Bruno Wilhelm Speck: Sobre a oportunidade, a modalidade e a viabilidade da reforma política

November 13, 2017 | Autor: Bruno Wilhelm Speck | Categoria: Latin American Studies, Political Campaigns, Brazilian Studies, Campaign Finance, Party finance, POLITICAL REFORMS
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Bruno Wilhelm Speck

SOBRE A OPORTUNIDADE, A MODALIDADE E A VIABILIDADE DA

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REFORMA POLÍTICA ELZA FIUZA/ABr

O projeto de lei que trata da reforma política, em tramitação no Congresso Nacional, precisa de uma análise fria e objetiva, especialmente no que se refere ao financiamento público das campanhas políticas.

T

ramita no Congresso o projeto de lei sobre a reforma política. O texto aprovado pelo Senado no ano passado passou para a Câmara dos Deputados para debate e deliberação final. O projeto prevê basicamente três modificações: primeiro, aumenta significativamente o financiamento público para partidos. Em anos eleitorais o montante total repartido entre todos os partidos passaria dos atuais R$ 120 milhões para R$ 800 milhões, aproximadamente. A segunda modificação se refere à proibição de qualquer tipo de doação privada, em anos eleitorais. O financiamento público se tornaria fonte exclusiva para custear as campanhas eleitorais. A terceira alteração introduz uma modificação importante na escolha eleitoral. O eleitor não escolheria mais entre candidatos individuais, mas votaria em partidos. Estes,

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por sua vez, elaborariam listas fechadas de candidatos, previamente às eleições. Esta modificação teria um impacto profundo sobre a relação entre candidatos e partidos, dando mais poder às estruturas internas destes últimos. Parte da disputa eleitoral entre os candidatos do mesmo partido, que hoje ocorre nas eleições, seria transferida para uma espécie de prévia intrapartidária, que decidiria sobre a ordenação da lista do partido. Impulsionado pelo recente escândalo envolvendo o ex-assessor Waldomiro Diniz e a suspeita de financiamento velado de campanhas eleitorais, líderes do governo manifestaram publicamente a sua disposição em apressar este projeto. Com isto, o processo de aperfeiçoamento do financiamento político no Brasil corre o risco de seguir o ritmo dos escândalos que aparecem. Mas, mesmo que o passo seja acelerado, como anunciado

pelo governo, o legislador precisaria manter a cabeça fria quanto à lógica do processo de reforma. As cinco teses apresentadas a seguir são uma contribuição neste sentido, discutindo temas centrais quanto ao financiamento de partidos e eleições. Tese 1. O financiamento privado de partidos e eleições não é um mal em si. O financiamento de partidos e eleições é um assunto espinhoso em praticamente todas as democracias modernas. Um dos problemas são os laços de dependência entre doador e candidato que podem resultar do financiamento. É com esta justificativa que o financiamento de partidos e campanhas com recursos privados é criticado e se buscam alternativas. É importante lembrar que em todos os países, partidos e candidatos cobrem não só custos com eleições, mas, também, com

a manutenção de máquinas partidárias, com uma gama de fontes de financiamento. Em primeiro lugar os filiados contribuem regularmente para os partidos – e indiretamente para as campanhas. Aliás, é praticamente indissociável o financiamento dos partidos e do processo eleitoral. Em muitos países os representantes eleitos e funcionários que ocupam cargos obtidos através do partido contribuem com valores bastante superiores aos pagos pelos filiados comuns. Outras fontes são as doações em época de campanha eleitoral. Dependendo da estrutura social, da clientela do partido e dos limites impostos pela legislação, estas doações podem ser de pequeno ou grande porte. Adicionalmente, a própria máquina partidária gera recursos financeiros de diversas formas, com atividades paracomerciais ou campanhas de levantamento de fundos. Na verdade, historicamente, uma das razões de ser dos partidos era levantar fundos para tornar a competição política um empreendimento aberto a pessoas comuns, e não somente à burguesia e à nobreza abastada. Outra fonte são recursos disponibilizados pelos próprios candidatos. Todas essas são modalidades de financiamento privado. Seria um equívoco condená-las como um todo. Assim, as contribuições de filiados podem ser vistas como reflexo do enraizamento social dos partidos; as contribuições para campanhas, como manifestações legítimas de apoio às candidaturas. O que torna o financiamento privado viciado é o montante da contribuição privada. Isto em dois sentidos: uma vez que os cidadãos são desiguais quanto à capacidade de contribuir com recursos para campanhas, fere-se o princípio de equanimidade eleitoral. Uma das conquistas fundamentais da democracia ocidental vai por água abaixo. Um segundo problema vinculado ao valor da contribuição é a possível dependência do candidato em relação ao doador. Se o candidato não conseguir diversificar as suas fontes de financiamento cresce o risco de uma representação viciada por interesses escusos. Concluindo: o problema do financiamento privado não reside na origem privada dos recursos. Esta tem até efeitos benéficos, desde que mantidos patamares máximos quanto aos montantes que se pode doar. O vício está na diferença entre contribuições pequenas, saudáveis, e outras, de valor elevado, que tornam a competição desigual e estabelecem laços de dependência, tornando a representação viciada na origem.

Tese 2. O financiamento público exclusivo não é a salvação de todos os males. O financiamento público foi introduzido em muitos países a partir da década de 1950. Hoje, há poucas democracias que não conheçam alguma modalidade de subsídio público aos partidos, na forma de isenção tributária, acesso gratuito a rádio e televisão ou aportes em espécie dos cofres públicos. Há diferenças significativas quanto ao peso desses recursos públicos no total do financiamento de partidos e candidatos. A idéia é que através da garantia de certo patamar de recursos públicos a pressão pela busca de grandes doações seja diminuída. Não há, hoje, país que tenha introduzido o financiamento público exclusivo, substituindo por completo o financiamento privado em todas as suas modalidades. A Alemanha, freqüentemente citada neste contexto, se caracteriza por combinar o financiamento público pesado com praticamente nenhum limite quanto ao financiamento de partidos por pessoas físicas ou empresas. O caso da Alemanha também serve para colocar em evidência alguns questionamentos críticos quanto ao financiamento público. Um dos argumentos levantados é que, com o financiamento público, os partidos correm o risco de enfraquecer seus vínculos com a sociedade, e de distribuir generosamente recursos em causa própria. Este argumento não é de todo descartável diante do caso brasileiro, já que a debilidade de vínculos orgânicos com a sociedade é uma das principais deficiências de nosso sistema partidário. Outra preocupação é que o financiamento público fecha algumas portas de manipulação e pressão ilícita, mas nem todas. Ele, de fato, diminui a pressão de buscar cada vez mais contribuições privadas e – talvez – limita o caixa dois para candidatos individuais. Contudo, de forma alguma o financiamento público elimina o financiamento oculto para partidos. Nada mudará neste sentido, apesar da insistência de muitos em atar o projeto da reforma política a este tema. Adicionalmente, há de se temer que outras portas serão abertas, porque, com o peso que terão os recursos públicos como fonte única de financiamento, a questão da fiscalização – que inclui a possibilidade de suspensão dos recursos por decisão da Justiça Eleitoral – se tornará ainda mais sujeita a pressões políticas e de outra espécie. Conclusão: O financiamento público exclusivo não representa passaporte para uma terra sem males. Ele cria um monopólio estatal, não elimina o caixa dois para

partidos e sobrecarrega a Justiça Eleitoral. Tese 3. O financiamento público nos moldes propostos desestimula a competição política e favorece o situacionismo. Uma das questões a serem respondidas em sistemas com financiamento público de partidos é quem recebe quanto – e por quê. Há vários modelos aplicados pelos diferentes países, com justificativas diversas. O financiamento igualitário (cada partido recebe o mesmo valor) é defendido pelo argumento de que todos devem ter a oportunidade de competir em condições iguais. Assim, diversos países alocam parte dos recursos públicos de forma igual entre todos os competidores. Outros sistemas alocam recursos de forma proporcional. Mas, proporcional a quê? Uns levam em conta o histórico dos partidos, distribuindo recursos segundo o sucesso eleitoral no passado. É o caso do Brasil e de muitos outros países. O problema com isso é que o método tende a dar vantagem àqueles que ganharam as últimas eleições e, conseqüentemente, estão no Governo. A oposição ou novos competidores recebem menos recursos e terão menos chances na próxima eleição. O situacionismo é protegido e a oposição permanece em desvantagem. Por essa razão, há países que aplicam outra modalidade: financiam os custos da campanha proporcionalmente aos votos que serão obtidos na eleição. Este sistema de reembolso posteriormente à eleição é praticado na Costa Rica. Uma vez que se baseia exclusivamente no sucesso da disputa eleitoral em questão, não levando em consideração o histórico do partido ou outras qualificações, o método é altamente competitivo. Por fim, há sistemas que incentivam os partidos a arrecadarem pequenas contribuições junto aos seus filiados e simpatizantes. Após experimentar várias outras modalidades de financiamento público, a Alemanha atualmente pratica este sistema. Para cada Euro arrecadado de pessoas físicas até um certo máximo, o Estado paga outro Euro ao partido. Moral da história: não há uma solução única para responder à questão da justiça distributiva em relação aos recursos alocados pelo Poder Público. No entanto, parece certo que a responsabilidade do Poder Público sobre a modelagem do sistema partidário e da competição política cresceria enormemente no Brasil com um sistema de financiamento exclusivo. É altamente questionável se o sistema atual, que beneficia o situacionismo, seria adequado caso os valores do financiamento público fossem auAno III - Nº 29 - Maio de 2004 - Justilex - 33

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mentados ou até se tornassem a única fonte legal de financiamento da disputa política. Tese 4. A proibição do financiamento privado corre o risco de repetir a legislação de fachada que vigorava no passado. Em qualquer país, a legislação sobre financiamento político é um compromisso entre a utopia e a realidade. Na primeira, a disputa eleitoral gira em torno de projetos e idéias. Na segunda impera a necessidade de levantamento de fundos para viabilizar presença do candidato junto ao eleitor, com técnicas cada vez mais refinadas e caras. A grande inovação da legislação brasileira, elaborada e consolidada sucessivamente a partir do escândalo Collor-PC 1992, foi uma maior dose de realismo quanto ao reconhecimento da presença de empresas no financiamento de campanhas no Brasil. Em troca, o legislador aumentou a cobrança em relação à transparência sobre a arrecadação e aplicação dos recursos. Poucos países dispõem de um sistema que rastreia cada centavo que passa pelas campanhas eleitorais de forma tão detalhada e com tanta agilidade como o Brasil. Com as reformas introduzidas a partir de 1993, o Brasil abandonou uma legislação que, por muitos era considerada hipócrita, pois proibia qualquer contribuição por parte de pessoas jurídicas a partidos ou campanhas. A proposta de vedar as doações privadas abertas em anos eleitorais corresponderia a uma volta ao passado. O que mudaria substancialmente, para nos fazer acreditar que não recairíamos em erros semelhantes aos do passado, erguendo outra moralidade de fachada? Quais são as inovações institucionais que nos fariam acreditar que os juízes eleitorais, os promotores e os Tribunais Regionais Eleitorais se tornarão mais preparados para a tarefa de fiscalização do que há dez anos? Tese 5. O votação por listas fechadas aumenta o poder e a responsabilidade dos partidos políticos e requer um controle mais acirrado sobre as suas finanças. É espantosa a defasagem entre partidos e campanhas eleitorais quanto ao aspecto da transparência de suas respectivas finanças. Enquanto a legislação a respeito dos partidos políticos (Lei nº 9.096, de 1995) prescreve uma prestação de contas com pouco detalhamento, exigindo meramente um balancete com dados agregados sobre a origem e destinação dos recursos, a Lei Eleitoral (Lei nº 9.504, de 1997) exige uma identificação detalhada sobre a origem e o destino dos recursos, com informações detalhadas sobre a identidade dos doadores

Bruno Wilhelm Speck e montantes doados. Na prática, o contraste entre a prestação de contas dos partidos e eleições aumenta ainda mais. A prestação de contas sobre o financiamento eleitoral foi revigorada a partir de 2002, quando norma emitida pela Justiça Eleitoral estabeleceu que as contas eleitorais passam a ser prestadas em formato eletrônico. Somente a partir dessa data se tornou possível obter um quadro razoável sobre o caixa oficial de campanhas (ver, a respeito, o sítio www.asclaras.org.br, mantido pela Transparência Brasil). Em contraste com isto, a prestação de contas anuais dos partidos é primitiva. A entrega não é monitorada, não há compilação dos dados, seja no âmbito nacional, seja estadual (sem falar do âmbito municipal, em que a prestação de contas, prevista em lei, praticamente inexiste) e as informações exigidas se limitam a um balancete, não revelando a identidade dos doadores ou os valores das doações. Caso os partidos realmente se tornem o filtro pelo qual devem passar todos os recursos da disputa eleitoral – hoje administrados e alocados pelos candidatos, esta prestação de contas precisa ser modificada profundamente. É necessário que os partidos informem detalhadamente sobre a origem e aplicação dos seus recursos – pois, pelo projeto de reforma, em anos não-eleitorais as portas continuarão abertas a doações privadas. Há, igualmente, necessidade de identificar as responsabilidades e sanções no âmbito cível, criminal e político, em caso de contas incompletas ou fraudadas. O princípio da transparência, baseado na prestação de contas e no acesso público aos dados, é uma terceira via explorada cada vez mais por países que não conseguiram resolver os problemas através da imposição de vetos e limites ou por meio do financiamento público complementar. Aposta-se num princípio simples: a luz do sol é o melhor desinfetante. O Brasil tem avançado bastante neste terreno. Valeria a pena aproveitar a experiência acumulada pela Justiça Eleitoral, tornando as contas dos partidos igualmente transparentes – e fortalecer o papel da sociedade civil na fiscalização das finanças eleitorais e partidárias, através da ampla divulgação das informações. J BRUNO WILHELM SPECK é cientista político, Diretor de Pesquisas da Transparência Brasil e professor da Unicamp, consultor do Utstein Anti-Corruption Resource Centre no Christian Michelsen Institute (Noruega), doutor pela Universidade de Friburg (Alemanha), tendo exercido docência e pesquisa em várias universidades e centros de excelência acadêmicos alemães. Tem vários trabalhos publicados no Brasil e na Alemanha.

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