Breves Considerações sobre a Filosofia do Direito de Hegel

July 17, 2017 | Autor: Marcelo Cattoni | Categoria: Legal Philosophy
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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL1 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira2 David Gomes3 “O terreno do direito é, em geral, o espiritual, e seu lugar e seu ponto de partida mais precisos são a vontade, que é livre, de modo que a liberdade constitui sua substância e sua determinação e que o sistema do direito é o reino da liberdade efetivada, o mundo do espírito produzido a partir dele mesmo, enquanto uma segunda natureza.” (HEGEL, Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, § 4)

I. Introdução

Pese a que sua obra tenha passado por mudanças importantes ao longo de sua vida (BOURGEOIS, 2000a), os temas do direito, da história e da filosofia nunca deixaram de merecer especial atenção de Hegel (1975), principalmente na elaboração mais madura do que ficaria conhecido como o sistema hegeliano (HEGEL, 1995B; BOURGEOIS, 2000b, p. 6062). Mas dizer que o direito, a história e a filosofia foram eixos fundamentais da reflexão hegeliana não basta. É necessário acrescentar – e talvez nisso resida a grandeza de Hegel – o caráter sui generis com o qual ele os concebeu (Cf. KERVÉGAN, 2007; LABARRIÈRE e JARCZYK, 1989). Dono de uma linguagem filosófica própria (McCUMBER, 1993; BOURGEOIS, 2000b; SURBER, 2006; REID, 2007; VERNON, 2007), Hegel tem sido lido de variadas formas4. À direita e à esquerda – em pontos ora mais, ora menos radicais do espectro ideológico –, essas várias interpretações, todavia, não são estranhas quando se trata de uma obra cujos propósitos não se continham nos limites de um ou outro ponto da realidade, de um ou outro dos temas clássicos da filosofia, mas pretendia ser uma abordagem da totalidade, ainda que atribuísse a essa totalidade uma definição inovadora. 1

Originalmente publicado em ALVES, Adamo Dias; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; GOMES, David Francisco Lopes. Constitucionalismo e Teoria do Estado. Belo Horizonte: Arraes, 2013, p. 11-28. 2 Bolsista em Produtividade do CNPq (1D). Mestre e Doutor (UFMG); Estágio Pós-Doutoral com Bolsa da CAPES (Universitá degli Studi di Roma III). Professor Associado IV da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. 3 Mestre e Doutorando (UFMG). Professor Assistente A do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras. 4 CF. REYBURN, 1921; SIEP, 1997; LÖWITH, 2000, p. 89-211; NEUHOUSER, 2000; MARX, 2005; PIRES, 2006; AVINERI, 1972; TAYLOR, 1975; PELCZYNSKI, Z. A, 1976; PELCZYNSKI, Z. A, 1984; LABARRIÈRE e JARCZYK, 1986; LABARRIÈRE e JARCZYK, 1989; JARCZYK, 2001; SALGADO, 1996; WILLIAMS, 2001; DALLMAYAR, 2002; PIPPIN e HÖFFE, 2004; KERVÉGAN e MARMASSE, 2004; TAYLOR, 2005; BEISER, 2005; ROSENZWEIG, 2008; BROOKS, 2009; PIPPIN, 2008; HONNETH, 2008; CALVET DE MAGALHÃES, 2009; WEIL, 2009; SALGADO e HORTA, 2010; ZIZEK, 2012; HONNETH, 2012; HONNETH, 2014, p. 42-62; DERANTY, 2014, p.121-142.

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Percorrer, porém, toda a abordagem hegeliana da totalidade, do desdobramento desse todo organizado (BOURGEOIS, 2000b, p. 5), vai além das pretensões deste capítulo. Aqui, este texto restringe-se a discutir alguns aspectos do chamado espírito objetivo, mais precisamente da constituição interna do Estado. Sem dúvida, em razão de seu caráter sistemático, isso não é possível sem referências ao restante da obra de Hegel. Mas essas referências serão feitas apenas na medida em que sejam necessárias para a compreensão do objeto principal do texto. Esse recorte pode parecer, num primeiro momento, facilitar o trabalho de interpretação dos escritos hegelianos. Mas não é esse o caso. Tanto no prefácio das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito (1952; 2002; 2003; 2006; 2008; 2010), quanto nos três prefácios às três edições da Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1995A; 1995B), Hegel deixa bem claro que se trata de compêndios voltados inicialmente para seus cursos de filosofia. São anotações às quais deveria seguir-se a exposição oral feita por Hegel em suas aulas. Logo, os textos de ambas as obras, ainda que com comentários do próprio autor, são sucintos e carentes de uma explanação mais detalhada. Essa explanação foi registrada em anotações de seus alunos (CF. RODESCHINI, 2005). Mas, conquanto elas possam ajudar na compreensão do pensamento hegeliano, há complicações significativas em apoiar-se somente nelas para afirmar algo mais sobre esse pensamento (PEPERZAK, 2001, p. 23-29). “Hegel desapareceu, resta uma obra difícil” (KERVÉGAN, 2008, p. 15). De um lado, textos sucintos, dependentes de ulteriores explicações. De outro, explicações que só podem ser encontradas em anotações feitas por estudantes que estiveram presentes aos cursos de Hegel, além de comentários e anotações de amigos e pessoas próximas a ele. Nesse emaranhado de linhas e entrelinhas é que se deve situar qualquer esforço hermenêutico em face da obra hegeliana. Nas linhas abaixo, é um esforço como esse que se pretende empreender. Como tese norteadora, toma-se o postulado segundo o qual o reconhecimento pleno de duas autoconsciências universais (CF. LABARRIÈRE e JARCZIK, 1986) – como um desdobrar-se da própria autoconsciência universal no outro de si que é ela mesma – é a base do espírito objetivo, e a violência, embora possa aparecer como fenômeno na origem dos Estados, não faz parte da essência destes.

II. O direito e o sistema hegeliano

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“O terreno do direito é, em geral, o espiritual, e seu lugar e seu ponto de partida mais precisos são a vontade, que é livre, de modo que a liberdade constitui sua substância e sua determinação e que o sistema do direito é o reino da liberdade efetivada, o mundo do espírito produzido a partir dele mesmo, enquanto uma segunda natureza” (HEGEL, 2010, § 4, p. 56; HEGEL, 1952, § 4, p. 12). Essas afirmativas, contidas na introdução das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito5, podem ser desencaminhantes se interpretadas isoladamente. Dizer que o terreno do direito é o espiritual exige que se diga também o que é o espírito. Sustentar que a origem do direito é a vontade livre e que a liberdade é a sua substância e o seu objetivo requer esclarecimentos acerca do que é vontade, do que é vontade livre, do que é liberdade e do que é substância. E postular que o direito é o reino da liberdade, que é realizada pelo e para o espírito, num mundo entendido como segunda natureza, faz necessário discorrer sobre a natureza e, uma vez mais, sobre o espírito. Em outras palavras, abordar adequadamente o direito, o espírito objetivo de Hegel, só é possível se o primeiro passo dessa abordagem consistir em situar o direito no interior do sistema hegeliano. Afinal, se esse sistema tem mesmo características sistemáticas e se, como sistema, pretende abranger a totalidade, qualquer dos elementos que a compõem precisa ter descrito seu lugar no todo, uma vez que se relaciona com esse todo e com todas as outras partes que o formam. Tudo começa, e termina, com o absoluto (CF. BOURGEOIS, 2000b, p. 5-6). Inicialmente, o absoluto se expressa como uma substância indiferenciada e existe apenas em si mesmo. Como substância, entretanto, ele não é uma massa passiva na qual um sujeito externo deve agir. O absoluto é, a um único tempo, substância e sujeito, de maneira que é ele mesmo quem age sobre si para engendrar diferenciações naquele início indiferenciado. Essas diferenciações ocorrem através de um processo em que o absoluto (que no começo é somente o absoluto em si) põe-se fora de si (tornando-se um absoluto para-si) e depois retorna a si (sendo, então, o absoluto em si e para si). No princípio, no todo indiferenciado que é o absoluto em si, há uma identidade da identidade. Ao término da processualidade ao longo da

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Hegel afirma no prefácio das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito (HEGEL, 2010, p. 31; HEGEL, 1952, p. 1) que esta se trata de uma exposição maior e mais detalhada dos mesmos conceitos fundamentais contidos na Enciclopédia das Ciências Filosóficas (HEGEL, 1995A; 1995B), bem como tanto em seu prefácio quanto em sua introdução refere-se à Ciência da Lógica para dizer que o método nela exposto será pressuposto como já conhecido. Apesar disso, há diferenças entre o tratamento dado ao direito, isto é, ao espírito objetivo, na Enciclopédia e nas Linhas Fundamentais. Do mesmo modo, há também diferenças entre a lógica apresentada na Ciência da Lógica e a lógica interna que rege as Linhas Fundamentais (PEPERZAK, 2001, p. 53-109). Não se abordará aqui até que ponto são diferenças reais ou diferenças aparentes, resultado apenas de maneiras distintas de exposição.

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qual o absoluto se vai diferenciando até aparecer como absoluto em si e para si, há a identidade da identidade e da diferença. No curso do processo de diferenciação, o absoluto primeiro aparece como ideia. A ideia pura é o objeto da ciência da lógica (HEGEL, 1995A, § 19, p. 65), que se divide na doutrina do ser, na doutrina da essência e, por fim, na doutrina do conceito (HEGEL, 1995A, § 83, p. 169). Ao final dessa etapa, em que o absoluto lida internamente consigo mesmo, ele alcança o nível do conceito, e é a partir do conceito que pretenderá realizar-se no mundo6. Numa segunda etapa, portanto, o absoluto se ex-põe, isto é, põe-se fora de si, numa natureza que, todavia, nada mais é do que o próprio absoluto como o outro de si, como seu ser-no-outro (BOURGEOIS, 2000b). Ultrapassado esse estágio em que o absoluto mostra-se como natureza, ele retorna a si para apresentar-se como espírito, cujo conhecimento é o mais concreto, o mais alto e o mais difícil (HEGEL, 1995B, §377, p. 7). Em seu desenvolvimento como espírito, o absoluto interioriza-se, a partir da natureza, alcançando-se como espírito subjetivo. E, novamente, exterioriza-se como espírito objetivo num mundo construído por ele e para ele como segunda natureza. Finalmente, retorna a si, como junção do subjetivo e do objetivo, no espírito absoluto, que é o absoluto reencontrando a si mesmo como sendo em si e para si – na arte, na religião e, acima de tudo, na filosofia. Essa breve exposição do desdobrar-se do absoluto permite situar o direito, como espírito objetivo, entre o espírito subjetivo e o espírito absoluto. Mas alguns outros esclarecimentos ainda são necessários antes de adentrar especificamente o espírito objetivo. A filosofia aparece ao final do percurso a ser traçado pelo absoluto. A filosofia é a ciência da razão. Não por acaso ela aparece no fim desse percurso: acontece que o absoluto hegeliano é desde sempre idêntico à razão e é como razão que ele se desdobra até alcançar a filosofia, onde finalmente pode pensar sobre si mesmo. A filosofia, como ciência da razão, é,

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O uso das expressões “absoluto”, “ideia”, “espírito” e “conceito”, além de outras como “Ideia”, “ideia absoluta” e mesmo “Deus”, não é de fácil compreensão na obra hegeliana. Somam-se a isso dificuldades geradas pelas traduções: como no idioma alemão os substantivos sempre se iniciam com letras maiúsculas, o uso, em contextos diferentes, de palavras como “Ideia” e “ideia” não parece repousar numa base de todo sólida. No presente artigo, dados os seus limites e seu tom introdutório, procurar-se-á evitar uma utilização confusa das expressões, tendo-se a consciência de que essa pretensão, embora talvez mais didática, pode resultar na perda de alguns aspectos importantes da complexa articulação da filosofia de Hegel. Como fica claro no texto, reserva-se para a substância e sujeito universal o termo “absoluto”. O termo “ideia” é utilizado para o primeiro estágio do desdobrar-se do absoluto; “conceito” refere-se ao último momento desse primeiro estágio, antes de passar-se à natureza; e “espírito” é palavra usada tanto para o terceiro estágio do desdobramento do absoluto, após retornar da natureza, quanto para um momento específico, o terceiro momento, do chamado espírito subjetivo. CF. BOURGEOIS, 2000b.

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assim, a ciência do absoluto, que tem o absoluto como objeto e também como sujeito (duplo genitivo). Se o desdobrar-se do absoluto é um desdobrar-se sempre do absoluto como razão, esse desdobrar-se segue os caminhos da lógica. Ou seja, a lógica, embora definida como ciência da ideia pura, não se restringe à etapa inicial de diferenciação do absoluto. Ela perpassa todo o percurso que este desenvolve: tanto a natureza quanto o espírito igualmente desdobram o absoluto segundo os meandros da lógica. Mas a lógica hegeliana é, de igual modo, sui generis. Ela abrange três momentos: a positividade inicial e abstrata, o lado do entendimento; uma primeira negação, seu lado dialético ou negativamente racional; e uma segunda negação, ou negação da negação, seu lado especulativo ou positivamente racional (HEGEL, 1995A, § 79, p. 159)7. São esses três momentos, em sucessivas negações – que são sempre assimilações, isto é, superações que conservam o momento superado –, que regem o desdobramento do absoluto, tanto como ideia quanto como natureza e como espírito, através de uma infinidade de tríades de tríades, nas quais se mediam reciprocamente a universalidade (abstrata), a particularidade e a singularidade (universalidade concreta). Em outros termos, a lógica guia a formação de tudo o que há no universo, pois o absoluto é a substância universal que perpassa tudo o que há. Por isso, a lógica de Hegel não é uma dimensão simplesmente formal do pensamento abstrato: a lógica hegeliana é uma onto-lógica, pois o ser se constitui segundo ela. Ser e pensamento – exatamente porque o absoluto é razão – coincidem. Nesse mesmo sentido, forma e conteúdo não aparecem separados, mas estão sempre internamente unidos: todo conteúdo é expressão de uma forma, e toda forma é a forma de um conteúdo. Nas palavras de Hegel, os momentos da lógica são “momentos de todo e [qualquer] lógico-real“ (HEGEL, 1995A,§ 79, p. 159)8. Isso leva a outra questão importante. A descrição das diversas etapas pelas quais passa o absoluto em seu processo de diferenciação pode dar a falsa impressão de que esse é um processo que coincide com a história. Mas não é necessariamente e sempre assim. Os estágios que o absoluto atravessa são descritos de um ponto de vista lógico, ou melhor, ontológico, que é o ponto de vista do conceito a partir e através do qual, como dito acima, o absoluto se realiza, ou busca realizar-se, no mundo. Embora se valha da história para revelar-

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É comum referir-se à filosofia hegeliana como filosofia dialética. Contudo, o momento dialético é somente um dos momentos que compõem a Lógica de Hegel. 8 Outra rotulação comum de Hegel é aquela que o define como idealista. Essa definição não pode ser feita sem as devidas ressalvas, uma vez que em seu sistema – por causa da unidade entre pensamento e ser, entre forma e conteúdo – não há uma distinção, aos moldes platônicos, entre o ideal e o real, entre a forma ideal e o preenchimento de seu conteúdo no mundo real.

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se como absoluto, ele não coincide com ela. A sociedade civil, por exemplo, que antecede o Estado no desenvolvimento do conceito, é posterior a ele do ângulo histórico, posto que somente surge modernamente, enquanto o Estado é muito anterior à modernidade. O fato de que o desdobramento lógico-ontológico do absoluto não ter um paralelo necessário com o desenrolar-se da história pode evitar alguns mal-entendidos, principalmente perante aqueles que leem a obra hegeliana como uma grande justificativa das atrocidades históricas. É verdade que Hegel acredita numa finalidade histórica, o que permite falar, pelo que acima ficou exposto, da lógica como uma ontologia. Isso significa que, para ele, o absoluto deve percorrer todo o caminho para que retorne a si como absoluto em si e para si. Mas a necessidade do desdobrar-se do absoluto não é a necessidade de que esse desdobramento se dê por meio de barbáries. Que ele se possa valer delas para seu revelar-se ao longo da história, tudo bem. Mas, numa compreensão adequada da chamada astúcia da razão, valer-se delas não é o mesmo que engendrá-las ou justificá-las. Relacionada a essa discussão, há a famosa assertiva hegeliana, no Prefácio às Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, segundo a qual “o racional é efetivo e o efetivo é racional”. Essa assertiva, no entanto, é mais bem compreendida a partir de uma distinção entre o fenômeno, o contingente, o empírico, e a efetividade (HEGEL, 1995A, § 6, p. 44-46). Nem tudo o que existe é efetivo; só o é aquilo que expressa o absoluto em seu desdobramento através do conceito. Consequentemente, se o absoluto é razão, nada mais óbvio do que afirmar que o efetivo, como expressão do absoluto, é racional. E se o absoluto dá à história uma dimensão finalística – na medida em que deve necessariamente realizar-se valendo-se dela –, claramente se conclui que o racional é efetivo, ou que, pelo menos, ele virá a ser efetivo (KERVÉGAN, 2008, p. 22-24). Daí decorrem outros esclarecimentos. O fim da história hegeliano não é o fim do mundo (KERVÉGAN, 2008, p. 30-31). O fim da história é a finalidade histórica, a teleologia histórica, fruto da crença hegeliana de que o absoluto será capaz de superar os obstáculos que encontrar pelo caminho para que possa chegar de volta a si. Se o absoluto é a substância universal que perpassa todas as coisas e que engendra o surgimento delas por ser também sujeito universal; e se, por outro lado, a processualidade da diferenciação do absoluto não coincide com a história - é possível desfazer outra concepção comum e equivocada sobre Hegel. Ele não é um pensador totalitário, e não só porque o totalitarismo, como fenômeno político, teria lugar apenas em meados do século XX. Hegel não é um pensador totalitário porque sua filosofia só é devidamente compreendida se se 6

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reconhece o papel central que nela cabe à liberdade individual9. O sonho inicial hegeliano de um retorno à bela totalidade da pólis grega é desmontado exatamente porque Hegel percebe que entre o mundo antigo e o seu mundo há a introdução de um elemento fundamental que é a subjetividade, a individualidade ausente na antiguidade (BOURGEOIS, 2000). Logo, os indivíduos não são meros fantoches do absoluto. Como sujeitos livres, eles constroem a história. Enquanto o absoluto, com a astúcia da razão, vale-se dessa história para revelar-se e ir à busca do retorno a si, superando o sentido que os indivíduos, sempre restritos no tempo e no espaço, dão a seus atos, e procurando fazer desses atos momentos através dos quais pode percorrer o percurso que deve completar. Com as explicações acima, pode-se sustentar que a crença de Hegel na força do absoluto10 para completar sua estrada através da história é a base da crença de Hegel em um sentido, uma finalidade, imanente à história. Como sua diferenciação é um processo ontológico, o absoluto deve retornar a si, ou seja, é necessário que ele retorne a si, o que se traduz na teleologia histórica. Mas essa necessidade é nada mais do que a necessidade de que o absoluto realize plenamente as potencialidades contidas nele quando era apenas um indiferenciado absoluto em si. Portanto, essa necessidade coincide com a liberdade do absoluto, com a liberdade de vir a ser o que sempre era desde o início, mas ainda não como realidade efetivada. A necessidade do absoluto, da qual ele novamente é sujeito e objeto, é a liberdade do absoluto, a expressão da verdadeira liberdade. E a liberdade individual, para ser também verdadeira, deve conciliar-se com a liberdade do absoluto. Para isso, ela precisa ser uma liberdade, por um lado, racional, pois o absoluto é razão; e deve também encontrar-se objetivada, pois o absoluto só se realiza plenamente como mediação final do espírito subjetivo e do espírito objetivo no espírito absoluto.

III. A vontade livre e o direito

Tendo-se exteriorizado na natureza, o absoluto começa o retorno a si interiorizandose como espírito subjetivo. Nesse estágio, primeiramente ele se manifesta como alma. Esta se refere aos aspectos naturais do humano, à sua animalidade ainda imersa na natureza, não diferenciada dela. 9

CF. MARCUSE, 2004, p. 151-193; LOSURDO, 2004; HONNETH, 2008; WILLIAMS, 1997. Essa força e essa crença são também o solo em que Hegel se apóia em uma de suas frases muito citadas e muito pouco entendidas. Segundo consta, um aluno teria contestado Hegel em uma de suas aulas com fatos que não corresponderiam ao desenvolvimento do absoluto e, por consequência, à razão. Hegel teria respondido, “pior para os fatos” (SALGADO, 1996B, p. 19). 10

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Num segundo momento, o absoluto apresenta-se como consciência, diferenciando-se da natureza. Os objetos que compõem esta aparecem ao absoluto como externos a ele. Nesse sentido, ele é consciência, como distinto do que existe à sua volta. Mas essa afirmação da consciência, em face dos objetos em seu entorno, permanece numa dimensão abstrata. Para concretizar-se a consciência precisa desdobrar-se como autoconsciência. E a autoconsciência, para que ela possa se reconhecer não mais como seu objeto, mas como idêntica a ela mesma, precisa encontrar outra autoconsciência. Esse reconhecimento, ao permitir à autoconsciência reconhecer ela mesma numa outra, possibilita, ao mesmo tempo, que ela se reconheça como autoconsciência universal (CF. CALVET DE MAGALHÃES, 2009). Alcançado o nível da autoconsciência universal, o absoluto chega à razão. Nesse momento, ele – que, como interiorização a partir da natureza, é espírito desde o início dessa interiorização e sempre – se pode mostrar como espírito num sentido mais restrito. No nível do espírito nesse sentido mais restrito, a autoconsciência universal sabe-se como idêntica ao mundo a seu redor. Não há mais a separação entre sujeito e objeto. Essa identidade entre sujeito e objeto é a unidade da razão, da razão que, como sinônimo do absoluto, tudo perpassa e preenche. Essa razão, manifestando-se no e como espírito num sentido estreito da palavra, possui dois lados, o teórico e o prático, respectivamente, a inteligência e a vontade. Não são caracteres estanques, separados ou independentes, e muito menos opostos. A vontade ligada à inteligência é, assim, vontade racional. Como expressão da razão que é o absoluto, essa vontade é também a vontade do absoluto. Por conseguinte, ela é uma vontade da liberdade verdadeira, ela é uma vontade efetivamente livre (HEGEL, 1995B, § 480, p. 274). Vontade do absoluto, a vontade livre, embora livre, só pode querer o que o absoluto quer, nisso habitando precisamente a sua liberdade como vontade. Por sua vez, o que o absoluto quer é o seu desdobramento, sua diferenciação, que, como mostrado supra, expressa a liberdade verdadeira. Como consequência, a vontade livre não pode querer outra coisa senão a liberdade, a construção de um mundo onde a liberdade possa objetivar-se e encontrar morada. Esse mundo, construído pelo absoluto e para o absoluto manifestando-se como espírito e, mais especificamente, como vontade livre, é o mundo do espírito objetivo. É o reino do direito. Como sinônimo do espírito objetivo, o direito de Hegel não se limita ao direito numa acepção restrita. Este último é chamado direito abstrato e consiste no primeiro momento do 8

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espírito objetivo, do direito numa acepção mais ampla11. O segundo momento é a moralidade. Os aspectos formais e abstratos da subjetividade desenvolvidos nesses dois momentos, porém, vão encontrar sua concretude somente no terceiro momento, a eticidade ou vida ética. Ela é o espaço onde se situam as relações sociais e intersubjetivas no interior das quais os indivíduos se reconhecem mutuamente, nas esferas das relações familiares, comerciais e jurídicas, das associações públicas e privadas, das nações e dos Estados, com sua cultura e sua história (CF. por um lado, HONNETH, 2008, p. 86-105; HONNETH, 2009, p. 225-248; por outro, PEPERZAK, 2001, p. 382). É na vida ética que a liberdade é plenamente objetivada. Aqui, é necessário discorrer sobre mais um dos equívocos comuns relativos à obra de Hegel. Sem dúvida, este coloca uma ênfase na vivência comunitária. Todavia, como afirmado acima, ele tem consciência de que uma característica central da modernidade é a figura do indivíduo livre. O acento hegeliano na dimensão comunitária da vida humana leva-o a compreender o terceiro momento do espírito objetivo, a vida ética, como totalidade ética, mas essa totalidade, uma vez mais, não significa totalitarismo ético. Ao contrário, a eticidade, por ser constituída internamente por relações sociais de reconhecimento intersubjetivo, é exatamente onde a liberdade individual pode efetuar-se como liberdade concreta e não mais meramente abstrata (HONNETH, 2009, p. 225-248; WILLIAMS, 1997, p. 112-132). Contudo, na medida em que a vida ética é a objetivação do absoluto como espírito, ela é também a efetivação da liberdade do absoluto, da liberdade verdadeira. E a liberdade individual só é liberdade verdadeira se coincidir com a liberdade do absoluto manifesta na vida ética. Obviamente, nem sempre o conjunto das relações sociais concretas, existentes numa dada comunidade, corresponde ao desdobramento pleno do absoluto. Novamente, faz-se necessária a distinção entre o plano do desenvolvimento ontológico do absoluto e o plano da realidade histórica, empírica. Neste, a vida ética de povos distintos, em épocas distintas, diferencia-se uma das outras. Todas elas, na medida em que são um momento do espírito objetivo, realizam em alguma medida o desenvolvimento do absoluto. Mas essa medida varia. Logo, a coincidência da liberdade individual com a liberdade objetivada na vida ética pode não ser sinônimo da liberdade verdadeira do absoluto. Isso permite que indivíduos voltem-se contra a eticidade de seu tempo e proponham relações sociais baseadas em outros princípios, instaurando conflitos éticos (VAZ, 2004). Buda, Sócrates e Cristo seriam alguns exemplos. Mas, mesmo esses indivíduos, partem, em sua crítica, da concretude das relações existentes, 11

Isso nas Linhas Fundamentais. Na Enciclopédia, o título da segunda seção da filosofia do espírito é “O Espírito Objetivo” e o direito, sem a adjetivação “abstrato”, é o primeiro de seus momentos.

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pois nelas é que são livres inclusive para contestá-las. Esses conflitos podem permitir mudanças na vida ética. Essas mudanças, no plano da historicidade real, prestam-se a que o absoluto, astuciosamente, desdobre-se, no plano da idealidade do conceito. E é somente neste, no conceito, que a liberdade individual, para ser liberdade verdadeira, deve ser idêntica à liberdade objetivada da e na comunidade ética. Como o espírito objetivo, a vida ética compõe-se internamente de três momentos (HEGEL, 2010, § 157, p. 173). No primeiro deles, a família, caracterizada por relações privadas marcadas pelo traço do amor, os indivíduos casam-se, amam-se, espiritualizam seus desejos sexuais, adquirem e administram bens familiares, amam e educam seus filhos, que, por seu turno, devem amar e obedecer a seus pais. No segundo momento, a sociedade civil, como esfera das necessidades, os indivíduos satisfazem as carências que dependem do trabalho uns dos outros, educam-se e civilizam-se, aderem a um estrato social específico do ponto de vista sócio-econômico (e ainda, se for o caso, como corporação, de um ponto de vista político) e encontram os direitos e deveres específicos que devem cumprir e que podem requerer (PEPERZAK, 2001, p. 405). Mas esses dois momentos são realizações deficientes da vida ética. A família, embora carregue consigo uma dimensão comunitária que a aproxime mais do ideal ético do que a sociedade civil, consiste numa imediaticidade que se finca muito mais em uniões emocionais do que em uniões fundadas na razão. Ela, como universalidade abstrata, é negada pela sociedade civil, expressão da particularidade dos interesses privados que se relacionam e competem entre si através de uma estrutura contratual. Essa primeira negação será novamente negada. A mediação da universalidade abstrata da família pela particularidade da sociedade civil resultará na universalidade concreta, ou na singularidade, de um terceiro momento da eticidade: o Estado (PEPERZAK, 2001, p. 475-574).

III. Estado, constituição e soberania

Se a vida ética é o momento do espírito objetivo em que a liberdade é efetivada, o Estado é, no interior da eticidade, o momento em que ela mais se concretiza. Nele efetiva-se a identidade entre a unidade da substância universal e a particularidade que permite aos indivíduos levarem a termos seus próprios interesses. Ou seja, ele realiza concomitantemente os interesses universais da comunidade e os interesses particulares dos indivíduos, pois é nele que ambos os interesses coincidem. Para além da universalidade imediata e abstrata da família 10

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e da parcialidade das competições da sociedade civil, é no Estado que os indivíduos podem reconhecer-se como integrados em um todo ético, em uma universalidade concreta de relações (HEGEL, 2010, § 270, p. 241). Conquanto Hegel, até mesmo na escolha das palavras, pareça valorizar excessivamente o Estado em face do indivíduo, é preciso retornar ao que se disse logo acima sobre a vida ética como um todo: o indivíduo não é suprimido no Estado, o Estado hegeliano não é um Estado totalitário. Como realização da vida ética, é nele, mais do que na família ou na sociedade civil, que a liberdade individual é afirmada, mas só pode ser uma liberdade verdadeira se for idêntica à liberdade objetivada do e no Estado. Não é que os indivíduos devam coercitiva e arbitrariamente obedecer ao Estado; a vontade deste e a vontade daqueles deve coincidir, no nível da idealidade do conceito, na medida em que ambas sejam a expressão, objetiva e subjetiva, respectivamente, da mesma vontade racional do absoluto manifestando-se como espírito (HEGEL, 2010, § 260, p. 235). É cônscio da diferença entre os níveis da idealidade do conceito e da historicidade existente do mundo que Hegel, embora não aceitando a tese do Estado como produto de um contrato entre os indivíduos, recusa, outrossim, a tese historicista baseada na empiria dos fatos. O Estado hegeliano é o conceito do Estado, cuja idealidade desdobra o absoluto em graus distintos ao longo da história das formações políticas humanas. A constituição desse Estado, como constituição interna para si, possui o sentido amplo do conjunto, historicamente desenvolvido e a desenvolver-se, das relações segundo as quais os poderes e os direitos são distribuídos em um povo específico (PEPERZAK, 2001, p. 523-524). Ela não é um documento formal, e este deve existir, mas como expressão registrada das relações já em voga. Essas relações, é claro, podem não ser realizações adequadas do desdobrar-se do absoluto. Na elaboração do texto formal, cabe discernir entre elas. Se a constituição é produto histórico, não tem muito lugar a pergunta acerca de quem deve fazer a constituição. Mas, tomada em seu significado estreito, como registro documental, a tarefa de elaborá-la cabe àqueles que mais bem forem capazes de perceber o espírito do povo12. Em sua constituição, o Estado diferencia-se internamente em três poderes. Estes, entretanto, não devem ser mantidos separados de modo estanque e entendidos como meras limitações uns dos outros, como o eram na concepção liberal do século XIX. O Estado 12

Como as organizações políticas dos diferentes povos realizam a idealidade do conceito do Estado em graus distintos, e como a constituição é o conjunto das relações que distribuem poderes e direitos dentro de um povo histórica e geograficamente situado, cada povo possui o Estado e a constituição que lhe são apropriados (HEGEL, 2010, §274, p. 259; HEGEL, 1952,§ 274, p. 92).

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hegeliano é um todo orgânico e os poderes que o constituem devem incluir-se mutuamente e cooperarem uns com os outros (CF. LABARRIÈRE e JARCZYK, 1989). Nesse ponto, abre-se espaço para uma discussão importante. No parágrafo 273 das Linhas Fundamentais, Hegel descreve os poderes do Estado como sendo, nesta ordem, o poder legislativo, responsável por determinar e estabelecer o universal; o poder executivo, ou o governo, responsável por subsumir os casos singulares e as esferas da particularidade sob o universal; e o poder monárquico, o poder da subjetividade, como a vontade com o poder da decisão final (HEGEL, 2010, § 273, p. 255-259; HEGEL, 1952, § 273, p. 90)13. No parágrafo 275, ao começar a tratar especificamente de cada um dos poderes, Hegel inicia pelo poder monárquico (HEGEL, 2010, § 275, p. 260; HEGEL, 1952, § 275, p. 92). Para alguns leitores, isso representaria, ou uma concessão de Hegel à censura da monarquia prussiana, ou uma abordagem teórica equivocada e incoerente com seu próprio sistema (HÖSLE, 2007). Em que pese ser difícil, quiçá impossível, saber com certeza se e até que ponto Hegel teria cedido à censura14, a questão da consistência de sua abordagem em face de seu sistema pode ser enfrentada. Em primeiro lugar, o poder monárquico é descrito, já no parágrafo 273, como o momento em que os diferentes poderes são ligados numa unidade individual que é tanto o ápice quanto a base do todo, ou seja, da monarquia constitucional. O poder monárquico é, ao mesmo tempo, um dos elementos que compõem essa constituição e o elemento que a expressa como um todo. Isso encaminha a discussão para o tema da soberania. A soberania interna do Estado e sua soberania externa são dois lados de uma mesma medalha. Para mostrar-se como soberano perante outros Estados, o Estado deve apresentar-se, em primeiro lugar, como uma unidade. Do ponto de vista da idealidade do conceito, essa unidade deve ser uma unidade racional, isto é, que expresse uma identidade entre a vontade universal abstrata e as vontades particulares interiores ao Estado, identidade que resulta numa vontade singular. Essa vontade

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O poder judiciário é situado na sociedade civil, não na constituição política do Estado. A razão para tanto reside no intuito hegeliano de atribuir, em nome do princípio da subjetividade, o maior grau de autonomia possível à sociedade civil. Não obstante, o judiciário funciona como uma ponte entre esta e o Estado (PEPERZAK, 2001, p. 508). 14 Nas anotações de seus cursos, feitas por alunos, Hegel parece discorrer mais francamente sobre aspectos e posicionamentos que poderiam ser mal recebidos pela monarquia prussiana (PEPERZAK, 2001, p. 540-543). Mas não se pode esquecer a ressalva feita no início do presente texto relativamente às anotações de alunos e não do próprio Hegel.

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singular, universalidade concreta, precisa ser expressa por um sujeito capaz de coincidir sua vontade particular com a vontade universal abstrata. É esse o papel do poder monárquico. Aqui se encontra uma primeira justifica para o tratamento dado a esse poder anteriormente aos demais e também uma justificativa – parcial, é verdade – da escolha hegeliana pela monarquia constitucional como constituição política do Estado no nível do desdobramento do absoluto na idealidade do conceito. Em segundo lugar, o parágrafo 272 das Linhas Fundamentais (HEGEL, 2010, §272, p. 253-255; HEGEL, 1952, § 272, p. 89) afirma que cada um dos poderes da constituição do Estado é, em si mesmo, a totalidade dessa constituição, porque cada poder contém os outros poderes e todos eles são momentos de um único todo. Na lógica hegeliana, para que um conceito seja um conceito independente não basta que se componha dos momentos universal (abstrato), particular e singular (universal concreto). É preciso que, ademais, esses momentos possam mediar-se reciprocamente. Explicando melhor, não é somente o momento particular que deve ser a mediação entre o universal abstrato e o universal concreto. Este deve igualmente mediar a relação entre o particular e o universal abstrato, e o universal abstrato deve mediar a relação entre o universal concreto e o particular, não importando a ordem dos fatores, a ordem em que apareçam os termos extremos do silogismo. Sendo o Estado um conceito independente, os momentos que o compõem mediam-se mutuamente. O poder monárquico media a relação entre o poder legislativo e o governo; o governo, ou poder executivo, media a relação entre o poder monárquico e o poder legislativo; e o poder legislativo media a relação entre governo e o poder monárquico. O Estado nada mais é do que um silogismo de silogismos, uma conclusão de conclusões (CF. PEPERZAK, 2001, p. 560-564; LABARRIÈRE e JARCZYK, 1989, p. 350-351; HENRICH IN PIPPIN e HÖFFE, 2004, p.241-267). Por conseguinte, tratar primeiro do poder monárquico e não do poder legislativo não é uma inconsistência teórica de Hegel em face de seu sistema, e não significa uma ênfase monárquica conservadora. O poder monárquico não é o poder do monarca. A soberania, embora representada pelo monarca, não é prerrogativa sua: é atributo do Estado. E, se é verdade que a vontade do monarca aparece como vontade com o poder da decisão final, ela assume essa característica no quadro de uma monarquia constitucional em que o processo de produção das normas chega para receber a palavra final do monarca após ter passado pelo legislativo e pelo diálogo entre o monarca e seus ministros. Em uma constituição que

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desdobre adequadamente o absoluto, a vontade do monarca, por tudo isso, deve ser uma vontade vazia.

IV. Considerações finais

Ao fim da abordagem do Estado, Hegel trata da história do mundo. O direito hegeliano, como sinônimo do espírito objetivo, engloba, portanto, estes momentos: direito abstrato, moralidade, eticidade e história do mundo. Tendo chegado ao termo de seu desdobramento como espírito objetivo, o absoluto deve caminhar na direção do espírito absoluto, composto pelos momentos da arte, da religião e da filosofia. É somente nesta que se torna claro que o caminho brevemente descrito nas linhas acima possui um sentido imanente. Ou seja, somente a filosofia, como pensamento do pensamento, é capaz de compreender o desdobrar-se do absoluto na história através da idealidade do conceito. Retornando à tese norteadora do presente capítulo, cabe dizer em que sentido é possível afirmar que o reconhecimento pleno de duas autoconsciências universais é a base do espírito objetivo. Primeiramente, é preciso dizer que o reconhecimento que se tem em vista não é aquele da luta por reconhecimento entre o senhor e o servo (PEPERZAK, 2001, p. 139-160). E não o é por alguns motivos. Ali, o que se tem é um reconhecimento parcial, não um reconhecimento pleno (HEGEL, 1995B, § 436, e adendo, p. 206-208; WILLIAMS, 1997, p. 46-68). Além disso, do ponto de vista do desenvolvimento lógico, o que está em jogo naquela figura é o processo por meio do qual a autoconsciência pode alcançar o nível da autoconsciência universal. Não se está ainda no plano do espírito objetivo, e o senhor e o servo representam, na verdade, a duplicação da consciência mesma. A passagem para o espírito objetivo requer que se atravesse o nível da razão, como inteligência e como vontade, como vontade livre capaz de querer a liberdade objetivada no direito. É aqui que se pode localizar o reconhecimento pleno de duas autoconsciências universais a basear o espírito objetivo. Ainda do ponto de vista lógico, a violência e a dominação características da luta de vida e morte entre o senhor e o servo não são o fundamento do Estado. Este, como estágio do espírito objetivo em que a liberdade se realiza mais adequada e concretamente, tem como seu fundamento exatamente

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essa mesma liberdade, da qual o reconhecimento é pressuposto (HEGEL, 1995B, §§ 432 a 436, e adendos, p. 202-208) Assim, para Hegel, a violência e a dominação podem ter sido presentes na origem dos Estados, mas dos Estados como fenômenos históricos existentes, pois elas não fazem parte da essência do Estado como idealidade do conceito (HEGEL 1995B, § 433, e adendo, p. 204-205). Indo, pois do plano do desdobramento lógico para o da realidade histórica, é apenas com a Idade Moderna que seria possível, pois, superar essa dualidade entre o mero existente e o efetivo na eticidade enquanto concretização da ideia de Estado na história (CF. RODESCHINI, 2005).

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