“Breve Resumo” de Kant na Crítica da Razão Pura

July 22, 2017 | Autor: Rogério Teza | Categoria: Immanuel Kant, Idealismo
Share Embed


Descrição do Produto

“BREVE RESUMO” NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA: IDEIA E DIVISÃO DE UM PARÁGRAFO PARTICULAR COM O NOME DE “BREVE RESUMO DESTA DEDUÇÃO” NO FINAL DA DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL

Rogério de Souza Teza

0

Rogério de Souza Teza

Breve Resumo da Dedução Transcendental

INTRODUÇÃO Ao fim da Dedução Transcendental dos Conceitos Puros do Entendimento da 2ª edição da Crítica da Razão Pura (CRP), Kant (2010, p. 175) apresenta um parágrafo intitulado “Breve Resumo Desta Dedução” (“breve resumo”): Consiste em expor os conceitos puros do entendimento (e com eles de todo conhecimento teórico a priori) como princípios da possibilidade da experiência; mas da experiência como a determinação dos fenômenos no espaço e no tempo em geral – finalmente em expor essa determinação a partir do princípio da unidade sintética originária da apercepção, como forma do entendimento, na sua relação com o espaço e o tempo, formas originárias da sensibilidade.

A inclusão desta parte, que não aparece na 1ª versão da Dedução, não deve ter sido por acidente, como sugere Dieter Henrich (1989, p. 34). Não é absurdo pensar que assim o fosse, pois é muito comum se encontrar, nos mais variados tipos de texto, partes breves a título de resumo com este mesmo nome. Henrich, contudo, a atribui ao fato de “Kant pensar sua dedução com um texto que deve ser modelado segundo o paradigma jurídico e ir ao encontro de seus critérios de excelência”. Henrich (idem, ibidem) afirma que conferiu algumas deduções jurídicas da época e nelas encontrou resumo similar apensado às peças do Direito a fim de resumir os principais pontos do argumento. A hipótese de Henrich faz sentido, e basta olhar o início do §13 da CRP para compreender. Mas para fazer jus ao título é necessário que o texto, de fato, ponha em relevo e de modo bastante sucinto os principais argumentos. O propósito deste trabalho é verificar se essa hipótese interpretativa se sustenta. Em outros termos, é verificar se realmente o “breve resumo” é capaz de trazer de maneira enxuta a argumentação da Dedução Transcendental. Com este propósito, nosso trabalho está dividido em três etapas. Na primeira, buscamos dividir o excerto e revirá-lo pelo avesso, analisar seus períodos e referentes; para, assim, identificar quantos e quais são os argumentos aí contidos. Em seguida, nos voltamos à própria Dedução, a estrutura de sua argumentação e de seu texto, com o intuito de se verificar com isso se correspondem àquela que está posta no “breve resumo”. Por fim, tendo em mente que a Dedução possui uma importância bastante evidente dentro da CRP, avaliar se o “breve resumo” é também capaz de fazer transparecer o propósito contido na Dedução e na CRP em geral. A ARQUITETÔNICA DO “BREVE RESUMO” Seguindo as técnicas de análise estrutural do texto que recomenda Torres Filho (2004, p. 139), a primeira coisa que se buscar no texto deve ser sua articulação aparentemente 1

Rogério de Souza Teza

Breve Resumo da Dedução Transcendental

natural. E é possível notar no trecho em questão é a existência de uma divisão natural. Praticamente no meio do parágrafo existe um travessão e o verbo “expor” é repetido de modo a praticamente a iniciar cada uma das partes. Isto é, seja qual for o assunto da Dedução, esta se trata de uma exposição, isto é, de uma “apresentação clara (embora não pormenorizada)” (KANT, 2010, p.64), ou de “a explicação de um conceito considerado como um princípio, a partir do qual se pode entender a possibilidade de outros conhecimentos sintéticos a priori” (idem, p. 66), se ela for transcendental, como define Kant a propósito da exposição dos conceitos de espaço e tempo na Estética Transcendental. E, pode-se pressupor se tratar da exposição de um argumento em duas partes que não coincidem, pois para ter mérito de ser “breve” não há de se esperar que haja uma repetição. Logo, o que se deve verificar, quando nos voltarmos para o texto da própria Dedução, é comparar entender o que é a dedução e se isso é, de algum modo, uma exposição. Outra verificação: se a Dedução é também bipartida. Desta divisão, seguimos à primeira metade; que, por sua vez, também se divide em duas partes, cujo sinal de separação é um ponto-e-vírgula, seguido da conjunção “mas”. Na primeira parte, Kant afirma que a Dedução Transcendental é a exposição de “conceitos puros do entendimento (e com eles todo o conhecimento teórico a priori) como princípio da possibilidade de experiência” (KANT, 2010, p. 195). Kant faz a ligação dos “conceitos puros do entendimento” e os “princípios da possibilidade de experiência” através da palavra “como”1. O uso comum desta preposição é expressar ideia de comparação, de colocar uma igualdade, de afirmar a qualidade de algo, significando “no sentido de”, “entendidas como”. Assim, em vez de apresentar que os conceitos puros são o princípio da possibilidade de experiência, Kant aplica uma espécie de restrição a eles; em outros termos, significaria dizer que os “conceitos puros do entendimento” se prestam a muitas coisas, mas o que nos interessa aqui é apenas de que modo eles se comportam enquanto do “princípio da possibilidade de experiência”. Ademais, Kant inclui parênteses, ou seja, há algo em suspenso ou não tão importante, que vai a reboque dos “conceitos puros do entendimento”, que é todo o conhecimento teórico a priori. Isto quer dizer que o conhecimento teórico a priori, embora não seja o objeto principal dessa exposição, acompanha os conceitos puros do entendimento, de modo com eles praticamente se confundir, sendo que conhecer se igualaria a possuir conceitos. Dado, então, Em alemão, “als”. Como observa Torres Filho (2004, p. 141), “essa preposição (em inglês as; em latim qua; em grego hè), inexistente em português, significa ‘na condição de’, ‘no sentido de’, ‘entendidas como’, ou ‘tomadas como’”. Não obstante se refira a outra passagem de Kant, vemos ser apropriado empregá-la também aqui. 1

2

Rogério de Souza Teza

Breve Resumo da Dedução Transcendental

que todo a priori para Kant é aquele “independente da experiência e de todas as impressões dos sentidos” (idem, p.37), os conceitos puros do entendimento também devem ser independentes da experiência. Desta maneira, pode-se afirmar que para Kant, aquilo que condiciona a possibilidade da experiência é independente desta e, logicamente, antecede a esta. Por conseguinte, devem ser os “conceitos puros do entendimento” a priori. Em seguida Kant insere uma espécie de adendo para falar da experiência, separado por uma conjunção adversativa. O uso do “mas” aponta para uma ressalva, é um importante indicativo de que experiência que não é qualquer uma. É “da experiência como a determinação dos fenômenos no espaço e no tempo em geral” (idem, p. 195). Este complemento apresenta dois aspectos relacionados aos grifos que Kant põe no texto. Por um lado, Kant reforça que é princípio da possibilidade de experiência como determinação, ou seja, não se trata da experiência de um modo contemplativo, da experiência de objetos indeterminados afetando a sensibilidade. É, pois, dar condições de possibilidade de determinação dos fenômenos, como um ato. Por outro lado, embora determinados, Kant fala em fenômenos no espaço e no tempo em geral. É difícil fixar pela frase apenas se o “em geral” se refere aos fenômenos, ao espaço e tempo ou à expressão conjunta de ambos. Em todo caso, não haveria muita diferença, pois “em geral” traz possivelmente aqui outro uso comum em Kant. Embora “em geral” signifique sempre o contrário de um uso “particular”, a “generalização” para Kant induz ao sentido de que existe uma necessidade por detrás daquilo. E, assim, a aplicabilidade dos conceitos puros do entendimento como princípios de possibilidade se estende a todos os fenômenos do espaço e tempo como necessidade, pois para que sejam possíveis como experiência, desde o princípio, devem ser determinados. Por fim, a primeira parte do “breve resumo” tem a primeira parte do argumento da Dedução. Os conceitos puros do entendimento, que antecedem logicamente à experiência, merecem ser compreendidos com atenção porque tem um papel de destaque na CRP e que precisa ser bem exposto: eles necessariamente determinam todo tipo de fenômenos, fazendo assim possível a experiência. Isto confere a essa primeira metade um caráter fundamental no âmbito epistemológico. Mas se realmente é apenas isto que deve se esperar dela, isso se verá mais adiante. Passemos, antes, à segunda metade. Após o travessão, Kant recomeça com um “finalmente”. Muitas vezes realmente sente-se certo alívio após se elaborar textos áridos, de se expor argumentos rigorosos. Kant podia até estar tomado por essa sensação, mas este “finalmente”, que também poderia ter sido 3

Rogério de Souza Teza

Breve Resumo da Dedução Transcendental

traduzido como “enfim” promete ser a última coisa a ser dita a respeito de toda a Dedução Transcendental. É de se esperar, com efeito, que o que está para ser dito em seguida seja o argumento mais forte, a ideia mais preciosa sobre tudo aquilo que se pretendia dizer. O que vem na sequência, naquilo que toca a análise do texto, traz novamente alguns elementos que já estiveram presentes na primeira metade. Kant se refere mais uma vez, como anteriormente apontado, que a Dedução trata de “expor” algo. Além disso, a palavra “como” tem um papel igual ao anteriormente apontado. Por isso, não se despenderão mais linhas para nenhum dos dois. Assim, resta a analisar o que se encontra da frase: a dedução transcendental é a exposição da “determinação [dos fenômenos em geral] a partir do princípio da unidade sintética originária da apercepção, como forma do entendimento, na sua relação com o espaço e o tempo, formas originárias da sensibilidade”. (KANT, 2010, p. 195) Primeiramente, cabe notar que a determinação é remetida a um ponto de partida: a unidade sintética originária da apercepção. Retomando o que se viu na primeira metade, a determinação era um resultado dos conceitos puros do entendimento. Assim, a determinação tem aparentemente dois pontos de partida “a unidade sintética originária da apercepção” e os conceitos puros do entendimento. Seria preciso ir bem além desse trecho apenas para compreender a relação entre unidade sintética e conceito, entre apercepção e entendimento. Mas Kant soube contornar esse obstáculo, ao se referir não à unidade sintética originária da apercepção em geral, e sim a colocá-la, como se lê a seguir, no tomada no sentido de forma do entendimento. Assim, pode se perceber que existe uma relação bastante próxima entre a unidade sintética e os conceitos, ambos pertencendo ao entendimento. Nesta segunda metade também, Kant faz referência a duas formas: do entendimento e da sensibilidade. No início da Estética Transcendental, Kant (idem, p. 61) dá uma clara noção do domínio de cada faculdade: “por intermédio, pois, da sensibilidade são-nos dados objetos e só ela nos fornece intuições; mas é o entendimento que pensa esses objetos e é dele que provêm os conceitos”. Ou seja, cada uma atua em um domínio apartado, sendo sensibilidade responsável por uma parcela, digamos, passiva, meramente receptiva, e o entendimento, ativo, capaz de pensar e provir conceitos. Porém, o entendimento atua sobre os mesmos objetos dados pela sensibilidade e a questão é: como é possível que se relacionem o entendimento e a sensibilidade? É exatamente essa questão que Kant afirma estar sendo respondida na Dedução Transcendental quando afirma estar expondo “a determinação a partir da [...] forma do entendimento na sua relação com [...] as formas originárias da sensibilidade” (idem, p. 195). 4

Rogério de Souza Teza

Breve Resumo da Dedução Transcendental

Note-se, porém, que não existe passagem de uma faculdade para o outro lado. É a determinação dos fenômenos, logo, de objetos, enquanto princípio da possibilidade de experiência que se pode se dar a partir de forma de um na sua relação com a forma do outro. Não é o caso de aqui se apontar o que significa “unidade sintética originária da apercepção”, mas cabe fazer alguns apontamentos sobre cada uma das palavras na maneira como a expressão foi composta. A começar pela “unidade”, ela pode ter dois sentidos, um de totalidade, outro de parte. Isto é, ela pode ser o significado para um conjunto, que só faz sentido como todo, em que unidade, antes de falar de algo fala da ligação que existe para constituir esse algo. O sentido de parte seria aquele em que a unidade é quase um predicativo de outra parte da expressão. No nosso caso, seria como dizer que a apercepção tem várias partes e uma delas é a unidade sintética. Quanto à “sintética”, não cabe especular muito, pois Kant dedica-se mais de uma vez a explicar, mas tem um sentido que se aproxima de ligação e composição (idem, pp.109, 130, etc.). “Apercepção” também tem um sentido bastante técnico em Kant; é a “autoconsciência que ao produzir a representação eu penso [...] não pode ser acompanhada de nenhuma outra” (idem, p. 132). Entretanto, a palavra “originária” é importante ser mais bem vista porque dá mais clareza à análise do parágrafo. Na expressão em questão, está se referindo à síntese, como é possível saber por outras traduções. Ou seja, é para falar da síntese que ocorre antes de todas as outras. O fato de Kant destacar essa palavra revela que ela é fundamental, no sentido de que ela é a primeira e só poderia se partir dela todas as demais sínteses. O que se espera é a Dedução Transcendental fazer, portanto, apresentação como, da síntese da apercepção, as determinações dos fenômenos são possíveis. Em resumo, esta segunda metade se coloca sobre a questão da origem da determinação dos fenômenos. Apesar de parecer que é apenas uma forma de reapresentação da primeira metade, no fundo, ela traz algo que talvez seja mais importante para a CRP como um todo, e especialmente para a metafísica. Pois, às claras, trata da questão da aplicação da forma do entendimento à matéria da sensibilidade, mas também deixa entrever a questão da relação da subjetividade (fenômenos) com a objetividade (unidade da apercepção). Faz isso sem deixar de lado a questão dos princípios da possibilidade da experiência, pois a toma pela origem, e, consequentemente, impõe delimitação àquilo que não pode aí encontrar fundamento, ou seja, não pode ser objeto de conhecimento.

5

Rogério de Souza Teza

Breve Resumo da Dedução Transcendental

A DISCIPLINA DA “DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL” A Dedução dos Conceitos Puros do Entendimento (ou, pode-se dizer, das “categorias”) é o ponto central da CRP. Mas o leitor de filosofia moderna, acostumado muitas vezes com o modo geométrico, ou o leitor contemporâneo, tomado pela nomenclatura da lógica formal, estranhará o primeiro parágrafo do §13 que faz referência a jurisconsultos. Segundo nos informa Henrich (1989, p. 31-2), na verdade, o termo “dedução” deriva do latim e literalmente significa: “tornar algo para além de algo outro”, e seu uso jurídico é amplo, conforme apontam os registros, especialmente entre os séculos XIV e XVIII, antes de cair em desuso. Assim, com apelo ao sentido jurídico, deve-se esperar na Dedução, em vez de silogismos, a demonstração da legitimidade de uma questão de direito; no caso, segundo o próprio Kant (KANT, 2010, p. 120), que seja “a explicação do modo pelo qual esses conceitos se podem referir a priori a estes objetos”. Isto nos permite compreender por que Kant pode falar no “breve resumo” em exposição. Pois, a Dedução é uma apresentação de justificativas para a origem e o uso das categorias que se apresentaram pouco antes no texto, que, ao não se prender à estrutura silogística, permite Kant empregar variados tipos de argumentação em seu curso (HENRICH, 1989, p. 39). Assim, o título do “breve resumo” e sua posição no texto converge perfeitamente em relação ao texto da Dedução em si. Superada a presença da metáfora jurídica que justifica o nome de dedução, passemos aos aspectos amplos que se encontram no corpo do texto. A Dedução Transcendental de que aqui tratamos se refere a que foi publicada na 2ª edição da CRP (chamada assim de DeduçãoB, que foi completamente modificada em relação à primeira – A), é apenas nesta que de encontra o texto do “breve resumo” em questão. Ela se estrutura em 12 subseções, do §15 ao §27. Embora não haja um marco natural para isso no texto, como Allison aponta (2004, p. 160), o argumento pode ser dividido em duas partes, “cada uma das quais presumivelmente estabelece a necessidade das categorias”. Nesta divisão, a primeira parte iria até §21; nela, afirma o comentador, “a questão é que qualquer conteúdo sensível deve estar sujeito à categoria se é que eles foram trazidos à unidade da consciência”. Na segunda parte, que vai de §22 a §27, “argumenta pela necessidade das categorias com respeito à sensibilidade humana e seus objetos.” Antes de passar ao conteúdo, é interessante notar que, da mesma maneira que o “breve resumo” se encontra cindido praticamente ao meio, a divisão que aponta Allison também tem duas partes do mesmo tamanho, cada qual com seis subseções.

6

Rogério de Souza Teza

Breve Resumo da Dedução Transcendental

Com relação ao conteúdo de cada uma das divisões, o comentador vê com ressalvas. Segundo ele (ALLISON, 2004, pp. 160-161), é Dieter Henrich quem “insiste na natureza de uma prova em duas etapas”, que seria amplamente aceita. Henrich, citado por Allison, afirma que contrariamente a impressão de que as conclusões encontradas em §20 e §26 definem a mesma proposição, na verdade, com o objetivo de juntas fornecerem uma única prova à dedução transcendental, “oferecem argumentos com resultados significativamente diferentes” (HENRICH apud ALLISON, 2004, p. 161). Apesar das objeções de Allison, é justamente o que anteriormente podia concluir a análise do texto do “breve resumo”. A objeção de Allison, porém, não critica que sejam as duas partes diferentes. Pelo contrário, não apenas se tem resultados diferentes, mas o objetivo mesmo de cada uma delas é distinto. O comentador, portanto, se dedica a mostrar que a leitura de Henrich faz da segunda parte, sem embargo, “uma inferência trivial”. Pois, “se foi mostrado que as categorias se aplicam a intuição sensível em geral, então certamente segue-se que elas devem, da mesma maneira, se aplicar à forma da intuição especificamente humana” (ALLISON, 2004, pp. 161-162). Isso era o que se lia em cada uma das partes quando os conteúdos foram apresentados anteriormente. Se assim fosse, a leitura que foi feita do “breve resumo” também mostraria que ele não se coaduna com o texto da Dedução, pois lá observamos que a segunda parte tinha maior relevância e um espectro de aplicação mais amplo, porém sem nenhum tipo de restrição quanto às formas de sensibilidade humana se opondo à em geral. Em resposta a essa querela, Allison prescreve outra interpretação das duas partes que precisamos então verificar se está em linha com o “breve resumo”. O foco do comentador é mostrar que a função dos conceitos puros do entendimento se modifica substancialmente de uma para outra: A função das categorias na primeira parte é servir de regra para o pensamento de um objeto da intuição sensível em geral, como regras discursivas para o juízo. [...] mostra que qualquer representação que é trazida à “unidade objetiva da apercepção” é também portanto relacionada a um objeto no juízo e, desta maneira, se coloca necessariamente sob as categorias. Em contrapartida, o objetivo da segunda parte da dedução é estabelecer a aplicabilidade das categorias a qualquer coisa que seja dada sob as condições da sensibilidade humana. Ele tenta fazer isso demonstrando (através de sua conexão com a imaginação) que as categorias tem uma função não discursiva como as condições sob a qual qualquer coisa é dada (de acordo com as formas da sensibilidade) podem entrar na consciência empírica. Em resumo, ele tenta ligar as categorias (embora indiretamente) à percepção em vez de apenas ao pensamento dos objetos. (ALLISON, 2004, p.162) 7

Rogério de Souza Teza

Breve Resumo da Dedução Transcendental

Como nos mostra essa passagem, Allison concorda com a presença de dois argumentos e da importância destacada de ambos. No entanto, se tomarmos esta como a interpretação mais adequada para o texto da Dedução Transcendental novamente, nos afastamos da leitura feita anteriormente sobre o “breve resumo”. Primeiramente que lá ocorre uma inversão. A “unidade da apercepção” aparece na segunda parte e aqui ela está na primeira. Quanto a isso, a exposição de Allison é perfeitamente coerente com o texto da Dedução, já que é em §16 que Kant trata especialmente da “Unidade Originariamente Sintética da Apercepção”. Em segundo lugar, afirmamos que a segunda metade do “breve resumo” seria mais importante, uma vez que tinha envolvia termos de conclusão e ampliava o escopo da Dedução. Mas se nos aprofundarmos um pouco no que Allison está querendo dizer talvez essa questão possa ainda salvar a hipótese de um profundo paralelo entre a Dedução e o “breve resumo”. Observe-se que a primeira parte se dedica a expor como as categorias podem servir de regras para o pensamento. Servir de regra para Kant, porém, tem um aspecto muito especial. Como se encontra na “Lógica”: “tudo na natureza [...] acontece segundo regras [...] e em nenhuma parte há irregularidade alguma. Se pensamos encontrar tal coisa, só podemos dizer neste caso o seguinte: que as regras nos são desconhecidas” (KANT, 2003, p. 29). Sem regras, portanto, nada pode acontecer. Assim, servir de regras é fornecer as condições de possibilidade. Considerando a equivalência entre categoria e conceito puro do entendimento, e que os fenômenos são representações, daí se segue que mostrar “que qualquer representação [...] se coloca necessariamente sob as categorias” (ALLISON, 2004, p. 162) tem o mesmo sentido de dizer que “os conceitos puros do entendimento” são “o princípio da possibilidade de determinação dos fenômenos no espaço e no tempo em geral”. Quanto à segunda parte, Allison resume que se trata de Kant tentando “ligar as categorias (embora indiretamente) à percepção em vez de apenas ao pensamento dos objetos”. Ora, este tinha sido justamente o que tinha sido apontado como central e mais importante em relação à segunda parte. Com efeito, afirmamos que em vez de preocupação com apenas uma epistemologia, ela chamaria a atenção também para a relação sujeito-objeto que, no limite, tem relação com os problemas que o dualismo intelectualista enfrentava. Por isso, podia-se dizer que a segunda parte do “breve resumo” se estendia também por assuntos da metafísica. Em suma, é fato que existe uma diferença muito grande entre a construção do “breve resumo” e da Dedução propriamente dita. Isso, porém, é mais que natural; não se devia 8

Rogério de Souza Teza

Breve Resumo da Dedução Transcendental

esperar encontrar no resumo apenas uma ou outra frase pinçada das subseções conclusivas de cada uma das partes ou dos momentos iniciais em que ainda se estão se apresentando os objetos do texto que deve se seguir. Desta maneira, não é possível dizer que não se trata de um texto exemplar, capaz de além de captar o essencial da divisão do texto e da forma jurídica, ainda pode reafirmar cada um dos argumentos de forma extremamente sucinta. A DOUTRINA DA “CRÍTICA DA RAZÃO PURA” Resta, porém, avaliar se o “breve resumo” é também capaz de fazer transparecer o propósito contido na Dedução e na CRP em geral. Por duas vezes já dissemos que a Dedução é como o coração da CRP. Mas o que Kant afirma que devemos esperar dela? Em trecho referente aos Princípios de uma Dedução Transcendental em Geral, comparando à empreitada anterior da Estética Transcendental, ele afirma sobre a necessidade da dedução que: As categorias do entendimento, pelo contrário, de modo algum apresentam as condições em que os objetos nos são dados na intuição; por conseguinte, podem-nos sem dúvida aparecer objetos, que se não relacionam com as funções do entendimento e dos quais este, portanto, não contenha as condições a priori. Eis porque se nos depara aqui uma dificuldade, que não encontramos no campo da sensibilidade e que é a seguinte: como poderão ter validade objetiva das condições subjetivas do pensamento, isto é, como poderão proporcionar condições de possibilidade de todo o conhecimento dos objetos; pois não há dúvida que podem ser dados fenômenos na intuição sem as funções do entendimento. (KANT, 2010, pp. 122-123)

Essa passagem nos mostra que o objetivo da dedução reside sobre como os “conceitos puros do entendimento” devem determinar os objetos de uma experiência possível, conferindo-lhes, assim, validade objetiva. Esta é, sem dúvida, a ideia que emerge também primeiramente no “breve resumo”. Da primeira parte, vimos que a determinação dos objetos pelas categorias era o principal ponto; da segunda parte, vimos que ela se preocupava na relação entre a “unidade da apercepção”, cuja dimensão é subjetiva, para a objetividade. Essa questão se relaciona, por sua vez, diretamente com toda a problemática desenvolvida na CRP, que, afinal, era responder a questão se os juízos sintéticos a priori eram possíveis, ou seja, se a metafísica é possível. E a Dedução tem papel fundamento na resposta a que se daria, pois como afirma o próprio Kant nos “Prolegômenos” (1988, p. 18): Esta dedução, que parecia impossível ao meu penetrante predecessor, que, além dele, jamais ocorrera a alguém, embora toda a gente se servisse confiadamente dos conceitos sem se interrogar sobre que se fundaria a sua validade objetiva, esta dedução, dizia eu, era o que de mais difícil podia empreender em vista da metafísica [...] Tendo, pois, conseguido resolver o problema de 9

Rogério de Souza Teza

Breve Resumo da Dedução Transcendental

Hume, não só para um caso particular, mas para a faculdade total da razão pura, podia eu dar passos seguros, embora sempre lentos, a fim de determinar finalmente o âmbito global da razão pura, nos seus limites e no seu conteúdo, de um modo completo e segundo princípios gerais: era, pois, aquilo de que precisa a metafísica para construir o seu sistema segundo um plano certo.

A Dedução não surge de uma simples dúvida acerca de ser uma pretensão de conhecimento genuíno, nem se faz com vistas a descobrir e examinar a origem da pretensão e a fonte desta legitimidade. O propósito da Dedução é determinar em relação à origem, o domínio e o limite do uso legítimo das categorias, mas, em conjunto com o projeto da CRP, sua importância é muito maior. Conforme Lebrun (2002, pp. 22), tomar a Dedução neste sentido e isoladamente do restante da CRP “é fazer da ciência dos limites um instrumento a serviço do princípio da possibilidade de experiência; é portanto confundir na Crítica, o positivo com o essencial, como se a delimitação da fronteira do não-saber não passasse de um corolário da fundação das ciências”. Desta maneira, a leitura epistemológica de qualquer parte da CRP, mesmo quanto à Dedução e seu “breve resumo”, como a interpretação de Cohen, é não perceber que o desafio cético de Hume “não animou Kant a fazer-se o servidor da física matemática” (idem, pp. 2324). É equivocado pensar como Husserl que Hume só fez “abalar a confiança das ciências em sua verdade” (idem, p. 22), enquanto, na verdade, elas não tinham fracassado com exceção daquela cuja existência era ambígua: a metafísica. Afinal, a real questão que se quer demonstrar por toda a CRP é “até onde se tem o direito de atribuir uma validade a proposições sintética que não nascem da experiência?” (idem, p.23) É por isso que a Dedução é o coração, mas não o resumo da CRP. É por isso que, finalmente, podemos dizer que o “breve resumo” é realmente brilhante. Sucinto, preciso e rigorosamente adequado na forma do procedimento jurídico que Kant propõe, ele é claro sobre o papel epistemológico, sobre as condições e limites dos conceitos puros do entendimento. Mas sem escapar ao seu escopo, não aponta apenas para este aspecto, como uma leitura superficial poderia fazer entender, ao leitor atento ele permite entrever o desafio de embasar a disciplina metafísica sem se poder recorrer a ela propriamente dita. Desta maneira, capaz de lançar luz sobre o mais essencial, o “breve resumo” encerra a Dedução de uma das formas mais brilhantes que pode se encontrar na Filosofia.

10

Rogério de Souza Teza

Breve Resumo da Dedução Transcendental

BIBLIOGRAFIA 1. ALLISON, Henry E. Kant’s Transcendental Idealism: An Interpretation and Defense. Revised and enlarged edition. New Haven: Yale University Press, 2004. 2. HENRICH, Dieter. “Kant’s notion of a Deduction and the Methodological Background of the First Critique”. In: FÖRSTER, Eckart. Kant's Transcendental Deductions: The Three Critiques and the Opus Postumum. Stanford: Stanford University Press, 1989. pp. 29-46 3. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 7ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. 4. _______. Lógica. Tradução de Guido Antônio de Almeida. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. (Biblioteca Tempo Universitário – Série Estudos Alemães) 5. _______. Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura que Queira se Apresentar como Ciência. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988. 6. LEBRUN, Gérard. Kant e o Fim da Metafísica. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção tópicos) 7. TORRES FILHO, Rubens R. “Dogmatismo e antidogmatismo: Kant na sala de aula”. In: ______. Ensaios de Filosofia Ilustrada. 2ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2004. pp. 137-157

11

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.