Breves Considerações sobre a Revogação Tácita do Artigo 366 do Código de Processo Penal

August 31, 2017 | Autor: Marcos Peixoto | Categoria: Direito Processual Penal, Direito Penal
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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A REVOGAÇÃO TÁCITA DO artigo 366 DO Código de
Processo Penal

Marcos Augusto Ramos Peixoto
Juiz de Direito – TJRJ

A reforma processual penal de 2008 trouxe novos ares ao vetusto
Código de 1941, nele enxertando – não com a amplitude e profundidade que se
esperava, é bem verdade – dispositivos consonantes à ordem democrática
nascida com a Constituição Federal de 1988, trazendo para o bojo do Código
de Processo Penal princípios garantistas e entendimentos já outrora
adotados quase que pacificamente tanto pela opinião comum dos doutores,
quanto pela jurisprudência.


Dentre as reformas encetadas pontualmente, temos aquela trazida
pela Lei 11719/2008, que "altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3
de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, relativos à suspensão do
processo, emendatio libelli, mutatio libelli e aos procedimentos", do que
se originou debate atinente à vigência do artigo 366 do Código, na redação
que lhe foi atribuída pela Lei 9271/1996.


Quanto a tal temática e seus reflexos intertemporais, algumas
ponderações revelam-se impositivas a título de premissas de modo a que,
alfim, alcancemos nossas modestas conclusões.


A primeira delas é que, na atualidade, o primeiro despacho de
recebimento da denúncia contém mero juízo de admissibilidade da inicial,
aprovando o prosseguimento do feito em direção à citação do indiciado pela
inexistência de qualquer fator que ensejasse a rejeição liminar da petição
exordial ofertada pelo Ministério Público. Com isso, a denúncia somente
será eventualmente recebida para todos os efeitos legais após a instauração
do contraditório preliminar, e ausentes as hipóteses dos artigos 395 e 397
do Código de Processo Penal. Entender o contrário seria tornar de menor
valia a relevantíssima resposta à acusação, indispensável fase garantista
de contraditório prévio e condição sine qua non para que se repute
efetivamente acolhida a inicial.


Neste sentido, a precisa lição de Geraldo Prado[1]:


Assim, há de se reconhecer que o âmbito normativo
instituído pelo artigo 396 do Código de Processo
Penal está incorporado pelo mais extenso programa
delimitado no artigo 399. Neste, cuida-se de dar
efetividade ao disposto no artigo 363 do mesmo
diploma e assegurar a complementação do processo com
a efetiva citação do acusado. Com a citação e defesa
será possível examinar, para além das causas de
rejeição da inicial previstas no artigo 395 do
Código, as hipóteses de absolvição cuja admissão
decorra da defesa preliminar (artigo 397).
É neste contexto que o restante texto normativo do
artigo 396 adquire sentido, pois a defesa preliminar
implementa a garantia constitucional do contraditório
(co­mo assumido em todas as recentes leis processuais
sobre procedimentos especiais!) e permite que a
absolvição sumária seja precedida deste indispensável
contraditório, de sorte a evitar atos arbitrários que
fulminem, indevidamente, o também constitucional
direito de ação.
O sacrifício da primeira norma (empregando a
terminologia positivista) neste caso será parcial,
uma vez que apenas o preceito que determina o
imediato recebimento da inicial (recebê-la-á) será
eliminado, porque somente ele contrasta com o
preceito que remete esta decisão ao instante
posterior ao da apresentação da defesa preliminar
(artigo 399).
Por isso, oferecida a denúncia ou queixa e se não
houver imediata rejeição, por aplicação do disposto
no artigo 395 do Código de Processo Penal, o juiz
determinará a citação do acusado para responder à
acusação, por escrito, em dez dias. Somente depois
disso é que o juiz poderá receber a inicial (artigo
399), caso não a rejeite à luz dos novos argumentos
ou não absolva o acusado com fundamento em alguma das
causas previstas no artigo 397 do mesmo estatuto.
Para esta solução há precedente da doutrina em
hipótese de incompatibilidade parcial e, também, no
Brasil, da jurisprudência, no caso paradigmático de
definição do preceito dispositivo da associação para
o tráfico de drogas, em decorrência da edição da Lei
dos Crimes Hediondos.
Sob o ângulo prático esta interpretação/aplicação
restitui as coisas aos seus devidos lugares e
conforma a atividade da legislação ordinária a
critérios constitucionais.
E, não menos importante, permite que a Reserva de
Código opere em uma dupla dimensão garantista:
reforçando a idéia do Código como "instrumento de
acesso e interação com uma determinada realidade"; e
fundando a necessária racionalidade a possibilitar
que a norma processual prevista no artigo 394, § 4º,
do Código de Processo Penal cumpra a exigência
constitucional de validade do sistema.


A segunda ponderação concerne à citação editalícia. Antes da
reforma processual penal, como dito, citada a parte denunciada por edital e
não comparecendo esta ao interrogatório designado, aplicava-se o artigo 366
do Código de Processo Penal, então obviamente vigente. Na atualidade,
entretanto, feita a citação por edital, esta não mais tem por objetivo
cientificar o réu acerca da instauração da ação penal com sua intimação
para interrogatório, mas sim dar ensejo a que se manifeste antes do
recebimento da denúncia sendo o interrogatório o último ato da instrução
oral do processo.


Mais: "no caso de citação por edital, o prazo para a defesa
começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do
defensor constituído". É o que estatui claramente o parágrafo único do
artigo 396 do Código de Processo Penal, com a redação que lhe atribuiu a
Lei 11719/2008. Portanto, doravante, citado o réu por edital para responder
à acusação e não comparecendo este ou seu defensor constituído, suspende-se
o processo.


Não mais se fala – e aqui uma terceira ponderação – que "ficarão
suspensos o processo e o curso do prazo prescricional", como dizia a
redação do artigo 366 do Código de Processo Penal após a alteração feita
pela Lei 9271/96 – aliás, não por outro motivo o legislador na Lei
11719/2008 pretendeu alterar tal dispositivo atribuindo-lhe redação
completamente diversa e pertinente a outro tema (previsão de novas
hipóteses de citação editalícia), ou seja, exatamente pelo fato de ser
flagrantemente incompatível com a nova sistemática engendrada, sendo o
intuito vetado pela Presidência (Mensagem de Veto 421/2008) com o propósito
(inviável...) de manter vigorante o artigo 366.


O fato é que, independentemente da intenção do veto, aquele
dispositivo foi tacitamente revogado pelo caput e pelo parágrafo único do
artigo 396 do Código de Processo Penal, em suas novas redações, isto porque
o primeiro fala em citação para ofertar resposta à acusação e não mais em
citação para comparecer a interrogatório, e o segundo fala em suspensão do
processo sem mencionar suspensão do curso do prazo prescricional.


Note-se ademais que o artigo 366 do Código de Processo Penal
somente se justificava porque, na fase de sua aplicação, já estava recebida
a denúncia, o que não é o caso atualmente em havendo citação por edital,
conforme acima visto.


Aqui cabe uma quarta ponderação, já sob a ótica do direito
intertemporal: o artigo 6º da Lei de Introdução ao Código de Processo
Penal, aqui aplicável por analogia, dispõe que "as ações penais, em que já
se tenha iniciado a produção de prova testemunhal, prosseguirão, até a
sentença de primeira instância, com o rito estabelecido na lei anterior",
logo, interpretado a contrariu sensu, conclui-se que não iniciada a
instrução processual, a nova lei processual penal passa a reger o rito
aplicável ao processo em andamento, do que se impõe a renovação do ato
citatório de modo a ensejar a oferta da resposta à acusação e, somente
após, se decidir pelo recebimento ou não da denúncia – na hipótese de
anterior citação editalícia, com processo suspenso pelo revogado artigo
366, é de todo prudente que sejam expedidos ofícios visando a localização
do denunciado para, em não se logrando êxito, só então renovar-se o edital.



Citado o denunciado por edital em conformidade com a nova ordem
processual/procedimental, mais benéfica face a possibilidade de
contraditório prévio (o que encontra-se estreitamente vinculado ao status
libertatis do indiciado), e não comparecendo, suspende-se somente o
processo já que "o prazo para a defesa começará a fluir a partir do
comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído".


Por decorrência direta do que acima se expôs: a revogação tácita do
artigo 366 do Código de Processo Penal, e a nova redação do parágrafo único
do artigo 396 do mesmo ordenamento implicam em que, não mais existindo a
possibilidade de suspensão do curso do prazo prescricional, tal há de ser
aplicado retroativamente in bonan partem aos denunciados, sendo forçoso
concluir que há de ser desconsiderado o período de suspensão da fluência do
prazo prescricional até aqui no que concerne a processos já propostos e que
se encontravam suspensos, o que não mais admite a sistemática decorrente da
Lei 11719/2008, não tendo ocorrido desde a prática do alegado fato imputado
qualquer fator de suspensão ou interrupção da prescrição.


Quinta e última ponderação: por força da reserva de código lançada
no parágrafo 4º do artigo 394 do Código de Processo Penal, todas as
ponderações antecedentes se aplicam a qualquer procedimento penal de
primeiro grau, ainda que não regulado por aquele Código.


De todo o exposto, conclui-se em suma que: 1) o "recebimento"
liminar da denúncia passou a ser mero juízo de admissibilidade da inicial,
i.e., decisão admitindo o prosseguimento da denúncia, que ainda não foi
propriamente recebida portanto; 2) a citação por edital feita sob a égide
do direito posto anteriormente às alterações trazidas pela Lei 11719/2008
mostra-se incompatível com a sistemática ora vigente, eis que encetada com
o objetivo de cientificar o acusado acerca do efetivo recebimento da
denúncia visando o seu comparecimento a interrogatório; 3) para adequar o
feito ao procedimento atual, por analogia ao que dispõe a regra de direito
intertemporal contida no artigo 6º da Lei de Introdução do Código de
Processo Penal, revelava-se impositiva a renovação da citação editalícia da
parte demandada, agora para ofertar resposta à acusação; 4) não
comparecendo a parte denunciada, nem constituindo patrono, o processo há de
ficar suspenso sem que passe a fluir o prazo para a apresentação de
resposta preliminar, contudo fluindo o prazo da prescrição; 5) não cabendo
mais se falar em suspensão do prazo prescricional, o que se aplica
retroativamente in bonan partem, temos que a prescrição deve ser
considerada nos feitos em tramitação como fluindo sem qualquer suspensão ou
interrupção desde a data do alegado fato.


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[1] PRADO, Geraldo. Sobre procedimentos e antinomias. Boletim IBCCRIM, São
Paulo, ano 16, n. 190, p. 4-5, set. 2008.
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