Bruno Schulz: uma obra interrompida pela guerra

July 23, 2017 | Autor: Leonardo Soares | Categoria: Bruno Schulz, Slavic Studies, Literatura Polonesa
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Bruno Schulz: uma obra interrompida pela guerra
Assassinado aos 50 anos por um oficial nazista, escritor retratou com atmosfera mítica a vida familiar na província 

*Por Élida Mara Alves Dantas e Leonardo Francisco Soares
 


"Ficção completa", de Bruno Schulz. Tradução de Henryk Siewierski. Editora Cosac Naify, 416 pgs. R$ 89


Escritor, poeta, pintor, desenhista... A versatilidade artística é a marca de Bruno Schulz e de sua obra. Ele se entregava à arte de forma intensa, dividindo-se entre o trabalho com o desenho e com a palavra. Esse caráter multifacetado se reflete em sua escrita ficcional, o que provoca certo desconforto na crítica literária em relação à classificação dos seus textos, ora considerados romances, ora considerados contos. No entanto, um elemento persiste nas leituras deleituras de sua ficção, o atravessamento de prosa e poesia, que irrompem de modo indissociável no universo literário do autor.
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Quando do nascimento de Schulz, em 1892, a cidade de Drohobycz era território do Império Austro-Húngaro. Após a Primeira Guerra Mundial, com a restauração da Polônia, Schulz tornou-se cidadão polonês. Porém, pouco antes de sua morte, no início da Segunda Guerra, ele ainda "experimenta" a divisão do país entre a Alemanha e a União Soviética. O escritor testemunhou de modo intrínseco as convulsões que assolaram a Europa na primeira metade do século XX. Além disso, Schulz, que era judeu, vivenciou o encontro de três línguas: iídiche, alemão e polonês, escolhendo a última como idioma de sua ficção — o que não significa a ausência da tradição judaica em suas narrativas.
Em 1933, na Polônia, a publicação de "Lojas de canela" fez do professor de desenho e artista gráfico Bruno Schulz um escritor conhecido nacionalmente. Em 1937, publicou "Sanatório sob o signo da clepsidra" e, em 1938, recebeu o Louro de Ouro da Academia Polonesa de Literatura. Além desses livros — para alguns, romances; para outros, coletâneas de contos —, Schulz publicou resenhas, ensaios, contos e correspondências.

Arte permitiu breve sobrevivência no gueto

Essa trajetória foi interrompida quando, em 1941, os nazistas invadiram Drohobycz, e Schulz, juntamente com outros milhares de judeus, foi transferido para o gueto. Lá, sob a proteção de Felix Landau, um oficial da Gestapo, desenvolveu trabalhos de pintura e de catalogação de livros. Nesse novo cenário, suas habilidades artísticas tornaram-se decisivas para sua sobrevivência, porém, ao mesmo tempo em que apontavam para a redenção, terminaram por condená-lo.

Em uma das versões de sua morte, conta-se que, à véspera de executar um plano de fuga, Schulz foi executado por Karl Günther, um oficial inimigo de seu protetor. Günther teria matado Schulz e dirigido a seguinte afirmação ao seu inimigo: "Você matou o meu judeu. Eu matei o seu." Esse exercício de permutabilidade da vida humana tinha, para retomar uma expressão do escritor israelense David Grossman, um caráter diabolicamente surrealista, "como se seres humanos fossem intercambiáveis. Como se fossem engrenagens, elementos de um aparato com partes substituíveis." Sensibilizado com a trágica morte de Schulz, Grossman o transformou em personagem do romance "Ver: Amor" (Companhia das Letras, 2007) e, por meio de uma bela metamorfose, resgatou-o das mãos dos nazistas, concedendo-lhe, no âmbito da ficção, outro destino.

De cunho autobiográfico, num misto de memória e ficção, os textos de Schulz que compõem a "Ficção completa" são interligados pelo mesmo narrador e pelos mesmos personagens, em especial pela figura do pai, cujo comportamento é excêntrico, heterodoxo e metamórfico. O espaço da narrativa também é o mesmo, a cidade natal do escritor. Sua ficção narra as histórias do filho do comerciante judeu que nasceu e viveu em uma cidade provinciana da Polônia, mas enredadas por uma atmosfera mítica.

"Lojas de canela" apresenta o cotidiano da família de Jozéf, o menino narrador que descreve os acontecimentos de sua infância pela observação atenta a seu pai. Figura central dessa narrativa, Jakub, o pai de Jozéf, é descrito não como um ser humano comum, mas como um ser metamórfico que, por suas práticas heterodoxas e características comportamentais e físicas mutáveis, desprende-se do convívio com a família ao afastar-se de tudo o que é natural e cotidiano. Jakub adotara uma doutrina herética que o levava a glorificar a matéria como um elemento que, por meio de um "sopro vivificante do espírito", criaria o homem novamente, dessa vez, à imagem e semelhança do manequim: "— Não fazemos questão — dizia ele — das obras de grande fôlego, dos seres de longa duração. As nossas criaturas não serão heróis de romances volumosos. Seus papéis serão curtos, lapidares, seu caráter sem profundidade. Às vezes, por um só gesto, uma só palavra, nos daremos ao trabalho de trazê-las por um instante à vida".
 


Em "Sanatório sob o signo da clepsidra", o narrador retoma experiências que envolvem seu processo de amadurecimento. Temas como a criação artística, o erotismo e a vida social revelam um Jozéf destituído das fantasias de criança e envolto nos mistérios da vida adulta. É nessa nova fase que ele se encontra com o pai no sanatório, espaço regido por um tempo mítico, descontínuo e conflitante. Lá, o narrador descobre que há um obstáculo que o separa do pai: uma incongruência, uma incompatibilidade cronológica que o incomoda: "Começo a arrepender-me de toda essa empresa. Certamente não foi uma ideia feliz quando, seduzidos pelo estardalhaço da publicidade, decidimos mandar nosso pai para cá. O tempo retardado... soa bem, mas o que isso quer dizer na verdade? Será um tempo integral, sólido, um tempo recém-chegado, desembrulhado, cheirando a novidade e tinta o que se recebe aqui? Não, pelo contrário: é um tempo completamente gasto, usado pelos homens, um tempo rasgado e esburacado em vários lugares, um tempo transparente como peneira".

Nesse universo literário, a comunhão entre realidade, memória e ficção recria as situações cotidianas num plano mitológico que complexifica e mistifica a ordem das coisas. Quanto aos quatro contos que não integram nenhum dos dois livros, e que são publicados agora pela primeira vez em língua portuguesa, pode-se inferir, e essa parece ser também a opinião de Henryk Siewierski e de outros estudiosos, que eles complementam as narrativas anteriores.

O conto "O Outono", por exemplo, retoma um tema recorrente nos escritos de Schulz, a influência das estações do ano sobre o cotidiano do narrador, como um catalisador dos elementos míticos que o cercam. Nessa narrativa, Jozéf, agora com 15 anos, ao mesmo tempo em que revela admiração, revolta-se com a partida do Verão e a consequente chegada do Outono. Para ele, aquela estação tinha o poder de desmaterializar todas as coisas, dando a elas formas superiores. Quanto ao Outono, este despertava o mundo material que havia sido congelado durante a estação dourada. Após o retorno das férias, verificava-se que "os móveis antigos, acordados do sono, tirados de uma longa solidão, pareciam observar os que voltavam, com um conhecimento amargo, com uma paciente sabedoria".

Esta edição da "Ficção completa" traz, ainda, em forma de apresentação, um ensaio do poeta polonês Czeslaw Milosz, publicado originalmente em 1989, na revista "The New Republic". Além da tradução, Henryk Siewierski assina o posfácio do livro. Para quem teve contato com as primeiras edições da Imago, é evidente o cuidadoso trabalho de revisão desta nova tradução. Ao final, o leitor é brindado com trechos do diário do escritor polonês Witold Gombrowicz, com o qual Schulz manteve forte amizade e que, de forma reveladora, descreve-o como alguém que mantinha com a arte uma relação religiosa. Segundo o amigo, ele tinha adoração pela arte e fazia dela o seu convento. Essa relação mística faz com que ressoe aqui a famosa afirmação do escritor eslavo, falecido em 1989, Danilo Kiš: "Bruno Schulz é o meu Deus." Agora, a edição da "Ficção completa" de Bruno Schulz em língua portuguesa apresenta-se como um convite para celebrarmos um artista e sua obra.

*Élida Mara Alves Dantas é mestranda em Teoria Literária pela Universidade Federal de Uberlândia; Leonardo Francisco Soares é professor adjunto da Universidade Federal de Uberlândia e autor de "Leituras da outra Europa: Guerras e memórias na literatura e no cinema da Europa centro-oriental" (Editora UFMG)

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