Breve Memória do Movimento Estudantil (em construção)

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Sem Título José Eduardo Martins 7 de junho de 2014

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A Invasão do CRUSP Naquele ano de 1979 o movimento dos estudantes da usp caminhava para lutar pelas suas reconquistas de espaços perdidos em 68. O Diretório central dos estudantes ja havia sido reerguido em 77. No meio de 79, ocorreu o congresso de reconstrução da união nacional dos estudantes em salvador da bahia. Restava ainda a retomada da moradia estudantil para os estudantes de graduação, proibida desde a expulso dos estudantes em 1968 por tanques do exercito. Os estudantes anarquistas haviam montado um acampamento em frente a reitoria da universidade pela retomada do crusp (conjunto residencial da usp). Este acampamento durou umas três semanas com os estudantes enfrentando as chuvas de verão. Já estávamos em novembro (?) de 1979. Filó, chaveco, espanhol, entre outros, lideravam este acampamento. Era tudo meio rasta e meio zen. Pouco parecido com as intervenções ’clean’ das correntes estudantis tradicionais como refazendo-caminhando e libelu. Esta primeira sustentada pela ação popular (ap)e pcdob e a última por uma pequena organização clandestina autodenominada osi (organização socialista internacionalista) de linha trotskysta com tutela de um grupo francês cujos dirigentes eram cria direta de leon trotsky. Este era o caso de pierre lambert, ainda vivo. Ao som de muito reggae, os estudantes passavam as noites de verão em volta da fogueira: 2

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Bem que eu me lembro A gente sentado ali: junto a fogueirinha de papel (...) Amigos presos, amigos perdidos assim: Pra nunca mais... Bob marley traduziria todos os sentimentos envolvidos no acampamento melhor que raimundo fagner, gilberto gil ou caetano. (beatles?)... Os estudantes invasores vasculharam cada palmo daqueles dois últimos andares do bloco A. Talvez por preguiça ou cansaço entrei no primeiro apartamento, imediatamente a direita do último lance de escadas do quinto andar. Era um apartamento ampliando. Ocupava o espaço padrão, uma ponta do corredor de circulação e metade da sala de vivência do andar. Desse modo ele teria um quarto a mais que os demais apartamentos. Sai e escrevi na porta sete nomes com um pincel atômico: tigre, formiga, baiano, ike, chang, paulinho, gabor. Esse procedimento servia como uma urinada no portal, demarcando o espaço. Andei pelo Corredor e olhei o apartamento dos outros invasores. Várias portas apresentavam marcas de mijadas no portal. Depois de uma discussão apaixonada no corredor com um grupo de anarquistas fanáticos. Caminhei ate a escola politécnica. La encontrei o grupo de libelus e simpatizantes. Comecamos a conjecturar sobre o passado e o futuro do crusp. Mixa, um rapaz arredondado e vermelho, conhecido como garoto-champanhe, ufanava sobre o crusp ter sido o bercario de inúmeras células comunistas na década de 60. — Por quê vocês acham que “eles” invadiram o crusp? — Dizia alto se referindo aos militares. — É porque aquilo era um celeiro de células comunistas. Nós [os troskos] temos que ocupar aquilo de qualquer jeito! Gabor, baiano e chang eram três estudantes da escola de engenharia eletrica. Tratava-se de um úngaro, um japonês e um coreano, repartidos assim, se se preferir, pelas etnias. Formiga, ike e eu estávamos terminando o primeiro ano de engenharia e formava-

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mos um grupo de origem étnica mineiro-calabriano, zona lestinoportuga e libano-francês-judeu, nesta ordem. A invasão do crusp deu um certo tom naquele belíssimo ano estudantil de 1979. Ano de muita atividade. Muita greve e mobilização, o congresso de reconstrução da une em junho (?) em salvador da bahia e a invasão do conjunto residencial que estaria para acontecer em novembro. Isso seria ótimo. Além do que, poderíamos estar mais perto do centro poliesportivo da universidade. Local predileto de todos. Os prédios do conjunto residencial da usp ocupam a várzea do rio pinheiros no bairro do butantan. Foi concebido dentro do projeto grandioso da universidade para abrigar os estudantes mas nunca foi utilizado como tal ate então. É formado por uma série de blocos de 5 andares com 9 apartamentos e uma sala de vivência por andar. Os edifícios alinham-se em duas fileiras paralelas que lembram a esplanada dos ministérios de Brasília. Cada apartamento ofecere uma área de 50 metros quadrados, divididos em um quarto, uma sala de estudos e um banheiro. Com o evento dos jogos panamericanos de 63, os blocos de moradia foram terminados apressadamente para alojar os atletas estrangeiros. A urgência da operação fez com que as divisórias dos apartamentos fossem feitas de lambril de madeira, expondo-as aos riscos de incêndio e outros problemas menores, como a possibilidade das paredes externas poderem ceder a um golpe mais forte, principalmente depois de um tempo de envelhecimento. Com o fim dos jogos panamericanos, os estudantes ocuparam os prédios colocando-os no desempenho de suas funções primordiais. Isso até 1968. Neste fatídico ano, o exército resolveu desalojar o que para eles era um “antro de comunistas”. De fato, muitas células de partidos clandestinos funcionariam ali, mas o exagero dos milicos logo se veria. Tanques de guerra foram colocados em colinas próximas aos blocos de moradia e os estudantes foram intimados a esvaziar os prédios sob a ameaça de um canhonaço. Sairam todos! Vários estudantes foram presos sendo um deles um japonês, estudante de engenharia, que possuia

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um livro com o suspeitíssimo título de BOMBAS HIDRÁULICAS: “só podia ser terrorista”... imaginou o sargento. Depois desta, a moradia estudantil só seria permitida a estudantes estrangeiros de pós-graduação ou algum outro de outros estados brasileiros: “é um pessoal mais pacífico” imaginou o general. Deste então alguns prédios estavam abandonados à ruína ou ocupados por orgãos públicos estranhos a universidade; um deles era o projeto rondom que ocupou o bloco A. Este bloco era o primeiro mais próximo do rio Pinheiros. Entre ele e o rio estava localizada a raia olímpica, única em toda a capital paulistana. Tinha-se uma belíssima vista dali. Por alguma articulação da burocracia universitária, o Projeto Rondom desocupou todo o quinto e sexto andares deste bloco onde estivera instalado. Haver um espaco vazio, motivou os estudantes de 79 a organizarem o movimento pro reabertura do CRUSP, que culminou com o acampamento em frente a reitoria. A noite no acampamento, os estudantes se divertiam e conversavam sobre assuntos que rondavam temas da política proletária mundial. Dormia-se pouco, fumavasse muita maconha e ouvia-se muita reggae (e fazia-se sexo, furtivamente, é claro). A insignia de sexo, droga e rock’n rool foi pouco alterada, como era necessário a qualquer jovem naqueles novos anos incríveis. Não sabiam, porque apesar de estarem na dianteira, os estudantes do acampamento dos “sem-crusp” não dirigiam absolutamente os rumos do movimento. A diretoria do Diretório Central dos Estudantes era ocupada por integrantes da corrente liberdade e luta (libelu, que é como, jocosamente, a chamavam seus adversários políticos. Uma referência ao bilu-bilu, tratamento dado às crianças de colo). Os dirigentes da Libelu não haviam dado conta da importância desta singela reivindicação dos estudantes mas não demoraram a fazer. No final da manhã de ??/??/1979, na hora do almoço, em frente ao restaurante universitário, que ficava entre os blocos do conjunto residencial, foi convocada uma assembléia estudantil para discutir a retomada da moradia. Uns 500 estudantes de reuniram e, sem muita controvér-

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sia, votaram pela imediata invasão dos quinto e sexto andares do bloco A, deixados vagos pelo projeto rondom. Toda a assembléia se levantou e saiu em passeata pelo corredor que separa as fileiras de blocos rumo ao objeto da invasão. Para se chegar aos andares de cima, é preciso alçar uma escadaria de concreto armado de uns 2,5 metros de largura. O prédio tinha elevadores que não funcionavam. Chegando ao quinto e sexto andares, os estudantes foram se esplalhando, visitando os apartamentos e fazendo seus planos de ocupação. Os andares haviam sofrido pequenas alterações para adaptá-los aos destinos de um orgão burocrático. Entretanto, a divisão original ainda poderia ser recuperada. Uma alteração visível estava nos dois primeiros apartamentos mais próximos da escada, os de numeração mais baixa como 501, 502, 601 e 602. Estes haviam incorporado a sala de vivência, de tal modo que cada um teria 2 quartos, um a mais que no projeto original. A invasão do bloco A ocorrera numa sexta-feira(?). No sábado e domingo seguintes, os estudantes começaram a arrumar a nova casa. Um dos blocos de moradia, o bloco F, tinha assistido a um início de reforma, que foi abandonado em função das proibições do governo militar quanto ao alojar estudantes no campus da universidade. Neste bloco várias peças de armários embutidos eram mantidas armazenadas, ainda intactas e desmontadas. Quando perceberam isso, os estudantes passaram a transferir estas peças para os apartamentos do bloco A. A burocracia do projeto rondom retirara os antigos armários. Foi um formigueiro. Estudantes subiam e desciam escadas, em duplas, carregando partes dos armários. Enquanto outros faziam as montagens em seus apartamentos ou auxiliavam moradores menos chegados ao manejo do martelo e da chave de fenda. No apartamento 501, o formiga havia providenciado o transporte das peças para montar os armários nos dois quartos. Havia trazido da casa de meus pais duas camas turcas e dois colchões de paina; coisas raras, vindas do sul do minas gerais. Trouxera, tam-

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bém, um chuveiro e uma chave de fusíveis para serem instalados no banheiro. Enquanto eram feitas as montagens nos quartos, outros moradores cuidavam da ligação do chuveiro. Não havia nenhum ponto com tensão de 220V, necessário à ligação, de modo que um par de fios foi sendo embutido pelo conduíte da fiação e levado até a caixa de distribuição de energia elétrica, que podia ser acessava no corredor por uma portinhola de meio metro de largura por um de altura, na divisa dos apartamentos 501 e 502. Coisa excelente para o trabalho de um operário anão. Depois que todo o serviço de rosquear o chuveiro, instalar a chave de segurança e esticar o fio até a caixa de distribuição estava realizado, faltava alguém para fazer a ligação definitiva em algum lugar na caixa de distribuição. Formiga, ike, paulinho e eu éramos estudandes primeiro-anistas, não tínhamos optado por nenhuma especilidade das engenharias. Baiano era estudante de eletrônica e gabor estudante de eletrotécnica. Com esses perfis curriculares, quem poderia se habilitar para fazer a ligação, trabalhando num espaço apertado e tendo que executar a tarefa com a rede de distribuição ainda viva? Isso era tarefa para um engenheiro eletricista, vale dizer: eletrotécnico. Gabor, descendente de úngaros, era a gozação e a distração em pessoa. Depois de se esgueirar pela portinhola da caixa de distribuição e reclamar do pouco espaço e da escuridão, finalmente se pôs em ação com a pontas dos fios numa mão e a chave de fenda na outra. Nós aguardávamos no corredor, anciosos por poder tomar um belo banho quente. Os banheiros do crusp eram bem aconchegantes e exóticos. Como deveriam servir para o uso de três estudantes, na concepção arquitetônica original, ele tinha três compartimentos separados. Num, que ficava no pequeno corredor de entrada, haviam duas pias para a lavagem das louças, já que as roupas poderia ser levadas até a lavanderia central do conjunto residencial, onde se encontravam máquinas industriais. No outro compartimento, fechados por paredes e uma porta, estava o vaso

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sanitário e o velho e bom bide, peça em desuso, lamentavelmente, depois do advento do papel higiênico. Assim, podia-se cagar com absoluta privacidade. Outro detalhe ali era a acústica, facilidada pelas paredes de chapas de cimento amianto. Essa facilidade me levou a tocar meus primeiros (e únicos) acordes no violão, com o único objetivo de poder cantar e cagar naquele banheiro. A terceira e última peça era o box onde o nosso chuveiro aguardava frio o serviço no nosso bravo companheiro eletricista. Todos nos, no corredor, que esperávamos pelo gabor em frente a portinhola da caixa de distribuição vimos quando um relâmpago reluziu como um flash e um estrondo pulou da portinhola, numa baforada seca. Dava pra ver um esqueleto se iluminado dentro dos lambris. Demorou ainda um tempo até que o gabor respondesse a alguma pergunta. Poderia estar morto com uma detonação daquelas. Todos ficaram preocupados e o grupo em frente a portinhola começava a aumentar com a chegada de outros moradores assustados. E, eis que sai o nosso eletricista trapalhão com um sorriso bonachão no rosto e uma chave de fenda chamuscada na mão. Esse era o melhor gabor... Mas ele havia dado conta do recado. Depois me deliciei com um banho vaporento naquele velho e excelente lorenzeti 2200W que havia recuperado, na casa de meus pais. Os armários ficaram uma beleza. Eram feitos de madeira de lei. Cada um deles, tinha três módulos independentes; um para cada estudante. No quarto que ocupava parte da sala de vivência, instalamo-nos gabor, paulinho e eu. No outro, estavam ike, baiano e formiga. O Chang havia deixado um colchonete, mas mudou de idéia sobre se mudar para lá. Para um dos quartos, gabor trouxera uma cama que se juntou às duas camas turcas e uma mesa escritório, tomada por empréstimo da faculdade de letras, clandestinamente instalada em áreas que pertenciam ao projeto original da moradia estudantil. No outro quarto, uma cama beliche apareceu e o Formiga se esmeirava costruíndo uma cama com uma porta e outros partes de tábuas de compensado que ele serrava com seu serrote Ramada.

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No corredor, o elevador que estava quebrado no dia da invasão, começava a subir e descer. Alguns estudantes haviam estado na casa das máquinas e colocaram-no em movimento. E’ incrivel o que a determinação faz com um bando de jovens. Afinal a rale podia mostrar o seu valor. Mas o conhecimento que contrói, também desmonta. No sexto andar, uma central telefônica, acondicionada em um armário de aço de dois metros de altura, que abrigava milhares de chaves magnéticas, havia sido depenada peça por peça, só sobrando a casca. O que iriam fazer com tantos relés, ninguém poderia saber. O Spuny, estudante de engenharia de um outro apartamento, havia construído uma chave elétrica, com parte daquela central, para poder abrir e trancar o seu quarto. Foi a única coisa útil que se pode ver. Podíamos ter uma central telefônica funcionando. Seria o maximo! “CRUSP, BLOCO A, bom dia!... Um momento por favor...”. Mas, é bobagem, aquela central era já antiquada e a burocracia universitária jamais forneceria as linhas telefônicas necessárias para essa operação. Teve bom destino aquela pôrra de central. Assim como também teve bom destino um aparelho de ar condicionado, cuja parte de aquecimento foi parar no 501 aquecendo-nos nas noites frias. Faria um frio horrível naquela várzea de rio, nas próximas noites de inverno. Naqueles apartamentos com divisórias simples de madeira, o vento leste uivaria firme nas janelas de vidro, na fachada do edifício de frente para a raia olímpica. Da janela do 501 a gente podia ver a noite cair e um boeing passar razante sobre o trilho do maltratado pinheiros, rumo ao congonhas internacional com os seus incaíveis electras da ponte aérea. No outro lado do rio, a marginal alardeava o monótono rush da paulicéia. A cidade escorria, adensando la pelos lados da panamericana onde termina a planura e começa a imensa colina até a heitor penteado e doutor arnaldo, copiando a lentidão do relevo da teodoro. Conforme a geografia ganhava altura, os sobrados se transformavam em edifícios e os edifícios em espigões e torres de teve nos arredores da paulista. Parado ali, todos os matizes das

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horas se apresentavam. O amarelo ofuscante transitava para o laranja; do laranja quente ao vermelho fogo, o vermelho para o azul prussiano e, por fim, o manto azul da noite cobria a cidade mililuminada. Se não se procurasse uma distração, alguém poderia sentir um frio estranho na espinha da alma, fruto de uma pequena solidão madura, vinda de pensamentos sobre sampa e aquela calma que atingia a cidade, depois de um dia maluco de trabalho. “Aquela calma que atingia a cidade”... Felizmente, naqueles primeiros dias, depois da invasão, teríamos muito o que fazer lá pelos corredores do crusp. Era preciso travar uma batalha ocioso contra os anarquistas espanhóis. Denunciar as traições do partido comunista e engrandecer as brigadas trotskystas, na luta contra o fascismo de franco. Proteger trotsky dos marinheiros de kronstad, etc.. Não era fácil. Enquanto essa batalha cheia de paixões ocorria contra o espanhol, até altas horas da madrugada, o spuny circulava enrolado numa toalha, recentindo aquele cheiro de polvilho antissético granada e assoprando com competência a sua flauta de prata transversal: “passarinhando”, como dizia. Mais tarde, quando o adiantado da hora habilitava o sono alheio, a passarinhada se transferia para a laje de cobertura do edifício com a flauta se misturando ao som rouco-nasal de um fagote, propriedade de um outro músico feliz aninhado no bloco A. Invadido, o crusp ressurgiu do seu coma. Perderam os milicos mais uma e a burocracia universitária. Ganharam os estudantes mais uma batalha rumo ao poder e o socialismo não real. Essa onda de invasões começou pelo restaurante universitáio contra o aumento dos preços das refeições. Ela seguia uma tática cuja máxima se encontrava nas invasões operárias das fábricas, momento em que se ensaia o período do duplo poder que se verificou na história das revoluções francesa e russa. As invasões do restaurante eram dirigidas pela libelu que, até então conseguira manter os anarquistas como aliados. Algo parecido com a relação que tiveram os bolcheviques até a invasão de kronstad... É estranho de se pensar como a moradia estudantil não parecera um “móvel de luta”

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tanto quanto pareceram ser os preços do restaurante. A invasão do conjunto residencial sob a iniciativa dos estudantes anarquistas começaria a criar algum cisma quanto aos troskos. A corrente anarquista tinha sua formação em escolas como a física e a geologia. Um dos filhos do mauríco tragtenberg estudava ali e trazia consigo a influência política do pai. Transformou-se em um dirigente equilibrado dos anarcos e ajudou a fundar a corrente estudantil “novo rumo socialista”; ali também estava o espanhol. Na geologia, encontraríamos o chaveco e na filosofia o filó, entre outros, como o jamil. Porém, ao contrário das lendas, a maioria dos estudantes que ocuparam o bloco A era constituída de estudantes-estudantes, pura e simplesmente, estudante. Nada mais. Evidentemente, a vida ali faria mais pela formação política daqueles jovens que muitas horas de pregação ideológica. Mas, a maioria, depois, continuou sendo gente-gente. Nada mais que isso. Evidentemente muito hímen rolou por ali, assim como a marofa e outras drogas. Também algum estudante virou lúmpen, alguns equilibrados enlouqueceram e um ou outro macho virou gay. Nada demais. Para alguns a influência de ter sido gauche na vida nunca mais permitiu a normalidade. O crusp poderia ter sido, como uma bússula desimantada, uma biruta sem vento, a permissão para uma paixão, ou apenas uma moradia. Nada mais que isso. Afinal, éramos todos jovens: mais uma geração em curso. Nada mais... que alguns anos incríveis.

Os Troskos Tinha balançado por duas horas numa bumba que me arrastou desde os limites da zona norte até ali, onde começava a zona oeste, na entrada da usp. Algo como vinte quilometros num caminho tortuoso, sangrando vários pontos do bairro da casa verde, lugar de desportistas como o “galo de ouro”, nosso campeão mundial de pesos moscas e pena, alcançando o centro velho pela avenida rudge, até a estátua de duque de caxias. Depois subindo a general olímpio da silveira, continuação da avenida são joão, para atravessar perdizes, pegar a descida da cardeal arco-verde, cruzar o incerto pinheiros e terminar no rei das batidas. Depois do ônibus, caminhei até o prédio da escola de engenharia de minas para fazer minha matrícula como calouro da politécnica. Tentando cortar caminho, atravessei várias parte sobre o gramado do campus que estava muito alto. Quando cheguei no local da matrícula, tinha semente de grama grudada por todas as partes das minhas roupas. Um grupo de veteranos aplicava o trote nos “bixos” e me alcançou fazendo um estrago danado no meu cabelo. Fiquei com aquele corte do mou, dos três patetas. Foi uma merda. Depois de enfrentar uma fila interminável para a matrícula, concordei, meio por cagaço, em participar do tradicional pedágio que resultou em ir para os semáforos dos cruzamentos da henrique shauman com rebouças pedir dinheiro aos motoristas que ali paravam. Tinha que dividir a “féria” com meus colegas veteranos, que, 12

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nessa altura, já eram indesejáveis. Com algum dinheiro no bolso, fui até a casa de minha irmã e terminei o serviço no meu cabelo, fazendo um corte zero com uma lâmina de barbear. A cabeça reluzindo, voltei orgulho ao meu rincão na zona norte. Sentia-me vitorioso com todos os sentimentos bons que só a vitória pode proporcionar. Foi nessa pendenga do trote que conheci o bicho formiga. Nossos destinos teriam outras coincidências lá prá frente, quando participamos da invasão do crusp. Nas primeiras semanas ficava confinado nas redondezas do prédio do biênio da poli, lugar onde estudavam os primeiro-anistas, bixos. Invariávelmente as aulas eram interrompidas pelo ataque dos veteranos que insistiam em cortar o pouco cabelo do calouros, impedindo que eles passassem de algum centímetro. Aos poucos essa arbitrariadade foi fermentando numa revolta que terminou num confronto físico entre os bixos e veteranos. Teve a virtude de por fim aquelas incursões de tesouras. Antes disso, encontrara algumas vezes o formiga, puto da vida com as tesouras, trazendo, no lugar do cinto das calças uma corrente de aço. Estava pronto para o combate inevitável. Além daquele tipo de veterano animado com a imbecilidade do trote, outros costumavam interromper as aulas para dar o que chamavam de “informes”. alegrava-me aquela liberdade com que os estudantes disputavam a autoridade num espaço onde eu havia me acostumado a temer a imposição do professor. Eles eram militantes estudantis. Jovens exercitando um discurso confuso sobre militares, ditadura e coisas assim. Chegavam em dois grupos bem distindos representados por dois discursos antagônicos. Era o embate de duas correntes que dominavam o movimento estudantil: refazendo-caminhando e liberdade e luta. Mais conhecidas por seus apelidos: reforma e libelu. Essas coisas me maravilhavam... Havia algum estilo naquela juventude. Na verdade, tudo aquilo foi dando um nó na minha cabeça provinciana. Em 1977, assistira às grandes mobilizações de rua dos universitários através duma janela

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envidraçada num prédio de escritórios do largo do anchieta. Via os estudantes correndo e ouvi um refrão indecifrável ecoando pelos edifícios da rua direita, dizendo: “queremos liberdade!”. Não sabia bem que tipo de coisa eles estavam pedindo. Liberdade era uma reivindicação confusa. Sabia que eram todos comunistas. As bombas de gás explodiam no chão e vários grupos de jovens corriam desordenados enquanto umas chevrolet veraneio apareciam em disparada, fazendo manobras rápidas naquelas ruas estreitas. Sentia meu coração batendo assustado, ali na arquibancada. Uma estanha sinestesia me havia tomado. Achei que deveria estar la embaixo, mas não tinha carteirinha para entrar na festa. Agora que tinha credencial de estudante, tratei de correr para onde o cheiro da fumaça fosse mais forte. Quando me dei conta, estava sentado no chão de cimento, no meio de um meio milhar de outro rapazes ouvindo os discursos desencontrados de uma assembléia em frente ao restaurante universitário. Um estudante de cabelo ‘a la’ novos baianos e chinelas havaiannas fazia um discurso inflamado dizendo que não podiamos aceitar essa arbitrariedade da coseas. “O aumento do preço do bandejão é um balão de ensaio para implantação do ensino pago na usp”. Era preciso invadir o restaurante e barrar o aumento! Terminou de falar e foi ovacionado... percebi logo que a coisa ia esquentar. Eram uns caras esquisitos. Pareciam afetadamente maduros, mas eu deveria ter a mesma idade que a maioria deles. Sentia-me ignorante e provinciano. Um pouco acuado. Outros estudantes interviram contra e a favor da invasão. Havia uma ordem espontânea que garantia o funcionamento da reunião. Uma mesa coordenava os trabalhos e correspondia aos membros do DCE. Esses, do DCE, estavam pela invasão do restaurante contra o aumento. Estavam se saindo muito bem, pela reação da platéia. Ninguém se deu mais mal que um tal de fred. Um sujeito de estatura mediana, usando um capote longo, apesar de estarmos em pleno verão, bem mais velho que todos e apresentando uma calvice razoável misturada a um sotaque nordestino. Aquele tipo de sotaque que só a intelec-

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tualidade nordestina carrega. Sinistro. realmente, sinistro. Mas tinha uma determinação e paciência que só alguém experiente poderia ostentar... Cara sinistro. Recebeu não só oposição mas vaia associada a alguns palavrões. Parecia ser um dos tais “ratos” que ouvi falar por ali. Mas não era. Depois dessa encrenca toda, chegamos a um momento da assembléia chamado de “regime de votação”, onde a assistência deveria expressar a sua opção por uma das várias propostas, levantando a mão. Antes da votação uma série de procedimentos como “questão de encaminhamento” e “questão de ordem” foram interpelados por alguns estudantes até que se puseram de acôrdo e os braços se levantaram... Quando percebi, estava com uma concha na mão, servindo feijão num lugar onde se encontraria uma negra baiana de touca e avental branco, em outros dias. Os estudantes invadiram o restaurante, atravessando a catraca e deixando numa caixa de papelão os sessenta e seis centavos de cruzeiros, correspondentes ao preço antigo da refeição, não pagando o cruzeiro inteiro que queria a adminstração da universidade, ”burocracia universitária”, no linguajar da assembléia. Foi um deus nos acuda e no final faltou comida por que os funcionários haviam desaparecido com alguns panelões, saindo pelos fundos, instantes antes da invasão. Os comensais foram simpáticos e tolerantes. Eram cerca de cinco mil, os que passariam por aquelas catracas até o final de um dia normal. Mas nesse dia não haveria jantar... Tudo bem, mais uma pendenga entrava em curso. No meio daquela agitação, na cosinha do restaurante, carrengando um panelão de arroz, encontrei um cara chamado marcão que era da politécnica, também. Não sabia, mas aquele cara era um comunista. Na verdade, eu não sabia, aquele pessoal todo era tudo comunista. Havia aprendido com os militares que comunista é tudo igual, mas já estava percebendo que haviam nuances. Matizes diferentes, que não eram muito fáceis de separar. O restaurante do crusp estava irremediavelmente invadido. Isso

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já era um fato repetido. Atrás do vapor das panelas acabei esquecendo de que deveria estar com fome e, com as panelas mais suculentas vazias, tive que me contentar com uma bandeja de refeição magra, composta de arroz e feijão. A comida do crusp não era das piores. Uma tal de bierclause, companhia privada, administrava o restaurante. Em 1977 o bandejão já houvera sido invadido. Diziam que a comida era péssima. Pernas de barata fizeram parte do cardápio durante muito tempo. Daquela vez, os invasores encontraram alguns escândalos para alardear. Contrastando com a refeição horrível servida aos estudantes, a dispensa do crusp ocultava, em 77, garrafas de vinho francês, conservas finas e uma delícias etceteras, coisas guardadas para o deleite de alguns. Diziam que a burocracia se refestelava com aquelas beldades. É pouco provavel que burocratas se dignassem a colocar a bunda em qualquer daquelas bancadas do refeitório. Provavelmente, o restaurante se obrigava a abastecer a reitoria com uma ou outra refeição emergencial numa daquelas manhãs atarefadas do reitor e comitiva em que não dava nem para ir a algum lugar descente e se fazia uma boquinha por ali mesmo, sob os cuidados da famigerada bierclause. Mas os dias dessa companhia estavam contados. Um ano depois, sob a pressão do diretório central dos estudantes, a universidade passaria a responder integralmente pelas atividades do restaurante, foi quando a refeição melhorou e passou a ter mais carisma, nas mãos daquelas negras e mulatas, agora funcionárias do estado. Fiz ali a maior parte das refeições da minha vida universitária e, acredito, não passei mal. A comida era meio pesada mas, aquele banzo da cesta, começou a fazer parte do meu organismo no início das tardes. Terminada a confusão com aquela fila indiana de comilões, os estudantes se dignaram a lavar os panelões vazios. Panelões prá valer: dava pra cozinhar um homem adulto ali, sem ter que esquartejar. Nessa atividade meio besta encontrei ali o sujeito marção de antes. Passei também uma esponja com detergente naquelas pane-

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las e tratei de picar minha mula rumo à escola de engenharia onde alguma aula de cálculo me esperava. Mas, minha cabeça estava muito agitada para poder pensar em qualquer coisa metódica. Fui para a sede do grêmio politécnico onde a agitação era maior. A invasão criou uma polêmica entre as correntes estudantis. Partidários de cada uma batiam boca sobre os erros e acertos da invasão. Fala-se muito sobre os motivos da invasão de 1977 e a discórdia girava em torno da interpretação do sucesso daquela iniciativa remota. Para os dirigentes do dce, as massas estudantis fizeram a invasão por conta do aumento do preço, enquanto os dirigentes do grêmio sustentavam que o que tinha pegado era a má qualidade da comida. O que dava para entender era que, independentemente da polêmica, o método em questão era querer ser capaz de ler a cabeça das massas e dar um significado consciente a uma coisa inexpressável como um sentimento coletivo. Interpretar os indícios e dar-lhe corpo, significado, ação... Parecia algo interessante de se exercitar. Parecia... Fiquei ali meio zonzo, outra vez com aquele sentimento chato de ser pouco maduro: mal informado, provinciano, pobre, burro e tudo o mais. Mas não me abative tanto. Havia notado que estava recebendo uma atenção interessada para as coisas que arriscava comentar, como que sendo sondado por aqueles estudantes para ver de que lado da pendenga iria tombar. Eram jovens da classe média, educados e respeitosos, diferente daquela minha ralé da zona norte; broncos, bons de bola e mal na escola. Aqui era o inverso: Ninguém sabia jogar além de peteca... mas e daí: também era um perna de pau e tagarelava mais ou menos. A discussão estava acirrada. Era o tipo de discussão de mouros, interminável. Alguém sempre supunha estar carregando o fubá, rindo do outro atrasado, com um saco de milho nas costas. Com os libelus estavam o marcão, o mesmo da invasão do restaurante, juan, jorge, jean michel e nivaldo. Do lado da refazendo ficavam celsinho, pedro, luis, jacques e márcio japones. Alguns alunos do primeiro ano assistiam a confusão mais ou menos flexíveis. Era

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o meu caso e o de joca, paula e guilherme. Joca era um jovem da minha sala de aula. O pai dele fora estudante de engenharia civil da escola politécnica la pelos anos 50, contemporâneo do maluf, político corrupto do estado de são paulo. Naquele tempo, contou-me joca, o pai tinha sido militante estudantil e diretor do grêmio politécnico. Numa das eleiçôes, fora procurado pelo jovem maluf para pedir-lhe apoio a suas pretenções de ser presidente da entidade estudantil. Maluf, teria lhe dito que deveria seguir uma determinação de sua mãe que lhe reservara a tarefa de ser político na vida. O pai de joca recusou o pedido e maluf foi eleito tesoureiro, numa chapa de direita que venceu as eleiçoes num daqueles anos distantes. Coincidência ou não, o único período em que os livros de contabilidade haviam desaparecido, foi na gestao do malufinho, ainda aprendiz de feiticeiro. Joca tinha mais dois irmão na escola, todos seguindo os passos do pai. Por conta dessa proximidade na sala de aula que comecei a freqüentar a sala do gremio. Por intermédio do joca conheci a paula e o guilherme. Paula foi a primeira mulher militante que conheci. Tinha todo o esteriótipo de mulher liberada, de botina e blue jeans. Guilherme tinha a cara do que se chamava por ali de politípico, exceto seu interesse efêmero por política estudantil. Ele também tinha um irmão mais velho, parecido com ele e fazia algum outro curso na engenharia. A refazendo tinha um predomínio grande no movimento poítico da politécnica. Formava uma grande família entrelaçada de laços afetivos. Era pai que trazia filho e irmão mais velho arrastando o caçula. De qualquer forma, devo a essa espécie de cooptação meio camarada e meio prostituta a minha entrada para a política universitária. Os sentimentos sempre foram o melhor meio de cooptação da juventude universitária e a escola de engenharia favorecia isso. O ambiente da politécnica era desagradável, no geral. Engenharia é uma carreira muito competitiva e se aprendia desde cedo, ali, a se pisar no outro como forma de ascensão. O meu primeiro dia numa sala de aula foi numa palestra de ”boas vindas” do diretor da escola, um sujeito cujo nome de família era o mesmo que o meu.

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Nossas semelhanças resolviam-se nisso. Lembro-me de uma única frase das intermináveis proferidas ali: ”um engenheiro que se forma com média cinco não é um engenheiro, é meio...” Confesso que essa estranha lógica martelou na minha cabeça de uma maneira desagradável. Meio engenheiro! Devemos ter por aí uns tantos sete vírgula seis décimos de engenheiro construíndo prédios e viadutos. Dessa conversa com o diretor, fiquei com a sensação de que o negócio não era bem por ali. Tive uma visão nítida do dia da minha formatura. Lá, com a minha toga, recebendo um diploma com uma mão e um chicote com a outra. ”Vai, Zé, vai ser capataz nessa vida”. Ah! Mas, ainda bem, que isso tudo só veio em pequenas doses lentas e pouco freqüêntes. Devagarinho, o que permitiria sentir os doces prazeres de ser jovem e cheio de devaneios. Quando a discussão sobre a invasão do restaurante serenou. Deitei-me num daqueles sofás da sede do grêmio e comecei a sondar, movendo apenas os músculos dos olhos, todo aquele espaço. Aquilo era uma zona! Moveis esculhambados, latas de tinta pelo caminho e inúmeras frases pichadas nas paredes com os gritos da juventude. Palavras de ordem e frases proféticas de brecht se sobrepunham no antigo branco das alvenarias. Até quanto ao estado das paredes haviam controvérsias. A refazendo queria pintar as parede e dar um ar mais suave à sede, enquanto a libelu defendia, e conseguia impor, as pichações. De qualquer modo, não havia lugar para se escrever mais nada na vertical. Todo o horizonte, que não divisava as janelas era fraseológico. ”Pelas liberdades democráticas!” e ”abaixo a ditadura!” eram as frases que sintetizavam toda a discórdia na cúpula do movimento estudantil. Varrendo com os olhos o que estava ao meu alcance, vi passar o ano de 77 e o grito que me chegava das ruas do centro velho carregado de medo: ”Queremos Liberdade! Queremos liberdade!”. Um leve tremor percorreu minha espinha e adormeci. Quando acordei já estava entardecendo e era hora de ir embora. Adormeci, de novo, balançando na bumba até a zona norte onde

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fui prosear com meus amigos de infância. Ramón era meu melhor amigo, tínhamos a mesma idade e crescemos juntos por aquelas ruas. Ele sempre me ouvia curioso, querendo saber das coisas na universidade. Eu lhe contava com umas recheadas de exageros que era para impressionar melhor. Infelizmente nossos destinos começavam a se separar. Ele tinha se transformado no herdeiro da fábrica de móveis do pai, basco osso duro e carcamano. Imigrante que conquistou a duras penas o direito a ser patrão. Quando pequeno, nos divertíamos muito no meio das peças de móveis empilhadas pela fábrica. Escorregávamos, com outros amigos, por entre as madeiras até alcançar nosso esconderijo, onde fumávamos às escondidas. Os operários da fábrica eram nossos camaradas e passávamos horas por ali, jogando conversa fora. Mesmo hoje, o barulho de uma serra elétrica me traz alguma paz. ————— Como represália, a reitoria manteve o restaurante universitário fechado por vários meses. O balão de ensaio do ensino pago na usp, ficou vazio durante esse tempo. Na escola levavamos as coisas na rotina. Entre uma aula e outra, uma discussão sobre os rumos do país e o fim da ditadura. Nessas discussões podia-se conhecer melhor a história de cada umas das correntes do movimento. A libelu era conhecida como a tendência mais radical. Pregava abertamente pelo fim da ditadura e denunciava as outras correntes como reformistas. A maior partes destas outras correntes estavam no interior do mdb, partido criado pelos militares para fazer o papel da oposição consentida, após o decreto de ilegalidade de qualquer outro partido, além da arena e mdb. Arena concentrava os pró-militares. Para a libelu, sustentar o mdb redundava em apoio implícito aos militares, era preciso construir um partido operário. Nas eleições de 1977 fizeram uma campanha pelo voto nulo por um partido operário. As forças capazes de levar avante algum projeto desse tipo ainda trabalhavam subterrâneas no interior das fábricas do abc paulista, região de grande concentração de operários metalúrgicos. Nas discussões com os militantes estudantis, ficava se sabendo algo

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sobre a luta armada. Muitos deles faziam parte de organizações que sustentaram as gerrilhas dos anos 60. Os estudantes da refazendo mostravam alguma divergência com os da caminhando sobre a necessidade de uma auto-crítica da luta armada de antes. Para eles não era o momento certo, as massas camponesas nao estavam preparadas para essa ação exemplar, nos moldes da turma de fidel na sierra maestra. Apesar das aparências na flexibilidade das correntes reformistas quanto às maneiras de se atacar a ditadura militar, a libelu era completamente avessa a gerrilha. Parecia uma contradição. Várias aspectos eram contrastantes entre os estudantes das várias correntes. Na música os reformistas gostavam de geraldo vandre, fagner e músicas de protesto. A libelu preferia os tropicalistas, rita lee, beatles e, especialmente, stones. Preferiam os surrealistas ao realismo socialista da união soviética. Modos de vida, aparentemente diferentes. Os reformistas tinham cabelos curtos e roupas mais alinhadas. Os libelus usavam um visual meio hippie e mais escrachado (não todos). Aos poucos os comunistas iam mostrando seus matizes e não eram tão tudo a mesma coisa. Nomes como marx, lenin, trotsky, stálin, mao, fidel e che, já podiam ser vistos como farinha de sacos diferentes. Dependendo de onde você metia a mão, saiam pães de diversos tipos. Aquela juventude, independente de qual influência política que sofresse, representava uma fatia rara no ambiente da escola. Por esse contraste, passava-se a despresar o estudante médio, metido no seu projeto individual de se formar o mais rápido possível para sair do que, para eles, vísivelmente, era um tormento. No prédio da engenharia elétrica, lugar das mais concorridas vagas de toda a politécnica, existe, até hoje, um placar que marca regressivamente o número de dias que faltam para a próxima turma se formar. “Faltam XX dias”. Uma frase garrafar, seca e significativa de toda ansiedade e angústia daqueles estudantes. Os anos mais preciosos de suas juventudes consumidos numa compulsão dolorosa. Existia um cisma entre as agremiações da escola. No grêmio se

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reuniam os estudantes de esquerda e a direita se agrupava numa sala ao lado, na associação atlética. Não havia nenhuma deferência entre os dois lados. Ruminavam uma antipatia correspondida. A associação atlética era uma espécie de bonificação aos estudantes reaças para que eles não se metessem nas questões do grêmio. Como departamento do grêmio, a atlética estava submetida a este nos estatututos. Não tinha finanças próprias e este era o único vínculo real estabelecido com a entidade mãe. Uma vez se chegou a pensar em disputar a diretoria da atlética e estabeler ali uma política do corpo mais condizente com os referenciais progressista, resgatando uma visão reichiana de liberação do caráter. Uma coisa como taichi, lsd e jogo de peteca prá relaxar. Mas não vingou. Seria um pandemônio romper com o pacto de convivência com a direita. O grêmio politécnico foi uma entidade milionária. O que fora a tônica das agremiações filiadas a une, antes de 68. Era proprietário de um prédio que abrigava uma casa de estudantes, a cadopô, uma gráfica e um cursinho; tudo isso ao lado do antigo prédio da escola politécnica na avenida tiradentes. Outros departamentos, além da atlética estavam à disposição dos filiados. Havia um departamento de fotografia, outro de cinema e um grupo de teatro que já havia retirado da carreira de engenheiro, atores profissionais como carlos zara, que levava a vida no cinema e televisão. Mas os tempos de glória dessas atividades já haviam passado. Naqueles tempos, as coisas andavam meio esvaziadas e aglutinava pouca gente. Mesmo assim, os que se metiam por esses meandros dificilmente saiam engenheiros. Foi o meu caso e o da esmagadora maioria das pessoas que conheci que fizeram parte da turma de calouros de 1979. As semanas se repetiam entre chacoalhar na bumba até o butantan, assistir algumas aulas e me reunir com a comissão do primeiro ano. Essa comissão era um organismo informal do grêmio responsável por levar o movimento entre os calouros. Inicialmente fomos nos aglutinando ali, a miúdo: joca, guilherme, paula — que eram supostos “herdeiros” da tradicão de dirigentes da ação popu-

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lar, dominantes no centro estudantil —, eu, ike, formiga, ernesto, paulinho e pacheco. Ike era um jovem de origem judaico-libanofrances. Falava bem o português mas enroscava na pronúncia dos erres, o que parecia bem próprio para as suas tradicões lingüísticas. Recusava falar francês com seus compatriotas quando estivesse em presença de algum brasileiro. Essa deferência me chamou a atenção: coisa rara no ambiente esnobe da universidade. Formiga, que havia conhecido por ocasião do trote aos calouros, vinha da periferia da zona leste — vila matilde — e além das correntes na cintura, para qualquer emergência, portava um livro de trotsky em baixo do braço. Nunca tinha ouvido falar de Leon Trotsky, em breve seria leitura obrigatória no nosso círculo mais próximo. Ernesto era um dos raros jovens de origem negra que se avistava na vasta planície daquela várzea do pinheiros, tanto quanto o formiga era meio desconfiado quando às intensões de toda aquela gente. Na verdade, era pra se desconfiar já que, mesmo velada, percebia-se uma intenção principal para toda aquela prosa entabulada nos arredores da agremiação. Entretanto, ninguém parecia mais amuado que o paulinho. Falava pouco e tinha sempre um pé atrás, para qualquer eventualidade. Tinha passado toda a infância no interior de são paulo, lá pela fronteira do mato grosso. Sampa ainda não tinha lhe mostrado o seu manto das possibilidades sem precisar pronunciar o sobrenome. Pacheco, o pachequinho, zé pinto — como ele não gostava de ser chamado — falava aquela fala mole dos nordestinos de aracaju. O pai fora dirigente da união estadual de estudantes de maceió e se sentia mais a vontade dentro dessa história. Num desses encontros, aparentemente fortuitos, fomos aglutinando a comissão do primeiro ano e acertamos, tacitamente, a tarefa de levar o fuzuê para aquela garotada aninhada na tarefa de ir costurando a mão — ou a lápis — o diploma de bacharelengenheiro. Precisávamos de algum pretestos para metê-los na causa e concordamos que era um descalabro o prédio do biênio não ter uma sala de vivência para o aconchego dos calouros e passamos a discutir como sanar essa grave negligência do diretor da

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escola. Sala de vivência: esse seria o mote da luta! Numa tarde, nos reunimos em audiência com o martins, diretor da escola, no prédio da escola de engenharia de minas, sede da diretoria da poli. Era um homem franzino e engruvinhado pelo peso das atividades. Não fosse pelo corpo pouco acostumado aos exercícios físicos, poderia se jurar que era de formação militar. Um tenente-coronel, talvez. Era cordial, enquando os ditames da tática o obrigassem; executar essa manobra custava-lhe muito esforço. Foi com tolerância que ele buscou nos explicar como poderia ser um erro nosso pedido pela sala de vivência. Não me lembro dos argumentos. Falou longamente e, acreditando que iríamos desistir, ficou de examinar o pedido. Saímos dessa reunião fazendo uma avaliação da conversa. Estava claro, para todos, que não seríamos atendidos. Isso significa que havíamos escolhido a reivindicação certa. Tivéssemos deferimento e perderíamos nosso “móvel de luta”. Uma pendenga estava sendo montada... Aqui não importava se o primeiro ano sentia falta de uma sala para se acostar. Qualquer reivindicação serviria, desde que mostrasse a face mesquinha do sistema. A arrogância dos militares havia contaminado todas as peças encarregadas de movimentar as engrenagens sociais. Aquele homenzinho que, se pudesse, daria meio diploma aos jovens que se formassem com média cinco, achava necessário jogar um braço-de-ferro com uns pirralhos, que carregavam ainda as ferpas do cueiro no cú, em troca de uma sala inútil no prédio do biênio. Nós não tínhamos consciência, mas a origem da questão remontava ao rancor que essa gente carregava contra as organizações da juventude. Ali não estavam uns pirralhos. Havíamos testemunhado um encontro da tradição construída naquela escola pela existência da agremiação que sempre mediou a cisão entre os campos de ação de todos os que passaram por aquela escola. Martins, quando estudante, certamente odiou os que se reuniram em torno da entidade. Era sua chance de ir a forra com aqueles que o irritaram e tanto aborreceram o seu interminável tricô de cinco anos e nota dez (será?).

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Conversando, saímos do prédio da minas em direção ao biênio, atravessando o prédio da engenharia civil. De todo o complexo de construções que formava as várias sedes dos cursos de engenharia da politécnica, o prédio da engenharia civil era o único que apresentava características arquitetônicas, com as preocupações estéticas superando a funcionalidade. Enquanto cortávamos o corredor central, uma sucessão de vão quadrados ostentavam jardins e espelhos dágua postados sob o teto e recebendo a luz difusa das clarabóias. Junto às pilastras de concreto aparente e formas prismáticas, tubos transparentes serviam para escoar a água da chuva. Nos dias de tempestade, um fluxo de água descia no interior dessas calhas tecendo espirais desde a cobertura até desaparecer ao rés do chão. Antes de atingir a saída, passamos ladeando a rampa de acesso às salas de aula do andar superior, e paramos na cantina para tomar um café da máquina italiana. Nessa altura, já erámos capazes de falar sobre coisas mais amenas e conversamos algumas abobrinhas animadas. Terminamos lentamente com aquelas xícaras de café e nos encaminhamos silenciosos para o prédio do biênio. Fazia um forte calor. Era quase cinco horas da tarde, despedi-me do grupo no andar inferior do predio do biênio, retirei minha bolsa na sala de armários com uma toalha e o calção de banho e fui para o centro poliesportivo me refrescar na beira da piscina. O cepê, como era carinhosamente chamado o centro poliesportivo, era uma das várias maravilhas abrigadas no campus universitário. Além do parque aquático, tinha diversas quadras para a prática dos mais variados esportes, um ginásio para ginástica olímpica e uma raía para a prática de remo. Nos meses de calor, as piscinas ficavam lotadas de estudantes esparramados pelas lajotas de pedra de são thomé que circundavam as três piscinas. Havia um tanque com trampolins e dez metros de profundidade para o salto ornamental, uma piscina olímpica e uma outra para a recreação, formada por três tanques hexagonais acoplados como num favo de mel. Para se ter permissão de acesso às piscinas, era necessário fazer um exame médico tradicional quando, então, era aposto

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um carimbo vermelho na carteira de identificação estudantil. Evitando que a umidade apagasse o tal carimbo, os estudantes mais precavidos, colovam sobre ele uma fita plástica adesiva que tinha a capacidade de fazer uma cópia fiel da marca vermelha. Esta fita carimbada era negociada com os estudantes que nõ haviam passado pelo exame médico. Mesmo assim, peguei umas poucas micoses naquela área. Atravessando as catracas do balcão de identificação, encontrava-se a aárea do vestiário, com suas excelentes duchas de água aquecida, jato forte e relaxante. Um espelhinho d’água para limpar os pés e o buchixo calmo do proseado afetado na beira das piscinas. Tratei logo de dar um mergulho, me esticar sobre uma pedra cálida e distender os músculos. A cidade universitária era um verdadeiro oásis num sentido urbano. Haviam vários lugares encantadores. Dois deles me agradavam sobremaneira. Um era o centro esportivo, o que não surpreenderia ninguém. Mas, havia um certo sitio no alto do morro da biologia que escondia um jardim oriental onde me sentia melhor. Descobri isso por acaso, numa das andanças nas convalecências do almoço do crusp. Pouca gente, ou quase ninguém, se via por ali. Talvez nisso residisse a magia. Além de vários pinheiros exóiticos com suas placas de identificação revelando algum trabalho metódico de catalogação, uma estufa megulhava abaixo do nível do terreno abrigando várias samambaias e orquídeas refrescando a brisa que rossava de leve o alto do morro. Costumava caminhar por ali, vez ou outra, não para qualquer meditação mas para poder estar por entre aquelas árvores no meio do bosque de mata atlântica que circundava o jardim, pisar o manto de folhas cuneiformes que cobriam o chão, inalar aquela atmosfera rara e ouvir o farvalhar característico dos pinheirais. É não dava prá se queixar...

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