Breve introdução ao livro dos Salmos

May 28, 2017 | Autor: Jovanir Lage | Categoria: Book of Psalms, The Psalms of Lament
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Breve introdução ao livro dos Salmos O cânon da Bíblia Hebraica está dividido em três seções maiores denominadas tanak, que na verdade é a sigla representada pelas letras iniciais de cada uma destas divisões: a) torah - Instrução; b) nevi’im - Profetas; c) ketuvim – Escritos1. A torah, que nas Bíblias cristãs é conhecida como Pentateuco, compreende os cinco primeiros livros do Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Estes são considerados o conjunto de instruções dadas por Deus ao seu povo2. Os Profetas, nevi’im, subdividem-se em duas partes: a) Profetas Anteriores, que compreendem: Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis e b) Profetas Posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. Na terceira parte do cânon, os Escritos, ketuvim, englobam: Salmos, Jó, Provérbios, Rute, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Lamentações, Ester, Daniel, Esdras, Neemias, 1 e 2 Crônicas. O livro dos Salmos, juntamente com Jó e Provérbios, forma o trio de abertura desta terceira seção da Bíblia Hebraica. A presença do livro de Salmos depois da Torá e dos Profetas, na Bíblia Hebraica, mostra uma continuidade no pensamento judaico. Enquanto a Torá é a instrução dada por Deus e os Profetas orientam o povo a não se desviarem desta instrução, os Salmos são orações e cânticos litúrgicos que reforçam a fé, o desejo e a esperança 3 neste caminho de que não se pode desviar. Devemos, no entanto, considerar que os Salmos são uma síntese de toda a Bíblia. Neles, a história da salvação, da natureza, dos sentimentos, da esperança, dos sofrimentos, é transformada em oração, que sintetiza a vida individual e coletiva do povo de Israel. Na Bíblia Hebraica, o livro de Salmos recebe o título de

~yLihiT.

(tehilim), o qual

podemos traduzir como cânticos de louvores, adoração ou hinos. Há também outras

1

FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica: Introdução ao Texto Massorético, guia introdutório para a Bíblia Hebraica Stuttgartensia. 2.ed. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 513, 524, 529, 532. 2 SILVA, Valmor da. Os Salmos como literatura. Ribla, 45, Petrópolis: Vozes, p.9-23, 2003 3 Ver em: FREITAS FARIA, Jacir de. “Esperança dos pobres nos Salmos”. Ribla, 39, Petrópolis: Vozes, 2001, p.61-73.

designações para o livro dos Salmos que são encontradas na literatura patrística:

rp,se

(sefer tehilim) livro de louvores;

Na verdade o título preferido é característica, plural masculina, de

~yLihiT.

~yLiiTi ; !yLiiTi ou !yLiiTi rp,se . ~yLihiT.,

hL'hiT.

cujo nome deriva de uma formação

que é o termo técnico para um grupo de

salmos destinados aos cânticos de louvores. Embora sua forma plural usual é o feminino

tALhiT,. nome dado à um grupo específico de Salmos4,

usa-se o ~yLihiT. como um nome

exclusivo para a coleção de cânticos dos 150 Salmos. A designação “Salmos” ocorre em citações encontradas no Novo Testamento yalmw/n (Lc. 20.42; 24.44; At 1.20) e remonta à versão grega do Antigo Testamento, a septuagita (LXX), que foi feita à partir do século III a.C. na diáspora judaica de Alexandria5. O termo yalmw/n provavelmente provém do hebraico

rAmz>mi

mizmor, que

significa um cântico para instrumentos de cordas.6 Esta terminologia aparece 57 vezes no livro dos Salmos, como título individual. Na tradição cristã tal frequência contribuiu para que este título se convertesse por extensão, no nome de todo o livro. Outro nome pelo qual é conhecido o livro dos Salmos é saltério, um termo de origem grega yalth,rion do Códex Alexandrinus, que também se refere a instrumentos de cordas que acompanhavam os cânticos litúrgicos.7

1.Divisões do saltério O saltério está dividido em cinco partes8. Estas divisões são chamadas de “livros”. São compilações de canções, orações e poemas para uso litúrgico, que chegaram a nós delimitados pelo trabalho editorial ao qual foram submetidos9.

4

KRAUS, Hans-Joachin. Los Salmos. Salmos 1-59. Vol. 1. Trad. Constantino Ruiz-Garrido. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1993, p. 13, 37 e 63 5 WEISER, Arthur. Os Salmos. Trad. Edwino A. Royer, João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1994, p.10 6

rAmz>mi

n.[m.] (Melodia tecnicamente desenvolvida para os Salmos) Cf. BROWN, Francis, DRIVER, Samuel Rolles, BRIGGS, Charles Augustus. BDB – A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament. Boston, New York and Chicago: Houghton, Mifflin and Company the Riverside Press, 1906, p.274.; (t.t. Salmos) Cf. KIRST, Nelson, et.al. Dicionário Hebraico-português & Aramaico-português. 18º Ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/vozes, 2004, p.121. 7 KRAUS, Los Salmos, p. 14 8 Cf. BALLARINI, Teodorico e Venanzio Reali. A poética hebraica e os Salmos. Petrópolis: Editora vozes, 1985, p. 41-42. SIQUEIRA, Tércio Machado. Hinos do povo de Deus. Série Em Marcha, São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1990, p.23

Hans-Joachin Kraus propõe um quadro que oferece a visão do conjunto destes cinco livros com suas divisões. No final de cada um deles, estão expressas, fórmulas doxológicas10, que marcam os limites de cada livro. Livro I (Sl 1 - 41) com sua forma final: Bendito seja o Javé, Deus de Israel de século em século. Amém e Amém (Sl 41.14) Livro II (Sl 42 - 72). Bendito seja para sempre o seu nome glorioso; e encha-se toda a terra da sua glória. Amém e Amém. (Sl 72.19) Livro III (Sl 73 - 89). Bendito seja Javé para sempre. Amém, e Amém. (Sl 89.53) Livro IV (Sl 90 – 106). Bendito seja Javé Deus de Israel, de eternidade em eternidade, e todo o povo diga: Amém. Aleluia! (Sl 106.48) Livro V (Sl 107 – 150). Tudo quanto tem fôlego louve a Javé. Aleluia! (Sl 150.6)

Se compararmos estas fórmulas, veremos que o Salmo 150 está fora do escopo das outras doxologias, não correspondendo às fórmulas finais dos Salmos 41.14; 72.19; 89.53; 106.48. Weiser11 e Gunkel12, argumentam que no último livro, todo o Salmo 150 tem a função de doxologia final. Para Gerstenberger13, os redatores finais podem ter adicionado os Salmos 1-2 e 150, como Salmos introdutórios e finais, funcionando como uma espécie de moldura para o saltério. De qualquer forma, a explicação para este problema está na ideia de se criar nos Salmos, uma espécie de compilação de livros. A divisão do saltério em cinco livros é a tentativa de se fazer, no processo de canonização, algo semelhante ao Pentateuco. Obviamente, esta afirmação se refere à divisão formal e ao processo técnico de canonização dos Salmos. Para a construção de uma analogia substancial entre o Pentateuco e o saltério, os resultados exigem uma série de correspondências mais complexas.14

9

WEISER, Os Salmos, p. 10-11. KRAUS, Los Salmos, p. 21-22 11 WEISER, Os Salmos, p.11 12 GUNKEL, Hermann. Introduction to Psalms: The Genres of the Religious Lyric of Israel. Trad. James D. Nogalski. Macon, Georgia: Mercer University Press, 1998, p. 334 13 GERSTENBERGER, S. Erhard. Psalms Part I: With an Introduction to Cultic Poetry. FOTL 14. Grand Rapids: Eerdmans, 1988, p 30. 14 WEISER, Os Salmos, p. 10-15 e KRAUS, Los Salmos, p. 23 10

2. Coleções do saltério De fato, existem diversas coleções de salmos presente no saltério que pertencem a épocas distintas. Erhard S. Gerstenberger defende que durante a história da religião israelita, estas coleções foram compiladas e rearranjadas, produzindo ao longo de séculos construções diferentes do saltério, conforme explica o quadro a seguir.15

Pré-Exílio Antigo

Pré-Exílio Tardio

Exílio

Pós-Exílio

Salmos e liturgias individuais; pequenas e indistinguíveis coleções para uso litúrgico

Sl 42-29: Coleção Coraíta

Sl 3-42: Coleção Davídica

Sl 1-2: Moldura

Sl 78-86: Coleção de Asafe

Sl 42-83: Coleção Eloísta

Sl 3-41: Livro I

Sl 96-99: Entronização de Javé

Sl 51-62: Coleção Davídica

Sl 42-72: Livro II

Sl 111-118: Salmos

Sl 108-110:

Sl 73-89: Livro III

de Aleluia

Coleção Davídica

Sl 120-134: Salmos

Sl 138 - 145:

Sl 90-106: Livro IV

de Subida

Coleção Davídica

Sl 107-149: Livro V Sl 150: Moldura

Entre as compilações parciais que encontramos temos o Saltério eloísta, onde predomina o nome divino

~yhiªl{a/

’elohim, que ocupa lugar de destaque dentro da

coleção principal do saltério. O saltério eloísta é formado pelo grupo dos salmos estabelecidos nos livros II e III (Sl 42-89) onde estão localizadas as coleções “Salmos dos filhos de Coré coleção

xr:qo)-ynEb.li

xr:qo-) ynEb.li

(42-49) e Salmos de Asafe

(73-83). A

aparece como apêndice nos salmos 84-89, estabelecendo assim, os

limites da divisão eloísta.

15

@s"ïa'ñl. rAmªz>mi

GERSTENBERGER, Psalms Part I, p. 29

As compilações formadas pelos outros livros do saltério são destinadas à Coleção javista, estruturada pelos Salmos do Livro I e pelo grupo de salmos que abrangem os Livros IV e V, se subdividindo em agrupamentos como: Salmos para Davi, Coleções de hinos de louvor a Javé, Salmos de aleluia e hinos com epígrafes salomônicos.

3. Camadas literárias do Saltério Como vimos, a gênese do saltério se deu de forma lenta, a partir do agrupamento de textos litúrgicos que constituíam peças autônomas para vários ritos coletivos. Ao longo da história de sua transmissão, grupos de textos foram ajuntados, mas continuavam sua aplicação individual em determinados contextos ou cerimônias. Em sua forma textual, os Salmos podem ser vistos como peças literárias que se acomodam em três itens:16 a classificação por tipos ou gêneros, a linguagem poética e o poema individual. As atribuições nominais e referências a eventos históricos, que nos permitem reconhecer o texto em sua estrutura poética, são perceptíveis. Schökel17 considera que a maioria dos Salmos seja de cunho litúrgico musical, enquanto que, a súplica individual, pode originar gêneros e subgêneros diferenciados. O Saltério com seus poemas tão variados suscitou indagações sobre o uso e função de tais textos em determinados momentos e cerimônias. A pergunta pelo Sitz im Leben (lugar na vida) de tais poemas, se tornou o ponto mais importante da pesquisa que buscava responder estas perguntas. Na tentativa de entender os lugares ou situações vivenciais destes poemas tão variados, surge a “Crítica da Forma”. O método desenvolvido por Hermann Gunkel e Sigmund Mowinckel, considera os salmos divididos por gêneros18, dos quais se destacam: a) Lamentação, que incluem queixas e ações de graças, constituindo o maior grupo de salmos; b) Cânticos de vitória, embora pouco representado no saltério, é um gênero hínico relacionado aos clãs e tribos em Israel, ( veja em Sl 68; 124; 129)19; c) Salmos de louvor, canções de agradecimento a Deus pela colheita e pela salvação em épocas de seca, fome, epidemias e inundações; d) Salmos reais, textos usados nos cultos da comunidade com certa glorificação nostálgica e expectativas messiânicas do retorno ao reinado davídico; e) 16

SCHÖKEL, Luiz Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: Salmos 1-72. Tradução de João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1996, p 81-82 17 SCHÖKEL, Luiz Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: Salmos 1-72, p. 82 18 GUNKEL, p.1-21 19 GERSTENBERGER, Psalms Part I, p. 10

Discurso de sabedoria, que marcam as comunidades oriundas do pós-exílio, com um sistema simbólico de fé centrado nos costumes e comportamentos religiosos e no saber guardar as orientações da torah.20 Claus Westermann toma como ponto de partida o tema da compilação do saltério e sugere uma classificação mais simples: os Lamentos, com seu Sitz im Leben e os Salmos de louvor, conhecidos como

. O autor observa que, das compilações

estabelecidas segundo as perspectivas de diversos grupos, os Lamentos e os Salmos de louvor são os gêneros21 que aparecem com maior frequência no saltério, formando assim, dois grandes grupos de poemas. Além de considerar os Salmos numa perspectiva literária, Westermann os considerava também na perspectiva religiosa. O lamento é o gênero mais frequente no Saltério, ocupando 58 composições em estilo individual ou comunitário. Por sua característica litúrgica e seu volume de ocorrências, a lamentação tornou-se tema de grande importância para pesquisadores. Grande parte da literatura que visa o estudo do lamento concentra-se no estudo dos gêneros literários do Saltério, que tem sua origem na Crítica da Forma.

3.1. Os métodos de pesquisa a) A Crítica da forma Com sua classificação dos Salmos, Gunkel foi capaz de superar o positivismo histórico e literário de seu tempo22, pois, enquanto teólogos e exegetas se preocupavam em determinar um autor ou poeta específico para cada Salmo, a Crítica da Forma voltava seus olhos para o lugar vivencial dos Salmos de lamentação 23. A despeito de sua autoria, constatava que estes Salmos nasciam de um ambiente marcado pelas desigualdades e injustiças. O sofrimento do salmista tem sua origem nestes temas. Esta é a principal característica deste tipo de literatura.

20

Dentre os gêneros desenvolvidos por Hermann Gunkel, Erhard S. Gerstenberger destaca estes cinco como principais. Cf. GERSTENBERGER, Erhard S. Gênese do Saltério. Revista Caminhos. Goiânia: Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião PUC Goiás. v8, n1, p.11-28, Jan.-Jun. 2010. Outra referência também pode ser encontrada em: KIDNER, Derek. Salmos 1-72. Introdução e comentário. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Editora Vida nova, 1980, p.19. 21 WESTERMANN, Claus. Praise and lament in the Psalms. Edinburgh: T&T Clarck, 1981, p. 15-35 22 Cf. COETZEE, J. H. “A survey of research on the Psalms of lamentation”. Old Testament Essays. Pretória: OTSSA, v.5, n.2, p. 151-174, 1992, p.156. 23 GUNKEL, Hermann. The Psalms. A Form-Critical Introduction. Philadelphia: Fortress Press, 1967, p.54

Neste método, a vida sociocultural é o ponto mais importante da pesquisa. Ao observar os fenômenos linguísticos, temáticos e emocionais das funções sociais que ocupam a vida cotidiana, o pesquisador se aproxima da dimensão social que implica o fenômeno religioso. Para Gunkel o cenário histórico dos Salmos deveria ser pesquisado na vida cúltica 24 da comunidade, tendo em vista suas formas literárias, seu modo de vida e seu sentimento religioso. Embora a Crítica da Forma não seja a única perspectiva de leitura dos Salmos, o estudo dos gêneros literários do saltério é dominante. Ergue-se como divisor de águas, tornando-se base para trabalhos posteriores. A Crítica da Forma abriu caminho para novas pesquisas e abordagens de aprofundamento na análise dos Salmos, principalmente na lamentação. b) Estudos críticos literários A interpretação dos Salmos, observados a partir do cenário cúltico da comunidade de Israel, dominou as principais escolas de pensamento das décadas de 50 e 60, tendo como expoentes três pesquisadores: Sigmund Mowinckel, Arthur Weiser e HansJoachim Kraus25. Discípulo de Gunkel, Mowinckel se tornou o principal precursor do estudo do Sitz im Leben, aprofundando a ideia de que o indivíduo deve ser observado dentro de um todo comunitário e ideológico. Os elementos cultuais eram a fonte de pesquisa para o significado do sofrimento na vida do indivíduo e da comunidade. Mowinckel entendia que os indivíduos não produzem a comunidade, mas são produzidos por ela26. Arthur Weiser dá um passo à frente e conclui que, somente o método das formas, não é suficiente para explicar a natureza da poesia dos Salmos do Antigo Testamento. Para o autor, o estudo das tradições e do culto é mais promissor, pois tem a possibilidade de agregar, além da história das formas, a história das tradições que se manifestam nos

24

GUNKEL, Hermann and Joachim Begrich. Introduction to Psalms. The Genres of the Religious Lyric of Israel. Translated by James D. Nogalski. Macon, Georgia: Mercer University Press, 1998, p. 318 25 Há ainda outros expoentes desta escola (Escola Escandinava). São aqueles que veem os Salmos de lamentação como orações reais, onde o rei é representante de Deus ou da nação. Cf. COETZEE, p.156157. 26 MOWINCKEL, Sigmund. The Psalms in Israel's Worship. Nashville: Abingdon Press, 1962, p.13-15

Salmos. Deste modo, torna-se possível obter uma imagem mais clara e mais objetiva das relações externas e internas que se desenvolviam na sociedade27. Devido à importância dos estudos da cultura e literatura do Antigo Oriente Médio, para a linguagem de lamentação em Israel, houve um impulso na descoberta de novos estilos retóricos, estruturais e literários na pesquisa dos Salmos. Os estudos críticos-literários começaram a ganhar espaço na pesquisa dos Salmos, contrapondo-se às análises da Crítica da Forma. Neste novo modelo crítico, as representações ficam por conta das pesquisas que trabalham estas novas perspectivas da poesia hebraica. Um dos expoentes deste novo período das pesquisas modernas é Hans-Joachim Kraus. Suas obras marcam o início da “teologia do lamento”. Questionando o uso do termo Sitz im Leben, por entender que seu significado serve apenas para descobrir o lugar cúltico dos salmos, Kraus expande seus trabalhos, buscando compreender o desenvolvimento dos salmos, fazendo a junção entre a Crítica da Forma e os agrupamentos temáticos do saltério. Considerando os temas como “cânticos de oração, cânticos de louvor, cânticos reais, ação de graças, festividades”28, o autor busca sentido nos estudos que pretendem considerar a pessoa e a atividade de Deus em relação aos seres humanos. Kraus aposta na prudente correlação entre a configuração literária e formal dos Salmos e a situação do culto, que possivelmente se faz adjacente. c) Novos caminhos O declínio do estudo do Sitz im Leben, de forma exclusiva para um ambiente cultual, fez com que estudiosos do tema, revitalizassem suas pesquisas a fim de compreenderem melhor o lugar em que os Salmos de lamentação estão vinculados. A busca pela definição de um lugar vivencial mais concreto forçou os estudiosos a caminharem na direção da seguinte hipótese: o suplicante estaria aguardando uma decisão formal de uma jurisprudência local diante de seu problema e sofrimento. Esta jurisprudência estaria associada à liturgia do culto que pedia a direção e veredicto pelo sofredor a partir da consulta e intervenção direta de Deus.29

27

WEISER, Os Salmos, 1994. p. 12-13 KRAUS, Los Salmos. 1993, p.61 29 COETZEE, 1992, p. 161 28

Gerstenberger verifica que o lugar vivencial dos Salmos individuais pertence aos ritos privados, orientados para o templo, nos quais a canção de lamento do suplicante representava o clímax desta liturgia30. Para o autor, os Salmos de lamentação individual seriam usados em rituais de exorcismos e curas, por profissionais do templo. Tércio Machado Siqueira observa que os caminhos abertos por Gunkel foram posteriormente ampliados e pavimentados por Gerstenberger. O avanço nas investigações trouxe importantes contribuições para a compreensão da lamentação como parte da cultura do povo hebreu. Originalmente, os Salmos de lamentação são provenientes dos grupos primitivos da sociedade israelita31 e refletem situações de grave perigo que trouxeram dores e sofrimentos no contexto familiar. O estudo de Gerstenberger tem como foco as comunidades que estavam por trás dos Salmos de lamentação. A partir destas considerações é possível traçar um avanço na prática da lamentação no Antigo Israel. Certamente ela começa no âmbito da religiosidade familiar, transpondose para dentro das estruturas cúlticas. Com o passar dos anos, principalmente com o evento da destruição do Templo na época do exílio, os lamentos adquirem características de produção individual. Depois, especialmente no pós-exílio, onde a sacralidade das escrituras absorve a sacralidade da palavra proferida32, a lamentação se ajusta a um tipo de penitência no culto padrão de Israel.

4. Os Salmos de Lamentação A lamentação, que pode ser de caráter comunitário ou individual, “integra como componente essencial o processo da libertação do julgo egípcio e de outros casos semelhantes”33, os gritos dos oprimidos, são clamores que consequentemente procedem à salvação, e portanto, fazem deste gênero, ponto importante na Teologia do Antigo Testamento.

30

GERSTENBERGER, Gênese do Saltério. 2010, p.23. SIQUEIRA, Tércio Machado. El Lamento. RIBLA. Quito, n. 52, p. 23-30, 2005, p. 24. 32 Cf. ALBERTZ, Rainer. História de la Religión de Israel em tempos del Antiguo Testamento. vol. 2. Desde el Exilio hasta la época de los Macabeos. Trad. Dionisio Míguez. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 474-477. 33 WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 144 31

No Saltério, a lamentação é o gênero que está representado em maior número, compondo quase um terço dos Salmos reconhecidos pelo cânon bíblico. Há também muitos paralelos fora do Antigo Testamento, especialmente na literatura babilônica34. Claus Westermann, em seu artigo, começa criticando a falta de ênfase que se dá ao lamento em estudos do Antigo Testamento. Apesar dos trabalhos realizados por bons pesquisadores como Gerhard Von Rad e Walter Zimmerli, o autor considera que, mesmo que os eventos narrativos sobre a libertação do Egito sejam fundamentais para a Teologia do Antigo Testamento, é preciso estabelecer o lugar do lamento na literatura bíblica: O Antigo Testamento não pode fixar Deus em uma única soteriologia; só é possível falar de atos salvadores de Deus, dentro de uma série de eventos que envolvem necessariamente, algum tipo de troca verbal entre Deus e o homem. Este último inclui tanto o grito do homem em perigo, como a resposta de louvor que os salvos fazem a Deus.35

A causa principal para a pouca atenção que se dava à Teologia do Lamento, é identificada por Westermann como certo preconceito ocidental que contrasta com a soteriologia das Escrituras. a) Características e conteúdo A diferença entre lamentação fúnebre e queixa nascida de tribulação, parecem idênticos nos idiomas modernos, mas são fenômenos distintos na antiguidade. Enquanto a elegia funerária tem os olhos voltados para trás, a lamentação do atribulado olha para frente, para a sobrevivência, para o término do sofrimento. Assim como o sofrimento é parte da vida do ser humano desde sua origem, a lamentação é a reação mais apropriada da pessoa que sofre. Em sua forma mais primitiva, a queixa acontecia no ambiente familiar e só mais tarde, transformou-se no principal recurso litúrgico do culto. Do ponto de vista do sujeito dos Salmos de lamentação temos duas classes, que associadas a outros gêneros como as intercessões pelo rei e as ações de graças, compõem as lamentações coletivas e lamentações individuais. Estas classes compreendem os seguintes Salmos: 3-7; 9-14; 17; 22; 25-28; 31; 35-36; 38; 40-44; 51; 34

WEISER, Os Salmos,1994, p. 43. WESTERMANN, Claus. “The Role of Lament in the Old Testament”. University of Heidelberg: Interpretation, n. 28. p. 20-38. 1974, p. 20. 35

54-57; 59-61; 64; 69-71; 74; 79-80; 83; 85-86; 88-89; 94; 102; 108-109; 120; 123; 130; 137; 140-14336. Na estrutura formativa, tanto das lamentações coletivas, quanto das lamentações individuais, temos a seguinte composição: invocação, lamento, súplica (geralmente com confissão de pecados ou afirmação de inocência), afirmação de fé, apelo, maldição contra inimigos, reconhecimento da resposta divina, voto ou promessa, bênçãos e ação de graças.37 A sequência destes elementos não atende a um padrão estrutural e também não são usadas da mesma forma, variam de acordo com as múltiplas aflições que constituem o conteúdo das lamentações. As lamentações revelam uma característica multifacetária da vida pública e particular. Dentre os muitos motivos de cunho material e espiritual, seus principais motivos são: calamidades gerais como má colheita, epidemias, guerras, fome, inimigos, ou aflições suportadas pelo indivíduo como doença, perseguição, zombaria, dúvidas ou peso pelo pecado. Westermann argumenta que, “os Salmos lamentosos, enquanto variadíssimos, ostentam um esquema constante e sempre repetido: Súplica introdutória, queixa, afirmação de fé, súplica e ação de graças”38. Esta estrutura revela em sua dinâmica o verdadeiro sentido do lamento. Não interessa ao Salmista a simples reclamação de seu sofrimento. Antes de ser uma descrição egocêntrica que se esgotaria na queixa, o Salmista amplia sua súplica, direcionando-a para aquele que poderá alterar sua condição. A uniformidade das frases, usadas em paralelismos e muitas vezes com repetições cansativas, apesar de testemunharem de forma poética os dramas da vida, certamente revela o uso constante das lamentações no culto. Aqui, o comunitário prevalece sobre o individual e a lamentação assume dupla finalidade, é ao mesmo tempo oração e testemunho. Enquanto a primeira se dirige à Deus, a segunda se volta para a comunidade.

36

Somam-se 58 Salmos tendo como base os levantamentos realizados por Hermann Gunkel, que posteriormente foram ampliados por Artur Weiser e Erhard S. Gerstenberger. Cf. GUNKEL, Introduction to Psalms, p. 82-83 e 121; WEISER, Os Salmos, p. 43-44; GERSTENBERGER, Psalms Part I e Part II. 37 Cf. GERSTENBERGER, Psalms Part I, p. 12 38 WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas. 1987, p. 146

b) Lamentação individual A lamentação composta pela queixa individual constitui a categoria de cânticos usada com maior extensão nos saltério. Adotando a classificação de Gunkel e J. Begrich, Gerstenberger destaca os seguintes Salmos com leves modificações: 3-7; 11-12; 13; 17; 22; 26-28; 31; 35; 38-39; 42-43; 51; 54-57; 59; 61; 63-70; 71; 86; 88; 102; 109; 120; 130; 140-143.39 Segundo Gunkel, o indivíduo que lamenta é um personagem concreto 40. Gerstenberger, porém, com base em investigações posteriores, destaca que é cada vez mais claro que nestes cânticos, não há sinais de isolamento, mas o orante participa na linguagem de oração da comunidade. Tanto a vida pessoal quanto a vida comunitária, devem ser discernidas nitidamente nas lamentações, pois revelam a autenticidade das expressões humanas. O orante ao expressar seu lamento, o faz diante dos temores de perigo que ameaçam sua vida, sua relação com Deus e com a comunidade, sem os quais ele não pode subsistir. Os mesmos aspectos antropológicos acontecem nas esferas dos conhecimentos teológicos, psicológicos e sociológicos expressos no Antigo Testamento. c) Lamentação comunitária O ritual da Lamentação comunitária destaca-se um pouco mais no contexto narrativo e profético do Antigo Testamento. Com sérios perigos eminentes como seca, doenças, pragas e invasões, além de dias especiais para jejum, luto, sacrifícios e orações, as Lamentações coletivas41 tornam-se um chamado especial para o culto no santuário, (cf. Js 7.6; Jz 20.23-26; 1Sm 7.6; 1Rs 8.33). Nos Salmos 74 e 79, onde o objeto da lamentação do povo é a destruição e a profanação do templo por inimigos gentios, nota-se este tipo especial de culto de lamentação. A Festa da Aliança, onde celebrava-se a renovação dos atos salvíficos de Javé, oferecia exatamente em tempo de tribulação o contexto para a lamentação coletiva, com seu protesto de fidelidade (Sl. 44.9-21; 80.19)42. O livro de Salmos mostra diferentes estilos do gênero lamentação, como poemas revelando tristeza pela velhice, idade avançada, agressão de pessoas malvadas, entre 39

GERSTENBERGER, Psalms Part. 1, p.14 GUNKEL, Introduction to Psalms, p. 122-123 41 GUNKEL, Introduction to Psalms, p. 82-83 42 WEISER, Os Salmos, p. 45 40

outros motivos. Assim, o lamento deixou de ser uma simples reclamação ou um murmúrio, para ser um lamento acompanhado de esperança na ação libertadora de Javé. Não há lamento, nos salmos bíblicos, que a afirmação de fé não esteja presente43.

43

SIQUEIRA, Tércio Machado. Culto nos períodos exílico e pós-exílico. Estudos Bíblicos. http://alemdameraletra.blogspot.com.br/. Acesso em 07/07/2016.

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