Breves comentários sobre o dever jurídico de pagar tributo e sua correlação com os princípios da solidariedade, da igualdade e da justiça social

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Revista Fórum de Direito Tributário ‐ RFDT Belo Horizonte,  ano 4,  n. 19,  jan. / fev.  2006 

Breves comentários sobre o dever jurídico de pagar tributo e sua correlação com os princípios da solidariedade, da igualdade e da justiça social Alessandra Obara Soares da Silva  

"O homem só ou é um bruto ou é um Deus". Aristóteles

Dentro do estudo da Teoria Geral do Direito é essencial identificar os institutos do direito subjetivo e do dever jurídico, estudados como elementos da relação jurídica. Ocorre que, em virtude do direito subjetivo ser estudado, antes de qualquer celeuma doutrinária, como direito pertencente ao ser humano no âmbito de suas relações intersubjetivas (inclusive no direito das coisas), há forte tendência em ampliar a importância deste instituto sobre a do dever, visto primordialmente como uma imposição indesejada. Entretanto, salvo melhor juízo, o instituto do dever jurídico é tão fundamental para o Estado Democrático de Direito quanto o direito subjetivo. O menoscabo do instituto do dever jurídico é evidente na doutrina. Por isso, entendi importante dedicar algumas linhas à reflexão sobre este dever, em especial, o dever jurídico mais mal visto na atualidade: o de pagar tributos. Sempre se viram os direitos da personalidade como limitação ao Estado, como consagração da esfera inviolável do indivíduo. Fala­se aqui em consagração, adotando­se lição doutrinária no sentido de que os direitos da personalidade nada mais são que os direitos humanos positivados como direitos fundamentais. Neste sentido, Humberto Ávila assim se manifesta: "os direitos de personalidade vinculam­se profundamente com o princípio da dignidade humana. Os aqui mencionados direitos de personalidade relacionam­se com a esfera privada, não podendo ser violados pelo Estado."1 Entretanto, visto de um outro ângulo, os direitos da personalidade envolvem também deveres. Afinal, se basta nascer com vida para titularizar direitos, basta nascer com vida para incorporar deveres ao seu patrimônio. Se há previsão dos direitos intangíveis pelo Estado ou por outros indivíduos, é porque há a possibilidade do Estado impor deveres aos seus nacionais e outras pessoas sob sua jurisdição. Justamente em virtude desta dualidade é necessário explicitar a esfera de direitos inerentes à dignidade humana que seriam intangíveis. Neste mesmo sentido, há deveres inerentes à dignidade humana que seriam intangíveis pelo ser humano, isto é, deveres dos quais é impossível se furtar sem romper com o ordenamento jurídico. Se a máxima de que a cada direito corresponde um dever for válida, então ao direito fundamental de viver em sociedade de uma forma digna corresponde o dever fundamental de contribuir com o custeio da vida nesta sociedade, pagando tributos.2 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público ­ Cópia da versão digital

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Aqui resvalamos no ideal de Justiça Social. A Justiça Social está em cada componente da sociedade contribuir com o que pode e receber o que necessita. É a perfeita idéia de troca, dentro das possibilidades e necessidades de cada indivíduo da comunidade. O dever jurídico de pagar tributo é visto, hoje e quase sempre, como uma tarefa inglória, como uma obrigação unilateral e opressivamente imposta ao nacional. Como explica Ives Gandra da Silva Martins, em sua tese de doutorado datada de 1982, a norma que impõe tributo é uma norma de rejeição social porque ingressa "naquela categoria de normas que poucas pessoas cumpririam sem sanção." Em oposição às normas de aceitação social, que seriam aquelas "cumpridas pela grande maioria dos seres humanos mesmo que inexistisse sanção, esta é uma mera conseqüência, visando a atingir pessoas inadequadas à convivência social e aos casos patológicos".3 Esta rejeição social, lembra o constitucionalista, decorre da consagração do tributo no curso da história da humanidade como o maior instrumento de domínio de que dispõem os governantes. De fato, não desconhecemos os fatos históricos que dão conta de que o produto da arrecadação tributária é comumente utilizado com desvio de sua finalidade. Todavia, até hoje, não se criou outro instrumento capaz de sustentar economicamente a vida em sociedade. Assim, mesmo com um passado inglório, o dever jurídico tributário é a única forma de sustentar o Estado, seja ele Democrático ou não. É o instrumento que permite a convivência em uma sociedade agregada e organizada. Como lembra Marco Aurélio Greco com muita propriedade, não há como raciocinar sobre direitos fundamentais sem examinar os equivalentes deveres, dentre os quais, o dever de ratear o custo do Estado querido pela sociedade. Com efeito, na medida em que a sociedade quer um Estado que não seja proprietário de todos os bens (de cuja exploração resultariam recursos suficientes para seu funcionamento) e, mais, se ela pretende que esse Estado faça algo (p.ex. proveja à seguridade social, o dinheiro de que necessita deveria vir de alguma outra origem que não seja a mera exploração de seu patrimônio. Vale dizer, virá da tributação. Daí falar­se em "Estado Fiscal" como aquele que, para subsistir, necessita de tributos).4 Como a finalidade última do Estado Democrático de Direito, como é o que vivemos, é o bem estar social, alcançado com a plena realização dos objetivos da República Federativa Brasileira, insculpidos no artigo 3º, da Carta Constitucional de 1988. Para alcançar o bem estar social e, mais fundamental, para sustentar­se, o Estado necessita de financiamento. E, quem financia o Estado é aquele que lhe outorga Poder e legitimidade para exercê­lo, ou seja, o POVO. Neste sentido, o pagamento de tributo, mais do que uma obrigação, é um dever, inerente a todos os indivíduos que optam por viver em Comunidade.

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Falamos aqui em "opção" com o apoio de Maria Helena Diniz que, em suas aulas de Filosofia do Direito na pós­graduação da PUC/SP, lembra Santo Tomás de Aquino, ao apontar três hipóteses excepcionais em que o homem pode viver fora da sociedade: mala fortunata _ quando, por força das contingências, o homem é levado a viver só (verbi gratia, no caso de um naufrágio que leva o homem a viver numa ilha deserta), corruptio naturae _ quando o homem adquire tamanha repulsa ao semelhante em decorrência de desvio mental e se afasta da sociedade, para viver em solidão, e excelentiae naturae _ consiste na vocação sobre humana em que sozinho o homem consegue atingir os objetivos de sua vida, v.g., o indivíduo espiritualmente perfeito. Desta forma, todas as pessoas que vivem em sociedade devem pagar tributos, como atitude legítima de custeio do Estado que as representa e fornece­lhes os meios essenciais para sua subsistência,5 donde se conclui que todos devemos pagar tributo como concretização do princípio da igualdade e da solidariedade. A tributação, em regra, é vista unicamente como direito do Estado de invadir a esfera da propriedade privada, retirando­lhe certo montante. Mas, é imprescindível recordar que o dinheiro arrecadado com o exercício da competência tributária e da capacidade tributária ativa é dinheiro público, dinheiro do povo, utilizado para custear a sociedade como um todo. Cabe ressaltar que, na doutrina, no estudo da Ciência do Direito, tal como defendido por Hans Kelsen, mas com os temperamentos de Norberto Bobbio, o estudo puro de um instituto impõe alguns cortes metodológicos que implicam no afastamento momentâneo da realidade fática. Neste sentido, apenas para delimitar o objeto desta reflexão, deixo de lado assuntos como as cinematográficas atuações da Polícia Federal que demonstram atitudes populistas de criminalização do enriquecimento, seja ele lícito ou não. Deixo de lado questões como a suposta consagração da necessidade de abster­se de recolher tributo como etapa necessária para o desenvolvimento da atividade econômica no país. Isto porque é fácil constatar a existência de um paradoxo: deixa­se deliberadamente de recolher mais para crescer mais porque a carga tributária é elevada. De outro lado, a carga tributária é elevada porque há grande abstinência de recolhimento, que impede o desenvolvimento da economia nacional. Como resolver o dilema? Daí a necessidade de propor a análise do dever jurídico de pagar tributo sob o ângulo da sustentabilidade do Estado Democrático de Direito em que optou por viver o Povo desta nação. A tributação é inerente à vida em sociedade e a abstinência tributária fere de morte o princípio da igualdade e da solidariedade e, desta forma, contribui para o rompimento do Estado Democrático de Direito! Dentro da ciência jurídica, o bom tributo é salutar e deve ser pago por todos os indivíduos que convivem em sociedade.6 Ainda, cumpre ressaltar que o estudo do dever fundamental de pagar tributo está intrinsecamente ligado ao federalismo fiscal, isto é, à possibilidade de repartir com justiça as receitas tributárias entre os diversos entes da federação, sempre na busca da realização da Justiça Social, alcançando­ se o bem estar social.

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Por mais esta razão, ao viver em comunidade é necessário aceitar as regras ­ obviamente, se não forem manifestamente ilegais, coibindo abusos ­ e assumir o sentimento de solidariedade. A vida em comum, seja ela no ambiente profissional ou pessoal e familiar demanda cessões. Especialmente na vida em sociedade as cessões devem ser maiores, conforme as proporções reais. O que se pretende dizer é que aceitar o pagamento de tributos é algo que a princípio causa repulsa, como já lembramos ao citar a idéia de rejeição social. Mas, é preciso entender que cada um e todo mundo está submetido às mesmas regras. Aí o princípio da igualdade. E, se uma única pessoa se furta dolosamente de pagar tributo, esta pessoa está quebrando a isonomia e estará onerando injustamente o seu colega na sociedade. O problema assume proporções inimagináveis quanto mais pessoas aderem a este pensamento, cada vez mais comum, de recusar cumprir com seu dever cívico de recolher tributo aos cofres públicos. A í   o descumprimento do princípio da solidariedade. O pensamento egoísta de que a abstinência fiscal é benefício individual, apenas acarreta o aumento da carga tributária sobre os demais conviventes do mesmo território. E, sobrecarregando a carga, há um maior incentivo para sonegar, já que dá azo ao pensamento de que o meu vizinho não paga tributo e eu tenho que pagar cada vez mais para compensar a falta daquele que renega a sua natureza de convívio em sociedade. Forma­se, assim, um círculo vicioso cujo término não será outro que não a ruptura do Estado Democrático de Direito, já que culminará num rompimento radical do princípio da isonomia, pilar básico desta modalidade de Estado! Por isso, quanto mais cedo for iniciado um processo de conscientização e re­educação, mais chances teremos de reverter o quadro caótico para o qual estamos caminhando. Também não serve de escusa para a sonegação o fato de o Governo gastar o dinheiro público com coisas mais ou menos necessárias à Nação. Ora, quem elege os Governantes é a mesma população que paga tributos. E, neste sentido, cabe à população avaliar com quem possui o maior número de interesses em comum para, então, elegê­lo como Governante e como gestor e administrador do dinheiro público, aumentando a satisfação da sociedade, diminuindo suas necessidades e conferindo orgulho ao cidadão que, ao pagar o seu tributo, tem a certeza de que aquele dinheiro será revertido na conquista do bem estar social. Não podemos deixar de lembrar que é muito confortável eximir­se de qualquer responsabilidade alegando que os Governos é que são corruptos. Sem a pretensão de apresentar uma solução, a intenção é despertar no leitor a vontade de analisar o dever jurídico de pagar tributo sob outro ângulo, ou seja, entender que o tributo é pago para benefício da sociedade e como instrumento de sua realização. Por isso, quer seja na finalidade fiscal, quer seja na extrafiscal, pagar tributo é um dever comunitário, conforme o princípio da solidariedade. Através do pagamento de tributos realizam­se as atividades essenciais do Estado que permitem a vida em sociedade e possibilitam o atingimento dos objetivos fundamentais da República Brasileira.

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Por isso, pagar tributo é um dever fundamental de todo cidadão ­ aqui entendido não no sentido técnico de alistado eleitoralmente, mas no sentido sociológico de componente de uma nação. Com o nascimento com vida, forma­se a personalidade para fins de Direito, reconhecendo­se à pessoa humana recém­surgida, ou à pessoa jurídica recém­criada, direitos e deveres fundamentais. Portanto, o dever de pagar tributo nasce junto com o direito à vida, ou com o direito à existência, no caso das pessoas jurídicas. Assim, vislumbro o dever de pagar tributo como o primeiro dever que se insere na esfera de direitos e deveres do ser humano que nasce com vida, no seio de uma sociedade, ou na esfera de direitos e deveres da pessoa jurídica. Confirmação disto é o artigo 126 do Código Tributário Nacional, que estabelece que a capacidade tributária passiva independe da capaci­ dade civil plena.7 1 Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 331. 2  C u m p r e   r e s s a l t a r   q u e   a t é   m e s m o   J . J .   G o m e s   C a n o t i l h o   q u e   d e f e n d e   o   p r i n c í p i o   d a

"assinalagmaticidade ou da assimetria entre direitos e deveres fundamentais", não afasta a possibilidade de existência de "deveres conexos com direitos fundamentais e deveres fundamentais não autônomos ou deveres fundamentais correlativos a direitos." Mas, classifica o dever fundamental de pagar tributo como dever autônomo, não relacionado diretamente a um direito subjetivo específico, justamente porque o objeto deste dever (o tributo) será utilizado para custear a sustentabilidade do Estado e da sociedade. (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 527­529) 3 Teoria da Imposição Tributária. 2. ed. São Paulo: LTr, 1998, p. 406. 4 Solidariedade Social e Tributação. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI. Marciano Seabra de

(Coord.). Solidariedade Social e Tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 182. 5 Deixamos de lado, por desbordar os limites desta breve reflexão, as mazelas da sociedade

brasileira que levam ao fornecimento de um serviço público precário. Até porque, o tema ora desenvolvido está adstrito aos limites da reserva do possível. 6 O bom tributo (aquele que não é ineficiente do ponto de vista econômico) é assim explicitado por

Daniel K. Goldberg, citando Bird (Entendendo o Federalismo Fiscal: uma Moldura Teórica Multidisciplinar. In: CONTI, José Maurício (Org.). Federalismo Fiscal, p. 23): (1) a base tributária deve ser pouco manipulável para que se possa garantir aos entes locais alguma autonomia na fixação de alíquotas maiores sem que isto cause um deslocamento de contribuintes; (2) a arrecadação resultante do tributo ou tributos deve fazer frente às necessidades locais e ser suficientemente elástica (buoyant) (i.e., expandir­se na mesma proporção das despesas públicas); (3) as receitas tributárias devem ser estáveis e previsíveis.

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(4) a carga tributária deve ser percebida como razoavelmente justa pelos contribuintes; (5) o tributo deve ser administrável, e sua arrecadação visível aos contribuintes para que estes possam cobrar a administração no que diz respeito à sua adequada destinação (accountability); (6) a natureza do tributo deve tornar sua incidência efetiva de difícil exportação a outros entes federativos." 7 Art. 126. A capacidade tributária passiva independe:

I _ da capacidade civil das pessoas naturais; II _ de achar­se a pessoa natural sujeita a medidas que importem privação ou limitação do exercício de atividades civis, comerciais ou profissionais, ou da administração direta de seus bens ou negócios; III _ de estar a pessoa jurídica regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional.

Como citar este conteúdo na versão digital: Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: Breves comentários sobre o dever jurídico de pagar tributo e sua correlação com os princípios da solidariedade, da igualdade e da justiça social. Revista Fórum de Direito Tributário ­ RFDT Belo Horizonte, n. 19, ano 4 Janeiro / Fevereiro 2006 Disponível em: . Acesso em: 29 ago. 2016.

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