucas modificações reforçaram, e não diminuíram, os extensos poderes do Executivo. Entretanto, os intendentes municipais, que, segundo o projeto, seriam nomeados pelo presidente do estado, passaram a ser eleitos, transformando o município em lócus central das disputas políticas das décadas seguintes. A Constituição sulina era modernizadora, laicizante, centralista, autoritária, pró-burguesa e pró-capitalista. Com as exceções das decisões tributárias e orçamentárias, a Assembleia de Representantes, que se reunia, anualmente, a partir de 20 de setembro, em homenagem à Revolução Farroupilha, por dois meses, estava privada de poderes legislativos, que recaíam totalmente nas mãos do presidente do estado. Eleitos por quatro anos, os deputados da Assembleia dos Representantes votavam o orçamento e aprovavam sua execução; deliberavam sobre tributos; permitiam empréstimos, sobretudo. O presidente podia convocar a Assembleia dos Representantes e prorrogar as sessões. Durante os trabalhos, era proibido o voto secreto. Impunha-se, assim, a “monocracia” proposta por Auguste Comte. O todo-poderoso presidente nomeava o vice-presidente e legislava por decreto, ao seu alvitre. Fora as limitadas atribuições da Assembleia dos Representantes, ele apresentava e promulgava as leis estaduais, com ou sem modificações, após o projeto ser publicado “com maior amplitude” e ser emendado por “qualquer cidadão habitante do Estado”. A lei era revogada se a “maioria dos conselhos municipais” exigisse. Salvo engano, isso jamais ocorreu.

233

Pequenos e grandes ditadores O poder municipal reproduzia o estadual. O intendente e o Conselho Municipal eram eleitos por quatro anos, por voto direto. O intendente legislava municipalmente e o conselho reunia-se dois meses para se pronunciar sobre o orçamento. O intendente nomeava os subintendentes dos distritos, com poderes policiais, e responsabilizava-se pela guarda municipal. O presidente da província podia intervir nos municípios, nomeando intendentes provisórios, o que estendia seus poderes também a essa esfera. O presidente reelegia-se ad eternum caso obtivesse “3/4 [dos votos] do eleitorado”. Em todos os níveis, não havia justiça eleitoral – a contagem dos votos era feita por deputados da Assembleia dos Representantes. O voto era descoberto, cumprindo-se, assim, a determinação comtiana da publicidade da vida pública – “viver às claras” – e, sobretudo, impedia-se qualquer tipo de defecção clandestina. Também seguindo os princípios positivistas, aboliram-se os privilégios de diplomas, liberando-se o exercício livre das profissões no “território” sulrio-grandense. Na época, o Rio Grande não contava com instituições de ensino superior e os profissionais legalmente diplomados eram raros. A seguir, com a instalação de faculdades no estado e generalização, mesmo que relativa, da formação superior, a medida atritou o castilhismo com setores da classe média diplomada. A escolha dos juízes de comarcas era feita por concurso público e eles eram inamovíveis. Os “cargos públicos civis”, no “grau inferior”, eram preenchidos “mediante concurso”, sem a exigência de qualquer “diploma”. As promoções eram feitas, comumente, por “antiguidade” e, excepcionalmente, por “mérito”; as demissões davam-se por “processo”. Essas medidas almejavam pôr fim ao empreguismo partidário praticado durante o Império por liberais e conservadores e instituir quadro de funcionários públicos estáveis e profissionais. A Constituição instituía a liberdade religiosa, a monogamia, o casamento civil gratuito e cemitérios civis municipais, ao lado dos campos-santos privados. O ensino primário ministrado nos “estabelecimentos do Estado” seria “leigo, livre e gratuito”. Deixava-se o ensino secundário a cargo dos particulares, sobretudo das ordens religiosas. O preâmbulo da Constituição regional não fizera qualquer referência a deus, sob o inútil protesto dos deputados do Centro Católico. A casa passava a ser “o asilo inviolável” do cidadão, podendo ser devassada, à noite, apenas para “acudir a vítimas de crimes ou desastres” e, durante o dia, sob a proteção da lei. A imprensa era livre e os artigos deveriam ser assinados. Aboliam-se a loterias e proibia-se ao Estado “transformar o vício em fonte de receita”.

234

Elogio aos farroupilhas A Constituição determinava que as taxas sobre as exportações e a transmissão da propriedade seriam abolidas “logo que a arrecadação do imposto [...] territorial” fosse regularizada. A Assembleia dos Representantes tributaria a “importação de mercadorias estrangeiras destinadas ao consumo” para “colocar em condições de igualdade [...] os produtos da indústria rio-grandense e os similares estrangeiros”, “quanto aos ônus fiscais”. Essas medidas apoiavam a produção e a indústria sulinas, com destaque para a serrana, e contraditavam os interesses pastoris. As insígnias oficiais do estado do Rio Grande do Sul passavam a ser do “pavilhão tricolor da malograda República Rio-Grandense” e decidiu-se a elevação de “monumento à memória de Bento Gonçalves e de seus gloriosos companheiros da cruzada de 1835”. Assim, os republicanos de 1889 procuravam assumir o capital simbólico da revolta latifundiário-pastoril republicana de 1835, propondo literalmente tradição reinventada para todos os cidadãos, de todo o território do Rio Grande do Sul. Em 14 de julho de 1891, centenário da primeira Constituição francesa, a nova Carta foi promulgada e Júlio de Castilhos, com 31 anos, elegeu-se, indiretamente, presidente do estado, por unanimidade. Assis Brasil negouse a assinar a Carta constitucional sul-rio-grandense. Inconformada com a situação, a oposição radicalizava crescentemente sua dissensão. Entretanto, um fato político nacional ensejou a postergação do confronto entre liberais e republicanos. Em fins de 1891, a situação nacional era difícil do ponto de vista social, econômico e político. A inflação e a corrupção campeavam e a especulação na Bolsa era desenfreada. Os principais líderes republicanos foram substituídos no governo federal por antigos políticos conservadores. Em todo o Brasil despencava o prestígio do marechal Deodoro da Fonseca. Em 3 de novembro de 1891, Deodoro da Fonseca cercou militarmente e dissolveu o Congresso Nacional, em uma tentativa de golpe de estado. O primeiro vice-presidente do país, marechal Floriano Vieira Peixoto (1839-1895), cearense, filho de família pobre e criado por um tio militar, após se manter na expectativa, passou a se opor frontalmente à ação, capitaneando um grande movimento de oposição, formado sobretudo por políticos e militares republicanos.

Momentos difíceis Júlio de Castilhos e o PRR haviam apoiado a eleição de Deodoro da Fonseca. Ao serem consultados pelo presidente sobre o golpe, opuseram-se a ele. Porém, ao chegar ao Rio Grande a notícia do cerramento do Congresso, foi publicada, com destaque e simpatia, em A Federação. A seguir, uma moção de protesto apresentada à Assembleia de Representantes contra o ato

235

foi barrada pelos deputados castilhistas. Como em outros estados, o governo sulino contemporizou, esperando que, se o golpe vingasse, o PRR manteria no poder no Sul com maior facilidade. As fortes guarnições do Exército de Rio Grande e de Bagé pronunciaram-se contra Deodoro, recebendo o apoio de importantes forças civis, entre as quais os políticos republicanos dissidentes e liberais na oposição. Em 7 de novembro, guarnições militares sul-rio-grandenses sublevaram-se contra Deodoro. Outros movimentos militares eclodiram através do Brasil, alastrando-se a oposição ao golpe. Apenas em 11 de novembro de 1991, sob forte pressão, o governo castilhista expressou sua oposição à dissolução do Parlamento nacional em A Federação. No dia seguinte, 12, uma manifestação oposicionista em Porto Alegre, na praça da Alfândega, da qual participaram Assis Brasil e Barros Cassal, incentivada pela União Nacional, enviou deputação, formada por ricos comerciantes, para pedir a Castilhos que abandonasse o governo. Sem tropas capazes de resistir à oposição apoiada pelas forças militares federais florianistas, Castilhos e os republicanos do PRR abandonaram o governo, sem entregá-lo, formalmente, a ninguém. Por aclamação, assumiu o poder comitê formado por Assis Brasil, Barros Cassal e pelo brigadeiro reformado Domingos Alves Barreto Leite. Assumindo o governo em 19 de novembro, Barreto Leite nomeou Barros Cassal para vice-governador. O novo governo armou seis mil homens para participarem da deposição de Deodoro da Fonseca. Nos fatos, a queda do castilhismo desequilibrara a base de sustentação do presidente da República e fortalecera significativamente o movimento nos estados contra o golpe de estado.

O Governicho A forte oposição despertada no país contra a dissolução do Parlamento, por um lado, e a sublevação da Armada, na baía da Guanabara, em 23 de novembro, comandada pelo almirante Custódio de Melo e Eduardo Wandenkolk, por outro, levaram Deodoro a renunciar. Ao fazê-lo, entregou o poder ao vice-presidente, marechal Floriano Peixoto, que nomeou Custódio de Melo ministro da Marinha. A queda de Deodoro e a posse do vice-presidente consolidavam a queda do castilhismo. Tudo levava a crer que o poder regional deslizaria para as mãos dos republicanos dissidentes, inicialmente; para as dos ex-conservadores, a seguir, para terminar sendo controlado pelos liberais gasparistas, tradicionais representantes dos interesses pastoris sulinos, segmentos sociais hegemônicos nas últimas décadas da monarquia. Com a deposição de presidente do estado, assumira uma Junta Governativa, que entregou a Presidência, em 17 de novembro, ao septuagenário brigadeiro Domingos Alves Barreto Leite. Era o início do breve governo re-

236

publicano dissidente, de seis meses, apoiado pelos ex-liberais, que passou para a história sob o nome de “Governicho”, apelido que lhe foi dado por Castilhos em A Federação. Meio século antes, os monarquistas haviam depreciado o governo farrapo com o mesmo designativo. O novo governo promoveu o desmantelamento da máquina administrativa republicana – extinguiu cartórios; demitiu funcionários e professores; decretou, em 17 de fevereiro, o fim do Tribunal de Justiça do Estado. Os líderes e militantes republicanos foram perseguidos, ocorrendo assassinatos políticos. Segundo A Federação, um velho republicano, o capitão Domingos Mancha, de Palmeira das Missões, teve a casa invadida, fora amarrado, amordaçado, castrado e degolado, após ver suas cinco filhas violentadas. Em Passo Fundo, o republicano Francisco Xavier da Costa, septagenário, teria sido espancado, estaqueado e obrigado a assistir ao estupro de suas filhas e noras.

Nova constituição Era circunstancial a aliança entre republicanos dissidentes e liberais gasparistas. Sobretudo os republicanos históricos dissidentes, sem bases sociais profundas, temiam, com razão, que os gasparistas se apoderassem do poder, levando a um rompimento com os militares republicanos florianistas. Nos municípios, juntas revolucionárias extravasavam em suas atribuições, imiscuindo-se até mesmo em questões de atribuição federal. O novo governo convocou pleito para eleger deputados a uma convenção que reformasse a Carta castilhista, a seguir suspensa. Em diversos pontos do Rio Grande ouviram-se declarações restauracionistas e monarquistas. Guarnições militares republicanas estamparam publicamente o descontentamento com a orientação em curso. O funcionalismo do Estado juntou-se aos protestos, amparado na estabilidade e irredutibilidade dos vencimentos garantidas pela Constituição castilhista. Em 4 de fevereiro de 1892, militares do Exército, da Guarda Civil e militantes republicanos castilhistas tentaram, desorganizadamente, derrubar o governo, morrendo nos combates um tipógrafo de A Federação. O movimento não prosperou em virtude da não adesão da guarnição do Exército da capital, ainda oposta ao PRR. Após a tentativa de putsh, a repressão contra os republicanos históricos aprofundou-se, estendendo-se pelo estado, com assassinatos em Lavras do Sul, Palmeira das Missões, São Borja, etc. Em março de 1892, Gaspar Silveira Martins chegou do exílio europeu, fortalecendo os liberais em detrimento dos republicanos dissidentes. Esse fato estremeceu ainda mais a aliança que sustentava o Governicho. Muito logo o Partido Republicano Federal entraria em crise, já que os liberais se apresentaram como alternativa política estável ao novo governo. Também em março, na presidência do estado, o republicano dissidente Barros Cassal promulgou Carta constitucional provisória que repetia a ante-

237

rior, à exceção da feitura das leis, que passava a ser matéria legislativa. Em 31 de março, em congresso em Bagé, o general João Nunes da Silva Tavares dirigiu a fundação do Partido Federalista, destinado a longa e importante vida política. Gaspar Silveira Martins assumiu a direção da nova agremiação. O Partido Federalista propunha o parlamentarismo, eleições distritais, a representação das minorias, a autonomia municipal. Mais do que federalista, era parlamentarista e, ao contrário do que sugere o nome, centralista, já que propunha a predominância do poder federal sobre o estadual. Fazia isso esperando debilitar, apoiado no peso oligárquico nacional, as novas forças hegemônicas sulinas e conquistar direito de veto sobre as reformas que se anunciavam. O partido propunha apoio às indústrias naturais sulinas, isto é, à produção charqueadora e pastoril.

A volta dos liberais Em 8 de junho de 1892, novamente no governo, o general Barreto Leite renunciou ao cargo, entregando-o ao marechal José Antônio Correa da Câmara, visconde de Pelotas, ex-liberal, primeiro governador do Rio Grande, após o golpe republicano, e, naquele momento, federalista. O ato consolidava a erosão da força política dos republicanos dissidentes e anunciava a volta ao poder dos gasparistas e do latifúndio pastoril, sob a veste federalista. No mesmo dia, A Federação registrou a ascensão dos liberal-federalistas ao poder: “Ao morrer, o governicho, que se dizia republicano, entrega o Rio Grande do Sul, como qualquer mercadoria, aos dentes do liberalismo falsário e conspirador [...]. A gente má, que no 15 de novembro de 89 foi apeada do poder [...] não pode afirmar o seu império.” E não afirmou. Nove dias após, o novo governo era deposto pelos republicanos em armas. Em 17 de junho de 1892 iniciava-se a revolta castilhista, capitaneada pela Guarda Cívica. O movimento apoderou-se do palácio governamental e da capital, sem derramamento de sangue. Incapaz de resistir, o visconde de Pelotas nomeou, no mesmo dia, o velho general honorário João (Joca) Nunes da Silva Tavares (1818-1906), barão de Itaqui, comandante da guarnição da fronteira de Bagé, centro territorial do poder federalista, como vice-presidente, transferindo o governo para ele por telegrama. Após assumir o governo, em Porto Alegre, em 17 de junho, Castilhos restaurou a Constituição e, imediatamente, nomeou o deputado Vitorino Monteiro para o cargo de vice-presidente, renunciando ao governo a fim de organizar novas eleições. Imediatamente, Floriano Peixoto enviou telegrama apoiando o novo governo e assegurando o apoio das tropas federais no estado contra os federalistas. A vitória castilhista foi facilitada pela neutralidade do presidente em exercício. Em verdade, fora aparente a neutralidade federal durante a queda do Governicho. Desde abril, Floriano afastara-se dos antigos aliados

238

sul-rio-grandenses, temendo o novo ativismo gasparista. O afastamento propiciou a aproximação com Castilhos e seus republicanos históricos, que haviam chegado a participar de conspirações para a deposição de Floriano. Nesse momento, estabelecia-se dualidade de poderes, com dois centros governamentais e militares, o federalista, em Bagé, representante da economia pastoril-latifundiária, e o republicano, em Porto Alegre, expressão do novo bloco social proprietário ascendente. Em Porto Alegre, Barros Cassal, após mandar a belonave “Marajó” abrir fogo contra o palácio do governo e o quartel-general das forças federais, retirou-se para o porto de Rio Grande, onde se rendeu. Rapidamente, o poder político-territorial republicano impôs-se militarmente sobre o federalista, sendo vergadas sem dificuldades tentativas de resistência armada no interior, sobretudo em Bagé, Passo Fundo, Santana do Livramento e Dom Pedrito. Nos fatos, cercado em Bagé por tropas republicanas, o general Silva Tavares, então com 74 anos, preferiu dispersar as tropas e entregar o armamento, postergando o confronto militar. Invertidos os papéis, os republicanos perseguiram, sem dó, os oposicionistas. Entre junho de 1892 e fevereiro de 1893, sem poderem resistir no Rio Grande, dez mil federalistas e republicanos recuaram, em grande número, para o Uruguai para acumular forças nas mais de sete mil fazendas de criadores sulinos nos departamentos setentrionais daquele país. Essas propriedades constituíam verdadeira extensão do espaço socioeconômico do latifúndio pastoril rio-grandense. Diversos políticos da oposição foram assassinados, mesmo na capital. Então, iniciou-se a prática de matar desafetos degolando-os como carneiros. Segundo Joseph L. Love, a “vítima era forçada a ajoelhar-se de mãos atadas ante seu algoz, que rasgava suas artérias carótidas em um golpe súbito de faca. A degola era rápida, silenciosa e barata”. Mais de 130 federalistas teriam sido assassinados. Sempre que podiam, os gasparistas respondiam com atentados individuais. Em A guerra civil de 1893, o historiador Sérgio da Costa Franco propõe o mês de julho de 1892 como verdadeiro início da guerra civil que eclodiu, oficialmente, sete meses mais tarde. A chamada “Revolução Federalista” constituiu a mais violenta e mortífera guerra civil sulina.

239

17 1893: a guerra civil federalista Os federalistas reagruparam suas forças nas suas fazendas do norte do Uruguai, como nos tempos da Guerra Farroupilha (1835-1845). Novamente no poder, os republicanos históricos fortaleceram igualmente suas tropas e garantiram-se o apoio federal do marechal Floriano Peixoto. Em 15 de outubro de 1892, extinguia-se a Guarda Cívica e nascia a Brigada Militar, com mais de 1.200 homens na ativa, o primeiro exército profissional sulrio-grandense – dois batalhões de infantaria e um regimento de cavalaria. A Brigada Militar teria participação decisiva nas guerras de 1893 e 1923 e asseguraria o PRR contra as intervenções federais, contra os federalistas/libertadores e contra as classes subalternizadas. Para enfrentar os federalistas, armamentos modernos foram encomendados, organizou-se uma guarda municipal e instituíram-se “corpos provisórios” da Brigada Militar com os capatazes, gaúchos e apadrinhados dos fazendeiros republicanos. Em 20 de novembro de 1892 Júlio de Castilhos foi reeleito à presidência do estado, por voto direto, e renovou-se a Assembleia dos Representantes. A oposição não participou do pleito, por estar voltada aos preparativos insurrecionais. Uma proposta de Silveira Martins de partição do poder entre republicanos e federalistas foi rejeitada por Castilhos. Em 25 de janeiro de 1893, o novo presidente foi empossado e, em 2 de fevereiros, eclodiu a Revolta Federalista, com a invasão dos territórios sulinos por tropas chegadas do Uruguai. As forças rebeldes eram comandadas por Gumercindo Saraiva e pelo general João Nunes da Silva Tavares. O velho Joca Tavares, designado comandante-em-chefe dos rebeldes, era proprietário de imensas fazendas em Bagé. Parte dos combatentes federalistas encontrava-se armada apenas com lanças. No plano político, os federalistas propunham a suspensão da Constituição republicana estadual castilhista, a deposição de Júlio de Castilhos e esperavam que o movimento fortalecesse conspirações então em curso no Exército, na Marinha e entre civis para depor Floriano Peixoto, que apoiava os republicanos rio-grandenses. Os sublevados queriam a substituição do presidencialismo pelo parlamentarismo. Com a partição parlamentar do poder, pretendiam barrar as reformas que os republicanos históricos propunham fazer, contrárias aos interesses dos grandes criadores rio-grandenses.

Avançar para o passado A volta da Monarquia não era bandeira federalista, ainda que alguns rebeldes sonhassem com ela. Nas tropas rebeldes encontravam-se republicanos dissidentes, ferrenhos antibragantinos. A revolta era apoiada so-

240

bretudo pelos grandes fazendeiros da Campanha e do Planalto e contava com simpatias de parte dos colonos alemães. A defesa de Gaspar Silveira Martins do direito ao voto dos não católicos e as perseguições republicanas ao líder liberal alemão Karl von Koseritz criavam simpatias ao movimento entre alguns imigrantes alemães. As razões da revolta eram profundas. Grandes proprietários pastoris na fronteira do Rio Grande do Sul e no Uruguai e importantes setores comerciais de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande opunham-se à política de repressão ao contrabando desenvolvida pelos governos central e estadual desde 1890. Em 1908, Assis Brasil chegaria a dizer que, sem o contrabando, a “vida seria impossível” na fronteira. Desde 1888 e 1892, Uruguaiana e Santana do Livramento encontravam-se ligadas por via férrea com Montevidéu, respectivamente. Comumente, o gado de fazendas de rio-grandenses no Uruguai era charqueado no Rio Grande do Sul e, a seguir, exportado pelo porto de Montevidéu. Produtores de arroz, cachaça, erva-mate, feijão, fumo, etc. do norte do estado dependiam do ingresso ilegal de seus produtos no Prata. A repressão ao contrabando era proposta programática do PRR, que apoiava o desenvolvimento da economia do estado, a diversificação de sua produção e o fortalecimento do artesanato e da indústria nascente. O combate ao contrabando fortalecia as rendas públicas, facilitando a gestão do estado e os investimentos infraestruturais. A iniciativa era apoiada por industrialistas, operários e produtores coloniais e serranos.

Lutando para viver Ao longo da fronteira sul-rio-grandense, um contrabando miúdo, de formiga, servia como meio de sobrevivência para milhares de rio-grandenses e uruguaios pobres, sobretudo do sexo masculino, que, sozinhos ou em grupos, defrontavam-se, no exercício de suas atividades, com as autoridades policiais e aduaneiras das duas margens da fronteira. Esses contrabandistas morriam no exercício das funções ou pobres, em geral sem enriquecerem. A mesma oposição entre o livre-câmbio dos fazendeiros federalistas e o protecionismo castilhista dera-se em torno do tratado de 1891, acordado entre o Governo Provisório do Brasil e os Estados Unidos. Aquele tratado garantia facilidades ao ingresso de cereais e manufaturados estadunidenses no Brasil, em troca dos mesmos privilégios, naquele mercado, para o café, o açúcar e os couros, produzidos pela oligarquia rural brasileira. O acordo prejudicava os agricultores e industrialistas do Brasil e do Rio Grande do Sul. A violência do confronto devia-se também à importância do Estado como veículo de apropriação-distribuição das terras públicas, recurso es-

241

sencial para os grandes criadores pastoris, incapazes de desenvolver intensivamente suas explorações. A legalização de “posses”, caminho tradicional para a ampliação dos latifúndios, permitida pela Lei de Terras de 1850, dependia, desde a sua regulamentação, em 1854, da Repartição Geral de Terras Públicas, instituto ligado ao Ministério e Secretaria de Estado dos Negócios do Império. Com a República, os Estados assumiram importantes responsabilidades na legalização de terras. Em 1898, em mensagem à Assembleia dos Representantes, Júlio de Castilhos denunciava que, no Rio Grande do Sul, de 1854 a 1889, mais de 120 léguas quadradas de terras públicas haviam sido apropriadas por meio de legitimação de posses, ou seja, uma média de 3,4 léguas quadradas por ano. Para limitar o crescimento dos latifúndios, em três anos, de 1893 a 1896, o castilhismo legitimara, ao todo, apenas 3,4 léguas. Os latifundiários federalistas temiam os projetos republicanos de tributar a propriedade fundiária e de apoiar a diversificação econômica e a industrialização do estado. A violência da guerra civil de 1893-95 deveu-se às importantes questões econômicas, políticas e sociais então em jogo, não à maldade ou “traços de autoritarismo congênito” do castilhismo, como sugere Carlos Reverbel em seu excelente ensaio Maragatos & pica paus: guerra civil e degola no Rio Grande.

Primeiro entrevero Em 3 de maio de 1893, após diversos confrontos, travou-se importante batalha no passo do arroio Inhanduí, afluente do Ibirapuitã, no município de Alegrete, sorrindo a vitória aos legalistas. Os quatro mil soldados republicanos da Divisão do Norte, das Missões, comandada pelo general Francisco Rodrigues Lima e pelo republicano e grande estancieiro Pinheiro Machado, então com quarenta anos, estavam pertinentemente armados e organizados em infantaria, cavalaria, artilharia e intendência. Mais numerosos, os 6.500 federalistas contavam com apenas setecentas armas modernas. Às portas do novo século, retiravam-se do baú da história as lanças farroupilhas para armar piquetes de cavaleiros. Após seis horas de combate, apoiados pela artilharia e convenientemente entrincheirados, os republicanos desorganizaram as cargas da cavalaria federalista e venceram a batalha, recuperando parte do escasso armamento rebelde. No Rio de Janeiro, Floriano Peixoto saudou a vitória como conquista republicana. As tropas rebeldes eram formadas pelos grandes estancieiros do sul do estado e da Serra à frente de seus peões e agregados. Os combatentes maragatos organizavam-se em grupos de cinco a oito homens, que se alimentavam, acampavam e combatiam juntos – os fogões. Os exércitos republi-

242

canos constituíam-se, crescentemente, de corpos militares regulamentares, enquadrados por oficiais de carreira, treinados para combater profissionalmente. A forma de guerrear expressava também os distintos universos – pré-capitalista e capitalista – dos grupos sociais em luta. Como muitos soldados federalistas eram oriundos do departamento uruguaio de San José, onde abundavam os espanhóis naturais da região de Maragateria, na província espanhola de León, os federalistas foram apelidados de “maragatos”, isto é, mercenários castelhanos. O apelativo depreciativo foi adotado pelos federalistas, acusados igualmente de restauradores e sebastianistas. Também nas tropas republicanas encontravam-se gaúchos sul-rio-grandense e uruguaios. Os republicanos eram denominados sobretudo de “pica-paus”. Gumercindo Saraiva foi o principal comandante militar maragato. Ele era filho de um ex-farroupilha que emigrara para o Uruguai após a derrota republicana. Como vivera naquele país e se alfabetizara em Montevidéu, dominava apenas o castelhano. Gumercindo desculpava-se por não falar coloquialmente o português afirmando que “hablo el castellano para no ‘estropiar’ nuestra lengua; prefiero ‘estropiar’ la de ellos”. Casado com uma filha de Jaguarão, estabelecera-se em Santa Vitória do Palmar, no extremo-sul do estado, onde assumira a direção do Partido Liberal. Como se negou a aderir ao castilhismo, fugiu para o Uruguai, retornando quando do Governicho.

A hora e a vez do guerrilheiro Em meados de maio, após a derrota de Inhanduí, os federalistas retiraram-se para o Uruguai para reagrupar forças, deixando no Rio Grande do Sul Gumercindo Saraiva à frente de uma coluna de 1.100 soldados. Vivia-se, então, mais um duro inverno sulino, que agoniava sobremaneira as mal abastecidas e mal armadas tropas federalistas. O abastecimento das forças republicanas chegava facilmente da capital e de Rio Grande pelas estradas de ferro. Em maio, em Montevidéu, o vice-almirante Eduardo Wandenkolk aderiu à revolta federalista, apoderou-se e armou o navio frigorífico brasileiro “Júpiter”, acertando com Gaspar Silveira Martins o ataque a Rio Grande, por mar, apoiado pelas tropas de Gumercindo Saraiva. Em 12 de julho, após esperar inutilmente a chegada do guerrilheiro, o vice-almirante tomou o rumo do norte, sendo aprisionado, com o “Júpiter”, no litoral catarinense. Ainda em julho de 1893, uma segunda mal-armada coluna de mil homens invadia novamente o estado, desde o Uruguai, sob o comando do general Luís Alves Salgado. Reunidos, os exércitos federalistas, incapazes de se sobrepor aos republicanos, serpentearam pelo estado, travando combates, e,

243

em outubro de 1893, no norte do estado, ocuparam Passo Fundo e, no início do mês seguinte, invadiram Santa Catarina, onde novamente se dividiram. Em 6 de setembro de 1893, no Rio de Janeiro, a eclosão da Revolta na Armada, contra Floriano Peixoto, comandada pelo almirante Custódio José de Melo, terminou nacionalizando a guerra civil rio-grandense, já que o movimento se associou à revolta federalista. Os rebeldes pretendiam substituir o marechal Floriano Peixoto pelo almirante Custódio de Melo. Aderiram ao movimento os cruzadores “Aquidabã”, “Guanabara”, “República”, “Trajano” e “Javari”, torpedeiros e navios mercantes armados. Senhores do mar, mas sem apoios em terra, os rebeldes bloquearam o porto; bombardearam, em continuação, a capital da República; enviaram três navios para o Sul, onde, em 29 de setembro, apoderaram-se de Desterro, estabelecendo um governo provisório em Santa Catarina. Em 9 de dezembro, o almirante Luís Felipe Saldanha da Gama, monarquista, restaurador e diretor da Escola Naval, aderiu e assumiu a direção da revolta na Marinha.

Policarpo vai à guerra Floriano Peixoto artilhou o litoral da baía de Guanabara, mobilizou suas tropas, comprou navios no exterior, organizou uma esquadra, reprimiu as tentativas intervencionistas das grandes potências. Em 13 de março de 1894, ameaçados por terra e pela armada republicana, quinhentos marinheiros e oficiais rebeldes refugiaram-se em dois navios de guerra portugueses, pondo fim à revolta na baía da Guanabara. Em 2 de novembro de 1893, após atravessarem o rio Pelotas e entrarem em Santa Catarina, as tropas federalistas, comandadas pelo general Salgado, desceram a serra e atacaram a cidade de Tubarão, que não conseguiram capturar. A seguir, acamparam por diversos meses em Laguna, mantendose em uma imobilidade que apenas erodia as forças federalistas. Ao contrário, o exército de Gumercindo seguia combatendo em Santa Catarina e, a seguir, no Paraná, recrutando soldados entre a população, comumente pela força. Em uma sucessão de vitórias, os federalistas ocuparam Paranaguá em 17 de janeiro 1894, e Tijucas e Curitiba, dois dias mais tarde. Em 11 de fevereiro, após um mês de duríssimos combates, apoderaram-se de Lapa. Na fronteira de São Paulo, Gumercindo e suas tropas retrocederam para o Sul, em razão das importantes forças concentradas na região. Os combates prosseguiam também no Rio Grande do Sul. Em 24 novembro de 1893, o general Joca Tavares sitiou e derrotou importantes tropas republicanas no município de Bagé, perto da Estação Rio Negro. Porém, os rebeldes falharam, a seguir, na tentativa de conquistar Bagé, onde

244

tropas republicanas resistiram, entrincheiradas na praça da igreja matriz da cidade, comandadas pelo coronel Carlos Teles. Em 8 de janeiro de 1894, os maragatos levantavam o ataque à capital da Campanha e do latifúndio, internando-se em grande número no Uruguai. Após a derrota de 24 de novembro de 1893, os maragatos aprisionaram e degolaram, no maior banho de sangue da guerra, o general Isidoro Fernandes e duas a três centenas de oficiais e soldados, entre eles combatentes uruguaios. O número de mortos jamais foi comprovado documentalmente. Conta a tradição que os combatentes que não pronunciassem corretamente a letra “J” eram degolados pelo major negro uruguaio Adão Latorre, a quem se quis responsabilizar pela mortandade.

Negro tenebroso Não há certeza sobre se Adão Latorre teria nascido escravo no Brasil, o que é mais provável, ou se chegara menino ao Rio Grande do Sul, da África, em meados do século 19. Aos 17 anos, fugira para o Uruguai, indo trabalhar nas fazendas da família Tavares, onde ascendera até a posição de capataz, com o direito de formar família. Na época dos acontecimentos, teria mais de quarenta anos, dez filhos e um pequeno campo. Latorre falava uma mescla de português e castelhano. A degola, que durou toda a tarde e parte da noite, foi sobretudo obra de rio-grandenses federalista – um oficial do Exército teria sido fuzilado por reclamar contra o massacre. Em Maragatos & pica paus: guerra civil e degola no Rio Grande, Carlos Reverbel lembra a dificuldade de apenas um homem degolar trezentos prisioneiros e o preconceito racial e social subjacente à interpretação de Adão Latorre como único degolador. A responsabilização de um negro e ex-escravo pelo massacre teria servido para absolver os riograndenses federalistas responsáveis pelo mesmo. Nascido escravo, Latorre elevou-se à posição de pequeno proprietário fundiário, alcançou o posto de coronel, comandou fazendeiros mais ricos do que ele e morreu, próximo aos oitenta anos, no combate de Santa Maria Chico, em 15 de maio de 1923, quando da última grande insurreição pastoril sulina. Figura paradigmática da história rio-grandense, foi degolado depois de morto, em um ato pleno de simbolismo classista e revanchista. Quando souberam da morte de Adão Latorre, os republicanos saudaram efusivamente pela imprensa o desaparecimento do velho e temido guerreiro negro maragato: “Bendita seja! Mil vezes bendita seja, a bala que para sempre levou dos vivos, o negro perigoso, que era um perigo negro – o sicário Adão Latorre” – escreveria a imprensa republicana.

245

Em 5 de abril de 1894, por sua vez, uns 370 federalistas foram degolados no capão do Boi Preto, perto de Palmeira das Missões, em obediência às ordens do coronel republicano Firmino de Paula, comandante da 5a Brigada da Divisão Norte. Nos anos de guerra, a população civil, sobretudo pobre, sofreu duramente nas mãos das tropas maragatas e republicanas.

A morte do guerrilheiro Em meados de junho de 1894, a revolta estava em franca agonia. Após levantar o bloqueio do Rio de Janeiro, abandonar Santa Catarina e, em inícios de abril, fracassar na tomada do porto de Rio Grande, em 10 e 11 de abril daquele ano, a esquadra rebelde desembarcou novecentos homens no Uruguai e internou-se na Argentina, onde Custódio de Melo pediu e recebeu asilo. Em 27 de junho de 1894, a poucos quilômetros de Passo Fundo, no distrito de Pulador, em um violento combate de mais de seis horas, as tropas de Gumercindo Saraiva foram vencidas pelos republicanos, mais bem armados e mais disciplinados, sofrendo quatrocentas baixas. A guerrilha federalista prosseguia, mas a revolta aproximava-se em forma inexorável de seu fim. Em 10 de agosto de 1894, Gumercindo Saraiva foi baleado mortalmente em um entrevero de menor importância. Enterrado pelos seus homens em cemitério do município de Santiago, o corpo do comandante rebelde foi exumado e exposto aos combatentes republicanos para comprovar sua morte. A cabeça decepada, com as orelhas cortadas, teria sido levada a Júlio de Castilhos, que se indignou com a profanação do corpo. Em 17 de agosto de 1894, confirmada a morte, o porta-voz republicano A Federação saudou o desaparecimento de Gumercindo Saraiva com palavras que registram a dimensão política que assumira o guerrilheiro federalista: “Miserável: pesada como os Andes te seja a terra que o teu cadáver maldito profanou [...]. Besta-fera do Sul, carrasco do Rio Grande [...]. Maldita seja para sempre a memória do bandido.”

Navegando nos pampas Em 15 de novembro de 1894, a posse de Prudêncio de Morais, candidato da oligarquia paulista e brasileira, pôs fim ao período de controle jacobino e militar da presidência, denunciado pelos federalistas, debilitando programaticamente a revolta no Sul. Representante da oligarquia cafeeira e interessado em diminuir a força no Brasil do militarismo, Prudente de Morais facilitou o fim dos combates no Sul.

246

Em maio de 1895, seguindo instruções do novo presidente, o chefe do Distrito Militar do Rio Grande do Sul propôs aos federalistas o fim dos combates. Nesses momentos, quando se preparava o fim da guerra, para não ser internado pelo governo uruguaio, o almirante Saldanha da Gama, que aderira tardiamente à Revolta da Armada, atravessou a fronteira e incorporouse à luta federalista, em agonia. Um contingente de fiéis marinheiros, formado sobretudo por negros, transformados apressadamente em infantes, acompanhava o almirante. Em 24 de junho 1895, os quatrocentos combatentes de Saldanha da Gama foram batidos em campo aberto em Santana do Livramento, no Campo dos Osórios, por 1.200 republicanos. O almirante foi lanceado, enquanto fugia, por gaúchos republicanos interessados nos seus arreios de prata. Centenas de marinheiros morreram durante ou após o combate, em terra estranha e em embate que não lhes dizia respeito. No começo de julho suspendeu-se a luta e, em 23 de agosto de 1895, em Pelotas, assinou-se a ata de pacificação. Em 19 de setembro, o governo federal concedeu anistia aos rebeldes sul-rio-grandenses e aos participantes da Revolta da Armada. Chegara ao fim a maior guerra civil sul-rio-grandense, com a incontestável derrota das forças rebeldes e do partido dos grandes criadores. Estima-se que em torno de dez mil pessoas tenham morrido na guerra, em uma época em que a população sulina não chegava a um milhão de habitantes. Segundo Carlos Reverbel, 10% dos mortos teriam sido degolados. A guerra federalista determinara prejuízos ao Estado, entre eles, a destruição das tentativas do primeiro grande industrialista sulino, Carlos Guilherme Rheingntz, de melhorar a qualidade da lã empregada em sua indústria, processo em adiantado desenvolvimento no Uruguai e na Argentina. Tropas que cruzaram uma de suas fazendas abatiam para assar e comer os caros reprodutores e matrizes trazidos da Inglaterra a peso de ouro, levando o técnico inglês que dirigia a empresa à exasperação e ao abandono da iniciativa! Paradoxalmente, durante o conflito, aumentou significativamente a arrecadação estadual de impostos, em clara comprovação do permanente e crescente controle republicano sobre o Sul. A debilidade e falta de apoio federalista nas grandes cidades expressaram-se no fato de que jamais a capital fora ameaçada pelas tropas rebeldes, repetindo-se e aprofundandose o estranhamento farrapo do mundo urbano. Durante toda a “Revolução Federalista”, de 1893 a 1895, Assis Brasil, a seguir principal chefe da oposição antirrepublicana, desempenhou funções diplomáticas em Buenos Aires e Lisboa.

247

18 O sentido histórico do castilhismo Os republicanos sul-rio-grandenses não chegaram ao poder apoiados apenas na “força bruta”. A estabilização do castilhismo-borgismo não representou o encastelamento no governo devido à “violência”, à “fraude eleitoral”, à “cooptação política” por um homem ou de grupo de homens sedentos de poder, como propõem explicações simplistas, em geral de fundo idealista, liberal ou conservador. O castilhismo-borgismo também não representou a consolidação de bloco político-social revolucionário, como sugerem modernas leituras apologéticas. Antes de 1889, os republicanos rio-grandenses possuíam escassa base social para seu projeto político-ideológico conservador-reformista pró-capitalista, que teve seu perfil definido de forma mais acabada apenas após a República. O golpe republicano de 15 de novembro de 1889 permitiu aos republicanos históricos participarem do governo sulino. Inicialmente, eles se mantiveram no poder sobretudo em razão do apoio do governo central, que temia o revanchismo liberal-monárquico. Esse fato ensejou que o frágil grupo político republicano regional pudesse interpretar forças proprietárias e sociais em ascensão e fortalecimento. Sobretudo durante a segunda metade do século 19, importantes setores urbanos e rurais – agricultura capitalista; agricultura familiar-camponesa, artesanato e comércio do Planalto e da Serra; plantadores do litoral e da Depressão Central; comércio e industrialistas de Porto Alegre, da Serra e do litoral, etc. – desenvolveram-se, arrebatando mais e mais a hegemonia econômica ao latifúndio pastoril do meridião sulino, em franca estagnação, em virtude da desqualificação crescente como mercadoria do charque. O processo de desenvolvimento diferenciado também se expressou em um crescimento demográfico diferençado das partes norte e sul do Rio Grande do Sul. Em 1920, quando esse fenômeno se encontrava consolidado, os municípios dos vales do Taquari e Caí, no norte do Rio Grande, possuíam, em média, 25 habitantes por quilômetro quadrado, enquanto a população dos antigos municípios da fronteira sul e oeste não ultrapassava os cinco habitantes por quilômetro quadrado, ou seja, cinco vezes menos!

Novo projeto, novo partido Na segunda metade do século 19, os grupos sociais sul-rio-grandenses economicamente ascendentes permaneceram à margem da representação política direta ou indireta, limitada aos partidos Liberal, intérprete sobretudo da grande criação pastoril-charqueadora, e Conservador, ligado principalmente ao grande comércio e aos interesses escravistas. Os setores politicamente marginalizados encontravam dificuldades em impor suas reivin-

248

dicações setoriais num contexto em que os interesses charqueador-pastoris dominavam a política rio-grandense. O minimalismo do aparato administrativo imperial no Rio Grande do Sul e no resto do Brasil, visto por autores como “caos administrativo”, interpretava os interesses do grande latifúndio, pastoril ou agrícola, que ocupava, legal ou abusivamente, múltipas esferas sociais atinentes ao Estado moderno. Essa situação contraditava com os interesses dos importantes setores produtivos sulinos não pastoris em desenvolvimento. Nos últimos anos do Império, a economia exportadora sulina, baseada sobretudo no charque, nos couros e na carne, conhecia importantes dificuldades, apresentadas pelos republicanos castilhistas como devidas ao esgotamento de um padrão de crescimento econômico atrelado à produção pastoril-charqueadora voltada ao abastecimento do mercado das outras províncias e do exterior, sobretudo. Na época, o PRR propunha diversificação da produção sulina, assentada no mercado rio-grandense, que garantisse crescentemente a autonomia do Rio Grande diante do Brasil e do exterior. Nesse sentido, expressava, com diverso conteúdo, a reivindicação autonomista farroupilha. Nos fatos, os republicanos propunham a ampliação da produção e reprodução das relações mercantis regionais pela ampliação do mercado capitalista sul-rio-grandense.

Os de cima e os de baixo Após a proclamação da República, a agricultura, o comércio, o artesanato da região colonial, plantadores capitalistas, industrialistas, comerciantes, o capital bancário, etc. aderiram – orgânica ou inorganicamente – ao projeto do PRR, já que a política de diversificação, de autonomia produtiva e de integração regional interpretava as principais reivindicações e necessidades desses setores, permitindo-lhes crescimento, impossibilitado pelo padrão pastoril-charqueador de exportação. Foi também significativa a adesão de setores médios urbanos interessados na proposta do PRR de qualificação e de expansão da intervenção do Estado. A ampliação física, a promoção e estabilidade salarial-profissional garantidas ao funcionalismo público pelo castilhismo-borgismo ampliaram as possibilidades de inserção-progressão social dos setores intermediários. Os investimentos na educação pública satisfaziam às reivindicações das classes médias e populares e às necessidades de uma sociedade produtivamente mais complexa. O programa republicano abria espaços significativamente maiores de expressão e de realização social, ainda que subalternizados, às classes plebeias e operárias. A diversificação produtiva estendia o mercado de trabalho. A proposta de integração do “proletariado” à “sociedade industrial” do positivismo comtiano correspondia às exigências da nova realidade regio-

249

nal, permitindo algumas concessões sociais, ainda que limitadas a alguns segmentos sociais. Apesar de restrito sobretudo à esfera pública e urbana, o castilhismo concedeu algumas das reivindicações importantes do movimento operário de então, entre elas, o regime “de oito horas de trabalho nas oficinas do Estado e nas indústrias; férias remuneradas aos trabalhadores do Estado; proteção aos menores, mulheres e velhos; direito de greve”, etc., como lembraria mais tarde o historiador Arthur Ferreira Filho, ferrenho castilhista. No Rio Grande do Sul, ao contrário de outras regiões do Brasil, a proclamação da República garantiu a transição do poder político do bloco social pastoril-charqueador oligárquico hegemônico para uma nova composição de setores proprietários, mais ampla, mais diversificada. Um novo bloco político-social, mais diretamente inserido na produção e circulação capitalistas, que contava com importante apoio nos segmentos médios e facções das classes subordinadas.

Mercado capitalista As políticas aduaneira e tributária e os importantes investimentos efetuados pela equipe republicano-castilhista na ampliação dos meios de comunicação – ferroviários, fluviais, lacustres e portuários – expressaram claramente a opção pela ampliação e generalização pelo espaço de produção e circulação capitalista no Sul. O historiador Sérgio da Costa Franco lembra que, apesar de a “ascensão dos castilhistas ao poder” não significar “substituição de uma classe social por outra no exercício do mando”, determinou a “promoção de novos segmentos que em geral tinham estado afastados da partilha das benesses do Estado”. A República sulina não significou revolução social, com a destruição das velhas classes dominantes pastoris latifundiárias pré-capitalistas e a consequente ascensão de classes subalternizadas. Porém, assegurou importantes modificações socioeconômicas, ampliando e generalizando a produção e as trocas capitalistas regionais, fazendo recuar, ou congelando tendencialmente, as formas de produção e de organização social pré-capitalistas. O novo regime castilhista interpretou as necessidades dos setores sociais mais dinâmicos, estabelecidos principalmente no norte e centro do estado, sobretudo ao fomentar a diversificação e autonomização econômica, pelo apoio à policultura, ao artesanato, à manufatura e à agricultura capitalista.

Produção e circulação mercantil A proposta castilhista-borgista de equilíbrio orçamentário e de não interferência na esfera econômica correspondia às necessidades de uma produção capitalista mercantil fortemente rural. Uma produção que crescia

250

através da extensão de sua área de atuação, permitida pela ampliação do mercado regional e nacional, sobretudo pela melhoria dos meios de transportes ferroviários, fluviais e lacustres. O castilhismo-borgismo não possuía antagonismos estruturais com a produção pastoril da Serra e da Campanha, à qual propunha opções modernizadoras. Em verdade, o novo padrão modernizador seguia dependendo fortemente das divisas obtidas no mercado nacional e internacional pela venda dos couros e do charque. Porém, a economia pastoril-charqueadora sulina defendia o liberalismo alfandegário e não se interessava pela ampliação do mercado regional, pois vendia seus produtos essencialmente no Brasil. Os federalistas viam os investimentos republicanos em obras infraestruturais, sobretudo na Depressão Central, na Serra e no Planalto, nas quais não estavam diretamente interessados, como desvios das rendas públicas de seus objetivos naturais, ou seja, a qualificação do espaço latifundiário-pastoril. Eles tinham, igualmente, ojeriza ao combate do castilhismo-borgismo ao contrabando, que dificultava as atividades econômicas, deprimia o poder de compra e pressionava a elevação dos salários pagos pelos proprietários pastoril-charqueadores. A repressão ao contrabando dificultava enormemente a simbiose em que grandes criadores mantinham suas propriedades no Rio Grade do Sul e no norte do Uruguai. À medida que o PRR expressou mais e mais o novo bloco social, em contradição com o latifúndio, republicanos históricos, positivistas ou não, com raízes materiais ou políticas com aqueles setores, abandonaram o PRR para expressar os interesses da grande propriedade pastoril, rompendo ideologicamente com o castilhismo-borgismo, em geral o acusando de ditatorial e antidemocrático, por não permitir a expressão política plena da velha oligarquia pastoril. O principal representante dessa defecção foi o republicano histórico Joaquim Francisco de Assis Brasil, que se tornaria o principal expoente político e ideológico do liberalismo pastoril rio-grandense.

O Governicho O fato de os federalistas e republicanos dissidentes conquistarem o poder regional durante o Governicho e terem sido facilmente defenestrados a seguir comprova a perda de dinamismo do bloco liberal-pastoril-latifundiário, centrado na metade sul do estado. Aqueles que defendem ter sido a estabilidade do castilhismo-borgismo produto, sobretudo, da institucionalização da violência são ao menos obrigados a explicar por que os federalistas não institucionalizaram sua hegemonia por meio da violência, apesar de a terem praticado, especialmente nos últimos meses de Governicho. A capacidade do PRR de se manter no poder dependia do consenso social que ensejara, não da repressão ditatorial. Ao contrário, era a coesão social que sustentava o castilhismo-borgismo que possibilitava o exercício

251

da violência sobre os opositores. Quando da chamada Revolução Constitucionalista, em 1932, o borgismo e o que restava do PRR ruíram sem maiores resistências. Nesse então, o projeto de Borges de Medeiros de autonomia político-econômica regional não mais interpretava as necessidades das classes dominantes regionais hegemônicas, agora interessadas na melhor inserção possível no mercado nacional em formação. O resultado do confronto, em 1893-95, entre castilhistas e federalistas, não era indiferente às classes trabalhadoras. A vitória do projeto modernizador dos republicanos – ainda que conservador e autoritário – significava, mesmo que fosse de forma indireta, um maior espaço econômico e social para as classes subalternizadas, como vimos. Porém, mesmo participando como soldados nas forças federalistas ou republicanas, as classes subalternizadas jamais expressaram de forma independente e clara suas reivindicações e opções, como projeto totalizante. E, quando o fizeram, foram duramente reprimidas pelo castilhismo-borgismo. Pica-paus e federalistas convergiam na necessidade de manter na submissão as classes populares e trabalhadores. A grande diferença é que os primeiros viam os trabalhadores manufatureiros e industriais como parte de modernidade que perseguiam e impulsionavam o crescimento desses segmentos com ações pró-capitalistas, ao passo que os segundos interpretavam aqueles sectores como excrecências da ordem natural pastoril-latifundiária sulina.

A revolução conservadora A historiografia sul-rio-grandense explica tradicionalmente o centralismo e o autoritarismo castilhista-borgista como decorrências dos princípios do positivismo comtiano, filosofia oficial do PRR. Ao contrário, é necessário explicar as razões e os interesses sociais que garantiram a adoção dessa filosofia como principal expressão ideológica do republicanismo rio-grandense, ou seja, o positivismo organizou ideologicamente o Estado republicano riograndense na República Velha porque se casava aos interesses das classes sociais emergentes daquele então. Ao contrário do que se propôs comumente, são essas classes e seus interesses que construíram o domínio do comtismo no Rio Grande. Os castilhistas compreendiam-se como defensores do Estado republicano sul-rio-grandense e brasileiro contra forças monárquicas restauradoras e lutavam para manter a autonomia federalista conquistada em 1889. Viam-se como intérpretes da ciência, do progresso e da civilização contra os antigos resquícios barbáricos do Império escravocrata. O autoritarismo castilhista não foi um exotismo ideológico. Como em outras regiões do mundo, a proposta de uma ditadura científica positivista permitia que o novo poder emergente mantivesse os fortes interesses oligárquicos pré-capitalistas afastados do poder, para melhor desenvolver o processo de transformações

252

econômicas e sociais em curso. Tudo isso no contexto da submissão das classes trabalhadoras subalternizadas. A impossibilidade da partição do poder entre castilhistas e federalistas devia-se à força que os interesses pastoril-charqueadores mantinham, em fins do século 19 e começo do século 20. Por meio do exclusivismo administrativo e político, o bloco castilhista-borgista implementou, mais fácil e mais amplamente, um amplo projeto econômico-social em claro antagonismo com as antigas classes oligárquicas hegemônicas. O castilhismo ensejou a fundação do moderno Estado rio-grandense, ampliando a produção e circulação capitalistas e fazendo recuar as supervivências pré-capitalistas na produção, extremamente importantes no pastoreio extensivo. Apesar de orientar as atividades para o mercado, a produção charqueador-pastoril, de baixa capacidade de acumulação, apoiava-se na renda da terra, na sua esfera de produção natural e, parcialmente, na forte exploração da mão de obra escravizada e, a seguir, em formas fortemente précapitalistas de assalariamento. A moradia e a comida consumiam boa parte da remuneração não monetária do peão, deprimindo inexoravalmente o mercado de consumo regional.

Programa modernizador O castilhismo-borgismo pôs limites à apropriação das terras públicas pelos latifundiários; taxou a propriedade – impostos sobre a transmissão da propriedade, impostos sobre imóveis rurais, imposto territorial (1903); dívida colonial, etc. Investiu fortemente nos meios de transportes; desenvolveu importante rede educacional; apoiou a policultura, a agricultura capitalizada, as manufaturas e a indústria. Quando foi necessário, para melhor garantir a expansão da produção e circulação capitalista no estado, interveio expropriando capitais privados, sobretudo internacionais, mesmo que, para tal fim, endividasse o Estado, renegando o axioma comtiano do equilíbrio orçamentário – estadualização da rede ferroviária e portuária rio-grandense. O castilhismo opôs-se social, política, ideológica e militarmente ao antigo bloco dominante hegemônico; interpretou bloco proprietário ascendente e exerceu sua dominação sobre as classes subalternizadas, do campo e da cidade. Expressou, assim, a essência medernizadora e conservadora de seu programa pró-capitalista de progresso na ordem. A virulência da Guerra Federalista registrou a tentativa dos setores latifundiários de voltarem ao controle do poder através das armas, lançando o Estado na guerra civil. Do resultado da Revolução Federalista dependeu a orientação da história rio-grandense nas décadas seguintes. Se os federalistas vencessem, as rendas estatais seriam empregadas na defesa dos decadentes interesses pastoris. A vitória dos pica-paus sobre os maragatos impediu que o Rio Grande do Sul se transformasse, no melhor dos casos, em um Uruguai

253

crioulo, sem o porto e os campos excelentes da Banda Oriental, ou, no pior, em um imenso Bagé! A repressão da ordem pré-capitalista e imposição do programa democrático-burguês, num sentido fortemente conservador, por segmentos das classes dominantes, sem a participação das classes exploradas, tem ensejado a defesa do castilhismo-borgismo como revolução passiva. Ruy Braga propõe sobre essa categoria gramsciana: “[...] passagens do capitalismo feitas por cima: elitista e anti-popular, sem a participação das classes populares. A modernização capitalista sem a realização de uma revolução democrático-burguesa de tipo jacobino. A revolução passiva é composta de dois momentos: conservação e inovação. A conservação impossibilitando a mudança radical e a inovação assimilando algumas demandas populares.” Um processo que ensejou a singularidade rio-grandense, muito forte na República Velha, em relação ao resto do Brasil.

A volta do rei Os federalistas foram tradicionalmente acusados de monarquistas, restauradores e separatistas. É mais correto propor que era forte entre eles a simpatia monarquista, já que sob aquela ordem tinham imposto a hegemonia regional da economia pastoril-latifundiária. Sobretudo após a morte de Pedro II, os federalistas compreendiam a impossibilidade da restauração. Não devemos esquecer que entre os federalistas se encontravam republicanos históricos dissidentes, em geral grandes fazendeiros da Campanha. Sentimentos separatistas eram também compartilhados por chefes rebeldes, sem que se transformassem em políticas ou ações concretas. O ideário federalista organizou-se em torno do anticastilhismo, regime apresentado como despótico, antiliberal e antidemocrático. As reivindicações dos federalistas de mais democracia e de mais pluralismo expressavam o programa de imposição da ordem oligárquico-republicana vigente no resto do Brasil. Tratou-se, sempre, de mais democracia e mais participação para os segmentos sociais proprietários marginalizados do exercício direto do poder, e jamais para as classes subalternizadas. Porém, uma vitória federalista colocaria certamente em discussão a adesão do Sul ao resto do Brasil. A economia pastoril-charqueadora da Campanha, articulada intimamente com os departamentos setentrionais do Uruguai, prescindia do norte do Rio Grande, onde imperava mais uma uma ordem e sociedade estranha ao latifúndio pastoril. Uma linha invisível, passando por Uruguaiana, Alegrete, Santa Maria, Rio Pardo e Porto Alegre, separava as duas regiões, a metade norte e a metade sul, dependentes, crescentemente, de organizações sociais e econômicas tendencialmente diversas. Durante a guerra, a defesa de projetos econômico-sociais divergentes pelos republicanos e pelos federalistas –, um propondo a superação do exclusivismo pastoril-charqueador pré-capitalista, o outro, a luta a todo custo para

254

a defesa do mesmo – expressou-se limpidamente na organização dos dois exércitos antagônicos, no relativo aos armamentos e às táticas de combate.

A metade sul, a metade norte Os principais líderes pastoris sabiam que podiam expandir seu controle sobre as Missões, eventualmente, mas que, na Depressão Central, na Serra e em enorme parte do Planalto Médio, havia setores sociais e econômicos que se oporiam, sem quartel, à restauração do domínio liberal-pastoril, encerrado com o fim da Monarquia. Portanto, não seria estranha a alguns chefes federalistas a ideia da separação da Campanha do Rio Grande do Sul e sua eventual adesão ao Uruguai, projeto na época já fantasioso. Em junho de 1892, em telegrama ao general Joca Tavares, Gaspar Silveira Martins lembrava sobre o confronto que se aproximava: “Como em 35, [a] guerra pode tornar-se de independência [...].” As essenciais transformações socioeconômicas em jogo explicam a violência que assumiu o confronto civil de 1893-95, com degolas, assassinatos políticos, saques, roubos, etc. Esse choque caracterizou a transição entre uma ordem assentada sobre a produção mercantil pastoril-latifundiária, com fortes supervivências pré-capitalistas, baseada nas grandes fazendas da fronteira, da Campanha e do norte do Uruguai, apoiada no pastoreio extensivo, e uma nova ordem, baseada em economia e classes sociais diversificadas, hegemonicamente capitalistas. A grande limitação da modernização castilhista-borgista da sociedade sulina foi sua negativa/incapacidade de pôr fim ao latifúndio, tarefa necessária ao desenvolvimento da produção manufatureira e industrial sulinas, que encontrou sempre grave handicap negativo no limitado mercado regional. A autonomia regional sonhada pelos filhos de Comte para o Sul exigia um forte mercado consumidor regional. A destruição da propriedade latifundiária, tarefa democrática que abriria maior espaço à economia agropastoril capitalizada e um mais amplo mercado à produção industrial, era programa que se encontrava além dos mais avançados sonhos modernizantes republicanos. A sua realização, mesmo que parcial, exigiria a impulsão e a mobilização das classes trabalhadoras, eventualidade abominada pelos republicanos e federalistas. Para tal, o Rio grande do Sul deveria transitar da revolução passiva à revolução ativa, sob a direção de bloco político-social com forte componente plebeia e trabalhadora.

Hipoteca sobre o progresso O castilhismo-borgismo tributou a terra e os produtos da economia pastoril latifundiária, aplicando esses recursos na diversificação da economia capitalista sulina; limitou a expansão física do latifúndio; apoiou a agricul-

255

tura capitalizada, etc. Porém, jamais propôs a destruição da propriedade latifundiária regional. A luta entre classes subalternizadas, a modernização castilhista e o latifúndio pastoril deram-se também no terreno das representações simbólicas. O Partido Liberal reivindicara o ideário farrapo, abandonando, porém, a proposta separatista. Nesse novo contexto, mantinha-se a identificação entre movimento farroupilha e Campanha-fronteira. O PRR resgatou a saga farroupilha, sobretudo no que dizia respeito ao republicanismo, à autonomia regional, à sociedade cidadã, propondo-a como ideário de toda a população sulina, não apenas do meridião pastoril. Agora, todo o sul-rio-grandense passava a ser um farroupilha, mesmo quem tivesse nascido na região colonial ou em meio urbano. Apesar da vitória política e econômica da cidade sobre o campo, em 1893-95, no relativo às representações simbólicas, venceram os grandes fazendeiros. A partir de meados do século seguinte, fortaleceu-se a identificação da Revolta Farroupilha (1835-45) como representação máxima do ideário da sociedade pastoril-latifundiária, através de verdadeira invenção da tradição pelo movimento tradicionalismo. A modernização castilhista do movimento farrapo naufragou por falta de qualquer identidade histórica, em razão do seu conteúdo essencialmente moderno, apesar de autoritário. Porém, os positivistas também deixaram profundas marcas nas representações ideológicas do passado. Adeptos das ideias da hierarquia racial e do papel prometeico do herói das chamadas “elites”, intelectuais comtianos propuseram um inevitável destino radioso para o Sul em virtude da pretensa inexistência ou pouca importância da população de origem africana no seu passado. Auguste Comte defendia a inferioridade dos negros diante dos brancos. Arthur Ferreira Filho, lídimo historiador positivista, em História geral do Rio Grande do Sul realizou verdadeiro esforço para não abordar a questão servil. Ao se referir à Abolição, em desacordo com a documentação histórica que conhecia, afirmou que o “Rio Grande, relativamente a outras províncias, possuía um número reduzido de cativos”, e concluiu propondo que “o escravagismo não encontrava ponto de apoio no temperamento liberal dos gaúchos”.

O Rio Grande do Sul na República Velha Derrotados na guerra civil de 1893-95, os federalistas amargaram longo ostracismo político e social. Nos anos seguintes ao confronto, o PRR manteria firmemente seu poder sobre o estado por meio das novas instituições estaduais e da Brigada Militar. Os chefes republicanos municipais desempenharam, igualmente, importante função como correia de transmissão entre o poder estadual e as comunidades locais.

256

No Rio Grande do Sul, ao contrário de outras regiões do Brasil, o poder estadual não estava apoiado nos grandes fazendeiros, investidos na chefia política municipal. Portanto, não conheceu o coronelismo tradicional da República Velha no resto do Brasil. Comumente, o chefe político municipal sulino era originário das classes médias profissionais, não o mais rico proprietário republicano fundiário local. A subordinação dos chefes políticos regionais ao presidente do estado e ao PRR levou a que a historiografia criasse a categoria coronel burocrata. Efetivamente, no Sul, o coronel republicano não substituiu o Estado, mas era, ao contrário, de certa forma, parte dele. Os grandes chefes republicanos que desafiaram o PRR foram liquidados politicamente sem grandes dificuldades, um após o outro. Eleito em novembro de 1897, Antônio Augusto Borges de Medeiros assumiu a presidência do Rio Grande do Sul em 25 de janeiro de 1898. Havia sido apresentado por Júlio de Castilhos, dedicado às coisas do partido, que, absolutamente satisfeito com seu desempenho administrativo, designou-o, em 25 de novembro 1902, novamente como candidato do PRR à principal magistratura estadual. Portanto, não houve grande trauma político quando Júlio de Castilhos, fumante inveterado, morreu, em 24 de outubro de 1903, com apenas 43 anos, devido à operação de um câncer na garganta, causando profunda perplexidade na população rio-grandense. Em 31 de outubro, Getúlio Vargas, jovem acadêmico de direito discursou durante a homenagem fúnebre a Castilhos. Após a morte de Castilhos, Antônio Augusto Borges de Medeiros, com 39 anos, passou a concentrar, ferreamente, o poder sobre o PRR e a gestão do estado. Essa transição política indolor comprovava, igualmente, que no Rio Grande a ditadura científica propugnada por Auguste Comte expressava o consenso do bloco social então dominante, não a paixão de Castilhos pelo poder.

Início do borgismo Borges de Medeiros nascera em Caçapava do Sul, em 1863, na Campanha; formara-se em Direito em São Paulo, em 1885, e participara da organização do PRR desde sua fundação; integrara a Constituinte de 1891 e, durante a guerra de 1893-95, combatera na Divisão do Norte. Com a vitória republicana, fora chefe da polícia estadual, entre outras funções. O novo chefe político republicano era federalista, positivista, autoritário, adepto da ortodoxia financeira e homem de poucas posses, possuindo pequena propriedade rural em Cachoeira. Morreu em Porto Alegre em 1961. Borges de Medeiros reformou o sistema tributário e instituiu o imposto territorial, velha proposta republicana. Prosseguindo na senda de Castilhos, investiu nos meios de transporte e na educação primária, profissional

257

e superior. Na sua gestão, decretaram-se os códigos de Processo Penal, do Processo Civil e do Processo Comercial. Borges aprofundou o intervencionismo municipal pela institucionalização do intendente provisório. Borges de Medeiros não concorreu à reeleição, indicando como candidato do PRR médico da fronteira meridional politicamente inexpressivo, ainda que homem de grandes posses, o médico Carlos Barbosa Gonçalves (18511933), chefe político de Jaguarão. Manteve, porém, firmemente, o comando sobre o PRR. A preterição do nome de Fernando Abbott (1857-1924), chefe político de São Gabriel, propiciou que este se apresentasse como candidato republicano dissidente pelo Partido Republicano Democrático, de efêmera existência, fundado em Santa Maria sob sua liderança e de Assis Brasil, também originário de São Gabriel, importante centro pastoril da Campanha. Assis Brasil abandonara o serviço diplomático para se entregar à política. Em 1907, os republicanos dissidentes receberam a adesão de apenas alguns poucos líderes federalistas em razão das feridas ainda não cicatrizadas surgidas quando da guerra civil de 1893-95. O PRD exigia a autonomia municipal e a restituição das prerrogativas do Legislativo; opunha-se ao financiamento da empresa colonial, às barreiras alfandegárias e ao apoio à industrialização. Os republicanos dissidentes defendiam também a diminuição dos impostos sobre a propriedade da terra, a redução das taxas sobre as importações e que a educação se voltasse, sobretudo, às coisas do campo. Durante congresso do PRD, Assis Brasil afirmou que, sem o contrabando, a “vida seria impossível” no Sul e pronunciou-se pelo “livre câmbio” contra o “protecionismo” industrialista: “[...] minha teoria é que o livre câmbio é o ideal do comércio [...]: a boa regra é que cada um produza aquilo que as suas aptidões e recursos o habilitam a fazer melhor e que as sobras da produção de cada um se troquem livremente [...].” O Partido Republicano Democrático de Fernando Abbott e Assis Brasil expressava limpidamente as reivindicações da propriedade latifundiária pastoril e propunha a consolidação do Rio Grande do Sul como espaço agrário-pastoril-latifundiário mercantil.

Geração de 1907 Assis Brasil defendia não haver “no Brasil questão social” já que faltavam as condições estruturais para tal, por causa da “abundância de trabalhadores e à falta de trabalho”. Para o senhor do Castelo de Pedras Altas, tal fenômeno se devia também ao fato de não termos “classes irreversivelmente separadas em uma terra em que a fortuna ou a representação social podem sorrir a todos quantos não sejam incapazes por natureza”. Na sua maturidade, repetia as visões piedosas e apologéticas sobre a sociedade pastorillatifundiária sulina que expressara pela primeira vez quando estudante, em 1882, ao escrever História da República Rio-grandense.

258

Durante as eleições de 1907, um grupo de jovens e ambiciosos universitários das faculdades de Direito, Engenharia, Medicina e Escola de Guerra formou o “Bloco Acadêmico Castilhista” para defender o candidato governista e a ortodoxia castilhista e positivista. Para melhor participar da campanha, os acadêmicos fundaram O Debate, financiado pelos setores mais abastados do PRR, voltado à discussão da política, literatura, ciência e aos novos comportamentos. Um dos redatores da publicação era Getúlio Vargas, originário de uma família de fazendeiros remediados de São Borja, nas Missões, na fronteira com a Argentina. Por meio da intervenção no pleito eleitoral, o grupo de jovens castilhistas integrou-se ao aparato do PRR. Ampliado, ele foi denominado pelos historiadores de “Geração de 1907” – Eurico Gaspar Dutra, Flores da Cunha, Getúlio Vargas, João Neves da Fontoura, Lindolfo Collor, Oswaldo Aranha, Pedro Góes Monteiro. Nas eleições de 25 de novembro de 1907, votaram pouco mais de 77.500 eleitores, e Abbott, fragorosamente derrotado, recolheu mais de 80% dos votos em São Gabriel, região onde nascera e assentava seu poder político. Mesmo se opondo programaticamente à ditadura pessoal, o PRD defendia ordem elitista na qual o poder era exercido apenas pelas classes tidas como superiores. Apesar dos seus esforços, a dissidência republicana foi incapaz de obter a adesão dos federalistas, mantendo-se inconteste o poder borgista até inícios dos anos 1920. Durante a gestão de Carlos Barbosa, Borges de Medeiros permaneceu na chefia do PRR sem aceitar cargos administrativos, dedicando-se, segundo parece sem grandes resultados, à plantação do arroz irrigado em terras arrendadas na Barra do Ribeiro, próximas a Porto Alegre. Por dificuldades econômicas e negando-se a advogar por razões éticas, sua esposa teve de costurar para fora. Durante a gestão de Carlos Barbosa, impulsionou-se a ampliação das redes ferroviária e rodoviária sulinas e, em 1912, o governo assumiu a responsabilidade pelo porto de Porto Alegre, substituindo os arcaicos trapiches por moderno cais. Durante o período governamental, construiu-se o palácio Piratini, revestido em pedras brancas importadas da França, e fundaram-se o Instituto de Belas Artes e a Faculdade de Direito de Pelotas.

Autonomismo gaúcho De 1908-1913, impulsionado pela nova doutrina indigenista de cunho positivista, que defendia o respeito às tradições e à evolução natural das populações nativas, o governo estadual demarcou as terras indígenas, sobretudo no norte do estado. As primeiras reservas nativas na região haviam sido delimitadas, em meados do século 19, quando da abertura do passo de Goio-en, no rio Uruguai, e da nova rota das tropas em direção a Sorocaba – Caminho Novo das Missões.

259

Em 1922, encontravam-se estabelecidas as reservas de Cacique Doble (5.500 ha), Carreteiro (600 ha), Guarani (740 ha), Guarita (23.190 ha), Inhacorá (5.860 ha), Ligeiro (4.550 ha), Nonoai (34.900 ha), Serrinha (11.950 ha), Ventarra (730 ha) e Votouro (3.100 ha) Nas décadas subsequentes prosseguiria o processo de apropriação privada das terras nativas, apesar de suas diminutas extensões. Em 1984, o toldo de Nonoai perdera vinte mil hectares em relação à demarcação inicial. Nos anos 1910 o Rio Grande constituía a terceira força política no cenário nacional. Entretanto, o assassinato de Pinheiro Machado, em 8 de setembro de 1915, com duas facadas pelas costas, no Hotel dos Estrangeiros, no Rio de Janeiro, pelo padeiro Manso de Paiva, maragato de Jaquarão, determinou que o estado perdesse influência política nacional, aprofundandose a tendência borgista ao isolamento. José Gomes Pinheiro Machado nascera em Cruz Alta, no Planalto, em 8 de maio de 1851, filho de advogado paulista que fizera fortuna na profissão e comprara diversas fazendas, entre as quais a de São Luís Gonzaga, de nove léguas, onde criara a família. Com 21 anos, Pinheiro Machado conduzia tropa de mulas para São Paulo, atividade da qual jamais se separaria, apesar de sua atribulada vida política. Após lutar, ainda adolescente, como voluntário na Guerra do Paraguai (1865-1870), formara-se em direito em São Paulo, em 1878. Pinheiro Machado participou do assalto republicano ao governo sulino em 1889, foi eleito senador da República em 1891, lutou na Guerra Civil Federalista de 1893 a 1895 e transformou-se, a seguir, no grande representante do Rio Grande do Sul, na política nacional e junto ao poder federal. Pinheiro Machado tornou-se na verdadeira “eminência parda” da República Velha. Em 1910, como principal porta-voz no Senado do governo de Hermes da Fonseca, Pinheiro Machado apoiou a ruptura da anistia dada aos marinheiros negros revoltados contra a chibata e defendeu o infame massacre de marujos do navio “Satélite”. O principal líder público daquele movimento, o marinheiro negro João Cândido, descendente de escravos, era originário de Rio Pardo, no Rio Grande do Sul. Em 1912, criou-se a União dos Criadores com o objetivo de representar a categoria. A associação promoveu o desenvolvimento tecnológico da economia pastoril e procurou organizar a categoria diante dos charqueadores, que forçavam a depressão do preço do boi, como compradores quase exclusivos dos animais. Lançado como candidato por Pinheiro Machado à sucessão de Carlos Barbosa, Borges de Medeiros foi eleito em 25 de novembro de 1912, tomando novamente posse como presidente do estado em 25 de janeiro de 1913, mantendo-se no poder até 1928, devido a repetidas reeleições. Em 1915, o médico Ramiro Barcellos, de Cachoeira do Sul, influente republicano histórico, rompeu com o PRR, que, por indicação de Pinheiro Ma-

260

chado, preterira seu nome em favor de Hermes da Fonseca como candidato ao Senado. Em 14 de julho, em Porto Alegre, comício contra a candidatura de Hermes da Fonseca foi dissolvido a tiros, com sete a nove mortos. Em razão da desfeita, Ramiro Barcellos publicou, no mesmo ano, Antônio Chimango, sátira política em versos do positivismo governamental sul-rio-grandense, de indiscutível qualidade literária e valor histórico. Durante o longo período governamental de Borges de Medeiros, os portos de Rio Grande e de Porto Alegre foram encampados e modernizados; encampou-se e ampliou-se a rede ferroviária estadual; foram construídos o Hospital São Pedro, o Arquivo Público, o Colégio Júlio de Castilhos, a Biblioteca Pública (1912-1922), o Quartel-General da Brigada Militar, o Palácio da Fazenda e das Obras Públicas. Grande atenção foi dada à ampliação da rede ferroviária, principal meio de transporte da época. Desde fins do século 19, haviam sido fundadas quatro escolas superiores na capital – Direito, Engenharia, Medicina e Farmácia, Escola de Guerra. Entretanto, no início do século 20, apesar desses avanços, Porto Alegre seguia sendo capital relativamente acanhada, com serviço de luz precário, sem esgoto cloacal e pluvial, com abastecimento limitado de água encanada. Em 1920 consolidara-se o novo perfil do Rio Grande. Os municípios com propriedade com mais de 5001 ha – Alegrete, Bagé, Bom Jesus, Cruz Alta, Dom Pedrito, Itaqui, Júlio de Castilhos, Santana do Livramento, São Borja, São Gabriel, Uruguaiana, etc. – encontravam-se sobretudo no sul do estado. Ao contrário, em maioria, os municípios com pequenas propriedades estavam no norte e, sobretudo, no nordeste do estado. Antônio Prado, Bento Gonçalves, Caxias, Garibaldi, Guaporé, São Leopoldo e Torres não possuíam, na época, propriedades com mais de mil hectares.

A pequena e a grande propriedade Em 1920, nos latifúndios eram comuns o arrendamento e a administração através de capatazes e prepostos. Em Uruguaiana, São Borja e Rio Grande, mais de 20% das propriedades eram arrendadas. Nas pequenas propriedades, dominava a administração direta. Em alguns municípios, como Caxias, Garibaldi, São Leopoldo, Torres e Viamão, mais de 95% das propriedades eram geridas pelos proprietários. Por esses anos, a produção charqueadora sulina, ainda a principal exportação rio-grandense, sofria a dura concorrência uruguaia, que abatia praticamente o dobro do gado sacrificado no sul do Brasil. Metade do gado charqueado no Rio Grande chegava aos saladeiros pelotenses após desgastantes viagens de 10 a 25 dias. Então, Bagé, servido por estrada de ferro, era responsável por um quarto das exportações de charque e couro.

261

Nas duas primeiras décadas do século, prosseguiram a diversificação produtiva e o crescimento manufatureiro, sobretudo no norte do Rio Grande do Sul. Nesses anos, o programa republicano de crescente tributação da terra, criado para substituir os impostos sobre as exportações, pesava, sobretudo, sobre a economia pastoril latifundiária. Em 1890 o charque representava 30,3% das exportações sulinas. De 1907 a 1927, sua produção subiu de cinquenta mil para aproximadamente 61.500 t. Neste último ano, apenas 17,8% das exportações sulinas deviamse ao produto, em um momento que aumentara significativamente o mercado interno rio-grandense. Durante a República Velha, o charque e os couros, no passado as principais e quase únicas mercadorias exportadas pelo Sul, mesmo prosperando timidamente em valores absolutos, perderam crescentemente importância na própria pauta das exportações. O charque sulino sofria a concorrência da produção do Prata e desqualificava-se como mercadoria alimentar com o surgimento das novas técnicas de refrigeração da carne introduzidas no Uruguai e na Argentina. As exportações do charque rio-grandense recuavam no mercado internacional e o produto transformava-se em mercadoria dirigida sobretudo à população pobre brasileira, de baixa capacidade de consumo. A produção e a exportação de couros mantiveram-se também estagnadas, tendo sido ainda pior a sorte dos subprodutos da produção charqueadora – cabelos, graxa, guampas, ossos –, inexoravelmente deslocados no mercado internacional por novas matérias-primas. Apenas o desenvolvimento de um novo produto – a lã ovina – opunha-se à tendência de estagnação vivida pela Campanha. Em 1916, as lãs eram responsáveis por 4,3% das exportações rio-grandenses e grandes quantidades do produto eram consumidas pela nascente indústria têxtil regional. Entretanto, as lãs rio-grandenses eram de qualidade significativamente inferior às platinas.

A hora e a vez do Norte A situação do norte do estado era distinta. Em 1866, pela primeira vez, o Rio Grande do Sul exportava a banha suína colonial. Rapidamente, o produto conquistou o mercado regional e nacional. De 1907 a 1927, o valor de suas exportações cresceu 1000%! Em 1927 a banha era responsável por 19,7% das exportações regionais e o charque, por apenas 17,8%. Suprema humilhação – o desengonçado e mal-afamado bicho serrano ganhava, ao nobre animal da fronteira, por um focinho, a cancha reta das exportações! E, enquanto o charque era a única grande mercadoria produzida e exportada pela Campanha, a banha era apenas o principal produto da economia do norte do estado, que produzia alfafa, alho, arroz, batata, cebolas, erva-mate, feijão, fumo, mandioca, milho, trigo, uva, entre outras mercadorias. A policultura colonial-camponesa alimentava, sobretudo, o mercado

262

interno regional e os excedentes eram exportados principalmente para os mercados brasileiros e do Prata. Os imigrantes alemães haviam introduzido o arroz no Sul. A orizicultura foi a primeira lavoura rio-grandense tipicamente capitalista. No final do século, arroz irrigado era plantado em Taquara e Santa Cruz, sobretudo. Logo surgiram plantações nos campos que iam de Porto Alegre a Pelotas, em geral organizadas em propriedades de cem a quinhentos hectares arrendadas, não raro com o investimento de capitais excedentes originários da produção pastoril. Nessa produção havia clara separação entre a renda da terra, entregue ao proprietário fundiário, e a renda do capital, obtida pelo rizicultor, por meio de investimentos em máquinas, trabalhadores especializados, preparação do terreno, etc. Em 1906 lei nacional protegeu a produção sulina de arroz, que era vendida no Prata, abastecia o Brasil e tinha amplo mercado no Rio Grande. Nos anos 1920 o produto era responsável por 10% das exportações sulinas. O feijão e o fumo assumiam também importância relativa na produção e exportações sul-rio-grandenses. O estado produzia e exportava também batata, cebola, farinha de mandioca e vinho. Com a ocupação colonial do Planalto e da Serra, os pinhais passaram a ser abatidos e a madeira foi explorada e exportada, sobretudo através do rio Uruguai, em balsas. A República deslocara definitivamente os liberais federalistas do poder, desde inícios do século 19 tradicionais representantes dos interesses pastoris, sobretudo do meridião sulino. O desenvolvimento da Depressão Central, da Encosta da Serra e do próprio Planalto, num momento em que a Campanha estagnava econômica e demograficamente, consolidou a decadência política das forças federalistas vergadas militarmente quando da guerra civil de 1893-95. Como assinalado, a concessão republicana do direito eleitoral aos adultos do sexo masculino alfabetizados estendera o direito ao voto aos pequenos proprietários e às classes médias sulinas, sobretudo do norte do estado. Esse processo diluíra a base eleitoral dos grandes fazendeiros, baseada em regiões de escassa população, localizadas principalmente no sul do estado, em razão da produção pastoril latifundiária dominante, que exigia escassa mão de obra, ensejando baixo desenvolvimento demográfico.

Maragatos e pica-paus Na República Velha, os maragatos – descendentes políticos diretos dos farroupilhas – articularam-se, de forma mais ou menos organizada, em diversas siglas políticas: o Partido Federalista (1892), o Partido Republicano Democrático (1907), a Aliança Libertadora (1924) e o Partido Libertador (1928). No mesmo período, o novo bloco social emergente manteve o poder, em forma autoritária, por meio do PRR. Os republicanos eram chamados de “chimangos”, “pica-paus”, “castilhistas” e “borgistas”.

263

Durante o Império, o Estado imperial e o regional haviam interpretado, bem ou mal, os interesses dos grandes criadores sulinos. Com a República, ao contrário, os recursos estaduais passaram também, e sobretudo, a apoiar as necessidades das classes proprietárias do norte do estado – agricultura, policultura, manufatura, indústria, criação, etc. O castilhismo/borgismo interpretava a necessidade da ampliação do mercado capitalista regional, exigido por setores sociais significativamente mais amplos. Para a administração castilhista, o ideal econômico era a diversificação produtiva e a autossuficiência regional, sobretudo agrícola, pela ampliação e integração do mercado sulino, ensejadas, sobretudo, pelo desenvolvimento da rede ferroviária e do sistema portuário sulinos. Essa política apoiava também a diversificação da pauta das exportações rio-grandenses. Num contexto em que o mercado regional passava a desempenhar papel crescente, era impensável a defesa incondicional da produção pastoril-charqueadora, voltada e dependente da exportação para o resto do país. Como intérprete do novo bloco social no poder, o PRR apoiava a diversificação econômica e a policultura, apresentando-as como solução para a decadência estrutural da produção pastoril-charqueadora. Ao contrário, os latifundiários e charqueadores afirmavam que a decadência da pecuária e das charqueadas devia-se ao fim do apoio estatal dado às atividades durante o Império. Portanto, era violenta a luta política pelo controle dos recursos do Estado. A oposição liberal-federalista conclamava o governo a defender o boi, como a administração de São Paulo defendia o café. Ao contrário, os políticos e ideólogos do castilhismo consideravam os criadores um fenômeno do passado e olhavam para a Serra, encantados com os vagões de alimentos que desciam até Porto Alegre, distanciando a capital, mais e mais, dos antigos centros urbanos de Pelotas e Rio Grande. O criador latifundiário começava a ser visto como algo anacrônico, pertencente ao passado. No Império, os proprietários pastoris haviam sido contra a imigração colonial, que ocupava a administração e investia recursos num setor e em regiões que não lhes interessavam, pois não lhes proporcionavam ganho algum. Para realizar a ocupação do Encosta Superior do Planalto com três colônias, o governo imperial teve de recuperar as terras entregues para esse fim ao governo provincial, que não obtinha os recursos para tal, em razão do controle da Assembleia provincial pelos liberais, desinteressados e opostos à imigração colonial-camponesa.

Mais colonos Apesar de se opor à colonização subvencionada, o PRR criou as melhores condições para a continuidade da colonização espontânea, organizada com iniciativas colonizadoras privadas. Os loteamentos coloniais permitiam que particulares obtivessem grandes lucros com o parcelamento e venda de lotes coloniais. 264

A política de apoio à imigração e à pequena propriedade encontrava-se em oposição ao positivismo comtiano, expressão da ordem capitalista europeia em consolidação, que via a pequena propriedade como um entrave ao progresso. Mesmo assim, o governo estadual organizou colônias oficiais em Sobradinho (1901), Anta Gorda (1902), Erechim (1908), Ijuizinho (1910), etc., dotando-as da infraestrutura mínima necessária – estradas, escolas, prefeituras, etc. O governo sul-rio-grandense apoiou com outras medidas a imigração. Em 1903 reconheceu a propriedade aos imigrantes que ocupavam lotes coloniais. Como o governo federal pagava a passagem do imigrante da Europa até o porto de Rio Grande, a administração estadual responsabilizou-se pelo seu transporte até as colônias. Como assinalado, foi também ativa a ação governamental quanto ao desenvolvimento dos meios de transporte. Quase como consequência natural das duas grandes e tradicionais áreas econômicas sulinas, com seus dois principais centros de escoamento de mercadorias – Porto Alegre e Rio Grande –, foram articuladas duas malhas ferroviárias, organizadas em torno dos eixos Porto Alegre–Santa Maria, por um lado, e Pelotas–Rio Grande, pelo outro. Os contatos com os portos de Rio Grande e Porto Alegre eram feitos por via aquática, como durante a Colônia e o Império. Na Depressão Central, Santa Maria despontou como grande entroncamento ferroviário. Saindo da Margem do Taquari, uma estrada de ferro passava por Santa Maria (1885), Alegrete e Uruguaiana (1907). Também de Santa Maria, uma nova ferrovia chegava a Cruz Alta (1893), Carazinho (1899), Passo Fundo (1900), Erechim, rio Uruguai (Marcelino Ramos) (1910). Em 1910 o transporte ferroviário ligou Caxias à capital. No sul do estado, uma ferrovia ligava Cacequi, Bagé e Pelotas a Rio Grande. A linha tronco norte, Santa Maria–Marcelino Ramos, tinha 514 km. O governo estadual ampliou a rede rodoviária estadual, priorizando a zona colonial em virtude da topografia do terreno, do tipo de produção e da crescente força econômica e política da região. Em 1910 realizou-se o I Congresso Agrícola do Rio Grande do Sul, em Pelotas, com a participação de Assis Brasil, do escritor Simão Lopes Neto e do jesuíta Maximiliano von Lasberg.

Pedindo emprestado Para acelerar e desonerar as importações e exportações, o governo estadual encampou a barra e o porto de Rio Grande (1919) e a Viação Férrea (1920), nas mãos de interesses estrangeiros, que prestavam serviço reconhecidamente ineficiente, preocupados apenas em encaixar lucros. Também em 1919, o governo destinou verbas para a exploração de minas de carvão em Gravataí, produto necessário ao transporte ferroviário sulino.

265

Para proteger os interesses das classes proprietárias regionais, o Estado republicano restringia o espaço privado e ampliava o público, sob violenta crítica da oligarquia latifundiária. Nessas ocasiões, a intervenção do Estado na economia em apoio aos interesses da produção “econômica” ou “industrial” foi defendida pelo deputado Getúlio Vargas, em nome do governo, e violentamente atacada pela oposição latifundiária. A oposição riograndense chegou a acusar o governo estadual de “socialização dos serviços públicos”. A doutrina positivista propunha a neutralidade governamental diante dos interesses sociais particulares e o equilíbrio das contas públicas. O Estado deveria interferir na ordem pública apenas para garantir o livre desenvolvimento da iniciativa individual, sem apoiar grupos específicos, limitando-se a iniciativas relacionadas à educação, ao transporte e à indústria. Esses princípios programáticos serviram para rechaçar as crescentes reivindicações dos criadores do meridião, sobretudo no relativo ao crédito. Porém, quando interesses econômicos considerados fundamentais para o PRR estavam em jogo – encampação da barra de Rio Grande e da Viação Férrea – esse princípio foi desrespeitado e o governo não recuou diante do endividamento. A intervenção do Estado borgista nos serviços públicos deu-se segundo princípios estratégicos: “Presidindo ao livre jogo das forças econômicas, compete ao Estado exercer uma ação reguladora, na medida das necessidades indicadas pelo bem público. Deriva-se dessa concepção o princípio que aconselha subtrair da exploração particular, privilegiada, tudo quanto se relaciona com o interesse da coletividade. É a socialização dos serviços públicos, exprimindo essa designação genérica que a administração de tais serviços deve estar a cargo exclusivamente do poder público.” Em Estado e capitalismo, Octávio Ianni lembra nesse sentido: “[...] regra geral os governantes decidem encampar uma empresa para evitar que a taxa média de lucro de todas outras empresas privadas, em conjunto, seja afetada pela baixa acentuada daquela. O sistema de mercado expulsa do seu seio, colocando-a sob a tutela do Estado, a empresa cuja produtividade marginal é limite. [...] Note-se, contudo, que a encampação ocorre para que o sistema global continue em funcionamento.” O mesmo uso da doutrina e retórica positivista em favor das classes e interesses econômicos privilegiados foi realizado no relativo aos impostos. O positivismo propunha a extinção de impostos indiretos e a primazia da tributação direta. A Constituição sul-rio-grandense definiu o fim dos impostos sobre as exportações, que seriam gradualmente substituídos pela tributação da propriedade territorial, segundo seu valor patrimonial. Instaurada em 1902, a tributação da propriedade da terra, abominada pelos latifundiários, não resultou no fim dos impostos sobre as exportações, que foram, porém, reduzidos. Inicialmente, pôs-se fim à taxação linear de

266

4% que pesava sobre a exportação de todas as mercadorias, rebaixando as taxas de alguns produtos e onerando a saída dos charques e dos couros em 6 e 8%, respectivamente. A decisão prejudicava claramente os interesses dos fazendeiros da Campanha e transferia recursos desse setor para os privilegiados pelo governo. A tributação da propriedade fundiária era calculada sobre a extensão e sobre o valor venal das propriedades, sem incorporar as benfeitorias. Esse cálculo prejudicava os grandes criadores de baixa produtividade, com grandes extensões de terra e escassas benfeitorias, e favorecia os pequenos proprietários coloniais, de produção intensiva, pouca terra e importantes benfeitorias. As terras mais ricas, mais valorizadas e mais tributadas eram as da fronteira.

267

19 Rio Grande do Sul: a industrialização na República Velha O processo de industrialização rio-grandense assentou-se, sobretudo, na acumulação de capitais originária propiciada pela produção pastoril e charqueadora, com centro no meridião no Rio Grande do Sul, por um lado, e na economia colonial-camponesa, sobretudo teuto-italiana, localizada nas encostas inferior e superior do Planalto, por outro. Desde inícios do século 19, oficinas e ateliês voltados à produção de alimentos, vestuário, materiais de construção, etc. eram comuns no Sul, sobretudo em Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas. Essas pequenas unidades produtivas abasteciam o limitado mercado local e, secundariamente, regional com produtos rústicos. No Rio Grande, sobretudo no século 18 e grande parte do 19, era muito forte a produção doméstica e de subsistência nas grandes e pequenas unidades produtivas. As formas de produção escravista e pré-capitalista mantinham muito reduzido o consumo. A circulação de mercadorias importadas e produzidas localmente realizava-se com relativa facilidade apenas nas regiões servidas por meios aquáticos de transporte. Carretas e mulas bruaqueiras distribuíam, com dificuldade e a alto preço de transporte, as mercadorias no resto do território. A distância das diversas regiões dos centros comerciais dependia da maior ou menor facilidade dos meios de transportes. Em 1857, a capital sulina teve seu primeiro estaleiro. Em 1865, possuía umas quarenta pequenas manufaturas de caldeiras, chapéus, charutos, latas, selas, tamancos, velas, etc. Comumente, essas empresas trabalhavam também com a mão de obra escravizada. Em 1866, o mineiro inglês James Johnson, associado a João Ferreira de Moura, obteve o direito de explorar a mina de carvão de Arroio dos Ratos.

Artesanato colonial alemão Foi precoce a gênese da produção artesanal nas regiões coloniais alemã e italiana. Em 1824, colonos de língua alemã estabeleceram-se no vale do rio dos Sinos, a uns trinta quilômetros de Porto Alegre, em colônias de setenta hectares, obtidas inicialmente de forma gratuita. Desde os primeiros tempos, mas sobretudo a partir de 1840, eles se dedicaram à policultura de subsistência e venderam, sobretudo na capital, o excedente da produção, para comprar açúcar, pólvora, tecidos, ferramentas, etc. De 1860 a 1890, essa economia colonial-camponesa reforçou a esfera mercantil, especializando sua produção agrícola para o mercado, sobretudo com a ligação ferroviária com a capital, em 1874. Então, até 1930, a queda tendencial da fertilidade da terra e a divisão dos lotes rurais em minúsculas

268

parcelas, em virtude da divisão entre os herdeiros, levaram à especialização no engorde de suínos para a produção e venda da banha, atividade que alcançou grande desenvolvimento. Na Europa, muitos emigrantes dependiam para viver mais ou menos do artesanato, em razão do pequeno tamanho do lotes explorados. No Brasil, procuravam produzir tudo o que pudessem, gerando ativa e variada produção artesanal doméstica – conservação de alimentos, produção de instrumentos de trabalho e vestuário, etc. A importância desse artesanato aumentava em relação direta à autonomia econômica das unidades colonialcamponesas. Com a consolidação das parcelas agrícolas coloniais, ao longo das picadas e nos pequenos centros urbanos surgiram minúsculas unidades artesanais, que produziam ferramentas, objetos domésticos, vestuário, arreios, carroças, etc. No contexto dessa importante divisão do trabalho, a produção artesanal colonial teria conhecido quatro grandes fases: instalação, expansão, especialização, estagnação/crise/metamorfose. De 1830 a 1845, surgiram e consolidaram-se as primeiras unidades artesanais especializadas de São Leopoldo, utilizando intensamente a madeira, abundante na região, e o couro, que chegava, a baixo preço, das charqueadas e das fazendas do sul e do norte da província. Inicialmente, os artesãos trocavam o couro cru da Campanha e do Planalto “por encomendas de selas, lombilhos, arreios, botas, retalhos, barrigueiras, cintos”, etc., como assinala Sérgio Schneider em Agricultura familiar e industrialização: pluriatividade e descentralização industrial no RS, de 1999.

Selas e arreios De 1845 a 1874, com o enriquecimento da economia colonial-camponesa, multiplicaram-se as vendas e as unidades artesanais especializadas nas picadas e aglomerações da região. Nos núcleos urbanos, as pequenas oficinas coureiras prosseguiram fornecendo grande diversidade de produtos, com destaque para as selas, arreios e atrelagens para carretas e carroças. Essa diversificação, determinada pela estreiteza do mercado, dificultava fortemente a especialização. As pequenas unidades artesanais operavam com a força de trabalho do núcleo familiar e exploravam o excedente de mão de obra local. O artesão dominava toda a produção, ajudado por poucos aprendizes, que trabalhavam pela comida por uns 12 meses até dominarem a arte e se estabelecerem independentemente. As mercadorias eram vendidas no local de produção e escoadas por casas comerciais. O proprietário podia interromper o trabalho e partir com mulas bruaqueiras para distribuir a produção. Em 1874, a ligação ferroviária inseriu crescentemente São LeopoldoNovo Hamburgo na divisão regional, nacional e internacional do trabalho,

269

destruindo importantes esferas da sua produção artesanal e agrícola, em razão da nova facilidade de importação de mercadorias melhores e mais baratas. Com a internacionalização do mercado, o artesanato coureiro foi obrigado a se especializar, racionalizar a produção, aumentar a escassa divisão técnica do trabalho. A produção calçadista tornou-se importante atividade específica, realizada em múltiplas pequenas unidades familiares, apoiada na superexploração da mão de obra familiar e semirrural assalariada. As raízes que esse operariado mantinha com o campo permitiam a depreciação dos salários, já que suas famílias ou eles próprios produziam, como pequenos agricultores, nos lotes agrícolas, parte dos gêneros necessários a sua subsistência. Esses meios de subsistência não eram remunerados pelos empregadores. Em 1912, 662 fabriquetas de calçados na região superexploravam, cada uma, alguns poucos operários de origem rural. Em 1913, com a introdução da energia hidroelétrica em São Leopoldo, as unidades coureiro-calçadistas conheceram um primeiro movimento de crescimento e concentração. Em 1920, registraram-se apenas 96 unidades calçadistas no Rio Grande do Sul, com uma média de treze operários por estabelecimento. Por décadas, o caráter reduzido do mercado consumidor sulino, principal escoamento dessa atividade, limitou o crescimento da produção a uma expansão devida, sobretudo, à multiplicação de unidades de pequeno porte.

Fumo e trabalho Processo algo diverso ocorreu na colônia de Santa Cruz do Sul, fundada em 1849, a quarenta quilômetros de Rio Pardo. A distância dos mercados consumidores e a inexistência de rios navegáveis na região que escoassem a produção agrícola colonial-camponesa, de alto volume e peso, levaram os colonos a se dedicarem à agricultura de subsistência e a orientar a esfera de produção mercantil das colônias à produção do fumo. Esse produto possuía uma alta relação peso/valor, o que permitia sua exportação terrestre, mais custosa. Inicialmente, produziu-se, semi-intensivamente, o “fumo de galpão”, de folhas escuras, destinadas à produção de charutos. A monopolização da comercialização do fumo pelos comerciantes ensejou ininterrupta expropriação do sobretrabalho da economia colonial-camponesa pelo capital comercial, por meio da compra do fumo por preços depreciados e da venda de mercadorias por preços valorizados. A acumulação do capital comercial pela expropriação do sobretrabalho dos colonos-camponeses facilitou o estabelecimento de manufaturas de capitais regionais e nacionais. Essas unidades produtivas se dedicaram ao beneficiamento, à comercialização e à exportação do fumo ou à produção de

270

charutos, cigarros e cigarrilhas, em substituição a boa parte dos produtos similares tradicionalmente importados. Em 1916, em Santa Cruz, além de outras manufaturas menores, a Alfredo Schütz ocupava 150 operários, a A. E. Henning, 135, a Irmãos Scütz, 120, e a J. N. Kliemann, 120. Essa mão de obra manufatureira mantinha estreitos vínculos com a produção rural camponesa e ocupava-se sazonalmente na produção fumageira, o que permitia a mesma superexploração efetuada pela indústria coureiro-calçadista, através de salários inferiores ao necessário para financiar a totalidade dos meios de subsistência dos trabalhadores. Em 1917 esse cenário se transformou com a instalação da The Brazilian Tobacco Corporation (BAT), de capital inglês, que se metamorfoseou, em 1920, na Companhia Brasileira de Fumos em Folha e, finalmente, em 1955, na Companhia Souza Cruz. A BAT produzia cigarros para o mercado nacional, em parte com fumos importados. Ela regularizou, padronizou e qualificou a produção de tabaco para cigarros, introduzindo fumos claros, financiando fornos de secagem, promovendo o uso de adubos químicos, etc.

O grande e o pequeno Em dezembro de 1918, em resposta à penetração do grande capital internacional no beneficiamento da matéria-prima local, fundava-se a Companhia de Fumos Santa Cruz, originada da fusão de seis estabelecimentos do ramo de capitais nacionais. Em 1931, a firma, que ocupava o segundo lugar no ramo, após a Souza Cruz, empregava permanentemente 120 operários e produzia cigarros, fumo desfiado, cigarrilhas e charutos. A crescente integração da produção colonial-camponesa ao grande capital industrial, nacional e internacional intensificou a produção do fumo pela intervenção do produtor diretamente no processo de crescimento e secagem da planta, levando à decadência a produção do fumo escuro de galpão tradicional. Desde 1917, aprofundou-se a integração crescente da produção colonial-camponesa tabaqueira à agroindústria, em geral, e à Companhia Souza Cruz, em especial. Na troca do capital comercial local pelo internacional, o pequeno agricultor obteve apenas um amo ainda mais despótico. A remuneração apenas parcial do trabalho empregado pelo colono-camponês na produção do fumo explica a rusticidade estrutural da produção. Incapaz de pôr fim à sua permanente descapitalização, ele explorou, crescentemente, a si mesmo e a própria família, trabalhando como verdadeiro escravo livre para financiar sua sobrevivência biológica e manter a propriedade do lote, lócus de sua ilusão de autonomia. A integração da produção agrícola colonial-camponesa minifundiária ao grande capital agroindustrial não modernizou as relações sociais e os im-

271

plementos produtivos da agricultura fumageira, como lembra o historiador rio-grandense Olgário Vogt em A produção do fumo em Santa Cruz do Sul - RS: 1849-1993. Por meio do financiamento dos fornos, das sementes, dos adubos e do controle técnico, a agroindústria determinava o tipo, a qualidade, a quantidade e a época de produção do fumo, sem arcar com a compra/arrendamento de terras e com os riscos agrícolas – granizo, pragas, seca, etc. Monopolizando as compras, o grande capital organizava, como em uma fábrica descomunal, a produção de milhares de produtores, sem a necessidade de pesados investimentos e de assumir contratos e encargos trabalhistas – aposentadoria, férias, etc. Em razão da posse da terra pelo colonocamponês e do controle monopolista dos preços, a agroindústria obrigava – e ainda obriga – o grupo familiar da unidade minifundiária a trabalhar intensivamente, longas jornadas, mesmo nos dias de repouso, inclusive crianças a partir dos cinco anos, fato proibido pela legislação. Os custos e consequências dos acidentes de trabalho na produção eram e são assumidos totalmente pelos pequenos produtores rurais. A propriedade do lote pelo colono-camponês permitia que a agroindústria não remunerasse os investimentos do núcleo familiar, em trabalho e insumos, na produção dos gêneros subsistência que sustentava o grupo familiar fumageiro – roça, galinhas, porcos, etc. A agroindústria incentivava cuidadosamente a manutenção da produção pela agricultura colonial-camponesa dos seus gêneros de subsistência, baseada no trabalho intensivo familiar, pois permitia-lhe remunerar o trabalho investido no fumo por preços abaixo dos necessários para financiar totalmente a subsistência familiar. A partir de 1875, a Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul, na Encosta Superior do Planalto, conheceu idêntico processo de metamorfose e crescimento da economia artesanal, apoiado na acumulação originária de capitais realizada sobretudo pelo circuito mercantil, através da apropriação do sobretrabalho do produtor colonial-camponês, produzido nas milhares de unidades agrícolas da região. Esse processo transformou a região – mais tarde, com destaque para Caxias do Sul – em importante polo manufatureiro e industrial.

A crise do meridião As duas últimas décadas do século 19 foram muito difíceis, sobretudo para os interesses charqueadores, que tiveram a produção e seus mercados desorganizados com a abolição da escravatura, com significativa queda nas exportações e crise do mercado de mão de obra. A situação do setor não foi ainda pior apenas em razão das dificuldades conhecidas pelos concorrentes do Prata. Nesse contexto geral complexo, surgiram as primeiras indústrias propriamente ditas do Rio Grande do Sul. Desde meados do século 19, a produção agrícola e artesanal colonialcamponesa, no nordeste, e a economia pastorial-charqueadora, no sul, ensejaram significativa acumulação de capitais, apropriada sobretudo pela 272

esfera comercial e exportadora. Por longas décadas, o balanço comercial sul-rio-grandense foi superavitário, permitindo que parte dos capitais regionais fosse empregada em novas atividades fabris, destinadas a abastecer um mercado consumidor regional em expansão, pela produção local de bens antes importados. Em meados do oitocentos, os tecidos eram responsáveis por 60% do valor dos produtos importados pelo Rio Grande. A existência de mercado consumidor regional e de uma importante produção de lã local orientou a aplicação de capitais excedentes nessa atividade, geralmente por parte de comerciantes envolvidos na venda-distribuição de tecidos. Eles dominavam a distribuição e possuíam capitais suficientes para abocanhar a produção. A seguir, fundaram-se, igualmente, outras fábricas de grande porte, dedicadas à produção de mercadorias que, por sua baixa relação peso/preço, dificultavam a importação. Em 1875, Guilherme Rheingantz, seu sogro e Herman Vater fundaram, na cidade de Rio Grande, a firma Rheingantz e Valter – futura União Fabril. A atividade empregava mão de obra livre, em época em que vigia ainda na província e no Brasil a escravidão. A produção de tecidos de lã, facilitada pela abundante matéria-prima regional, não tinha mercado no resto do Brasil, de clima temperado. Desde 1884, a empresa especializou-se na produção de tecidos de algodão, destinados a serem também vendidos no resto do país. Procurava-se, assim, aproveitar a vantagem diferencial da unidade produtiva, sediada na cidade portuária. O primeiro surto industrial sulino propriamente dito ocorreu após a proclamação da República, em 1889, quando das iniciativas de Rui Barbosa – Encilhamento –, que resultaram, ao menos momentaneamente, na abundância de créditos baratos, segundo parece, também aproveitados no Rio Grande. A seguir, as reformas fiscais e monetárias e o programa de austeridade do presidente Campos Salles (1899-1902) facilitaram também a primeira consolidação da indústria rio-grandense, em razão das maiores dificuldades em importar mercadorias da Europa e dos Estados Unidos.

Rio Grande industrial Em 1891 o comerciante de tecidos Manoel Py fundou na capital sulina a Cia. Fiação e Tecidos Porto-Alegrense, especializada em cobertores de lã, vendidos sobretudo no mercado regional. Além da indústria têxtil, Manoel Py investiu em diversas outras iniciativas, como o abastecimento de luz, a telefonia, a colonização, etc. Na atividade colonizadora, teve como sócio, em 1886, o comerciante alemão João Gerdau, que compraria, em 1901, com seu filho Hugo, em Porto Alegre, a fábrica de pregos Santa Rocha, de capital aberto. Também em 1891, em Porto Alegre, imigrantes alemães fundaram, no prédio de uma antiga escola, a pequena fábrica Neugebauer irmãos & Gerhar-

273

dt, produtora de confeitaria e chocolate. Em 1903, a Neugebauer mudou-se para prédio próprio de dois andares no bairro Navegantes, centro industrial da cidade. Igualmente em 1891, surgiu a Fabril Porto-Alegrense, com cem operários, dedicada à produção de camisas e meias de algodão. Em 1905, a Fabril funcionava no bairro dos Navegantes, com escritório e depósito na rua Voluntários da Pátria. Então, 320 operários – homens, mulheres, adultos e crianças – produziam, em média, seis mil dúzias de camisetas e meias. Ainda em 1891, em Porto Alegre, a metalúrgica Berta assumiu caráter industrial, com o ingresso na sociedade de Alberto Bins. No ano seguinte, fundaram-se a fábrica de calçados Cia. Progresso Industrial e uma grande indústria de móveis. Em 1893, surgiu a Fábrica de Pregos Pontas de Paris. Em 1894, organizou-se a Fábrica de Vidros Sul-brasileira, que produziu em 1895 setecentas mil garrafas. Em 1895, foi fundado o Banco Nacional do Comércio, com importante atuação nas atividades do porto de Rio Grande e em toda a região meridional rio-grandense, que constituiu a segunda casa bancária rio-grandense, após o Banco da Província. Em 1904 fundava-se em Porto Alegre a fábrica de fogões Wallig, que conheceria um enorme sucesso nas décadas seguintes. Em 1906, em Rio Grande, com capitais externos, organizou-se a Tecelagem Ítalo-Brasileira, especializada em tecidos de algodão, brins, camisas e tecidos de algodão, etc., destinados aos mercados brasileiros. Dois anos mais tarde, surgia a Fiação e Tecidos Pelotenses, com 346 operários, produzindo igualmente tecidos de algodão, brins, morins, riscado, exportados para São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Por esses anos, na atual Galópolis, nas proximidades de Caxias do Sul, nascia a Cia. de Tecidos de Lã. A empresa fora fundada por operários italianos imigrados no Rio Grande do Sul com prática na produção têxtil, que, após fracassarem na iniciativa, alugaram as instalações, em 1906 ou 1907, ao químico-tintureiro Herculles Gallo, o qual se associou, a seguir, a Pedro Chaves Barcelos, que terminaria incorporando totalmente a empresa. Sob o nome de Lanifício São Pedro a indústria desenvolveu-se rapidamente.

Expansão e crise Finalmente, em 1911, em São Sebastião do Caí, na Região Colonial Alemã, surgia a indústria de tecidos de lã A.J.Renner & Cia, voltada para o mercado colonial. O principal proprietário da empresa e seus sócios eram comerciantes locais que investiram na indústria, conscientes da irremediável decadência do porto de São Sebastião do Caí como escoadouro da produção da Região Colonial Italiana após a ligação Montenegro–Caxias por trem. Em 1916, na chefia da indústria, A.J. Renner transferiu a fábrica para o bairro Navegantes, em Porto Alegre, para melhor explorar os mercados da Campanha abertos pela ligação ferroviária Porto Alegre–Uruguaiana, de

274

1883. Desde 1888 Uruguaiana encontrava-se em contato ferroviário com o porto de Montevidéu. Com a expansão do mercado sulino, a fábrica passou a funcionar 24 horas por dia, obtendo grandes lucros. As grandes empresas têxteis estabelecidas em Rio Grande e em Pelotas, nas proximidades do porto marítimo sulino, importavam sua principal matéria-prima e especializaram-se na produção de tecidos de algodão, destinados sobretudo aos mercados do Centro-Sul. Empresas de menor porte, instaladas em Porto Alegre e nas regiões coloniais alemã e italiana, produziam tecidos e vestimentas de lã com matéria-prima regional para os consumidores rio-grandenses. Em 1907 o Rio Grande do Sul consolidava-se como a terceira região industrial do país, após o Distrito Federal e São Paulo. Nessa época, o estado possuía pouco mais de quinze mil operários, empregados em 314 indústrias, ao passo que o Distrito Federal, com uma população mais significativa e próxima a importantes mercados consumidores, aproximava-se dos 25 mil trabalhadores fabris. À exceção das indústrias têxteis, as empresas sulinas eram pequenas ou médias. Em 1909, o Banco da Província, com sede em Porto Alegre, recebeu autorização para criar Caixa de Depósito, podendo, portanto, captar recursos e conceder préstimos populares. O banco tivera permissão para emitir moedapapel, privilégio que passou a ser exercido de forma monopólica pelo Banco do Brasil nos anos 1890. Em 1910, o Banco da Província abriu carteira hipotecária para financiar a longo prazo o setor rural, que, contudo, não prosperou.

Lambaris e tubarões O porte diferenciado das indústrias sulinas devia-se também à diversa origem dos ramos industriais. Como vimos, a grande indústria fabril nasceu do investimento de grandes capitais, obtidos, sobretudo, na esfera da circulação das mercadorias, em geral por comerciantes que já controlavam parte da distribuição, pela compra de maquinaria moderna ou já superada no exterior para substituir as importações de tecidos preexistentes. Sua produção era vendida no mercado regional e no Brasil. Ao contrário, as pequenas e médias empresas desenvolveram-se a partir do crescimento de atividades artesanais e familiares, pela acumulação de capitais próprios ou de pequenos empréstimos. Essa produção possuía maior versatilidade, adaptando-se às variações do mercado, e cresceu no contexto de forte exploração da mão de obra masculina, feminina e infantil, em geral de origem rural. A partir de 1909 sentiram-se as consequências conjunturais positivas para a industrialização resultantes da política de defesa do café. A valorização internacional do produto permitiu que importantes capitais nacionais excedentes fossem aplicados na atividade industrial nascente, sobretudo

275

paulista, determinando, entre outros fenômenos, a liderança industrial de São Paulo e o recuo relativo da importância fabril sulina. A produção charqueadora jamais conseguiu desempenhar no Sul o papel que coube em São Paulo ao café. Nos anos 1908-10, ainda que se importassem lãs finas, possivelmente metade da produção da matéria-prima sulina era trabalhada pelas indústrias locais. Em 1910, as vendas de tecidos já tinham importância na pauta de exportações do estado, mesmo que a produção fabril sulina se destinasse, sobretudo, ao abastecimento do consumo regional. O Rio Grande do Sul jamais conseguiu se especializar na produção de lãs de alta qualidade, ao igual que o Uruguai. O grande mercado consumidor da produção fabril sulina eram as populações dos centros urbanos e das regiões coloniais. Centro da produção pastoril, com baixa densidade demográfica e baixa renda das classes trabalhadoras e médias, a Campanha e a fronteira pouco contribuíam como escoadouros das mercadorias regionais. Os peões e capatazes, principais trabalhadores setoriais, recebiam pequeno salário monetário, já que eram retribuídos parcialmente com alimentação e alojamento. Nesse período, a política tributária estadual do Partido Republicano Riograndense favoreceu relativamente a indústria têxtil. Desde 1904, a lã sulina exportada era taxada em 10%, o que privilegiava o beneficiamento regional. Em 1927, quando grande parte dos produtos rio-grandenses estava isenta de impostos de exportação, pagava ainda 9%. De 1904 a 1923, a indústria têxtil pagou 3% sobre a exportação de seus produtos. Desde então, foi isenta de impostos sobre a exportação.

Industrialização e República O castilhismo-borgismo apoiou a economia colonial-camponesa, a agricultura capitalista e a produção artesanal, manufatureira e industrial. O novo poder regional sustentava a modernização conservadora do estado a partir, em boa parte, da tributação da propriedade, em geral, e da propriedade fundiária, em especial. Em 1893 a arrecadação do imposto de transmissão da propriedade alcançava já uns 897 contos de réis. Em 1903, o governo republicano sul-rio-grandense implementou, finalmente, a proposta programática castilhista, velha de duas décadas, de tributar a propriedade fundiária. Naquele ano, o imposto territorial rendeu quase mil contos de réis e, nove anos mais tarde, ultrapassou os dois mil contos. A incidência desse imposto gravava a grande propriedade e desonerava relativamente a pequena gleba colonial – “imposto territorial” – a fim de diminuir as taxas sobre as exportações. A incidência de impostos sobre a propriedade rural latifundiária propiciava, tendencialmente, o arrendamento e a venda dos campos impro-

276

dutivos, sobretudo em prol das companhias colonizadoras e da produção agropastoril capitalizada – rizicultura, triticultura, etc. Porém, o castilhismo jamais questionou as raízes do latifúndio, que permaneceu intocado em imensas regiões do estado, deprimindo a produção de riquezas e o poder de consumo, com consequências históricas para a indústria regional, fortemente limitada pela estreiteza do mercado sulino e dificuldade de acesso aos mercados do centro do Brasil. A negativa de permitir o acesso do brasileiro pobre – peão, posseiro, caboclo, intruso, etc. – à posse da terra facilitou a consolidação do arcaísmo agropastoril latifundiário.

Maus ventos Desde 1913 reverteu-se a situação econômica nacional e internacional positiva. No mercado mundial, caíram as cotações do café e de outras exportações brasileiras tradicionais, cessando o ingresso de capitais internacionais no país. Em 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial, a conjuntura negativa agravou-se fortemente. Nas mãos dos interesses cafeicultores, o governo federal interveio protegendo os plantadores e exportadores de café, pela desvalorização da moeda, ensejada por forte emissão, o que resultou em encarecimento das importações e do custo de vida da população. Nesse contexto geral, decaíram as importações, incentivando relativamente a produção interna. Portanto, paradoxalmente, a conjuntura econômica difícil foi positiva para a industrialização no Brasil. A seguir, durante a Grande Guerra, a queda das importações e o desenvolvimento da venda para os Aliados de produtos primários brasileiros, como o açúcar, o couro, o charque, a carne congelada, etc., produziram importantes superávits comerciais. Como a militarização da indústria capitalista ocidental impedia que os recursos brasileiros fossem gastos com a importação de produtos de consumo corrente, parte dos capitais disponíveis foi investida na produção de manufaturados, matérias-primas e alimentos para o mercado interno com demanda insatisfeita. Inicialmente, o crescimento da produção industrial deu-se por meio de um melhor aproveitamento da capacidade instalada das indústrias existentes. O Rio Grande do Sul aproveitou essa conjuntura econômica positiva. A seguir, houve real expansão do parque industrial nas diversas regiões, apesar da dificuldade posta pela impossibilidade de importar máquinas do exterior, em virtude da militarização da indústria europeia e estadunidense.

Distanciamento maior Em 1919 o Rio Grande possuía treze mil estabelecimentos artesanais, fabris e manufatureiros, com 65 mil operários. A média dessas empresas – bebidas, calçados, chapéus, conservas, fósforos, fumo, louças, tecidos, velas,

277

vidros, etc. – era de cinco operários por unidade. Em 1920, a União Fabril tinha 907 operários e 102 costureiras; a Cia de Fiação e Tecidos Porto-Alegrense, 263 operários; a Cia Fabril Porto-alegrense, cem operários. Em 1920, o Rio Grande do Sul era ainda o terceiro estado em produção industrial. Porém, no período anterior consolidara-se o avanço relativo de São Paulo como primeira região industrial. Nesse momento, o Rio Grande tinha 1.773 unidades fabris, com 24.661 operários – em média, 14 operários por empresa. São Paulo possuía mais de quatro mil empresas, com mais de oitenta mil trabalhadores – em média, vinte trabalhadores por empresa. Tinha, portanto, maior produção e maior produtividade. O mesmo fenômeno ocorrera no relativo à indústria têxtil, principal atividade fabril do Brasil. O Rio Grande, que tivera oito fábricas têxteis em 1907, possuía 51 em 1920. Nesse espaço de tempo, São Paulo subira de 27 para 112 empresas nesse ramo. No distanciamento relativo, desempenhou importante papel a abundância de capitais paulistas, determinada pela exportação cafeicultora, protegida pelo governo federal, mesmo em detrimento das demais regiões do país. Favoreciam, igualmente, a produção paulista o maior mercado regional e a maior proximidade de outras importantes regiões consumidoras – Rio de Janeiro e Minas Gerais, sobretudo. Em 1918, tecidos e vinho eram as duas principais atividades industriais sulinas, com aproximadamente três mil operários cada. Nesse ano, a produção da indústria têxtil pesava significativamente na produção regional, sem, entretanto, ter a mesma importância na pauta das exportações. A produção de tecidos de lã era consumida quase exclusivamente no mercado regional e estagnara fortemente a produção de tecidos de algodão, destinados em boa parte à exportação, sobretudo em virtude da competição paulista. Nos anos imediatos após a Grande Guerra, os países beligerantes diminuíram as importações e expandiram suas exportações, após desmilitarizarem suas indústrias. Havendo reservas disponíveis, em razão das exportações durante o conflito, aumentaram-se significativamente as importações do Brasil, numa época em que caíam as exportações do café. O governo central reagiu desvalorizando a moeda e instituiu a política de defesa permanente do café.

Crise industrial Existindo capitais disponíveis e possibilidade compra no exterior da maquinaria necessária, as indústrias nacionais e as regionais modernizaram seu aparato produtivo, concentrando-se a produção. As medidas federais monetaristas e de contenção de gastos (1924-6) restringiam o consumo interno, grande escoadouro da produção fabril dos estados em processo de industrialização. As indústrias estagnaram-se, sobretudo as que importavam matérias-primas, golpeadas pela desvalorização monetária. Nos três

278

principais polos industriais do país – São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul – houve forte centralização e concentração do capital industrial. Todo o interesse do poder federal voltava-se para a defesa do setor primário, sobretudo da cafeicultura paulista. Em 1926, em São Paulo, os industrialistas paulistas formaram o Partido Democrático, descontentes com a política governamental, que não criava barreiras alfandegárias e não investia em obras infraestruturais exigidas pelo setor. Toda defesa da indústria brasileira, por meio de barreiras alfandegárias que dificultassem as importações, prejudicava os grandes fazendeiros ao elevar o valor dos produtos consumidos por seus trabalhadores e, portanto, pressionar pelo aumento de salários. Nos anos 1925, mesmo alcançando a autonomia no relativo ao consumo de tecidos, a produção têxtil no Brasil estagnava. Na época, o país vivia sua primeira crise capitalista de superprodução. O desenvolvimento tecnológico garantia elevada produção, que não encontrava mercado em razão dos salários miseráveis dos operários urbanos e rurais e das multidões de brasileiros que viviam em condições de existência seminatural e natural. Por causa da forte exploração do mundo do trabalho essa realidade permanece tendencialmente até hoje. Também no Rio Grande foi importante o processo de concentração da indústria têxtil. As empresas modernizaram-se, aumentaram de porte, diminuíram de número, desempregaram trabalhadores. Nesse período, mesmo permanecendo a especialização das empresas de Rio Grande, Pelotas, Porto Alegre e da RCI, cresceu a produção regional de produtos de lã, sobretudo os produzidos pelas indústrias A. J. Renner. Além de produzir tecidos, A. J. Renner passou a fabricar peças de vestuário de algodão, casimira, lã e linho e inovou tecnologicamente, especializando-se na feitura de roupas masculinas de qualidade, vendidas em todo o Brasil. No contexto de desvalorização cambial, a indústria têxtil regional de tecidos de lã conheceu estagnação das vendas; por sua vez, a produção de tecidos de algodão mergulhou em crise profunda, em razão do encarecimento crescente da matéria-prima importada. Em 7 de novembro de 1920, também como consequência da crise vivida, realizou-se reunião preliminar para a fundação do Centro de Indústria Fabril do Estado do Rio Grande do Sul. Organizando-se de forma independente aos interesses comerciais e pastoris, os empresários industriais assinalavam a conclusão da metamorfose vivida pelo Rio Grande do Sul desde a República. Em 1927, em sinal da estagnação produtiva vivida no contexto da crise geral do capitalismo mundial, a produção industrial sulina mantinha-se inalterada em relação ao início da década. Nesse período, a produção têxtil decaiu relativamente em relação à de bebidas. Em 1927, fundou-se em Porto Alegre a Viação Aérea Rio-grandense (Varig), com o apoio do governo do estado, iniciativa que alcançaria, nas décadas seguintes, amplo sucesso.

279

20 O nascimento do movimento operário no Rio Grande do Sul Em geral de pequeno e médio porte, as primeiras manufaturas e fábricas sulinas nasceram geograficamente atomizadas nas principais aglomerações urbanas – Caxias do Sul, Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, São Hamburgo, São Leopoldo, etc. –, para abastecer o mercado local, em época em que o transportes encarecia muito os preços dos produtos. Exploravam uma mão de obra profundamente heterogênea. Esse padrão de desenvolvimento contribuiu para uma difícil e lenta gênese do movimento operário organizado. Desde os primeiros tempos, comumente, as práticas artesanais e manufatureiras ocuparam, lado a lado, proprietários e seus familiares, trabalhadores escravizados e livres. A partir de fins do século 18, os trabalhadores escravizados dominavam nas charqueadas, olarias, no transporte urbano e fluvial e em muitas práticas artesanais e manufatureiras. Trabalhadores escravizados e livres trabalhavam nas fazendas pastoris sulinas. Em 1824 e 1875 iniciaram-se, as colonizações alemã e italiana nas encostas inferior e superior da Serra, respectivamente. A legislação, comumente desobedecida, proibia cativos nas regiões coloniais, onde surgiu ativa atividade artesanal, urbana e rural. A seguir, unidades manufatureiras coloniais desenvolveram-se apoiadas no trabalho familiar e assalariado de origem rural. Mesmo que o artífice e o operário europeus tenham se ocupado precocemente nas cidades sulinas, até os anos 1870 a mão de obra escravizada esteve fortemente presente nas atividades produtivas rurais e urbanas. Nas décadas posteriores a 1875, sobretudo em Caxias, Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, surgiram modernas fábricas têxteis, de maior porte, produzindo tecidos, cobertores e vestuário para o mercado regional e do Brasil. Elas funcionavam com trabalhadores de origem urbana ou colonial, com destaque para a mão de obra feminina e infantil. Nesses anos, em meio urbano, a construção civil utilizava trabalhadores livres e escravizados, com os últimos desempenhando as tarefas mais pesadas. As importantes práticas manufatureiras charqueadoras realizavam-se sazonalmente, sustentadas pela mão de obra escravizada. Após a Abolição, em 1888, funcionaram com trabalhadores descendentes de ex-escravos e originários das regiões rurais. Após 1888, pequenos grupos de peões continuaram trabalhando, isolados, nas fazendas, submetidos a relações contratuais fortemente pré-capitalistas.

Primeiras indústrias A dispersão e pequena e média dimensão das manufaturas e fábricas sulinas inibiam o surgimento da organização operária. As dificuldades dos meios de comunicação, a diversidade de status jurídico e a dispersão geográ-

280

fica contribuíram para que os movimentos de convergência política dos trabalhadores sul-rio-grandenses fossem sempre muito tênues. O movimento operário sulino nasceu e desenvolveu-se em meio urbano, organizando trabalhadores independentes, artesanais, manufatureiros e fabris – alfaiates, calceteiros, carroceiros, carvoeiros, chapeleiros, estivadores, ferroviários, foguistas, funileiros, marmoristas, mineiros, motorneiros, padeiros, pedreiros, tecelões, telefonistas, operários de pequenas, médias e grandes usinas, etc. Salvo engano, jamais houve tentativa de articulação dos operários urbanos com os artífices e artesãos das regiões coloniais alemã e italiana e com os trabalhadores das charqueadas e das fazendas. Mais tarde, tal processo ocorreria apenas no relativo à mão de obra dos frigoríficos. Apesar de constituírem a mais antiga categoria trabalhadora sulina semiassalariada, os trabalhadores pastoris livres permaneceram – e permanecem ainda hoje – à margem das tentativas de organização operária. Portanto, o desenvolvimento de categorias de produtores diretos geradores de trabalho excedente no contexto de relações sociais diversas, separadas ou não geograficamente, constituiu handicap negativo permanente na gênese de um movimento operário unitário. Tendencialmente, essa realidade se mantém ainda atualmente. A própria historiografia sulina reflete, subjetivamente, no presente essa dificuldade objetiva da unificação da classe operária regional do passado ao não integrar, nem mesmo como em nível das representações intelectuais, as diversas categorias sociais trabalhadoras em uma história unitária do trabalho sul-rio-grandense. De forma geral, os estudos sobre o movimento operário sulino partem de um ano zero recente, ou seja, da origem do operariado manufatureiro e fabril urbano, em fins do século 19, desconhecendo o trabalhador escravizado como primeiro e significativo momento do mundo do trabalho no Rio Grande do Sul e no Brasil. O próprio mundo do trabalho organizado não consegue se ver nos trabalhadores feitorizados do passado, em uma profunda assimilação das reconstituições históricas ideológicas das classes dominantes, sobre um passado sem oposição essencial entre explorados e exploradores. As atuais visões racialistas da sociedade brasileira e rio-grandense, sobre uma história singular afro-brasileira, que se desdobra singularmente nas comunidades étnicas contemporâneas, e não nas classes trabalhadoras atuais, de todas as origens, fortalecem as fantasmagorias que cobrem a história unitária dos trabalhadores sul-brasileiros.

Triste passado A superposição de relações sociais escravistas, semicapitalistas e capitalistas influenciou profundamente a história dos trabalhadores e conformou o comportamento das classes proprietárias do Rio Grande do Sul e do Brasil, que permanecem até hoje fortemente arraigadas em concepções negreiras de mundo, nas quais o trabalho dos seus operários constitui uma

281

obrigação e a retribuição econômica, um quase-privilégio. As heranças ideológicas e culturais do passado colonial escravista são extremamente fortes entre importantes segmentos do mundo do trabalho, que arrancam suas raízes históricas sobretudo nas classes escravizadas e nos segmentos caboclos. Elas enfrentam de forma muito desfavorável as disputas contratuais com o capital, em razão, em boa parte, das enormes fragilidades culturais e familiares que arrastam do passado. Num contexto social e histórico no qual o direito à escravização do trabalhador manteve-se até 1888, é fácil compreender o caráter tardio das primeiras conquistas operárias. Efetivamente, apenas em 1907 a legislação reconheceu a existência dos sindicatos profissionais, sem lhes acordar direitos e, em 1919, após violentas greves insurrecionais abalarem os bolsões fabris do Brasil, o Parlamento republicano aprovou uma primeira lei concedendo indenização aos trabalhadores acidentados no trabalho. Uma harmônica continuidade entre a ideologia liberal-escravista, do Império, e liberal-oligárquica, da República Velha, permitiu o prosseguimento da concepção senhorial pré-capitalista que se opunha à normalização das relações trabalhistas e apenas tolerava a intromissão do Estado para reprimir o trabalhador rebelde. As conquistas cidadãs não haviam prenhado a sociedade no Brasil. Inicialmente, pouca diferença fazia às classes exploradoras se o trabalhador era um charqueador africano, um tecelão italiano ou um oleiro caboclo.

História esquecida A história da resistência social no Rio Grande do Sul está por ser escrita, em virtude, sobretudo, da heterogeneidade social e da dispersão geográfica assinalada. Desde os tempos da escravidão, as classes proprietárias utilizaram, sistematicamente, a polícia e a Justiça para resolver problemas de resistência individual ou associada dos trabalhadores. Apenas um estudo geral da documentação policial e judiciária permitirá visão globalizada das formas de resistência das variadas categorias trabalhadoras sulinas, livres, semilivres e escravizadas. Formas de resistência que se mantiveram fortemente em um patamar pré-político. A resistência servil rural e urbana foi uma constante. Os trabalhadores escravizados resistiram aos duros ritmos e à longa duração do trabalho feitorizado, aplicando-se consciente e inconscientemente pouco a ele. Resistiram à escravidão por meio das fugas, dos quilombos, das insurreições, do justiçamento de proprietários, capatazes, etc. Por razões estruturais, essa riquíssima tradição de resistência não produziu organizações semipermanentes ou permanentes, ainda que tenham sido comuns as conspirações servis no Brasil e no Sul. A historiografia regional não registra sequer um

282

caso de organização horizontal associativa entre os trabalhadores pastoris livres. Como através do Brasil, eram duríssimas as condições de trabalho e de existência das nascentes classes operárias sulinas. Num contexto em que subsistia o trabalho escravizado, eram habituais jornadas de 14 e mais horas de trabalho, durante seis dias por semana. Mesmo as indústrias têxteis e metalúrgicas de ponta exploraram crianças e adolescentes, ao lado de adultos de ambos os sexos. Em 1906, três quartos da mão de obra da moderna Companhia Fabril Porto-Alegrense eram constituídos por mulheres, e 25 crianças, de sete a dez anos, trabalhavam na empresa, que praticava, como era habitual, a discriminação salarial das operárias. Essa e outras empresas procuravam disciplinar e policiar a totalidade das ações do operariado no trabalho, multando atrasos, conversas durante a produção, introdução de livros e revistas, etc. O patrão compreendia-se como responsável pela disciplina da vida civil do operário, como os escravizadores o eram no passado no relativo à totalidade das ações de seus operários cativos.

Política e ideologia Em fins do século 19, com grandes dificuldades, os trabalhadores sulinos urbanos fundaram as primeiras organizações sindicais e políticas. Inicialmente, surgiram associações dedicadas ao mútuo auxílio, no caso de doença, desemprego, acidentes, etc. Essas organizações absorveram algumas funções assistenciais das antigas irmandades religiosas, profissionais e étnicas dos tempos do Império. No início do século 20, os socialistas e, sobretudo, os anarquistas e anarcossindicalistas conquistaram a direção do nascente movimento operário no Brasil e no Rio Grande. O perfil da classe operária de então – artífices e operários de pequenas e médias manufaturas – facilitava as propostas associativas e individualistas. Os socialistas defendiam a integração dos trabalhadores na sociedade de classes em formação, por meio da mobilização pela obtenção dos direitos sindicais e civis do operariado. Propunham a organização de partidos operários e a intervenção no jogo eleitoral, de forma autônoma ou associada aos partidos dos proprietários. Os anarquistas propunham a mobilização dos trabalhadores contra a religião, contra o Estado e contra o capital. Lutavam por uma sociedade libertária, sem Estado e sem governo, baseada na solidariedade dos trabalhadores independentes. Na Europa, com o desenvolvimento da industrialização e das organizações sindicais, parte do movimento anarquista evoluiu de posições anarcoindividualistas para anarcossindicalistas. No contexto da ampliação horizontal e vertical da produção manufatureira e fabril, os anarcossindicalistas ultrapassavam a proposta da ação individual, própria ao artífice e ao operário da pequena oficina, onde trabalhavam sozinhos ou com alguns companheiros. Eles se elevavam à consciência

283

da necessidade da ação realizada no seio ou com o apoio de pequenas, médias e grandes associações profissionais de trabalhadores. Os anarco-sindicalistas defendiam a organização operária em sindicatos revolucionários que, por meio da greve geral insurrecional, vergariam o governo do capital e a propriedade privada. A ordem nova – a anarquia – se apoiaria na colaboração dos sindicatos confederados. Os anarcossindicalistas eram materialistas, deterministas e ateus e desenvolviam ativa propaganda contra o militarismo, contra a religião e pela educação e organização operária.

Anarquistas e comunistas Os anarquistas e anarcossindicalistas mobilizavam-se terminantemente contra a participação dos operários na vida política oficial, apresentada como mera ilusão burguesa para desviar a classe operária de sua luta. O caráter elitista e oligárquico das eleições, numa época em que não existia Justiça Eleitoral e o voto era feito em listas nominais, a descoberto, fortalecia as propostas antieleitoralistas. Com a vitória da Revolução Russa, em 1917, e o crescente prestígio internacional do marxismo, muitos militantes socialistas, anarquistas e anarcossindicalistas participaram da organização do Partido Comunista do Brasil, em 1922, ou aderiram ao movimento comunista nos anos seguintes, ensejando importante reorientação político-ideológica da vanguarda operária do Rio Grande e do Brasil. A adesão de líderes e militantes anarquistas ao comunismo deu-se sobretudo em razão do prestígio da Revolução de 1917, no contexto de um profundo desconhecimento do marxismo, que perdurou por longos anos sem, talvez, jamais ter conhecido verdadeiro salto de qualidade, em razão do atraso da divulgação da literatura marxista no Brasil, ao caráter recente, dispersão e acanhamento do processo de industrialização, mesmo nos estados fabris do Brasil – Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul. A dificuldade do proletariado no Brasil de conquistar a autonomia política e ideológica de classe, determinada substancialmente pelas fortes raízes précapitalistas apenas assinaladas, foi igualmente responsável pela sua quase permanente submissão a projetos que não lhe eram próprios.

Primeiras lutas No Sul, os primeiros movimentos associativos dos trabalhadores datam dos anos 1870. Em 1873, os aguadeiros de Pelotas organizaram-se para não comprar a água da recém-fundada Companhia Hidráulica Pelotense. As pioneiras organizações de socorro mútuo são também desses anos. Inspiradas nas irmandades católicas, elas apoiavam o associado e sua família

284

no caso de prisão, de acidente, de desemprego, etc. O clube Caixeiral, de Pelotas, teria sido fundado, em dezembro de 1879, pela luta dos comerciários pelo fechamento das portas dos negócios no domingo. A Associação Beneficente Classes Laboriosas de Pelotas foi fundada antes da Abolição, em outubro de 1880. Em 1884, teriam parado os trabalhadores das obras da ferrovia Bagé–Pelotas, devido a salários em atraso. Na década de 1890, entre outros movimentos, temos notícia da paralisação de tipógrafos em Pelotas por questões salariais. No mesmo ano, em Cacequi, os trabalhadores das obras da ferrovia cruzaram os braços por causa de salários em atraso e maus-tratos, sendo reprimidos pelo exército, e em Rio Grande operários e operárias da Rheingantz interromperam o trabalho exigindo a demissão de um inspetor. Em 1892, em Porto Alegre fundouse a Sociedade Geral dos Operários (Allgemeiner Arbeiterverein), formada por trabalhadores de origem alemã, de influência socialista reformista. Em 1893, os carroceiros pelotenses pararam exigindo aumento de frete, o mesmo ocorrendo com trabalhadores de fábrica de chapéu, que cruzaram os braços por melhorias salariais. Em 1895, em Porto Alegre, Lucídio Martinho Preste, Xavier da Costa e outros socialistas fundaram a Liga Operária Internacional. Em 1897, segundo parece por iniciativa do mesmo grupo de militantes, surgiu o jornal O Proletário, e lançou-se, no dia 1º de maio, o manifesto do Partido Socialista Rio-Grandense, que não prosperou. Em 1897 teria ocorrido a primeira paralisação registrada em grande empresa têxtil sulina – a Ítalo-brasileira, de Rio Grande. Nesse então, a indústria têxtil capitaneava a produção fabril sulina, formada por pequenas oficinas e manufaturas, muito dispersas. Em 1898 paravam os telefonistas de Pelotas, mobilizados contra a dispensa de um colega, e os descarregadores da praia de Rio Grande, em prol de melhor paga. Em março de 1890, a proposta de formação de um Partido Operário Socialista foi publicada em A Federação, órgão oficial do PRR, e um deputado – João Steenhagen –, apoiado pelas escolas noturnas, associações beneficentes e clubes operários, participou dos trabalhos constituintes, sob a legenda e beneplácito do PRR e de Júlio de Castilho. Segundo parece, nada propuseram ou concluíram em favor dos apoiadores. Tratava-se de iniciativa de cooptação política dos republicanos históricos em direção ao nascente movimento trabalhador organizado.

Mais partidos Nos anos seguintes se aceleraria a organização de pequenos núcleos de ativistas operários na capital, em Pelotas, em Rio Grande e, em menor número, nas principais cidades do interior. No dia 1º de maio de 1897, em Porto Alegre, fundou-se o Partido Socialista do Rio Grande do Sul, com a participação de militantes socialistas e anarquistas – Giuseppe Vitola e Giuseppe Ferla –, que se afastaram a seguir da agremiação em virtude da sua orienta-

285

ção. O Partido Socialista do Rio Grande do Sul teria participado nas eleições municipais de Rio Grande. Nos anos 1890 foram fundados pequenas associações operárias, de vida curta, e diversos jornais socialistas e anarquistas, por iniciativa individual ou de pequenos grupos de ativistas, de pequenas tiragens e, em geral, também de breve duração – O Operário (Uruguaiana); O Caixeiro (Pelotas); L’Avenire (Porto Alegre); O Operário (Pelotas); L’Operaio Italiano (Porto Alegre); A Luta (Rio Grande), etc. A curta sobrevida dessas organizações expressava o caráter qualitativa e quantitativamente limitado dos segmentos sociais que os originavam e nos quais se apoiavam. Em 1º e 2 de janeiro de 1898, em Porto Alegre, reuniu-se o I Congresso Operário do Rio Grande do Sul, com a participação da Allgemeiner Arbeiterverein; do Club 1º de Maio, da Margem; da Sociedade Beneficente Floresta Aurora, de Porto Alegre; da Liga Operária Cachoeirense, de Cachoeira do Sul; da Liga Operária Internacional, de Porto Alegre e São Leopoldo; da Sociedade Mútua Proteção, de Alegrete, e da União Operária, de Cruz Alta. Fundada em fins 31 de dezembro de 1872, por cativos alforriados, com objetivos de ajuda mútua – morte, doença, enfermidade, etc., a Sociedade Beneficente Floresta Aurora reunia jornaleiros, motoristas, proletários, etc. negros, residentes sobretudo na Cidade Baixa, Bom Fim, Rio Branco e Menino Deus, então bairros populares de Porto Alegre. Muito ativa na República Velha na luta operária, a sociedade Floresta Aurora subsiste hoje como clube social e recreativo da classe média porto-alegrense afro-descendente. Salvo engano, é a mais antiga associação negra em funcionamento do Brasil. Convocado por militantes socialistas, com a participação de lideranças anarquistas, o I Congresso Operário do Rio Grande do Sul reuniu trabalhadores de diversas regiões do estado, de variadas origens étnicas e de diversos ramos produtivos. Entre outras, não participaram do encontro a Liga Operária de Pelotas e a União Operária de Rio Grande. O encontro aprovou a formação de bibliotecas e escolas operárias, uma Comissão Central de Correspondência, a convocação anual de congressos operários estaduais e a boicotagem como método de ação. Durante o evento, foi eleita uma Comissão Central da Confederação Operária Sul-Rio-Grandense, da qual fizeram parte Francisco Xavier da Costa (socialista), Wilhelm (Guilherme) Koch, Pedro Tácito Pires, José Ferla (anarquistas) e Otaviano Oliveira. O encontro reafirmava a hegemonia socialista sobre o nascente movimento operário organizado rio-grandense.

1906: trabalhadores em greve! Em 24 de fevereiro de 1901 surgiu o jornal socialista Avante, sob a administração de Pedro Mayer, porta-voz do grupo Círio de Propaganda Avante, fundado dois meses antes, de caro cunho reformista. Em 1905, também

286

em Porto Alegre, foi fundado o Partido Operário Rio-Grandense, de orientação socialista e breve vida, que teve como porta-voz o jornal A Democracia. Desde setembro de 1906, o jornal anarquista A Luta, da capital, com a participação de Polydoro dos Santos, José Rey Gil, Reinaldo Gayer, entre outros, polemizava fortemente com o porta-voz socialista Avante, propondo a autonomia organizativa e a não participação na vida eleitoral institucional. Na época, segundo a Constituição castilhista, o voto dava-se, necessariamente, a descoberto, como visto. No mesmo ano, os anarquistas fundaram a Escola Noturna Eliseu Reclus, na sede do jornal, na rua dos Andradas, nº 64. Em 1906 ocorreram grandes mobilizações operárias nas principais capitais do Brasil. No Rio Grande do Sul, esse foi o “Ano Um” do movimento operário sulino, em virtude da eclosão de uma longa e combativa greve operária em Porto Alegre, de 21 dias, por aumento salarial e pelas oito horas de trabalho. Em março de 1906 ocorria o 1º Congresso Operário do Brasil, no Rio de Janeiro. Em setembro, em meeting operário, em Porto Alegre, foi proposta a necessidade da fundação da Federação Operária do Rio Grande do Sul. No mesmo mês, os marmoristas da capital interromperam o trabalho exigindo a jornada de oito horas. Tratava-se, possivelmente, da eclosão extemporânea de movimento mais amplo, já que no mês seguinte se iniciaria a primeira greve geral da capital do estado. De 3 a 24 de outubro desenvolveu-se a primeira greve geral do Rio Grande do Sul, quando talvez cinco mil operários interromperam em Porto Alegre o trabalho – produção de chapéus, curtumes, doces, eletricidade, estaleiros, estiva, fiação, fundição, funilaria, gravatas, móveis, pedreira, sabão, tecelagem, etc. –, exigindo a jornada de oito horas e outras melhorias profissionais. Então a população da capital sulina não ultrapassaria, possivelmente, os cem mil habitantes. O movimento, que assumiu caráter de massa, superando significativamente as centenas de operários organizados pelos pequenos grupos de orientação socialista e anarquista, deu-se no contexto de violento confronto classista, sob a palavra de ordem “abaixo a burguesia” e o desfraldar de bandeiras “encarnadas”!

Bandeiras escarlates Surpreso pelo ativismo e pela organização operária, o jornal governista A Federação, porta-voz oficial do PRR, de 8 de outubro afirmou que o movimento seria um paradoxo, já que no estado não haveria “indústrias nem proletariado”. Segundo o jornal, apenas “pequenas manufaturas”, com “pequenos capitais”, empregariam pequeno número de “trabalhadores”, em geral não especializados. Entre as empresas envolvidas pelo movimento paredista encontravam-se a grande Companhia de Fiação de Tecidos, com quatrocentos operários; a Kappel & Arnt, com 140; a Becker & Irmão, com

287

40; a Oficina Silveira Martins, com 32; a Carpintaria Porto-Alegrense, com 45; o Estaleiro Bruno Marroco, Só & Filhos; a fábrica Oscar Teichmann, Koling & Krall. Entre outras associações, participaram ativamente da greve a Allgemeiner Arbeiterverein, o Grêmio das Artes Gráficas, o Sindicato dos Marceneiros, o Sindicato dos Marmoristas, a União de Resistência dos Empregados em Padaria, a União dos Pedreiros, a União dos Trabalhadores em Madeira e a União Operária Internacional. Durante a greve, em resposta à forte agitação socialista e anarquista, os patrões distribuíram farta literatura antioperária e antissocialista, descrevendo os crimes vermelhos na Europa. No ano anterior, fora derrotada a primeira revolução russa, de 1905, dirigida pelos primeiros grandes conselhos operários da Europa – os soviets. Durante a greve porto-alegrense, Alberto Bins, a principal liderança patronal, afirmou que o acolhimento das reivindicações era inaceitável, por princípio, pois “colocaria os patrões na posição de caixeiros”. Do movimento paredista participaram grande número de mulheres e operários de origem estrangeira, sobretudo alemã e italiana. As forças policiais, com destaque para a Brigada Militar, foram utilizadas na repressão dos grevistas. Após o fim do movimento, os patrões reprimiram duramente os operários combativos, que foram despedidos e listados como “revolucionários”, a fim de não obterem trabalho em outras empresas. Durante o confronto, socialistas e anarquistas disputaram a direção do movimento. Os primeiros propunham a acomodação com os patrões; os segundos exigiam a luta até a obtenção das oito horas. A greve dos “21 dias”, como ficou conhecida, parece ter fortalecido o prestígio dos socialistas, em geral, e de Francisco Xavier da Costa, em especial. Na greve, tiveram enorme importância os ativistas anarquistas organizados em torno do jornal A Luta. O movimento paredista de 1906 teve parte de suas reivindicações atendidas. Em geral, os grevistas obtiveram a jornada de nove horas de trabalho – os marmoristas obtiveram oito horas – e algumas melhorias profissionais. Importante resultado da mobilização foi a consolidação da Federação Operária do Rio Grande do Sul (Forgs), de longa e combativa trajetória, fundada naquele ano.

Salto de qualidade Participaram da formação da Forgs a Allgemeiner Arbeiterverein, a Sociedade dos Trabalhadores Polacos (Towarzysiwo Naprzed), a União dos Empregados em Madeira, a União dos Alfaiates, a União dos Pedreiros, a União dos Chapeleiros e a União dos Tecelões. O Sindicato dos Marmoristas, a União Operária Internacional, o Grêmio das Artes Gráficas e a Escola Eliseu Reclus, de orientação anarquista, não se associaram a ela. Paradoxalmente, não se realizou a proposta de formação de uma Sociedade

288

de Industrialistas, surgida durante o confronto. Após 1906, o movimento operário sulino entrou em refluxo, tendo-se notícias de apenas uma greve de estivadores, em Rio Grande, por aumento de salários, em setembro de 1907. Salvo engano, não temos registro de movimentos grevistas nos anos seguintes. Porém, foi importante o ativismo associativo e cultural do movimento operário, sobretudo porto-alegrense. Em 1909, entre outros, foram fundados o Grêmio Recreativo 1º de Maio, a Liga dos Pintores, a Banda Musical Operária, o Centro Esportivo Operário e o Grêmio Dramático Operário Xavier da Costa, em Porto Alegre. Demarcando o forte refluxo do movimento operário regional, não se reuniu, como previsto, em Porto Alegre o 2º Congresso Operário do Rio Grande do Sul. Em 1910, a União dos Estivadores de Porto Alegre estabeleceu Escola de Operários, noturna e gratuita. Nesse ano, greve na Metalúrgica Alberto Bins teria sido derrotada. No controle da Forgs, os socialistas promoveram claro movimento de aproximação e adesão ao governo republicano borgista, tentando, inclusive, em março de 1909, eleger Francisco Xavier da Costa à Assembleia dos Representantes, como candidato do Partido Republicano Riograndense. Em 1911, os anarquistas sul-rio-grandenses deslocaram os socialistas e obtiveram maioria na direção da Forgs, dando a seguir forte impulso à mobilização classista autônoma. No mesmo ano, recrudesceu o ativismo operário, com movimentos grevistas em Livramento (tipógrafos), Cachoeira (alfaiates) e Porto Alegre (alfaiates, carpinteiros, motorneiros, operários navais, pedreiros, etc.). A seguir, sucederam-se diversas greves em Porto Alegre, Livramento, Rio Grande e Santa Maria, em 1912; e em 1913, em Bagé, Porto Alegre, Rio Grande e Santa Maria. Em setembro de 1913 realizou-se no Rio de Janeiro o II Congresso Operário do Brasil, promovido pela COB, com a participação de 26 associações da capital e do interior do Rio Grande do Sul, entre elas a Allgemeiner Arbeiterverein (Porto Alegre: 150 sócios), União Metalúrgica (Porto Alegre: 100), Centro Classes Laboriosas (Santa Maria: 50), Centro dos Trabalhadores (Passo Fundo: 40), União dos Oficiais Barbeiros (Porto Alegre: 60), Sindicato dos Pintores (Porto Alegre: 70), Sindicato Tanoeiros (Caxias do Sul: 30), União Artífices Sapateiros (Porto Alegre: 80), Lira Operária (Porto Alegre: 50), União de Resistência Marmorista (Porto Alegre: 80), União dos Chapeleiros (Porto Alegre: 50), União dos Estivadores (Porto Alegre: 30), Círculo Operário (Porto Alegre: 10), União dos Pedreiros (Porto Alegre: 1.400), União dos Trabalhadores (Montenegro: 40), União Gráfica (Rio Grande: 50), União Operária Internacional (Porto Alegre: 170), União Padeiral (Porto Alegre: 600), União Tipográfica (Porto Alegre: 130) e União Trabalhadores Estiva (Rio Grande: 90).

289

Duras condições de vida Durante a Primeira Guerra Mundial deprimiram-se as condições de vida da população. A desvalorização cambial, a inflação e a exportação de alimentos para a Europa encareceram fortemente os meios de subsistência. Em 1914 e 1915, no contexto da expansão da produção e das exportações sulinas devido à guerra, assinalaram-se poucos movimentos paredistas – em Alegrete, Rio Grande, Santa Maria e Porto Alegre. Em 1916, o movimento operário sulino entrou em efervescência, realizando, diversos movimentos grevistas – mineiros de São Jerônimo; operários de pedreiras, tecelões, calceteiros, padeiros, mensageiros, etc. em Porto Alegre; cocheiros, em Santa Maria. Em 1917, em todo o Brasil, eclodiram movimentos grevistas em resposta às difíceis condições de trabalho e de vida a que se viam submetidas as classes populares, favorecidas pela ampla expansão da atividade produtiva. Em julho, em reunião pública, a Forgs fundou uma Liga de Defesa Popular. Esta organização, além de reafirmar a exigência das oito horas de trabalho para homens e seis para mulheres e crianças, lançou reivindicações populares, como a diminuição dos preços dos alimentos, a criação de matadouros municipais e de mercados livres nos bairros operários, etc. Pela primeira vez, com essa iniciativa, o movimento operário propunha um programa reivindicatório para o conjunto das classes subalternizadas e intermediárias sulinas. Em março de 1917, canteiros, calceteiros e pedreiros de Porto Alegre entraram em greve. Em 31 de julho de 1917, em Santa Maria, com apoio da Forgs, eclodiu violenta greve entre os trabalhadores da Viação Férrea, reivindicando a semana inglesa (meio sábado de trabalho) e a jornada de oito horas. O movimento envolveu todos os municípios servidos pela rede, tornando-se o primeiro movimento grevista estadual de um corpo profissional rio-grandense. Grupos de operários percorreram as ruas da capital. Finalmente, no dia 1º de agosto entraram em greve por melhores salários e pelas oito horas de trabalho milhares de operários da capital – alfaiates, carpinteiros, chapeleiros, comerciários, eletricitários, estivadores, motorneiros, tecelões, tipógrafos, etc. Manifestação na praça da Alfândega reuniu quatro mil operários. Ajudado pela greve do serviço ferroviário, o movimento grevista praticamente parou a capital, que nessa época teria uns 150 mil habitantes. Em 2 de agosto uma delegação da Liga de Defesa Popular foi recebida pelo presidente do estado, Borges de Medeiros, que se comprometeu a elevar o salário dos trabalhadores públicos e a restringir a exportação dos alimentos. Decretos do governo estadual atenderam, no mesmo dia, a parte das reivindicações operárias e populares. A seguir, em sua maioria, os empresários aceitaram as reivindicações operárias e medidas em defesa da economia popular foram tomadas pelo intendentes da capital. Em 5 de agosto, fora alguns movimentos marginais, a greve geral concluiu-se ob-

290

tendo ampla vitória. O fato de o movimento interpretar as reivindicações de amplas camadas populares da capital contribuiu para a determinação do governo e dos empresários de concederem as reivindicações, temendo a generalização da organização e do movimento para os demais setores das classes oprimidas.

O Ano Vermelho Ainda em agosto, eclodiram movimentos paredistas em Pelotas e, possivelmente, Montenegro (A.J.Renner), Caxias (Amadeu Rossi) e Jaguarão (estivadores). Em Pelotas, o movimento, capitaneado por uma Liga de Defesa Popular, estendeu-se a diversas categorias e motivou importantes choques com as forças policiais e militares, concluindo-se sem resultados tangíveis. Em novembro e dezembro, novamente, operários da Viação Férrea entraram em greve por diversas reivindicações, obtendo nova vitória. O movimento dos ferroviários atacou duramente o arrendamento das linhas férreas sul-rio-grandenses à Compagnie Auxiliaire, parte do sindicato estadunidense Brazil Railway, acusando-a de prestar serviço deficiente. A companhia recebia fortes críticas dos empresários e criadores que utilizavam seus serviços. Borges de Medeiros aventou a necessidade de encampar a empresa e foi nomeado como representante das reivindicações dos ferroviários junto à companhia. Os grevistas obtiveram aumentos de salário, assistência médica, além de outras vantagens. No ano seguinte, em 1918, apesar da vitória do movimento de quatrocentos mineiros do Arroio dos Ratos; de uma paralisação em pedreira, de calceteiros e de metalúrgicos da capital; de greve no frigorífico Armour, em Santana do Livramento; de parede em indústria têxtil em Rio Grande, a greve geral, de 21 a 25 de julho, chamada pela Forgs, em Porto Alegre, não teria alcançado seus objetivos – diminuição do preço dos gêneros de subsistência, oito horas de trabalho, indenização dos acidentes de trabalho, subvenção da passagem de bonde para operários, liberdade para grevistas presos. Nesse ano ocorreram também movimentos de carroceiros em Rio Grande e de operários de fábrica de móveis em Triunfo. Também em 1918, meses após o conhecimento da vitória operária na Rússia tzarista, surgiam a Liga Comunista de Livramento, o Centro Comunista de Passo Fundo e a União Maximalista de Porto Alegre. Mil novecentos e dezenove foi um verdadeiro Ano Vermelho no Brasil. Na época, no Brasil e no Rio Grande do Sul, era muito difícil a situação das classes trabalhadoras, em virtude da recessão capitalista mundial pósguerra e das dificuldades econômicas internas. Em janeiro eclodiu em Porto Alegre movimento entre os foguistas e carvoeiros, que obtiveram suas reivindicações. A seguir, registraram-se dezenas de outras paralisações: em Caxias do Sul, Gravataí, Livramento, Montenegro, Passo Fundo, Pelotas,

291

Porto Alegre, Rio Grande e Santa Maria. Apesar de os movimentos terem sido vitoriosos em sua maioria, foi derrotada a greve geral da capital, de 25 de agosto a 11 de setembro, seguida por milhares de trabalhadores. A greve geral de 1919 eclodiu entre os trabalhadores têxteis, principal indústria fabril da época, em fins de agosto, pelas oito horas de trabalho e aumento de salários, estendendo-se logo aos eletricitários e telefônicos. A seguir, ingressaram na parede trabalhadores de inúmeras outras atividades manufatureiras, artesanais e de serviços. O movimento envolveu de três a nove mil trabalhadores. Em 6 de setembro ocorreu ataque de dinamite ao recém-montado serviço de emergência da Usina de Força e Luz – Companhia Light and Power. Nos dias seguintes, bombas foram lançadas contra uma padaria e a residência de alto funcionário da companhia de eletricidade, sem vítimas. O terrorismo individual revolucionário era uma tradição anarcoindividualista. Em 7 de setembro, dia da Independência do Brasil, a polícia e soldados reprimiram violentamente manifestação operária, acarretando a morte do operário João Puppi. Não seguindo a política de 1917, o governo borgista aproveitou o confronto para dissolver o sindicato da Força e Luz, a União Metalúrgica e a própria Forgs, que teve sua sede ocupada pela Brigada Militar. A visão de uma organização liberal da sociedade, onde o capital pudesse se movimentar sem oposição organizada dos trabalhadores, foi sempre um dos elementos constitutivos do empresariado do Rio Grande do Sul e do Brasil. A partir de 10 de setembro, a greve entrou em declínio, sem obter suas reivindicações, amargando grave derrota. A derrota da greve de 1919 inaugurou um longo período de refluxo do movimento operário sulino, duramente reprimido, e, sobretudo, sob o influxo desorganizador da recessão que varreu o mundo desenvolvido após 1920, até 1934, quando mais de duzentas fábricas rio-grandenses fecharam as portas, lançando no desemprego milhares de trabalhadores.

Fênix operário Apesar do insucesso e da dissolução da Forgs, de 21 a 25 março de 1920 reuniu-se em Porto Alegre, na rua Comendador Azevedo, nº 30, o 2º Congresso Operário sulino, preparatório ao Congresso Operário brasileiro, com delegações de trinta associações operárias, no qual dominaram, mais uma vez, as teses anarcossindicalistas – ação direta, antieleitoralismo, antimilitarismo, organização sindical revolucionária, etc. Em abril se reuniu o congresso nacional da COB. Em 1920, como nos anos anteriores, surgiram novos jornais operários, como o Der Freie Arbeiter (O Trabalhador Livre), anarquista, e fundou-se em Porto Alegre o Sindicato Gráfico Comunista. Também nesse ano houve, no mínimo, greve dos operários da Ario Zanellato, por demissão de colega, em Caxias; na Cervejaria Bopp, em Por-

292

to Alegre; na Tecelagem Ítalo-Brasileira, por aumento de salários, em Rio Grande. O domínio anarcossindicalista continuaria sobre o movimento operário sulino organizado durante a década de 20. Porém, a repressão do Estado borgista, a estagnação econômica da indústria sulina, as transformações do pós-guerra favoreceram a crise dessa hegemonia. A vitória da Revolução Russa, em 1917, e o desenvolvimento da indústria sulina, com inúmeras falências de pequenas e médias empresas e a concentração do capital fabril e manufatureiro, colaboraram também para a erosão do prestígio e do vigor das posições anarcossindicalistas. Em 1921, o governo federal ditou decretos de repressão contra os anarquistas e de expulsão de operários estrangeiros ativistas. Em março de 1922 fundou-se o Partido Comunista do Brasil a partir da reunião de diversos militantes e de pequenos grupos de orientação marxista, formados sob a atração da vitória da Revolução Russa, tendo na direção Abílio de Naquete. A trajetória e o perfil do primeiro secretário-geral e principal liderança da conformação do PCB registram o caráter político e ideologicamente precário desse processo, como assinalado por Frederico Duarte Bartz em Abílio De Nequete: os múltiplos caminhos de uma militância operária. Abílio de Nequete nasceu no Líbano em 1888, no seio de família cristãortodoxa. Aos 14 anos emigrou ao Rio Grande do Sul, como o pai já fizera. Desembarcou em Rio Grande e estabeleceu-se em Dom Feliciano, como mascate. Em 1907, após as grandes jornadas operárias, foi viver e trabalhar como barbeiro no Quarto Distrito, centro industrial da capital, onde se converteu ao espiritismo. Em 1917, quando da grande greve, aderiu à Liga de Defesa Popular, tornando-se redator do seu jornal, A Época. Após aqueles fatos, encetou propaganda de sentido confuso entre os soldados porto-alegrenses. Em 1918, sob a atração da Revolução Russa, sobre a qual teria parcas informações, aderiu à União Operária Internacional, anarquista, com a qual romperia, possivelmente em razão de suas crenças religiosas, para fundar uma União Maximalista, em fins do em novembro daquele ano. Como dirigente da pequena organização, interveio nas paralizações de 1919 e assinou coluna no jornal da Forgs, defendendo no congresso operário sulino de 1920 a adesão dessa federação à III Internacional, sem sucesso. Esse fracasso teria contribuído para aprofundar sua dissensão com o anarquismo. Em 1921 contatou comunistas uruguaios defensores da adesão à III Internacional, mudando, ao igual que militantes cariocas, o nome de sua pequena organização para Grupo Comunista de Porto Alegre. Em inícios de 1922, em Montevidéu, apresentou relatório sobre o movimento operário no Rio Grande do Sul e no Brasil ao delegado da Internacional, que lhe delegou a tarefa de organizar a unificação dos comunistas no Brasil, efetivada em 25 e 27 de março de 1922.

293

Apenas eleito secretário-geral, Abílio de Naquete teria conflitado com a direção do PCB, sendo afastado do partido em 1923 e, após, expulso. Tentando seguir carreira política, aproximou-se do PRR e associou-se, em 1925, à Liga dos Operários Republicanos, em formação. Avançou interpretação social geral na qual os trabalhadores técnico-científicos seriam a vanguarda da revolução e os operários manuais, parasitas. Sob o apelo “técnicos de todos os países, uni-vos”, fundou, em 1927, o Partido Tecnocrata, que obteve quinze votos em eleição estadual. Já como professor da Escola do Comércio, propôs evolução espiritual e tecnocrática do mundo. Morreu em 1960, aos 78 anos.

A foice e o martelo Com a fundação do PCB, um número crescente de militantes anarcossindicalistas aderiu, ainda que fosse formalmente, ao marxismo, sob a irresistível pressão da revolução socialista soviética, que destruíra a ordem burguesa, expropriara a propriedade privada e, pela primeira vez na história, construía um Estado de trabalhadores e camponeses. Essa adesão se dava em momento de depressão da produção manufatureira e industrial brasileira e rio-grandense, quando ainda o mundo rural dominava o urbano. A informação e formação política marxista dessa militância era igualmente muito escassa, dominando as concepções positivistas e anarquistas. No Sul, nos primeiros tempos, os comunistas sofreram forte concorrência dos anarcossindicalistas da Forgs. Em 1924 registra-se em Porto Alegre uma União de Ofícios Vários, de orientação comunista, que publicava o jornal O Martelo e a Foice. De 27 de setembro a 2 de outubro de 1925, apesar da dura repressão do governo de Artur Bernardes, realizou-se na capital o 3º Congresso Operário do Rio Grande do Sul, que reafirmou as posições anarcossindicalistas ainda hegemônicas no estado. No congresso, um delegado alemão apresentou longo relatório sobre o congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores, de Amsterdam, de orientação anarquista. Estiveram, presentes no congresso delegados da federação local de Porto Alegre, Trabalhadores de São Paulo, Federação da C. T. do Pará, Sindicato de Canteiros de Santos, Liga de Operários de Pelotas, Sindicato de Ofícios Vários, Vila Petrópolis,União Geral dos Trabalhadores de Uruguaiana, Sindicato dos Canteiros de Porto Alegre, União Operária Beneficente de Cacequi, União Operária Beneficente de Alegrete, Liga Operária Internacional, Sindicato dos Canteiros do Capão do Leão, Grupo Literário de São Paulo, Grupo Cultural Livre Pensamento, Grupo Braço e Cérebro, Grupo de Propaganda Social do Pará, Grupo de Propaganda Social de Pelotas e Grupo Germinal do Rio Grande.

294

Em 1926, fundou-se uma Liga dos Operários Republicanos, sob a inspiração do Partido Republicano Riograndense, dirigida por duas antigas lideranças operárias, e em 1929, uma Associação Republicana Operária, em clara tentativa de cooptação do movimento operário pelo PRR. Em 1927 registrou-se a intenção da Comissão Regional do Partido Comunista de festejar o 1º de maio e atos de propaganda comunista em Livramento e Porto Alegre. Em 1927, o PCB, clandestino, fundou, com objetivos eleitorais, o Bloco Operário e Camponês, sob o qual concorreu às eleições do ano seguinte. Quando dessa campanha, candidatos do BOC fizeram propaganda em Porto Alegre e outras cidades. Em Caxias do Sul, Plínio Mello teria discursado para alguns assustados e distantes populares, na praça central. O jovem comunista teria fundado o jornal Extrema-Esquerda. Por esses tempos, os comunistas começaram a conquistar aos anarcossindicalistas a hegemonia sobre o movimento operário, apesar de o Rio Grande continuar sendo uma espécie de bastião daquela tendência. Em 1928 ocorreu o quarto Congresso Operário do Rio Grande do Sul, clandestino, com 16 entidades operárias, seis grupos anarquistas e outros delegados, entre eles, do Uruguai, da Argentina e do Paraguai. Em 1929, no Sul, organizou-se a Confederação Regional do Trabalho, que posteriormente se fundiria na Confederação Geral do Trabalho, formada no Rio de Janeiro quando do Congresso Operário Nacional, organizado por correntes comunistas. Também nesse ano, os comunistas rio-grandenses festejaram o 1º de Maio, o dia da morte de Lenin e o aniversário da Revolução Russa, cantando sempre a “Internacional Comunista”. Em janeiro de 1930, teria se reunido em Porto Alegre congresso anarquista regional.

295

21 O Rio Grande do Sul, o tenentismo e a rebelião de 1923 Nos anos 1910, o café era o principal produto exportado pelo Brasil e a grande riqueza de São Paulo. Porém, através do Brasil, como no Rio Grande do Sul, prosseguia o processo de industrialização e de crescimento dos setores operários e médios, sobretudo urbanos. Nesse contexto, a superprodução e a queda das cotações internacionais do café foram combatidas com a política de valorização do produto. A política de valorização do café determinava que o estado de São Paulo e, mais tarde, também o governo federal realizassem grandes empréstimos e emissões para estocar a produção excedente, determinando a elevação do preço internacional do produto. A consequência inevitável desse tipo de intervencionismo era a expansão dos cafezais no Brasil e no mundo, enquanto estagnava o consumo mundial do produto. Em inícios de 1920, a economia internacional mergulhou em grave crise recessiva, com a consequente depressão das cotações do café e dos outros produtos do setor primário exportados pelo Brasil. O governo do presidente Epitácio Pessoa (1919-1922) prosseguiu empregando os limitados recursos federais essencialmente na defesa da cafeicultura, desconhecendo as reivindicações das economias e das oligarquias periféricas em dificuldades, entre as quais, a rio-grandense. No Sul, com a desmobilização dos exércitos europeus e com a recessão internacional, a economia pastoril-charqueadora mergulhou em profunda crise, pois se retraíra o mercado consumidor do charque, da carne e do couro, nacional e internacional. Endividados, criadores foram executados nos seus rebanhos e propriedades. A política inflacionária de Epitácio Pessoa, determinada pela Terceira Valorização do Café, encarecia os gêneros de primeira necessidade, nacionais e importados. Para garantir a continuidade da política federal de proteção à cafeicultura, as oligarquias paulistas e mineiras lançaram a candidatura do mineiro Artur Bernardes à magistratura suprema. Borges de Medeiros e o PRR opuseram-se à iniciativa, que desagradava, igualmente, importantes setores oligárquicos de outros estados médios, em dificuldades. Duas candidaturas opuseram-se ao continuísmo do “café-com-leite”. A alta oficialidade do Exército fora afastada da alta política federal desde o fim dos governos de Floriano Peixoto (1891-1894) e do rio-grandense Hermes da Fonseca (1910-1914). Ela tentou voltar ao governo, relançando à presidência o velho marechal Hermes da Fonseca. Os militares lutavam pela designação de um militar como ministro da Guerra, por melhor aparelhamento bélico das Forças Armadas, por maiores salários, etc.

296

Reação republicana As oligarquias de estados intermediários – Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul – e de menor peso político confluíram no lançamento do fluminense Nilo Peçanha à presidência e de J. J. Seabra à vicepresidência, através da chapa Reação Republicana. Borges de Medeiros e o PRR tiveram importante atuação na formação dessa articulação política. O governo sulino opunha-se à desvalorização da moeda nacional, pois deprimia o poder de compra da população, principal consumidora da produção pastoril, charqueadora e de gêneros de subsistência sulina. Quando a candidatura do marechal inviabilizou-se, os militares apoiaram o candidato civil dissidente. Nilo Peçanha era membro de destaque da estrutura oligárquica nacional. Apesar do radicalismo verbal que assumira durante a campanha, seu programa eleitoral não foi além da proposta da moralização dos costumes políticos, sequer defendendo o voto secreto. Porém, a campanha da Reação Republicana extravasou o cenário eleitoral oligárquico e repetiu a mobilização popular propiciada em 1909 pela Campanha Civilista de Rui Barbosa. Sobretudo a população urbana aderiu à candidatura nilista. A Reação Republicana galvanizou boa parte das classes médias e sensibilizou setores do operariado, duramente reprimidos após as mobilizações de 1917 e 1919. O regime vigente garantia o monopólio político das oligarquias, marginalizando a população, golpeada pela crise e angustiada pela falta de perspectivas sociais, políticas e econômicas. A campanha da Reação Republicana envolveu a nação numa época em que os únicos organismos verdadeiramente nacionais eram o Estado federal, o Exército, a Marinha e a Igreja. No país fundaram-se comitês eleitorais pró-Nilo Peçanha, formados por militares e civis. Envolvida pela campanha, a jovem oficialidade do Exército tornou-se uma espécie de caixa de ressonância da insatisfação das classes populares e, sobretudo, dos setores médios urbanos. São Paulo era o coração econômico do Brasil; Minas Gerais, o estado mais populoso. A estrutura eleitoral oligárquica – “voto descoberto” e a “cabresto” – determinava que as eleições fossem ganhas, invariavelmente, pelas oligarquias hegemônicas. Os jovens militares e muitos civis passaram a propor movimento militar que regenerasse a política no Brasil, quando compreenderam a inviabilidade da vitória eleitoral da oposição.

Mais café-com-leite Em fins de abril, momentos antes das eleições, ocorreram tentativas de deposição dos governadores pró-Artur Bernardes no Maranhão, Paraná e Santa Catarina, a fim de que a população votasse livremente, sem a pressão do poder oligárquico regional. Nesse momento, a dinâmica da mo-

297

bilização social e política ensejada pela eleição, animada em boa parte pela ação dos jovens tenentes e capitães do Exército, ultrapassava já o programa da Reação Republicana. À medida que a jovem oficialidade radicalizava-se, os principais políticos oligárquicos dissidentes dissociavam da proposta de um movimento militar que depusesse Artur Bernardes após sua esperada eleição. O mesmo ocorreu com boa parte da alta oficialidade do Exército, que aderira, em geral, publicamente ao candidato oposicionista. Uns e outros esperavam utilizar a insatisfação social para pressionar e obter concessões do candidato e dos setores oligárquicos vitoriosos. A eleição ocorreu em 1º de março de 1922. Após ser conhecida a vitória de Artur Bernardes, em 5 de julho de 1922, eclodiram movimentos militares no Distrito Federal (Vila Militar, Escola Militar do Realengo, Forte de Copacabana), no Rio de Janeiro (Niterói) e no Mato Grosso (Campo Grande), a fim de impedir a posse de Artur Bernardes. O governo instituiu o estado de sítio e os movimentos rebeldes foram fácil e duramente debelados. No Sul, imediatamente, Borges de Medeiros publicou, em 7 de julho, em A Federação, órgão oficial do PRR, o editorial “Pela ordem”, que estendia a mão a Artur Bernardes, reconhecendo sua vitória e opondo-se a qualquer “desordem civil”. A aproximação de Borges de Medeiros com Artur Bernardes foi recompensada quando da insurreição armada das forças maragatas e assisistas, em 1923, com a não intervenção federal no estado. Após 1922, abandonados à própria sorte pelos principais setores oligárquicos dissidentes, os “tenentes” prosseguiriam organizando levantes militares que expressavam o profundo mal-estar da população, em geral, e de seus setores médios, em especial. Apenas em 1930, quando a crise se precipitava, as oligarquias dos estados periféricos uniram-se em movimento nacional contra a dominação exclusiva do poder federal pelas oligarquias paulistas e mineiras, para se dissociar, muito logo, da nova ordem que emergia da mobilização armada. A Reação Republicana foi uma espécie de ensaio geral da chamada Revolução de 1930. Em Os militares e a reação republicana: as origens do tenentismo, a historiadora Anita Leocádia Prestes lembra que a inexistência de um programa tenentista coerente deveu-se à essência dessa “camada social” intermediária e à debilidade do movimento operário da época, incapaz de levantar propostas políticas e sociais que atraíssem, armassem e orientassem os militares revolucionários. Em inícios dos anos 20, a imensa maioria dos trabalhadores vivia no campo; o empresariado industrial não havia ainda se autonomizado dos setores oligárquicos rurais; a classe operária dos estados em industrialização sofrera importantes derrotas nos anos anteriores. Sobretudo, nesse momento, um movimento nacional era quase impossível no contexto da forte autonomia e autarquia regionais. Em verdade, então, não existia o Brasil unitário, parido após 1930, com o desenvolvimento de um mercado nacional e de uma indústria centrada no Rio de Janeiro e São Paulo.

298

A crise golpeia o Sul Durante a Primeira Guerra Mundial aceleraram-se as transformações socioeconômicas em curso no Rio Grande. Finalmente, a necessidade de carne para as tropas europeias permitira a introdução de frigoríficos no estado, após a concessão de grandes vantagens fiscais. Em Santana do Livramento estabeleceram-se o frigorífico Armour, em 1917, e a Companhia Wilson, em 1918; em Rio Grande, a Swift do Brasil, em 1917; em Pelotas, em 1918, organizou-se a Companhia Frigorífica do Rio Grande, com capitais regionais. Em 1921, a empresa foi vendida para uma companhia uma inglesa. Apesar de as carnes sulinas serem inferiores às do Prata, onde, desde 1883, a Argentina possuía frigoríficos, a expansão do mercado determinada pela guerra permitira período de bonança econômica entre os criadores do meridião rio-grandense, que se endividaram para aumentar a produtividade de suas explorações, investindo em abrigos, cercas, reprodutores, etc. Em 1919 o governo sulino fundou um Posto Zootécnico na capital para melhorar os rebanhos, com a introdução de reprodutores de raça. Em 1916 o estado possuía 374 banheiros carrapaticidas; em 1918, 400, e, em 1919, 470. Todos se localizavam na metade sul do estado. Os investimentos determinaram rápida expansão da produção pastoril sulina. As obras da barra e do porto do Rio Grande não prosperavam. A Viação Férrea, na mão de capitais internacionais, não correspondia às novas necessidades da expansão da economia sulina. Em 1920, para solucionar essa situação, apesar de o positivismo comtiano defender o equilíbrio das contas públicas e a não ingerência governamental na produção, o governo estadual endividou-se, interna e externamente, para encampar as linhas ferroviárias sulinas, o que ocorreu após as greves do setor em 1917. Com o fim da guerra, a conjuntura internacional positiva dissolveu-se. A partir de 1920, com a desmobilização dos exércitos e a recessão da economia capitalista então em curso, retraiu-se rapidamente o mercado das carnes, num momento em que os criadores esperavam se ressarcir dos investimentos feitos na produção. Com os novos ventos, os bancos rio-grandenses restringiram a concessão e renovação de empréstimos e executaram as dívidas vencidas. As perdas dos proprietários pastoris foram grandes, sobretudo na fronteira, e o Banco Pelotense terminou recebendo milhares de cabeças de gado como pagamento de criadores insolventes. Mais de oitocentas fábricas sulinas faliram.

Cobertor de pobre Em 1921, em Bagé, os criadores iniciaram a formação de uma Federação de Associações Rurais a fim de melhor impor suas reivindicações setoriais. Para mitigar a crise que viviam, exigiram do governo estadual a

299

redução dos fretes ferroviários, proteção alfandegária contra os produtos do Prata, diminuição de impostos e abertura de linhas de financiamento. Logo reivindicaram que governo rio-grandense defendesse, no Sul, o boi, como fazia o governo paulista no relativo ao café. Os recursos estatais regionais eram limitados. Se o governo protegesse os interesses pastoris, interromperia sua política de apoio à policultura e à diversificação da produção rio-grandense. Tal ação significaria romper com seu projeto e sua principal base social. Impossibilitado de fazê-lo, inicialmente, o Executivo tentou transferir ao poder federal os custos do apoio à produção pastoril. Quando não conseguiu impor tal intenção, negou-se a fazer maiores concessões, apoiando-se nos pressupostos positivistas da defesa dos interesses gerais. Nesse momento, se iniciavam em São Paulo as pressões dos cafeicultores em prol do prosseguimento do protecionismo federal da cafeicultora, medida malvista pelos deputados sul-rio-grandenses, já que as novas emissões levariam à inflação e à consequente perda de poder aquisitivo das populações brasileiras, consumidoras dos produtos agropastoris sulinos, escoados em boa parte para os outros estados da federação. Em março de 1921, apesar da oposição do Sul e de outros estados, o governo federal iniciou a Terceira Valorização do Café. Em outubro, quando o governo de Epitácio Pessoa (1919-1922) enviou a proposta ao Congresso de uma defesa permanente do café, os deputados rio-grandenses tentaram, inutilmente, agregar à medida a defesa dos produtos agropecuários do país, em geral, e, sobretudo, do boi, como reivindicavam os segmentos pastoris sulinos. Em 1922, a continuidade da crise econômica mundial, um forte surto de febre aftosa entre o gado, uma dura seca e um inverno rigoroso agravaram a grave crise dos pecuaristas. A depressão dos criadores sulinos era ainda maior, pois sabiam que no Prata, em razão do auxílio governamental, prosseguia a matança nos frigoríficos e nas charqueadas. Em 1921-22, o governo borgista, que participara da Reação Republicana, procurando servir-se dos recursos federais, utilizados sobretudo na defesa do café, para defender o boi, afastara-se da oposição e dos tenentes e estendera a mão a Artur Bernardes, candidato que fora apoiado pela oposição sul-rio-grandense.

Um tapa na água No início de 1922, em Porto Alegre, novamente os criadores reivindicaram que o governo rio-grandense exigisse do poder central proteção alfandegária da produção pastoril sulina diante dos produtos platinos; proibição do ingresso de gados orientais no país; isenção de impostos para as charqueadas e frigoríficos; preço mínimo para o charque. Reivindicava, igualmente, a

300

formação de um banco de crédito rural hipotecário, capaz de financiamento a longo prazo. No Congresso Nacional, as reivindicações sulinas obtiveram limitadas linhas de crédito, não sendo tomadas medidas efetivas de proteção ao charque. As medidas pleiteadas pelos deputados sulinos desviariam capitais da defesa do café e encareceriam a cesta básica do trabalhador, propiciando, assim, a reivindicação de maiores salários. Por isso, foram rechaçadas pelos segmentos proprietários hegemônicos do Sudeste. Ao contrário, instituiu-se um fundo de trezentos mil contos para a proteção permanente do café. A derrota das reivindicações sulinas foi sentida no Rio Grande do Sul, sobretudo pelos pecuaristas, como uma derrota do borgismo. Em junho de 1922, mantendo-se a crise da pecuária e a consequente execução de criadores endividados, os representantes dos segmentos pastoris reivindicaram que os empréstimos obtidos para financiar as obras da barra e do porto de Rio Grande e a melhoria do transporte ferroviário fossem empregados no apoio ao pastoreio. A medida significaria a interrupção de obras de modernização da infraestrutura regional que beneficiavam a economia sulina como um todo. Com a negativa de Borges de Medeiros e do PRR de se submeterem às reivindicações pastoris, os criadores romperam definitivamente com o governo estadual. Em julho de 1922, Assis Brasil passou a interpretar a oposição dos criadores ao propor que o Estado se endividasse para apoiar a economia pastoril. O pronunciamento viabilizou a aproximação e a fusão orgânica da dissidência republicana com a oposição federalista, pondo fim a toda uma página da história das classes proprietárias sulinas. Republicano histórico, Joaquim Francisco de Assis Brasil, então com 65 anos, propunha programa de modernização técnica da economia agropastoril que mantivesse intacta a posse monopólica da terra. Em 1894, quando vivia como diplomata na França, apoiara a fundação da Sociedade Brasileira para a Animação da Agricultura. De volta ao Rio Grande, introduziu em suas fazendas novas raças bovinas e novas técnicas agropastoris. Em 1897, Assis Brasil publicara, em Portugal, 25 mil exemplares do livro Cultura dos campos: noções gerais de agricultura e especiais de alguns cultivos atualmente mais urgentes no Brasil, que tinha como leitor-alvo os “homens do campo esclarecidos” e fazendeiro “esclarecido”. Mais tarde, Assis Brasil fundaria a Granja de Pedras Altas, no município de Pinheiro Machado (ex-Cacimbinhas), na Campanha, a 350 km da capital, que se propunha como exemplo vivo das suas propostas técnicoreformistas. A construção do chamado “Castelo de Pedras Altas”, na granja homônima, com biblioteca rica em obras europeias, 44 cômodos, em pleno espaço pampiano, constituiu uma espécie de síntese arquitetônica da proposta de transformação do criador latifundiário sulino em gentleman farmer.

301

O historiador da arquitetura Günter Weimer definiu a bizarra construção, em granito rosa, como “perfeita obra em estilo medievo-espaguetti-escocês”. Certamente não devido ao seu valor artístico, em 1999, a Secretaria Estadual de Cultura do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, quando do governo Olívio Dutra (1999-2002), tombou a residência do líder político máximo do agrarismo rio-grandense durante os festejos da Semana Farroupilha, movimento separatista dos grandes proprietários do meridião sulino em 1835-45.

Candidato eterno Em setembro de 1922, pela quinta vez, o PRR indicou Borges de Medeiros como candidato à presidência do estado, nas eleições que se realizariam no mês de novembro daquele ano. Borges de Medeiros, então com 59 anos, apresentou seu nome como o candidato em melhores condições de pôr fim à agitação política e de garantir a finalização das importantes obras portuárias e ferroviárias em curso, necessárias ao desenvolvimento econômico do estado. Em resposta à candidatura do continuísmo republicano, os federalistas, então dispersos e desorganizados, os democratas do PRD, de Assis Brasil e de Fernando Abbott, e republicanos dissidentes uniram-se em uma Aliança Libertadora para lançar Joaquim Francisco de Assis Brasil ao governo do estado, em outubro de 1922. Apesar das divergências doutrinárias – os federalistas eram parlamentaristas; os republicanos dissidentes, presidencialistas –, ambas as forças políticas confluíam na defesa dos interesses pastoris. Pela primeira vez, a oposição sul-rio-grandense unia-se ferreamente para combater o PRR. A reunião de propostas políticas divergentes numa só candidatura determinou que a oposição pouco propusesse, além do fim da ditadura pessoal de Borges de Medeiros e da harmonização da Constituição sul-rio-grandense com a brasileira, que permitiria que os interesses pastoris e liberais obtivessem espaços de poder no governo regional. A falta de programa foi explorada pelo PRR. Para impedir a reeleição de Borges de Medeiros, os assisistas necessitavam superar apenas um quarto dos votos. A oposição esperava que Artur Bernardes, recém-empossado, interviesse no Rio Grande do Sul e destituísse Borges de Medeiros, aproveitando-se das graves irregularidades eleitorais cometidas pelo PRR, como habitual e geral na República Velha. Apenas chegado ao governo, Artur Bernardes favoreceu a derrota das forças oligárquicas hegemônicas da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro, que haviam se oposto à sua candidatura, quando da Reação Republicana. No relativo ao Sul, aceitou a mão estendida por Borges de Medeiros. Pela primeira vez durante a campanha eleitoral de 1922, o PRR e assisistas procuraram atrair a simpatia e o apoio das classes médias e do

302

“pobre operário”, angustiado pela crise e pela carestia da vida e duramente reprimido pela polícia e Brigada Militar. Com as jornadas de 1906, 1917 e 1919, o movimento operário rio-grandense ganhara autonomia política e organizacional, ainda que fosse relativamente.

Nem deus, nem patrão Sobretudo em 1919, o governo republicano sulino tivera sérios atritos com o movimento operário organizado. Algumas das mais combativas organizações sindicais e a Federação Operária do Rio Grande do Sul (Forgs) haviam sido dissolvidas quando da greve geral daquele ano. Sob a hegemonia anarcossindicalista, a classe operária sulina organizada negava-se a participar das eleições. Os anarcossindicalistas eram contra o voto popular em candidatos das classes proprietárias e opunham-se à organização de partidos e listas eleitorais operárias. Contra essa política se mobilizaram as tendências socialistas reformistas minoritárias, os assisistas e o Grêmio Republicano Marcos de Andrade, do PRR. Parte da nova classe média profissional ascendente, formada nas faculdades do estado, incorporou-se à oposição, descontente com os princípios positivistas que negavam o exclusivismo profissional aos diplomados, permitindo que a medicina, a advocacia, a engenharia, a odontologia, etc., fossem praticadas sem a necessidade de formação institucional. Os assisistas também desenvolveram acirrada campanha nas regiões coloniais, tradicionais redutos do PRR, por meio de panfletos em língua alemã e italiana. As eleições realizaram-se em 25 de novembro de 1922, em meio a confrontos e tiroteios. A apuração do pleito era feita pela Comissão de Constituição de Poderes da Assembleia dos Representantes, sem que a minoria tivesse acesso aos seus trabalhos. A comissão pronunciou-se pela vitória do PRR em 16 de janeiro, aprovada pela Assembleia dos Representantes nove dias mais tarde: 106.360 votos para Borges; 32.216 para Assis Brasil, que viajara para o Rio de Janeiro após o pleito, onde permaneceu até o final do ano. Os assisistas obtiveram boa votação na Campanha e na fronteira, já com pouca importância eleitoral, e foram aplastados na capital e nas regiões coloniais alemã e italiana. Conta a tradição que Borges de Medeiros, ao receber no palácio Piratini os deputados republicanos estaduais encarregados de comunicar-lhe que não alcançara os votos necessários para se reeleger, não os deixara falar, agradecendo pelos cumprimentos que teriam vindo lhe apresentar. Após serem despedidos, sem outra solução, a comissão teria se reunido novamente para manipular ainda mais as listas eleitorais. Getúlio Vargas era o relator. Contra as expectativas da oposição, e em virtude da tensa situação regional, Artur Bernardes reconheceu a vitória do PRR, negando-se a arbitrar o escrutínio: “Não me é dado aceder ao honroso convite, porque, como Presiden-

303

te da República, a Constituição me confere atribuições e me impõe deveres, cujo exercício pode colidir com aquela elevada incumbência.” Quando, em 25 de janeiro de 1923, Borges de Medeiros assumia seu quinto mandato, eclodiu no Planalto levante oposicionista capitaneado por Artur Caetano, deputado e líder federalista da região. Conscientes da impossibilidade de depor Borges de Medeiros pelas armas, os insurretos, que tinham o apoio do governo de Santa Catarina, procuravam criar a situação de desordem interna que permitisse a intervenção federal no Rio Grande. Vimos que, apesar de ter fomentado o levante armado, Borges de Medeiros dissociara-se prontamente do mesmo, em editorial de A Federação, quando do fracassado movimento militar de 5 de julho de 1922, contra a posse de Artur Bernardes. Enfraquecido pela oposição militar e civil, Bernardes manteve-se à margem da questão sul-rio-grandense. Em abril, diversos focos insurgentes libertadores, sem direção centralizada, surgiam em praticamente todo o Rio Grande, organizados em colunas de setecentos a 1.800 homens. No total, as forças insurgentes contariam com uns seis mil homens mal-armados. No Rio de Janeiro, onde se encontrava Assis Brasil acompanhado da família, organizaram-se um Governo Provisório e uma Junta Suprema, prontos para se substituir ao governo republicano borgista no caso de intervenção federal. Em resposta, o borgismo fortaleceu a Brigada Militar com Corpos Provisórios, compostos por civis, voluntários e combatentes arrolados à força. Antes das eleições, o governo comprou abundante e moderno armamento. Mercenários uruguaios incorporaram-se às tropas legalistas. A mobilização de doze mil homens comprovou a clara superioridade bélica republicana, explícita igualmente na melhor e mais moderna organização dos combatentes. A força bélica republicana dissuadiu eventual disposição de intervenção federal. Membros da “geração de 1907” – Flores da Cunha, Oswaldo Aranha, Getúlio Vargas e Firmino Paim Filho, etc. – destacaram-se na luta armada contra as forças opositoras. A seguir, desempenharam um papel fundamental na vida política sul-rio-grandense e nacional. O tenente-coronel Getúlio Vargas comandou o 7o Corpo Provisório. João Neves da Fontoura relembrou em suas Memórias o caráter inusitado da revolta: “Sob certos aspectos, o levante assumia peculiaridades desconhecidas, pois as cidades, a não ser passageiramente (quase por horas), permaneciam em completa paz. Os trens circulavam com absoluta regularidade. Os correios e telégrafos, do mesmo modo. Só no interior é que ocorriam choques episódicos entre governistas e rebeldes. Alguns, bastante sangrentos.” Como a guerra civil aprofundava ainda mais a crise econômica sulina, sobretudo na Campanha e na fronteira, as pressões sobre o presidente da República levaram a que interviesse. Em maio de 1923, ele propôs o reconhecimento do mandato de Borges de Medeiros e uma reforma mínima da Constituição estadual, que, entre outras medidas, ampliasse as atribui-

304

ções do Legislativo e pusesse fim à reeleição do presidente do estado. Em outubro de 1923, um congresso do PRR pôs fim à relutância de Borges de Medeiros, criando as condições para o diálogo. Em novembro de 1923, o general Setembrino de Carvalho, ministro de Estado dos Negócios da Guerra, enviado pelo governo federal, acordou com o Borges de Medeiros armistício entre as forças em luta. O conflito duraria apenas oito meses. Em 15 de novembro, em Bagé, os insurretos examinaram as propostas federais, aceitas por Borges de Medeiros, que não continham a eleição do vice-presidente. Finalmente, em 14 dezembro de 1923, após duras discussões entre a oposição, no castelo da Granja de Pedras Altas, assinou-se a Ata de Pacificação. Borges de Medeiros continuava no governo, mas, a partir de então, não haveria mais reeleição para a presidência do estado e para os cargos executivos dos municípios. O acordo determinava, igualmente, que o vice-presidente seria eleito e restringiu-se significativamente a possibilidade de intervenção nos municípios. No mínimo, a oposição ocuparia seis cadeiras na Assembleia dos Representantes e cinco, no Congresso Nacional. Nas eleições para a Câmara Federal, realizada poucos meses após o fim do conflito, os oposicionistas tiveram sete deputados reconhecidos. Para o Senado, o candidato republicano obteve quase oitenta mil votos e Assis Brasil, pouco mais do que quarenta, sugerindo, por um lado, que o PRR era majoritário e hegemônico no estado e, por outro, que as eleições de 1922 haviam sido realmente fraudadas. A revolta de 1923 pôs fim apenas relativamente ao domínio absoluto do PRR no Sul, já que os grandes criadores seguiam não determinando o governo do estado, mesmo de forma associada. O movimento armado constituía o último e derradeiro grande sobressalto dos antigos senhores do Rio Grande, relegados doravante à situação de facção subordinada ao bloco político dominante. Apenas em 1924, facções das mesmas forças oposicionistas se levantariam mais uma vez, porém sem o ímpeto do ano anterior, em apoio à tentativa tenentista de deposição de Artur Bernardes. De certo modo, a crescente debilidade dos interesses pastoris expressou-se no fato de que não houve grandes batalhas durante os oito meses de luta, nem ocorreram as violências fratricidas da guerra civil de 1893-95, contando-se apenas casos isolados das tradicionais degolas, indiscutíveis excessos de membros subalternos das facções em luta. Combatia-se nos campo de batalha sabendo-se que os resultados seriam obtidos por meio de negociações e que ambos os segmentos sociais em confronto deveriam seguir coabitando, ainda que de forma desigual, os mesmos espaços sociais, econômicos e políticos.

305

A Coluna Prestes e o Rio Grande do Sul Em 1922, quando do levante tenentista contra a posse de Artur Bernardes, a população brasileira foi golpeada pelo sacrifício dos jovens defensores do Forte Copacabana, após se sublevarem, em 5 de julho de 1922, e resistirem por 24 horas ao ataque das forças governamentais. Após a resistência, abandonaram as posições para serem massacrados nas areias da praia carioca, dando origem à legenda dos Dezoito do Forte. A repressão governamental que se abateu sobre o país não impediu que prosseguisse a agitação conspirativa, sobretudo entre os jovens oficiais. Dois anos mais tarde, em 5 de julho de 1924, iniciou-se o grande movimento militar que pretendia depor Artur Bernardes e substituí-lo por Assis Brasil, em razão da morte de Nilo Peçanha, em março de 1924. O movimento deveria eclodir em diversos pontos do Brasil. Por causa de defecções e vacilações, prosperou apenas em São Paulo e no noroeste do Rio Grande. Pequenos levantes em Manaus, na Amazônia; em Óbitos, no Pará; em Aracaju, em Sergipe, e em Bela Vista, no Mato Grosso, foram fácil e violentamente reprimidos. Em São Paulo, os revoltosos apoderaram-se da capital e de farto armamento, praticamente sem luta. Porém, após três semanas de duros ataques, abandonaram a cidade em direção ao oeste do Paraná, perseguidos pelas tropas governamentais. Em São Paulo, o general Isidoro Dias Lopes, comandante do movimento, rejeitou a adesão de anarquistas e operários simpáticos ao movimento. A revolução, monopólio dos militares e das forças oligárquicas dissidentes, deveria se dar sem a participação popular.

Guerra de posições Sem abastecimentos, encurralados entre o rio Paraná e a serra do Medeiros, a coluna paulista permaneceu por seis meses tentando opor uma resistência estática “convencional” aos exércitos governamentais, desgastando inexoravelmente as reservas em homens e armamento trazidas de São Paulo. Ao contrário, as tropas federais eram incessantemente reabastecidas por meio do sistema portuário e da rede ferroviária. No Sul, a conspiração tenentista contara com o apoio da oposição consolidada em 1922-3, pela unificação de maragatos, assisistas e republicanos dissidentes, desgostosos com o comportamento de Artur Bernardes, que não interviera no Rio Grande do Sul. Esperava-se que a deposição do presidente ensejasse a deposição de Borges de Medeiros. As principais lideranças militares do levante sulino eram os tenentes Aníbal Benévolo e Mário Portela Fagundes e o capitão Luís Carlos Prestes. Apenas parte das guarnições comprometera-se a aderir ao levante, marcado para 29 de outubro de 1924. Na noite de 28, tropas insurrecionaram-se em Santo Ângelo, sob a direção de Luís Carlos Prestes e do tenente Portela. Ho-

306

ras depois, o mesmo ocorreu em São Luís Gonzaga, São Borja, Uruguaiana e, dias mais tarde, em Alegrete e Cachoeira. Imediatamente, caudilhos maragatos e assisistas do Planalto, acompanhados de gaúchos armados, incorporaram-se aos militares rebeldes. No sul do estado houve pequenos levantes e o Rio Grande do Sul foi invadido desde o Uruguai, a partir das fazendas rio-grandenses do norte daquele país. Com o tempo, o lenço vermelho maragato terminaria se transformando no símbolo daquela que passaria para a história como a Coluna Prestes. Dias após a revolta, os rebeldes resistiam concentrados em São Luís Gonzaga, longe das estradas de ferro, por onde chegavam, rapidamente, as tropas federais e estaduais.

Tenentismo maragato A historiadora Anita Leocádia Prestes, principal estudiosa da Coluna, explica que a maior coesão, disciplina e combatividade das tropas comandadas por Luís Carlos Prestes deveram-se em boa parte ao trabalho realizado anteriormente por ele. Durante sua atuação como oficial, Prestes preocupara-se com a alimentação, o alojamento, a saúde e a alfabetização da tropa, estabelecendo sólidos laços de camaradagem com os soldados, que aderiram maciçamente à rebelião. Em inícios de dezembro, um fracassado ataque à cidade vizinha de Tupanciretã comprovou a escassa organização e o baixo poder de fogo das tropas rebeldes, organizadas em treze regimentos de cavalaria, comandados pelos oficiais rebeldes e pelos chefetes maragatos e assisistas. Os rebeldes praticamente não possuíam artilharia. Discutindo a organização dos rebeldes, Anita Leocádia lembra que a “experiência dos maragatos foi valiosa na organização [inicial] das forças revolucionárias”. Sobretudo durante a Revolução Federalista de 1893-95, mas também em 1923, as tropas maragatas, formadas em boa parte por capatazes e peões armados, resistiram aos exércitos castilhistas em virtude da organização em colunas guerrilheiras, montadas e autônomas. Imediatamente, os rebeldes adotaram a organização maragata da divisão das tropas em grupos de cinco a oito combatentes (fogões), que acampavam, se alimentavam, se aprovisionavam de cavalos e combatiam solidários. Até o fim dos combates, o núcleo central da futura Coluna Prestes foi formado por agricultores, caboclos, ervateiros, peões e pobres da região, os tradicionais “pelos-duros” das regiões do Planalto Médio e das Missões. Em São Luís Gonzaga foi lançado o jornal O Libertador, porta-voz do movimento rebelde, que teve, no total, oito edições, seis publicadas naquela cidade. Seu lema era “Liberdade ou morte”, palavra de ordem sem qualquer conteúdo social. Duas ou mais dezenas de mulheres incorporaram-se às tropas rebeldes, lavando, cozinhando e, não raro, lutando ao lado dos maridos e companheiros, algumas delas até os últimos momentos da Coluna.

307

Último reduto Em novembro de 1924, debelada facilmente a revolta no sul do estado, restava apenas às tropas federais e à Brigada Militar sufocar o movimento no noroeste do Rio Grande do Sul. Em dezembro, quatorze mil soldados marcharam, em sete colunas, de diversos pontos, sobre São Luís Gonzaga, onde se concentravam os 1.500 rebeldes, mal-armados, mas dispondo de grande cavalhada. Em resposta ao ataque, Prestes dividiu igualmente as tropas rebeldes em sete colunas, que apenas mantiveram contato com os atacantes, recuando em direção a São Luís Gonzaga. Na noite de 27 de dezembro, o comandante rebelde concentrou suas tropas e escapou com elas, por entre duas colunas atacantes, em direção ao norte do estado. Nesses momentos e nos meses seguintes, Luís Carlos Prestes sistematizaria e teorizaria a velha “experiência das antigas guerras” dos caudilhos rio-grandenses ao transformar as tropas rebeldes em colunas guerrilheiras móveis, montadas e autossubsistentes, que se negavam a estabelecer confrontos de posição com destacamentos militares mais numerosos e mais bem aparelhados. Após abandonar o Rio Grande, a coluna rebelde juntou-se às tropas tenentistas estacionadas em São Paulo. Nesse momento, grande parte dos caudilhos maragatos havia abandonado a luta, o mesmo fazendo oficiais e combatentes paulistas. Nos meses seguintes, procurando deixar “acesa a chama da revolução”, na esperança de que o movimento se alastrasse, a coluna guerrilheira serpenteou pelos sertões do Brasil, onde os revolucionários se defrontaram com a miséria determinada pelo latifúndio e pelo coronelismo. Anita Leocádia lembra que, apesar de os revolucionários libertarem os presos condenados injustamente, queimarem “livros e listas de cobrança de impostos” e destruírem “os instrumentos de tortura” que encontravam, conquistando “a simpatia” de muitos “humildes e injustiçados”, permaneciam inconscientes às raízes sociais da situação política que combatiam. Décadas mais tarde Prestes lembraria: “Essa noção de classe, nós não tínhamos ainda. Tratávamos, às vezes, o fazendeiro melhor do que o camponês.” Sempre perseguida e combatida pelas tropas federais e estaduais, a coluna locomoveu-se pelo Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Bahia. No Nordeste, o governo federal armou e financiou as milícias dos latifundiários e bandos de cangaceiros que infestavam os sertões, explicitando a articulação orgânica entre cangaço, coronelismo e latifúndio. Em outubro de 1926, após percorrer 25 mil quilômetros, através de treze estados da federação, em dois anos e três meses de combates incessantes, sem terem sido aniquilados, mas sem expandirem o movimento rebelde, 620 oficiais e soldados rebeldes internaram-se na Bolívia, pondo fim à odisseia tenentista. Nesse momento, Washingon Luís (1926-1929) era o novo presidente da República.

308

22 O Rio Grande do Sul e a Revolução de 1930 Em 15 de janeiro de 1924 fundou-se a Aliança Libertadora, reunindo federalistas e republicanos históricos, sob a liderança de Assis Brasil. Em 21 de setembro de 1927, no Rio de Janeiro, a Aliança Libertadora associou-se ao Partido Democrático Paulista, fundando o Partido Democrático Nacional. O Partido Democrático Paulista era uma dissidência do Partido Republicano Paulista, majoritário regionalmente. Finalmente, em março de 1928, em Bagé, a Aliança Libertadora transformou-se em Partido Libertador, unindo estreitamente a dissidência republicana histórica e a militância federalista. O PL defendia a eleição indireta do presidente e dos governadores, o parlamentarismo, o voto secreto, a representação proporcional. Assis Brasil e Raul Pilla foram nomeados presidente e vice-presidente do novo Partido Libertador, que, sobretudo, interpretava os interesses dos grandes criadores sul-rio-grandenses, da Campanha e do Planalto. Assis Brasil representava a vertente republicano-presidencialista e Raul Pila, a federalista-parlamentária. O jornal oficial do PL era o Estado do Rio Grande. Em 1923, Getúlio Vargas destacara-se na Câmara Federal ao desempenhar satisfatoriamente a missão de aproximar o governo do Rio Grande e o presidente Artur Bernardes, preenchendo o vazio político deixado em 1915 com o assassinato de Pinheiro Machado, um dos principais políticos das primeiras décadas da República Velha. Quando da sucessão presidencial, o PRR apoiara a candidatura de Washington Luís. O Partido Libertador opôs-se a esta última. Em 1926, vitorioso, Washington Luís convidou o deputado federal rio-grandense Getúlio Vargas para ocupar a importante pasta da Fazenda, como retribuição ao apoio recebido do PRR. Na ocasião, o Rio Grande do Sul era o terceiro estado da federação e encontrava-se em relativa expansão econômica. Na época, o país vivia boa situação econômica, já que a cotação internacional do café encontrava-se elevada. Washington Luís promoveu a estabilização financeira, com o apoio de seu ministro da Fazenda, que se limitou a imprimir suas diretrizes. Sua política alcançou seus objetivos até que a crise mundial de 1929 lançou o país na depressão, desvalorizando o preço dos produtos primários exportados pelo Brasil. Então, Vargas já se afastara do ministério, o que preservou sua imagem nacional. Em 25 de novembro de 1927, Getúlio Vargas e João Neves da Fontoura venceram as eleições para presidente e vice-presidente do Rio Grande do Sul no período 1928-32, num pleito em que não se apresentaram candida-

309

tos opositores. Apesar de indicado por Borges de Medeiros, Getúlio Vargas não era bem-visto pelo chefe do PRR, que tentara lançar a candidatura de Firmino Paim Filho (1884-1971), de menor dimensão política, e manobrava para não perder o poder sobre o estado, mesmo impossibilitado de concorrer à reeleição. Ao contrário, Vargas era firmemente apoiado por Washington Luís. A oposição era favorável à candidatura de Vargas, temendo o continuísmo borgista. No Rio de Janeiro, num banquete, Getúlio Vargas apresentou sua plataforma política: “Amparar a produção, a indústria, organizar o trabalho, desenvolver a circulação de riqueza, disseminar a instrução, alargar o campo da cultura, cuidar do saneamento rural e urbano.” Em dezembro de 27, recém-eleito, em entrevista ao Correio do Povo, Vargas deixou clara sua proposta de intervenção do Estado nas mais amplas esferas sociais, “protegendo a saúde das populações pelas medidas sanitárias, amparando as indústrias, fomentando as riquezas, estimulando a cultura, regulando o trabalho, ordenando todas as energias na aspiração comum da grandeza da pátria”. Getúlio Vargas cumpriu as expectativas, sobretudo dos setores pecuaristas. Ao contrário de Borges de Medeiros, interveio mais ativamente na economia, consentiu na expressão da oposição e defendeu os interesses agropecuários e charqueadores. A consolidação econômica e política do novo bloco social dominante permitia maior abertura às classes pastoris. Contando com o apoio de Washington Luís, Vargas procurou ampliar o dinamismo e a participação rio-grandense nos mercados do Brasil, em estagnação tendencial. Para tal, implementou importantes ações: melhoramento e renovação da viação férrea, melhoramento do porto de Pelotas, combate ao contrabando de gado e de charque, legalização de terras coloniais, apoio à triticultura, etc. Em julho de 1928, com empréstimos exteriores, Getúlio Vargas fundou o Banco do Estado do Rio Grande do Sul (futuro Banrisul), satisfazendo à antiga reivindicação dos criadores ao abrir linhas de crédito rural de longo prazo, que o Banco da Província se mostrara incapaz de fornecer. Apoiou a fundação de associações patronais – sindicato arrozeiro (1926), refundação da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (1927), sindicato charqueador (1928), etc. – e deu importante atenção à educação pública e ao transporte rodoviário. Também em 1927, como vimos, foi fundada a Viação Aérea Riograndense (Varig), destinada a ter brilhante futuro. Em julho-agosto de 1929, em Porto Alegre, Getúlio Vargas promoveu o 1º Congresso das Municipalidades, com os intendentes do interior do estado, da situação e da oposição. O objetivo do encontro era planejar o desenvolvimento da educação e saúde públicas no Rio Grande do Sul, no qual foi lançado como candidato à presidência da República. O Congresso foi presidido

310

por Osvaldo Aranha. A nova forma de governar ensejou que se estabelecessem canais de comunicação entre republicanos e libertadores. Para financiar sua política desenvolvimentista, Vargas não teve pruridos em lançar mão de importantes empréstimos internacionais, sobretudo estadunidenses, contrariando a tradicional filosofia castilhista-borgista do equilíbrio das contas públicas. É importante destacar que a gestão de Vargas pouca atenção deu à indústria rio-grandense e praticamente nenhuma à classe trabalhadora, em clara contradição com sua posterior e longa atuação como chefe da nação. Por meio de empréstimos internacionais, o Instituto do Café, do estado de São Paulo, comprava e estocava o produto, sustando as vendas até que as cotações subissem. Mantendo a rentabilidade da cafeicultura num contexto de estagnação do consumo internacional, essa política determinava a formação de enormes estoques e a expansão das plantações no Brasil e no mundo. Em 1930, 22 milhões de sacas encontravam-se estocadas, num contexto em que não havia expansão do consumo. Em setembro de 1929, a bolsa de Nova Iorque precipitou em profunda depressão. A seguir, a segunda grande crise cíclica internacional do capitalismo esparramou-se pelo mundo, determinando a maior recessão jamais conhecida pela economia internacional capitalista. A produção mundial retraiu-se, os preços das matérias-primas despencaram e multidões de trabalhadores ficaram sem trabalho – no auge da crise, 23% dos ingleses; 27% dos estadunidenses; 44% dos alemães. Com a crise, os empréstimos encareceram e as cotações do café despencaram. Washington Luís, que pautara seu governo pela valorização da moeda, negou-se a emitir e a ordenar que o Banco do Brasil financiasse os estoques. No mesmo sentido, impôs como candidato a sua sucessão Júlio Prestes de Albuquerque (1882-1946), ex-presidente de São Paulo, comprometido com a estabilização monetária e com a defesa da cafeicultura. Segundo os acordos oligárquicos, a próxima presidência cabia a Minas Gerais. A utilização do governo federal para a defesa intransigente da cafeicultura paulista comprometia os interesses das oligarquias regionais periféricas dos demais estados da federação, tocados pela crise e pelas medidas federais e sem apoio do governo central. Em junho de 1929, as oligarquias mineira, paraibana, sul-rio-grandense, setores das classes proprietárias paulistas não envolvidos com a cafeicultura e partidos oposicionistas de diversos estados fundaram a Aliança Liberal. O objetivo central do bloco político foi lançar Getúlio Vargas, exministro das Finanças de Washington Luiz, e João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (1878-1930), da Paraíba, para presidente e vice-presidente da República, em oposição frontal ao continuísmo da oligarquia paulista e cafeicultora.

311

Todos contra o café A escolha de Getúlio Vargas foi possível em virtude da unificação dos republicanos com a oligarquia liberal-federalista sul-rio-grandense, com raras defecções, em torno da Frente Única rio-grandense. A Aliança Liberal foi apoiada pelos tenentes, derrotados militarmente nos levantes de 1922 e de 1924. A plataforma eleitoral da Aliança Liberal ocupava-se, sobretudo, das necessidades dos principais setores produtivos rurais – açúcar, algodão, café, erva-mate, gado, trigo, etc. No relativo ao café, opunha-se à política de valorização e propunha a diminuição dos impostos, dos custos de transporte e do valor de produção do produto. Ela não se referia especificamente à economia industrial, sobretudo de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, em crise tendencial desde o fim da guerra. Retomando a visão liberal da época, a plataforma prometia apoio às indústrias naturais, que “aproveitassem a matéria-prima nacional”, e atacava as “artificiais”, que trabalhavam com insumos importados, vistas como responsáveis pelo “encarecimento do custo de vida” popular e, portanto, motivo de pressões, agitações e greves por aumento de salários. A necessidade de indústria siderúrgica no Brasil foi apresentada como questão de “segurança nacional”, já que era uma reivindicação dos militares. A plataforma fazia rápida referência à reforma agrária em algumas “regiões”. Mesmo que não propusesse nada de concreto, a Aliança Liberal reconhecia a “questão social” e acusava o governo de Washington Luís de insensibilidade para com ela ao tratá-la como “uma questão de polícia”. Sobretudo a difícil situação econômica levou a que segmentos dos setores médios e operários urbanos depositassem suas esperanças na Aliança Liberal. No exílio, o capitão Luís Carlos Prestes, chefe do movimento armado que eletrizara o Brasil, em acelerado processo de radicalização política e ideológica, negou-se a apoiar a frente oposicionista. As eleições realizaram-se em 1º de março de 1930. Como era comum, as irregularidades eleitorais foram praticadas por ambos os lados, como comprovam os resultados da eleição no Rio Grande do Sul, onde Getúlio Vargas teve quase trezentos mil votos e Júlio Prestes não chegou aos mil. Em alguns municípios, a abstenção não superou os 2%, votando no candidato rio-grandense, maciçamente, presentes e ausentes, vivos e mortos. Mesmo tendo vencido nas grandes cidades, a Aliança Liberal foi derrotada nacionalmente em razão da melhor e mais poderosa articulação política das oligarquias organizadas em torno de São Paulo.

312

Tudo ou nada O crescente agravamento da crise comprometia mortalmente as classes dominantes periféricas do Brasil e colocava em perigo a ordem social. Em razão do desemprego motivado pela recessão econômica, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, o movimento operário rearticulava-se aceleradamente, realizando duras greves em prol de melhorias de vida e de direitos sindicais e democráticos. A Aliança Liberal dividiu-se entre os que propunham respeito à derrota e os que defendiam o levante militar. Tenentes, libertadores e republicanos, como Osvaldo Aranha , Flores da Cunha, João Neves da Fontoura e Lindolfo Collor, propunham o movimento militar, pressionando fortemente Getúlio Vargas. Alguns setores se dissociaram rapidamente da proposta de levante militar, ou mantiveram posição dúbia em relação a ela. Em 19 de março, Borges de Medeiros colocou-se publicamente contra a revolta armada, defendendo o reconhecimento do novo governo liberal e isolando-se da maioria do PRR. Getúlio Vargas assinara acordo secreto de respeito mútuo com a chapa opositora para depois das eleições, mantendo posição de acomodação durante a campanha. Segundo o pactuado, o perdedor aceitaria a vitória do vencedor e teria sua bancada reconhecida, sem degolas, no Congresso. Após a derrota, Vargas defendeu medidas moderadas e assumiu posição ambígua, à espera do desdobramento dos acontecimentos. O aprofundamento das crises no mundo e no Brasil favorecia os defensores da revolta armada, deslocando o centro de equilíbrio da Aliança Liberal da oligarquia tradicional dissidente para os setores mais radicalizados. O assassinato, em Recife, de João Pessoa, em 26 de julho de 1930, candidato a vice-presidente da Aliança Liberal, foi a gota d’água de que necessitavam os conspiradores, ainda que o ato de sangue não tivesse implicações políticas nacionais. O assassinato, na Confeitaria Glória, no centro de Recife, foi perpetrado por João Duarte Dantas, político oposicionista, que tivera a casa devassada e sua correspondência amorosa com Anayde Beiriz, uma bela jovem, ousada e progressista professora e poetisa paraibana, divulgada, possivelmente por ordens de João Pessoa, na presidência da Paraíba. João Dantas foi degolado na prisão, imediatamente após a deposição de Washington Luís, e Anayde Beiriz morreu envenenada, aos 25 anos, dias após, em circunstâncias não esclarecidas. Em fins de maio, desde o exílio uruguaio, Luís Carlos Prestes lançou manifesto pelo qual se dissociava do movimento conspirativo e aderia publicamente ao comunismo e à revolução socialista. Na proclamação, na época incompreendida pela população brasileira, apontava o movimento conspirativo em curso como uma revolução da burguesia “destinada a substituir

313

uma oligarquia por outra”. No manifesto, Luís Carlos Prestes denunciava: “O Brasil vive sufocado pelo latifúndio, pelo regime feudal da propriedade agrária, onde, se já não há propriamente o braço escravo, o que persiste é um regime de semi-escravidão e semi-servidão [...]. De tal regime decorrem quase todos os nossos males. Querer remediá-los pelo voto secreto ou pelo ensino obrigatório é ingenuidade de quem não quer ver a realidade nacional.”

“Rio Grande, de pé pelo Brasil!” Em 3 de outubro de 1930 eclodiam movimentos militares em Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. No Sul, o movimento deu-se sob a palavra de ordem “Rio Grande, de pé pelo Brasil!”, sob o comando do próprio Getúlio Vargas. Em 24 do mesmo mês, um pronunciamento militar depôs Washington Luís, que partiu para o exílio. Finalmente, em 3 de novembro Getúlio Vargas assumiu a chefia de Governo Provisório, reafirmando o programa da Aliança Liberal. Em todo o país comemoraram-se a queda de Washington Luís e a vitória militar da Aliança Liberal. Porto Alegre viveu verdadeira apoteose cívica. Automóveis cruzavam a cidade, carregados de jovens e senhoras, acionando as buzinas. Saudações republicanas choviam de todas as partes. Lenços vermelhos e brancos eram agitados febrilmente. As sirenes dos navios do porto tocavam sem parar. Após suspender a Constituição em vigor, em 11 de novembro, uma das primeiras medidas do governo revolucionário foi a criação do Ministério do Trabalho e Indústria e Comércio, que teve como ministro seu idealizador, Lindolfo Collor, nascido em São Leopoldo, de descendência alemã. O libertador Assis Brasil recebeu a pasta da Agricultura, onde permaneceu brevemente; Osvaldo Aranha chefiou a Justiça e Batista Lusardo, também chefe do PL, foi designado como Chefe da Polícia. Nos anos seguintes, Getúlio Vargas impulsionaria profunda reorganização e regulamentação do mercado do trabalho e das relações trabalhistas, em sentido capitalista e autoritário, inspirada na Carta del Lavoro fascista, de 1927 – carteira do trabalho, férias pagas, regulamentação do trabalho feminino e infantil, ingerência estatal nas questões trabalhistas, sindicato único, etc. A legislação fascista representava na Itália retrocesso, já que retirava importantes conquistas do mundo no trabalho. No Brasil, em muitos casos, representou um indiscutível avanço. De certo modo, Getúlio Vargas aplicava, nacionalmente, com uma maior intensidade, o programa do castilhista-borgista de desenvolvimento regional das relações capitalistas. Em novembro de 1930, após o anúncio da formação do Ministério do Trabalho, constituiu-se o Centro da Indústria do Rio Grande do Sul, permi-

314

tindo que os industrialistas se autonomizassem definitivamente das organizações patronais comerciais e ruralistas. Uma das primeiras medidas do órgão máximo da indústria rio-grandense foi se opor à regulamentação da Lei de Férias e à instituição do salário mínimo. Nesse momento, no Sul, a produção agropastoril era ainda superior à industrial.

Todos na oposição A influência sul-rio-grandense no Governo Provisório foi efêmera, já que a aliança revolucionária se rompeu rapidamente. Os tenentes – não poucos seduzidos pelo fascismo – fundavam “legiões revolucionárias” e exigiam medidas extraordinárias, interpretando expectativas difusas e contraditórias de setores sociais médios radicalizados. As oligarquias regionais opunham-se às reformas e exigiam a reconstitucionalização, que lhes asseguraria o retorno ao poder, pelo exercício da política tradicional. Apoiando-se nos tenentes e servindo-se do Código dos Interventores, Getúlio Vargas pôs fim à autonomia estadual, encerrando o ciclo autonômico iniciado pelo Brasil e pelo Rio Grande do Sul quarenta anos antes, em 1889, com a República, após a abolição da escravatura. A nova orientação dava-se segundo as necessidades dos setores mais dinâmicos das elites proprietárias sulinas, interessados no desenvolvimento acelerado de um mercado nacional que revitalizasse a produção regional em crise tendencial. A designação, em 28 de novembro de 1930, do general Flores da Cunha, quadro histórico e prestigiado do PRR, muito próximo a Borges de Medeiros, como interventor federal no Rio Grande desagradou aos libertadores, sobretudo quando passou a licenciar os intendentes municipais não ligados diretamente a Getúlio Vargas e a ele próprio. Como em outros estados, no Rio Grande do Sul libertadores e borgistas uniram-se em “Frente Única” contra o Governo Provisório sob a direção de Getúlio Vargas. Em fins de 1931, tentando acalmar a oposição sulina, Getúlio Vargas transferiu Osvaldo Aranha para o Ministério da Fazenda e chamou outro rio-grandense, Maurício Cardoso, do PRR, para a pasta da Justiça. Em inícios de 1932, o Partido Democrático de São Paulo rompeu com o Governo Provisório, apoiado pelo Partido Republicano Paulista. Em uma tentativa de volta ao poder, as oligarquias paulistas agitavam a bandeira do constitucionalismo, apoiadas por borgistas e assisistas, também em oposição ao rumo tomado pelo Governo Provisório. Na mesma época, alguns dos principais líderes republicanos rio-grandenses demitiram-se – João Neves da Fontoura, Lindolfo Collor, etc. –, solidarizando-se com os líderes da Frente Única Gaúcha, ou seja, Assis Brasil, Borges de Medeiros e Raul Pilla.

315

A negativa do interventor do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha, de seguir os rebeldes e a divisão do PRR e do PL em pró-getulistas e antigetulistas debilitaram o movimento constitucionalista no Rio Grande, isolando o movimento insurgente. Em 20 de setembro, no combate de Cerro Alegre, no município de Piratini, as tropas legalistas puseram facilmente fim à revolta militar, prendendo na ocasião Borges de Medeiros, que participara da revolta militar. Os principais líderes constitucionalistas foram presos, tiveram os direitos políticos cassados ou partiram para o exílio – Batista Luzardo, Borges de Medeiros, João Neves da Fontoura, Lindolfo Collor, Raul Pilla, etc. –, decapitando-se a oposição sulina. Paradoxalmente, apesar da oposição de Borges de Medeiros, Getúlio Vargas completava a obra republicana, iniciada em 1889 e consolidada em 1893, impedindo, definitivamente, o retorno ao poder das oligarquias agrárias, agora no Rio Grande do Sul e em todo o país. Quando, treze anos mais tarde, os fazendeiros rio-grandenses se organizaram politicamente, refundando o velho Partido Libertador, com Raul Pilla como grande líder histórico, o Brasil e o próprio Rio Grande do Sul já se haviam metamorfoseado profundamente. No novo contexto, os interesses pastoril-latifundiários constituíam-se já quase relíquia do passado, obrigados a se organizarem não mais para comandar o estado, mas para assegurar a manutenção da arcaica estrutura latifundiária da terra.

316

IV

DITADURA & DEMOCRATIZAÇÃO

Da inserção na produção capitalista nacional à internacionalização neoliberal 1930-2010

23 RS: da Revolução de 1930 ao fim do Estado Novo A crise de 1929 pôs em xeque a exportação dos produtos primários do Brasil, com destaque para o café. Na defesa da cafeicultura, entre outras medidas, o Governo Provisório empreendeu uma ampla desvalorização cambial, em 1929-35, depreciando a moeda em mais de 100%. A proteção inflacionária do setor cafeicultor, principal responsável pelo ingresso de divisas estrangeiras, deprimiu a capacidade de importação do Brasil, incentivando a produção industrial interna, que se desenvolvia desde fins do século 19. Na nova conjuntura, a produção industrial avançou de forma rápida, enquanto a produção agrícola exportadora retrocedia. De 1933 a 1939, a taxa de crescimento médio da produção industrial brasileira, voltada essencialmente ao mercado interno, foi superior a 11%. Por intermédio de seus intelectuais orgânicos, a burguesia industrial do Centro-Sul desenvolveu defesa da necessidade e do interesse gerais da transformação do país em “nação industrial”, em oposição à proposta tradicional da vocação agrária do país, agora apresentada como retrógrada. A defesa da industrialização nacional era apoiada pelos tenentes e pela alta oficialidade do Exército. A aceleração industrial do Brasil ocorreu de forma não uniforme. A produção fabril do Rio de Janeiro e São Paulo, regiões privilegiadas pela acumulação pré-capitalista realizada durante a escravidão e pela maior população, disparou em relação ao resto do Brasil, sobretudo no que se refere à indústria dos bens de produção, meio de exploração e de subordinação dos restantes ramos industriais. Sem deixar de avançar, mesmo no que se refere ao mercado nacional, o Rio Grande desqualificou-se relativamente como centro industrial, mantendo-se, porém, como terceiro polo industrial. Na França, após desempenhar papel revolucionário na eliminação plena das classes feudais, a burguesia assumira caráter conservador, contra a ameaça revolucionária dos trabalhadores. O positivismo comtiano interpretara o mundo desde a ótica dos segmentos industriais, financeiros e comerciais burgueses conservadores da França pós-revolucionária, interessados em consolidar a ordem social capitalista e submeter as classes operárias, agora subversivas. O positivismo comtiano era visão de mundo de cunho burguês, conservador, autoritário, modernizador e industrialista. No Rio Grande do Sul, o cientificismo comtiano interpretara uma nova aliança de classes proprietárias ascendentes pró-capitalistas, marginalizadas pela hegemonia política do bloco social latifundiário-charqueador dominante regionalmente no século 19. O caráter autoritário do PRR devia-se à incapacidade do novo bloco político-social de impor democraticamente a

319

nova orientação à sociedade sulina. O getulismo representou, também num viés crescentemente autoritário, as necessidades das classes industrialistas, sobretudo do Rio de Janeiro e São Paulo, sem partidos políticos e de associações de classe hegemônicos e consolidados.

Em novos mares Sem ser industrialista radical, Getúlio Vargas crescera embebido na doutrina positivista do apoio pelo Estado Regional ao desenvolvimento do progresso autônomo e harmônico da sociedade sulina e mostrara-se sempre mais favorável ao intervencionismo do Estado na economia do que os republicanos históricos. O mais querido princípio econômico castilhista fora a autonomia produtiva regional. Getúlio Vargas certamente fortaleceu sua consciência da necessidade de projeto que libertasse o Brasil da dependência da monocultura exportadora, dominante na República Velha, quando ocupou o ministério das Finanças no governo de Washington Luís (1926-30). Já no início do Governo Provisório, Vargas sonhava em tornar o país independente da importação de produtos manufaturados. Em fevereiro de 1931, superava a visão fisiocrática dominante na República Velha ao lembrar que a riqueza do Brasil vinha da “terra” e da “agricultura”, mas que se esvaía em grande parte, pois “todo o maquinismo” rural chegava do “estrangeiro”. Registrava a troca desigual entre as nações exportadoras de manufaturados e as produtoras de bens primários. Uma das suas primeiras medidas à frente do Governo Provisório foi a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, em 26 de novembro de 1930, que teve, como primeiro titular, seu grande inspirador, o rio-grandense de ascendência alemã Lindolfo Leopoldo Boekel Collor (1890-1942), do PRR, com preocupações social-democratas. Canta a tradição que, no momento da criação daquele ministério, receoso das propostas de Lindolfo Collor dirigidas à classe operária, o neopresidente teria declarado: “Eu espero que aquele alemão não cause nenhum problema.” Em pouco mais de um ano, o novo ministro criou importante legislação e deu vida à estrutura sindical governista que Vargas apadrinharia e desenvolveria nos anos seguintes ao compreender o alcance da proposta para seu projeto industrialista. Do ponto de vista da burguesia fabril, Getúlio Vargas foi o homem certo para o momento certo. A crescente aproximação do empresariado industrial assegurou-lhe, e ao governo revolucionário, uma forte base social e política, em oposição aos setores oligárquicos periféricos, que promoveram a revolução, ou hegemônicos, que foram golpeados por ela. O novo bloco políticosocial e a orientação do governo chefiado por Vargas levaram a que facções

320

significativas das oligarquias que haviam promovido a Aliança Liberal – do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, sobretudo – se afastassem e rompessem com o Governo Provisório, associando-se aos setores que haviam ajudado a apear do poder – cafeicultura paulista, sobretudo. Enquanto a oligarquia agroexportadora se dissociava de Vargas, os interesses industrialistas e agro-pastoris voltados para o mercado interno sustentavam a nova orientação políticoeconômica em estruturação. À medida que se fortaleciam os segmentos industriais, fortalecia-se o poder de Vargas, que, por sua vez, alavancava o processo desenvolvimentista nacional. Logo ele passou a interpretar plenamente o desenvolvimento industrial sobretudo do Centro-Sul, voltado para o mercado interno em desenvolvimento. Ao se distanciar relativamente de sua antiga base política de sustentação sulina, Vargas transformou-se num político burguês nacional, expressando, sobretudo, as necessidades das classes industriais hegemônicas no país.

Getúlio Vargas versus Flores da Cunha Em 28 de novembro de 1930, imediatamente após a revolução, Getúlio Vargas designou José Antônio Flores da Cunha como interventor do Rio Grande do Sul, preterindo a João Neves da Fontoura (1887-1963), vice-presidente no estado. Flores da Cunha governaria o Rio Grande como interventor até abril de 1935. A seguir, foi eleito governador indiretamente pela Assembleia Constituinte sulina, até 17 de outubro de 1937. Então renunciou e refugiou-se no Uruguai, em razão de sua fracassada oposição a Vargas e ao Golpe do Estado Novo, em defesa da autonomia política e econômica riograndense. Flores da Cunha nasceu em Santana do Livramento em 1880. Era o terceiro dos treze filhos de tradicional estancieiro republicano da região. Ligado desde jovem ao PRR, formou-se na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, em 1902, trabalhando na capital federal como delegado de polícia. De volta ao Rio Grande, estabeleceu-se como advogado em Santana do Livramento, onde se casou, em 1905. No controle do governo e do PRR, Borges de Medeiros apoiou os Flores da Cunha como seus representantes da fronteira oeste e a candidatura de José Antônio a deputado estadual, em 1909, e federal, em 1912, pelo Ceará, e sua reeleição, pelo Rio Grande, em 1917, 1924 e 1927, para a mesma Casa. Flores da Cunha recebeu no seu processo de consolidação política o apoio do senador Pinheiro Machado, de quem era também fiel seguidor. Em 1916 Flores da Cunha, em dificuldades econômicas, foi designado por Borges de Medeiros intendente provisório de Uruguaiana e subchefe de Polícia, elegendo-se, em 1920, para o primeiro cargo na mesma cidade.

321

Destacou-se na Revolução de 1923 como comandante da II Brigada Provisória do Oeste, que sustentou boa parte dos confrontos com os assisistas, em razão da força dos libertadores naquela região da Campanha, comandados por Honório Lemes e Batista Luzardo. Flores da Cunha recebeu durante os combates de 1923 o posto de coronel e, mais tarde, em 1925, de general-debrigada do exército nacional, concedido pelo presidente Arthur Bernardes (922-26). Após os confrontos de 1923, prestou relevantes serviços à repressão aos sobressaltos antiborgistas no estado, com destaque para o de 1925, quando finalmente derrotou e prendeu Honório Lemes, o principal chefe militar maragato. Foi eleito senador em 1928, participando da conspiração de 1930, quando dirigiu uma coluna militar do movimento armado. Flores da Cunha sustentou-se, fundamentalmente, da política e da advocacia, tendo adquirido pequena estância no Imbaá, em Uruguaiana, segundo parece, em 1927. A crise econômica que golpeara o Brasil manteve-se forte no Rio Grande do Sul até 1934, com clara retomada da atividade econômica a partir de 1936. Se em 1934 as exportações retrocederam, em valor bruto, em 8%, em relação a 1930, em 1936 subiam mais de 40% em relação àquele ano. As exportações sulinas, direcionadas fundamentalmente para o mercado interno brasileiro, centravam-se no arroz, banha, batata, carne, cebola, charque, couro, erva-mate, farinha de mandioca, feijão, fumo, lãs, madeira, sebo, vinho. A produção industrial sulina, em crescimento, direcionava-se essencialmente ao mercado rio-grandense, sem capacidade de disputar o mercado nacional em consolidação, sob o crescente domínio do Rio de Janeiro e de São Paulo Tabela 3 - Valor das exportações – importações do RS - 1930-6 Ano 1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936

Importação 460.000 493.000 378.000 505.000 517.000 674.000 756.000

Exportação 640.000 578.000 518.000 540.000 578.000 723.000 918.000

Saldos 180.000 86.000 140.000 35.000 61.000 49.000 162.000

Fonte: SCHNEIDER, R. P. Flores da Cunha: o último gaúcho lendário, p. 146 [arredondamos].

Autonomia e integração Como interventor e, a seguir, como governador do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha empreendeu um ambicioso plano de relançamento estrutural da economia rio-grandense, apoiando a ampliação e circulação das

322

relações mercantil-capitalistas e a modernização da produção pastoril-charqueadora. Para tal, criou o Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes (1934), um Entreposto Frigorífico (1935), um Matadouro Modelo (1936), um Entreposto de Leite (1935), o Instituto da Banha (1936) e o Instituto Sul-RioGrandense do Arroz (1937). Promoveu, igualmente, os Institutos do Vinho, Mate, Pinho, etc. Também em 1936, organizou a Secretaria da Agricultura, com responsabilidade sobre o setor agrícola e pecuário regional. Em 1935, Flores da Cunha criou a Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio. Prosseguindo a tradicional obra castilhista-borgista, apoiou o comércio e a indústria e diminuiu os impostos de exportação. Superando a visão econômica de Borges de Medeiros, não teve medo de endividar o Estado para apoiar iniciativas produtivas de grande fôlego. Negociou seu apoio a Getúlio Vargas e ao Governo Provisório quando da crise de 1932, obtendo polpudos recursos para o Rio Grande do Sul. Em 1930, Flores da Cunha abriu o porto da capital à navegação interoceânica e desenvolveu a rede ferroviária e, sobretudo, rodoviária, que ganhou as primeiras coberturas de macadame e cimento. Em 1936, o IV Congresso Nacional de Estradas de Rodagens caracterizou o sistema rodoviário sulino como um dos mais precários do Brasil, com pouco mais de quatrocentos quilômetros de estradas em funcionamento durante todo o ano. Até então, o Estado regional investira quase exclusivamente nos meios ferroviários de transporte. Em 1937, Flores da Cunha sancionou lei criando o Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer). Em 1938, após a queda de Flores da Cunha, seria aprovado ambicioso Plano Rodoviário Estadual, com meta inicial de 4.500 km de estradas. De 1938 a 1943, o plano absorveu 22% das receitas tributárias sulinas, conquistando para o Rio Grande do Sul o segundo lugar no sistema rodoviário nacional. No mínimo, de 1932 a 1934 Flores da Cunha concedeu polpudas subvenções à Varig. Para mitigar o alto valor do transporte de cabotagem, instituiu uma frota mercante rio-grandense, dissolvida por Vargas após 1937, que incorporou seus navios ao Lloyd brasileiro. Igualmente, em 1938 foi fundado o Banco Agrícola Mercantil, especializado no financiamento da plantação e comercialização do fumo. Flores da Cunha ampliou a rede de escolas públicas, com destaque para as regiões coloniais alemã, italiana e polonesa. Em 1934, criou a Universidade de Porto Alegre, formada pelas faculdades de Medicina e Direito, as Escolas de Engenharia, Agronomia e o Instituto de Belas Artes, embrião da futura UFRGS. Em 1935, a Faculdade de Educação, Ciências e Letras era agregada à universidade. A nova secretaria dos Negócios da Educação e Saúde Pública teve como primeiro titular o historiador Othelo Rosa, ligado ao PRR. Em 8 de agosto de 1931, instituiu o Instituto de Previdência

323

do Estado do Rio Grande do Sul (IPE) e reduziu o tempo de trabalho do funcionário público necessário à aposentadoria de 35 para trinta anos. Em 1935 criou a Secretaria de Educação e Saúde Pública e, no ano seguinte, transformou a Direção Geral de Estatística em Departamento Estadual de Estatística. Em 1935, durante o seu governo, realizou-se a grande exposição comemorativa do primeiro centenário da Guerra Farroupilha. A ruptura de Getúlio Vargas com Flores da Cunha teria ocorrido durante a viagem do presidente ao Sul para participar dessa celebração.

Revolução Constitucionalista Em março de 1932, os rio-grandenses Joaquim Maurício Cardoso, Lindolfo Collor, João Batista Luzardo e João Neves da Fontoura demitiram-se de seus altos cargos federais, como parte da defecção crescente da Frente Única rio-grandense e dos setores oligárquicos, sobretudo paulistas e mineiros, com o Governo Provisório, desgostosos com a política centralista e filoindustrialista do Governo Provisório. Finalmente, em 9 de julho de 1932 eclodia em São Paulo a chamada “Revolução Constitucionalista”. Sobretudo os grupos agroexportadores paulistas e mineiros almejavam a restauração da ordem constitucional de 1891, dissolvida pela Revolução de 1930 e, assim, a volta da hegemonia da oligarquia café-com-leite sobre o Brasil. A Frente Única, liderada por Borges de Medeiros, do PRR, e Raul Pilla, do Partido Libertador, propunha-se, principalmente, defender a autonomia regional sulina, que retrocedia mais e mais em razão do nascente centralismo impulsionado por Getúlio Vargas. A conspiração era apoiada pela oligarquia mato-grossense. O movimento oligárquico-restauracionista contava com o apoio de Flores da Cunha, adepto da autonomia rio-grandense. À frente do estado sulino, Flores da Cunha comandava a poderosa Brigada Militar e formara forças militares auxiliares, sobretudo para se opor ao centralismo do Governo Provisório. O interventor federal no Rio Grande do Sul se comprometera com a conspiração exclusivamente como militante partidário, esclarecendo que, para aderir a um eventual movimento armado, deixaria anteriormente o cargo, já que não cometeria a “deslealdade” e a “covardia” de abandonar o “Dr. Getúlio Vargas” na “hora em que estivessem atirando nele”. Ao nascer do dia 10 de julho de 1932, fora de Porto Alegre, Borges de Medeiros enviou telegrama a Flores da Cunha instando-o a assumir a condução do “movimento revolucionário” no Rio Grande do Sul, ao qual o interventor federal respondeu que, enquanto permanecesse no cargo, manteria a ordem no estado, ou seja, reprimiria qualquer movimento insurrecional: “Aguardarei meu substituto. A ordem pública, enquanto eu for Interventor,

324

não será perturbada. Só depois de me matarem.” Nos fatos, entrementes, Flores da Cunha acertava com Getúlio Vargas, por telégrafo, sua permanência na interventoria e a sustentação ao Governo Provisório. Em manifesto público, no dia 13, Borges de Medeiros e Raul Pila, procurando salvar o que fosse possível, conclamaram Flores da Cunha a que, ao menos, mantivesse a neutralidade do Rio Grande do Sul. Nesse momento, o interventor já enviava as forças da Brigada Militar e das tropas de provisórios para combater os sediciosos. Apresentou sua ação sob a escusa de ter sido obrigado a reprimir os correligionários em defesa da ordem e do governo central, sob a pena de infamar-se por praticar traição a quem o nomeara. A seguir, os líderes da Frente Única sulina acusariam-no de trair o compromisso assumido com a revolta, o que ensejaria que o interventor chamasse, logo após o fim do movimento, “tribunal de honra” ad hoc. Em 28 de abril de 1933, o tribunal reafirmaria que ele se conduzira, “sempre, rigorosamente conforme os ditames da dignidade pessoal e do cargo que exercia”. Num sentido político mais estratégico, interessava a Flores da Cunha garantir a autonomia rio-grandense, mas não à custa do retorno da hegemonia da oligarquia agroexportadora, que poria, certamente, fim ao seu projeto desenvolvimentista e industrialista regional. Em verdade, após viagem ao Rio de Janeiro, em início de janeiro de 1932, para entrevistar-se com Getúlio Vargas, Flores da Cunha iniciara processo de afastamento da Frente Única Rio-Grandense. Esse movimento resultara na sua defesa do Governo Provisório, que pôs, na verdade, fim às possibilidades de vitória do movimento oligárquico restaurador, restrito, então, praticamente ao levante paulista. No Rio Grande, a conspiração constitucionalista, com ramificações na Brigada Militar, na Viação Férrea e no Exército, eclodiu em diversos pontos do estado, com pouca força, poucas armas. Deu-se sem direção central, sob o comando militar ou político de Borges de Medeiros, Raul Pilla, Batista Luzardo, Lindolfo Collor, Alberto Pasqualini, entre outros. A pronta ação de Flores da Cunha criou corpos armados provisórios, pôs sob vigilância e prendeu chefes municipais e militantes da Frente Única Rio-Grandense, silenciou seus jornais, cortou as comunicações entres os núcleos rebeldes, impedindo qualquer ação unitária. Na tarde de 14 de agosto, Borges de Medeiros e Batista Luzardo abandonaram Porto Alegre deslocando-se a Santa Maria, onde jamais irromperia a sublevação planejada, em virtude da repressão determinada por Flores da Cunha. Em forma desorganizada, pequenas colunas de cavaleiros rebeldes

325

organizaram-se no Rio Grande do Sul. Borges e Luzardo comandavam um destacamento de uns duzentos homens, ecleticamente armados e pouco treinados para combate moderno, organizados em “fogões”. Em 20 de setembro, à noite, Borges de Medeiros, Batista Luzardo e cerca de duzentos seguidores foram cercados na estância do Serro Alegre, em Piratini, no sudoeste rio-grandense, por 670 homens de Flores de Cunha, entre auxiliares e brigadianos, fortemente armados e municiados, quando parte dos revolucionários já se refugiava no Uruguai e na Argentina. Após umas duas horas de luta, Batista Luzardo e alguns homens resolveram abandonar o combate desigual. Borges de Medeiros, ao contrário, permaneceu entrincheirado na sede da fazenda, com onze seguidores, onde, depois de tirotear até à quase exaustão da munição, ordenou a rendição. Segundo Sílvio Faria Correa, libertador preso no início do confronto, que publicou no exterior o opúsculo Serro Alegre, sobre aquele combate, o governo teria tido mais de vinte mortos e os sublevados, apenas três. Flores da Cunha – que tinha o choro fácil – teria chorado de emoção ao saber que seu velho mestre não caíra em combate em que ele entrava a contra-gosto, certo do confronto que terminaria tendo com Getúlio Vargas. Restrito a São Paulo, o movimento foi vergado em outubro, após combates que causaram pouco mais de mil mortos.

Partido Republicano Federal Vitorioso, Flores da Cunha preocupou-se em ampliar seu controle político sobre o Rio Grande do Sul. Logo após a derrota do levante de 1932, enviou mensageiro aos líderes da Frente Única prometendo lisura nas próximas eleições e que não fundaria um novo partido. A mão estendida tratava-se de encenação política, já que, em 16 de novembro de 1932, em Porto Alegre, no salão nobre da Biblioteca Pública, fundava sua agremiação. O Partido Republicano Liberal pretendia nova reunificação dos republicanos rio-grandenses sob a asa poderosa de Flores da Cunha, o novo paladino da autonomia e do desenvolvimentismo sulino. Ao novo partido se associavam, igualmente, os getulistas sul-rio-grandenses. O Partido Republicano Liberal retomava e ampliava as propostas republicanas, associadas a alguns poucos pontos programáticos dos libertadores – “abolição dos impostos de exportação e de transmissão de propriedade inter-vivos”; “redução gradual dos impostos sobre a produção agrícola, pecuária, mineira e maquinofatureira [industrial] e sua substituição por impostos diretos e progressivos sobre a renda, heranças, legados, doações e terras praticamente desaproveitadas”. Seu projeto era claramente autonomista e industrialista.

326

Por primeira vez, o PRL propunha ampla e avançada pauta social, que refletia a nova realidade do Rio Grande do Sul e do Brasil. Defendia seguros “sociais contra a invalidez, acidentes no trabalho, moléstia, velhice, desocupação ocasional e não procurada e morte” e regime de “oito horas, no máximo, para trabalho maquinofatureiro [industrial], comercial, agrícola e mineiro, sua gradual redução à medida da eficiência maior dos processos de produção; restrição dos trabalhos noturnos; limitação dos turnos para as mulheres grávidas e para as lactantes [...] proibição de trabalho maquinofatureiro [industrial] e mineiro aos menores de 14 anos.” A defesa da forma “republicana federativa” e da autonomia “dos Estados” era proposta que muito logo se chocaria com o movimento centralizador exigido pelos setores industriais hegemônicos do Rio de Janeiro e de São Paulo, posto em marcha pela Revolução de 1930, sob a direção de Getúlio Vargas. Em maio de 1933, realizaram-se eleições para a Constituinte nacional. O novo Partido Republicano Liberal, de Flores da Cunha, com mais de 130 mil votos, elegeu 13 deputados e a Frente Única rio-grandense, agora na oposição, obteve pouco menos de quarenta mil sufrágios, alcançando votações expressivas apenas na Campanha. A eleição registrava que a quase totalidade do ex-PRR seguira Flores da Cunha e Getúlio Vargas, deixando o velho e superado líder Borges de Medeiros literalmente a “ver navios”. Em 12 de novembro de 1934, o PRL elegeu 21 e a Frente Única, 11, dos 32 deputados da Constituinte sulina, instalada em 12 de abril de 1935. Votavam no pleito mais de 230 mil rio-grandenses. Registrando a nova complexidade social do Brasil e do Rio Grande, nas eleições para a Constituinte rio-grandense apresentam-se outras listas, além do PRL e da FU, como a Ação Integralista Brasileira, de corte fascista, e a Liga Eleitoral Proletária: Trabalhador, Ocupa o teu Posto, de orientação comunista. Os integralistas obtiveram votos sobretudo em São Hamburgo, Cachoeira, Erechim, Caxias e Montenegro, regiões tradicionais da imigração colonial-camponesa alemã e italiana, dominadas pela pequena propriedade rural, e a Liga Eleitoral, em Rio Grande, Santa Maria, Pelotas e Porto Alegre, importantes concentrações operárias.

O início do fim A Constituinte de 1934 elegeu indiretamente Getúlio Vargas para mandato presidencial, que se concluiria em 1938. A chapa única das oligarquias oposicionistas apresentou Borges de Medeiros como candidato simbólico à presidência. O velho dirigente republicano, já anistiado, recebeu apenas 59 votos, enquanto o seu ex-correligionário e ex-subalterno, Getúlio Vargas, recebia 175. Durante a estada forçada em Pernambuco, após a derrota em

327

1932, Borges de Medeiros abandonara o autonomismo castilhista por um semiparlamentarismo que o aproximava dos libertadores, seus ex-inimigos históricos. A nova proposta política de Borges de Medeiros, já com setenta anos, apresentada no livro O poder moderador na República presidencial, registrava a desesperada tentativa de manter na nova conjuntura parte do espólio político do passado, liquidando o ideário castilhista, renovado e ampliado por Flores da Cunha. Por ainda duas décadas, Borges se manteria ativo, como político conservador de pouca expressão, verdadeiro simulacro vivo do velho caudilho republicano que tiroteara em 1893-95 com os defensores da ordem oligárquica rio-grandense. Borges de Medeiros morreria em 25 de abril de 1961, aos 98 anos. O resultado eleitoral expressava o pleno apoio do novo bloco políticosocial das classes proprietárias industrialistas e rurais do Brasil voltadas para o mercado interno a Getúlio Vargas. A Constituição de 1934 não era, definitivamente, a sonhada pelos constitucionalistas de 1932. Era centralizadora, em relação à Carta de 1891, já que o Estado federal abocanhava a parte do leão do bolo fiscal, para melhor intervir na economia e na sociedade. Porém, não interpretava os sonhos continuistas de Vargas e a vontade de importantes segmentos das classes proprietárias, sobretudo industriais, de porem fim ao jogo político para melhor impor suas necessidades.

O homem do Centro-Sul No novo ministério de Getúlio Vargas entraram poucos rio-grandenses, ao contrário do que ocorrera em 1930. Ao ser perguntado por que não fazia mais pelo seu estado, teria dito: “Eu não sou o presidente dos rio-grandenses, mas o presidente de todos os brasileiros.” Nos fatos, Vargas interpretava as necessidades do capital industrial do Rio de Janeiro e São Paulo, estados pelos quais fez muito, pouca atenção dando às regiões periféricas, entre elas seu estado natal. A solução da crise do Banco Pelotense, a maior instituição financeira do Rio Grande, registrou o descaso de Vargas para com os interesses sulinos. Em razão da crise de 1929, o Banco Popular quebrara em abril de 1930, colocando em dificuldade, entre outras casas bancárias, a agência portoalegrense do Banco Pelotense. No primeiro semestre de 1931, o Banco Pelotense faliu devido, sobretudo, a sua escassa liquidez, posta a descoberto pelas dificuldades do setor primário sulino. Os fortes saques realizados pelo governo estadual para encampar o porto de Rio Grande, em 1919, e a Viação

328

Férrea, em 1920, contribuíram também para a insolvência daquela instituição. Apesar das pressões regionais e de Flores da Cunha, Vargas negou-se a solucionar a crise do Banco Pelotense, lembrando que outros interesses e outras regiões do Brasil se encontrariam também em dificuldade. Nesse momento, Vargas cortejava os cafeicultores do Centro-Sul. A literal “canibalização” do enorme patrimônio do Banco Pelotense pelo Banco do Estado do Rio Grande do Sul (futuro Banrisul) ajudou a resolver as dificuldades financeiras da administração regional. Entretanto, essa incorporação assentou forte golpe nos interesses da metade sul, que mergulhara, havia muito, na estagnação, radicalizando a dissidência dos libertadores com o Governo Provisório. Opondo-se, crescentemente, à política centralizadora de Vargas, Flores da Cunha procurou repetir o feito borgista e construir estrutura regional de poder que garantisse a sua hegemonia sobre o Estado e a independência deste em relação ao poder central. Como assinalado, teria estreitado, de forma mais sistemática, os laços com o setor industrial rio-grandense. Após 1932, como vimos, com o apoio de prefeitos e comandantes militares, fundou o Partido Republicano Liberal, a fim de dar sustentação sobretudo a sua interventoria, ainda que nessa época se mantivesse ainda próximo de Vargas e do governo provisório. O PRL, que herdou a máquina do PRR e o prestigiado jornal A Federação daquele partido, venceu facilmente as eleições para o congresso nacional e estadual e elegeu Flores da Cunha como governador do estado para o período 1934-39. Entretanto, nas eleições municipais a oposição abocanhou diversos prefeitos, sobretudo no vale do Taquari. Para ampliar sua base de poder no Rio Grande do Sul, diante do perigo do governo federal, Flores da Cunha abriu o governo à oposição, nomeando delegados oposicionistas nos municípios governados pela Frente Única rio-grandense e ensaiou, mais tarde, de janeiro a outubro de 1936, espécie de governo parlamentarista regional, de breve vida – o modus vivendi.

A ANL e o putsh aliancista O processo de ampliação qualitativa do mercado capitalista do Brasil em curso chocava-se com as tentativas de reconstrução do autonomismo rio-grandense, pois o capital sulino constituía polo mais frágil da acumulação industrial. Muito logo Vargas passou a fomentar dissidências entre os deputados do PRL, minando o autonomismo de Flores da Cunha no próprio

329

Rio Grande do Sul. Preparando-se para o confronto com Vargas, Flores da Cunha comprou grande quantidade de moderno armamento no exterior e organizou corpo militar de provisórios de vinte mil homens. O defenestramento de Flores da Cunha foi o último passo para o golpe militar que deu origem ao Estado Novo (1937-1945), facilitado pelo putsh intentado pelo Partido Comunista Brasileiro em 1935. Em janeiro de 1935, o manifesto da Aliança Nacional Libertadora era apresentado ao Congresso Nacional. A ANL era movimento antifascista e anti-imperialista inspirado pelos comunistas brasileiros, em obediência às orientações frente-populistas da III Internacional Comunista. A ANL defendia a suspensão do pagamento da dívida externa, a nacionalização das grandes empresas estrangeiras, a luta contra o latifúndio, a defesa dos pequenos e médios produtores, as liberdades democráticas, a constituição de governo popular. Portanto, não se tratava de movimento socialista, de corte operário-camponês classista. Luís Carlos Prestes, o célebre “Cavaleiro da Esperança”, que aderira ao PCB, então no exterior, foi escolhido como presidente de honra da ANL. O movimento aliancista promoveu encontros, passeatas, comícios, etc. através do país, despertando ampla adesão popular e nas classes médias, sobretudo por seu combate intransigente ao integralismo, em franca ascensão. Nesse momento, já havia consciência no mundo político das intenções de Vargas de implantar a ditadura. Em abril de 1935, Prestes voltou clandestinamente ao Brasil, com as instruções da Internacional Comunista de promover insurreição que instaurasse no país uma ordem revolucionária. Em fins de 1932, o nacionalsocialismo conquistara o poder na Alemanha, em operação facilitada pela política sectária e extremista stalinista que proibira política de frente-única com a social-democracia, definida como social-fascista. Nesses anos, a Internacional Comunista defendia que se abrira através do mundo período revolucionário que possibilitaria a vitória da revolução mundial, visão esquerdista e irreal que levaria os partidos comunistas e a classe trabalhadora a graves derrotas. Em 5 de julho de 1935, aniversário dos levantes tenentistas de 1922 e 1924, a direção da ANL divulgou manifesto assinado por Luís Carlos Prestes, que lançava a palavra de ordem “Todo o poder à ANL”, ao defender a insurreição armada, a derrubada do governo e governo popular-revolucionário para o Brasil. Apoiado na Lei de Segurança Nacional, promulgada meses antes, Getúlio Vargas pôs na ilegalidade a ANL. Seguindo as instruções recebidas, a direção do PCB, na ilegalidade, passou a organizar putsh secreto, afastado do movimento social e operário, apoiado apenas nos setores da Forças Armadas que haviam aderido à ANL. Por razões conspirativas, o

330

movimento sequer foi agitado e preparado entre os setores operários sob a influência do PCB. Lançada a partir do dia 23 de novembro, no Rio de Janeiro, Recife e Rio Grande do Norte, a insurreição, conhecida pelo governo, foi fácil e duramente reprimida, pois recebeu apoio popular apenas em Natal. A aventura golpista lançou nos braços de Getúlio Vargas as classes proprietárias do Brasil, aterrorizadas com a possível materialização do perigo socialista e operário no Brasil. A tentativa de putsh – denominada pela propaganda getulista de Intentona Comunista – de esquerda serviu para justificar a repressão anterior e posterior à Aliança Nacional Libertadora, ao movimento social e aos opositores do Estado Novo. A aventura insurrecional do PCB permitiu que o golpe ditatorial de novembro de 1937 se desse praticamente sem resistência popular. Por décadas, a Intentona Comunista seria agitada pelas forças conservadoras contra o movimento social e o socialismo no Brasil.

331

24 A deposição de Flores da Cunha e o Estado Novo no Rio Grande do Sul A destituição de Flores da Cunha foi preparada com o afastamento do comando efetivo de tropas militares de todos altos oficiais opostos a sua remoção e ao golpe ditatorial getulista. Foi igualmente exigida a Flores da Cunha pelo poder federal a devolução das armas que o Exército cedera ao governo do Rio Grande do Sul em 1930 e 1932. Em setembro de 1937, para a semana da Pátria, concentraram-se grandes forças militares em Porto Alegre, centro do poder político e militar de Flores da Cunha, sob o comando do general baiano golpista Manuel de Cerqueira Daltro Filho (1882-1938). Em outubro, apoiando-se em preceito constitucional, o governo federal requisitou a Brigada Militar. Compreendendo que o ato iniciava o esperado golpe getulista que poria fim ao autonomismo rio-grandense, Flores da Cunha tentou se opor à requisição, mas, sem apoio entre os oficiais do Exército e da Brigada, foi obrigado a renunciar à direção do governo, exilandose no Uruguai, onde, por anos, inutilmente, tentou organizar movimento contra Vargas, sempre sob a vigilância e assédio de seu inimigo figadal, o ex-libertador Batista Luzardo, indicado por Getúlio como embaixador brasileiro naquele país. A deposição de Flores da Cunha selou definitivamente, na esfera das decisões políticas, a subalternização da economia e da sociedade rio-grandense diante dos interesses hegemônicos do Centro-Sul e deixou o caminho aberto para o golpe militar getulista. O enorme isolamento final de Flores de Cunha registrava, sobretudo, que setores fundamentais das classes proprietárias rio-grandenses, com destaque para os grandes criadores e agricultores interessados em escoar a carne e os gêneros de subsistência riograndenses nos mercados nacionais, aceitavam a subjunção do Rio Grande do Sul ao poder federal e aos interesses do Centro-Sul, sob o tacão da ditadura de Getúlio Vargas. Em 10 de novembro de 1937, o golpe do Estado Novo consolidou a aliança entre o getulismo e a burguesia fabril, em consolidação, mas sem forças para impor democraticamente sua ditadura sobre as forças oligárquicas e os trabalhadores. Do novo bloco político-social participavam também, de forma subordinada, as classes produtoras rurais interessadas na valorização e desenvolvimento do mercado interno e na paz social interna. Esses segmentos tinham certeza – e não se enganaram – de que as concessões getulistas aos trabalhadores das cidades jamais seriam estendidas aos miseráveis dos campos. Os segmentos agrário-exportadores e o ainda frágil capital bancário e financeiro brasileiro mantiveram-se em oposição não estrutural ao

novo governo. A nova ordem ditatorial permitiu que o Poder Executivo federal se organizasse plenamente para a satisfação das necessidades dos interesses industriais, sobretudo do Centro-Sul. O golpe do Estado Novo de 1937 foi realizado com o apoio das Forças Armadas, da alta hierarquia da Igreja, da maioria dos governadores e das classes proprietárias industriais e rurais interessadas no mercado interno. Getúlio Vargas dissolveu os poderes legislativos e executivos nacionais, estaduais e municipais e, já como ditador-presidente, reprimiu o regionalismo e as oligarquias regionais dissidentes. A crescente centralização do poder político e econômico permitiu-lhe apoiar salto de qualidade na construção do Estado-nação brasileiro, segundo os interesses sobretudo da burguesia industrial-capitalista do Centro-Sul, como assinalado. A Constituição ditatorial de 1937 exacerbava as prerrogativas do Executivo central, permitindo ao presidente governar por decretos, ao igual do garantido pela Constituição rio-grandense redigida por Júlio de Castilho e vigente do início ao fim da República Velha no Rio Grande do Sul. A política nacionalista voltada à construção de um mercado interno unificado necessário à expansão da indústria nacional era o único caminho que se apresentava ao capital fabril nacional, já que, em inícios de 1930, praticamente cessara a entrada de capital externo no país. Essa política foi implementada no contexto de repressão das tendências autonômicas do movimento operário nacional. De 1933 a 1939, como um todo, a taxa média de expansão da economia nacional manteve-se em torno de 5%.

A invenção do Estado-nação Como assinalado, foi um paradoxo aparente o fato de que a longa ditadura do Estado Novo tenha sido relativamente madrasta para com a terra de seu líder máximo. As bombachas, a cuia, o chimarrão e a rede eram apenas espécie de marca registrada de político que se metamorfoseara no paladino dos interesses do Centro-Sul industrial. Opção que não se deveu a qualquer decisão arbitrária, mas à inconteste hegemonia do capital industrial daquela região. Em mais um paradoxo da história, Getúlio Vargas permaneceria idolatrado no seu estado, que humilhou e subalternizou, e abominado, em São Paulo, apesar de ter contribuído substancialmente para a hegemonia sobretudo do capital industrial paulista sobre o país. O avanço da produção industrial do Centro-Sul exigia a formação de um mercado nacional desprovido de barreiras regionais. O federalismo republicano da República Velha, já relativamente debilitado pelo Governo Provisório e pela Constituição de 1934, que manteve, entretanto, elementos federalistas, foi substituído por centralismo de cunho nacionalista e auto-

ritário. Os regionalismos foram reprimidos em prol da construção de capitalismo e mercado nacionais. Acelerava-se a construção do Estado-nação, sob a hegemonia das classes dominantes burguesas de São Paulo e Rio de Janeiro. Em 4 de dezembro de 1937, em estádio do Rio de Janeiro, diante de Vargas, na presença das autoridades civis, militares e religiosas, empreendeu-se a queima simbólica das bandeiras estaduais em pira encimada por enorme bandeira do Brasil sob o aplauso de populares. Deixava-se claro, através dessa simbologia, o caráter centralista e nacional da nova ordem. Aboliram-se os impostos interestaduais e as matérias-primas e mão de obra das regiões periféricas foram postas à disposição da indústria paulista e carioca, a baixo preço, aprofundando as já enormes disparidades regionais. A exploração do trabalhador foi disciplinada e regulamentada, em sentido capitalista, modernizante e autoritário, por meio de legislação claramente inspirada no modelo fascista italiano – Carta del Lavoro –, restrita exclusivamente a segmentos do operariado urbano, como assinalado. Incentivou-se a construção de um gosto e de uma cultura nacionais, apoiados fortemente na rádio, no cinema, na música, na escola pública. Para impor suas políticas, o Estado Novo instituiu ordem nacionalista, policialesca e fascistizante, que não aceitava competição sequer de organizações ideológicas internacionais afins, como as de corte fascista e hitlerista, muito ativas nas regiões coloniais do sul do Brasil, ou nacionais, como a Ação Integralista Brasileira, de Plínio Salgado. No Rio de Janeiro, na noite de 10 para 11 de maio de 1938, setores antigetulistas, entre eles o grupo de Flores da Cunha, associados a militantes integralistas, tentaram prender ou matar Getúlio Vargas. O fracasso da aventura, realizada por um grupo de oitenta atacantes, sobretudo integralistas, fracassou e terminou com a execução sumária de vários assaltantes do Palácio Guanabara. A seguir, a Ação Integralista Brasileira ruiu sem maior resistência sob os golpes da repressão e muitos de seus dirigentes aderiram sem pudor à nova ordem, com a qual tinham profundas afinidades ideológicas. O Partido Comunista Brasileiro e o sindicalismo classista foram incessantemente reprimidos, com a prisão, tortura e execução de militantes. Mais tarde, quando da Segunda Guerra Mundial, devido às ordens da direção stalinistas e às influências da ideologia nacional-desenvolvimentista do comunismo brasileiro, o PCB aderiu à proposta getulista de desenvolvimento industrial sob a direção da burguesia nacional e do Estado. Luís Carlos Prestes, que tivera sua companheira Olga Benário (1908-1942), militante comunista alemã de origem judia, grávida de sua filha Anita Leocádia, entregue pela polícia do Estado Novo aos agentes hitleristas, para ser morta em campo de concentração, apoiou disciplinadamente a proposta de continuísmo de Vargas ao sair da prisão, onde fora mantido sob duras condições, por anos.

334

O Estado Novo não significava uma oposição estrutural às antigas oligarquias. Ainda mais que Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, no Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, na direção do Estado Novo, acomodou-se às classes oligárquicas agroexportadoras, das quais dependia fortemente o poder comprador do Brasil. Ao contrário, ele estabeleceu verdadeira aliança com os setores rurais voltados à satisfação do mercado interno. Em verdade, procurou satisfazer às necessidades desses setores quando não contraditavam com os objetivos das classes capitalistas dominantes. A acomodação entre interesses industriais e latifundiários pôs fim a qualquer possibilidade de reforma agrária e, consequentemente, restringiu, histórica e estruturalmente, o processo de democratização e industrialização autônomo do país. Com o latifúndio mantiveram-se formas de produção e de relações pré-capitalista no campo e os limites impostos ao mercado nacional e à capitalização pela propriedade latifundiária da terra.

O Estado Novo no Rio Grande do Sul Com a deposição de Flores da Cunha, o general golpista Manoel de Cerqueira Daltro Filho (1882-1938), comandante da 3ª Região Militar, sediada em Porto Alegre – Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina –, governou o estado de 17 de outubro de 1937 a 19 de janeiro de 1938, comportando-se como reprodução regional do ditador-presidente. Daltro Filho participara da repressão ao Contestado (1912-1916); distinguira-se na repressão ao Tenentismo, em 1922; participara na Revolução de 1930; combatera a revolta de 1932. A investidura do general baiano na chefia do Rio Grande deveu-se, sobretudo, ao fato de ter sido o grande executor no Sul da deposição de Flores da Cunha e apoiador, a seguir, incondicional do golpe do Estado Novo. Era a primeira vez, desde o fim do Império, que um não rio-grandense governava o Rio Grande do Sul. Não houve qualquer oposição à humilhação getulista do autonomismo rio-grandense. Sem experiência política e sem raízes no estado, Daltro Filho formou governo com os partidos da oposição e com os dissidentes do PRL, que aderiram sem resistência à nova ordem. Entre as medidas de seu breve governo encontra-se a transformação do jornal republicano A Federação no Jornal do Estado, sob a direção do advogado, escritor e historiador Moysés Vellinho (1901-1980), que apoiara solícito o golpe de 1937. Com a morte de Daltro Filho, em 19 de janeiro de 1938, assumiu o governo o general Osvaldo Cordeiro de Farias, em 4 de março de 1938, após o breve exercício governamental de Maurício Cardoso, secretário do Interior. Osvaldo Cordeiro de Farias nasceu em Jaguarão, em 1901. Estudou na Escola Militar do Rio de Janeiro e participou das conspirações tenentistas,

335

de 1922, e do levante de 1924, em Uruguaiana, integrando com destaque a Coluna Prestes. Exilou-se na Bolívia em 1927, retornou ao Brasil no ano seguinte, onde foi preso, julgado e absolvido. Voltou ao Exército e às conspirações antigovernamentais. Participou do levante de 1930, chefiando de 1931 a junho de 1932 a Polícia de São Paulo. Colaborou na repressão ao movimento constitucionalista em 1932 e, em 1935, combateu, no Rio de Janeiro, o levante da Aliança Nacional Libertadora e muitos dos seus antigos companheiros da Coluna e dos motes tenentistas. Em 1937, em Porto Alegre, assumiu a chefia do Estado-Maior da 3ª Região Militar, participando da deposição de Flores da Cunha. Após a morte de Daltro Filho, foi nomeado interventor, abandonando o cargo em setembro de 1942 para se integrar à Força Expedicionária Brasileira, enviada para combater o Eixo na Europa. Osvaldo Cordeiro de Farias prosseguiu os investimentos na educação, saúde e meios de comunicação, com grande destaque para as estradas de rodagem, empreendidas pelo Daer, sobretudo nas regiões coloniais do norte do Rio Grande do Sul. Simpático aos Aliados, promoveu ativamente a “campanha de nacionalização” nas regiões coloniais italianas e alemãs do Rio Grande do Sul, apoiado ativamente por seu secretário de Educação, José Pereira Coelho de Souza, autor da obra Denúncia: o nazismo nas escolas do Rio Grande (1941), e seu truculento chefe de polícia, o tenente-coronel Aurélio da Silva Py (1900-1974), autor do célebre livro-panfleto A Quinta Coluna no Brasil: a conspiração nazi no Rio Grande do Sul, publicada em abril de 1942. A repressão ao germanismo não deixava, igualmente, de ser forma de manter sob pressão os industriais daquela origem étnica, segundo parece, importante base de apoio da resistência autonomista de Flores da Cunha. Nesse momento, as regiões coloniais alemãs e italianas já despontavam com o núcleo industrial mais dinâmico do Rio Grande do Sul.

A política de nacionalização Em 1938, o Rio Grande do Sul dispunha de 845 escolas públicas, 2.830 escolas municipais e 1.938 escolas particulares, que funcionavam sem controle público efetivo ou programa mínimo de estudos. Seguindo as orientações da Constituição de 1937, Osvaldo Cordeiro de Farias criou novas escolas, encampou as escolas municipais, organizou a carreira do magistério público-primário (1938), criou as Delegacias Regionais de Ensino (1938), fiscalizou o ensino nas escolas privadas, etc. Essa atuação foi enfatizada nas regiões coloniais alemã e italiana, onde as escolas étnicas das antigas sedes coloniais e das linhas do interior foram nacionalizadas ou fechadas, em razão das exigências dos novos programas unificados mínimos e de ensino em português.

336

Cordeiro de Farias apoiou a interiorização dos postos de saúde e desenvolveu a medicina preventiva. Em 1938, o Sindicato dos Charqueadores deu lugar ao Instituto Sul-rio-grandense de Carnes. O instituto empreendeu uma ampla militância pela melhoria animal, pelo apoio à construção de matadouros-modelo e frigoríficos, pela modernização das charqueadas, pela utilização intensiva, armazenagem, transporte e exportação das carnes, etc. A prática do instituto conseguiu mitigar, mas jamais superar o domínio do setor pelos frigoríficos estrangeiros. Essas iniciativas se coadunavam com a proposta do Rio Grande do Sul de “celeiro do Brasil”, ou seja, produtorfornecedor sobretudo de meios de subsistência. Em 8 de maio de 1941 ocorreu a maior enchente registrada pela história sulina, quando o centro de Porto Alegre foi inundado e a capital ficou semi-isolada do resto do estado, em razão do avanço das águas do rio JacuíGuaíba. Quarenta mil porto-alegrenses ficaram desabrigados por causa das águas, que subiram 4,73 m acima do nível normal. As duras sequelas deixadas pela catástrofe, sobretudo entre a população infantil da baixa renda, por doenças como a meningite, teria gerado o termo “abobado da enchente”. Em 1942, o tenente-coronel. Ernesto Dorneles, primo de Getúlio Vargas, foi designado interventor do Rio Grande do Sul, mantendo, em geral, o mesmo secretariado do antecessor. Propõe-se que, com o novo interventor, Getúlio Vargas afastava Cordeiro de Farias, que teria se excedido na “campanha de nacionalização”, sobretudo contra a população alemã e de origem alemã. O governo de Ernesto Dorneles foi profundamente inodoro. Ele desenvolveu o plano de eletrificação do estado e prosseguiu a política de ampliação das infraestruturas. Getúlio Vargas fora particularmente vingativo quanto a Flores da Cunha, seu último grande opositor, antes do golpe de 1937. O historiador estadunidense Carlos E. Cortés lembra que o ditador-presidente ordenou que fosse retirado o nome de Flores da Cunha do Instituto de Educação, reposto apenas em 1980, e, por meio do prefeito designado, Loureiro da Silva, de grande avenida porto-alegrense, rebatizada como Independência. Mais ainda, cassara o posto de general-de-brigada, conquistado por Flores da Cunha nos campos de batalha, e determinara que fosse inculpado em desvios de fundos, crimes comuns e contrabando de armas. Em 1942, doente, isolado, derrotada, coberto de dívidas, após negociar sua volta ao Brasil, Flores da Cunha entregou-se às autoridades para sofrer humilhante prisão, por nove meses, na Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Após 1945, fixado na oposição incondicional a Getúlio Vargas, Flores da Cunha assumiria posições políticas conservadoras, transformando-se em uma sombra do imponente vulto que fora no passado. Em 1944, registraram-se greves no Rio Grande do Sul, nas minas de carvão, no sistema ferroviário, na

337

rede de bondes de Porto Alegre e Rio Grande e em algumas indústrias, registrando a retomada do movimento sindical sulino.

Inexorável subalternização O desenvolvimento da economia rio-grandense durante o Estado Novo foi essencialmente endógeno, já que não conheceu qualquer investimento federal significativo. Nesse período, prosseguiu a inserção da produção sulina no mercado nacional, sobretudo como fornecedor de gêneros alimentícios. Esse processo não ensejou substancial salto de qualidade da produção agrícola e pastoril, apoiada sobretudo na expansão extensiva da área cultivada, já em esgotamento relativo. Desde os anos 1920 iniciara-se a expatriação de colonos-camponeses à procura de terras no oeste de Santa Catarina e Paraná, em virtude do esgotamento tendencial das terras postas à disposição para a colonização, diante da solidez política do grande latifúndio no estado. Tal movimento ensejou importante expatriação regional de recursos humanos e materiais. Com poucos avanços qualitativos, o pastoreio extensivo bovino e ovino teria se mantido estagnado, no que se refere ao volume do rebanho e ao nível do abate. Sobretudo a indústria sulina teria se privilegiado dos balanços comerciais positivos ensejados pela produção primária escoada para os mercados nacionais e mundiais, quando da Segunda Guerra Mundial, prosseguindo o processo de substituição dos manufaturados importados pela produção industrial regional, crescentemente centrada no eixo Porto Alegre – São Leopoldo – Caxias. A industria rio-grandense prosseguiu voltada sobretudo para o mercado regional. Estudo de Ana Maria Haas aponta que o Rio Grande do Sul saltou de 7.929 estabelecimentos manufatureiros, com 55.720 trabalhadores, em 1937, para 22.235 unidades produtivas, com 106.700 operários, em 1946. O baixo número médio de operários por estabelecimento, não mais de sete, em 1946, registra o reduzido avanço técnico de produção, que seguia apoiada em pequenas e médias unidades produtivas, alijada do mercado nacional pelo alto preço dos transportes e sua limitada capacidade de capitalização. Durante todo o período prosseguiu a tradicional acumulação fabril de capitais sulina apoiada na dura exploração da mão de obra regional.

Crise de direção No Sul, o Estado Novo caracterizou-se, por um lado, pela marginalização dos grandes políticos regionais – Borges de Medeiros, Batista Luzardo, Raul Pilla, Flores da Cunha, etc. – e, por outro, pela integração dos apare-

338

lhos do Partido Republicano Riograndense, do Partido Republicano Liberal, do Partido Libertador ao esquema de governo e de sustentação da ditadura, em clara aceitação da ordem centralizadora. Como lembra René Gertz, em O Estado Novo no Rio Grande do Sul, a intelectualidade rio-grandense, na sua versão positivista-autoritária e católico-conservadora, acomodou-se gostosamente à satelitização do Rio Grande pelo Estado Novo, colaborando com ele e com os interventores sulinos em troca de prebendas e sinecuras estatais – Alcides Maya (1878-1944), Armando Câmara (1898-1975), Augusto Meyer (1902-1970), Dante de Laytano (1908-2000), Darcy Azambuja (1901-1970), Erico Verissimo (1905-1975), Manoelito de Ornellas (1903-69), Mário Totta (1874-1947), Moysés Vellinho (1902-1980), Othelo Rosa (18891956), Vianna Moog (1906-1988), Walter Spalding (1901-1945), etc. Em geral, apenas intelectuais comunistas como Dyonélio Machado (1895-1985), Cyro Martins (1908-1995) e Ivan Pedro Martins mantiveramse infensos à cooptação da ditadura do Estado Novo, empreendendo resistência cultural que produziu algumas das mais valiosas obras ficcionais da literatura sulina. Romances como O louco do Cati, de Dyonélio Machado, e Fronteira agreste, de Ivan Pedro Martins, foram na época atacados em razão da denúncia social e política que empreendiam. A adesão da intelectualidade rio-grandense ao regime de 1937 explica-se, sobretudo, pela profunda identidade entre a cultura e ideologia autoritária dominante na República Velha no Rio Grande do Sul e a orientação do Estado Novo. O medo político-social ensejado pelo ingresso das classes populares na cena política, em 1935, teria facilitado essa adesão quase maciça, sob a asa do Estado autoritário, que mantinha na submissão as classes populares, até então geridas sem grandes dificuldades pela ordem republicana positivista. Em 1941, a produção industrial rio-grandense superaria já em valor a agrícola e pastoril somadas. Em 1920, em torno de 70% da população sulina viveria no campo. Em 1940, era essa a porcentagem da população urbana. Porém, a indústria e o consumo regionais prosseguiriam dependendo enormemente das exportações agropastoris. No fim do Estado Novo, mantinhase e expandia-se a enorme dominância de pequenas e médias empresas industriais, apoiadas na exploração extensiva da mão de obra, incapazes de absorver a enorme massa rural expulsa do campo. O Estado Novo parece ter dificultado a gênese de uma nova direção política para as classes dominantes rio-grandenses, que expressasse a hegemonia crescente da produção fabril, como parecia estar se desenvolvendo durante o domínio de Flores da Cunha sobre o Rio Grande do Sul. Como assinalado, a fixação de Cordeiro de Farias com a “campanha de nacionaliza-

339

ção” teria também dificultado a participação política dos setores industriais, em boa parte de raízes italianas e alemãs. Os industrialistas sulinos, satisfeitos com a repressão em que era mantida a classe trabalhadora pelo Estado Novo, limitaram-se à apresentação individual ou sindical de suas reivindicações. No geral, procuraram apenas obter vantagens singulares, sem articular regionalmente suas reivindicações, sobretudo no que se refere à inserção do Rio Grande do Sul na economia nacional e internacional. Um processo que se manteria nas décadas seguintes, assinalando a incapacidade desses segmentos sociais de sequer se transformarem em paladinos de suas reivindicações essenciais, o que dizer das necessidades da população regional. Após a agonia regional dos grandes proprietários fundiários em fins do século 19, os segmentos industrialistas sulinos registravam, em meados do século 20, clara senilidade em plena adolescência. Durante os oito anos de Estado Novo, à exceção parcial de Cordeiro de Faria, os interventores funcionaram como simples correias de transmissão das determinações do poder central no Sul. Interventores que, de forma geral, sempre procuraram respeitar as idiossincrasias de política que assumia caráter crescentemente municipal. Protásio e Viriato Vargas exerceram também a função de eminências pardas do regime ditatorial, informando constantemente o irmão sobre a ação dos interventores, sugerindo nomeações, etc. Com a deposição de Getúlio Vargas, em 29 de outubro de 1945, pelo alto mando militar que o entronizara, Ernesto Dorneles renunciou, entregando o governo a Samuel Figueiredo da Silva, presidente do Tribunal de Apelação. De retorno da Itália e da Guerra, Cordeiro de Farias participou ativamente do golpe militar que depôs Getúlio Vargas, já política e finamente alinhado ao liberalismo e ao grande capital internacional. Em 1950, se oporia ativamente ao monopólio da exploração do petróleo no Brasil.

340

25 Estado Novo e o movimento social – 1937-1945 O fim da República Velha, em 1930, registrou o esgotamento de um padrão de crescimento da produção capitalista industrial no Brasil, centrado sobretudo nos mercados regionais das principais regiões do país e nos capitais endógenos. A construção de mercado nacional e a aceleração do processo industrial foram objetivos assumidos nos anos seguintes a 1930 e, sobretudo, após 1937, pelo governo central como política de Estado. A economia sulina conhecia igual processo de estagnação tendencial no final da República Velha (1889-1930). A modernização relativa da produção pastoril – cercamento dos campos, construção de banheiros, melhoria genética dos rebanhos, etc. – e o esgotamento relativo das terras disponíveis à colonização criavam excedentes de mão de obra absorvidos apenas parcialmente pela produção fabril regional. A mão de obra expulsa do campo criava bolsões de desempregados e semiempregados nas periferias das principais cidades sulinas, com destaque para Porto Alegre. Colonos-camponeses abandonavam o estado à procura de terras, estabelecendo-se, inicialmente, sobretudo no oeste de Santa Catarina e do Paraná. Um amplo exército industrial e rural de reserva deprimia os salários industriais e rurais, inibindo o desenvolvimento tecnológico e o mercado regional sulinos. A limitada capacidade de consumo regional e a baixa acumulação de capitais, em razão do latifúndio, sobretudo, e do caráter seminatural da economia colonial-camponesa, secundariamente, eram calcanhares de aquiles do processo de expansão industrial sulino. A distância dos mercados do Brasil Central e o maior porte das indústrias do Rio de Janeiro e de São Paulo foram outros importantes handicaps negativos para a inserção da economia industrial sulina no mercado nacional. A nova reorganização da divisão nacional do trabalho deu-se sobretudo em favor do capital industrial de São Paulo e do Rio de Janeiro, de maior composição orgânica, desqualificando relativamente o Rio Grande como polo industrial. Porém, em ritmo inferior ao do Centro-Sul, prosseguiu a expansão das relações mercantis e capitalistas no Sul, expansão que ampliou o desequilíbrio regional já existente, consolidando o caráter industrial do Nordeste e as relações semi e arcaicas de produção do meridião sulino. A produção industrial de Rio Grande e Pelotas retrocedeu relativamente em favor dos polos fabris do Centro-Sul do Brasil e do eixo industrial Porto Alegre–São Leopoldo–Caxias. Em verdadeiro processo de “revolução passiva”, os acontecimentos de 1930 impulsionaram a consolidação do Estado-nação brasileiro e a indus-

341

trialização do Centro-Sul sob a direção das classes burguesas hegemônicas. Sobretudo após 1935, o movimento social do Brasil e do Rio Grande do Sul conheceu sucessão de conjunturas adversas que o impediu de intervir positivamente nos fatos em cursos, construindo-se de forma autônoma. No Sul, os Círculos Operários, criados pela hierarquia clerical católica, de cunho conservador e com o apoio do Estado, disputaram a direção do movimento operário organizado com as tendências classistas, comunistas, socialistas e anarquistas. A difícil conjuntura vivida pelo movimento social aprofundou-se em virtude da ação do PCB, que, atrelado aos ziguezagues da direção stalinista mundial, levou a vanguarda operária, comunista e anti-imperialista a aventuras nacional-esquerdistas, como a insurreição de 1935, promovida logo após a dissolução da Aliança Nacional Libertadora por Getúlio Vargas, ou a políticas colaboracionistas com o governo ditatorial, após o ingresso do Brasil na Segunda Guerra Mundial. De 1937 a 1945, o Estado Novo associou intervenção econômica, apoio à industrialização, concessões trabalhistas, dirigismo sindical e repressão policial, mantendo sob controle e reprimindo o movimento operário e social organizado, que começou a se reestruturar mais solidamente apenas no fim da ditadura getulista.

Autonomia e submissão Nos anos 1930, o movimento operário organizado sofreu o combate sistemático dos governos provisório e constitucional, por meio das Inspetorias Regionais do Trabalho, inspiradas no corporativismo fascista italiano e que se propunham “intermediar” as relações entre o capital e o trabalho. A expansão-regulamentação de direitos, mesmo que limitados a certas classes dos trabalhadores urbanos, e de leis como a “dos Dois Terços”, de 1930, limitando a no máximo um terço o número de trabalhadores estrangeiros por empresa, apoiava a ação dos funcionários do Ministério do Trabalho. Sobretudo após a Lei da Sindicalização, estes últimos se desdobraram para neutralizar, isolar e reprimir as lideranças operárias classistas. Pela Lei da Sindicalização de 19 de março de 1931, os sindicatos formavam-se com mais de trinta trabalhadores e eram reconhecidos após enviarem a lista dos associados, com os respectivos endereços, ao Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio. Este último supervisionava suas assembleias gerais e vida financeira, podendo intervir sobre as diretorias eleitas. A obrigação do fornecimento da lista com os nomes e os endereços dos sindicalizados expunha os trabalhadores à repressão policial e patronal. A supervisão e o direito de intervenção facilitavam o controle governamental da vida sindical.

342

Em 15 de março de 1932, o padre jesuíta Leopoldo Gerhard Brentano, então com 48 anos, fundou, em Pelotas, os Círculos Operários Pelotenses (COP), movimento reconhecido um ano mais tarde pelo Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio, quando já congregava dez sindicatos e três mil trabalhadores. Em 25 de setembro de 1933, os Círculos eram decretados de “utilidade pública” pelo governo. Os Círculos defendiam a adesão dos trabalhadores ao sindicalismo estatal, a oposição à luta de classes, a colaboração entre capital e trabalho. O jornal O Trabalho era o porta-voz da Federação dos Círculos Operários. Com o apoio de João Becker, arcebispo de Porto Alegre, o movimento difundiu-se pelo Rio Grande do Sul, em geral, e em Porto Alegre, Caxias, Rio Grande, Santa Maria e Pelotas, em especial. João Batista Becker nasceu na Alemanha, em 1870, emigrando para o Brasil com a família ainda pequeno. Estudou em colégio católico, em São Leopoldo, e no Seminário Episcopal de Porto Alegre. Ordenou-se sacerdote com 26 anos, sendo vigário da Paróquia do Menino Deus. Foi designado bispo de Santa Catarina (1908-12) e arcebispo de Arquidiocese de Porto Alegre (1912-45). Faleceu aos 76 anos, em 1946. Envolveu-se ativamente na política, apoiando a Revolução de 1930 e a ação de Flores da Cunha no Rio Grande. Destacou-se pelo combate ao “bolchevismo” e pela defesa do nacionalismo, do corporativismo, do integralismo e do fascismo. Desde 1917, determinara a substituição do alemão na liturgia e no ensino religioso; com a política de nacionalização e o Estado Novo, afastou-se do integralismo. O Congresso Trabalhista, de 3 a 5 de fevereiro de 1933, organizado sob a orientação do Ministério do Trabalho, presidido por Ernani de Oliveira, da Inspetoria Regional do Trabalho no Rio Grande do Sul, elegeu diretoria oficialista e colaboracionista para a Federação Operária do Rio Grande do Sul. Na ocasião, a Forgs era formada por 17 sindicatos oficiais – nove de Pelotas; quatro de Porto Alegre; quatro de Rio Grande; delegados de Taquara, Caxias do Sul, Santa Maria, Arroio dos Ratos, Dom Pedrito, Rio Grande e Montenegro. Destaque-se a importância no congresso dos sindicatos de Pelotas, onde o Círculo Operário clerical nascera.

Sindicalismo patronal Ao concluir os trabalhos, o plenário do Congresso aprovou “Manifesto ao Proletariado Rio-grandense” propondo que os “elementos indesejáveis e estranhos” fossem “banidos do seio das classes laboriosas”. Porém, no encontro expressaram-se vozes destoantes do oficialismo e colaboracionismo, como a do representante da Frente Sindical de Pelotas, João Vitaca, que denunciou a ação do Círculo Operário Pelotense, segundo ele dirigido por “capitalistas, padres e até militares”, e o operário Murillo Machado, da Le-

343

gião Proletária de Santa Maria, que teria uns quatrocentos associados, e membro do Partido Republicano Liberal, que defendeu orientação classista, ainda que confusa, para a Forgs. Socialista de esquerda, João Vitaca seria representante classista na Constituinte nacional de 1934. Em 27 de novembro de 1933, por convite do arcebispo João Becker, o padre Leopoldo Brentano lançou a proposta de organização dos Círculos Operários de Porto Alegre, na sede da União de Moços Católicos. O movimento circulista teve seu primeiro núcleo instaurado na capital, em 27 de janeiro de 1934, no bairro de Petrópolis, sob a orientação do padre Alberto Hickmann. Em 1935, os Círculos Operários de Porto Alegre tinham dez núcleos e cinco mil sócios, em geral centralizados pelas paróquias da capital. Os Círculos Operários de Porto Alegre funcionavam sobre a proteção do Ministério do Trabalho, da polícia e de Nossa Senhora Medianeira. A Forgs, apesar de não ser reconhecida pelo Ministério do Trabalho, sob a presidência do barbeiro Policarpo Machado, que trabalhava no Salão do Comércio, na rua Marechal Floriano, em Porto Alegre, e influência comunista, passou a exigir ativamente a aplicação efetiva e geral da legislação trabalhista no Sul, boicotada pelos patrões e por Ernani de Oliveira, da Inspetoria Regional do Trabalho. Segundo Diorge A. Konrad, em “A FORGS, a LEP e o Inspetô Reacionário”, a Federação denunciou reiteradamente Ernani de Oliveira, pedindo também sua substituição, que recebeu a solidariedade do Círculo Operário, de Pelotas, de orientação clerical, de sindicatos amarelos, de órgãos patronais. Em janeiro de 1934, Policarpo Machado viajou ao Rio de Janeiro para reivindicar, junto ao Ministério do Trabalho, o cumprimento da legislação no Rio Grande. Em fevereiro-março do mesmo ano, o ministro do Trabalho, o rio-grandense e ex-delegado de polícia Joaquim Pedro Salgado Filho, visitou o Rio Grande, participando de reuniões nos Círculos Operário, na Forgs e de assembleias operárias na capital e centros operários sulinos. Ernani de Oliveira foi mantido como inspetor e não houve pressão governamental efetiva para o respeito da legislação trabalhista no Sul. De 1o a 3 de maio de 1934, reuniu-se Congresso da Forgs, em Porto Alegre, sob a direção de Policarpo Hibernon Machado, que no discurso de abertura solidarizou-se com os trabalhadores caídos em todo o mundo devido à “senha voraz da burguesia reacionária e assassina”. Policarpo assumira a direção da Forgs em 19 de julho de 1933, apoiado apenas por quatro sindicatos. Do congresso participaram delegações de mais de setenta sindicatos e associações operárias, de Bagé, Cachoeira, Caxias, Cruz Alta, Dom Pedrito, Jaguarão, Lageado, Novo Hamburgo, Passo Fundo, Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, Santa Maria, Santana do Livramento. O congresso definiu como programa geral a luta anticapitalista e a autonomia dos trabalhadores. Reagindo à intervenção populista do Estado nas relações traba-

344

lhistas, em favor do capital, proibiu as reivindicações dos seus associados à Inspetoria e ao Ministério do Trabalho, lembrando que “as leis sociais” eram insuficientes e aqueles órgãos, “visceralmente patronais”. Policarpo Machado foi eleito dirigente máximo da Forgs. A reação do Ministério e do governo estadual contra a proposta autonomista da federação seria muito forte, por meio de denúncia dos “exaltados”, pressão sobre os trabalhadores, apoio às associações “amarelas”, prisão dos líderes operários, etc. Ainda em 16 de julho de 1934, em sua sede, com mais de quatrocentos presentes, a Forgs fundou a Liga Eleitoral Proletária, de orientação comunista, que defendia o “programa de luta de classes” aprovado em seu congresso. A LEP era dirigida por Policarpo H. Machado (secretário-geral); Carlos Gloger, Ângelo Plastina, Arnaldo Teixeira e Leopoldo Machado (secretários); Moacir Varniere (tesoureiro geral) e Geraldo Teixeira (tesoureiro). Apresentou como candidatos à Constituinte regional escritor, jornalista, ferroviário, gráfico, barbeiro, comerciário, metalúrgico, professor, carpinteiro, etc., em clara tentativa de expressão eleitoral do mundo do trabalho da época. Em 14 de outubro, a LEP não elegeu representantes. Em 22 de novembro, Policarpo Machado foi preso em seu local de trabalho e mantido incomunicável por cinco dias, até ser solto em razão de habeas corpus, impetrado por Alberto Pasqualini. Em editorial de A Voz do Trabalhador, semanário da Forgs, de 2 de dezembro, Policarpo Machado reivindicava dos constituintes o reconhecimento do direito de greve aos trabalhadores sulinos.

Resposta operária A crise social e econômica aprofundava-se, ensejando importante greve dos operários têxteis da capital, engrossada pela solidariedade dos metalúrgicos, em 14 de janeiro de 1935, e dos gráficos da Livraria do Globo, enquanto outras categorias, como os trabalhadores da Carris e os ferroviários, aprestavam-se para apoiar a greve, que foi duramente reprimida pelas forças policiais, sob a argumento de estar sendo manipulada por extremistas. Em 16 de janeiro fechava-se o Sindicato dos Operários em Fábrica de Tecidos de Porto Alegre e, no dia 18, o mesmo ocorria com a Forgs. Um dia antes, em 17 de janeiro, o médico comunista Mário Costa da Silva Couto, de 24 anos, de origem operária, secretário-geral do PCB no Rio Grande do Sul, foi sequestrado na praça da Redenção, diante da Carris, em plena luz do dia, e assassinado no interior de uma viatura policial, sendo seu corpo jogado à rua, cravejado de balas, em ato destinado a aterrorizar os grevistas. O crime teria sido autorizado pelo governador interino, João Carlos Machado. Durante a execução, Mario Couto tomou um revólver de um algoz alcançando a justiçar um dos seus algozes. Natural de Rio Gran-

345

de, o jovem, que já fora preso, teria sido objeto de tentativa de cooptação política por parte do governador Flores da Cunha, que lhe prometera vantagens econômicas. Em sua militância, fundara duas células comunistas, nos ferroviários e na Carris. Os jornais porto-alegrenses destacaram sua morte e apoiaram a ação da política. No dia 20, o combativo Policarpo Machado, presidente da Forgs, foi também preso. Sob a dura repressão, a greve refluiu. Em 1935, o governo enquadrou a ação da Forgs na Lei de Segurança Nacional, dissolvendo-a. A Aliança Nacional Libertadora teve um importante impulso no Rio Grande do Sul. Portanto, o manifesto de Luís Carlos Prestes, em 5 de julho de 1935, lançando a palavra de ordem “Todo o poder à ANL”, de insurreição popular, e o consequente fechamento da ANL causaram duros golpes ao movimento popular, operário e antifascista. Nas eleições de novembro de 1935, a Liga Eleitoral Proletária alcançava resultados eleitorais fracos. Nesse momento, o PCB já estava voltado à organização da insurreição. O putsh de 10 de novembro de 1935, em Natal, Recife e Rio de Janeiro e a repressão que se seguiu lançaram o movimento social na depressão e no refluxo. Nesse contexto negativo se intensificou a influência oficial e católica. Enquanto a repressão se abatia sobre o movimento operário classista, em outubro de 1935 realizava-se em Porto Alegre o 1º Congresso dos Círculos Operários do Rio Grande do Sul. No encerramento do encontro, o arcebispo João Becker defendeu que o movimento operário possuísse como dilema o “cristianismo e o comunismo” e apresentou como exemplos para os trabalhadores sulinos a “Itália fascista” e o “grande duce Mussolini”. O Congresso determinou a formação de Federação dos Círculos Operários e os congressistas foram recebidos pelo interventor Flores da Cunha. Em 13 de maio de 1937 fundou-se a União Sindical Porto-Alegrense, com a presença do inspetor do Ministério do Trabalho, José Antônio Aranha. No 1º de maio de 1936, em missa campal, o arcebispo João Becker falou contra o comunismo e o internacionalismo e defendeu o nacionalismo, as Forças Armadas, o capital e o governo. O golpe militar de 10 de novembro de 1937 não encontrou praticamente oposição social e popular no Rio Grande e no Brasil.

Direito à história Os cinco anos de interventoria de Cordeiro de Farias desenvolveram-se em clima ditatorial, com o controle obrigatório dos mais comezinhos atos pela polícia – encontros desportivos, bailes familiares, deslocamento individual, etc. O massacre dos monges barbudos, a partir da Semana Santa de 1938, foi exemplo excelente desse comportamento ditatorial. Esses acontecimentos foram retirados do olvido histórico pelo estudo Monges barbudos

346

& o massacre do Fundão, dos jornalistas André Pereira e Carlos Wagner, de 1981, nos últimos momentos do regime militar. Segundo a memória oral dos participantes, o movimento teria começado em novembro de 1935, quando um velho, de pequeno porte e barbas brancas, com saco de aniagem às costas, apresentou-se na pequena propriedade de André Ferreira França, no Lagoão, em Soledade, no norte do Rio Grande do Sul. Em troca da hospedagem, o andarilho teria introduzido o colono na arte da cura pelas ervas e em outros segredos da natureza, revelando, antes de partir, sua identidade e missão. Desde então, Deca França, agricultor pobre e analfabeto, investido pela autoridade do santo monge João Maria, passou a distribuir no humilde quintal de sua casa conselhos para a alma e para o corpo aos seus crescentes seguidores. Nessas paragens de terras ingratas, caboclos nacionais e colonos pobres de origem alemã e italiana viviam sobretudo da pequena agricultura e criação. Ao igual que em outras regiões do norte rio-grandense, os bodegueiros apoderavam-se do parco excedente camponês ao comprarem os produtos produzidos localmente por preços reduzidos e venderem as mercadorias de que os pequenos proprietários necessitavam com alta margem de lucro – ferramentas, tecidos, sal, etc. Na região em questão, os comerciantes funcionavam também como principais e quase únicos agentes do capital mercantil ao adquirirem e escoarem o fumo produzido pelos pequenos agricultores para as manufaturas de Santa Cruz do Sul, em nome das quais forçavam a introdução de estufas para a secagem do produto. Nos anos anteriores fora forte o ativismo integralista, fascista e nazista no interior dos municípios de Soledade e Sobradinho, sobretudo entre os comerciantes e colonos de origem italiana e alemã mais abastados. Após a instauração do Estado Novo, em novembro 1937, correra a voz de que os pelos-duros e caboclos que não “trabalhavam e só davam despesas” seriam expulsos da região, proposta que expressaria a clara percepção do golpe como movimento das classes proprietárias contra a população pobre. Sem escolas e igrejas; vivendo fortes tensões econômicas; étnica, social e religiosamente descriminados pelos colonos e comerciantes mais ricos, muitos caboclos da região agruparam-se rapidamente em torno de Deca França, desmentindo o adágio de que “santo da terra não faz milagres”. Alguns colonos italianos e alemães empobrecidos aderiram ao movimento. É recorrente nos movimentos messiânicos que populações pobres elevem à dignidade do sacrifício religioso o desprendimento com os bens materiais que não possuem, e dificilmente possuirão, ao menos nesta vida. Um desprendimento material que dignifica a pobreza inevitável e sanciona a exteriorização da riqueza, sinal de opressão social. Os crentes deixavam a barba e o cabelo crescer e andavam descalços. A bênção do sol, da terra, do fogo e das águas; a veneração de Santa Catarina, de Santa Terezinha, etc; a

347

próxima chegada do fim dos tempos, entre outras crenças, fariam parte das rústicas liturgia e teologia caboclas, de caráter naturalista, ainda pouco estudadas nos seus detalhes. Os comerciantes locais desconfiavam de credo que, apesar de pregar o respeito à propriedade, sugeria levíssimos fumos sociais. Na rústica teologia, os bens que escapassem ao juízo final seriam distribuídos entre crentes que se despreocupavam, mais e mais, com o duro trabalho cotidiano, envolvidos por práticas religiosas mais gratificantes. Afinal, para que plantar se o pão cairia, muito logo, abundante, do céu! Sobretudo, comerciantes e autoridades temiam a concentração da vontade dos colonos pobres em torno de uma direção, ainda que mística. Após o golpe de 10 de novembro de 1937 e a instituição do Estado Novo, passou-se a falar na região que os monges barbudos eram perigosos comunistas, boato possivelmente difundido pelos inimigos dos adeptos da nova religião, entre eles os bodegueiros. Em virtude de perseguições anteriores, Deca França deixara, desde 1937, a direção ostensiva da seita para Anastácio Desidério Fiúza, passando a viver, cercado por alguns seguidores, em seguro retiro, dedicado às coisas da nova fé. Em abril de 1938, com a aproximação da Semana Santa, um mês após a entronização de Cordeiro de Farias como interventor, crentes abandonaram, numerosos, suas moradias, dirigindo-se a Bela Vista para festejar Santa Catarina, padroeira da capela da pequena vila. Liderada por Tácio Fiúza, longa procissão de centenas de penitentes, dois a dois, percorreu vagarosamente a precária estrada que levava à vila, cantando e rezando as arrastadas ladainhas. Enquanto os crentes rezavam pelas estradas, espalhouse a versão de que os romeiros assaltariam as bodegas de Bela Vista. No dia 13, os habitantes da vila assistiram, assustados, à chegada de magotes de crentes, portando consigo filhos. As estimativas variam em quinhentos, número crível, e cinco mil fiéis, avaliação certamente superdimensionada. Segundo parece, os crentes não traziam alimentos, talvez devido à ideia, não confirmada, de que o mundo se finaria na sexta-feira santa para todos, menos para os escolhidos, é claro, ou simplesmente pensariam em retornar logo a suas moradias.

O reino dos céus Muito logo os mantimentos da vila escassearam. À noite, os três comerciantes locais encerraram-se, com capangas armados, na venda de João Paulo Trevisan, diante da capela, dispostos a defender com as vidas as propriedades, à espera do assalto que criam inevitável, enquanto os crentes, armados apenas de seus rosários e imagens de santos, oravam impassíveis. Pouco antes das oito horas do dia 14, o delegado Antonio Pedro Pontes, quin-

348

ze brigadianos e um número indeterminado de subdelegados, comerciantes e civis chegaram de caminhão de Sobradinho, avisados por negociante de Bela Vista. A tropa postou-se a mil metros da capela, num morro próximo, de onde, em absoluta segurança, passou a disparar, por duas horas, sem intimação, sobre os crentes. As estimativas variam entre quatro e oito mortos, além de dezenas de feridos, todos transportados pelos fiéis, que fugiram, desordenadamente, pelos caminhos e matos da região, por onde ainda chegavam penitentes para o encontro. Tácio Fiúza, que permanecera na capela, foi espancado e baleado duas vezes. Ferido mortalmente, perdeu-se no mato, ajudado por companheiros de credo. Ainda no dia 14, o corpo de Tácio foi transportado, em padiola, por seis crentes, para a região do Jacuizinho. Durante o dia 15, mais de mil pessoas acorreram para assistir ao velório e, segundo parece, à ressurreição do líder religioso. Finalmente, na manhã da sexta-feira santa, 16 de abril, Tácio Fiúza foi enterrado para que ressuscitasse “para baixo”, já que não o fizera para cima! Na madrugada do 17, quando parte dos beatos dormia, à espera que o fim da forte chuva permitisse o retorno às suas moradias, a residência onde se realizara o velório do líder finado foi cercada por tropas militares, que, mais uma vez, dispararam, sobre os fiéis desarmados, causando um número desconhecido de mortos e feridos. Mais de cem prisioneiros foram transferidos para Jacuizinho, a 15 km, onde foram encerrados na mangueira de um comerciante, sob a mira dos fuzis. A seguir, uns vinte monges, selecionados como líderes do movimento, foram enviados para Porto Alegre e Cachoeira do Sul, para serem devidamente fichados, interrogados, torturados, barbeados e soltos, livres da acusação exótica de serem comunistas ou “quinta-colunas”. Dois dos monges, após terem as cabeças raspadas, ficaram cegos, devido a veneno derramado sobre elas. Em 20 de abril, seis dias após o primeiro massacre, o interventor Cordeiro de Farias enviou para a região o capitão José Rodrigues da Silva, no mando de forte destacamento militar, para dar caça aos membros já dispersos do grupo religioso. Durante semanas, piquetes de cinco soldados, em geral orientados por prestativos comerciantes, vasculharam a região, cercaram e assaltaram casas, submetendo crentes e não crentes a duras humilhações e violências. As barbas e os cabelos longos foram proibidos, já que significariam sinal de santidade e de fidelidade à nova religião. Um monge que teve a barba e o cabelo raspados à força teria se suicidado de vergonha. Em 13 de junho, a jovem Andreza Gonçalves, tida como corporificação de Santa Terezinha, foi estuprada em sua residência por um cabo, que afirmou querer “ver se a santinha” era realmente “virgem”. Em 12 de maio, o aspirante da Brigada Militar Wandenkolk de Freitas Marques, que já perseguira integralistas na região e se fizera passar por

349

crente, para melhor reprimir os fiéis, ordenou que tropas disparassem, mais uma vez, sobre uma pobre residência, onde monges barbudos, desarmados, reuniam-se para rezar. Ao final do fuzilamento, contaram-se dezesseis mortos. Por quatro meses, acompanhado por alguns seguidores, Deca França permaneceu escondido nos matos da região. Finalmente, cansado e acuado, foi fuzilado em 15 de agosto, ao se entregar às tropas policiais. A partir de então, alguns poucos monges, isolados e anatematizados, continuaram seguindo os ensinamentos dos “profetas” domesticamente, amargurando a repressão desapiedada da qual jamais alcançaram a compreender as razões. Até hoje o governo rio-grandense não pediu desculpas aos monges e aos seus descendentes pelo massacre e perseguição a que foram submetidos.

Os kystos raciais A conformação de uma indústria e de mercado nacionais exigia o retrocesso da consciência e da organização regional desenvolvida durante o Império e fortalecida na República Velha, até 1930. O Estado Novo promoveu como ideologia oficial o nacionalismo e reprimiu as tendências regionalistas, movimento simbolizado no ato de queima das bandeiras estaduais na pira do pavilhão nacional, com a presença de Getúlio Vargas, em 4 de dezembro de 1937, como já assinalado. A política de nacionalização teve grande impacto sobretudo nas regiões de colonização alemã e italiana. Vitorioso na Itália, o fascismo procurara disciplinar todos os aspectos da vida peninsular. Para tal, fascistizou a diplomacia e criou a Secretaria Geral dos Fascios no Exterior, para monitorar a emigração, impulsionando a política da “emigração tutelada”, que considerava o emigrado como “italiano no exterior”, sujeito à disciplina fascista. Essa política, destinava à nova emigração, mas atingia os expatriados nas décadas anteriores e os cidadãos de origem italiana nascidos no exterior, que viviam processos mais ou menos avançados de assimilação. Em 1925, durante o I Congresso dos Fascios no Exterior, Mussolini exigiu que os emigrados defendessem a “italianidade” e registrou a existência de quarenta fasci organizados no Brasil. Os agentes fascistas enviados para organizar os “italianos no exterior” teriam chegado ao Rio Grande do Sul nos anos 1923-29. Eles seriam, sobretudo, técnicos de nível médio e superior facilmente absorvidos pela economia da Região Colonial Italiana em expansão. As autoridades italianas promoveram amplo programa artísticocultural especialmente durante os anos 1933-41. A promoção da italianidade determinou que o sotaque italiano, até então desvalorizado nos centros urbanos da RCI, passasse a ser prestigiado na região.

350

O fascismo e seus embaixadores pouco se preocupavam com os colonoscamponeses, pois interessados na burguesia industrial e comercial urbana ítalo-sulina, visto que o fascismo militava pela construção de mercados exteriores para o capitalismo italiano. A indústria italiana pouco vendia a um colono-camponês, que produzia para vender o mais que podia e comprava o menos possível. As classes proprietárias ítalo-sulinas, que consumiam máquinas, tecnologia e produtos italianos, foram cortejadas, entrando numerosas nos fasci e no Partido Nacional Fascista, atraídas pela doutrina conservadora, por títulos honoríficos, pela possibilidade de visitar e realizar bons negócios na Itália. A fascistização do mundo colonial avançou por meio das visitas consulares, da imprensa escrita em italiano, de cerimônias e festividades dos clubes étnicos, etc. Foram criadas escolas italianas, com livros, programas de estudos e professores fascistas, frequentadas por alunos uniformizados. Nas festas, os meninos vestiam o uniforme de balilla, e as meninas, das piccole italiane das juventudes fascistas. As escolas italianas preocupavam-se com a disciplina, a hierarquia, a propaganda e descuravam com o ensino, que ignorava a língua e a realidade rio-grandense e brasileira.

Bandeira negra O Vaticano apoiara os ataques fascistas ao movimento operário e socialista italiano. Em 1929, com o Tratado de Latrão, Mussolini concedeu grandes vantagens à Igreja. Em As sombras do littorio: o fascismo no Rio Grande do Sul, a historiadora caxiense Loraine Giron lembra que a Igreja “foi a instituição que mais promoveu o fascismo” no Sul. O clero colocou os púlpitos e seus jornais à disposição da propaganda mussoliniana e ruralizou a propaganda dos fasci. Atos como a invasão da Abissínia – apoiada em manifesto por parte da nata da intelectualidade rio-grandense – foram festejados com missas solenes e elogiados nos sermões das linhas das regiões rurais. No Rio Grande do Sul a propaganda fascista frutificou desigualmente. Foi grande a adesão da burguesia urbana, sobretudo da Região Colonial Italiana. Como assinalado, com contradições com as classes proprietárias urbanas, o mundo rural nada tinha a ganhar ou a oferecer ao fascismo, mantendo-se à margem de movimento, com o qual apenas simpatizou. Comumente, membros das classes médias, sobretudo da Região Colonial Italiana e de Porto Alegre, aderiram ao integralista. A Ação Integralista Brasileira contou também com o apoio dos capuchinhos e do arcebispo da RCI. As classes operárias de origem italiana mantiveram-se apáticas ou claramente contrárias ao fascismo.

351

Os membros dos fasci eram instruídos para respeitar as leis e as autoridades nacionais, mas a política do “italiano no exterior” e de defesa da “italianidade” interrompia a nacionalização da imigração e fortalecia sentimentos de rejeição ao país, ao seu povo e à sua cultura. As classes dominantes brasileiras e rio-grandenses aceitavam sem maior resistência a partição do poder com classes proprietárias de origem não lusitana, sob a condição de que se dissolvessem no bloco dominante. Não contamos ainda com análise particularizada sobre o apoio e penetração nazista na Região Colonial Alemã do Rio Grande do Sul, que era, indiscutivelmente, muito amplo, sobretudo entre as classes urbanas. Em O Estado Novo no Rio Grande do Sul, René Gertz assinala que “mais ou menos a metade dos pastores do Sínodo Rio-grandense eram filiados ao partido nazista”. A ação dos fasci italianos e do Partido Nacional-Socialista alemão fora facilitada pela simpatia das classes dominantes nacionais e regionais para com aqueles movimentos e pela convergência diplomática e comercial do Brasil com a Itália e a Alemanha. A aproximação da Segunda Guerra e a opção do governo do Brasil pelos Aliados puseram fim a essa realidade. Apesar de simpático ao nazi-fascismo, o Estado Novo expressava a hegemonia das classes industriais, interessadas no fortalecimento da indústria e do mercado nacionais. Autoritário, centralizador, nacionalista, o Estado Novo reprimiu a autonomia estadual e as tendências antinacionais, sobretudo italianas e germânicas.

Quistos raciais Desde 1935, setores nacionais mobilizaram-se contra os chamados “quistos” raciais. Em 1937, militantes comunistas e nacionalistas promoveram as primeiras ações organizadas contra o movimento fascista na Região Colonial Italiana. Associações nacionalistas foram fundadas em Caxias do Sul, Garibaldi e Bento Gonçalves. A seguir, o Estado Novo patrocinaria ampla campanha de nacionalização autoritária das zonas coloniais. Exacerbada no Rio Grande do Sul com a entronização de Cordeiro de Farias como interventor, essa campanha teria reprimido particularmente a população de origem alemã. Entre as razões do comportamento diferencial estariam a maior simpatia brasileira para com os “italianos”; a existência de sentimento sobre o “perigo alemão” desde a chegada dos imigrantes em 1824; a mobilização antialemã durante a Primeira Guerra Mundial. Haveria que investigar, como razão da sanha de Cordeiro de Farias contra os teuto-riograndenses, a proximidade de Flores da Cunha com os industriais daquela origem.

352

A partir de 1939, as escolas italianas e alemãs foram fechadas e o clero católico romano, sensível à mudança dos ares e da ordem política, nacionalizou as práticas religiosas, afastando-se do fascismo, que agora prejudicava sua implantação no Rio Grande do Sul e no Brasil. Com o início da Segunda Guerra Mundial, aceleraram-se as campanhas nacionalistas, anti-italianas e antigermânicas realizadas na imprensa; a mobilização popular; a troca de nome de ruas e praças; a pressão pela nacionalização de estrangeiros, etc. O governo proibiu os voos das companhias de aviação Condor (alemã) e Lati (italiana). Em 1942, com o rompimento das relações diplomáticas com o Eixo, tomaram-se as primeiras medidas contra os italianos e a colônia italiana. Em fevereiro de 1942 determinou-se que os cidadãos das potências do Eixo comunicassem sua residência, pedissem licença para viajar, não se reunissem, entregassem as armas, não expressassem simpatias pelos seus governos. De maior consequência foi a proibição administrativa do uso de “idioma estrangeiro em locais públicos”, acusada tradicionalmente como responsável pela involução dos dialetos italianos e alemães no Rio Grande do Sul. De 15 a 17 de agosto, o submarino alemão U-507 afundou seis embarcações ao longo do litoral brasileiro, entre elas o iate “Aragipe”, enquanto recolhia sobreviventes de navio há pouco atacado. Outros barcos mercantes nacionais haviam sido afundados no mar do Caribe. Determinado pelo alto governo alemão como retaliação ao Brasil, os afundamentos de agosto visavam causar o maior número de mortes. Nos dias seguintes, corpos dos 627 vitimados chegaram semiestraçalhados às costas do Nordeste brasileiro. Em 18 e 19 de agosto de 1942, ocorreram depredações em Porto Alegre, Santa Maria, Pelotas, etc., contra negócios de cidadãos alemães e italianos, ensejadas pelos torpedeamentos dos dias anteriores. Na capital, o primeiro estabelecimento atacado teria sido a confeitaria Woltmann, na rua da Praia.

A lei do silêncio O aprendizado do português pelos filhos dos colonos italianos e alemães era objetivo perseguido pelos pais, a fim de que pudessem melhor se inserir na sociedade e na economia regional e nacional. A crise dos falares étnicos no Rio Grande do Sul e a nacionalização das colônias germânicas e italianas deram-se, sobretudo, em virtude da sua crescente incorporação como produtoras de gêneros alimentícios para o mercado nacional, e de manufaturados para o mercado regional, facilitado pela ampliação dos meios de comunicação. Também teve papel importante a ampliação da rede pública de escolas. Esses fenômenos ajudam a compreender a indiscutível simpatia da popu-

353

lação da zona colonial, sobretudo italiana, com o getulismo durante e após o Estado Novo, fenômeno que já contradiz a legenda do sofrimento geral dessas comunidades durante o esse período, desenvolvida fortemente pela historiografia étnica. Em 16 de julho de 1939 Cordeiro de Farias inaugurou a ponte sobre o rio Forqueta, com churrasco para dez mil participantes. A campanha de nacionalização poucas dificuldades causou à burguesia italiana, envolvida na política de fascistização. Com a mesma rapidez com que aderiram ao fascismo, industriais e comerciantes ítalo-rio-grandenses metamorfosearam-se em ferrenhos nacionalistas. Alguns deles ingressaram nas Ligas de Defesa Nacional, centros de ação e agitação nacionalistas. Os agentes fascistas da “imigração tutelada” voltaram para a Itália ou abandonaram a militância fascista, sem serem incomodados. O mundo rural que se mantivera relativamente à margem do processo de nazi-fascistização sofreu algumas vezes de forma mais dura as medidas de nacionalização. Os humildes agricultores conheceram as sequelas da promoção do fascismo e do nazismo no exterior. Ao contrário das classes dominantes urbanas, comumente, o colono não era bilíngue. Proibidos arbitrariamente de se expressar publicamente na única língua que conheciam, agricultores estranhos a qualquer atividade antinacional conheceram dificuldades no relativo a festas, cerimônias, atos de compra e venda, etc., sobretudo quando realizados nas cidades. A repressão aos falares italianos e alemães deu-se de forma diferenciada nas concentrações urbanas e na zona rural, onde, em linhas mais distantes, a determinação parece não ter tido qualquer consequência, como assinalou Cláudia Sganzerla em A lei do silêncio: repressão e nacionalização no Estado Novo em Guaporé (1937-1945). Como lembra igualmente a linguista italiana Florence Carboni, não é fácil alguém aprender a falar uma língua estrangeira em três anos e simplesmente impossível desaprender o idioma materno nesse limitadíssimo espaço de tempo. O desenvolvimento dos meios de transporte, do ensino público, do serviço militar, do rádio, etc.; o interesse dos pais em que os filhos aprendessem o português e, sobretudo, a mais estreita inserção na economia sulina e brasileira contribuíram para o desaparecimento tendencial dos falares não portugueses, primeiro nas sedes coloniais, a seguir nas comunidades suburbanas e, finalmente, na zona rural.

354

26 1945-1964: o sul e a crise do nacional-desenvolvimentismo Em 1944, com a aproximação da derrota final da Alemanha e o fortalecimento da luta pela redemocratização do país, o governo ditatorial getulista empreendeu processo de distensão política e social, concomitante à reorganização da vida política institucional. No novo contexto, foram permitidos a organização e o funcionamento dos partidos políticos e marcaramse eleições para presidente e para uma Assembleia Constituinte para 2 de dezembro de 1945. A reorganização política deu-se, por exigência da nova legislação, em torno de partidos necessariamente nacionais, organizações quase inexistentes quando da Revolução de 1930, à exceção da Ação Integralista Brasileira e do Partido Comunista do Brasil. A nova reorganização partidária expressava claramente o novo caráter do Estado-nação brasileiro. Os principais partidos a ocuparem a cena política foram o Partido Social Democrata (PSD), a União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Trabalhista brasileiro (PTB). O grande prestígio da URSS, em razão da sua enorme contribuição à derrota da Alemanha nazista, ao lado dos Aliados, e o apoio comunista ao governo getulista ensejaram que o PCB, até então na clandestinidade, passasse a funcionar à luz do dia, sendo a seguir legalizado. Plínio Salgado, antigo presidente da Ação Integralista Brasileira, que se asilara em Portugal, sob a proteção do salazarismo, aproveitou-se das sobras do seu movimento, dissolvido em 1937, para fundar o Partido de Representação Popular (PRP), organização democrática de cunho católico-conservador. Formado sob a inspiração de Getúlio Vargas, o PTB canalizou a antiga estrutura sindicalista e corporativista do Estado Novo, alimentada pelo imposto sindical, equivalente a um dia de salário do trabalhador. O partido reuniu, igualmente, os defensores do processo de industrialização apoiada no capital e no mercado nacionais. No Sul, o PTB defendia o desenvolvimento industrial regional e tentava administrar, satisfazer e reprimir as contradições crescentes entre o capital e o trabalho. Nas primeiras eleições após o Estado Novo, o PTB alcançou importante votação em todo o estado, com ênfase na Campanha, nas Missões e, sobretudo, na capital e nos grandes e médios centros urbanos. Formado igualmente sob a inspiração de Vargas, o PSD, no Rio Grande, expressou interesses ligados à industrialização das matérias-primas regionais, produtores rurais voltados ao mercado interno, setores administrativos e liberais urbanos, etc. O PSD, simpático a uma maior aproximação ao capital mundial, sem a perda da autonomia nacional, reuniu muitos ex-

355

militantes do velho Partido Republicano Rio-Grandense que se negaram a seguir o chamado do já oitentão Borges de Medeiros. A grande base eleitoral do PSD encontrava-se na região Norte, nos municípios onde dominavam a pequena e a média propriedades.

O udenismo De orientação liberal-conservadora e fortemente pró-imperialista, a UDN constituiu-se nacionalmente como a principal força antigetulista, com forte penetração no meio urbano. A UDN expressa o capital bancário, os setores agroexportadores, os segmentos civis e militares pró-imperialistas, agora sob a hegemonia dos EUA, os grandes vitoriosos após a Segunda Guerra, com a derrota da Alemanha e a decadência da Inglaterra. No Sul, a UDN constituiu-se, inicialmente, em torno dos poucos seguidores de Borges de Medeiros e, sobretudo, de Flores da Cunha, fixados numa militância antigetulista incondicional que os afastava estruturalmente dos projetos defendidos pelo primeiro na República Velha e pelo segundo de 1930 a 1937, quando estiveram à frente do Rio Grande do Sul. Nos anos seguintes, no Sul, a UDN representaria sobretudo setores proprietários rurais e urbanos conservadores. Raul Pilla liderou uma refundação nacional do Partido Libertador que visava apenas a cumprir formalmente a legislação. Porém, num Rio Grande substancialmente diverso em relação à República Velha, urbanizado e crescentemente industrializado, o novo Partido Libertador jamais alcançaria a importância regional que contara na República Velha, como contraponto do Partido Republicano Rio-Grandense, de Borges de Medeiros, e, a seguir, do Partido Liberal Republicano, de Flores da Cunha. O PL expressou os setores agrolatifundiários do meridião sulino, das Missões e dos Campos de Cima da Serra que haviam se mobilizado contra a república positivista e pela defesa do boi e do latifúndio. Borges de Medeiros, Flores da Cunha e Raul Pilla, antigos adversários figadais, apesar das siglas partidárias diversas, associaram-se na resistência contra a expressão das classes trabalhadoras e populares na política. Porém, no estado, PL e UDN mantiveram-se em clara inferioridade eleitoral em relação ao PSD e ao PTB. O PRP tinha suas bases eleitorais sobretudo nas regiões coloniais italiana e alemã, zonas de pequenas propriedades e de grande influência católica, que antes da guerra conheceram uma real penetração da propaganda fascista, nazista e integralista, fortemente apoiada pelo clero. Nacionalmente, fundou-se um Partido Democrata Cristão, que procurou galvanizar o clero e o eleitorado conservador católico, ao igual do que ocorria na Itália

356

do pós-guerra. No Rio Grande do Sul, o PDC organizou-se tardiamente e jamais alcançou uma real expressão eleitoral e social. A estrutura da indústria rio-grandense, dominada por pequenas e médias unidades produtivas descentralizadas, e a importância da produção pastoril-latifundiária, colonial-camponesa e agrícola dificultavam a organização do movimento operário rio-grandense, que tivera seus órgãos sociais e políticos reprimidos quando da Revolução de 30 e durante o Estado Novo. A influência do PTB no estado também fragilizava fortemente a organização autônoma regional dos trabalhadores. Após o fim da guerra, o PCB, legalizado por curto período de tempo, gozou de inegável prestígio, em boa parte decorrente da vitória soviética sobre o fascismo, como assinalado. A orientação política do PCB, subordinada estreitamente aos zigueszagues da diplomacia soviética e stalinista, dificultou igualmente a constituição programática e orgânica de um movimento operário autonômico no Brasil, processo já muito complexo, em razão das raízes recentes do movimento social e operário e da sua própria estrutura. Em 1945, no Rio Grande do Sul, o engenheiro Yeddo Fiúza, candidato às eleições presidenciais pelo Partido Comunista, obteve mais de cinquenta mil votos (8,13% dos sufrágios), mais da metade da votação obtida por Eduardo Gomes, apoiado pela UDN e pelo PL. Na capital, o PCB recebeu quase 30% dos votos. Em Rio Grande, o grande centro portuário sulino, 32,14% do eleitorado votou nos comunistas. O PCB elegeu um senador e 14 deputados federais e inscreveu duzentos mil filiados. O PCB dilapidou o apoio social que contava com a proposta de submissão dos trabalhadores à “burguesia nacional”, orientação implementada por meio da política de “apertar o cinto”, evitar as greves e agitações, ou seja, de aceitar o arrocho salarial, em prol do desenvolvimento do país. Nas décadas seguintes, o oportunismo e o colaboracionismo do PCB determinaram que praticamente desaparecesse do Rio Grande do Sul, entregando a classe trabalhadora sulina nas mãos do trabalhismo de orientação social-colaboracionista.

Golpe militar Em 29 de outubro de 1945, o ministro da Guerra, general Góes Monteiro, que apoiara o golpe de 1937 e militara no início do Estado Novo em favor de Hitler e Mussolini, depôs Getúlio Vargas, entregando o governo federal ao presidente do Supremo Tribunal Federal. No Rio Grande do Sul, o interventor Ernesto Dorneles, primo de Getúlio Vargas, foi substituído pelo juiz do Tribunal de Apelações Samuel Silva, interventor federal. Eleito presidente da República em 2 de dezembro de 1945, pelo PSD, com o apoio de Vargas, o general Eurico Gaspar Dutra nomeou para interventor

357

do estado Cylon Rosa, chefe do PSD regional, velho político republicano riograndense. Pompílio Cilon Fernandes Rosa nasceu em Montenegro em 1897, falecendo em 1987. Fora militante do PRR, participara da Revolução de 1930, apoiara Flores da Cunha e o PRL, afastando-se deste quando do golpe vitorioso do Estado Novo, em 1937. Cylon Rosa formou o secretariado com Walter Jobim e, a seguir, Otacílio Moraes, na Secretaria do Interior; Oscar Fontoura, na Secretaria da Fazenda; Batista Pereira, na Secretaria de Obras Públicas; Francisco Brochado da Rocha, na Secretaria da Educação; Desidério Finamor, na Secretaria da Agricultura. Cylon Rosa impulsionou o combate às várias epizootias que golpeavam os rebanhos sulinos e iniciou plano de construção de usinas elétricas. Em 1946, o Plano Rodoviário Estadual foi revisado, na perspectiva de maior integração das estradas sulinas à rede rodoviária nacional. Uma importante greve ferroviária chocou-se com a intransigência governamental, demarcando o renascimento do movimento sindical no Rio Grande do Sul.

Vitória do PSD Em 19 de janeiro 1947, Walter Só Jobim (1892-1974), do PSD, com o apoio dos integralistas do PRP e dos comunistas do PCB, venceu o pleito estadual, com 41,2% dos votos, derrotando Alberto Pasqualini, candidato do PTB, com 37,6% dos votos, e Décio Martins da Costa, da aliança UDN-PL, com 18,9% dos sufrágios. Ex-libertador, Walter Jobim fora secretário de Viação e Obras Públicas durante o Estado Novo e secretário do Interior e Justiça do governo Cylon Rosa. Walter Jobim governou até 31 de janeiro de 1951. Em 1947-1951 a economia do Rio Grande do Sul conheceu crescimento da renda interna de 5,9% em média, taxa que suplantava a também importante expansão demográfica sulina. Walter Jobim interpretou os interesses industrialistas regionais, pois sem esquecer os agropastoris, retomando a tradição castilhista-borgista e, sobretudo, getulista, de intervenção do Estado nos grandes domínios da economia que escapavam à capacidade de intervenção do capital nacional. Não questionou, porém, a subordinação relativa da economia rio-grandense ao capital hegemônico do Centro-Sul. Em 1948, Walter Jobim declarava em Pelotas: “A socialização das fontes de riqueza coletiva é um imperativo da própria dignidade nacional. Energia elétrica, carvão, petróleo e transporte devem ter o controle absoluto do nosso governo. Não podemos continuar escravizados economicamente a outros povos, numa política de eternas concessões, sofrendo a espoliação e o desconforto, como país simplesmente colonial.” Walter Jobim impulsionou a eletrificação do estado, ampliou o sistema rodoviário, implementado

358

por meio de associação do Daer ao DNER, com destaque às estradas Porto Alegre–Uruguaiana, Porto Alegre–Bagé, Santa Maria–Uruguaiana, Guaíba–Camaquã, Osório–Torres, Rio Grande–Santa Vitória do Palmar–Chuí. Fundou o Departamento Autônomo de Carvão Mineral (DACM), de grande importância, já que na época o mineral era a principal fonte de energia da rede ferroviária estadual. O governo Jobim impulsionou a Comissão Estadual de Energia Elétrica, instituída em 1943. Nas mãos de capitais privados, o serviço de eletricidade rio-grandense era insuficiente, deficiente e caro. As empresas do setor não possuíam capitais para os investimentos necessários e negavam-se a estender o abastecimento a áreas rurais de baixo consumo e, portanto, de baixa renda, entravando o desenvolvimento da produção no estado. Tratava-se de situação que impedia o desenvolvimento do capital no estado. Desde 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a possibilidade de importação dos equipamentos necessários, a Comissão Estadual de Energia Elétrica (CEEE) previu plano de construção de usinas secundárias, encampação das unidades privadas, implementação de geradores Diesel de apoio e, finalmente, construção de grandes usinas hidroelétricas – Candiota, Jacuí, Ernestina, Canastra, Capigui, São Jerônimo. O governo contraiu empréstimos com o Banco Internacional e instituiu Taxa de Eletrificação (1950), acelerando as obras planejadas. Em 1948, o Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor instalou-se na Fazenda Flor do Conde (Guaíba), passando a produzir vacinas e medicamentos necessários à pecuária regional. Tabela 4 - Potência elétrica – CEEE - 1947-52 Ano 1947 1948 1949 1950 1951 1952 ... 1956

Potência 2.300 6.700 13.000 17.620 19.995 34.981 ... 127.237

Fonte: Dalmazo, 54.

Constituinte Em março e julho de 1947, em Porto Alegre, reuniram-se os sessenta deputados que elaborariam a nova Constituição estadual sulina. Por meio da emenda nº 557, proposta pelo PTB e PL, a Constituinte implantou o

359

parlamentarismo no Rio Grande do Sul, a fim de escamotear a vitória do PSD. A nova Constituição foi promulgada em 8 de julho, mas o governador se negou a assiná-la, recorrendo ao procurador-geral da República, que pôs fim ao regime parlamentarista estadual, de apenas dez dias. Em maio, seguindo instrução do Departamento de Estado estadunidense, sob instruções do Tribunal Superior Eleitoral brasileiro, ao igual do que se fazia no Brasil, foi cassada a bancada comunista nacional. Em 7 de janeiro de 1948, foi caçada a bancada comunista estadual rio-grandense, de três deputados, liderada pelo escritor Dyonélio Machado, muito ativo na Constituinte estadual. Como praticamente todo o mundo não socialista, o Brasil ingressava na chamada Guerra Fria, que determinaria profundamente o cenário político internacional nas décadas seguintes. Dyonélio Tubino Machado nasceu em Quaraí em 21 de agosto de 1985, no seio de família pobre. Órfão do pai, trabalhou desde menino como vendedor de bilhetes, servente, balconista. Viveu em Porto Alegre de 1912 a 1914. Desde 1915, publicou colaborações nos jornais sulinos. Formou-se em Medicina em Porto Alegre em 1929, especializando-se em psiquiatria no Rio de Janeiro. Ingressou por concurso no Hospício São Pedro, onde trabalhou por trinta anos. Integrou o PRR até inícios da década de 1930, tornando-se, a seguir, militante comunista, inscrito no PCB. Dyonélio Machado foi presidente da Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande do Sul, sendo preso após o putsh de 1935. Na prisão, no Rio de Janeiro, conheceu o escritor Graciliano Ramos, também comunista, e soube que seu romance Os ratos recebera o Prêmio Machado de Assis. Quando do golpe, em 1937, fugiu de Porto Alegre para Santa Catarina, com identidade falsa. Após a redemocratização, em 1945, dirigiu o diário comunista riograndense Tribuna Gaúcha. Faleceu em 19 de junho de 1985, aos 89 anos. Em razão da sua orientação política, sua importante obra literária foi conhecida tardiamente, sendo pouco difundida.

Governo entreguista No que se refere ao país, o governo do general Eurico Gaspar Dutra desenvolveu-se sob as determinações estadunidenses. No plano econômico, instaurou, inicialmente, liberdade de câmbio, de repatriação de lucros, de importações, etc. No político, impôs forte repressão ao movimento operário, em geral, e ao PCB, em especial. O governo Jobim acompanhou a política repressiva federal no Sul. Em Rio Grande, sob a inspiração da forte secção local do PCB, o 1º de maio de 1950 foi festejado com churrasco, em virtude da proibição de manifestação pública. Às 16 h, os trezentos participantes do

360

ato partiram em passeata em direção ao centro, segundo parece para reabrir a sede da União Operária, fechada pelo ministro da Justiça. Policiais da Brigada Militar infiltrados no churrasco teriam comunicado o movimento às autoridades superiores. Sabedor do pretendido, Evaldo Miranda, responsável pelo famigerado Departamento de Ordem Política e Social local (DOPS), o tenente da Brigada Militar Gonçalino Curio de Carvalho, os inspetores Carlos Galveto, Sady Pinto, Rui Santana e guardas e soldados interceptaram os manifestantes na proximidade do cemitério católico. À frente do grupo, que portava bandeiras, entre elas a do Brasil, vinha o vereador comunista Manoel Rechia. Como habitualmente, a imprensa noticiou que, após um manifestante ter disparado contra as autoridades, as tropas responderam com nutrido fogo por dez minutos, resultando da ação cinco mortes e muitos feridos. Além dos operários Honorino Alves Couto, portuário, Osvaldino Corrêa, ferroviário, Euclides Pinto, pedreiro, e da líder comunista Angelita Gonçalves, tecelã, morreu um soldado da Brigada Militar, atingido no coração. Entre os feridos encontravam-se o vereador comunista e líder operário Antônio Recchia, que ficou paraplégico. A provocação antioperária e anticomunista teve novo desdobramento, cinco meses mais tarde, na noite de 24 de setembro de 1950, em Santana do Livramento. Às 22h30min, um grupo de comunistas que escrevia, munido de baldes de cal, no pavimento da praça central as consignas “Abaixo o imperialismo” e “Queremos paz, pão e liberdade” foi atacado a tiros pelos inspetores Ário Castilhos, Assis Brasil Ramos Macedo, Waldomiro César, Vidal Vieira da Cunha e escrivão Edson Cunha, chefiados pelo delegado Miguel Zacarias. O tiroteio resultou na morte de Aladim Rosales, vendedor de verduras, candidato a deputado; do vendedor Hary Kulmann e de Abdias da Rocha, operário do frigorífico Armour. O livreiro Aristides Correa Leite teria sido morto quanto procurou se refugiar em Riveira, no Uruguai. Segundo parece, os militantes comunistas Nestor Magalhães, Francisco Cabeda, Hélio Porto e Luiz Coimbra, que fugiram para Rivera, foram presos pela polícia uruguaia. O advogado e vereador comunista Lúcio Soares Neto, com 39 anos, que revidou ao ataque, ferido nas costas, fugiu para o Uruguai, onde viveu exilado até 1955.

Tradicionalismo Em 1947, enquanto iniciava a Guerra Fria, o PCB era ilegalizado, acirrava-se a repressão sobre o movimento operário em Porto Alegre e estudantes do interior do estado fundavam movimento cultural regionalista baseado nos tradicionais mitos da democracia pastoril e do caráter libertário

361

da Guerra Farroupilha; identificando a história do Rio Grande do Sul à do latifúndio pastoril. No mundo das representações ideológicas e culturais, o movimento constituía reação à subalternização da sociedade e da economia pastoril diante do mundo industrial e colonial-camponês. O grupo tradicionalista organizou centros de tradições gaúchas (CTGs), espaço de encenação romantizada das práticas sociais e produtivas da fazenda pastoril, onde capatazes, peões e prendas confraternizam sob a direção protetora do patrão. Esse cenário idealizado e fantasioso, fortemente misógino, encobriu a enorme importância da escravidão e as múltiplas expressões do mundo do trabalho no passado sulino – o cativo, em geral, e o cativo campeiro, em especial, além do colono-camponês, etc. Durante a Segunda Guerra Mundial havia se valorizado relativamente a produção pastoril no contexto de sua subordinação ao capital industrial. Essa situação permitia que as classes industriais apoiassem o movimento tradicionalista, de cunho ideológico-cultural conservador, que já não mais almejava a hegemonia regional. Interessava a todas as classes dominantes sulinas a construção de identidade regional assentada na invenção de passado que teria desconhecido as contradições e oposições classistas. Também em 1947, ano da fundação do movimento cetegista, Erico Verissimo começara a escrever O Continente, primeira parte de seu magnífico romance regionalista de cunho apologético sobre o passado sulino. Esse épico ficcional regional apresentaria também o fazendeiro como o demiurgo da sociedade rio-grandense e praticamente desconheceria o trabalhador escravizado, o colono-camponês, o operário industrial. Em 1964, a Assembleia Legislativa institucionalizou o movimento tradicionalista, criando a Semana Farroupilha, comemorada de 14 a 20 de setembro.

O retorno do Gegê Em 3 de outubro de 1950, Getúlio Vargas elegeu-se com 48,7% dos votos, apoiado pela PSD, pelo PTB e pelo ademarismo (PSB). Ele propunha a continuação do projeto de industrialização nacional autônoma, apoiada pelo Estado e voltada para o mercado interno. Durante a campanha, enfatizara o desenvolvimentista nacional e os direitos trabalhistas, decretando a morte da “velha democracia liberal e capitalista”. O brigadeiro Eduardo Gomes, candidato pela segunda vez pela UDN, foi fragorosamente derrotado, com apenas 29,7% dos votos. O PCB, após período de colaboracionismo, interrompido quando posto na ilegalidade em 1947, vivia fase esquerdista, com apelos à luta armada. Não participou, portanto, da eleição de 1950, mesmo indiretamente, mantendo forte oposição ao governo Vargas do seu início ao seu trágico fim.

362

A segunda administração de Vargas deu-se no bojo de graves contradições. A valorização da moeda nacional e a desvalorização tendencial das cotações no mercado mundial das matérias-primas deprimiam os ganhos das exportações, sobretudo de café, causando forte pressão nas contas externas e exigindo o controle das remessas de lucros e dos dividendos para a compra de tecnologia, equipamentos, petróleo, trigo, etc. Como no Estado Novo, o governo getulista expressava os interesses sobretudo do capital industrial, no contexto da associação com os setores agropastoris produtores para o mercado interno. Nesse projeto reservava-se ao operariado urbano – interessado relativamente na ampliação e qualificação da produção industrial e do mercado de trabalho – o papel de apoiador subordinado. Inicialmente, o governo Vargas empreendeu orientação nacional-desenvolvimentista moderada, prometendo facilitar os investimentos de capitais estrangeiros “em associação com os nacionais”, se não ferissem os interesses do país. Em inícios dos anos 1950 o Brasil possuía 52 milhões de habitantes. Nos anos anteriores, a burguesia industrial, as classes médias e o operariado haviam se fortalecido significativamente em relação ao Estado Novo, acirrando as contradições sociais fundamentais. Ao contrário, decrescera o poder dos exportadores, organizados sobretudo na UDN, onde se alinhavam as forças do imperialismo e do capital financeiro. Getúlio Vargas acelerou a intervenção do Estado na economia, ampliando as iniciativas que haviam levado, no Estado Novo, à fundação da Companhia Siderúrgica Nacional, em 1943, e da Companhia Hidroelétrica do Vale do São Francisco. Fundou o Banco da Amazônia, o Banco do Nordeste (1952), o BNDE (1952) e a Eletrobrás. Em 1951, estabeleceu o monopólio estatal da exploração e da exportação de minerais radioativos e de petróleo, expressando a vontade de dominar a produção de energia nuclear e a bomba atômica. Em 1953, a luta pela fundação da Petrobras galvanizou a população brasileira. A companhia permitiu restringir a hemorragia de divisas em razão das importações de petróleo. No mesmo ano, São Paulo conheceu a “Greve dos 300 mil”, que agitou a capital e o interior, em forte demonstração de força objetiva da classe operária. O projeto de desenvolvimento industrial autônomo encontrava limites intransponíveis na estreiteza do mercado interno e da poupança nacional, apesar da forte expansão demográfica – 3%. Vargas prosseguiu preservando o latifúndio, mantendo imensas regiões e populações em verdadeira economia seminatural e com fortes elementos pré-capitalistas. O mercado de consumo urbano era limitado. A produção industrial assentava-se na extração de mais-valia absoluta, praticando salários baixos, próximos ao mínimo necessário à subsistência, o que deprimia igualmente o consumo e, portanto, estreitava o mercado. A baixa capacidade de consumo da população urbana

363

e rural impedia a produção em escala e a introdução de tecnologias avançadas.

Redefinição da correção de forças A continuidade do processo de industrialização baseado no capital e no mercado nacionais exigia forte expansão dos investimentos e do consumo interno, por meio da destruição do latifúndio, sem indenização, e dos bolsões de economia seminatural; da generalização das leis trabalhistas; de uma elevação geral dos salários; de uma crescente participação estatal na economia, no relativo à indústria e ao sistema bancário e financeiro, sobretudo. Na época, impunha-se a implantação de indústria nacional de bens de produção, expressada na redefinição da orientação inicial da Fábrica Nacional de Motores, fundada durante a Segunda Guerra para produzir motores de aviões. Essas reformas democrático-burguesas redefiniriam a correlação de forças em favor do mundo do trabalho, com maior espaço econômico e social dos trabalhadores, e romperiam a associação subordinada dos proprietários rurais às classes industrialistas nacionais, com a repressão ao latifúndio. Era um processo que sequer interessava aos segmentos industriais ligados ao governo, que temiam perder a direção do processo. A fragilidade econômica e a pusilanimidade política impediam que a burguesia industrial nacional completasse a revolução democrática, entregando, nos fatos, essa tarefa ao proletariado industrial. Entretanto, este último jamais conseguiu construir direção capaz de orientá-lo nessa difícil empresa. Nesse contexto geral, nas décadas seguintes a burguesia nacional assumiu um caráter claramente conservador e posição de subalternidade diante do capital imperialista. O suicídio de Getúlio Vargas, em 24 em agosto de 1954, assinalou o esgotamento do desenvolvimento industrial voltado para o mercado interno e apoiado em capitais nacionais, em virtude, como vimos, do caráter restrito do mercado nacional, emperrado pelo latifúndio e por indústria assentada fortemente na exploração primária e não qualificada do trabalhador. As classes burguesas que haviam se privilegiado com o industrialismo getulista não aceitavam, como não aceitava o próprio Getúlio Vargas, implementar programa que desequilibraria a correlação social e política de forças em favor dos trabalhadores da cidade e do campo. Entrava em crise o pacto social populista construído em torno do desenvolvimento de produção industrial voltada para o mercado interno, que permitira a ampliação e conquistas limitadas para segmentos da classe operária urbana. Abandonado pela burguesia industrial e sem querer mobilizar os trabalhadores, temendo que ultrapassassem a defesa de seu governo e de

364

sua pessoa, Vargas encontrou no suicídio a solução pessoal para o impasse político que o país vivia, materializado na exigência do alto comando militar golpista de seu afastamento. Como no resto do país, também no Rio Grande do Sul o suicídio de Vargas, na madrugada de 24 de agosto de 1954, causou grande comoção popular. Em Porto Alegre, foram atacados e apedrejados o consulado estadunidense e as sedes do National City Bank of New York, do PSD, da UDN, do PSP e do PL. A Rádio Difusora, a Rádio Farroupilha, os jornais O Estado do Rio Grande, porta-voz do PL, o Diário de Notícias, de Assis Chateaubriand, o maior empresário das comunicações da época, e Tribuna Gaúcha, órgão do PCB, ilegalizado, foram atacados, depredados ou incendiados, em virtude da oposição a Getúlio Vargas. Houve também explosão da indignação popular no interior, expressada, entre outros atos, no ataque, em Passo Fundo, à redação do Diário da Manhã, de orientação claramente antigetulista. Em Porto Alegre, durante as mobilizações morreram três populares. A explosão de indignação popular impediu projetos militares e burgueses golpistas em curso que almejavam pôr fim definitivo à política de desenvolvimentismo nacional-populista.

Ernesto Dorneles Em 3 de outubro de 1950, o agora general Ernesto Dorneles, ex-militante do PSD, elegeu-se para o governo do estado do Rio Grande do Sul no período 1951-4, apoiado sobretudo pelo PTB, com 45,5% dos votos, derrotando a coligação conservador PSD-UDN-PRP, que obteve 39,47% dos votos. O PL obteve 11,23% e o PSB, votação insignificante. A conquista do governo pelo PTB dava-se no contexto do retorno com força do nacional-desenvolvimentismo ensejado pela eleição de Getúlio Vargas à presidência da República. De 1951 a 1954, durante seu governo, a renda interna do Rio Grande do Sul cresceu significativamente em relação ao período anterior. A boa situação econômica permitiu que o governo apoiasse a expansão sobretudo industrial, sem esquecer a agropastoril, e a satisfação mínima de necessidades de importantes setores urbanos – eletricidade, luz, saneamento. Como Getúlio Vargas, Dorneles enfatizou, ainda mais que o antecessor, o necessário sentido social do desenvolvimento capitalista. Foram secretários de Ernesto Dorneles políticos trabalhistas que teriam, a seguir, grande influência nacional e regional: João Goulart, Egídio Michaelsen, Antônio Brachado da Rocha, Leonel Brizola. O historiador Guilhermino César, mineiro de nascimento, fez igualmente parte do governo Ernesto Dorneles. Em maio de

365

1954, os trabalhadores da VFRGS entraram em greve, sendo suas reivindicações satisfeitas pelo governo do estado. A migração do campo para a cidade e o fortalecimento das classes operárias e intermediárias colocavam no centro da vida política regional a chamada “questão social”, da qual o PTB se apresentava como intérprete, enquanto o PCB permanecia na semi-ilegalidade. Em fins de 1940, em razão da incapacidade dos municípios e dos capitais privados de realizarem grandes obras infraestruturais, e sob a pressão da crescente população urbana exasperada pela baixa qualidade dos serviços, o governo estadual passou a intervir na generalização dos serviços públicos básicos. Nesse contexto, iniciou a implantação da distribuição da água encanada e o estabelecimento de redes cloacais nas principais cidades, por intermédio da Secretaria de Obras Públicas. A crescente intervenção pública na economia levou a que, em 1945, 38% das rendas estaduais fossem gastas com o funcionalismo; em 1947, 74%; em 1950, 66%; em 1955, 77%. O chamado “empreguismo” constituía também forma de mitigar a incapacidade da economia industrial e agropastoril regional de responder às crescentes exigências do mercado de trabalho, por meio de uma ampliação significativa do emprego. Uma incapacidade devida, como vimos, em grande parte, à intocada estrutura latifundiária sulina, que praticava ainda de forma absolutamente majoritária o pastoreio extensivo. No mesmo sentido, enquanto se esforçava para garantir a expropriação e captação pelo capital da renda do trabalho, o governo rio-grandense preocupava-se em amortecer as contradições sociais pela produção e distribuição do abastecimento dos gêneros de subsistência básicos por preços acessíveis. Para tal, fundou órgãos como o Entreposto do Leite, em Porto Alegre, em 1937, transformado em Departamento Estadual do Leite (Deal) dez anos mais tarde. Em 1951, estabeleceu-se o Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais (Deprec), órgão destinado a planejar, implantar e administrar os portos e canais no Rio Grande do Sul. Em 1953 estabeleceu-se o I Plano de Obras, Serviços e Equipamentos do Rio Grande do Sul, que sistematizou a experiência regional quanto ao planejamento estatal, segundo as necessidades das classes proprietárias, em geral, e de seus setores hegemônicos, em especial. No plano, que ampliava fortemente a participação pública na economia, o setor de transporte levava a parte do leão, com 46,67% dos recursos – vias rodoviárias: 19%; ferroviária: 16%; sistema portuário e navegação interna: 10%; sistema aeroviário: 1%. Grande destaque foi dado ao setor energético. Outra área priorizada foi o setor agrícola – silos e armazéns, terminais e portos, estações experimentais, postos zootécnicos, etc. A distribuição urbana de água ficou

366

com 13%; a educação, com 5% e a saúde, com 5% dos recursos. Na educação privilegiou-se o sistema profissionalizante.

Em procura de terras De 1940 a 1950, foram ocupadas as últimas terras disponíveis à agricultura colonial-camponesa, localizadas sobretudo no norte do estado, computando-se no período ingresso de 13,5 mil imigrantes no Rio Grande do Sul. Desde então, a tendência inverteu-se e o Sul transformou-se, de importador, em exportador de mão de obra, com forte hemorragia de recursos humanos e materiais. Em verdade, desde os anos 1920 colonos-camponeses provenientes das Colônias Velhas e Novas do Rio Grande do Sul começaram a atravessar o rio Uruguai, estabelecendo-se sobretudo no oeste de Santa Catarina, do Paraná e, mais tarde, no Mato Grosso. Nas décadas seguintes, esse movimento ultrapassaria as fronteiras nacionais, em direção ao Paraguai e à Bolívia, sobretudo. De 1947 a 1955, no contexto de forte expansão da renda interna sulina, o Estado regional continuou a orientação castilhista de desenvolvimento econômico regional autônomo e equilibrado, assentado sobretudo na produção industrial e agropastoril. Além de se ocupar com a ampliação e modernização dos meios de transporte, o Estado regional responsabilizou-se pela produção e distribuição de eletricidade. Prosseguindo o velho programa republicano, o governo ocupava-se da educação básica e do fornecimento dos serviços públicos mínimos quando a iniciativa privada se mostrava incapaz de realizá-los. Portanto, ao mesmo tempo em que se atendia e alimentava reivindicações populares gerais, governava-se sobretudo para facilitar a acumulação privada de capitais, com destaque para a produção industrial e agrícola-capitalista. No contexto de forte desigualdade da distribuição da renda, parte dos capitais acumulados no Rio Grande do Sul no período foi investida em novos ramos industriais – comunicação, metal-mecânica, petroquímica, produtos elétricos, química, etc. Como indústrias semelhantes, de maior porte e maior tecnologia, surgiram também no Centro-Sul, atendendo ao mercado daquelas regiões e do país, as indústrias sulinas seguiram limitadas sobretudo ao abastecimento do mercado regional. Prosseguiu a dependência da produção industrial sulina ao sucesso da produção agropastoril regional. A antiga política de autonomia e oposição à intromissão federal no Rio Grande, base política do castilhismo-borgismo, retomada em patamar superior pelo fracassado governo de Flores da Cunha, expressava-se agora na resistência ao questionamento por capitais não sulinos da hegemonia do capital regional. Havia profunda satisfação ideológica das classes dominan-

367

tes com o destino sulino, visto como processo de desenvolvimento orgânico entre as atividades industriais, agrícolas e pastoris. Nesses anos, jamais houve real discussão sobre a secundarização dos interesses industrialistas regionais em razão da acelerada expansão fabril do Centro- Sul. As chamadas “elites industriais” sulinas acomodavam-se sem problemas à situação secundária que lhes destinavam.

Cinco em cinquenta A posse de Juscelino Kubitschek, em 1956, assinalou reorientação da política econômica que interpretava as exigências de capitais industriais e financeiros nacionais do Centro-Sul, interessados numa mais íntima inserção na divisão mundial da produção capitalista, ainda que em situação de subalternidade relativa ao capital imperialista. A instrução 113 da Sumoc abriu o Brasil aos capitais mundiais, permitindo a importação de equipamentos sem cobertura cambial, o que ensejou a formação de parque automotor nacional, localizado sobretudo em São Paulo, sob o controle do capital internacional. A medida pôs fim à experiência da Fábrica Nacional de Motores e degradou o balanço das contas do país, iniciando o processo de endividamento nacional junto ao capital financeiro mundial. A fundação de Brasília ampliou a circulação mercantil e capitalista para e no Brasil Central. Realizou-se por meio de processo inflacionário que financiou sobretudo com a renda da população acumulação de capitais em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ao contrário de Vargas, Juscelino não foi ingrato com os grandes proprietários mineiros. O financiamento da construção de Brasília à custa da inflação determinou depressão do poder de compra nacional, sobretudo dos setores populares, e regressão da economia rio-grandense, tradicional exportadora de alimentos para o Brasil. Em virtude da depressão das exportações do setor agropecuário, de 1956 a 1959 o crescimento da renda interna sulina foi, em média, de 0,39%, configurando empobrecimento regional geral, visto o crescimento demográfico superar significativamente essa taxa. Tabela 5 - Índice do produto real brasileiro – 1949-57 1949

1950

1951

1952

1953

Agricultura

103,7

107,6

108,2

117,1

115,7 126,0 133,1 130,7 145,3

1954

1955

1956

Indústria

104,9

117,3

130,1

138,9

145,2 157,4 165,4

177,

1957 183,5

Comércio

104,9

115,9

129,4

135,6

135,9 152,2 155,1 160,9 170,4

Prod. per capita

102,0

106,4

110,3

114,3

114,3 120,3 122,2 122,6 127,1

Fonte: Conferência Internacional de Investimento. BAARSCH, Marius. Estrutura e desenvolvimento econômico do RS. Porto Alegre: Sulina, 1959.

368

Como assinalado, de 1950 a 1960, revertendo tendência histórica do Rio Grande do Sul, oficializada em 1737 com a fundação de Rio Grande, 162 mil rio-grandenses teriam se expatriado, sobretudo à procura de terras, já que as disponíveis no estado eram monopolizadas pelo latifúndio. Ao igual que seus ancestrais, que partiram em busca de terras no Brasil, ao abandonar o estado, os imigrantes, além de exportar sua força de trabalho e capitais, facilitavam a consolidação da posse latifundiária da terra, grave empecilho ao crescimento da própria economia capitalista regional. Após a breve experiência do Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master), em inícios dos anos 1960, impulsionada, como veremos, pelo governador petebista Leonel Brizola, interrompida pela ditadura militar, em 31 de 1964, apenas em 1979 nasceria amplo movimento político lutando pela divisão dos latifúndios sulinos improdutivos – o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que dirigiria nas décadas seguintes a luta pela reforma agrária no país.

Conservadores no poder A depressão econômica sulina foi facilitada pela eleição ao governo do Rio Grande do Sul de candidato das forças conservadoras, que não organizou qualquer oposição às políticas nacionais prejudiciais ao próprio desenvolvimento capitalista do estado. De 1955 a 1958, o Rio Grande do Sul foi governado pelo engenheiro Ildo Meneghetti (1895-1980), candidato da Frente Democrática (46,3%) (PSD, UDN, PL) que derrotou Alberto Pasqualini, candidato petebista (42,5%), doente e incapaz de realizar uma efetiva campanha. Nas eleições, o PTB rechaçou publicamente o apoio do Partido Comunista, ilegalizado. O PRP obteve, na ocasião, 8,4% dos votos. Ildo Meneghetti nasceu em 15 de junho de 1895. Seu pai era conhecido alfaiate italiano da capital que imigrara ainda criança para o Brasil. Simpático ao PRR de Borges de Medeiros, Meneghetti formou-se em Engenharia em 1916, trabalhando de 1918 a 1927 na VFRGS, período de forte agitação sindical na empresa. Em 1927, fundou com dois sócios empresa de construção civil. De 1929 a 1933 e em 1938, presidiu o Esporte Clube Internacional, construindo o Estádio dos Eucaliptos. Em 1947, com 52 anos, Meneghetti foi convidado pelo ex-governador designado Cylon Rosa, do PSD, a candidatar-se a vereador de Porto Alegre, elegendo-se como candidato do Esporte Clube Internacional, equipe de fortes raízes populares, em uma época em que o Grêmio se distinguia ainda por seu elitismo social. Em 1948, foi nomeado prefeito de Porto Alegre pelo governador Walter Jobim, também do PSD, vencendo em 1951, como candidato do PSD, UDN e PL, Leonel Brizola, então com 29 anos, do PTB,

369

por pouco mais de mil votos. Nesse ano, Porto Alegre fora excluída do rol de centros urbanos que tinham prefeitos designados por se constituírem centros militares. Submetendo-se ao contexto econômico pouco positivo, Meneghetti limitou-se a continuar o plano de eletrificação, ampliar a rede pública de ensino, criar uma Polícia Rural Montada (Brigada Militar) e avançar na construção da ponte sobre o Guaíba, idealizada por Ernesto Dorneles. Com a última obra, por primeira vez, o rio Guaíba, as lagoas e o rio Jacuí deixavam de ser uma difícil barreira entre o sul e o norte do estado. Durante o seu governo, Meneghetti cancelou forte investimento do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), concedido à CEEE. Em 1955, em Santa Cruz do Sul, foi fundada a Associação dos Plantadores de Fumo em Folha do Estado do Rio Grande do Sul, por iniciativa de forças clericais e conservadoras. A APFFRGS jamais organizaria a resistência do pequeno plantador de fumo, abandonando a mobilização por melhores preços para o produto em favor de militância pelo seguro mutualizado da safra, iniciativa que contou com o apoio total da agroindústria fumageira.

Leonel de Moura Brizola Em 1959-62, a economia sulina recuperou-se fortemente, crescendo em uma média anual de 7,7%. Em 1958, Leonel de Moura Brizola, do PTB, venceu as eleições para o governo do estado com o apoio do Partido de Representação Popular, oriundo da antiga Ação Integralista Brasileira, com mais de quatorze pontos porcentuais de vantagem sobre o coronel da Brigada Militar Walter Peracchi Barcelos, candidato do PSD, UDN, PL, demonstrando o profundo desgaste da administração Ildo Meneghetti. A votação de Brizola superava o escore eleitoral do PRP, registrando importante deslocamento eleitoral da população em direção ao trabalhismo. Leonel de Moura Brizola nasceu em 22 de janeiro de 1922 em Cruzinha, no então município de Passo Fundo. Seu pai, pequeno lavrador, fora assassinado em 1923, segundo parece, devido a problemas locais. Brizola formou-se como técnico rural (1939), ingressou no Departamento de Parques e Jardins da Prefeitura de Porto Alegre (1940), cursou a Escola de Engenharia da URGS (1945-49). Admirador de Vargas, filiou-se ao PTB em 1945. Foi eleito, em 1947, com 25 anos, deputado estadual. Em 1950, casouse com Neusa Goulart, irmã de João Goulart, filha de rico proprietário rural de São Borja, terra natal de Vargas. Brizola foi reeleito em 1950 como deputado estadual e, no ano seguinte, perdeu as eleições para prefeito de Porto Alegre para Meneghetti, por poucos votos. Em 1952, foi secretário de Obras Públicas do governo Ernesto Dorneles. Em 1954, elegeu-se deputado federal

370

e, em 1955, prefeito de Porto Alegre, pelo PTB, aliado ao PRP. Em 1958, com 36 anos, foi eleito governador do Rio Grande do Sul. Brizola aumentou de cinco para doze as secretarias de governo. Iniciou a construção da Estrada da Produção – Porto Alegre–Alto Uruguai. Retomando e ampliando o projeto de Flores da Cunha, de Walter Jobim e Ernesto Dorneles, realizou amplo plano de investimentos e colocou, explicitamente, em discussão, o constante emprego dos recursos do país em favor do grande capital do Centro-Sul, criticando duramente o governo de JK. Por meio do Conselho de Desenvolvimento do Extremo Sul (Codesul) e do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo-Sul (BRDE), em parceria com os estados do Paraná e de Santa Catarina, aprovado por João Goulart em dezembro de 1962, e de um Conselho Estadual de Economia, procurou anular a tendência ao investimento dos capitais nacionais e estrangeiros apenas no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. O BRDE tinha sede em Porto Alegre e agências em Curitiba e Florianópolis.

Novo projeto Nos primeiros meses da administração, Brizola desapropriou subsidiária da American and Foreign Power. Em dezembro de 1960, implantou a empresa Aços Finos Piratini, com 51% de capitais públicos. No final do mês, autorizou a constituição da Companhia Rio-grandense de Telecomunicações, com igual participação estatal. Em fevereiro de 1962, encampou a Companhia Telefônica Nacional (CNT), subsidiária da International Telephone and Telegraph Corporation, estadunidense. Desenvolveu a rede de ensino público com um vasto programa de construção de escolas pré-fabricadas – brizoletas. Em 1958-61, o número de professores praticamente triplicou, enquanto os alunos matriculados saltavam de 281 mil para 461 mil. Também de forma pioneira, questionou a posse monopólica e improdutiva da terra, desapropriando terras da fazenda Sarandi e no Banhado do Colégio, em Camaquã. Nesse ponto, tratava-se de superação qualitativa do programa desenvolvimentista proposto pelo getulismo-trabalhismo. Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros, presidente da República, entregou carta de renúncia, esperando obter o apoio castrense para projeto e prosseguir na presidência com poderes discricionários. O presidente do Congresso referendou a demissão sem colocá-la em votação e os ministros militares impugnaram a posse do vice-presidente, João Goulart, do PTB, então em viagem oficial à China. Os altos chefes militares procuraram abrir caminho para governo conservador, autoritário e mais confiável, sem Jânio Quadros, que iniciasse a liquidação definitiva do populismo nacional-desenvolvimentista. A tentativa golpista – apoiada pelos grandes proprietários

371

nacionais e pelo imperialismo – foi vergada em virtude da mobilização popular ensejada pela oposição do governador do Rio Grande do Sul. Após o pronunciamento militar, desde estúdio improvisado nos porões do palácio Piratini, Leonel Brizola organizou rede radiofônica – Cadeia da Legalidade – que cobriu, primeiro, o Sul e, a seguir, parte do Brasil, conclamando a população à resistência armada, se preciso fosse, em defesa da Constituição. Tropas da Brigada Militar entrincheiraram-se nas cercanias do Palácio Piratini, à espera do ataque do Exército e da Aeronáutica. No contexto da crescente mobilização popular, a ordem do comando da Aeronáutica de que caças bombardeassem. Palácio Piratini foi impedida em razão do controle da Base Aérea de Canoas por sargentos e oficiais constitucionalistas e progressistas. O ataque ao Palácio Piratini por tanques M-3 da II Companhia Mecanizada da Serraria não prosperou por causa da decisão da Brigada Militar de resistir. Nos dias seguintes, mais de trinta mil populares arrolaram-se como voluntários para o combate e alguns revólveres foram distribuídos à população. A adesão ao constitucionalismo dos generais Pery Bevilaqua, comandante da III Divisão de Infantaria, de Santa Maria, e Oromar Osório, da I Divisão de Cavalaria, de Santiago, determinou o pronunciamento do vacilante comandante do III Exército no dia 28, em favor da Constituição. Tropas da Brigada e do Exército organizaram a defesa das fronteiras do Rio Grande do Sul, enquanto a agitação constitucionalista de Brizola se espalhava pelo Brasil, fazendo o golpismo retroceder. Em 3 de setembro, João Goulart desembarcou em Porto Alegre, de onde seguiu para o Rio de Janeiro, para assumir, em 7 de setembro, a presidência vacante, com os poderes restringidos em virtude da instauração do parlamentarismo pelo Congresso.

Oportunidade perdida Brizola opôs-se, inutilmente, à solução parlamentarista aceita por Goulart, que significava recuo diante das forças golpistas encurraladas. O governador sulino propunha respeito à Constituição e, portanto, novas eleições, após a destituição dos ministros militares e dissolução do Congresso comprometido com o golpismo. A aceitação do parlamentarista impediu o prosseguimento do confronto político e social, precisamente quando o golpismo se encontrava em retrocesso, em virtude da mobilização popular e da divisão das forças militares. Três anos mais tarde, com as forças golpistas recompostas, a população pagaria, com retrocesso histórico, a leniência de João Goulart. A Legalidade transformou Brizola em político nacional e em virtual candidato popular à presidência da República.

372

Em 1962, o PTB concorreu com Egídio Michaelsen, trabalhista de esquerda, que recebeu 35,5% dos votos. Uma dissidência trabalhista de centro-direita, com Fernando Ferrari coomo candidato (MTR), obteve 21,45% dos votos, dando a vitória a Ildo Meneghetti, candidato conservador do PSD, PL, PDC, UDN e PRP, com apenas 37,1%. A mobilização social ensejou que Meneghetti, antigo líder porto-alegrense e ex-presidente do Internacional, obtivesse apenas uma terceira colocação na capital. A radicalização do trabalhismo nacionalista, expressada sobretudo por Leonel Brizola, enfraquecia a hegemonia da burguesia nacional sobre o PTB. Em 1959, sob a influência ideológica do trabalhismo de corte católico e conservador de Alberto Pasqualini, Fernando Ferrari fundou o Movimento Trabalhista Renovador, apoiado por José Loureiro da Silva (1902-1964) e outros dissidentes do PTB. A iniciativa teve pouco sucesso político, mas garantiu a derrota do PTB nas eleições de 1962, o que facilitou enormemente o golpe militar de 1964. Ferrari nasceu em 14 de junho de 1921 em São Pedro do Sul, nas imediações de Santa Maria. Seu pai era comerciante abonado de origem italiana. Estudou em colégio marista, formou-se como contador, concluiu o curso de economia, já na capital. No Rio de Janeiro, em 1946-7, trabalhou no Serviço de Alimentação da Previdência Social, denunciando com alarde o diretor da instituição por corrupção. Em Porto Alegre, em 1947, inscreveuse no PTB, elegendo-se deputado estadual, com 25 anos, apoiado por contabilistas, estudantes, bancários e agricultores de sua região. Em 1950, 1955 e 1958, Ferrari elegeu-se e reelegeu-se deputado federal, alcançando estrondosa vitória no último pleito em razão da defesa da legislação trabalhista urbana e rural. Admirador de Pasqualini, anticomunista e populista cristão de centro, foi vencido por Goulart e Brizola na disputa pela direção do PTB. Em 1959 lançou a “Campanha das Mãos Limpas”, de cunho moralista, que deu lugar ao Movimento Trabalhista Renovador (MTR), transformado em partido em 1960, com o apoio transitório do prefeito de Porto Alegre e ex-trabalhista José Loureiro da Silva. Em 1960 Fernando Ferrari aproximou-se de Jânio Quadros, concorreu a vice-presidente pelo Partido Democrata Cristã, sendo facilmente derrotado por João Goulart. Novamente vencido em 1962 na disputa pelo governo do Rio Grande do Sul, morreu em 1963, aos 42 anos, em desastre aéreo em Torres, num momento em que conhecia graves dificuldades econômicas e políticas. O MTR não sobreviveu ao seu fundador.

373

O retorno do velho Novamente governador, em virtude da divisão do trabalhismo, Meneghetti interpretou os interesses conservadores sulinos, aliviando a pressão política e social nacionalista e reformista exercida por Leonel Brizola no período anterior. Na sua segunda gestão, fundou a Fapergs e determinou a repressão do acampamento de trabalhadores rurais sem terras, liderado pela professora Élida Costa e pelo estudante João Abero, em Bagé. Em inícios de janeiro de 1963, o chefe da Casa Civil Plínio Cabral, excomunista convertido ao liberalismo, José Aranha, secretário do Interior e Justiça, e Antônio Pires, secretário da Segurança, do PRP, denunciaram aos deputados da Assembleia Legislativa fantasmagórico plano nacional para, entre outros objetivos, matar o governador Ildo Meneghetti, coordenado por um misterioso Osvaldo. A denúncia estapafúrdia motivou a renúncia do secretário de Segurança, general Amaro da Silveira, e do Interior e Justiça, Gay da Fonseca. O governo Meneghetti teria igualmente liberado, em 1963, os arquivos do DOPS para os serviços de inteligência dos EUA, já na preparação do golpe. Ao completar seu período governamental, após o golpe militar de 1964, Meneghetti foi substituído, em 12 de setembro de 1966, pelo coronel Walter Peracchi Barcelos, da Arena, partido civil das forças golpistas vitoriosas, designado pelos militares. De 1963 a 1966, a renda interna rio-grandense cresceu timidamente.

374

27 O Rio Grande do Sul e a ditadura militar: 1964 a 1984 Em 1964, já claramente hegemônicas, as burguesias industrial e financeira brasileiras romperam com o projeto econômico de industrialização por substituição de exportações, em aliança com as classes trabalhadoras urbanas subordinadas, impondo com o regime militar nova forma de acumulação de capitais, por meio de integração mais íntima com o capital mundial, da superexploração dos trabalhadores, de reorientação da produção para os segmentos nacionais ricos e, sobretudo, para o mercado mundial. Para impor o novo padrão, era imprescindível a destruição do projeto nacionaldesenvolvimentista. O golpe iniciou-se em Minas Gerais, pela sublevação do general Olímpio Mourão Filho (1900-1972), ex-militante integralista, seguido pela imensa maioria dos oficiais das três Forças Armadas e pelos governadores conservadores. Após o golpe, Mourão Filho foi recompensado com a presidência da Petrobras. Desde o início o movimento militar contou com o apoio do governo estadunidense, que enviou porta-avião, destróieres, navios cargueiros, etc. em direção do Brasil, para invadir o país caso se generalizasse a resistência ao golpe – Operação Brother Sam. Na época, governava os Estados Unidos o democrata Lyndon B. Johnson (1908-1973). O apoio do clero católico ao golpe foi explícito desde antes da vitória do movimento, com destaque para a “Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade”, convocada em resposta ao comício de 13 de março de 1964, quando o presidente João Goulart anunciou no Rio de Janeiro o programa de “reformas de base”. Pretensamente promovidas por senhoras católicas, sob a proteção do rosário, “signo da fé católica”, em defesa da religião, da pátria e da família ameaçadas pelo “comunismo totalitário”, as marchas foram organizadas e financiadas por importantes grupos econômicos e pelos governadores envolvidos na conspiração para apoiar o golpe já em desenvolvimento. A grande marcha paulista contou com quinhentos mil manifestantes, sobretudo homens, da capital, do interior e dos estados vizinhos, trazidos por milhares de ônibus fretados por empresários, banqueiros, fazendeiros, que dispensaram seus empregados para o ato. Os funcionários públicos foram também enviados por Ademar de Barros à manifestação, que contou com a presença de sua esposa e das esposas dos governadores Ildo Meneghetti, Calos Lacerda e Lomanto Júnior. O rabino-mor de São Paulo conclamou, igualmente, a comunidade israelita paulista a participar da demonstração. Ao se concluir a marcha na Praça da Sé, os sinos da catedral paulistana re-

375

picaram, enquanto manifestantes gritavam “Nem foice, nem martelo: verde e amarelo”. Em 7 de abril de 1964, quando políticos, militares, sindicalistas, trabalhadores, etc. eram perseguidos, presos, torturados, o arcebispo metropolitano de Porto Alegre, dom Vicente Scherer (1903-1996), sugeria ser o golpe uma verdadeira obra divina: “Todos os brasileiros terão agradecido a Deus a visível e extraordinária proteção dispensada ao país [...].” Dias mais tarde, dom Luiz Sartori proporia, igualmente, a obra militar como um quase ato divino. O bispo de Santa Maria defendeu que o “providencial movimento militar”, “ação fulminante, brava, cristã e democrática”, quando já se ultrapassavam as “primeiras” “fases da guerra revolucionária” “marxistacomunista”, poderia ser qualificado como um “quase” “milagre de Deus”. Em junho, era a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que afirmava: “Ao rendermos graças a Deus, que atendeu as orações de milhares de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares que, com grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses da nação.”

À espera da resistência O golpe foi conhecido no dia 31 de março, à tarde, no Rio Grande do Sul e recebeu o apoio indeciso do general Benjamin Galhardo, comandante do III Exército. Ao contrário, a população de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul permaneceu majoritariamente ao lado do governo constitucional, à espera de uma repetição do movimento da Legalidade de 1961, comandado por Leonel Brizola, em defesa da Constituição e de governo progressista e nacionalista. O constitucionalismo era também forte entre a oficialidade jovem e os sargentos da Brigada Militar e do Exército, em parte antigolpistas. Em Bagé, em ação preventiva, os sargentos apoderaram-se do QG do DC do exército. Ao saberem do golpe, no dia 1º as famílias mais ricas procuraram abandonar a cidade dirigindo-se ao interior, enquanto a população se abastecia de gêneros alimentícios e gasolina. Já pela tarde do 1º de abril, apesar dos detalhados planos golpistas, o governador Ildo Meneghetti, políticos governistas e oficiais golpistas abandonaram a capital, ao se sentirem inseguros em razão da notícia da chegada de Leonel Brizola e do novo comandante do III Exército, general Ladário Pereira. Após lançar manifesto em apoio à constitucionalidade e ao golpe, o governador refugiou-se em Passo Fundo, perto da fronteira com Santa Catarina. A debandada inglória foi batizada de “Operação Farroupilha”. O governo deixou no palácio alguns secretários,

376

que não foram jamais incomodados, em claro sinal da indecisão da resistência constitucionalista. Em Porto Alegre, Leonel Brizola, apoiado pelo general constitucionalista Ladário Pereira Teles, comandante do III Exército, tentou constituir nova Rede da Legalidade, através da rádio Gaúcha, e transformou o prédio da prefeitura da capital no QG do legalismo. Apesar da resistência do governo, requisitada, a Brigada passou para o comando do general Ladário. Uma grande mobilização popular foi organizada na capital diante da prefeitura, em defesa do governo, na noite de 1º de abril. Em Porto Alegre, em 2 de abril, em reunião com Leonel Brizola no QG do III Exército, João Goulart negou-se terminantemente a chefiar movimento de resistência, apesar dos rogos do cunhado e do decidido general Ladário. Sua própria irmã, Neuza Goulart, pediu maior decisão e sentido histórico ao presidente: “Janguito, não podemos abandonar essa gente assim no mais. Vamos ficar todos e resistir, para o que der e vier.” Acéfala, a resistência não prosperou, permitindo que o golpismo avançasse e vencesse sem grandes dificuldades. Jango decidira apenas seguir no país, à espera, talvez, de licença dos golpistas para permanecer no Brasil, num de suas múltiplas fazendas, retirado da vida política. Após passar em Porto Alegre apenas oito horas, partiu em pequeno avião para uma de suas estâncias em São Borja, abandonando a seguir o país pelo Uruguai, em 4 de abril, para sempre. O Partido Comunista Brasileiro, única organização de esquerda com real penetração sindical e popular, permaneceu na imobilidade, já que subordinara a oposição ao golpe à direção do presidente João Goulart e às forças militares, que o executaram. Políticos, historiadores e políticos defenderam a negativa de João Goulart de comandar a oposição ao golpe para impedir “banho de sangue no Brasil”. A imposição da ditadura militar sem resistência social e democrática ensejou a maior derrota histórica que o mundo do trabalho viveu no Brasil, com gravíssimas consequências estruturais para o destino do país, da América Latina e do mundo, que se mantém até hoje, em razão da importância do Brasil. O imperialismo estadunidense, que reconheceu a ditadura ainda quando João Goulart se encontrava no Brasil, empreendeu vasta propaganda do golpe, apresentado como movimento cívico-militar em defesa da democracia, tese apresentada no célebre artigo “O país que se salvou a si próprio”, publicado na Seleção do Readers Digest.

377

Derrota histórica Após o golpe, baseados em “ato institucional” promulgado em 9 de abril, ao se qual seguiriam diversos outros, os altos oficiais das três Forças Armadas intervieram nas associações sindicais e profissionais, no Poder Legislativo, no Executivo e no Judiciário; expurgaram, prenderam, torturaram e mataram políticos de esquerda e líderes sociais e populares. Políticos e sindicalistas oposicionistas abandonaram o país para se refugiar, sobretudo, no Uruguai, onde se encontravam João Goulart e Leonel Brizola, então com as relações políticas e pessoais cortadas, em virtude da discordância quanto à reação ao golpe ditatorial. O expurgo dos funcionários públicos sulinos foi comandado por Antônio Pires, secretário da Administração de Ildo Meneghetti, ex-integralista, militante do PRP. Em 4 de abril, os militares golpistas fecharam o jornal oposicionista Última Hora, que reapareceria um mês mais tarde sob o título de Zero Hora. A seguir, o grupo Sirotsky compraria a Zero Hora, empreendendo reorientação editorial que se destacou pelo apoio ao oficialismo e ao liberalismo, durante o período ditatorial e após ele. A nova Zero Hora passou a destacar as variedades – esporte, política, crônica, policial, variedades, etc. – em detrimento da informação aprofundada e qualificada. O golpe objetivava relançar o padrão de acumulação de capital no Brasil a partir de bases distintas das propostas pelo nacional-desenvolvimentismo, que exigia reformas socioeconômicas estruturais para retomar seu passado dinamismo. Tais reformas não eram aceitas pelas classes proprietárias, já que fortaleceriam o mundo do trabalho, como asssinalado. A ditadura expressava, igualmente, a vontade dos grandes capitais externos, que tinham conquistado crescentes posições de intervenção mais direta nos assuntos e na vida econômica do país. As classes industriais e os grandes proprietários nacionais mantiveram a hegemonia nacional. Entretanto, no novo regime o governo da nação passou a depender da alta oficialidade das Forças Armadas, que, transformadas numa espécie de “parlamento político”, repercutiram desde então as pressões dos grupos de interesse, com destaque para o grande capital nacional e internacional. Por essa razão, nas duas décadas seguintes os altos oficiais se dividiriam em grupos e facções, segundo as pressões dos grupos e interesses econômicos. Como assinalado, o processo de relançamento do padrão de acumulação de capitais realizou-se pela compressão dos salarios, confisco de conquistas sociais, centralização tributária, integração dos mercados financeiros, etc. Aprofundando processo instaurado nos anos 1930, o crescimento da produção-consumo industrial e agroindustrial expandiu as relações mer-

378

cantis, fazendo retroceder a autonomia tendencial que viviam importantes regiões do Brasil. Os diversos estados inseriram-se, de forma mais ou menos dependente, no processo de crescimento da produção capitalista nacional, centrada em São Paulo e crescentemente integrada ao capital e ao mercado mundiais.

O homem dos estadunidenses Em 11 de abril, o Congresso referendou servilmente como presidente o general cearense Humberto Castelo Branco (1900-1967), escolhido pelo alto mando militar. Castelo Branco ingressara na Escola Militar de Porto Alegre, estudando a seguir no Rio de Janeiro. Integrara a Força Expedicionária Brasileira (FEB), sob as ordens dos EUA, e ao voltar ao país participara da deposição de Vargas. Era a principal expressão do segmento liberal nas Forças Armadas, apoiado pelo imperialismo dos EUA e pelo capital financeiro nacional e internacional, em oposição ao nacional-desenvolvimentismo autoritário, proposto por facções das Forças Armadas que expressavam o industrialismo, sobretudo paulista. Sob a direção de Castelo Branco, o governo federal assumiu orientação claramente pró-estadunidense quanto à política interna e externa: aliouse diplomaticamente a Washington; liberalizou as remessas de lucro; indenizou regiamente as expropriações de bens yankees, aos quais concedeu direitos especiais no Brasil, etc. Seguindo instruções da administração democrata dos EUA, procurou manter arremedo de respeito às instituições constitucionais, o que garantiu o revezamento de generais do Exército como presidentes da República durante as duas décadas de regime militar. A embaixada norte-americana no Brasil cresceu para 1.500 funcionários e a missão militar no país tornou-se a maior do mundo, após a do Vietnã. A permanente ingerência do embaixador dos EUA nos assuntos internos e a submissão de Castelo Branco aos interesses estadunidenses ensejaram a consigna oposicionista: “Chega de intermediários! Lincoln Gordon para Presidente!” Carlos Heitor Cony propôs a adoção de lei que determinasse no primeiro artigo: “A partir da publicação deste Ato, os Estados Unidos do Brasil passam a denominar-se Brasil dos Estados Unidos.” A política econômica recessiva do governo Castelo Branco descontentou os trabalhadores, as classes médias e segmentos industriais nacionais. Paradoxalmente, a recessão impediu as privatizações dos bens públicos exigidos pelo capital financeiro e pelos EUA. Entre 1964 e 1966 o país recebeu 1,2 bilhões de dólares de empréstimos e investimentos, pagando em torno de US$ 1,5 bilhões como “amortizações, juros, lucros, dividendos e outros serviços”. A dívida externa absorvia uns 30% da receita da exportação. A de-

379

pendência aos empréstimos externos aumentava a dependência ao capital estadunidense.

Governadores da ditadura Em outubro de 1964, em São Paulo e no Rio de Janeiro a oposição consentida venceu as eleições para governador. Em resposta, no dia 27 do mesmo mês novo ato institucional ditatorial instituíram eleições indiretas e restringiram os partidos a duas agremiações: Aliança Renovadora Nacional (Arena), ditatorial, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), oposição consentida. Em setembro de 1966, o coronel da Brigada Militar Walter Peracchi Barcelos (1909-1986) foi designado pelo militares e referendado pela Assembleia rio-grandense como governador do estado. Em 1958 Peracchi Barcelos fora derrotado como candidato da UDN ao governo do Estado por Leonel Brizola, do PTB. Nos primeiros anos da ditadura, fora ministro do Trabalho no governo de Castelo Branco. Como seu antecessor, Peracchi de Barcelos destacava-se pelas poucas luzes e pela submissão ao governo ditatorial, ao qual devia a designação e permanência no cargo. Sua falta de decisão e de autonomia expressava também a já antiga aceitação das classes proprietárias sulinas da subalternidade crescente que conheciam diante dos interesses hegemônicos do Centro-Sul e do exterior. Em 20 de março de 1965, o ex-coronel do Exército Jeferson Cardin de Alencar Osório e o ex-sargento da Brigada Militar Alberi Vieira dos Santos, dirigentes do Movimento Nacionalista Revolucionário, formado sobretudo por oficiais e suboficiais expurgados pela ditadura, com ligação com Leonel Brizola, ingressaram, desde o Uruguai, no Rio Grande do Sul para formar grupo de pouco mais de vinte homens, que, após tomarem, no dia 25, a cidade de Três Passos, no norte do estado, e lançar manifesto pela rádio, prosseguiram em direção ao oeste do Paraná. No dia 27, quando de combate com forças terrestres e aéreas da ditadura, os comandantes da operação foram presos e a coluna dispersou-se. No combate morreu um sargento das forças repressivas. A “Guerrilha de Três Passos” foi a primeira ação armada tentada contra a ditadura. No dia 24 de agosto de 1966, o cadáver do sargento reformado paraense Manuel Raimundo Soares foi encontrado boiando no rio Guaíba, com as mãos amarradas nas costas. Dirigente do Movimento Nacionalista Revolucionário, Manuel Raimundo Soares vivia na clandestinidade em Porto Alegre, quando foi preso pela Polícia do Exército, em março daquele ano, e entregue ao DOPS, para ser torturado por uma semana. Após breve estada na prisão da ilha do Presídio, Manuel Raimundo foi libertado da prisão e imediatamente sequestrado, para a seguir ser assassinado e lançado ao rio

380

por membros da DOPS. Durante a prisão, enviara cartas à esposa, na qual relatou a situação a que estava submetido.

A luta armada Desde 1967, sob a pressão da crise social, no contexto do enorme prestígio do guevarismo e do maoísmo, o PCB explodiu em micro-organizações, em geral defensoras da guerrilha urbana ou rural. Em agosto de 1967, em Cuba, Carlos Marighella participou da I Conferência da Organização Latino-americana de Solidariedade (OLAS), onde defendeu a guerrilha no Brasil e anunciou seu afastamento do PCB, que não enviara delegados ao encontro. Em dezembro de 1967, começavam as primeiras expropriações de bancos no Brasil. A partir de 1968, à margem do movimento popular, pequenos grupos de esquerda iniciaram ataque armado ao governo e ao Estado. Essas práticas confundiram o movimento social e facilitaram a ação da extrema-direita das Forças Armadas, que desbarataram, sem dificuldades, as organizações de esquerda militaristas, classistas e reformistas, ajudados pela economia em fase expansiva. Como nas grandes cidades do Brasil, em Porto Alegre, desde 1967 rearticulava-se o movimento estudantil. Em 9 de março desse ano, estudantes universitários e secundaristas ocuparam o Restaurante Universitário da URGS, em protesto contra a dissolução dos diretórios centrais dos estudantes, sendo violentamente desalojados por tropas militares comandadas pelo truculento coronel Pedro Américo Leal. Em abril, os alunos do Colégio Estadual Júlio de Castilhos – Julinho – mobilizaram-se contra a proibição pelo diretor da instituição do cabelo comprido e das minissaias. Em maio de 1967, secundaristas realizaram mobilizações e passeata com uns dois mil participantes, reprimida pelas forças policiais, contra as propostas liberalizantes do ensino, ditadas pelo governo estadunidense – acordo MEC-Usaid. Nos meses seguintes sucederam-se outras manifestações, sendo queimado em uma delas um jipe do Exército. Em 28 de março de 1968, o estudante Édson Luis de Lima Soto foi assassinado pela polícia no restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, deflagrando protestos por todo o Brasil. No dia 29, cinquenta mil pessoas acompanharam o enterro do secundarista. Em Porto Alegre, nos dias seguintes à morte de Édson Luís, ocorreram manifestações estudantis esparsas, com forte apoio da população, sobretudo no centro da capital, organizadas pela União Gaúcha de Estudantes (Uges) e pelo DCE-Livre da URGS, com QG no bar do prédio da Reitoria. Os secundaristas eram muito ativos sobretudo no Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Nas comemorações do dia 1º de maio, a repressão prendeu sindicalistas e operários.

381

Enquanto se desenvolviam as manifestações pela morte de Édson Luís de Lima Souto, na Europa, explodia o Maio Francês, com os combates gerais entre estudantes e as forças da repressão, nas ruas de Paris, seguidos pela greve geral operária, que se aproximou da deposição do governo. Na Itália os estudantes agitavam-se também fortemente, com grande apoio da classe operária. A Argentina conheceria, igualmente, enorme mobilização estudantil-operária. No México, em 1968 os estudantes foram duramente massacrados, na capital federal, pelo exército. No Vietnã, com a ofensiva do Ano Ted, e nos EUA, com as mobilizações pacifistas, iniciava-se a débâcle imperialista na Ásia, que se consumaria, seis anos mais tarde, com a libertação de Saigon. Era como se a revolução se esparramasse de forma inexorável pelo mundo. Nos meses de abril, maio, junho e julho, as manifestações estudantis porto-alegrenses contra a ditadura eram comumente iniciadas por comíciosrelâmpagos no centro da cidade, onde, em 2 de abril, uma alegoria em homenagem a Costa e Silva, um jipe e um camburão da Brigada Militar foram incendiados por coquetéis molotof. Naquele dia, o ditador-presidente recebia o título de doutor Honoris Causa na URGS. Quando da missa de sétimo dia, proferida na Catedral Metropolitana, em homenagem a Édson Luís, a polícia detonou uma pequena bomba na igreja, como ato provocador, para justificar o espancamento dos participantes do ato.

Oposição popular Em abril, junho e julho de 1968, as greves e manifestações estudantis porto-alegrenses reiniciaram-se e prosseguiram ainda com maior força. Em 21 de junho, no Rio de Janeiro, manifestação estudantil degenerou em semilevante popular, com combates de rua entre a população e as forças da repressão, em diversos pontos da cidade, por longas horas, com diversos estudantes e populares mortos a tiros. No dia 26 de junho, procurando distender o clima de oposição, o governo ditatorial permitiu passeata que ensejou marcha de mais de cem mil manifestantes, com forte apoio de intelectuais e políticos oposicionistas. Ainda que igual direito de manifestação tenha sido negado à população porto-alegrense, em 28 de junho ocorria a maior passeata oposicionista realizada pelas ruas centrais da capital. Em resposta à forte repressão, sobretudo no viaduto Otávio Rocha e na avenida Borges de Medeiros, ao igual que no Rio de Janeiro, populares lançavam objetos diversos dos escritórios e apartamentos sobre as forças policiais e militares, registrando a crescente adesão-apoio da população às mobilizações antiditatoriais. Nos dias seguin-

382

tes seguiram-se pequenas manifestações e confrontos com a política, com a participação de estudantes e populares. Nesse momento, os grupos políticos, fortes sobretudo entre os estudantes universitários e secundários e atuantes no interior do movimento estudantil diferenciavam-se nas consignas politicamente divergentes, gritadas nas manifestações, que registram propostas políticas diversas para a luta contra a ditadura. “O povo organizado derruba a ditadura” (Universidade Crítica/POC), “o povo armado derruba a ditadura” (Movimento 21 de Abril), “Trabalhadores ao poder” (Tendência pela Aliança Operário-Estudantil/ trotskistas]), etc. No Rio Grande do Sul e no Brasil, a oposição à ditadura conquistava apoio popular ativo, sobretudo urbano. Em 16 de julho de 1968, combativa greve metalúrgica vitoriosa em Contagem, Minas Gerais, foi seguida mais tarde por outra, em julho, em Osasco, São Paulo, derrotada. Em julho, quando parecia que o movimento operário ingressava na resistência à ditadura, as mobilizações estudantis começaram a refluir, no Brasil e no Rio Grande do Sul. Em 29 de agosto de 1968, forças policiais e militares invadiram a Universidade de Brasília. No mesmo mês, começava a atuar o Comando de Caça aos Comunistas, formado por militares, políticos, empresários fascistas, que em 3 de outubro de 1968 sequestrou artistas da peça Roda Viva, de Chico Buarque, que se apresentavam em Porto Alegre. Em 12 de outubro caía em Ibiúna, o Congresso Nacional da UNE, com a prisão e identificação dos delegados estudantis chegados de todo o Brasil. Em todo o Brasil, a resistência antiditatorial refluía, em movimento em geral imperceptível na época aos participantes. O ano de 1968 conheceu também no Brasil e no Rio Grande do Sul uma forte resistência cultural contra a ditadura, com destaque para a enorme produtividade e criatividade da música popular, do teatro, da editoria. Em 1968 era publicada pela Editora Civilização Brasileira a primeira tradução de capital, de Karl Marx para o português. Na época, seguia muito ativo o Teatro de Arena, dirigido pelo Jairo de Andrade, na escadaria do viaduto Otávio Rocha, na Borges de Medeiros, onde foram encenadas peças como Arena conta Zumbi e os Fuzis da Senhora Carrar, de Bertold Brecht.

Ato institucional número 5 Em 13 de dezembro de 1968, para melhor reprimir a oposição estudantil e operária, o governo militar decretou o ato institucional nº 5, pondo fim aos resquícios democráticos ainda vigentes: deputados e senadores foram cassados; o Supremo Tribunal Federal sofreu intervenção; censuraram-se os meios de comunicação, etc. O AI5 e a designação do marechal rio-gran-

383

dense Artur da Costa e Silva (1902-1969), em oposição à vontade de Castelo Branco, expressaram a pressão de militares nacionalistas, representantes do empresariado nacional, sobretudo paulista, descontentes com a política monetarista e recessiva imposta pelo governo estadunidense e pelo capital financeiro. A necessidade de combater as esquerdas militar, classista e reformista contribuiu, igualmente, para a reorientação da política econômica e consequente retomada do desenvolvimentismo, num viés autoritário, apoiado na forte exploração do mundo do trabalho, orientado ao mercado mundial. As classes proprietárias e o alto comando militar temiam que o prosseguimento da recessão criasse base social mais sólida e vasta para o movimento oposicionista de esquerda, como sugeriam as manifestações de rua e as greves operárias de 1967-1968. Na chefia do Ministério da Fazenda, em 30 de dezembro de 1968, por ato excepcional (ato complementar nº 40), o economista paulista Delfim Netto, então com quarenta anos, empreendeu a depressão dos salários dos funcionários públicos e forte redistribuição dos recursos fiscais em favor da federação e dos grandes capitais. Essa reorientação expropriava fortemente os recursos do poder estadual e municipal ao reduzir à metade a participação dos últimos no “Fundo de Participação dos Estados e Municípios”. Desde 1969, a acumulação capitalista acelerava-se com a superexploração do trabalho, fim de conquistas trabalhistas, modernização das infraestruturas e estatais, empréstimos mundiais, crédito barato, ênfase na produção de bens de consumo para os setores endinheirados, degradação do meio ambiente, exportação da produção primária e secundária para mercado mundial então em expansão. A queda do preço de produção das mercadorias e os incentivos de crédito e fiscais determinaram forte crescimento das exportações, com taxas de desenvolvimento em torno de 10% anuais do PIB, e atritos com o governo dos EUA, que militava contra o regime desenvolvimentista, mesmo conservador. Durante o “Milagre Econômico Brasileiro” (1968-73) e o processo expansivo da economia nacional, a taxa de lucro do capital industrial obtida no Brasil era superior à taxa de juro dos empréstimos, associando o capital financeiro ao nacional, às custas da superexploração do mundo do trabalho. A crescente expansão econômica ampliou significativamente o mercado de trabalho, incorporando à produção uma população em grande parte rural, vivendo até então em esferas natural e seminatural da economia, que conheceu expansão do poder de compra, mesmo sob condição de dura exploração.

384

Sem lenço, sem documento Em janeiro de 1969, já no início do “Milagre Brasileiro”, que entraria em crise em 1973, núcleo da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), originada pela fusão da Polop e militantes do MNR, foi preso em São Paulo, apressando o abandono do capitão Carlos Lamarca de seu quartel, no dia 24, com 63 fuzis. Na mesma época, era reprimido o Grupo Tático Armado da Ação Libertadora Nacional (ALN), de Marighella. Entre janeirom e julho de 1969 caíam o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), do Rio de Janeiro, e o grupo Comando de Libertação Nacional (Colina), mineiro, que a seguir se fundiriam na Vanguarda Popular Revolucionária Palmares (VarPalmares), com uns trezentos militantes. Em 18 de julho de 1969, no Rio de Janeiro, comando militar da VarPalmares apoderou-se de cofre com 2,6 milhões de dólares, provenientes das negociatas de Ademar de Barros. Nesse mês, em São Paulo, empresários nacionais e dirigentes de transnacionais (Ford, Volkswagen, Ultragás, etc.) ajudavam a fundar a Operação Bandeirantes, para fortalecer a repressão no Brasil. Empresários teriam participado de sessões de torturas a prisioneiros políticos. Com o movimento social em refluxo, os grupos armados, formados sobretudo por jovens estudantes e ex-soldados e sargentos, passaram à franca defensiva. Em agosto de 1969, com a doença e a morte do general-ditador Costa e Silva, os ministros militares assumiram o governo. Em 29 de setembro, o general rio-grandense Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) era eleito como presidente por uns cem generais-de-exército. Em 1970-74, durante sua gestão, aprofundaram-se a expansão econômica e a repressão. Em 4 de setembro de 1969, durante a Semana da Pátria, a Dissidência do PCB da Guanabara (MR-8) planejou e executou, em associação com a ALN, o sequestro do embaixador estadunidense, trocado por prisioneiros políticos enviados para o México. A ação obteve a publicação de manifesto nos jornais brasileiros e despertou ampla simpatia entre movimentos de oposição em claro refluxo. Entretanto, essas ações espetaculares não apontavam nenhum caminho ao movimento de massas, ao qual, nos fatos, tendiam a substituir. Três outros diplomatas estrangeiros seriam sequestrados e trocados por presos políticos – Alemanha, Japão e Suíça. Entretanto, aos sequestros e libertação de militantes seguiam-se quedas ainda mais numerosas de resistentes. Em 4 de novembro de 1969, Carlos Marighella foi morto em São Paulo. Em 9 novembro, era preso em Porto Alegre o frei Beto, que, desde o Seminário Cristo Redentor, no Rio Grande do Sul, participava da retirada de militantes através das fronteiras rio-grandenses, para a ALN. Em 16 de

385

janeiro de 1970, Mário Alves, secretário-geral do PCBR, era preso e torturado até a morte. Nas semanas seguintes cairiam os membros da direção nacional dessa organização, entre eles Jacob Gorender, que se destacaria, em 1978, com a publicação de O escravismo colonial. Na madrugada de 6 de abril de 1970, em Porto Alegre, nos Moinhos de Ventos, fracassou o sequestro de Curtis Cutter, cônsul estadunidense em Porto Alegre, por Félix Silveira Rosa Neto, Fernando Damatta Pimentel, Gregório Mendonça, Irgeu João Menegon, da VPR, além de outros militantes, no apoio à ação. Os jovens tentaram parar o poderoso Plymouth da Chevrolet do diplomata estadunidense, ligado à CIA, com um frágil fusca. Fernando Pimentel foi arrastado pelo automóvel do cônsul por alguns metros, que, apesar de atingido, no ombro por tiro disparado por de Félix, conseguiu escapar.

Fim do paraíso sulino Até a tentativa de sequestro, Porto Alegre e o Rio Grande do Sul haviam permanecido relativamente à margem das ações da esquerda armada e da repressão. O ataque ao diplomata estadunidense ensejou forte movimento de repressão policial e militar, comandado por oficiais torturadores chegados de São Paulo, que desestruturou rapidamente as organizações de esquerda sulinas envolvidas na luta armada – VPR, Var-Palmares, M3G, etc. Nos fatos, a repressão geral se estendeu aos grupos e partidos voltados para a reorganização dos trabalhadores, que adotavam formas de organização menos estanques, em virtude da necessidade de ação junto à população. No Sul eram fortes, no meio estudantil o Partido Comunista Operário (POC), dissidência do PCB e da Polop, que optou, finalmente, pela luta armada, sem conseguir se envolver efetivamente nela antes de ser reprimido, em 1971; a Fração Bolchevique-Trotskista, organização de programa socialista que criticava o vanguardismo militarista e propunha organização do movimento operário, também reprimido após a tentativa de sequestro dos Moinhos de Ventos; e a Ação Popular, de origem cristã, o PcdoB e o PCB. Em 21 de maio de 1970, em São Paulo, quebrados pela tortura e pelo crescente isolamento social, os primeiros militantes da VPR renegaram na televisão a luta armada antiditatorial e, em alguns casos, elogiaram o regime militar, aprofundando a desmoralização da esquerda, golpeada pela repressão e pela falta de resposta social no contexto da expansão econômica conhecida pelo país. Dos dezenove desbundados que apareceriam na televisão de 1970 a 1975, três eram rio-grandenses. Em agosto de 1970, o coronel Jaime Mariath, acompanhado pelo major Átila Rohrsetzer, anticomunista e torturador, propôs aos prisioneiros políti-

386

cos da ilha do Presídio, no rio Guaíba, sem resultados, a deserção em troca da liberdade. Átila Rohrsetzer, ex-diretor da Divisão Central de Informações, teve, em 2007, seu pedido de prisão decretado pela Justiça italiana por crimes contra os direitos humanos, mantendo-se, porém, protegido pelo Estado brasileiro. Em dezembro de 1970, após ser barbaramente torturado e tentar se matar por três vezes, o primeiro militante sulino aparecia na televisão, sendo imitado, em 22 de abril de 1971 e em 30 de março de 1975, por dois outros. Nesses anos, militantes foram torturados comumente até a morte, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro. Até hoje não se conhece o paradeiro de, no mínimo, oito rio-grandenses mortos pelas forças repressivas, no Brasil ou no exterior – Celso Gilberto de Oliveira, Cilon da Cunha Brum, João Batista Rita, João Carlos Haas Sobrinho, Joaquim Pires Cerveira, Jorge Alberto Basso (Felipe, estudante de história no Chile), José Humberto Bronca, Luís Eurico Lisboa.

O fim da resistência armada Em 7 de dezembro de 1970, a VPR capturou o embaixador suíço no Rio de Janeiro. O governo libertou apenas os prisioneiros não acusados de “crime de sangue” e alguns dos setenta militantes arrolados na lista de troca negaram-se a abandonar o país pelo Chile, onde vencera Salvador Allende, candidato da Unidade Popular, coligação de partidos e movimentos populares de esquerda. Em setembro de 1971, o capitão Carlos Lamarca foi executado, com José Campos Barreto, Zequinha, no sertão baiano, após uma longa perseguição. Entre 1972 e 1974, descobertos pela repressão, militantes do PcdoB, apoiados por camponeses, enfrentaram-se com enormes forças militares da ditadura, sempre na defensiva, em condições muito difíceis. Entre os assassinados no Araguaia estavam os rio-grandenses José Humberto Bronca, de 39 anos, mecânico de aviões, e Paulo Mendes Rodrigues, economista. Em 14 de janeiro de 1973, o diário francês Le Monde publicou balanço da VAR, VPR e APML, “reconhecendo que a luta armada, isolada, falhara” no Brasil. Sob a influência sobretudo do guevarismo, a luta armada foi empreendida por uma extrema minoria de militantes, com destaque para corajosos jovens estudantes universitários e secundarista e suboficiais das Forças Armadas, com métodos absolutamente estranhos à luta dos operários da cidade e do campo. As ações e propostas armadas jamais conseguiram o apoio ativo da população trabalhadora, da cidade e do campo. Elas ocorreram em contexto de forte expansão econômica, favorecida pela taxa de exploração e pelo mercado internacional, que ampliou, transitoriamente, o mercado

387

consumidor e a taxa de emprego. Com o “Milagre Econômico”, passou a ser muito forte o apoio ativo e passivo dos segmentos médios do Brasil e do Rio Grande do Sul ao regime militar. Em 1970, entre os 125 milhões de brasileiros se contariam uns duzentos militantes armados em ação, duzentos na prisão e uns quinhentos no exterior.

Mesma alma, rostos diversos De 15 de março de 1971 a 15 de março de 1975 governou o Rio Grande do Sul outro ex-militar, Euclides Triches, natural de Caxias do Sul, igualmente designado pelos militares e referendado servilmente pela Assembleia Legislativa, dominada então pela Arena, partido de apoio da Ditadura, em razão das repetidas cassações de deputados oposicionistas. Triches, filiado ao PSD antes do golpe militar, fora secretário de Obras do governo de Meneghetti. Como o antecessor, havia sido derrotado por Leonel Brizola, do PTB, quando concorrera à prefeitura de Porto Alegre, em 1955. Durante sua gestão, a produção de soja do estado conheceu uma forte expansão, em virtude das boas cotações do mercado internacional. Após seu mandato, sob o qual a tortura reinou nos porões dos quartéis e delegacias especializadas na repressão, foi agraciado com a indicação à presidência da Amazônia Mineração. Em março de 1974 assumiu como ditador-presidente o também riograndense Ernesto Geisel (1908-1996), natural de Bento Gonçalves. Geisel enfrentou, em fins de 1973, a forte crise mundial – acelerada pela descompressão dos preços do petróleo – com o II Plano Nacional de Desenvolvimento, que propunha superar a conjuntura difícil com grandes investimentos em recursos energéticos, nas telecomunicações, no transporte ferroviário, etc. O II PND manteve os altos níveis de crescimento da economia nos anos 1974-1980 e garantiu maior autonomia quanto a importantes matérias-primas e insumos – alumínio, celulose, fertilizantes, papel, petróleo, etc. Os investimentos foram financiados com empréstimos de “petrodólares”, obtidos por taxas de juros ainda baixas, mas móveis, que se elevariam, significativamente, nos anos seguintes. De 15 de março de 1975 a 15 de março de 1979, Sinval Sebastião Duarte Guazzelli (1930-2001) governou o estado, também designado pelos militares. Político profissional, de vocação transformista, militara na UDN antes do golpe e, a seguir, na Arena, que abandonou, espertamente, com Tancredo Neves, em 1984, quando sentiu que o regime ruíra, para fundar o Partido Popular, que após mudanças sucessivas de denominação assinaria como Partido Democrata. Durante seu governo, a expansão da sojicultura sulina

388

chegou ao fim. Sem avanços de produtividade, esgotaram-se as possibilidades de expansão física da área produtiva, como ocorrera com o gado e com a produção de charque no século 19. Nesses anos, ainda que positivas, as taxas de expansão da economia sulina foram inferiores às da média nacional. O fim da “febre da soja” teve consequências duradouras. O abandono da área e do tempo dedicados à produção de subsistência – pequena criação, policultura, etc. – pela soja aumentou a dependência do pequeno produtor ao mercado, no que se refere ao aprovisionamento de seus meios de subsistências, e aos bancos, pela necessidade de financiar produção apoiada na maquinaria e nos agrotóxicos. Com a queda das cotações dos gêneros agrícolas e a valorização dos insumos, a pequena produção rural passou a conhecer graves dificuldades, aprofundando-se a expansão do capital no campo.

O homem que amava os cavalos Empossado em março de 1979, o ditador-presidente João Batista Figueiredo (1918- 1999), natural do Rio de Janeiro, manteve a política desenvolvimentista e taxas de expansão da economia de 7,2%, apesar do contexto econômico mundial já adverso. Em 1979, problemas climáticos frustraram a colheita nacional; o segundo choque do petróleo aumentou as cotações do produto; uma violenta elevação das taxas de juros mundiais, em razão da nova política monetária estadunidense, onerou fortemente a dívida nacional, relançando a inflação, combatida, entre outras medidas, com a compressão salarial. Era o fim inglório do “Milagre Brasileiro”, que pretendera desenvolver o capitalismo brasileiro à margem do progresso da população nacional. Já em fins do governo do ditador-presidente Ernesto Geisel, as dificuldades crescentes da economia nacional, o renascimento da oposição democrática, a luta pela anistia e o novo ativismo operário determinaram a proposta ditatorial de redemocratização “lenta, gradual e segura”. Com ela almejava-se transição a um regime democrático que não questionasse a ordem elitista e autoritária nacional, mantendo as transformações estruturais da economia e da sociedade nacional promovidas pela ditadura. Desde 1977, começaram a chegar, com suas famílias, militantes esquerdistas refugiados no exterior nas décadas anteriores. A anistia da ditadura concedeu plena inimputabilidade aos crimes de tortura, morte e corrupção cometidos por seus membros durante as duas décadas de regime militar. Até 1984, prosseguiram as perseguições e violências, em geral surdas, contra os oposicionistas.

389

Soluços autoritários Em 12 de novembro de 1978, comprovando os limites da abertura, Lilian Celiberti, seus dois filhos menores e Universindo Diaz, ex-militantes uruguaios refugiados em Porto Alegre, foram presos e levados para o Uruguai, após sessões de tortura. Entre outros, intervieram na operação o capitão uruguaio Glauco Yannone, o delegado e torturador rio-grandense Pedro Seeling, o inspetor João Augusto da Rosa e o escrivão Orandir Portassi Lucas – o Didi Pedalada. Denunciado pela imprensa, o Estado Maior do III Exército explicou o sequestro como retorno voluntário de Universindo e Lilian ao Uruguai. Em 1979 a 1983, José Augusto Amaral de Souza, militante do PSD antes da ditadura e da Arena durante ela, governou o Rio Grande, designado pelos militares e referendado pela Assembleia Legislativa. Político de poucas luzes e enorme subserviência, administrou em contexto de grave crise da economia sulina, agravada por enchentes e secas que castigaram a agropecuária. Verdadeiro fantasmagórico de uma ordem ditatorial que resistia em chegar ao fim, sua administração limitou-se a algumas iniciativas infraestruturais secundárias, entre as quais a abertura de 250 poços artesianos. Amaral de Souza mandou destruir os arquivos da DOPS, para impedir investigações sobre os crimes cometidos pelos órgãos repressores nos anos anteriores. Em 4 de fevereiro de 1983, ao se concluir a gestão Amaral de Souza, inaugurou-se em Triunfo o III Polo Petroquímico nacional, com a presença do ditador-presidente João Batista Figueiredo. O polo foi praticamente única grande obra federal no Rio Grande durante todo o governo militar, que teve três ditadores rio-grandenses, em claro registro do controle efetivo do poder econômico pelo grande capital paulista. Desde o início de sua gestão, Amaral de Souza enfrentou sucessão de duras greves do magistério público, dos trabalhadores da construção, do transporte público, dos bancários, etc. O movimento grevista assinalou o renascimento da luta sindical no Rio Grande do Sul – ao igual que no Brasil – e constituiu marco da história política e social rio-grandense.

O asno vermelho Em 1978, o ministro paulista da Economia Delfim Netto manipulara os dados reais da inflação, promovendo forte confisco salarial, manobra denunciada pelo Dieese, que apresentou o grau efetivo de perda salarial. Em 2 de abril de 1979, em Porto Alegre, em assembleia convocada pelo Cepers, fundado em 1945 como associação de professoras primárias, os professores da

390

rede pública estadual de ensino decidiram decretar greve geral para o dia 5 de abril, por aumento salarial, piso de três salários mínimos e nomeação dos concursados, enquanto o governo propunha reposição salarial menor. Em virtude da forte repressão e de uma direção pouco comprometida com o movimento, a primeira greve rio-grandense do período ditatorial foi interrompida alguns dias mais tarde, com algumas poucas conquistas. A greve dos bancários destacou-se por sua importância e combatividade. Em abril de 1979, uma assembleia do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre lançou campanha por 35% de reajuste e propôs a antecipação da greve para o mês de setembro, data-base da categoria no centro do país. Em 2 de setembro, o sindicato apresentou aos banqueiros reivindicação de reposição salarial – 86% –, estabilidade para delegados sindicais, antecipação da data-base para setembro, etc. No dia 5, os bancários de Porto Alegre iniciaram greve, seguidos por Caxias do Sul, Passo Fundo, Pelotas, Rio Grande, Santa Maria e Santo Ângelo. Mais de dez mil bancários aderiram ao movimento, que a Justiça, subserviente, decretou como ilegal. A resposta do governo ditatorial foi dura. A greve foi declarada ilegal e interveio-se no Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancário de Porto Alegre. Olívio Dutra e Felipe Nogueira foram presos e destituídos dos cargos de presidente e diretor da entidade. Outras prisões ocorreram na capital e no interior – Milton Azevedo, José Luiz Carneiro Cruz e Ana Lúcia Santa Cruz. Obediente aos militares, o prefeito designado de Porto Alegre, Guilherme Socias Villela, proibiu reuniões no auditório Araújo Viana. No dia 10, o Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul propôs mediação, que exigia imediata volta ao trabalho e pouco concedia aos bancários. Foi aceita pelos sindicatos do interior, isolando o movimento da capital. Em 19 de setembro, com a greve em pleno refluxo, uma assembleia dividida determinou seu fim. Dois dias depois, os sindicalistas foram libertados. A greve dos bancários sulinos concluiu-se com uma aparente derrota. Centenas de grevistas foram demitidos e as lideranças classistas tiveram seus direitos sindicais cassados, enquanto apenas a antecipação da data-base e alguns magros ganhos materiais foram conquistados. Em seguimento ao movimento, metalúrgicos, vigilantes, professores, operários da construção civil iniciaram seus movimentos.

Uma nova era À exceção do movimento dos bancários e dos metalúrgicos, as greves dos trabalhadores da construção, motoristas de ônibus, etc. foram espontâneas, apoiando-se comumente, após a eclosão, em ativistas de organizações políticas de esquerda semiclandestinas – Convergência Socialista, O Traba-

391

lho, etc. Apesar de algumas tentativas, não houve unificação das lutas das categorias, uma das razões de não terem obtido maiores conquistas materiais. As jornadas grevistas de 1979 constituíram verdadeiro divisor de águas na história política e social do Rio Grande e do Brasil. Os trabalhadores, fortalecidos objetivamente pelo longo período de expansão econômica, rompiam definitivamente como o imobilismo grevista determinado por quinze anos de repressão, crescendo significativamente a consciência e a organização do movimento social. A seguir, acompanhando a ação do movimento autonomista dos metalúrgicos paulistas, o movimento sindical classista sulino, associado a grupos da Igreja de esquerda e pequenas organizações marxistas clandestinas, formou o Partido dos Trabalhadores no Rio Grande do Sul. O sindicalista Olívio Dutra, principal direção da grande greve dos bancários de 1979, foi o primeiro candidato ao governo do estado do PT, então com orientação claramente socialista, classista e antipatronal. Também em 1979, um grupo de agricultores e sua famílias criaram um acampamento de trabalhadores sem terra na encruzilhada Natalino, na fazenda Natalino, à beira da estrada Passo Fundo-Ronda Alta, expulsos da reserva indígena de Nonoai. Em pleno regime militar, tratava-se da primeira invasão de terras após 1964. Antes da ditadura, no Rio Grande do Sul a luta pela terra tivera seu ponto alto nas mobilizações do Master. Mais tarde, essas jornadas ensejariam a fundação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

De voltas às ruas Em 22 de agosto de 1980 os estudantes porto-alegrenses saíram às ruas para protestar contra a visita do ditador-presidente argentino Jorge Rafael Videla (1976-81), sendo duramente reprimidos. Videla e João Batista Figueiredo inauguraram, na praça Argentina, placa comemorativa àquela visita. Após a redemocratização da Argentina, Videla, condenado à prisão perpétua pela morte, tortura, prisão e desaparecimento de centenas de argentinos, foi indultado pelo presidente Carlos Menem. Novamente chamado à Justiça e condenado à prisão domiciliar, foi acusado, entre outros crimes, do desaparecimento de setenta estrangeiros presos por seu governo, fora os milhares de nacionais que conheceram o mesmo fim, durante seu governo.

392

Em 1981, o governo ditatorial João Batista Figueiredo rendeu-se às soluções recessivas exigidas pelo capital financeiro e mundial, impulsionando forte retração econômica, que determinou taxas negativas de crescimento para o país. A seguir, durante os anos 1980, o Brasil conheceria breves períodos de expansão, seguidos de surtos recessivos, durante os quais recuou significativamente a produtividade da economia nacional. Um padrão de crescimento em “dente de serras” que se manteria nas décadas seguintes. Durante a primeira “década perdida”, exportadores, banqueiros nacionais e mundiais e grandes investidores em títulos públicos alcançavam lucros astronômicos, enquanto retrocedia fortemente o poder aquisitivo da população e decaía a produção industrial e agropastorial nacional, em geral, e rio-grandense, em particular, sem, entretanto, que se procedesse ao processo de privatizações, exigidas pelo grande capital. Os anos 1980-85 foram dramáticos para a economia sulina. O esgotamento da área cultivável determinou que a flutuação climática e dos preços internacionais dos produtos agrícolas – então em queda tendencial – determinassem apenas anos de maior e menor refluxo do setor primário, com graves consequências para a produção dos setores secundários e terciários, que dele dependiam fortemente no Sul. Na primeira metade dos anos 1980, o Rio Grande conheceu taxas de crescimentos menores às nacionais e inferiores às do crescimento demográfico regional, registrando-se empobrecimento relativo e absoluto da região. Em 1985, Minas Gerais representava 9,42% do PIB brasileiro, ao passo que o Rio Grande do Sul, já em uma quarta posição, alcançava apenas 7,52%. Em 1955, a participação sulina na renda nacional era de 8,45% e, em 1970, 8,16%. Nos anos seguintes, degringolaria para 6,2% e, mais tarde, 4,84%. Durante a ditadura, após ser cassado Sereno Chaise, do PTB, em 8 de maio de 1964, governaram a capital prefeitos designados pelos militares, todos da Arena, em total desrespeito aos direitos democráticos da população da capital: Célio Marques Fernandes (maio de 1964-abril de 1965), Renato Sousa (abril de 1965-junho de 1965), Célio Marques Fernandes (junho de 1965-março de 1969), Telmo Thompson Flores (março de 1969-abril de 1975), Guilherme Socias Villela (abril de 1975-abril de 1983), João Antônio Dib (abril de 1983-janeiro de 1986).

393

28 O Rio Grande do Sul de 1985-2002: privatização e bloqueio Em fins de 1982, Jair Soares, com 49 anos, candidato da ditadura militar pelo PDS, partido que sucedeu a Arena, venceu as primeiras eleições diretas para o governo do Rio Grande do Sul, com apenas 34,1% votos. A vitória foi devida à divisão da oposição entre Pedro Simon, candidato pelo PMDB (33,5%), e Alceu Collares (20,4%), do PDT, legenda dos trabalhistas históricos. A nova legenda nasceu pelo fato de os militares terem entregue a sigla PTB em 1980 aos políticos fisiologistas comandados por Ivete Vargas, sobrinha-neta de Getúlio Vargas. A oposição junta somou 55,24% dos votos. O recém-fundado Partido dos Trabalhadores, então com forte orientação socialista e classista, concorreu com o sindicalista Olívio Dutra, obtendo 1,32% dos votos. O governo de Jair Soares constituiu verdadeiro fim-de-festa do regime ditatorial. Nascido em Porto Alegre em 1933, cirurgião-dentista e bacharel em Direito, Jair Soares fora sempre um político das classes dominantes, elegendo-se vereador, deputado estadual, deputado federal, sempre por partidos conservadores. Fora nomeado ministro da Previdência do ditadorpresidente João Batista Figueiredo, nos últimos anos do regime militar. Durante seu governo, de 1983 a 1987, no contexto da forte depressão da economia nacional e regional, o Rio Grande endividou-se fortemente, crescendo a dívida pública regional em quase 40%. Em 29 de outubro de 1985, em mais de duzentos veículos, oito mil colonos desembarcaram na divisa dos municípios de Sarandi e Ronda Alta, no Alto Uruguai, no norte do Rio Grande, e ocuparam a fazenda Anoni, na maior demonstração de força realizada até então pelo movimento dos camponeses sem terra. Apesar da organização, a Brigada Militar interceptou e impediu que mil e duzentos camponeses chegassem ao acampamento. Desapropriadas para assentar colonos desalojados quando da construção da Usina de Passo Real, as terras jamais haviam sido entregues, em razão de pendências entre a família Anoni e a União. Durante o governo Jair Soares, em 1985, o magistério público estadual realizou longa greve de sessenta dias, obtendo importante vitória, com a elevação do salário-base a 2,5 salários-mínimos, em fins de 1986, a ser reajustado segundo a elevação do salário mínimo, em fins de 1987. A correção salarial tornou-se lei regional, com o decidido apoio dos deputados estaduais do PMDB, partido que controlava a direção do Cepers. Em 1985, aos 90 anos, falecia Dyonélio Machado, médico, romancista, contista e jornalista rio-grandense. Como militante do Partido Comunista, fora preso diversas vezes; deputado à Constituinte estadual de 1947,

394

mandato cassado, ao igual do ocorrido com os outros deputados comunistas através do Brasil. Entre seus mais célebres romances está Os ratos (1935).

Pedro Simon Em 1986, o PMDB elegeu Pedro Simon, com 41,68 % dos votos, para governador do estado e diversas lideranças dos professores para a Assembleia Legislativa estadual e constituinte. A vitória foi facilitada pelo sucesso inicial do Plano Cruzado I, do governo José Sarney. Esse antigo político da ditadura foi eleito por voto indireto como vice-presidente de Tancredo Neves, também ligado no passado aos militares, falecido em 21 de abril 1985, antes da posse. O vice-governador de Pedro Simon foi Sinval Guazzelli, outro trânsfuga do governo militar. Foram derrotados Aldo Pinto, do PDT (23,65%), Carlos Chiarelli, do PFL, e Fúlvio Petracco, do PSB. Clóvis Ilgenfritz da Silva, candidato do PT, de orientação social-democrata, de pouco prestígio pessoal e carisma, obteve 5,33% dos votos, registrando o crescimento petista no estado. Pedro Simon nasceu em Caxias do Sul em 1930, formando-se em Direito pela PUCRS. Quando estudante, foi presidente da União Gaúcha dos Estudantes Secundários e dirigente da UNE. Filiou-se ao PTB e elegeu-se vereador de Caxias do Sul, em 1958, e deputado estadual, em 1962. Após o golpe, aderiu ao MDB, partido de oposição permitido pela ditadura, reelegendo-se à Assembleia rio-grandense em 1966, 1970 e 1974 e, como senador, em 1978. Como candidato do PMDB, foi derrotado por Jair Soares na disputa ao governo do estado em 1982, por algumas dezenas de milhares de votos. Em 1985, participou da articulação que elegeu indiretamente Tancredo Neves e José Sarney para a presidência e vice-presidência da República, no contexto da derrota do movimento popular pelas eleições diretas. Foi ministro da Agricultura no governo Sarney, situação que abandonou em 1986 para se candidatar e se eleger ao governo do estado. Antes mesmo de sua posse, com o fracasso do Plano Cruzado e a volta da inflação, Pedro Simon teria pedido ao governador Jair Soares que suspendesse a aplicação do gatilho salarial para o professorado público. Após sua posse, apresentou proposta de reajuste inferior à inflação e à determinada pela lei de 1985, apoiada e votada pelo PMDB, quando na oposição. A traição inesperada de Simon ao professorado público ensejou a mais longa greve do magistério realizada até hoje, por 96 dias, menos de um mês após sua entronização do governo. Pedro Simon e o PMDB passariam a lamentar a falta de tempo que lhes teria sido dada pelo magistério ao desrespeitarem importante conquista transformada em lei pelo próprio PMDB. Durante a greve, o governo Simon arguiu a inconstitucionalidade da vinculação salarial, pondo fim ao reajuste automático de salários dos pro-

395

fessores públicos para sempre. Professores contratados foram demitidos; diretores de escolas eleitos, exonerados; o governo desenvolveu campanha de desinformação pela imprensa, junto à população, sobre a realidade salarial e a amplitude da greve, publicando valores maquiados. Para enorme surpresa do professorado, o PMDB no poder não se comportava muito diverso à Arena/PDS.

Derrota dura Derrotado na luta pela defesa da escala móvel de salário, o professorado não obteve muito mais do que a queda do secretário de Educação, Bernardo de Souza. Com o recrudescimento da inflação, os professores entrariam ainda em greve em 1988, por nove dias; em 1989, por 42 dias; em 1990, por 58 dias e, finalmente, em 1991, nos momentos finais da melancólica gestão Pedro Simon. Em razão do caráter repressivo e intransigente do governo PMDB, a liderança petista fortaleceu-se entre os professores e os funcionários públicos. Em 8 janeiro de 1986, a mobilização espontânea dos pequenos produtores fumageiros de Venâncio Aires, Vera Cruz e Santa Cruz ensejou a organização de piquetes para interromper a entrega do produto às grandes agroindústrias. Um pequeno aumento no preço do fumo desmobilizou o movimento. Em 17 de fevereiro de 1989, piquetes de fumicultores barraram novamente as portas das usinas de Santa Cruz, Vera Cruz e Vanâncio Aires, enquanto os safristas da última cidade entravam em greve. Em virtude da violenta repressão da Brigada Militar, em 1º de março os grevistas levantaram sessenta barreiras nas vias rurais de acesso às cidades, também reprimidas com violência por comboios militares à ordem do governo Pedro Simon. Em 9 de março, o movimento foi suspenso. O governo Pedro Simon aprovou programa de atividades baseado na construção de estradas, recuperação de subestações de energia elétrica e revigorou o Fundo Operação Empresa (Fundopem/RS), instituído em 1972, mas mantido na inatividade, para financiar empresas de pequeno, médio e grande porte com a receita pública no Rio Grande do Sul, ou seja, empreender o financiamento do capital privado com os recursos públicos. Durante o governo Pedro Simon, o Hotel Magestic foi transformado no Centro de Cultura Mário Quintana e a nova Secretaria Estadual de Cultura foi entregue ao professor universitário Carlos Jorge Appel, diretor da Editora Movimento, atuante na resistência cultural à ditadura. A isenção de ICMS dos produtos exportados e a importação de produtos primários determinada pelo governo federal prejudicaram fortemente a receita do Estado do Rio Grande, já muito endividado. Como resultado da difícil situação e da subalternidade da região, o governo central decretou,

396

em 7 de março de 1989, a liquidação extrajudicial do BRDE e, de 1985 a 1989, quebraram os bancos Sulbrasileiro, Habitasul, Maisonnave. Durante a administração Pedro Simon faliu a empresa jornalística Caldas Júnior, tradicional empresa de comunicação, durante décadas grande intérprete das classes dominantes regionais, sobretudo rurais. Durante a ditadura, desenvolvera-se poderosamente a RBS, que se apoiara e apoiara o regime militar, como faria em relação a todos os governos conservadores regionais que se sucederam.

Globalização Em 1989 concluiu-se o período de recessão iniciado em 1987, alcançando o Estado, por três anos, níveis elevados de desenvolvimento, com inversões nos setores de grãos, de alimentação, de material elétrico, de transporte, metal-mecânico, etc. O momento expansivo não modificou, porém, a crescente subalternização nacional e internacional da economia e da sociedade sulina. O impulso econômico positivo devia-se, sobretudo, aos anos anteriores recessivos, processo que repetia o crescimento em dente-de-serra, que caracterizaria o Rio Grande do Sul e o Brasil nas décadas seguintes. Em fins dos anos 1980, a maré neoliberal que varreu o mundo, simbolizada na Queda do Muro de Berlim na anexação da República Democrática Alemã pela República Federal Alemã, em 1989-90, impôs no Brasil as propostas de inserção e submissão incondicional aos grandes interesses econômicos nacionais e mundiais, sobretudo financeiros. Faziam parte do programa neoliberal o corte radical dos investimentos públicos; a desregulamentação e liberalização da legislação; a entrega dos recursos públicos aos grupos privados, nacionais e internacionais, através das privatizações, renúncia e incentivos fiscais, etc. Nesses momentos, propôs-se a privatização da CRT, da CEEE, da Aços Finos Piratini, empresas estaduais de grande valor e rentabilidade. Para os defensores das privatizações, isso permitiria o relançamento da economia, sob o influxo da iniciativa privada e aliviada do “peso morto” do Estado.

Porto Alegre é vermelha Em 1988, em razão da grande insatisfação popular, Olívio Dutra foi eleito prefeito de Porto Alegre, com 34% dos votos, para a gestão 1989-92, iniciando o controle, por quatro gestões, da capital pelo PT. A administração iniciou-se com a ofensiva petista para disciplinar as empresas privadas de transporte público, através de tensa intervenção nas empresas privadas de ônibus, dirigida pelo secretário de Transportes Antônio Hohlfeldt. A grande inovação da administração petista foi a introdução do “orçamento participativo”, que se transformaria, com os Fóruns Sociais Mundiais, na vitrine

397

para o Brasil e para o mundo do “modo petista de governar”. O orçamento participativo foi apresentado por intelectuais petistas mais exaltados como uma espécie de via indolor ao socialismo, verdadeira superação do “socialismo burocrático”. Seria, igualmente, forma de restauração da confiança da população na gestão pública pela definição de “democracia direta”. Em geral, a proposta do OP era simples. Assembleias de moradores definiam as prioridades locais e, a seguir, reuniões mais restritas, com os delegados das diversas assembleias, determinavam a feitura do orçamento e acompanhavam as obras escolhidas. O orçamento participativo ensejava nos fatos que a pequena parte da população envolvida pelo processo disputasse as verbas postas à disposição pelo Estado. No frigir dos ovos, os delegados da população passavam a ser os responsáveis, ao menos aparentemente, pela satisfação, ou não, das necessidades populares. O orçamento participativo instituía uma verdadeira “guerra entre os pobres”. Determinava que os delegados das assembleias populares se digladiassem para impor suas reivindicações particulares, realizadas segundo os recursos postos à disposição pela administração, no contexto das políticas de contenção orçamentária ditadas pela ditadura do capital financeiro sobre as contas públicas. Às populações não contempladas nas suas necessidades restava se organizarem melhor para vencerem as próximas disputas, marginalizando segmentos populares não organizados. As obras definidas seguiam sendo executadas pelas empresas privadas. A introdução estadual do OP pela administração petista ensejou uma ainda maior burocratização do processo, com diversas instâncias de decisão e interferência, que envolvem nos fatos uma pequeníssima parcela da população rio-grandense, a qual conheceu durante a gestão petista, como anteriormente, uma satisfação muito reduzida das suas necessidades básicas. O caráter aparentemente democrático e socialmente, e nos fatos, desmobilizador do OP expressou-se no apoio que receberia a seguir de organismos internacionais, como o FMI e o Banco Mundial. Outra medida estrutural da administração petista foi a aprovação de Plano Diretor para Porto Alegre extremamente complacente com as exigências da indústria da construção civil. Durante os dezesseis anos de gestão petista, prosseguiu a brutalização já tradicional da cidade, pela destruição incessante de seu acervo arquitetônico histórico, sob os golpes da expansão da especulação urbana e imobiliária, comandada pelas grandes empresas incorporadoras e construtoras. Em 25-30 de janeiro de 2001, o I Fórum Social Mundial realizou-se em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a cidade e o estado que teriam tido a “coragem de mudar”. Com mais vinte mil participantes, sob a direção de organizações políticas altermundistas no contexto da vitória neoliberal, propunha a luta por um “outro mundo possível”, “mais justo e mais solidário”, pela humanização e controle da ordem capitalista, sem sua superação

398

estrutural. A proposta dos fóruns nascera sobretudo da iniciativa de setores da social-democracia francesa e do petismo brasileiro. Em 2002, o II Fórum acolheria em torno de cinquenta mil participantes, afluência que se repetiria em 2003, no terceiro encontro. Em 2004, a quarta reunião, sempre na capital sulina, reuniria em torno de cem mil participantes. Em 2005, apesar de repetir o afluxo do ano anterior, o 5º Fórum Social Mundial reunia-se pela última vez em Porto Alegre, para tristeza de proprietários de hotéis e restaurantes habituados por cinco anos à lotação completa de seus empreendimentos durante os meses mortos do verão. Em 2004, a vitória de José Fogaça, do conservador PPS, em aliança com o PTB, sobre Raul Pont, do PT, na corrida pela prefeitura da capital, assinalava a crise explícita das propostas e da gestão petista. Em 2005, o PT seria igualmente defenestrado da direção do estado por candidata da direita explícita. Após a gestão Olívio Dutra na Prefeitura de Porto Alegre, em 19891993, governariam a capital Tarso Genro, em 1993-1997, Raul Pont, em 1997-2001, e, novamente, Tarso Genro, em 2001-2002, que renunciou para concorrer ao governo do estado, tendo concluído o período administrativo o vice-prefeito, João Verle. Apoiada no prestígio eleitoral do pai, Luciana Genro elegeu-se como deputada estadual pelo PT em 1995, com 24 anos.

Alceu e Neusa Em 1990, Alceu de Deus Collares elegeu-se ao governo do estado para a gestão 1991-94, apoiado pelo PDT, PC do B e PSDB. No primeiro turno, obteve 28,02%. Nélson Marchezan – PDS, PL, PFL e PRN – obteve 15,96%. José Fogaça, concorrendo pelo PMDB, recebeu apenas 15,96%, em boa parte como punição pela administração antipopular de Pedro Simon. Reflexo da situação política mundial e nacional, pouco se diferenciando seu programa dos partidos concorrentes, o candidato petista Tarso Genro – PT, PSB, PCB – obteve apenas 7,9% dos votos. No segundo turno, Collares obteve quase um milhão de sufrágios a mais do que no primeiro, em virtude da rejeição geral a Nélson Marchezan. Natural de Bagé, de família pobre, Collares trabalhou como quitandeiro e nos correios, formando-se a seguir em Direito. Foi o primeiro governador rio-grandense com forte afro-descendência. Collares elegera-se em 1964 como vereador de Porto Alegre pelo PTB, ingressando a seguir no MDB, onde se elegeu, em 1970, 74 e 78, como deputado federal. Quando da reorganização partidária comandada pela ditadura, ingressou no PDT de Leonel Brizola, elegendo-se prefeito de Porto Alegre em 1985. Em 1998, elegeu-se à Câmara Federal pela quarta vez. Representante do setor mais conservador do PDT, Collares assumiu o governo prometendo revolução na educação, uma das marcas do gover-

399

no de Brizola no Rio Grande do Sul, antes do golpe militar de 1964. Após muito rápido contato com as lideranças do professorado, Collares e Neuza Canabarro, sua consorte e secretária da Educação, reprimiram duramente a greve dos professores, de 74 dias, iniciada no fim do governo Simon, suspendendo o ano letivo sem abonar as faltas ou pagar os dias parados. A derrota do magistério levou a que não realizasse nova paralisação durante a administração Collares. Aproveitando o golpe assentado ao magistério estadual, Neuza Canabarro implementou projeto que objetivava, por um lado, a ampliação das vagas do ensino estadual, sem investimentos, e, por outro, aprofundar o confronto-destruição do sindicato dos professores públicos com, entre outras medidas, o chamado Calendário Rotativo; a suspensão das eleições diretas para os diretores das escolas; o achatamento do plano de carreira do magistério. O Calendário Rotativo foi implementado em oposição à vontade explícita de alunos, pais e professores. O Calendário Rotativo criava três período letivos, um deles se projetando sobre o mês de janeiro, desorganizando atividades tradicionais da população. A rejeição do governo Collares diluiu o sentimento popular de desgosto para com a administração Pedro Simon e colocou uma pedra sobre o passado trabalhista sulino, facilitando o deslocamento de grande parte do eleitorado trabalhista para o PT. Nas eleições para a sucessão de Collares, sequer o candidato do PDT ousou propor a continuação do Calendário Rotativo, que continuou sendo defendido veementemente apenas por Neuza Canabarro, fortemente estigmatizada a seguir entre o professorado e a população sulina por sua atuação autoritária.

A desconstrução do Estado Em 1995 foi empossado Antônio Britto, candidato vitoriosos do PMDB e da união de todas as forças conservadoras sulinas, com forte apoio de todos os grandes meios de comunicação região, que obteve, no segundo turno, 52,2% dos votos, derrotando o sindicalista e petista Olívio Dutra, apoiado pelos partidos de esquerda, com 47,8%. Nesse momento, o Partido dos Trabalhadores consolidava-se como principal partido popular sulino, superando o respaldo tradicionalmente concedido ao PTB, MDB, PMDB e PDT. Antônio Britto nasceu em Livramento em 1952, trabalhou no jornal de sua família, formou-se em jornalismo pela UFRGS, ingressou com 19 na RBS, trabalhando a seguir no grupo Caldas Júnior, na área dos esportes. Retornou a seguir à RBS, de onde se transferiu, em 1979, para a Rede Globo, em Brasília, como comentarista e apresentador político. Convidado por Tancredo Neves para secretário de imprensa, alcançou notoridade nacional como porta-voz das informações sobre a progressão da enfermidade

400

do presidente eleito indiretamente, até seu falecimento, em 21 de abril de 1985. Após se filiar ao PMDB, foi eleito e reeleito a deputado federal pelo Rio Grande do Sul com enorme votação. Em 1988, classificou-se em quarto lugar na eleição para prefeito de Porto Alegre, vencida por Olívio Dutra. Ministro da Previdência de Itamar Franco, beneficiou-se nacionalmente da decisão do presidente de atualizar os benefícios dos aposentados, fortemente defasados. Antônio Britto fez parte de geração de comunicadores que emergiram no cenário político, apesar de não possuírem militância política ou social anterior, catapultados pela forte exposição midiática, em representação dos interesses gerais do grande capital e particulares dos empregadores. Superado como possível candidato à sucessão presidencial pelo paulista Fernando Henrique Cardoso, concorreu ao governo do estado do Rio Grande do sul, como representante do projeto de desnacionalização da economia brasileira, de apropriação privada dos bens públicos, de restrição dos serviços do Estado, de desregulamentação dos direitos trabalhistas. Projeto defendido e implementado primeiro por Fernando Collor e, a seguir, por Fernando Henrique e, finalmente, no que se refere à política econômica geral, por Luís Inácio Lula da Silva. Procurando apoio mínimo inicial ao projeto de privatização, Antônio Britto suspendeu o Calendário Rotativo, restabeleceu e transformou em lei a eleição direta para os diretores de escola e anulou as punições funcionais determinadas por Alceu Collares. Porém, por meio da Lei de Gestão Democrática do Ensino Público, condicionou a nomeação dos diretores de escola eleitos à aprovação em curso prévio de qualificação e, entre outras medidas liberais, impôs remuneração-premiação anual diferencial de professores e escolas segundo a produtividade a ser definida pelo Poder Executivo. Em abril de 1997, os professores públicos, com os salários achatados, aprovaram estado de greve. Em 15 de maio, em assembleia geral, o professorado decidiu paralisação por tempo indeterminado e, em nova assembleia, no dia 23 do mesmo mês, a greve foi suspensa. Marcou-se nova assembleia para 20 de junho, início de nova paralisação, interrompida doze dias mais tarde, com a obtenção de melhoria substancial da proposta do governo. As relações do governo Antônio Britto com o magistério ensejaram confronto final em torno de plano de carreira, rechaçado pelo professorado e jamais implementado. Em contexto de escassa transparência, no relativo à lisura de um processo jamais efetivamente investigado, e de confronto direto com o movimento social, Antônio Britto realizou a liquidação a toque de caixa da maior parte dos bens públicos estaduais, construídos sobretudo nas longas décadas do período castilhista e trabalhista, transferindo-os para interesses privados regionais, nacionais e internacionais, por valores fortemente depreciados. A iniciativa foi aplaudida e referendada pela Assembleia Legisla-

401

tiva, então controlada por partidos conservadores, o que revestiu a operação liquidadora do patrimônio público estadual com um véu de legalidade. A mais rentável e moderna empresa estatal, a Companhia Telefônica Rio-Grandense, fundada durante o governo de Leonel Brizola, após importantes investimentos públicos, foi entregue a preço de compadre à principal apoiadora de sua campanha, e antiga empregadora, a RBS. Esta, absolutamente estranha à gestão de empresa de tal complexidade, associou-se apressadamente na operação a companhia espanhola do ramo, para mais fácil se desfazer a seguir da mesma. A Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), criada em 1943 e fortemente potenciada durante o governo de Brizola, foi substancialmente privatizada em leilão público em outubro de 1997.

Tirando dos pobres, dando aos ricos Para justificar essa operação com pretensa reindustrialização do estado, a administração Antônio Britto concedeu empréstimo de 253 milhões de reais para General Motors, para que abrisse montadora no Rio Grande do Sul. O empréstimo foi feito sob condições danosas ao Estado, sem garantia de retorno ou permanência da empresa no Rio Grande do Sul, para que estabelecesse montadora em Gravataí. Como parte de uma gestão que se distinguiu pela literal privatização dos bens públicos sulinos, a administração brittista cedeu para interesses monopólicos a cobrança de salgados pedágios pelo trânsito automotor nas rodovias estaduais construídas nos decênios anteriores e reformadas, igualmente com recursos públicos, durante sua administração, para não onerar as empresas premiadas com as concessões. Nas décadas seguintes, a população rio-grandense pagaria salgados pedágios para as empresas contempladas nas licitações para transitar, sem rodovias de opção, em rodovias públicas fortemente superadas pelo desenvolvimento e necessidades dos meios locomotivos de transporte. Também foi destaque de seu governo seu exótico Plano de Demissão Voluntária (PDV), inaugurado na administração de Alceu Collares, que pagou para que quase cinco mil professores se demitissem – entre eles dois mil regentes de classe – enquanto aprovava em concurso doze mil candidatos. O PDV ensejou que a Brigada Militar perdesse quase dois mil de seus mais dinâmicos e capazes quadros, num contexto de crescente decadência das condições da segurança pública, em razão do aprofundamento incessante da crise econômica e social regional. A administração Antônio Britto impulsionou de tal modo o processo em curso de privatização e internacionalização da economia rio-grandense que, se em 1994 as empresas sulinas no ranking das maiores quinhentas empresas nacionais eram 41 e, entre elas, apenas seis

402

tinham seu controle fora do estado, em 1999, as empresas sulinas naquela lista caíam para 37, e 12 entre elas haviam perdido o controle regional. A entrega sem contemplações do patrimônio público sulino ao grande capital nacional e internacional pôs literalmente fim à vida política de Antônio Britto. Em 2004, foi derrotado nas eleições diretas à presidência do PMDB, da qual participaram cinquenta mil filiados. Sem alternativas, transferiu-se para o PPS, sigla fundada pelos trânsfugas do PCB, após a maré liberal vitoriosa dos anos 1980, de caráter claramente fisiológico. Derrotado ao governo do estado em 1998 e 2002, abandonou a política para servir, entre outros grandes empregadores privados, à Telefônica da Espanha, que abocanhara a CRT. Em 2005, como diretor da Calçados Azaléia, fechou fábrica de oitocentos funcionários no Rio Grande para abrir outra, na China. Em 7 de dezembro de 1993, aos 85 anos, morria em Porto Alegre o historiador Guilhermino César, natural de Minas Gerais. Principal destaque da historiografia tradicional, entre outros trabalhos, escrevera uma História da literatura do Rio Grande do Sul e História do Rio Grande do Sul: período colonial. Em 5 de maio de 1994, falecia, também na capital, com a mesma idade, Mário Quintana, natural de Alegrete, o mais célebre poeta, tradutor e jornalista rio-grandense de sua época. Em 1995, aos 87 anos, morria Cyro Martins, médico, psiquiatra e escritor, de orientação comunista. Entre seus trabalhos ficcionais destaca-se a conhecida “Trilogia do gaúcho a pé”, na qual denuncia as sequelas do latifúndio e industrialização do Rio Grande do Sul.

A hora e a vez do PT Nos seus primeiros anos, o PT manteve um caráter ativista, classista e anticapitalista. Entretanto, sob o influxo da grave derrota internacional do mundo do trabalho em fins dos anos 1980 e do refluxo do movimento social no Brasil, sob os golpes da crise econômica e dos processes de reorganização industrial, assumiu, nacional e regionalmente, primeiro perfil socialdemocrata no programa, nos objetivos eleitorais e na administração. Nesse processo, restringiu fortemente o espaço de intervenção dos militantes não ligados à administração do partido ou às funções executivas e legislativas. Em outubro de 1998, em acirrado segundo turno, apesar do apoio do grande capital, da poderosa RBS, da Presidência da República e de lei eleitoral feita à medida das necessidades do continuísmo, Britto foi derrotado pelo candidato petista Olívio Dutra. A Frente Popular formara-se com o PT, apoiado pelo trabalhismo e pelos pequenos partidos de esquerda riograndenses. A eleição do PT para o governo do estado constituía a realização de processo de radicalização social e política iniciado quando da eleição de Jair Soares, nos momentos finais da ditadura.

403

A capacidade de Antônio Britto de manter, até o último momento, o apoio de todas as facções proprietárias sulinas – industriais, comerciais, financeiras, agropastoris – para um projeto de literal lupenização política do Estado, assinalava o fim de um longo ciclo sociopolítico regional. Demarcava a total falência dos segmentos fabris, comerciais, bancários e rurais como classes capazes de dirigir projeto de desenvolvimento do estado, mesmo segundo os interesses gerais do capital regional. A consolidação do projeto dos grandes proprietários sulinos de servidão consentida ao grande capital nacional e, sobretudo, internacional, pela superexploração dos trabalhadores rio-grandenses e satelitização e lupenização tendencial da sociedade regional, em todos seus aspectos, colocava as classes trabalhadoras sulina como único setor social capaz de capitanear projeto político-social segundo as necessidades da totalidade da população, mesmo no quadro limitado pelas fortes determinações nacionais e internacionais, que exigiam superação em nível e contextos mais elevados e complexos. Olívio Dutra nasceu em Bossoroca, em 1941, no seio de família pobre. Ingressou por concurso no Banrisul em 1961, envolvendo-se ativamente na vida sindical; formou-se em Letras, pela UFRGS. Presidente do Sindicado dos Bancários de Porto Alegre comandou a grande greve bancária de 1979, quando foi preso e destituído de seu cargo sindical. Articulou e fundou o PT, em 1980, e a CUT, em 1982. Foi o último candidato votado nas primeiras eleições para o governo do Rio Grande do Sul após a ditadura, sendo eleito deputado federal constituinte em 1986. Em 1988 venceu as eleições para a prefeitura de Porto Alegre. Foi vencido nas eleições governamentais, no segundo turno, por Antônio Britto, em 1994, contra aliança abarcando todas as grandes classes proprietárias rio-grandenses e brasileiras.

Nova era, velha era O controle do poder regional por bloco político no qual os trabalhadores organizados possuíam real influência desequilibrava a gestão do Estado desenvolvida nas décadas anteriores segundo os grandes interesses regionais, nacionais e internacionais, deixando em orfandade política grupos como a RBS, que avançavam projeto de determinação direta do estado. A vitória popular obtida exigia a substituição do projeto vencido por um novo, nascido das necessidades da grande população sulina, das cidades e dos campos. A dependência da produção regional à economia nacional e internacional, a fragilidade estrutural da classe operária e trabalhadora sulina, a força crescente dos setores sociais intermédios, sem contradições essenciais com o grande capital, nos partidos oposicionistas, em geral, e no Partido dos Trabalhadores, em especial, sinalizavam, indiscutivelmente, as grandes di-

404

ficuldades da construção de um projeto autonômico novo para o Rio Grande do Sul. Dificuldades que já se expressavam no limite do programa eleitoral da Frente Popular. O início da Administração Popular ocorreu sob claro confronto político, determinado pelo controle da oposição da maioria do Legislativo regional. Nos primeiros meses de 1999, a disputa jurídica com o governo federal sobre o endividamento e os recursos do Estado, a ruptura de contratos lesivos com a Ford; o apoio à ação do MST no sul do estado e a proibição da conversão da agroindústria aos produtos transgênicos assinalaram a ofensiva da nova administração, que, porém, se dava sem se apoiar na organização e mobilização popular autônoma. Em fins de 1999, a administração encontrava-se em grave impasse em razão da sua crescente opção de administração social da crise e de saneamento das finanças públicas, que impedia concessão das reivindicações populares e a apresentação de sequer uma medida capaz de apontar para a modificação da realidade regional e construção de novo equilíbrio social e político regional. No confronto com o governo federal, a administração petista optou pela contemporização com FHC, negando-se a se juntar à proposta de Itamar Franco, no governo de Minas Gerais, de suspensão do pagamento da dívida pública estadual. Vencia sem maior resistência a orientação de transformar a gestão petista em caso exemplar de administração competente e austera da crise e do movimento social, sem questionamentos e modificação do padrão de acumulação de capitais. Nesse contexto geral, a mobilização dos latifundiários no sul do estado interrompeu o processo de desapropriação de terras, no qual o governo federal possui pouco interesse, obrigando a administração estadual a limitar o assentamento de agricultores sem terras a algumas propriedades estaduais e a terras compradas a elevado preço.

Transgênicos Apoiada pela RBS, a mobilização de agricultores e granjeiros envolvidos na plantação de sementes transgênicas pôs em xeque a fiscalização de prática ilegal apoiada pelo grande capital mundial. A ausência de projeto industrial alternativo determinou o relançamento do Fundo Operação Empresa (Fundopem), do governo Pedro Simon, de financiamento público de interesses privados, sem que qualquer iniciativa fosse tomada na extensão da intervenção pública na economia ou de recuperação dos bens privatizados. A promessa de fim dos pedágios foi igualmente descumprida. Num sentido histórico, o governo petista necessitava retomar, num patamar e sentido qualitativo e quantitativo diverso, já que sob a influência do mundo do trabalho, as propostas reformistas do castilhismo-borgismo, na República Velha; de Flores da Cunha, em 1930-197, e sobretudo de Leonel

405

Brizola, em 1958-1962. Naufragou, entretanto, de forma fragorosa, ao se atrelar à proposta de mera resolução das contradições das finanças públicas a partir do realismo tarifário e fiscal, para, a seguir, apoiar o relançamento dos investimentos privados, apoiado com recursos públicos, proposta defendida pelo grande capital mundial, sobretudo financeiro, por intermédio do FMI e do Banco Mundial. Nos fatos, retomava-se a proposta de “aumentar o bolo, antes de dividi-lo”. Em 1999, no contexto de forte pressão pública e da oposição, o governo recuou na iniciativa de redução dos salários dos funcionários públicos, de taxação das pensões dos inativos estaduais e de fortíssimo aumento da taxa da água, medidas antipopulares. Em dezembro, o Estado acertou a venda da carteira imobiliária do Instituto de Previdência do Estado (IPE) para a Caixa Econômica Federal. O acomodamento político-ideológica do petismo sulino, em administração paradoxalmente sob a hegemonia da sua ala esquerda (Democracia Socialista), registrou-se exemplarmente na incapacidade governamental de implementar, sequer na área cultural, ruptura com as expressões-representações ideológicas tradicionais das classes dominantes regionais, de raízes sobretudo pastoril-latifundiárias, às quais se submeteu, no essencial. Em 20 de setembro de 1999, sob a batuta da Secretaria Estadual de Cultura, a administração estadual festejou efusivamente a Semana Farroupilha, efeméride magna do latifúndio e do separatismo sul-rio-grandense. O transcurso da data foi celebrado com o paradoxal tombamento do Castelo de Pedras Altas, residência kitch, de mau gosto singular, mandada construir, ao estilo de castelo medieval inglês, no início do século, por Assis Brasil, definido com razão como o “maior político agrário do Brasil de sua época”.

Homenagem ao latifúndio A desagregação política do PT foi registrada, igualmente, pela revelação da gravação de diálogo de Diógenes de Oliveira no qual, servindo-se do nome de Olívio Dutra, pedia ao chefe da Polícia Civil da época que “aliviasse” a pressão sobre os bicheiros. Uma CPI revelou que o ex-militante do MNR e fundador da VPR, durante a ditadura, e quadro petista de destaque, após ela, como secretário de Transportes, nas administrações municipais de Olívio Dutra (1989-1993) e Tarso Genro (1993-97), presidia um Clube de Seguros da Cidadania que coletava fundos junto a empresários. A sede petista em Porto Alegre era propriedade do “clube” de Diógenes. O desligamento de Diógenes de Oliveira do PT e a devolução da sede partidária ao Clube da Cidadania não apagaram a mancha indelével na imagem de partido, que se propunha radicalmente estranho à corrupção comum nos partidos tradicionais. Os fatos foram utilizados amplamente pela RBS e pela oposição.

406

Os acontecimentos do Clube da Cidadania constituíam aviso premonitório sobre os escândalos que abalariam o petismo nos anos sucessivos, antes e após a eleição de Lula da Silva à presidência da República, com destaque para o escândalo de 2005. Este último – o Mensalão – assinalou a milionária administração e ampliação clandestinas da base parlamentar de sustentação governamental, sobretudo para a votação de medidas antipopulares, por meio de régia distribuição de recursos econômicos, obtidos sob forma ilícita. A política da administração Olívio Dutra de saneamento das finanças públicas por meio do arrocho salarial e contenção de investimentos manteve e aprofundou o desemprego regional, ainda que a produção industrial crescesse. Em fevereiro de 2000, mais de trezentos mil trabalhadores encontravam-se desempregados na região metropolitana de Porto Alegre, sem que qualquer resposta real fosse tentada pela administração, municipal e regional. O governo Olívio Dutra escolhera para secretária da Educação Lúcia Camini, presidente do CPERS/Sindicato, assinalando ao magistério a próxima satisfação, ainda que parcial, de suas necessidades. Nos primeiros meses do governo, transformou a obrigação da aprovação dos candidatos a diretores nos cursos de qualificação em cumprimento de formação após a eleição. Foram abolidos a avaliação externa e os descontos para o fundo de aposentadoria, determinados pelo governo anterior.

Choque com o movimento sindical Nos meses iniciais de 1999, o magistério esperou sinais do governo sobre a recomposição salarial. Em agosto, promoveu três moderados dias de paralisação pela reposição salarial e contra a Constituinte Escolar. Em novembro, determinou as suas reivindicações salariais e funcionais e aprovou indicativo de suspensão de aulas para o início do período escolar do ano seguinte. Em 2 de março de 2000, quinze mil professores, em assembleia geral no Gigantinho, rejeitaram os limitados oferecimentos do governo e marcharam até o Palácio Piratini. Em 22 de março, o governo Olívio Dutra ofereceu proposta final de 14%, em três vezes, rejeitada por assembleia geral no dia 28, quando as lideranças dos professores ligadas à Democracia Socialista, então afiliada à IV Internacional Mandelista, tendência do vice-governador do estado, Miguel Rossetto, e do secretário da Fazenda, Arno Augustin, defenderam a proposta do governo e o fim da greve, contra a maioria do professorado. Em 3 de abril, a greve terminava derrotada, em assembleias de menos de quatro mil professores, aceitando as propostas do governo, que sequer se

407

aproximavam das perdas da inflação – 6% de reajuste imediato, 14% em um ano. A campanha salarial de 2001 terminou com a obtenção de magro reajuste de 25% em quatro parcelas. A derrota do professorado estadual pôs fim às reivindicações das demais categorias públicas estaduais. O governo Olívio Dutra frustrou também as expectativas salariais de soldados e suboficiais da Brigada Militar, que haviam sofrido duro tratamento funcional e salarial durante o governo Antônio Britto. Os votos dos professores e dos brigadianos haviam contribuído para a vitória do PT, por pouco mais de oitenta mil votos, no segundo turno eleitoral, em 1998. Eles seriam também fortemente responsáveis pela derrota do PT em 2002. Finalmente, em 14 de abril de 2000, acomodando-se aos interesses do capital, por intermédio da Secretaria dos Transportes, a administração petista acordou com a Associação Gaúcha das Concessionárias de Rodovias aumento de 33,7% das tarifas dos pedágios das estradas regionais, pago nos dois sentidos do percurso, para diminuir o impacto psicológico da concessão. O acordo garantiu reajustes anuais entre 7 a 8% até 2006, sancionando nos fatos a privatização das rodovias realizadas no governo anterior. Foi grande o impacto social de concessão de 41% aos empresários das rodovias e de magros 14% aos professores estaduais. Ao contrário da maioria dos estados brasileiros, o Rio Grande não possuía uma só universidade pública estadual. A Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs) ponto do programa eleitoral petista, foi reduzida, quando de sua fundação, pela lei 11.646, de 10 de julho de 2001, a instituição de ensino superior dirigida para os interesses do capital, pela formação de “tecnólogos e engenheiros”, de baixíssima abrangência e organização semivirtual, praticamente sem instalações próprias e professores concursados. Em 2002, iniciava seu funcionamento com menos de 1500 vagas. O fim melancólico da administração petista foi assinalado pela atabalhoada intervenção de Tarso Genro na sucessão de Olívio Dutra. Desmentindo o que prometera explicitamente, Tarso abandonou a prefeitura de Porto Alegre apenas dois anos após sua eleição para disputar o governo do estado como candidato do PT. Para tal, derrotou em consulta partidária o desprestigiado governador Olívio Dutra, que despertara havia penas quatro anos as esperanças populares rio-grandenses. Tarso Genro naufragou com sua proposta de superar o impasse da administração de Olívio Dutra radicalizando a orientação conservadora do petismo regional.

408

29 Os anos do desencanto – Germano Rigotto e Yeda Crusius (2002-2010) A vitória do azarão O PT procurou apoiar a eleição de Tarso Genro pela necessidade de impedir o retorno ao governo de Antônio Britto, candidato de coligação capitaneada pelo PPS, apoiado pela direita tradicional. A estratégia naufragou quando se classificaram para o segundo turno Tarso Genro e Germano Rigotto, candidato azarão do PMDB, de expressão regional, há pouco derrotado nas eleições para prefeito de Caxias do Sul, sua terra natal, por candidato petista. A eleição do candidato Germano Rigotto no segundo turno sobre o petista Tarso Genro, por 52,7% a 47,3% dos votos válidos, enquanto Lula da Silva se elegia com uma maré de votos, registrava a rejeição da maioria do eleitorado às administrações regionais de Olívio Dutra, do PT, e de Antônio Britto. Germano Rigotto nasceu em Caxias em 1949, formando-se em Odontologia pela UFRGS. Em 1982 e 1986, elegeu-se deputado estadual, com importante votação, pelo PMDB. Em 1990, elegeu-se deputado federal, assumindo a liderança da bancada do governo Fernando Henrique Cardoso na Câmara Federal. O vice-governador de Rigotto, Antônio Hohlfeldt, jornalista e professor universitário, natural de Porto Alegre, fora o primeiro vereador da capital pelo PT, partido que abandonara para se filiar ao PSDB. Controlando a Assembleia Legislativa, Rigotto aprovou forte aumento do ICMS do telefone, da eletricidade e dos combustíveis, tarifaço que a Assembleia negara ao governo Olívio Dutra. A medida pesaria sobremaneira na economia da população e do Estado, quando da depressão do valor das exportações agrícolas regionais, em razão da queda do valor do dólar, com duros reflexos para a produção industrial. A produção agropastoril regional foi também golpeada em 2004-2005, em razão do forte período de estiagem. Em 2005 Rigotto licenciou-se do governo do estado para se dedicar à fracassada campanha como candidato à presidência da República pelo PMDB. Enquanto propunha seu nome para a magistratura suprema, em 2 de março de 2005 eclodiu forte greve dos professores estaduais, comandadas pelo Cepers, exigindo o reajuste e a reposição salarial prometidos durante a campanha e reafirmados no início do governo. Apenas em inícios de abril o governo assinou acordo com a direção do sindicato dos professores, abrindo caminho para o fim da paralisação.

409

Após Germano Rigotto reassumir o governo, a coalizão de apoio ao governo – PSDB, PP, PFL, PDT – dissolveu-se, em razão da consciência da possibilidade de elegerem candidato próprio, em vista da forte rejeição popular à reeleição do governador, que sequer passou ao segundo turno, em eleição vencida pela paulista Yeda Rorato Crusius, em 2006, definida pelos seus oponentes como um “Antônio Britto de saias”, qualificação que se mostraria correta no que se referia à orientação político-social. Durante todo o governo Germano Rigotto o desenvolvimento da economia rio-grandense manteve-se abaixo da média nacional. Em 9 de março de 2004, morreu na capital, aos 82 anos, o historiador Décio Freitas, autor do livro Palmares: a guerra dos escravos, escrito durante a ditadura militar, que alcançou ampla repercussão no país. Antigo pensador marxista, tornara-se nos seus últimos anos ideólogo neoliberal. Em 24 de julho do mesmo ano, falecia, também na capital, aos 57 anos, o historiador Luiz Roberto Lopez, dinâmico ensaísta marxista sulino. Em 21 de junho de 2004, falecia, no Rio de Janeiro, de pneumonia, aos 82 anos, o ex-governador Leonel Brizola. Milhares de rio-grandenses acudiram ao seu velório no Palácio Piratini, de onde o velho caudilho governara o estado e a resistência ao golpe militar, quando jovem, em 1961.

Um Britto de saias Yeda Rorato Crusius nasceu em São Paulo em 1944. Formou-se em Economia pela USP e pós-graduou-se nos EUA. Mudou-se para Porto Alegre em 1970, com 26 anos de idade, após se casar com Carlos Augusto Crusius, economista passo-fundense. Lecionou no curso de Economia da UFRGS, ingressando no PSDB em 1990, com 46 anos, em tradição e militância política anterior. Foi ministra do Planejamento, Orçamento e Coordenação do governo Itamar Franco (1993-1994). Em 1994, 1998 e 2002 foi reeleita à Câmara Federal, sendo derrotada ao se apresentar à prefeitura de Porto Alegre, em 1996 e 2000. Em 2005 candidatou-se ao governo do estado, apoiada pelo PSDB, PFL e PP, tendo como companheiro de chapa o dirigente empresarial Paulo Affonso Feijó, da área da distribuição de alimentos, igualmente de orientação liberal extremada. Atacou durante a campanha o governo Germano Rigotto (2002-2005), do qual seu partido participara até quase sua conclusão. Na campanha mostrou-se elitista, autoritária e inábil politicamente ao se envolver em comentário racista sobre Alceu Collares; atritar-se com Paulo Feijó; ser acusada de inadimplência pelo publicitário responsável pela sua campanha.

410

A dificuldade de levantar fundos junto ao empresariado registrava a fragilidade de sua candidatura. A estratégia do PMDB de transferir, de forma calculada, votos da situação para Yeda, preferida por este partido como eventual antagonista de Rigotto no segundo turno, facilitou que nos últimos dias antes do pleito a candidata do PSDB crescesse eleitoralmente, apoiada na rejeição eleitoral às gestões de Germano Rigotto e de Olívio Dutra. Diante da provável incapacidade de Rigotto de vencer Dutra no segundo turno, uma organizada transferência final dos votos conservadores para Yeda permitiu que ela vencesse o candidato petista, com o apoio explícito do PMDB e envergonhado do PDT. O abandono de Olívio Dutra de tradicionais bandeiras do petismo histórico contribuiu, igualmente, para que perdesse apoio entre o eleitorado mais combativo.

Sem raízes A defesa dos grandes interesses mundiais e nacionais por Yeda Crusius impedia que rediscutisse, mesmo de forma parcial, o padrão de acumulação subordinado imposto ao Rio Grande do Sul. Com a proposta de “choque de gestão”, Yeda Crusius propôs-se, por um lado, radicalizar a subjunção da sociedade regional ao processo de acumulação de capitais e, por outro, aprofundar a repressão do movimento social. Com tal programa, contava transformar-se, com seu partido, na expressão rio-grandense do grande capital e dos interesses sulinos a ele ligados ou subordinados. O projeto de repressão-desorganização do movimento social privilegiava o ataque ao MST, principal movimento social nacional, de raízes históricas no território sulino, ainda que com seu epicentro de luta transferido para outras regiões do Brasil. A repressão ao MST garantiria o apoio do latifúndio pastoril, em especial, e dos grandes proprietários de terra, no geral. Destacava-se no projeto conservador de Yeda Crusius a retomada do esforço para a derrota do professorado da rede pública estadual, espinha dorsal do sindicalismo sulino, promovido por todos os governos anteriores, sem exceção. A desorganização da resistência dos professores estaduais, organizada em torno do Cepers, era condição imprescindível para as iniciativas de substituição pelo capital privado de funções públicas, a serem implementadas por meio das “organizações sociais de interesse público”. As Oscips constituíam também veículo fundamental para um maior atrelamento do ensino público estadual ao processo de acumulação do capital e maior integração dos estudantes e professores ao mesmo, nas esferas econômica, ideológica e cultural.

411

No dia 1º de setembro de 2008, assistido pela administração federal, o novo governo assinou empréstimo com o Banco Mundial no valor de pouco mais de um bilhão de dólares, com o objetivo de reestruturar a dívida do Estado, orçada em trinta bilhões. O empréstimo, aprovado por unanimidade pela Assembleia Legislativa, foi condicionado à ingerência do Banco Mundial nas contas públicas estaduais, à redução dos gastos públicos, ao ajuste fiscal, à criação de fundos previdenciários privados para o funcionalismo público e à implementação das Oscips.

Corrupção estrutural O governo de Yeda Crusius foi pautado, do seu início ao fim, por denúncia de corrupção generalizada, que para muitos agredia singularidade sulina de lisura republicana no trato dos dinheiros públicos, criada e consolidada na República Velha. Característica do Rio Grande fortemente abalada nos anos anteriores, sobretudo quando das questionadas privatizações bilionárias dos bens estaduais do governo Antonio Britto (1995-98), a toque de caixa, por valores significativamente abaixo do mercado, jamais investigadas e esclarecidas. O PSDB não possui raízes na sociedade sulina, representando sobretudo o capital financeiro, industrial e agroindustrial mundial e nacional, com destaque para o paulista. Durante o segundo turno, a lembrança da origem paulista da candidata desviara para a sua naturalidade a discussão de projeto estranho às necessidades dos trabalhadores, da população e, até mesmo, de segmentos não monopólicos do capital sul-rio-grandense. O projeto neoliberal, derrotado nas urnas após a gestão Antônio Britto e rejeitado pelo eleitorado durante a campanha, supunha aprofundar a desregulamentação da intervenção do capital; acelerar a transferência e direcionamento ao grande capital dos recursos e investimentos públicos; cortar os investimentos sociais, etc. Nesse processo os métodos paralegais e não legais assumiam, havia muito, no Rio Grande do Sul, no Brasil e mundo, verdadeira normalidade. Em geral, o serviço prestado pelos gestores públicos ao capital cria, nos fatos, licença correspondente, por este último, para participarem da expropriação pública, processo eventualmente racionalizado como imprescindível à consolidação de projetos políticos ditos de “interesse social”. Uma visão e uma realidade que transformaram a procura consciente da conquista de posições no aparato administrativo, através de carreira política, como meio para enriquecimento individual. Nesse contexto, a corrupção – anteriormente um quase acidente na vida política – transformou-se numa ação prevista e premeditada.

412

Praticada, inicialmente, pelos grandes gestores, a prevaricação com os bens públicos tende a se generalizar, abarcando todos os que possuem poder de decisão possível de ser transformado em apropriação de bens públicos ou privados. Esse processo inerente e essencial às atuais gestão e acumulação de capitais ganhou maior relevo no governo Yeda Crusius em virtude da assinalada antiga tradição regional de probidade republicana mínima e do muito baixo perfil dos integrantes do governo. Em inícios de junho de 2008, o vice-governador Paulo Feijó divulgou gravação emblemática. Em conversa travada em seu gabinete, César Busatto, braço direito e secretário da Fazenda do governo Antônio Britto e então chefe da Casa Civil de Yeda Crusius, defendia a normalidade e inevitabilidade do desvio do dinheiro público, no caso em questão, por intermédio do Banrisul e do Departamento Estadual de Trânsito.

Com o pé esquerdo Antes mesmo de assumir o governo, Yeda Crusius mostrou enorme autoritarismo e inabilidade política ao pedir que o governador Rigotto apresentasse à Assembleia Legislativa projeto de corte das despesas públicas e aumento do ICMS, medidas que criticara duramente no decorrer da campanha. O tarifaço foi rejeitado com o apoio do vice-governador apenas eleito e com o voto de deputados da base de sustentação do governo, levando a que secretários renunciassem ao cargo, em uma inusitada derrota da administração antes da própria posse. Em abril de 2007, três meses após assumir o governo, Yeda Crusius demitiu o secretário de Segurança Pública, Enio Bacchi, que implementava o projeto estadual de repressão da criminalidade pelo aumento quantitativo da intervenção da Polícia Civil e da Brigada, de grande visibilidade e limitados resultados. A razão da demissão do deputado federal do PDT – que desempenhava com sucesso a proposta de militarização da vida civil – se deveria a um sucesso de público que ofuscava a governadora. Com a demissão, o PDT rompeu com o governo, seguido do afastamento do PFL do mesmo. Em novembro de 2007, com a Operação Rodin, a Polícia Federal revelava a enorme e generalizada apropriação de recursos públicos envolvendo o mais alto escalão do governo, a partir do Detran-RS, com o desvio de mais de quarenta milhões de reais. As investigações motivariam o afastamento de secretários e a denúncia de que os atos ilícitos haviam sido levados ao conhecimento da governadora, que não tomara providência. A operação Detran-RS teria começado em 2003, no governo Rigotto, e se radicalizado no governo Crusius. A Assembleia Legislativa abriu CPI sobre os fatos e, mais

413

tarde, pedido de impeachement da governadora foi facilmente arquivado, em razão da maioria do governo na Assembleia Legislativa. A seguir, Yeda Crusius seria denunciada pelo Ministério Público Federal por improbidade administrativa, sendo pedida a interdição de seu bens e seu afastamento do cargo, medidas negadas pela Justiça, em virtude do foro governamental. Foram também denunciados, entre outros, seu marido Carlos Crusius; o presidente do Tribunal de Contas do Estado, João Luiz Vargas; o deputado federal José Otávio Germano, do PP, padrinho político do diretor-presidente do Detran-RS; os deputados estaduais Frederico Antunes, do PP, e Luiz Fernando Zachia, do PMDB.

Com casa Teve, igualmente, grande repercussão a acusação da compra subfaturada, pela governadora, de palacete 25 dias antes de sua posse, com sobras da arrecadação da campanha do segundo turno. Em estilo inglês, o palacete, de uns 700 m2, de quatro andares, foi adquirido por 750 mil reais, apesar de ter sido oferecido, publicamente, por um milhão e meio. A declaração total de bens da governadora anterior à eleição não alcançaria tal soma, ao registrar patrimônio total de 674 mil reais. Durante a CPI parlamentar sobre o Detran-RS, Yeda Crusius foi acusada de receber quatrocentos mil reais do lobista Lair Ferst para comprar a residência, de propriedade de um empresário, que afirmou estar endividado no Banrisul. Lair Ferst teria sido um dos principais arrecadadores de fundos da campanha tucana e grande responsável pela complexa organização criminosa articulada em torno do Detran-RS, desbaratada pela Polícia Federal. Não foi menor a perplexidade da população sulina ao saber que a governadora fizera reformas, com recursos públicos, em seu já tristemente célebre palacete. Como parte das reformas, colocara piso emborrachado de 70 m2, comprara móveis infantis para seus netos, etc., sob a justificativa de que sua residência era extensão do Palácio Piratini, o que tornava o gasto legal, segundo a legislação em vigor. Em janeiro de 2009, em plena crise econômica mundial e estadual, a população sulina tomou conhecimento da disposição governamental de comprar avião a jato intercontinental com capacidade de até vinte passageiros – com custo de até 26 milhões de dólares – para ser usado nos deslocamento da governadora. Na ocasião, explicou-se que o avião de que o governo dispunha tinha apenas autonomia de voo de quatro horas – suficiente para cruzar o estado de ponta a ponta, duas vezes! O esdrúxulo projeto foi abandonado diante da enorme rejeição popular. No mês de agosto, Yeda Crusius fizera

414

aprovar na Assembleia Legislativa aumento de seu salário em quase 150%, elevando-o a 17 mil reais.

Sem marido O economista Carlos Crusius, diretor no Rio Grande do Sul do Instituto tucano Teotônio Vilela, fora designado pela esposa como presidente do Conselho Estadual de Comunicação Social, criado no início da administração, para organizar a aplicação e distribuição das verbas de publicidade, tradicionalmente uma dos principais ralos da corrupção pública administrativa no Brasil. Foi para ele que Lair Ferst afirmara ter entregue os quatrocentos mil reais destinados à governadora. Em janeiro de 2009, a governadora extinguiu o Conselho, defenestrando o consorte, com o qual, segundo parece, não coabitava havia muito. Teria já, portanto, projetos e interesses individuais singulares. Em resposta, o economista, em queda livre quanto ao centro de decisão da administração, respondeu ao ataque legalizando a separação. Carlos Crusius era tido como um dos mentores ideológicos do governo PSDB no Rio Grande do Sul. Os incessantes malogros políticos da administração Crusius impunham radicalizar o projeto de repressão e criminalização do movimento social sulino, em geral, e do MST e Cepers, em especial. Para tal, a administração estabeleceu íntima aliança com membro do Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que votou, por unanimidade, em outubro de 2008, parecer propondo a dissolução do MST, como “organização criminosa”, apoiado em critérios político-ideológicos. Ata daquele conselho de dezembro de 2007 propusera já a necessidade de “extinguir” o MST. O parecer do Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul requeria ao Estado a proibição de manifestações públicas do MST e sua retirada de terras destinadas à reforma agrária e, até mesmo, de áreas cedidas por privados. O parecer e as medidas requeridas foram duramente criticados por promotores e juristas, por violentarem direitos democráticos elementares garantidos pela Constituição – de reunião, de manifestação, de propriedade, etc. Conservadores renitentes em sua totalidade, muitos dos membros do Conselho Superior do Ministério Públicos rio-grandense possuíam fortes ligações com o latifúndio, criando a forte suspeição de legislação em proveito próprio, material ou imaterial. O parecer teria se apoiado em inquérito secreto empreendido por oficiais da Brigada Militar, em parceria com o Ministério Público, em desvio claro da função daquela corporação, prática habitual durante a ditadura militar (1964-1985).

415

A Brigada em defesa do latifúndio Antes mesmo do parecer do Conselho Superior, o governo Yeda Crusius já implementara determinações repressivas, acolhidas rapidamente pela Justiça regional, que resultaram na destruição de escolas, farmácias e acampamentos do MST. No dia 8 de maio de 2008, após estabelecer cerco, às 6h, setecentos soldados da Brigada Militar fortemente armados, apoiados por cães adestrados, cavalos e helicópteros, assaltaram acampamento do MST na fazenda São Paulo II, em São Gabriel, designada pelo Incra para acolher assentados, sob a cobertura de mandado de busca e apreensão requerido pela Brigada à Justiça municipal. A operação deu-se sob o comando do coronel Paul Mendes. Durante o ataque, miseráveis barracos de lona de plástico foram rasgados, pás de terras foram lançadas nas panelas com alimentos em preparação, famílias inteiras foram revistadas, etc. A custosa e violenta operação resultou na apreensão de farta quantidade instrumentos de trabalho agrícola, em sua maioria, com claro registro de uso anterior. Em protesto à violência, treze rodovias foram ocupadas transitoriamente por militantes do MST, em Piratini, Nova Santa Rita, Santana do Livramento, São Luís Gonzaga, Arroio Grande, Júlio de Castilhos, Lagoa Vermelha, Charqueadas, Hulha Negra, Pontão, Gramado dos Loureiros, Encruzilhada do Sul e Viamão. Em 3 de junho de 2008, sob a direção do mesmo coronel Paulo Mendes, sem mandato judicial, mais de cem policiais da Brigada Militar destruíram acampamento do MST em Viamão, na RS-40, em terras cedidas pelos proprietários para tal, em paradoxal atentado ao direito de propriedade. Os trabalhadores do MST empregavam-se nas lavouras de arroz das proximidades. Em 10 de junho do mesmo ano, agricultores e agricultoras que distribuíam alimentos à população foram agredidos por policias militares em área da empresa Bunge, em Passo Fundo. A mesma truculência e cerceamento dos direitos democráticos estendeu-se ao mundo urbano. Na manhã de 11 de junho de 2008, tropas também sob as ordens do coronel Paulo Mendes, então já comandante geral da Brigada Militar, por decisão de Yeda Crusius, reprimiram duramente manifestantes contra a corrupção do governo estadual e a alta dos preços dos alimentos nos supermercados do grupo estadunidense Walt-Mart, os quais se dirigiam ao Palácio Piratini, prendendo e ferindo quarenta manifestantes. Na ocasião, usaram-se balas de borracha, gás lacrimogêneo e spray de pimenta. Em 11 de setembro de 2008, 170 brigadianos, sobretudo do Batalhão de Operações Especiais, comandados pelo coronel Paulo Mendes, chegados

416

de diversos pontos do estado, ocuparam o assentamento Integração Camponesa do MST. Na ocasião, desalojaram, prenderam e identificaram trabalhadores, trabalhadoras e crianças, na delegacia de Canguçu, apoiados em ordem judicial da 1ª Vara Criminal de Canguçu.

Subindo e caindo Defensor da pena de morte e celebrizado por afirmações como “bandido tem que ir para o paredão”, quando subcomandante geral de Brigada Militar, o coronel Paulo Mendes foi elevado ao comando da corporação por Crusius, admiradora de sua atuação, em 9 de junho de 2008. Ligado ao PSDB, o coronel cultivava perfil populista de direita junto à tropa, apresentando-se habitualmente com fardamento de “combate”. Seis meses mais tarde, em dezembro de 2008, foi se afastando do comando ao serem reveladas gravações da Polícia Federal onde requeria a Francisco Fraga, um dos 39 indiciados na Operação Rodin, ajuda política para sua designação àquela posição junto ao governo. Em fevereiro de 2009, em associação com o Ministério Público regional, o governo do estado determinou o fechamento das escolas públicas itinerantes dos acampamentos dos trabalhadores rurais sem terra. As escolas haviam sido reconhecidas pelo Conselho Estadual de Educação do Rio Grande do Sul em 1996, difundindo-se a seguir através do Brasil, com grande sucesso. Livros de Paulo Freire já tinham sido apreendidos em acampamentos do MST e apresentados como documentação subversiva e insurgente. Em 9 de março de 2009, tropas da Brigada Militar, dirigidas pelo coronéis Binsel e Paulo Mendes, surraram duramente mulheres e crianças da Via Camponesa, que, em celebração ao Dia Internacional da Mulher, ocuparam a fazenda Turumã, do grupo sueco-finlandês Stora Enso, em Rosário do Sul, localizada a menos de 150 km da fronteira, o que é proibido por lei federal. O sindicato dos jornalistas do Rio Grande do Sul protestou contra a proibição, com apreensão de equipamento, do registro fotográfico e cinematográfico dos atos delituosos policiais.

Resultado inevitável A situação de confronto constante com o movimento social, empreendido pelo governo do estado, pelo Ministério Público Estadual, pelo Poder Judiciário e pela alta oficialidade da Brigada Militar, teria trágico mas não inesperado fim. Na sexta-feira, 21 de agosto de 2009, o agricultor Elton Brum da Silva, de 44 anos, pai de dois filhos, foi assassinado com um tiro

417

pelas costas, à queima-roupa, enquanto fugia de carga da Brigada Militar, quando do violento desalojamento da fazenda Southal, em São Gabriel. As tropas se encontravam sob o comando do coronel Lauro Binsfield. O fato sangrento registrou que o assassinato não fora mero acidente, já que, contra todas as instruções e normas convencionais praticadas em todo o Brasil, as autoridades superiores da Brigada Militar haviam determinado o porte de munição letal por tropas designadas para reprimir movimento social formado por trabalhadores rurais lutando por reforma agrária, garantida pela Constituição. Tendo sido apontado, inicialmente, como autor do disparo um oficial da Brigada, dias mais tarde foi apresentado um soldado como responsável material do crime. Essa foi a primeira morte no país, desde 1996, em uma reintegração de posse comandada pela polícia militar. A Zero Hora, que apoiou e sustentou desde o primeiro momento criminalização e repressão do MST, apresentaria a notícia com a manchete: “MST ganha seu mártir”, em 22 de agosto de 2009. “O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ganhou um mártir ontem, após a morte de um militante de sua causa, Elton Brum da Silva”. Para a Zero Hora, segundo o oficial, os tiros da Brigada se deveriam ao fato de que “os semterra” estariam agredindo os policiais “com foices”. Em fins de outubro de 2009, Yeda Crusius viu-se livre da ameaça de afastamento do cargo pedido pelo Ministério Público Federal, em virtude do gozo de foro privilegiado. Retomando a iniciativa repressiva, truncada pela indignação geral causada pelo assassinato do trabalhador sem-terra, realizou salto de qualidade na banalização da repressão no Sul ao atacar, desta vez diretamente, o direito de organização e de expressão política, realidade desconhecida pelo estado desde o fim da ditadura militar. No dia 29 a sede da Federação Anarquista Gaúcha, na Cidade Baixa, em Porto Alegre, foi violada por forças policiais, munidas de mandado da Justiça estadual, em razão de queixa de crime por calúnia, injúria e difamação impetrado pela governadora Yeda Crusius, como pessoa física. O mesmo ocorreu no endereço de hospedagem do portal vermelhonegro.org, do Foro do Anarquismo Organizado, em Gravataí. Na ocasião, foram apreendidos computadores, material publicitário, etc. A ação policial procurava cartazes, manifestos, etc., apontando Yeda Crusius como responsável maior pela morte do agricultor Elton Brum da Silva, do MST, assassinado por integrante da Brigada Militar, para corroborar o processo movido pela governadora. Na ocasião, teriam sido apreendidos documentação interna, atas de reunião, documentos históricos, etc.

418

referentes àquelas organizações. Alguns militantes foram presos e levados para a polícia para prestar declarações. Oito militantes anarquistas foram indiciados por “crime contra a honra, incitação ao crime e formação de quadrilha ou bando”. O governo Yeda Crusius teria escolhido como objeto inicial de sua ofensiva contra os direitos políticos e civis do movimento social e da população a FAG e a FAO, precisamente por sua diminuta militância e rejeição doutrinal à ação política. Mais uma avaliação inábil e desastrada da administração estadual, considerando-se o forte movimento de repúdio que a ação motivou no Rio Grande do Sul, no Brasil e no mundo. As duas pequeninas, mas ativas, organizações descendem ideologicamente das forças políticas libertárias, muito fortes no movimento social e operário rio-grandense na República Velha, responsáveis por memoráveis movimentos reivindicativos dos trabalhadores organizados sobretudo em torno da combativa Federação Operária Rio-Grandense (Forg), fundada em 1906, quando da primeira greve geral sulina. A agressão conheceu o imediato e firme repúdio do MST, das rádios comunitárias regionais, do Cepers, dos partidos de esquerda, dos sindicatos regionais. Movimento de rejeição que ultrapassou as fronteiras regionais e nacionais, repercutindo fortemente sobretudo no Uruguai, na Argentina e na Espanha, onde a CGT organizou ato de protesto diante da embaixada do Brasil em Madri.

Movimento sindical Em 17 de novembro de 2008, em torno de 80% dos professores da rede pública iniciaram paralisação exigindo a retirada do projeto de piso salarial apresentado pelo governo Yeda Crusius, para ser aprovado durante o recesso escolar. Após a retirada do projeto, o movimento seguiu por mais 14 dias para obter o pagamento dos dias parados, encerrando-se, muito enfraquecida, sem obter aquela reivindicação, rejeitada igualmente pela Justiça. No dia 24 de setembro de 2009, bancários de todo o Brasil entraram em greve, em razão do oferecimento de apenas reposição da inflação pelos banqueiros – 4,5% –, apesar dos enormes lucros obtidos pelo setor no período anterior. O movimento foi desigualmente seguido no Rio Grande do Sul, encerrando-se com pequenas compensações. Na manhã do dia 24 de novembro, no auditório da Assembleia Legislativa, milhares de brigadianos fardados e à paisana manifestaram-se contra projeto do governo Yeda Crusius, contra o comandante-geral da corporação e contra deputados da base governamental. O projeto da administração previa aumentos substanciais para o alto oficialato, com salários já avultados,

419

e achatamento salarial para os soldados e suboficiais, os piores pagos do Brasil. Com os aumentos previdenciários propostos, os descontos chegariam a mais de 16%. Os dirigentes do movimento reivindicavam reajuste linear, pois a “Brigada é uma só”. Enquanto se destinava aumento de 20% aos oficiais superiores, retroativo a março de 2009, e de 9% aos soldados, apenas em março de 2010, excluíam-se deste último melhoramento os sargentos, tenentes e capitães. Em inícios de novembro de 2008, durante paralisação da Polícia Civil de três dias, com enorme adesão da categoria, o governo mobilizara a Brigada Militar, sob o comando do coronel Paulo Mendes, para eventual repressão aos policiais civis. Em 26 de outubro de 2008, José Fogaça, do PMDB, foi reeleito à prefeitura de Porto Alegre, derrotando no segundo turno a petista Maria do Rosário, consolidando a superação do domínio petista sobre o Rio Grande do Sul e, sobretudo, Porto Alegre. Durante as eleições, para surpresa geral, o PSOL, comandado pela tendência de Luciana Genro, aceitou o financiamento eleitoral da multinacional Gerdau.

420

30 A economia rio-grandense – 1930-2009 Nas últimas décadas do século 19 e começos do século 20, o Rio Grande conheceu uma forte diversificação de sua produção, anteriormente assentada essencialmente na atividade pastoril-charqueadora. Nesse período, o norte, em geral, e o nordeste rio-grandense, em particular, cresceram, econômica e demograficamente em relação ao meridião, antigo centro social e econômico da sociedade rio-grandense. Inicialmente, a produção artesanal, manufatureira e industrial sulina, dispersa e constituída por pequenas unidades produtivas, apoiava-se na mão de obra livre, assalariada, familiar e, não raro, escravizada. Produzia sobretudo gêneros de consumo corrente, rústicos e de baixa relação peso-valor – vestuário, ferramentas, gêneros alimentícios, materiais de construção, embarcações, etc. – para os mercados locais. A produção têxtil, dirigida aos mercados regional e do Brasil, e as fumageiras, para a exportação, foram as pontas de lança dessa produção. Após a República, o deslocamento dos liberal-federalistas da gestão hegemônica do poder regional, movimento consolidado quando da Revolução Federalista (1893-95), permitiu que o Partido Republicano Rio-Grandense apoiasse a construção de economia mercantil regional voltada para a diversificação e modernização produtiva – industrialização, policultura, pastoreio, etc. Essa produção se orientava para a satisfação dos mercados regional e brasileiro. Porto Alegre, São Leopoldo/Novo Hamburgo, Caxias, Rio Grande e Pelotas tornaram-se os centros de produção sobretudo de gêneros de consumo corrente, abastecendo o mercado regional. A industrialização rio-grandense processou-se com capitais endógenos, acumulados sobretudo pelo capital comercial, no espaço produtivo pastorilcharqueadora, no meridião, e colonial-camponesa, do noroeste sulino. Em geral de nível tecnológico baixo, a produção manufatureiro-industrial riograndense explorava uma mão de obra comumente com fortes vínculos com o mundo colonial-camponês, apoiando a reprodução do capital na superexploração do trabalho, através de longas jornadas e baixos salários e, secundariamente, na maquinaria e tecnologia. Durante esses anos, a produção pastoril e, a seguir, agropastoril constituíram sempre os principais produtos de exportação rio-grandense, responsáveis pela obtenção de divisas, sobretudo nos mercados brasileiros. Muito logo, a Argentina e o Uruguai surgiram como centros consumidores da produção agrícola rio-grandense. A expansão da produção manufatureira e agrícola sulina dependia sobremaneira da saúde da produção primária regional, muito sensível aos ciclos climáticos e às flutuações do mercado.

421

Substituição de exportações Em 1914-18, a Grande Guerra militarizou a indústria europeia e, a seguir, estadunidense, impulsionando as manufaturas e indústrias sulinas, que diversificaram e ampliaram sua capacidade de produção para realizar uma multiplicidade de produtos, antes importados, necessários à população e produção regional. Essa produção satisfazia a uma importante demanda reprimida com mercadorias mais rústicas e a preços mais elevados do que os importados. A expansão das exportações primárias, em razão do elevado consumo europeu, apoiou o impulso fabril, limitado pelas dificuldades de importação de máquinas e insumos e dirigido sempre fortemente para o mercado regional rio-grandense. Nos anos 1920, com o fim da guerra mundial, a desmilitarização das nações industrializadas centrais deprimiu as exportações da produção primária, que perdeu tendencialmente valor nos anos seguintes, diante do refluxo econômico de após-guerra. A “valorização do café”, apoiada em empréstimos e na emissão inflacionária de moeda, corroeu a capacidade de compra da população do Brasil, golpeando as vendas de produtos agropecuários do Rio Grande do Sul para o resto do país, com duros reflexos na produção manufatureiro-industrial regional. Muitas unidades manufatureiras e fabris fecharam as portas ou se concentraram no Rio Grande do Sul, o que fortaleceu a depressão do consumo regional, em virtude do desemprego ensejado por tal movimento. A situação econômica depressiva, associada à repressão, pesou fortemente sobre a organização do movimento operário rio-grandense, centralizado na capital e nas principais aglomerações do estado. A crise das exportações primárias rio-grandenses favoreceu a chamada Revolução de 1923, promovida sobretudo pelos segmentos pastoris, descontentes com a falta de proteção ao “boi” pelo governo estadual, ao igual do que fazia, o governo paulista, com o café. A crise mundial de 1929 deprimiu fortemente o mercado mundial, inviabilizando, por um lado, o padrão primário-exportador, sustentado sobretudo pelo café, e, por outro, a República Velha, superestrutura político-jurídica da ordem socioprodutiva oligárquica. A vitória militar da Aliança Liberal, após a derrota nas urnas, permitiu que se organizasse a hegemonia no Brasil de novo bloco proprietário, apoiado na produção industrial e primária voltada para o mercado interno, em expansão, enquanto o setor primário exportador regredia. Em 1933, superada no Brasil a fase depressiva do ciclo recessivo mundial iniciado em 1929, o governo Getúlio Vargas iniciou o financiamento com recursos públicos à infraestrutura e às empresas de base necessárias ao desenvolvimento de indústria brasileira, centralizada no eixo Rio de Janeiro – São Paulo e voltada para mercado nacional, também em construção, pora

422

meio do mecanismo de “substituição de importações”. No novo contexto, o modo de produção capitalista dominou crescentemente o país, em acomodação com as classes e áreas pré-capitalistas, voltadas sobretudo à produção primária, em situação de subordinação. A renda nacional em moeda forte continuou sendo garantida pelas exportações primárias, com destaque para o café. O Centro-Sul passou a exercer um papel de nação metropolitana, importadora de mão de obra (superexplorada) e de matérias-primas (a baixo custo), em relação às áreas periféricas, exportadoras daqueles elementos e importadoras de manufaturados (a alto preço relativo). O novo padrão econômico não pôs apenas fim à dominância da produção-consumo sulina de produtos manufaturados regionais. A gênese de indústria de base e de bens de produção no Centro-Sul estendeu e superou a diferença essencialmente quantitativa dessas regiões em relação aos outros centros industriais do Brasil, com destaque para o Rio Grande. Não se tratava mais apenas da produção, em escala maior ou menor, dos mesmos produtos pelo eixo Rio de Janeiro–São paulo, mas de produções de produtos diversos, de produtividade e rentabilidade superiores.

Os anos 1930 Em inícios dos anos 1930, o governo federal procurou mitigar a crise do setor primário nacional. No que se refere ao Rio Grande do Sul, o Banco do Brasil concedeu importantes empréstimos aos criadores, com prazo de quatro anos, a 8,5% ao ano, garantidos pelo gado e terras. Medidas federais limitando os juros e as execuções das dívidas contribuíram, igualmente, para a lenta recuperação do setor. Em 1931, em plena recessão da economia do mundo e do Brasil, faliu o Banco Pelotense. Ele se encontrava enfraquecido pela retirada de depósitos estaduais para pagar a encampação do Porto de Rio Grande e da Viação Férrea, em inícios dos anos 1920; pelas consequências da crise da pecuária de pós-Grande Guerra; por investimentos de baixa liquidez realizados fora do estado. A massa falida do Banco Pelotense foi incorporada ao Banco do Rio Grande do Sul, futuro Banrisul, fundado em 1928. A crise do Banco Pelotense foi sentida profundamente pelas classes proprietárias comerciais, pastoris e charqueadoras da metade sul. Em 1934, a economia do estado entrava no ciclo expansivo conhecido pelo Brasil. A indústria regional passou a avançar, apoiada sobretudo no beneficiamento das matérias-primas agropecuárias regionais – tecidos, bebidas, calçados, carnes, etc. – e na produção de implementos agrícolas para aquelas atividades. A produção industrial sulina prosseguiu abastecendo sobretudo o mercado regional e dependente da produção primária escoada

423

nos mercados regionais e nacionais. O padrão de crescimento industrial, voltado ao mercado nacional, apoiado nos capitais hegemônicas fluminenses e paulistas, reservava à economia do Rio Grande a função de “Celeiro do Brasil”, ou seja, de produção de produtos primários e importação de manufaturados. No comando do Rio Grande do Sul em 1930-1937, em oposição a essa proposta de satelitização do estado, o general Flores de Cunha desenhou projeto de manutenção da autonomia política estadual e de inserção da produção industrial e primária sulina mais encisiva no mercado nacional, em confronto com a orientação geral getulista. Destaque-se que a especialização rio-grandense na produção primária era proposta que continuava obtendo importante consenso no Rio Grande do Sul, sobretudo – mas não apenas – entre os grandes proprietários rurais, anos após a tentativa de resistência ensaiada por intermédio de Flores da Cunha. Em 1961, prefaciando o livro Crise econômica no Rio Grande do Sul: a crise agro-pecuária, de Paulo Schilling, a geógrafa Nehyta Ramos propunha que não havia por que “se envergonhar o Rio Grande do Sul” por seu destino de ser “o celeiro do Brasil”, nem que se inquietar pelo “surto de industrialização pesada que” agitava e movimentava “outras regiões do Brasil”, sem atingir o estado. O general Flores da Cunha estabeleceu aliança explícita com os capitais industriais sulinos, sobretudo de origem alemã, e aproximou-se do operariado regional, para a consolidação de seu projeto autonômico, apresentando programa social-democrata extremamente avançado quando da fundação do seu Partido Republicano Liberal, em 1932. Em razão da distância do Rio Grande do Sul dos mercados centrais, fundou a Frota Rio-Grandense de Navegação (1936) e iniciou a construção de rodovias para facilitar a circulação regional e nacional das mercadorias rio-grandense. Sua derrota e o golpe getulista de 1937, com a instalação do Estado Novo (1937-1945) selaram o status subalternizado do Rio Grande do Sul. O fracasso desse ensaio de resistência ao projeto de satelitização do Rio Grande do Sul foi facilitado pela falta de apoio que Flores da Cunha conheceu entre importantes setores proprietários sulinos.

O fim de uma época O isolamento social final que Flores da Cunha sofreu no confronto com Getúlio Vargas, em 1937, ilumina o limite político das classes proprietárias sul-rio-grandenses, com destaque para seus setores pastoris. O fato de que um político rio-grandense, Getúlio Vargas, tenha capitaneado a chamada Revolução de 1930 e exercido o poder durante o Estado Novo (1937-45), quando o Centro-Sul se consolidou como coração industrial do Brasil, foi

424

apenas paradoxo político aparente. Ao se tornar um político burguês por excelência, Vargas apenas interpretou, sem vacilações e com coerência, os interesses do capital industrial hegemônico nacionalmente daquelas regiões, e suas necessidades de exploração dos capitais, matérias-primas, mercados, força de trabalho das regiões mais frágeis e periféricas. No Brasil, de 1930 até o fim da Segunda Guerra, o processo de industrialização por substituição de importações ocorreu sobretudo pela utilização da capacidade instalada e, a seguir, pela ampliação da capacidade produtiva de empresas fabris dedicadas à produção de bens de consumo corrente. A dificuldade de importação de maquinaria, em razão, sobretudo, da guerra, impedia uma ampliação extensiva da produção. Desde então, assumiu grande importância a formação de parque nacional de indústria de base, capitaneada pela fundação, pelo Estado, da Indústria Siderúrgica Nacional e pela Companhia Vale do Rio Doce. Durante a Segunda Guerra (1939-1945), com a militarização da indústria europeia e estadunidense e a valorização das exportações primárias sulinas, sobretudo para a Inglaterra, Argentina e Uruguai, houve importante expansão e diversificação da produção industrial regional, utilização da capacidade industrial instalada, de empresas como a Gerdau e A.J. Renner, de Porto Alegre, a Eberle, de Caxias, etc., para satisfazer à demanda interna reprimida. Mesmo que a produção pastoril tenha estagnado, em razão das dificuldades de escoamento da produção, a carne e os couros valorizaram-se, permitindo maior renda setorial. Também a agricultura regional se expandiu, com destaque para o arroz e a mandioca. De 1935 a 1945, a economia rio-grandense crescera a taxas elevadas, apoiada numa forte complementaridade entre a produção industrial e rural – colonial, capitalizada, latifundiária. Entretanto, essa expansão não superou o padrão de crescimento tradicional. Apesar de uma primeira penetração dos manufaturados regionais no mercado nacional, que prosseguiria nos anos 1950, com a venda de fogões, cutelaria, armas de fogo, produtos têxteis, gêneros em couro, etc., a acumulação de capitais seguiu dependendo da exportação agropecuária para o resto do Brasil e de um mercado regional que prosseguia relativamente restrito, em razão do latifúndio, dos baixos salários, da imigração da colonos-camponeses, sobretudo. Em 1943, a produção pastoril representava 46,3% das exportações sulinas, a produção agrícola, 36,9%, e a industrial, 16,8%. Em 1940, a população economicamente ativa encontrava-se ainda vinculada sobretudo às atividades agropecuárias: 8% trabalhavam na indústria e 68% na agropecuária. Dois anos após o fim da guerra, a produção agropecuária rio-grandense era responsável por 41% da renda interna e a industrial, por 16%.

425

Expansão limitada Dos anos 1935 ao fim da Segunda Guerra, em 1945, a produção fabril sulina seguiu se expandindo sobretudo pela utilização da capacidade instalada e da ampliação da capacidade produtiva de empresas dedicadas à produção de bens de consumo corrente. Não houve ampliação substancial do parque produtivo, processo restrito, como vimos, pela dificuldade de importar e produzir novas máquinas. Mesmo as poucas empresas sulinas de maior vulto, concentradas em Porto Alegre, São Leopoldo, Caxias, Pelotas, Rio Grande, dependiam sobretudo do mercado regional, pois intervinham com dificuldade no mercado nacional, dominado pela produção hegemônica do Centro-Sul. Era um mercado sulino que se restringia fundamentalmente ao mundo urbano e às zonas colonial-camponesas, pois o consumo das regiões dominadas pelo latifúndio era restrito. Mantinha-se imutável o caráter limitado do mercado sulino, concentrado em poucas cidades maiores. Em 1950 Porto Alegre possuía quatrocentos mil habitantes; Pelotas, setenta mil, Rio Grande e Santa Maria, cinquenta mil. O estado possuía também uma grande quantidade de pequenos centros urbanos, sobretudo no norte, em torno dos quais se articulavam atividades comerciais, fabris e artesanais de médio e sobretudo pequeno porte. A dependência da economia agropastoril sulina aos mercados regionais e nacionais explica a ênfase sistemática da administração regional – Júlio de Castilho, Borges de Medeiros, Flores da Cunha, Cordeiro de Farias, etc. – na melhoria dos meios de comunicação, primeiro ferroviários e portuários, a seguir rodoviários, necessários para uma melhor circulação regional e escoamento nacional e internacional da produção. A indústria coureiro-calçadista é exemplo paradigmático do padrão riograndense de crescimento industrial dependente de mercado regional restrito. Até os anos 1890, pequenas unidades artesanais mercantis, localizadas em praticamente todas as sedes da Região Colonial Alemã, forneciam uma grande diversidade de produtos em couro, com destaque para os arreios, selas e calçados. O artesão explorava em sua pequena unidade produtiva fortemente a mão de obra de sua família e os excedentes locais, estruturais ou conjunturais, da mão de obra rural – mulheres, crianças, jovens. A produção era vendida na unidade produtiva e escoada pelos comércios da região e da capital. Não raro, o artesão ou um seu familiar entregavam encomendas e levavam em mulas bruaqueiras o produto até o mercado consumidor.

426

Evolução lenta Essa produção artesanal conhecia uma escassa divisão técnica do trabalho, já que o artesão dominava praticamente a totalidade da confecção do produto. Os aprendizes iniciavam-se na produção, sob a autoridade do mestre-proprietário, trabalhando pelo alojamento e comida, por uns seis a doze meses, até concluírem o aprendizado da produção total dos produtos, podendo, então, estabelecer-se de forma independente. Nos anos 1870, com o estabelecimento das primeiras ferrovias no Rio Grande do Sul e a consequente introdução de produtos manufaturados dos grandes centros produtores mundiais, as pequenas unidades artesanais coureiras das velhas colônias alemãs especializaram-se comumente na produção, sobretudo, de calçados, racionalizando a produção e ampliando em algo a divisão técnica do trabalho. Manteve-se o pequeno porte das unidades produtivas. O lento processo de crescimento da produção coureiro-calçadista centrada em São Leopoldo e São Hamburgo foi acelerado relativamente quando da Primeira Guerra e, sobretudo, com a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, que permitiram desenvolvimento da produção com o maior consumo regional e a conquista de mercados nacionais, antes abastecidos por produtos importados. Com o fim do confronto mundial, a produção voltou a ter sua expansão limitada pela baixa capacidade de consumo local, regional e nacional, em crise estrutural desde os anos 1950, quando se impôs a queda contínua da participação da massa salarial dos trabalhadores na renda nacional. Se a produção coureiro-calçadista viveu concentração em unidades relativamente maiores no início do século 20, a partir de 1930 até 1970, conheceu crescimento sobretudo vegetativo, sem conhecer reais saltos de qualidade, sobretudo após ver os mercados nacionais disputados, nos anos 1940-50, para os núcleos coureiro-calçadistas do Brasil Central, com destaque para a cidade paulista de Franca.

Os limites impostos pelo latifúndio O caráter restrito do mercado sulino impedia a geração de consumo suficiente que sustentasse maiores inversões na indústria. Uma realidade devida em boa parte à debilidade das classes trabalhadoras rurais e à coesão das classes proprietárias, que frustraram o processo de democratização da propriedade fundiária, liquidando o peso da renda da terra na conformação da taxa do capital; ampliando a capacidade de investimento e o mercado consumidor regional; melhorando as condições regionais de inserção na economia nacional e mundial.

427

Os limites do mercado consumidor sulino eram estruturais. A baixa produtividade da produção pastoril extensiva de caráter pré-capitalista restringia sua modernização-expansão produtiva e o consumo regional. Essa situação jamais foi questionada pelas classes trabalhadoras da região, mantidas sob a hegemonia político-ideológica do latifúndio. No norte, a luta de posseiros e intrusos pelo controle, sobretudo, de terras em regiões florestais foi também vergada pelo Estado e pelos grandes proprietários, não conseguindo se elevar ao nível político, em articulação com outros segmentos explorados da região e do país. Era igualmente limitado o consumo da economia colonial-camponesa, pois sua importante esfera natural produtiva e a exploração do trabalho familiar limitavam a capacidade de investimentos, a reprodução dessas unidades e o consumo de produtos industrializados. Inicialmente carente de braços, a sociedade colonial-camponesa demorou a diminuir a sua alta taxa de natalidade quando escassearam terras disponíveis para novas explorações e se acelerou o processo de mecanização da produção rural, produzindo forte população de trabalhadores excedentes. Desde os anos 1920, multidões de descendentes de colonos-camponeses sobretudo de origens alemã, italiana e polonesa, incapazes de transformar suas necessidades sociais em luta pela divisão dos latifúndios e sem possibilidade de se empregarem na indústria, migraram, especialmente, para o oeste de Santa Catarina e do Paraná, causando forte perda demográfica e de capitais ao Estado. Esse processo se radicalizou de tal modo que nos anos 1940 o Rio Grande do Sul, que crescia demograficamente acima das taxas nacionais, passou a se desenvolver abaixo delas. Nos anos 1950, no sul e no centro do estado, a mecanização das atividades agropastoris – rizicultura, charqueadas, frigoríficos, etc. – expulsou do campo trabalhadores, que formaram cinturões urbanos de semiempregados, subempregados, desempregados e miseráveis. Esse exército de desempregados permitiu que a produção fabril sulina mantivesse sua expansão apoiada na superexploração da mão de obra e, portanto, no baixo desenvolvimento tecnológico. A depressão tendencial dos salários industriais sulinos restringia também o mercado consumidor regional. O projeto de modernização estrutural da produção rio-grandense, promovido de forma precoce nos anos 1889-1937 pelo castilhismo-borgismo-florismo, abortou o necessário processo de democratização da propriedade fundiária necessário à extensão da produção industrial, em razão do respeito estrutural à propriedade e da impossibilidade de se apoiar na mobilização das classes trabalhadoras rurais, sobretudo em aliança com o operariado urbano. Essa realidade seria apenas questionada quando do governo de Leonel Brizola, nos anos 1960, e mais tarde, em fins dos anos 1970, pelo futuro MST.

428

Tabela 6 - Participação no produto industrial do país - % Ano/Estado

São Paulo

Minas Gerais

Rio Grande do Sul

1907

16,5

4,8

14,9

1920

31,5

5,5

11,0

1939

36,4

8,0

8,7

1948

45,4

7,1

7,9

1960

54,3

6,0

6,7

1969

55,9

7,7

5,7

1979

60,0

9,0

5,5

Fonte: Dacanal; Sergius, p. 404.

O Rio Grande do Sul após a Segunda Guerra Mundial Durante a Segunda Guerra Mundial, o Rio Grande do Sul acompanhou o surto industrial do Centro-Sul, sob o impulso da ruptura das importações de manufaturados produzidos na Europa e nos EUA, com suas economias militarizadas. Desde 1945, essa conjuntura positiva se interrompeu com a desmilitarização dos exércitos e a reconstrução e reconversão civil dos parques produtivos dos centros capitalistas mundiais, como recém-assinalado. Entretanto, a queda das exportações sulinas, no que diz respeito ao volume e ao valor, foi mitigada com o fortalecimento das exportações riograndenses para o resto do país, com a recuperação relativa da taxa de consumo nacional, mantendo-se a expansão da economia a taxas elevadas de 1949 a 1953. A dependência da produção regional sulina ao mercado nacional manteve-se e desenvolveu-se nas décadas de 1950 e 1960, até a extroversão imposta pela ditadura militar à produção nacional, a partir da segunda metade dos anos 1960, quando a dependência rio-grandense dos mercados internacionais assumiu caráter paradoxalmente extremado. Em inícios de 1951, Vargas aproximou-se do operariado urbano, reajustando por primeira vez o salário mínimo desde sua decretação, em 1943, em 230,5%. Em janeiro de 1952, determinou limite às remessas de lucros e outras medidas coercitivas ao capital estrangeiro. Em 1953, adotou “sistema de taxas múltiplas de câmbio” para as exportações, importações e movimentação de capitais, facilitando as importações estratégicas e equilibrando o balanço comercial. Essas medidas expressavam as dificuldades do balanço comercial do Brasil, sob a forte pressão do capital mundial. Os déficits comerciais ensejavam o financiamento dos investimentos pela expansão da massa monetária, motivando inflação que, no Rio de Janeiro, em 1950-1952, ultrapassou os 40% (acumulada). Em inícios de 1954, greves operárias exigiam reajuste do salário-mínimo. Em resposta ao mo-

429

vimento, acossado pelo golpismo, Getúlio determinou aumento de 93,5% do salário mínimo, acrescendo seu valor real em mais de 50%, para horror dos empresários. O boicote do café brasileiro no mercado estadunidense aprofundava as dificuldades do pagamento das contas externas e dificultava as importações de petróleo, de trigo, de máquinas, etc. Porém, durante todo o governo Vargas a produção industrial de produtos de consumo corrente e de bens de produção cresceu ininterruptamente, já apoiada em boa parte na emissão inflacionária. A crise do modelo de nacional-desenvolvimentismo era estrutural, exigindo medidas correspondentes para sua superação. A baixa capacidade de consumo popular urbano e rural impedia a produção em escala. A capacidade de poupança nacional era baixa. Faltava tecnologia de ponta à indústria. A continuidade do nacional-desenvolvimentismo exigia forte expansão dos investimentos e do consumo interno, pela destruição do latifúndio, sem indenização; generalização das leis trabalhistas; elevação geral dos salários. Exigia, igualmente, forte ampliação das estatais e dos bancos públicos, necessária para a implantação de indústria nacional de bens de produção. Impunha-se, igualmente, a construção de tecnologia de ponta nacional. Tais medidas democrático-burguesas redefiniriam a correlação de forças em favor do mundo do trabalho e romperiam a aliança entre industrialistas e ruralistas. Elas sequer interessavam aos segmentos industriais ligados ao governo, que temiam perder a direção do processo. A fragilidade econômica e a pusilanimidade política impediam que a chamada “burguesia nacional”, ou seja, residente no Brasil e dependente da reprodução de seu capital no país, completasse a revolução democrática, assumindo, nas décadas seguintes, subalternidade crescente diante do capital imperialista.

Cinquenta em cinco Getúlio Vargas preferiu o suicídio a apoiar-se nas massas trabalhadoras. Seu ato ensejou sublevação popular que impediu a implantação do golpe de cunho liberal em curso. O governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1960) tentaria prosseguir o desenvolvimentismo nacional, sem pôr fim às suas travas estruturais, pelo financiamento inflacionário da expansão econômica e de maior abertura aos capitais mundiais, para a implantação, sobretudo, da indústria automobilística e de eletrodomésticos. A queda do poder de consumo da população nacional durante o governo JK teve consequências muito duras para a economia sulina, que, a partir de 1956, inverteu a tendência expansiva, baseada sobretudo na venda de produtos agropecuários ao mercado nacional e de industrializados para o

430

mercado regional. Em 1960 a produção agrícola caiu 7% em relação a 1956, enquanto a produção pecuária recuou em 20%! Apesar de a indústria rio-grandense continuar crescente no governo Juscelino Kubitscheck em números absolutos, à exceção da produção de bens duráveis, não conseguiu contrabalançar o retrocesso da produção primária. Nesse período se aprofundou o distanciamento qualitativo e quantitativo da produção industrial sulina em relação à paulista. A indústria automobilística e de eletrodomésticos nasceu e desenvolveu-se no Centro-Sul, radicalmente à margem do Rio Grande do Sul. O desenvolvimentismo do governo Juscelino Kubitscheck, fortemente apoiado na emissão inflacionária, fora fortemente prejudicial para o Rio Grande do Sul. A partir de 1961, a crise dos governos Jânio Quadros e João Goulart golpeou igualmente a economia sulina, sobretudo em razão do surto inflacionário, reflexo dos impasses estruturais do padrão desenvolvimentista de crescimento.

O Rio Grande do Sul durante o regime militar O golpe militar de março de 1964 assinalou a vitória do projeto liberal de superação do padrão de crescimento industrial dirigido ao mercado interno e apoiado nos capitais nacionais, sob a hegemonia do segmento industrialista, em aliança com o operariado urbano subordinado. A vitória de Castelo Branco na disputa pela presidência entregou as rédeas do país aos segmentos liberais que impulsionaram forte processo recessivo para saneamento financeiro das contas nacionais. O Rio Grande foi atingido pela recessão e centralização das decisões políticas e dos recursos econômicos, utilizados sobretudo em proveito do capital paulista hegemônico. Essa situação aprofundou a marginalização das classes proprietárias sulinas, sobretudo em relação ao governo João Goulart, no qual os interesses sul-rio-grandenses se expressavam com facilidade. Nesse período, prosseguiu, igualmente, o retrocesso relativo do Sul em relação a Minas Gerais, já encetado durante o governo JK. Em fins de 1969, quando se iniciava a inserção da economia brasileira no ciclo expansivo mundiais, batizada de “Milagre Brasileiro”, levantamento sobre “Aspectos da indústria no Rio Grande do Sul”, do Departamento de Economia da PUCRS, registrava o atraso relativo da indústria sulina, sobretudo em relação à paulista, a permanência de seu perfil tradicional, a visão eufórica sobre a realidade econômica nacional sob a ditadura, o pouco desenvolvimento do pensamento econômico daquela instituição. Apesar de envolver um número limitado das pouco mais de 19 mil indústrias sulinas (Cadastro Industrial IBGE/1965) e de excluir a indústria da construção civil, o estudo registrou que a maioria das industriais regio-

431

nais era composta de pequenas unidades produtivas de caráter familiar com menos de cinco membros. Apenas 4,3% das maiores empresas abocanhavam 77,3% do faturamento industrial do estado (IBGE). Nesse então, o domínio político dos industrialistas rio-grandenses sobre o Rio Grande do Sul efetuava-se em aliança com o setor agropastoril, já em clara subordinação política. Uma hegemonia que se expressava, no plano econômico, pelo controle das grandes empresas e autarquias estaduais constituídas na era borgista e, sobretudo, fortalecidas quando do governo Brizola – CRT, CEEE, Aços Finos Piratini, etc. Tabela 7 - Distribuição Indústria no Rio Grande do Sul com mais de 50 pessoas ocupadas (1965) Número de pessoas ocupadas 50 a 99 100 a 249 250 a 499 500 a 999 Mil e mais

Número de indústria 372 205 59 27 7

Fonte: Cadastro indústria do IBGE/1965. Apud Velloso. “Aspectos [...].” Op. cit., p. 5.

Empresas familiares Segundo o estudo, a maioria das indústrias sulinas tinha origem e perfil familiar, trabalhava com procedimentos antiquados e empíricos e possuía comumente diretores e gerentes sem formação superior. Os empresários dirigentes com nível superior eram engenheiros, sobretudo, e economistas e contadores, a seguir. Na fundação de novas instalações, as direções empresariais privilegiavam a proximidade de suas residências, não dos mercados, matérias-primas, etc. Os cargos de diretores e gerentes eram ocupados sobretudo por nacionais, em geral descendentes de italianos (42%) e de alemães (40%), resultado do antigo dinamismo relativo das regiões coloniais. Apenas 4,6% das empresas eram sociedades anônimas, taxa abaixo da média paulista (9,5%) e da brasileira (6,8%). Das empresas estudadas, quase 86% haviam recorrido nos últimos cinco anos a financiamentos, assinalando a já alta dependência ao capital comercial e financeiro. As empresas regionais pertencentes a rio-grandenses dominavam fortemente (91,5%), seguidas de longe pelas pertencentes ou subsidiárias a grupos nacionais (4,7%) ou mundiais (3,8%). No geral, 96,2% delas pertenciam a capitais nacionais. Porém, já eram enormes a desregionalização e desnacionalização da produção rio-grandense, pois as empresas de capital

432

não sulino, de maior porte, representavam “31,4% do faturamento das empresas pesquisadas”. Como as grandes empresas cresciam mais rapidamente, a desregionalização da indústria regional era já tendência consolidada. Em 1969 mais da metade das empresas estudadas – pequenas, médias e grandes – produzia abaixo da sua capacidade produtiva, em razão, sobretudo, da estreiteza do mercado, para onde orientavam, prioritariamente, sua produção. Em 1967-69, 37% das empresas sequer haviam expandido as vendas, em valores reais; 31,7% tinham expandido entre 1 e 20%, e 17,7% o haviam feito de 21 a 50%. Apenas 10,7% apresentaram crescimento do faturamento anual médio superior a 50%. Apesar de as “conclusões” do estudo iniciarem com a proposta de que o Brasil deixara de “ser um país do futuro para se transformar em [um pais do] presente”, encerrava constatando o caráter familiar, arcaico, regional, em processo de perda do controle sobre a grande produção, da economia industrial sulina, onde “muitas empresas não atingiram, no triênio 1967/69, taxas iguais ou superiores à da inflação, em contraste com o desenvolvimento industrial do Brasil, centrado concentrado no Estado de São Paulo”.

O Rio Grande do Sul e o “Milagre Econômico” Após o período recessivo de 1964-1969, a economia nacional cresceu fortemente apoiada na expansão das exportações, no endividamento internacional, no achatamento salarial, no confisco de conquistas sociais. O Rio Grande do Sul acompanhou o ciclo expansivo por um quinquênio, até 1975, conhecendo taxas de crescimentos superiores às médias nacionais. A implantação da Refinaria Alberto Pasqualini em 1968, em Canoas, contribuiu fortemente para esse processo. Entretanto, durante o período expansionista, o Rio Grande do Sul não acompanhou o ritmo do crescimento industrial paulista. Manteve-se também o padrão de empresas pequenas e médias e a dependência regional à superexploração da mão de obra, fator que amenizava apenas aparentemente a menor competitividade da produção sulina em relação ao CentroSul. As classes industriais sulinas apoiaram fortemente a ditadura militar, que lhes assegurava a manutenção do arrocho salarial, submetendo-se sem oposição à dominância do capital paulista e mundial. Enquanto crescia em São Paulo a produção de bens de consumo durável e de bens de produção, a expansão da economia sulina dava-se em razão do rápido crescimento da produção-exportação da soja, tendo o estado produzido no decênio 1965-75 em torno de dois terços da produção nacional. O crescimento da sojicultura dependia sobretudo das possibilidades de expansão geográfica da área produtiva, esgotada já em 1975.

433

O domínio da monocultura capitalista soja-trigo fez recuar a produção de subsistência, agravando a dependência da agricultura aos insumos e à maquinaria e, portanto, ao capital bancário e financeiro, no contexto de instabilidade do clima sulino e dos preços de mercado, com graves consequências futuras para a economia regional. A crescente penetração do capitalismo no campo rio-grandense recuava a renda da terra e do trabalho, fazendo avançar a renda do capital. O crescimento da produtividade deprimia o preço unitário do produto, criando as condições para a expulsão do ciclo produtivo dos pequenos plantadores não altamente capitalizados. O crescimento da produção agrícola-exportadora teve reflexos iniciais positivos sobre a produção industrial sulina, com destaque para a produção de máquinas agrícolas e acessórios de veículos automotores. Cresceu, igualmente, a fabricação de armas, móveis, de fogões, de calçados, de alimentos, a cutelaria, etc., que conquistaram mercados fora do estado e, em alguns casos, no exterior. À exceção dos calçados, a expansão produtiva regional, acima da média nacional, deu-se sem a criação de novas empresas. Em 1973, a quebra da safra soviética explodiu as cotações mundiais da soja. Os agricultores sulinos aproveitaram a conjuntura e subvenções creditícias e investiram em insumos, ampliando as plantações e propriedades. Em 1970, plantavam-se 880 mil hectares do vegetal no estado; em 1974, 3,8 milhões. Porém, em 1975 esgotou-se a expansão da soja, por falta de terras a serem incorporadas à produção. Em 1970, o estado contava com em torno de 800 mil hectares de terras não trabalhadas; em 1975, as reservas não passariam de seis mil hectares, dado certamente subestimado! Tabela 8 - Taxas médias de crescimento do valor bruto da produção das indústrias do Brasil e do Rio Grande do Sul 1968-73 Bens De consumo duráves De consumo não duráveis De capital Intermediários Indústria de transformação

Brasil/1968-73 17,4 12,6 21,0 13,1 16,1

RS 19,2 16,9 33,2 25.9 21,5

Fonte: Muller, 205.

Internacionalização radical A agroindústria fumageira foi caso paradigmático da desregionalização e internacionalização da produção sulina. Nos anos 1960 a expansão da produção fumageira sulina patinava em virtude da baixa capacidade de consumo mercado regional e nacional, onde eram escoados os fumos sulinos de

434

baixa qualidade. A partir de 1964, facilitado pelo golpe de estado, o grande capital mundial investiu na introdução de novas técnicas, adubos, estufas, pesticidas, etc. A integração da produção regional rio-grandense ao mercado internacional ensejou, literalmente, o fim da ação de firmas regionais e nacionais no ramo. Em 1994, a British American Tobacco, a Dibrell Brothers, a Monk e a Universal Leaf monopolizavam o setor do fumo matéria-prima; a Souza Cruz controlava 80% e a Philip Morris, 15%, da produção cigarreira nacional. A mundialização da produção fumageira exacerbou a integração da produção minifundiária à agroindústria, que, pela monopolização da compra do produto, obrigou o grupo familiar colonial-camponês a literalmente financiar suas atividades com seu sobretrabalho e com a produção de gêneros de subsistência. Em 1868, a pobreza dos cinco mil habitantes de Santa Cruz registrava-se nos escassos 150 arados que possuíam. Ainda hoje se corta lenha para os fornos a machado, já que muitos plantadores não possuem motosserras. São essencialmente políticas as razões que mantiveram essa verdadeira escravidão da fumicultura, que se arrasta e se aprofunda desde a fundação da colônia de Santa Cruz, em 1849. Sem controlarem a comercializaçãoindustrialização da matéria-prima, os pequenos proprietários não podem tornar independentes suas unidades produtivas, ficando obrigados a trabalhar dura e rusticamente em propriedades de menos de vinte hectares. O abandono dessa exploração quase semisservil mostra-se impossível, em razão da escassa oferta de trabalho e dos baixos salários industriais. Sobretudo nos anos 1969 a 1975, a produção sulina estreitou seus vínculos com o mercado nacional e mundial, diminuindo a dependência ao consumo regional. Cresceu, porém, a dependência das exportações, sobretudo de matérias-primas, produtos primários e bens de consumo corrente – alimentos, calçados, couros, soja, etc. O crescimento industrial rio-grandense apoiou-se na acumulação regional de capitais e no crescimento de indústrias já instaladas, sem acréscimos significativos de capitais e de tecnologias externos. Manteve-se a dependência estrutural da superexploração do trabalhador, que deprimia a capacidade de consumo regional.

Os últimos anos da ditadura militar Os anos 1980 foram batizados de “década perdida”, já que os governos João Batista de Oliveira Figueiredo (1979-1985) e José Sarney (1985-1990) se limitaram a organizar a economia do país para o pagamento incondicional de dívida interna e externa, que não cessava de crescer. Nesse processo, lançou-se mão fortemente do confisco inflacionário da renda nacional. Os

435

reflexos da subjunção da economia do Brasil às exigências do capital financeiro foram dramáticos, com destaque para o Rio Grande do Sul, muito dependente do consumo nacional. Em todo o país interromperam-se os investimentos produtivos e cortaram-se os gastos sociais. Após expansão acima das médias nacionais dos anos 1970-75, a economia rio-grandense desacelerou-se no quinquênio seguinte, crescendo abaixo da taxa média de expansão brasileira, para ingressar em franca recessão em 1980-85, período em que a expansão se manteve abaixo do próprio crescimento demográfico, numa pauperização regional absoluta. Nessa crise pesou a desestruturação da nascente e dinâmica indústria informática quando do fim da política de reserva de mercado. O recuo da economia rio-grandense expressava-se, igualmente, na perda relativa de importância de sua produção agropastoril. Em 1970, o estado era responsável por 15,6% do PIB agropecuário do Brasil, ao passo que em 1985 representava apenas 9,31% desse. Essa estagnação relativa se devia ao esgotamento das possibilidades de expansão da área produtiva, sem ganhos significativos na produtividade e modificação da estrutura fundiária. A instabilidade climática assentava, de forma periódica, graves golpes a essa produção rural, com o deslocamento crescente de produtores para outras áreas do Brasil. Tabela 9 - Participação do Rio Grande do Sul no produto interno do Brasil - 1970-85 1970 8.6

1975 8.53

1980 7.93

1985 7.52

Fonte: MÜLLER, Carlos Alves. A história econômica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Gazeta Mercantil, 1998. p. 226.

Os anos 1990 prosseguiram a situação dramática conhecida no decênio anterior. As taxas de crescimento econômico nos anos 1980-96 foram pífias no Brasil (1,9%) e no Rio Grande do Sul (2,0%). A vitória internacional do neoliberalismo em fins dos anos 1980 e a derrota da candidatura petista em 1989 ensejaram a vitória nas eleições presidenciais do Fernando Collor de Mello, candidato criado pelo capital financeiro e pelos segmentos interessados na privatização, com destaque para a Rede Globo. Contrapartida rio-grandense do aventureiro alagoano foi o comunicador rio-grandense Antônio Britto, igualmente apoiado ferreamente pelas forças conservadoras e pela RBS, retransmissora da Globo no estado, interessada em abocanhar a CRT, na esperada “liquidação” das propriedades públicas rio-grandense. A liquidação das empresas públicas regionais deu-se sob a proposta de “integração internacional” da economia sulina. De 1994 a 1998, foram liquidadas a CEEE, a CRT, a Caixa Econômica Estadual, a Empresa Aços Finos Piratini, os terminais portuários, etc. Após recuperadas com dinhei-

436

ros públicos, as mais rentáveis rodovias sulinas foram também entregues para grupos privados, que passaram a gravar o transporte sulino com tarifas duríssimas, em troca de uma manutenção mínima das estradas. O Rio Grande do Sul passou a pagar tarifas de autoestradas de Primeiro Mundo para superadas rodovias públicas de Terceiro Mundo! Antônio Britto tentou dourar a pílula das privatizações com a instalação de planta montadora da GM em Gravataí, atraída com a cessão direta e indireta de enormes fundos públicos, sem garantias da permanência da empresa no estado.

O fim de uma época As administrações de Cylon Rosa, Ildo Meneghetti, Peracchi Barcello, até 1964; dos delegados dos militares, durante os anos de ditadura; de Amaral de Souza, Pedro Simon, Alceu Collares, etc., após o golpe, expressaram, mais ou menos plenamente, a aceitação permanente das classes proprietárias rio-grandenses da subalternização regional. Decisão nascida fortemente da negativa e do temor de estabelecerem um bloco político-social com as classes subalternizadas, ao igual do tentado por Flores da Cunha (1930-37) e, sobretudo, Leonel Brizola (1958-1962), num momento em que as classes trabalhadoras se mantinham ainda em clara subordinação. O enfraquecimento relativo do capital sulino terminou ensejando a crescente perda do controle das classes proprietárias sobre a produção e política regional. Em curso antes de 1964, a nacionalização-internacionalização da economia sulina conheceu salto de qualidade durante a ditadura militar, período no qual os capitais regionais cresceram de forma absoluta. Após 1985, os capitais regionais retrocederam relativamente ao resto do Brasil, acelerando-se relativa e absolutamente a nacionalização-internacionalização da economia regional. A desregionalização da economia rio-grandense exacerbou-se com a liquidação das empresas públicas regionais em favor do capital privado nacional, em associação subordinada ao capital mundial, realizada quando do governo Antônio Britto. Sobretudo desde os anos seguintes ao fim do regime militar, a subjunção da economia e das finanças regionais ao capital financeiro nacional e mundial ensejou, igualmente, uma verdadeira canibalização das riquezas rio-grandenses, pelo desvio da renda regional para o pagamento da dívida financeira. No novo contexto, à perda da hegemonia das classes proprietárias sobre a economia sulina para o capital nacional, sobretudo após os anos 1930, seguiu-se a imposição da hegemonia plena do capital internacional sobre o Rio Grande do Sul, no que se refere ao capital industrial, inicialmente e a seguir, ao capital agroindustrial. No início do novo milênio, esse processo

437

avança aceleradamente no campo, com a crescente subjunção dos proprietários rurais ao grande capital.

O agronegócio no Rio Grande do Sul A economista Maria D. Benetti apresentou detido estudo sobre o acelerado processo de concentração, centralização e desnacionalização do agronegócio a partir dos anos 1990 no Brasil, em geral, e no Rio Grande do Sul, em especial. É processo que nasceu da crise de uma economia mercantil capitalista tradicional que se desenvolveu no campo pela produção de uma gama pouco variável de produtos, sobretudo de grãos, destinados a um mercado pouco elástico e, em alguns casos, em retrocesso relativo. O crescimento da produtividade desse setor determina queda do valor unitário do produto e da taxa geral do lucro, deprimindo a agricultura e os ramos da indústria e dos serviços a ele ligados. Nos anos 1980, a superação tradicional desse impasse pela expansão do mercado consumidor chocavase com a saturação dos mercados dos países ricos e a depressão do consumo, nos países atrasados e explorados, em virtude da reorganização neoliberal do mundo. O capital agroindustrial relançou sua taxa de lucro com o lançamento incessante nos mercados de alto consumo de mercadorias criadas por seus laboratórios, produzidas inicialmente com número limitado de matérias-primas – produtos dietéticos, pré-cozidos, alimentos de prestígio, etc. A complexidade da distribuição dos neoprodutos aumentou a importância do marketing e a necessidade do controle das redes distribuidoras. O novo padrão de acumulação agroindustrial determinou, subjugou, verticalizou e revolucionou tendencialmente a produção agropastoril, exigindo-lhe fornecimento imediato e elástico de produtos de crescente variedade, qualidade e homogeneização. Esse processo de qualificação excluiu fortemente os pequenos produtores incapazes de acompanhar as novas exigências, não integrados diretamente ao agronegócio. Nos anos 1980, a venda de neomercadorias em mercados de alto consumo garantia super-rentabilidade transitória, nascida do monopólio da produção-venda de mercadorias com preços determinados pela aceitação, não pela competição. Nos anos 1990, esses produtos foram produzidos e lançados internacionalmente para potenciar a rentabilidade dos capitais investidos, com a venda de mercadorias já produzidas e testadas em grande escala. A mundialização do consumo dos neoprodutos exigia uniformização de hábitos alimentares, gostos, marcas, etc., impulsionada pela grande mídia e pelas redes mundiais de supermercados, que acresceram fortemente sua importância no ciclo distributivo. Esse consumo mundial já fora consolidado

438

com a mundialização das mercadorias de consumo durável e semidurável. A maré neoliberal dos anos 1990 ensejou a liberalização mundial da produção e do comércio, recuo do Estado, privatizações, etc., necessários à construção de imensos oligopólios agroalimentares. O Brasil, em geral, e o Rio Grande, em especial, foram palcos privilegiados desse processo, em razão do poder de compra de sua classe média e da existência no país de agroindústrias nacionais e mundiais. Em inícios dos anos 1990, a supervalorização cambial e a abertura comercial do primeiro governo FHC difundiram o consumo dos neoprodutos importados e debilitaram as empresas nacionais que produziam mercadorias mais caras e menos refinadas. No novo contexto, a metamorfose-globalização da indústria alimentar deu-se com a aquisição-fusão de empresas nacionais e sulinas para a liquidação da concorrência local e rápida penetração-integração do mercado nacional e regional. Grandes empresas nacionais e rio-grandenses do ramo agroalimentar (Batavo, Frangosul, Peixe, Isabela, Lacesa etc.), de distribuição (Real, Nacional, Exxtra, Econômico, etc.), de maquinaria, insumos, etc. (Adubos Trevos, Manah, etc.), de comercialização-beneficiamento de aves, de milho, de soja, de suínos, etc. (Frangosul) foram abiscoitadas pelo capital mundial. Vinte por cento dessas incorporações teriam ocorrido com empresas sulinas, taxa muito acima da participação do estado na produção nacional. A necessidade crescente de capital para a fundação de empresas congêneres, sobretudo com o advento da biogenética e biotecnologia, impediu, a seguir, o surgimento de empresas nacionais e regionais nesses ramos. A nova situação garantia monopólio que aumentou a capacidade das multinacionais de imporem os preços das matérias-primas e dos salários, sob a ameaça de transferir a produção de um país para o outro, como no caso da Parmalat, que interveio globalmente na compra de leite para deprimir seu valor de compra. Até agora, fora das mãos do grande capital, permanecem a terra e a produção direta de matérias-primas agropastoris, e isso em razão das vantagens da verticalização das atividades de multidões de pequenos produtores, transformados em seus próprios feitores, que dispensa a imobilização de capitais em terras, pagamento de direitos trabalhistas, etc. A compra e, sobretudo, o crescente arrendamento de terras para a plantação de florestas homongêneas destinadas à produção de celulose e o avanço dos canaviais para a produção de biocombustível aprofundam, igualmente, a alienação do proprietário na gestão de suas propriedades.

439

Tabela 10 - Produto interno bruto per capita e índice de volume (da produção) 2002-2008 Ano 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

Valor (reais) 10.057 11.742 12.850 13.298 14.305 16.689 17.281

Índice volume 100,00 100,51 102,72 98,71 102,21 112.80 110,64

Variação percentual 0.5 2.2 3.9 3.5 10.4 -1.9 (estimativa)

Fonte: FEE/IBGe: www.fee.cthce.br/

Crescimento bruto de 1,4 anual. Tabela 11 - Valor adicionado bruto por setores de atividade - RS Setor/ano 1985 Agropecuária 17,0 Indústria 41,0 Serviços 42,1 Fonte: FEE/IBGE.

1987 19,3 42,2 38.5

1989 16.3 42.8 41

1991 11.3 40.7 48.1

1993 10.4 46.1 43.6

1995 1997 1999 9,7 8,5 8.6 30.2 29.6 27.0 60.1 62 64.1

2001 2003 2005 2007 10.4 12.8 7,1 9,8 28.3 28.2 30.3 26.6 61.4 59. 62.6 63.6

O Brasil e o Rio Grande do Sul segundo a crise Em 15 de setembro de 2008, quebrou o banco estadunidense Lehman Brothers, assinalando a profunda econômica mundial posta em marcha pela insolvência de devedores imobiliários estadunidenses, incapazes de pagar suas hipotecas. Negociadas através do mundo, elas eram uma das grandes das formas de acumulação do capital através de extensão artificial do consumo. A crise envolveu o mundo desigualmente. Foi muito forte no seu epicentro, os EUA, na União Europeia, no Japão, etc. Na China e Índia, foi apenas sentida. Em 2009, enquanto regrediam os PIBs dos EUA (- 2,4%), UE (- 4,2), Japão (- 5%), os da China e da Índia cresciam em 8,7% e 5,6%. Os governos dos EUA e da União Europeia responderam à crise com medidas essencialmente financeiras, financiamento da liquidez do sistema bancário, redução das taxas de juros, etc. Não houve intervenção nas causas estruturais de crise nascida de enorme expansão da capacidade de produção mundial no contexto de queda da capacidade de consumo, sobretudo das classes trabalhadoras. Em fins de 2009, de forma desigual, a produção mundial ensaiou recuperação anêmica, com provável repique recessivo sucessivo, em razão da retirada das medidas anticrise e das políticas austeridade e, portanto, restrições de consumo (Grécia, Espanha, etc.), para pagamento dos despilfarros anteriores com o sistema bancário.

440

Crise golpeou o Brasil em 2009, com forte retrocesso da produção industrial e das exportações, com quase um ano de queda de emprego no setor industrial. Não teve a intensidade das demais regiões em razão do endividamento ainda proporcionalmente restrito da população e dos bancos, que retiram sua rentabilidade da altíssima taxas de juros. O governo respondeu à crise com medidas de apoio ao sistema financeiro, às exportações e ao consumo interno, com destaque para a indústria automobilística, linha branca, etc. (redução de IPI). O aumento da duração do salário desemprego, a manutenção-ampliação das políticas compensatórias, o aumento real no salário-mínimo ajudaram a sustentar e, até mesmo, a ampliar de forma restrita o consumo interno. Sobretudo a manutenção das maiores taxas mundiais reais de juro acresceu o ingresso de capitais internacionais especulativos, inchando patologicamente as reservas estatais. Em 2009, a União pagou 380 bilhões de reais com serviço da dívida. Sobretudo, o prosseguimento da produção chinesa garantiu a continuação das exportações de commodities brasileiras, enfatizando enormemente a dependência da produção e exportações nacionais de bens primários. Em 2010, foi terceiro maior produtor mundial de produtos agrícolas, depois do EUA e da União Europeia. Crise golpeou ainda mais forte ao Rio Grande do Sul do que no Brasil, à margem das primeiras medidas antirrecessivas federais. O PIB sulino recuou em 0,8% e o PIB per capita teve queda ainda mais significativa (- 1,6%). A crise aprofundou a dependência sulina à produção primária, ainda mais do que no centro do país. A agropecuária, responsável, em 2008, por 11,24%, no relativo ao valor adicionado bruto (VAB), cresceu em 1,2%, em 2009, enquanto que a indústria (27,54% do VAB em 2008) recuou nada menos do que 5,3%. O setor serviços (61,23% do VAB, em 2008) cresceu 0,9% e a administração pública avançou em 2,3%. Segundo a FEE: “No período 2003-08, o PIB do RS apresenta um crescimento acumulado de 16,2%, contra 26,5%” do Brasil, “com a participação passando de 7,33% no início do período para 6,42% no final do período. Considerando os desempenhos verificados em 2009, estima-se uma redução nessa participação para 6,37%”.

441

Principais obras consultadas ABRAMO, Fúlvio; KAREPOVS, Deinis (Org.). Na contracorrente da história. São Paulo: Brasiliense, 1987. ABREU, Luciano Aronne. Getúlio Vargas: a constituição de um mito (1928-30). Porto Alegre: Edpucrs, 1997. AFONSO, Wilson. Ildo Meneghetti: governador do Estado, presidente do Inter, nunca perdeu eleição. Único político a derrotar Brizola nas urnas. 2. ed. Porto Alegre: Tchê/RSB, 1984. AIRES DE CASAL, Manuel. Província do Rio Grande do Sul, ou de São Pedro. In: AIRES DE CASAL, Manuel. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Cultura, 1943. tomo I. ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de. Pequena história da formação social brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1981. ALMEIDA, Mário. A Revolução dos Caranguejos, 11/09/2003. Índio quer apito, 22/08/2003, Coletiva.net ALVIM, Newton. Pinheiro Machado. 2. ed. Porto Alegre: IEL, 1996. AMARAL, Anselmo F. Os campos neutrais. Porto Alegre: Grafisilk, 1973. AMICIS, Edmondo De. Sull’Oceano. Itália: Garzanti, 1996. ANAIS DO ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. v. 1-9. Porto Alegre, 1978-85. (Coleção Varela). ANTONACCI, Maria Antonieta. RS: as oposições & a Revolução de 1923. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981. ARARIPE, Tristão de Alencar. Guerra civil no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 1986. ARAÚJO E SILVA, Domingos de. Dicionário histórico e geographico da província de S. Pedro [...]. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1865. ARMITAGE, John. (1807-1856). História do Brasil: desde a chegada da real família de Bragança, em 1808, até a abdicação do imperador d. Pedro I, em 1831. 6. ed. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: INL, 1977. ASSIS BRASIL, Cecília de. Diário de Cecília de Assis Brasil: período 1916-1928. 2. ed. Introd., sel. e notas de C. Reverbel. Porto Alegre: L&PM, 1983. ASSIS BRASIL, J. F. de. Cultura dos campos: noções gerais de agricultura e especiais de alguns cultivos atualmente mais urgentes no Brasil . 4. ed. Porto Alegre: Governo do Estado do Rio Grande do Sul, Caixa Econômica Estadual, 1977. ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-1888). Dissertação (Mestrado em História) - PUCRS, Porto Alegre, 1995. AZARA, Félix. Memoria sobre el estado rural del Río de la Plata en 1801. En: CAMPAL, Esteban. Azara y su legado al Uruguay. Montevideo: Banda Oriental, 1969. AZEVEDO, Thales. Italianos e gaúchos. Porto Alegre: Movimento, 1975.

442

BAARSCH, Marius. Estrutura e desenvolvimento econômico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Sulina, 1959. BAER, W. A industrialização e o desenvolvimento econômico do Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1983. BAKOS, Margaret. RS: escravismo e abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados da bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai – da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. 2. ed. São Paulo: Ensaio; Brasília: UnB, 1995. _______. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil - 1961-1964. 7. ed. rev. e ampl. Brasília: EdiUnB; Rio de Janeiro: Revan, 2001. _______. Brasil-Estados Unidos: a rivalidade emergente - 1950-1988. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. BANDEIRA, Pedro Silveira. O crescimento do sul e as tendências da distribuição geográfica do crescimento da economia brasileira 1940-1980. Porto Alegre: FEE, 1988. BARBOSA, M.; ZENILDA, M. (Org.). Dyonelio Machado. Porto Alegre: Prefeitura de Porto Alegre, 1995. (Cadernos Porto & Vírgula, 10). BARCELLOS, Rubens de. Estudos rio-grandenses: motivos de história e de literatura. Coligidos e seleciondos por Mansueto Bernardi e Moysés Vellinho. Porto Alegre: Globo, 1955. BASTOS, Manuel Estevão Fernandes. A estrada da Laguna ao Rio Grande. In: CONGRESSO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA SUL RIO-GRANDENSE, 2. Anais... Porto Alegre: Globo, 1937. Separata. BECKER, Dom João. A religião e a pátria em face das ideologias modernas. 2. ed. Porto Alegre: Typografia do Centro, 1939. BECKER, I. I. B. O índio kaingáng no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: EdiUnisinos, 1995. _______. Os índios charrua e minuano na Antiga Banda Oriental do Uruguai. São Leopoldo: EdiUnisinos, 2002. BECKER, Klaus. Alemães e descendentes do Rio Grande do Sul na Guerra do Paraguai. Canoas: Hilgert, 1968. BENEVIDES, Maria Victoria; DUTRA, Olivio. Orçamento participativo e socialismo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. BERGAMASCHI, Heloisa; GIRON, L. Colônia: um conceito controverso. Caxias do Sul: Educs, 1996. BERNARDI, Mansueto. A Guerra dos Farrapos. Porto Alegre: Sulina, 1981. 6. v. BERTUSSI, P. I. et al. A arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. BETTAMIO, Sebastião Francisco. Notícia particular do continente do Rio Grande do Sul (1780). Revista do Instituto Histórico e Geographico brasileiro, tomo XXI, 3º trim., p. 239-299, 1858.

443

BEVERINI, G. B. Appunti e osservazioni del Cav. [...]. R. Console in Porto Alegre. Aprile 1912. Bollettino dell´Emigrazione, Roma: Cartiere Centrali, ano XII, n. 10, p. 1048-1141, 15 ago. 1913. BEZERRA, Holien Gonçalves. O jogo do poder: revolução paulista de 32. São Paulo: Moderna, 1988. BILHÃO, Isabel. Rivalidades e solidariedades no movimento operário. Porto Alegre: EdPUC, 1999. BRANDI, Paulo. Vargas: da vida para a história. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. BRANT, Felisberto Caldeira (visconde de Barbacena). História da Campanha do Sul em 1827: Batalha de Ituzaingó. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, t. 49, 2o trim. 1886. BRASIL, Assis. A Guerra dos Farrapos: história da República Riograndense. Rio de Janeiro: Adersen, [s. d.]. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. O segundo consenso de Waschingon e a quaseestagnação da economia brasileira. (Revisado em dezembro de 2002). Disponível em: http://www. bresserpereira. org. br/ BROTTO, Emerson. Revisitando o PCB: uma visão a partir do norte do Rio Grande do Sul (1922/1948). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2005. BROWN, Marechal de Campo Gustavo Henrique. Defesa e relatório do marechal de campo Gustavo Henrique Brown perante o Conselho de Guerra. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Tipografia do Centro, ano VI, I e II trim. 1926. BRUM, Nilo Bairros de. Caminhos do sul. Porto Alegre: Metrópole, 1999. BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos guaranis. Porto Alegre: Sulina; Caxias do Sul: UCS; Porto Alegre: EST, 1978. CABRINI, Angelo. Emigrazione ed emigranti: manuale. Bologna: Nicola Zanichelli, 1911. CAGGIANI, Ivo. Flores da Cunha: biografia. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996. CALMON, Pedro. O rei filósofo: a vida de D. Pedro II. São Paulo: CEN, 1938. CALÓGERAS, J. Pandiá (1870-1934). A política exterior do Império. Brasília: Senado Federal, 1998. II. CAMARGO, Fernando da Silva. O malón de 1801: a Guerra das Laranjas e suas implicações na América Meridional. Passo Fundo: Clio Livros, 2001. CAMPOS, Derocina Alves. Flores da Cunha versus Getúlio Vargas: da união ao rompimento. Dissertação (Mestrado em História) - PUCRS, Porto Alegre, 1995. CAMPOS, Valério; MAESTRI, Flora. João Goulart. 4. ed. Porto Alegre: Tchê!/RBS, 1985. CARBONI, Florence. Babel colonial: instalação e integração linguística da imigração italiana no Rio Grande do Sul. História: Debates e Tendências, Passo Fundo: UPF, v. 5, n. 1, p. 33-61, jul. 2004.

444

_______. Língua, formação e identidade nacional: algumas considerações sobre a questão linguística na região Colonial Italiana. In: CEM. Luz e sombras: ensaios de interpretação marxista. Porto Alegre: EdUFRGS, 1997. p. 281-294. CARBONI, Florence; MAESTRI, Mário. Mi son talian, grassie a Dio! Globalização, nacionalidade, identidade étnica e irredentismo linguístico na região Colonial Italiana do RS. Passo Fundo: Ediupf, 1999. _______. Raízes italianas do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UdiUPF; Porto Alegre: Acirs, 2000. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. _______. O modelo político brasileiro: e outros ensaios. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972. CARNEIRO, David. História da Guerra Cisplatina: Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1983. CARNEIRO, J. Fernando. A antropofagia entre os índios do Brasil. Acta Americana, México, v. 3, p. 159-84, 1947. CARNEIRO, Luiz Carlos; PENNA, Rejane. Porto Alegre de aldeia a metrópole. Porto Alegre: Marsiaj Oliveira; Oficina da História, 1992. CARNEIRO, Newton Luis Garcia. A identidade inacabada: o regionalismo político no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. _______. No Extremo Sul, uma elite diferenciada. In: MAESTRI, Mário; BRAZIL, M. C. Peões, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil. Passo Fundo: UPF Editora, 2009. t. 1. p. 134-165. CARONE, Edgar. A República Velha: instituições e classes sociais. São Paulo: Difel, 1975. _______. A República Velha. Evolução política. São Paulo: Difel, 1971. CASTELLANOS, Alfredo R. Breve historia de la ganadería en el Uruguay. Montevideo: Banco de Crédito, 1972. CASTRO, Carmen. Ferro de brasa, tacho de cobre, puxados úmidos: cotidianos das mulheres escravizadas em Porto Alegre. Curso de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do RS. CASTRO, Celso et al. (Org.) Dossiê Geisl. 3. ed. Rio de Janeiro: EdiFGV, 2002. CATTANI, David. Fórum social mundial: a construção de um mundo melhor. Porto Alegre: EdiUFRGS; Petrópolis: Vozes, 2001. CERVANTES, Rejane Marli. A crise política de 1932 no RS: o papel de Flores da Cunha. Dissertação (Mestrado em História) - PUCRS, Porto Alegre, 1988. CERVO, Amado Luiz. As relações históricas entre o Brasil e a Itália: o papel da diplomacia. Brasília: EdUnB; São Paulo: Instituto Italiano de Cultura, 1992. CESAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul: período colonial. Porto Alegre: Globo, 1970.

445

_______. O conde de Piratini e a estância da música: administração de um latifúndio rio-grandense em 1832. Porto Alegre: Est; IEL; EdiIUCS, 1978. CHAVES, Antônio J. G. Memórias ecônomo-políticas: sobre a administração pública do Brasil. Porto Alegre: Erus, 1978. CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. CINQUANTENARIO della Colonizzazione Italiana nel Stato de Rio Grande del Sud. Porto Alegre: Globo, 1925. 2. v. 446 e 495 p. SANTA VITÓRIA DO PALMAR. Código de posturas. Lei nº 1056 de 22 de junho de 1876. COLUSSI, Eliane Lúcia. A maçonaria no século XIX. 2. ed. Passo Fundo: Ediupf, 2000. CONRAD, R. A pós-abolição: a reação dos fazendeiros e a queda do Império. (ex. datilografado). _______. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975. CONRAD, Robert E. Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. CONSTITUIÇÕES brasileiras: 1934. Distrito Federal: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001. _______. 1937. 2. ed. Distrito Federal: Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001. CONSTITUIÇÕES Sul-Riograndenses. 1843-1947. Edição comemorativa do 16o aniversário da promulgação da Constituição do Estado. Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1963. COPSTEIN, Rafael. Subsídios ao estudo da escravatura no Sul do Estado. Boletim Gaúcho de Geografia, Porto Alegre, jul. 1977. CORAZZA, Gentil. Sistema financeiro (e desenvolvimento) do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: FEE, 2002. p. 491-516. Mimeografado. Disponível em: http://www.fee. tche.br/ sitefee /download /eeg/1/mesa_1_corazza.pdf. CORESTTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no séc. XIX. Dissertação (Mestrado em História) - UFF, Rio de Janeiro, 1983. CORRÊA, S. Faria. Serro Alegre: revolução riograndense de 1932. [s. l.]: [s. ed.], 1933. CORTE, P. L’Italia all’estero nell’ultimo decennio. Studi dell’avv. cav. Estratto dal volume V dell’inchiesta parlamentare sulla marina mercantile. Roma: Eredi Botta, 1882. CORTÉS, Carlos E. Política gaúcha (1930-1964). Trad. de A. Caldwell de Farias. Apres. René E. Gertz. Porto Alegre: EdiUPF (no prelo). CORTESE, Dilse. Ulisses va in America: história, historiografia e mitos da imigração italiana no RS (1875-1914). Passo Fundo: EdiUPF, 2002. COSTA E SILVA, Riograndino da. Notas à margem da história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1968.

446

COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 2. ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1982. COSTA, Rovílio; DE BONI, Luís A. Os italianos do Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre: EST-SLB; Caxias do Sul: UCS; Porto Alegre: Vozes, 1982. COUTO, Jorge. A construção do Brasil. Lisboa: Cosmos, 1998. COUTY, Louis. A erva mate e o charque. 2. ed. Pelotas: Seiva, 2000. CUNHA, M. C. da (Org.). História dos índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília: CNPq, 1992. D’ORMANO, Paul Baptiste. Um barão na província: apêndice do Relatório Geral. 1863. Porto Alegre: Iel/Edipucrs, 1996. DACANAL, José H.; GONZAGA, Sergius. RS: imigração & colonização. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. _______ (Org.). RS: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979. DAGNINO, Evelina. Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002. DAL BOSCO, Setembrino. A fazenda pastoril no Rio Grande do Sul - 1780-1889. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2009. DALCIN, Ignácio. Em busca de uma terra sem males. Porto Alegre: Palmarinca; Porto Alegre: EST, 1993. DALLA VECCHIA, Agostinho Mário. Os filhos da escravidão: memórias dos descendentes de escravos no meridião do RS. Pelotas: EdiUFPel, 1993. _______. As noites e os dias: elementos para uma economia política da forma de produção semi-servil filhos de criação. Pelotas: EdiUFPEL, 2001. DALMAZO, Renato Antonio. Planejamento estadual e acumulação no Rio Grande do Sul – 1940-74. Porto Alegre: FEE, 1992. DALMOLIN, Cátia Regina Calegari. Em nome da pátria: as manifestações contra o Eixo em Santa Maria, no dia 18 de agosto de 1942. Dissertação (Mestrado em História) - UPF, Passo Fundo, 2006. DE BONI, Alberto. A presença italiana no Brasil. Porto Alegre: ES/Fondazione G. Agnelli, 1987-96. t. 3. DE BONI, Luis A. (Org.). La Mérica. Porto Alegre: EST, 1977. DIEHL, Astor Antônio. Círculos operários no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Edipucrs, 1990. DOMINGUES, Moacyr. A colônia do Sacramento e o sul do Brasil. Porto Alegre: Sulina/IEL, 1973. DOURADO, Ângelo. Voluntários do martírio: narrativa da Revolução de 1893. Narrativa da Revolução de 1893. [reprod. fac-similar, 1896]. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1977. DOWBOR, Ladislau. A formação do capitalismo dependente no Brasil. Lisboa: Prelo, 1977.

447

DREIFUSS, R. A. 1964: a conquista do estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981. DREYS, Nicolau Notícia Descritiva da província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo/IEL, 1961. ESTADO MAIOR GERAL (Compilação). Traços de ontem e de hoje da Brigada Militar. Enciclopédia Rio-Grandense. O Rio Grande atual. Canoas: Regional, 1957. p. 71-98. v. III. FACHEL, José Plínio Guimarães. As violências contra alemães e seus descendentes durante a Segunda Guerra Mundial em Pelotas e São Lourenço do Sul. Porto Alegre: Ed. UFPEL, 2002. FAGUNDES, L. K. et al. Memória da indústria gaúcha (1889-1930). Porto Alegre: EdUFRGS; FEE, 1987. FALAS do Trono. Desde o ano de 1823, até o ano de 1889. São Paulo: Melhoramentos, 1977. FALCÃO, Armando. Gaisel: do tentente ao presidente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. FERNANDES, Florestan. Organização social dos tupinambás. São Paulo: Progresso, (1948). FERRARI, Fernando. Mensagem renovadora. Porto Alegre: Globo, 1960. FERRAZ, João Machado. Os primeiros gaúchos da América portuguesa. Porto Alegre: IEL; Caxias do Sul, 1980. FERREIRA FILHO, Arthur. Ciclo castilhista na política rio-grandense. Enciclopédia Rio-Grandense. O Rio Grande atual. Canoas: Regional, 1957. v. III, p. 1-42. _______. Crônica dos tempos presentes. Enciclopédia Rio-Grandense. O Rio Grande atual. Canoas: Regional, 1957. v. III. p. 43-69. _______. História geral do Rio Grande do Sul - 1503-1974. Porto Alegre: Globo, 1974. FIABANI, Adelmir. Mata, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004). São Paulo: Expressão Popular, 2005. FLORES, Elio Chaves. No tempo das degolas: revoluções imperfeitas. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1966. FLORES, Moacyr (Org.). 1893-95: a revolução dos maragatos. Porto Alegre: Edipucrs, 1993. FLORES, Moacyr. Colonialismo e missões jesuíticas. Porto Alegre: EST, 1986. _______. Modelo político dos farrapos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1978. _______. Tropeirismo no Brasil. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1998. _______. Negros na Revolução Farroupilha: traição em Porongos e farsa em Ponche Verde. Porto Alegre: EST, 2004. FONSECA, Ari Veríssimo da. Tropeiros de mula: a ocupação do espaço; a dilatação das fronteiras. 2. ed. Passo Fundo: Berthier, 2004.

448

FONSECA, Pedro C. D. RS: economia & conflitos políticos na República Velha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. _______. Vargas: o capitalismo em construção - 1906-1954. São Paulo: Brasiliense, 1989. _______. Da hegemonia à crise do desenvolvimento: a história do BRDE. Porto Alegre: BRDE, 1988. FONTOURA, Antônio Vicente da. Diário. Porto Alegre: Educs; Sulina; Martins, 1984. FORTES, João Borges. Velhos caminhos do RS. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, IV semestre. FRANCO, Sérgio da Costa Franco. A pacificação de 1923: as negociações de Bagé. Porto Alegre: EdUFRGS; EdEST, 1996. _______. A criminalidade do escravo gaúcho no início do século XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do R. Grande do Sul, Porto Alegre, n. 125, 1989. _______. Porto Alegre: guia histórico. 2. ed. ampl. Porto Alegre: EdUFRGS, 1992. _______. Júlio de Castilhos e sua época. 3. ed. Porto Alegre: EdUFRGS, 1996. _______. Porto Alegre sitiada (1836-1840): um capítulo da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Sulina, 2000. FREITAS, A. Teixeira Jr. Terras e colonização. Rio de Janeiro: Garnier, 1882. FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: EST, 1980. _______. O homem que inventou a ditadura no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 1998. _______. O socialismo missioneiro. Porto Alegre: Movimento, 1982. FROSI, Maria; MIORANZA, Ciro. Dialetos italianos. Caxias do Sul: Educs, 1983. FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De província de São Pedro ao estado do Rio Grande do Sul. Censos do RS. 1803-1950. Porto Alegre, 1981. FUNDAÇÃO ULISSES GUIMARÃES. Gestão educacional no RS. Cadernos Educação, FUG/RS, Campanha Eleitoral, 2002, ano 1, n. 1, 2003. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959. GADELHA, Regina Maria A. F. As missões jesuítica do Itatim: um estudo das estruturas sócio-economicas coloniais do Paraguai, séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. GALVÃO, Eduardo. Elementos básicos da horticultura de subsistência indígena. Revista do Museu Paulista, Nova Série, São Paulo, XIV, p. 120-144, 1963. GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. _______. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. GATTIBONI, Rita. A escravidão urbana na cidade de Rio Grande. Dissertação (Mestrado em História) - PUCRS, Porto Alegre, 1993. GENRO, Tarso; SOUZA, Ubiratan de. Orçamento participativo: a experiência de Porto Alegre. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.

449

GERTZ, René E. O fascismo no sul do Brasil: germanismo, nazismo, integralismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. _______. O perigo alemão. Porto Alegre: EdUFRGS, 1991. _______. O Estado Novo no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF Editora, 2005. GILBERTI, Horácio C. E. Historia económica de la ganadería argentina. 2. ed. rev. e ampl. Buenos Aires: Solar, 1986. GIRON, Loraine Slomp. As sombras do littorio: o fascismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Parlenda, 1994. _______. Produção e reprodução: o trabalho da mulher na pequena propriedade. Caxias do Sul, julho de 1991. (Exemplar datiloscrito). GÓES, Maria Conceição de. A formação da classe trabalhadora: movimento anarquista no Rio de Janeiro - 1888-1911. Rio de Janeiro: Zahar; Fundação José Bonifácio, 1988. GONZAGA, Sergius; DACANAL, José Hildebrando (Org.) RS: economia & política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979. GORENDER, Jacob. Gênese e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. _______. O escravismo colonial. 5. ed. São Paulo: Ática, 1988. _______. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990. GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1978. GOULART, José Alípio. Tropas e tropeiros na formação do Brasil. Rio de Janeiro: Conquista, 1961. _______. Da palmatória ao patíbulo. Castigos de escravos no Brasil. Rio de Janeiro: Conquista, 1971. _______. Da fuga ao suicídio. Aspectos de rebeldia dos escravos no Brasil. Rio de Janeiro: Conquistas; INL, 1972. GRIJÓ, L. A. et al. Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EdiUFRGS, 2004. GRITTI, Isabel Rosa. Imigração judaica no Rio Grande do Sul: a Jewish Colonization Association e a colonização de quatro irmãos. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997. GUIMARÃES, Carlos M. Guimarães. Uma negação da ordem escravista: quilombos em Minas Gerais no Século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988. GUTIÉRREZ, Cláudio Antônio W. A guerrilha brancaleno. Porto Alegre: Proletra, 1999. GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPEL; Mundial, 1993. _______. Barro e sangue: mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas (17771888). Pelotas: EdiUFPel, 2004. HEINSFELD, A. A geopolítica de Rio Branco: as fronteiras nacionais e o isolamento argentino. Joaçaba: Edições Unoesc, 2003.

450

HERÉDIA, Vânia. Processo de industrialização na zona colonial italiana. Caxias do Sul: Educs, 1997. HIRATA, Helena et al. Movimento operário brasileiro - 1900-1979. Belo Horizonte: Vega, 1980. HOBSBAWM, Eric. J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. HOHLFELDT, Antonio; BUCKUP, Carolina. Última hora: populismo nacionalista nas páginas de um jornal. Porto Alegre: Sulina, 2002. HÖRMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850: descrição da Província do Rio Grande do Sul no Brasil Meridional. Porto Alegre: Luzzato; Eduni-Sul, 1986. IANNI, Constantino. Homens sem paz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. IANNI, Octávio. Estado e capitalismo: estrutura social e industrialismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. _______. O colapso do populismo no Brasil. 2. brasileira, 1971.

ed. Rio de Janeiro: Civilização

IOTTI, Luiza H. O olhar do poder: imigração italiana no Rio Grande do Sul de 1875 a 1914, através dos relatórios consulares. 2. ed. Caxias do Sul: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2001. ISABELLE, Arsène. (1807-1888). Viagem ao Rio Grande do Sul: 1833-1834. trad. e notas de Dante de Laytano. 2. ed. Porto Alegre: Martins, 1983. ISCRE. Industrialização do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Iscre, 1968. ISOLA, Ema. La esclavitud en el Uruguay: desde sus comienzos hasta su extinción. Montevideo: Comisión Nacional de Homenaje del Sesquicentenario de los Hechos Históricos de 1825, 1975. JACQUES, João Cezimbra. Costumes do Rio Grande do Sul: precedido de uma ligeira descrição física e de uma noção histórica (1883). Porto Alegre: Erus, 1979. _______. Costumes do Rio Grande do Sul: precedido de uma ligeira descrição física e de uma noção histórica. Porto Alegre: Erus, 1979. KAUTSKY, Karl. La cuestión agraria. México: Cultura Popular, 1978. KERN, Arno A. (Org.). Arqueologia pré-histórica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991. _______. Antecedentes indígenas. Porto Alegre: EdiUFRGS, 1994. _______. Arqueologia pré-histórica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991. _______. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. _______. Utopias e missões jesuíticas. Porto Alegre: EdiUFRGS, 1994. KLIEMANN, Luiza H. S. RS: terra & poder. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. _______. A ferrovia gaúcha e as diretrizes de “ordem e progresso” - 1905-1920. Dissertação (Mestrado em História) - PUCRS, Porto Alegre, 1977. KONRAD, Diorge A.; FORGS. A LEP e o inspetô reacionário: a negação da política como espaço da luta social (1933-1935). Aedos, n. 4, v. 2, nov. 2009. Disponível em: http://www.seer.ufrgs/aedos

451

_______. 1935: a Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: PUC-RS. Dissertação (Mestrado) (mimeo.). LACOMBE, Américo Jacobina. À sombra de Rui Barbosa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978. LAGEMANN, Eugênio. O Banco Pelotense. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. LANDO, Aldair Marli et al. RS: imigração & colonização. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. LANGARO, Cristiane Cauduro. O rosto da lei: quotidiano e relações interpessoais segundo a documentação judiciária. Caxias do Sul, 1930-1945; Passo Fundo: EdiImed, 2006. LAYTANO, Dante de. O negro e o espírito guerreiro. In: CONGRESSO DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS, II. Anais... Salvador, 1937. p. 95-117. LAZZARI, Beatriz Maria. Imigração e ideologia: reação do parlamento brasileiro à política de colonização e imigração (1850-1875). Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: EdiUCS, 1980. LAZZAROTTO, Valentim. Pobres construtores de riquezas. Caxias do Sul: Educs, 1981. LEITMAN, Spencer L. Raízes sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos: um capítulo da história do Brasil no século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1979. LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil. 1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979. LENIN, V. I. El imperialismo: fase superior del capitalismo. Buenos Aires: Lauturao, 1946. LESSA, Barbosa. Rio Grande do Sul: prazer em conhecê-lo – como surgiu o Rio Grande. 3. ed. rev. Porto Alegre: AGE, 2000. LIMA, Alcides. História popular do Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1935. LIMA, Manuel de Oliveira (1867-1928). O império brasileiro: 1821-1889. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989. LIMA, Solimar Oliveira. Braço forte: trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí. Passo Fundo: EdiUPF, 2005. _______. Triste pampa: resistência e punição de escravos em fontes judiciárias no RS - 1818-1833. Porto Alegre: EdiPUCRS/IEL, 1998. LONER, Beatriz Ana. Negros: organização e luta em Pelotas. História em Revista, UFPel, n. 5, p. 7-28, 1999. LOPEZ, Luiz Roberto. Revolução farroupilha: a revisão dos mitos gaúchos. Porto Alegre: Movimento, 1992. LORENZONI, Júlio. Memórias de um imigrante. Porto Alegre: Sulina, 1975. LOVE, Joseph L. O regionalismo gaúcho. São Paulo: Perspectiva, 1975. LUCAS, M. E.; Petersen, S. R. Antologia do movimento operário gaúcho: 1870-1937. Porto Alegre: EdUFRGS; Tchê!, 1992.

452

LUGONM Clovis. A república “comunista” cristã dos guaranis: 1610-1768. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. LUZ, Nícia Vilela. A luta pela industrialização do Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 1961. MABILDE, Pierre F. A. Booth. (c.1806-1982). Apontamentos sobre os indígenas selvagens da nação coroado dos matos da província do Rio Grande do Sul: 18361866. São Paulo: Ibrasa; Brasília: INL, Pró-memória, 1983. MACHADO, Paulo Pinheiro. A política de colonização do império. Porto Alegre: EdiUFRGS, 1999. MARCON, Telmo. Acampamento natalino: história da luta pela reforma agrária. Passo Fundo: Ediupf, 1997. MAESTRI, Mário José. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: Educs, 1984. _______. Servidão negra: trabalho e resistência no Brasil escravista. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. _______. Pampa negro: quilombos no Rio Grande do Sul. In: REIS, J. J.; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 291-331. _______. Uma história do Brasil: o Império – da Independência à Abolição. São Paulo: Contexto, 1996. _______. Nós, os ítalos-gaúchos. 2. ed. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 1998. _______. A coroa e o tronco: escravidão e o Estado nacional brasileiro. In: CENTRO DE ESTUDOS MARXISTAS. Fios de Ariadne: ensaios de interpretação marxista. Passo Fundo: Ediupf, 1999. p. 261-286. _______. A segunda morte de Castro Alves: genealogia crítica de um revisionismo. Passo Fundo: EdiUPF, 2000. _______. Cisnes negros: uma história da revolta da Chibata. São Paulo: Moderna, 2000. _______. O sobrado e o cativo: a arquitetura urbana erudita no Brasil escravista: o caso gaúcho. Passo Fundo: EdiUPF, 2001. _______. Deus é grande, o mato é maior: trabalho e resistência escrava no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EdiUPF, 2002. _______. História e literatura: O quatrilho, um caso de amor pela RCI. História, Debates e Tendências, Brasil: UPF, v. 5. n. 1, p. 9-32, jul. 2004. _______. Os senhores da serra: a colonização italiana do Rio Grande do Sul. 2. ed. rev. e ampl. Passo Fundo: EdiUPF, 2005. _______. CANDREVA, L. Antônio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário. 2. ed. corr. e ampl. São Paulo: Expressão Popular, 2004. _______. O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência e sociedade. 3. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: EdiUFRGS, 2006. MAESTRI, M. (Org.). O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: UPF Editora, 2008. (Malungo, 14).

453

MAESTRI, Mário; ORTIZ, Helen (Org.). Grilhão negro: ensaios sobre a escravidão colonial no Brasil. Passo Fundo: UPF Editora, 2009. MAESTRI, Mário; BRAZIL, M. C. Peões, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil. Passo Fundo: UPF Editora/CNPq, 2009. tomo 1. MAESTRI, Mário; LIMA, Solimar O. (Org.) Peões, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil. Passo Fundo: UPF Editora/CNPq, 2009. tomo 2. MANFROI, Olívio. A colonização italiana no Rio Grande do Sul: implicações econômicas, políticas e culturais. Porto Alegre: Grafosul; Instituto Estadual do Livro, 1975. MARÇAL, João Batista. Comunistas gaúchos: a vida de 31 militantes da classe operária. Porto Alegre: Tchê, 1986. MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do ciclo do charque. Porto Alegre: Edigal, 1987. MARTIN, Hardy Elmiro. Recortes do passado de Santa Cruz. Organizado por Olgário Vogt e Ana Carla Wünsch. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1999. MAUCH, Cláudia; VASCONCELLOS, Naira (Org.). Os alemães no sul do Brasil: cultura, etnicidade e história. Canoas: Ulbra, 1994. MEDEIROS, Borges de. O poder moderador na República presidencial. Prof. Paulo Brossard. Porto Alegre: Assembleia Legislativa, 1993. MEDEIROS, Laudelino T. O processo de urbanização no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IFCH-UFRGS, 1959. MELLO, João Manuel Cardoso de. O capitalismo tardio. São Paulo: Brasiliense, 1982. MELO FRANCO, Afonso Arinos de. História e teoria dos partidos políticos no Brasil. 3. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1974. METRAUX, Alfred. A religião dos tupinambás: e suas relações com as demais tribos tupi-guaranis. São Paulo: CEN, 1950. (Paris, 1928). MIRANDA, Marcia Eckert. Continente de São Pedro: administração pública no período colonial. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul; Corag, 2000. MONTI, Verônica A. O abolicionismo: 1844 – sua hora decisiva no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985. MONTOYA, Alfredo J. La ganaderia y la industria de salazón de carnes en el periodo. 1810-1862. Buenos Aires: El Coloquio, 1971. MOREIRA, Paulo Roberto. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano. Porto Alegre: EST, 2003. MOTA, C. Guilherme. 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1984. MOURA, Clóvis. Rebelião na senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Ciências Humanas, 1981. MÜLLER, Carlos Alves. A história econômica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Gazeta Mercantil, 1998.

454

NEUMANN, Eduardo. O trabalho guarani missioneiro no rio da Prata colônia: 1640-1750. Porto Alegre: Marins Livreiro, 1996. NOLL, M. I. et al. Estatísticas eleitorais comparativas do RS. 1945-1994. Porto Alegre: EdUFRGS, 1995. NONNENMACHER, Marisa Schneider. Aldeamento kaingang no RS: séc. XIX. Porto Alegre: Edipuc, 2000. NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). Carlos Marighella: o homem por trás do mito. São Paulo: EdiUnesp, 1999. OLIVEIRA, Clóvis Silveira de. Porto Alegre: a cidade e sua formação. 2. ed. Porto Alegre: Metrópole, 1993. OLIVEIRA, Maria Chambarelli. Achegas à história do rodoviarismo no Brasil. Rio de Janeiro: Memórias Futuras, 1986. OLIVEIRA, Saturnino de Souza e. Bosquejo histórico e documentado e negócios do Rio Grande. Porto Alegre: Comissão Executiva do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha; Subcomissão de Publicações e Concursos, 1985. OSÓRIO, Fernando Luiz. A cidade de Pelotas. Porto Alegre: Globo, 1962. PACHECO, Aliezer. O Partido Comunista Brasileiro. (1922-1964). São Paulo: AlfaÔmega, 1984. PALÁCIO, Ernesto. Historia de la Argentina. 1515-1943. Argentina: Pena Lillo, 1975. PALERMO, Eduardo R. Banda Norte: una historia de la Frontera Oriental: de índios, missioneros, contrabandistas y esclavos. Rivera: Yatay, 2001. _______. Tierra esclavizada: el norte uruguaio en la primera mitad del siglo 19. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2008. PEREIRA, André; WAGNER, Carlos Alberto. Monges barbudos & o massacre do Fundão. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981. PEREIRA, Luiz Carlos. Economia brasileira: uma introdução crítica. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. 34, 1998. PERROD, Enrico. Le colonie Brasiliane Conte D’Eu e Donna Isabella. Boletino Consolares, Roma: Ministero degli Affari Esteri, p. 297-320, 1883. PETRONE, Mari Thereza Schorer. O barão de Iguape: um empresário da época da Independência. São Paulo: CEN; Brasília: INL, 1976. _______. O imigrante e a pequena propriedade. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Tudo é história, 38). PILLA, Raul. Catecismo parlamentarista. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do RS, 1992. PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. (Visconde de São Leopoldo). Anais da província de São Pedro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. PINTO, Eduardo. (Reportagem) A revolução vista do Rio Grande do Sul. Revista do Globo, Porto Alegre, n. 872, p. 33-48, 9-22 maio 1964.

455

PORTO, Aurélio. História das missões orientais do Uruguai. Porto Alegre: Selbach, 1954. POSSAMAI, Paulo. Dall’Italia siamo partiti: a questão da identidade entre os imigrantes italianos e seus descendentes no Rio Grande do Sul. 1875-1945. Passo Fundo: EdiUPF, 2005. POZENATO, José Clemente. O quatrilho. 7. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. PRADO Jr., Caio. A formação do Brasil contemporâneo. Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1942. PRESTES, Anita Leocádia. A coluna Prestes. São Paulo: Brasiliense, 1990. _______. A coluna Prestes: uma epopéia brasileira. São Paulo: Moderna, 1995. _______. Luz Carlos Prestes e a Aliança Nacional Libertadora: os caminhos da luta antifascista no Brasil (1934-35). Petrópolis: Vozes, 1997. _______. Os militares e a reação republicana: as origens do tenentismo. Petrópolis: Vozes, 1994. _______. Tenentismo pós-30: continuidade ou ruptura? São Paulo: Paz e Terra, 1999. PRESTES, Lucinda Ferreira. A vila tropeira de Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba: aspectos socioeconômicos e arquitetura das classes dominantes (17501888). São Paulo: ProEditores, 1999. QUINTAS, Amaro. O sentido social da revolução Praieira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. RAMBO, Arthur Blásio. A Revolução Federalista e os teuto-brasileiros. Porto Alegre: EdUFRGS; São Leopoldo: Edunisinos, 1995. RECH, Tamara; RECH, Marco (Org.). Scrivere per non dimenticar: l’emigrazione di fine 800 nelle lettere della famiglia Rech Checonét. Feltre: Pilotto, 1996. REICHEL, Heloisa J. A indústria têxtil do RS: 1910-1930. Porto Alegre: Mercado Aberto/IEL, 1978. REIS, J. J. Rebeliões escravas no Brasil: a história do levante dos malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986. RELATÓRIO caminhos das tropas. Importância do tropeirismo na configuração urbano-espacial de Cruz Alta. [s. l.]: IPHAE/Secretaria da Cultura, [s. d.]. RELATÓRIO do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. [1850] O conselheiro Antônio Pimenta Bueno, na abertura da Assembleia Legislativa Provincial no 1o de outubro de 1850. Porto Alegre: Pomatelli, 1850. RELATÓRIO do estado da província do Rio Grande de São Pedro do Sul (1851). Apresentado ao Exmo. sr. Conde de Caxias pelo chefe de Divisão Pedro Pereira de Oliveira ao entregar-lhe a presidência da mesma província. Porto Alegre: Mercantil, 1851. RELATÓRIO do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu (1853). Na abertura da Assembleia Legislativa Provincial, em 6 de outubro de 1853. Porto Alegre: Mercantil, 1853. RELATÓRIO com que o vice-presidente Luiz Alves Leite de Oliveira Bello (1855). Entregou a presidência da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul ao Exmo. sr. Barão de Muritiba, no dia 26 de setembro de 1855.

456

RELATÓRIO com que o conselheiro barão de Muritiba entregou à presidência da Presidência da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul ao Exmo. sr. presidente e comandante das Armas, conselheiro e general Jerônimo Francisco Coelho, no dia 26 de abril de 1856. Porto Alegre: Mercantil, 1856 RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti. O discurso tenestista na Constituinte de 1933-1934: o binomio centralização/descentralziação. 2. ed. Passo Fundo: UPF Editora, 1998. REVERBEL, Carlos. Assis Brasil. 2. ed. Porto Alegre: IEL, 1996. _______. Maragatos & picapaus: guerra civil e degola no Rio Grande. 3. ed. Porto Alegre: L&PM, 1999. RIBEIRO, Darcy (Ed.). Suma etnológica brasileira. 2. ed. 1. Etnobiologia. Petrópolis: Vozes/Finep, 1987. _______. Suma etnológica brasileira. 2. ed. 2. Tecnologia Indígena. Petrópolis: Vozes/ Finep, 1987. _______. Suma etnológica brasileira. 2. ed. 3. Arte Índia. Petrópolis: Vozes/Finep, 1987. RIO GRANDE DO SUL Constituições Sul-riograndenses. 1843-1947. Edição comemorativa do 16º aniversário da promulgação da Constituição do Estado. Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1963. ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969. 2 v. _______. L’Administration de la province du Rio Grande do Sul de 1829 a 1847. Porto Alegre, 1961. RODERJAN, Roselys Vellozo. Raízes e pioneiros do Planalto Médio. Carazinho: Prefeitura Municipal de Carazinho/UPF/Diário da Manhã, 1991. RODRIGUES, Edgar. O 4º Congresso do Rio Grande do Sul visto por Domingos Passos. Disponível em: tttp://www.nodo50.org/insurgentes/textos/passos/ 10congresso. htm ROSCIO, Francisco João. Compêndio noticioso do continente do Rio Grande de São Pedro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do RS, ano 22, v. III/IV, trim., n. 87, p. 29-56, 1942. RÜCKERT, Aldomar A. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do RS. 1827-1931. Passo Fundo: EdiUPF, 1997. RÜDIGER, Selbat. Colonização e propriedade de terras no Rio Grande do Sul. Séc. XVIII. Porto Alegre: IEL, 1969. SAES, Décio. A formação do Estado burguês no Brasil (1888-1891). 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Erus; Martins Livreiro, 1987. SÁNCHEZ, Félix R. Orçamento participativo: teoria e prática. São Paulo: Cortez, 2002. SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. (Col. Reinventar a emancipação social, 1).

457

SANTOS, L. M. S.; VIANNA, M. L. C.; BARROSO, V. L. M. (Org.). Bom Jesus e o tropeirismo no Brasil Meridional. Porto Alegre: EST, 1995. SANTOS, Lucila Maria Sgarbi et al. Bom Jesus: e o tropeirismo no Brasil Meridional. Porto Alegre: EST, 1995. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 11. ed. Portugal: Europa América, 1987. SARDI, Miguel Chose. Avaporú. Algunas fuentes documentales para el estudio de la antropofagía guarani. Revista del Ateneu Paraguayo, Asunción, n. 3, p. 16-66, 1964. SCALABRINI, Angelo. Sulla emigrazione e colonizzazione italiana specialmente nell’America del Sud. Roma: Bolletino Della Società Geografica Italiana, 1890. p. 453-475. SCHILLING, Paulo R. A crise econômica no Rio Grande do Sul. I. A crise agropecuária. Porto Alegre: Difusão de Cultura Técnica, 1961. SCHIRMER, Lauro. Flores da Cunha: de corpo inteiro. Porto Alegre: RBS Publicações, 2007. SCHLEE, Andrey Rosenthal. O ecletismo na arquitetura pelotense até as décadas de 30 e 40. Dissertação (Mestrado) - UFRGS, Porto Alegre, 1994. p. 19. SCHNEIDER, Regina Portella. A instrução pública no Rio Grande do Sul. 17701889. Porto Alegre: Ufrgs/EST, 1993. _______. Flores da Cunha: o último gaúcho lendário. Porto Alegre: EST/Martins Livreiro, 1981. SCHNEIDER, Sérgio. Agricultura familiar e industrialização: pluriatividade e descentralização industrial no RS. Porto Alegre: EdiUFRGS, 1999. SEBESTA, Giuseppe. Museo degli usi e costumi della gente trentina. 2. ed. Trento: Museo degli [...], 1993. SECOMBE, Wally. Le trasformazioni della famiglia nell’Europa nord-occidentale. Firenze: La Nuova Italia, 1997. SEVERAL, Rejane da Silveira. A guerra guaranítica. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1995. SGANZERLA, Cláudia Mara. A lei do silêncio: repressão e nacionalização no Estado Novo em Guaporé. Passo Fundo: EdiUPF/EST, 2001. SILVA NETO, Serafim. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1951. SILVA, Hélio. 1964: golpe ou contragolpe? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. SILVA, Nery L. A. da. Antigas fazendas: arquitetura rural do Planalto Médio, Séc. XIX. Passo Fundo: Edição do Autor, 2003. SILVA, Róger Costa da. Muzungas: consumo e manuseio de químicas por escravos e libertos no Rio Grande do Sul. (1828-1888). Pelotas: Educat, 2001. SIMÃO, Ana Regina F. Resistência e acomodação: a escravidão urbana em Pelotas (1822-1850). Passo Fundo: EdiUPF, 2002. (Malungo, 9).

458

SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil (1500-1820). 8. ed. São Paulo: CEN, 1978. SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo: CEN, 1977. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SOARES, Mozart Pereira. O positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto Comte. Porto Alegre: AGE; EdUFRGS, 1998. SORIO JÚNIOR, Humberto. A ciência do atraso: índices de lotação pecuária no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EdiUPF, 2000. SOUSA, Octávio Tarquínio de. (1889-1959). A vida de D. Pedro I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. tomo 1 e 2. _______. Bernardo Pereira de Vasconcelos: história dos fundadores do Império do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. SOUZA, Alda; SOARES, Floriano. Leonel Brizola. 3. ed. Porto Alegre: Techê!/RBS, 1985. SOUZA, Célia Ferraz de; MÜLLER, Dóris Maria. Porto Alegre e sua evolução urbana. Porto Alegre: EdiUFRGS, 1998. SOUZA, Jorge Prata. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Mauad: Adesa, 1996. SPALDING, Walter. Pecuária, charque e charqueadores no Rio Grande do Sul. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 91/92, p. 123-140, 1943. _______. Pequena história de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967. p. 143. STÉDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava gente: la lunga marcia del Movimento Senza Terra del Brasile dal 1984 al 2000. Pistoia: Rete Resch, 2000. STEIN, Stanley J. Grandeza e decadência do café no vale do Paraíba. São Paulo: Brasiliense, 1961. SYMANSKY, Luís Cláudio. Espaço privado e vida material em Porto Alegre no século XIX. Porto Alegre: EdiPUCRS, 1998. SZMRECSANY, Tomás. História econômica do Brasil contemporâneo. São Paulo: Hucitec, 1997. TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. 4. ed. São Paulo: Globo, 1999. TAVARES, Francisco Munis. História da Revolução de Pernambuco em 1817. 3. ed. Recife: Instituto Archeológico e Geográfico Pernambucano, 1917. TAVARES, Luís Henrique Dias. A Independência do Brasil na Bahia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. TAVARES, Maria da Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. TEDESCO, João Carlos. Colonos, carreteiros e comerciantes. Porto Alegre: EST, 2000.

459

TEDESCO, João Carlos; ZANINI, M. (Org.). Migrantes ao sul do Brasil. Santa Maria: Editora UFSM, 2010. TESCHAUER, Carlos. História do Rio Grande do Sul dos dois primeiros séculos. 2. ed. São Leopoldo: EdiUnisinos, 2002. 3. v. TOURON, Lucia Sala; TORRE, Nelson de la; RODRIGUES, Julio Carlos. Artigas: tierra y revolución. 2. ed. Montevideo: Arca, 1967. TRAMONTINI, Marcos J. A organização social dos imigrantes: a colônia de São Leopoldo na fase pioneira. 1824-1850. São Leopoldo: EdiUnisinos, 2000. TRINDADE, J. B. Tropeiros. São Paulo: Editoração e Comunicações, 1992. VANINI, Ismael. O sexo, o vinho e o diabo: sexualidade e demografia na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul. 2. ed. Passo Fundo: EdiUPF, 2003. VARELA, Alfredo. Revoluções cisplatinas: a República Riograndense. I. Porto: Chardron, 1915. VARGAS, Índio. A guerrilheira: mistério e morte na ilha do Presídio. Porto Alegre: Age, 2005. VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. VELLOSO, Diderot M. Aspectos da indústria no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Instituto de Estudos Sociais, Políticos e Econômicos da PUCRS, dezembro de 1971. (Série Ensaios e pesquisas, 4). VIEIRA, Eurípedes Falcão; RAMGEL, Susana Salum. Geografia econômica do Rio Grande do Sul: espacialidade/temporalidade na organização econômica riograndense. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto, 1993. VOGT, Olgário P. A produção de fumo em Santa Cruz do Sul - RS: 1849-1993. Santa Cruz do Sul: EdiUnisc, 1997. WAGNER, Carlos; PEREIRA, André. Fernando Ferrari: escritor, economista, deputado. Dissidente do trabalhismo liderado por Jango e Brizola. Criador do Estatuto que deu origem ao Funrural. 2. ed. Porto Alegre: Tchê/RSB, 1985. (Esses gaúchos, 25). WAIBEL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 1979. WEIMER, Günter. Manifesto do Centro de Tradições Arquitetônicos Gaúchos. Proposta de discussão. In: GONZAGA, Sergius; FISCHER, Luís Augusto. Nós, os gaúchos. 3. ed. Porto Alegre: EdUFRGS, 1995. p. 195-199. WEIMER, Günter. Trabalho escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS/ Sagra, 1991. WIEDERSPAHN, Henrique Oscar. Bento Gonçalves e as guerras de Artigas. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1979. _______. João Manuel de Lima e Silva. Porto Alegre: Educs; Sulina; EST, 1984. _______. O convênio de Ponche Verde. Porto Alegre: EST, 1980. ZAIDAN FILHO, Michel. Comunistas em céu aberto: 1922-1930. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989.

460

ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (18401860). Passo Fundo: UPF, 2002. (Malungo, 6). ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho. 1850-1920. Ijuí: EdiIjuí, 1997. ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2. ed. São Paulo: Hucitec; EdiUSP, 1990.

461

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.