BUCO, C. A. 2012. Arqueologia do Movimento. Relações entre Arte Rupestre, Arqueologia e Meio Ambiente, da Pré-história aos dias atuais, no Vale da Serra Branca. Parque Nacional Serra da Capivara, Piauí, Brasil. [Tese de Doutorado]. 587p. Vila Real: UTAD-PT(Vol.I)

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ARQUEOLOGIA DO MOVIMENTO Relações entre Arte Rupestre, Arqueologia e Meio Ambiente, da Pré-história aos dias atuais, no Vale da Serra Branca. Parque Nacional Serra da Capivara, Piauí, Brasil

Cristiane de Andrade Buco Bolseiro de Doutoramento Pleno no Exterior Affiliation THE CAPES FOUNDATION, MINISTRY OF EDUCATION OF BRAZIL

VOLUME I TEXTOS

Orientadores: Professor Doutor Luiz Miguel Oosterbeek (Portugal) Professora Doutora Niède Guidon (Brasil)

QUATERNÁRIO, MATERIAS E CULTURAS Escola de Ciências da Vida e Ambiente

UNIVERSIDADE DE TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO VILA REAL 2012

ARQUEOLOGIA DO MOVIMENTO Relações entre Arte Rupestre, Arqueologia e Meio Ambiente, da Pré-história aos dias atuais, no Vale da Serra Branca, Parque Nacional Serra da Capivara, Piauí, Brasil. RESUMO Esta tese é uma pesquisa centrada no movimento, um tema transversal que auxilia no estudo da arte rupestre de uma forma interdisciplinar, no qual os universos naturalsubsistência e simbólico-imaginário são observados conjuntamente, permitindo conhecer o “modo de vida” dos grupos culturais que ocuparam o Vale da Serra Branca, no Parque Nacional Serra da Capivara. Foram definidos 4 movimentos de ocupação, associados aos contextos arqueológicos, desde a transição do Pleistoceno-Holoceno aos dias atuais. Um corpus pictórico de 200 sítios arqueológicos, conjunto com 10 mil figuras aproximadamente, foi analisado e estudado independente das tradições analíticas, vigentes para o território brasileiro. O gesto observado nas figuras humanas pintadas e a relação “espaço-tempo” permitiram a elaboração de uma nova proposta interpretativa e a identificação de uma série de temáticas, aonde a “dança” foi a protagonista. Palavras-chave: movimento, arte rupestre, Serra Branca, arqueologia, pesquisa interdisciplinar

ARCHAEOLOGY OF MOVEMENT Relationship between Rock Art, Archaeology and Environment, from Prehistory to the present day, in Vale da Serra Branca, Parque Nacional Serra da Capivara, Piauí, Brazil

ABSTRACT This thesis is a research focused on movement, a transversal theme that aids an interdisciplinary study of rock art in which universes natural-subsistence and symbolic imagery are seen together, allowing us to know the "way of life" of cultural groups who occupied the Vale da Serra Branca in the Parque Nacional Serra da Capivara. Four occupation movements associated with archaeological contexts are defined, from the transition of the Pleistocene-Holocene to the present day. A pictorial corpus of 200 archaeological sites, with approximately 10,000 pictures, was analyzed and studied independently of analytical traditions existing in Brazilian territory. Gesture seen in painted human figures and the "space-time" relationship led to the elaboration of a new interpretative proposal and identification of a series of themes where "dance" was the main protagonist. Keywords: movement, rock art, Serra Branca, archaeology, interdisciplinary research

Dedicatória

Dedico às mulheres, artistas do cotidiano desde a Pré-história, que lutam pelo que querem, o que gostam, o que têem direito, enfim pelo que são. Saliento seis mulheres especiais, a Senhora minha Mãe, Maria Helena de Andrade (em memória, fotografia acima) que amo muito e que sempre esteve ao meu lado, perto ou longe sempre presente, que me dizia, um dia você vai para Portugal e vai ser “Doutora” tenha calma (verdade que mãe sempre sabe de tudo muito antes dos filhos); a minha irmã Elizabete de Fátima Buco, que pela segunda vez, me ajudou nos momentos limites, aqueles que você pensa que não consegue, me estendendo a mão e o seu valioso tempo durante madrugadas e madrugadas rindo muito; a amiga Niède Guidon, que me iniciou na paixão pela Serra da Capivara, caminho sem volta; as amigas - irmãs Mila Simões de Abreu e Anabela Borralheiro, que me acolheram em suas casas, em suas vidas, nos bons e maus momentos deste percurso e, a Lourdes, que como dizem os portugueses “comeu (e come) as passas do algarve” ou como dizem os brasileiros “comeu (e come) o pão que o diabo amassou” por ser simplesmente minha amiga nas horas mais difíceis e alegres desta quase, infinita jornada. Sem vocês eu não teria conseguido, meu muito obrigada!

Arqueologia do Movimento

Agradecimentos

Agradeço à todos, família, amigos, intituições, colegas enfim.[...] todos aqueles que de alguma forma contribuíram para a realização desta tese, uns ajudaram outros atrapalharam, mas é assim que os processos são construídos, o importante é que consegui. Não preciso dizer quem fez o que, afinal somos dotados de capacidade reflexiva, uns com muita, outros com pouca, mas quem teve a curiosidade de ler, se reconhece com certeza. Tinha escrito muitas páginas e estava com a sensação de esquecer alguém então reduzi consideravelmente, cito alguns sem detrimento de outros, e já peço desculpas antecipadas se esqueci alguém fundamental neste processo. Em primeiro lugar, agradeço aqueles que amo muito e que sempre estiveram do meu lado, a minha pequena grande família, meu pai, Senhor. Aníbal Jorge Buco, minha irmã Elizabete de Fátima Buco, meus sobrinhos, Cristien Buco Paulino e Tatiane Buco Paulino e aqueles que estão diretamente do lado deles e que também os admiro, Rosa Trakalo, Jaqueline, Fred, Dona Laura e os “puchulios”: Kayn (em memória), Yuka, Inês de Castro, Iu e Lara, companheiros incondicionais. Agradeço a CAPES, que acreditou no meu projeto, financiando-o para eu poder realizá-lo além mar. Em especial, a técnica Joana D’Arc Fernandes que cuidou diretamente do meu processo, auxiliando-me em todas as dificuldades, a coordenação geral, aos membros da banca examinadora e aos consultores had-oc. Agradeço a UTAD, Universidade de Trás-os-montes e Alto Douro, que me aceitou como aluna, ao corpo docente do Departamento de Geologia que diretamente e indiretamente (aulas, conversas, análises e papéis), contribuíram com esta tese. Aos professores do Doutoramento e Mestrado que tive a oportunidade de conhecer. Aos professores e técnicos do laboratório de Química, na Unidade de Microscopia Eletrónica pelas análises químicas, aos técnicos dos laboratórios de Geologia que me permitram passar horas vendo detalhes de peças líticas com a lupa binocular, e a equipa dos Serviços Gráficos. Agradeço a FUMDHAM, Fundação Museu do Homem Americano, aos seus membros, diretoria, técnicos de campo (conservação de arte rupestre e equipa de escavação) e de laboratórios (lítico, cerâmica, orgânicos, etc.), funcionários enfim todas as pessoas que conviveram comigo me permitindo ter acesso, durante 19 anos, aos sítios arqueológicos, aos vestígios da cultura material, as amostras, aos dados e arquivos

Arqueologia do Movimento [1]

Agradecimentos

(documentos e fotografias) da pesquisa interdisciplinar a qual fiz parte durante todo esse período. Agradeço ao IPT, Instituto Politécnico de Tomar, pelo secretariado e professores, que tive a oportunidade de conhecer, quando assisti aulas em conjunto com os alunos do mestrado “Arqueologia Pré-histórica e Arte Rupestre” da UTAD. Agradeço ao Museu Arqueológico de Mação, à todos, funcionários e colaboradores que me acolheram durante esses anos, das buscas na Biblioteca às aulas, reuniões, conferências, protocolos, projetos e seminários internacionais. Aos meus orientadores oficiais, Professora Doutora Niède Guidon e o Professor Doutor Luiz Miguel Oosterbeek, pelas opiniões diversas, discussões reflexivas, pontos de vista distintos e principalmente por confiarem na idéia, no processo, em mim até o último momento. Meus sinceros agradecimentos. Serei eternamente grata, pela companheira de horas e horas na mesma mesa, a Professora. Mila Simões de Abreu, que nunca leu a tese, mais discorda do que concorda, me pediu para deixar claro que não tem nada haver com o que escrevo, mas verdade que, sem a experiência do estar do lado dela eu não teria escrito o capítulo da Historiografia da Arte Rupestre no Brasil e não teria olhado para os grandes animais por trás das outras figuras. Esta tese fecha um ciclo e abre um novo, menciono algumas pessoas ligadas a essa relação espaço-tempo (passado-presente) que foram importantes na minha formação, as Professoras Doutoras Regina Coelli Guedes e Sumi Butsugam (em memória), coordenadoras do Núcleo de Ensino em Artes (IA-UNESP) que confiaram em mim para dar início ao projeto “arte, educação pela arte” nas comunidades do entorno do Parque Nacional Serra da Capivara, no início dos anos 90, partindo de São Paulo. E, na Serra da Capivara, minha formação em Arte funde-se com a Arqueologia pré-histórica, e nesse novo percurso agradeço o conhecimento e dedicação das professoras doutoras, Niede Guidon, Anne-Marie Pessis, Gabriela Martin (UFPE) e Silvia Maranca (USP) desde aqueles primeiros anos. Agradeço as discussões e apoios dos Professores Pierre Luigi Rosina, João Baptista, Eugénia Cunha, Hipolito Collado Giraldo, Manuel Calado e colegas do meu curso de doutoramento como também, os especialistas em Arte Rupestre que ao visitarem a Serra Branca, por ocasião da IFRAO 2009, olharam com outros olhos aquele [2] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Agradecimentos

corpus e mostraram pontos, linhas, sobreposições, interpretações que eu nem imaginava. Agradeço aos jovens que me auxiliaram diretamente nesta tese, das análises, fichas, fotos aos desenhos de lítico, arte rupestre, planos e cortes, mapas, são eles, Adolfo, Ariclenes, Cida, Dalmir, Evandro; Galeguinho, Iranilde, Janine, Leandro, Lucas, Mafalda, Marcelo, Maxim, Rafaello, Tamyris e Thalison. A Elaine Ignácio, companheira dos primeiros anos desta jornada e realizadora do desenho do painel principal da Toca da Passagem e do design da ficha dos sítios arqueológicos. As minhas primas, companheiras de horas boas e más, Maria de Loudes Reis Fidalgo, Guida e Celia Marques. As familias Reis e Fidalgo pela acolhida a mim e aos meus amigos brasileiros em suas casas nos primeiros anos deste percurso em Portugal. A Bela, o Francisquinho e o Vitor Teixeira; a Gioconda Abreu, Tómané e Dalma Simões de Abreu; Mila, Ludwig, Maxim e Allegra Jaffe nem todas as palavras desse mundo são suficientes para agradecer. Agradeço o carinho e a atenção da família Rodrigues (Ana, seus filhos e Jorge); da Khirys e Luis Jorge; e da equipa de médicos, enfermeiros e administrativos da Unidade de Saúde de Arazede. E não podia faltar e Verinha, o Pedrinho e seus filhos; Jorlan e Marian; Ana Stela Negreiros e todos aqueles de São Raimundo Nonato e Coronel José Dias que nutrem um carinho especial por mim e eu por eles. Agradeço de todo o coração, aos amigos portugueses que conviveram comigo nestes anos em Mação, Lisboa, Coimbra e Vila Real, uma grande família. Aos brasileiros e outras nacionalidades também (claro!). Foram bons anos que ficarão na memória e na saudade por muito tempo. Nós construímos a nossa história e são as experiências de convivência que nos fazem

pessoas

melhores,

bons

pesquisadores

e

bons

educadores.

passam...passam por poucos e outros passam por muitos, mas passamos todos.

[3] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Alguns

Índice

INTRODUÇÃO PREFÁCIO................................................................................................................. 1 ESTÓRIA DAS NOSSAS HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA ...................................... 2 JUSTIFICATIVA DA ESCOLHA........................................................................... 10 DESCRIÇÃO DOS CAPÍTULOS ........................................................................... 21 CAPÍTULO I - O TERRITÓRIO E AS DINÂMICAS HUMANAS I.1 O TERRITÓRIO ....................................................................................................... 27 1.1 Localização......................................................................................................... 27 1.2 Geologia e Geomorfologia ................................................................................. 29 2.1 Geologia....................................................................................................... 29 2.2 Geomorfologia............................................................................................. 35 1.3 SOLOS ................................................................................................................. 40 1.4 HIDROGRAFIA ..................................................................................................... 41 1.5 CLIMA ................................................................................................................. 42 1.6 VEGETAÇÃO ........................................................................................................ 43 6.1 Caatinga ....................................................................................................... 43 6.2 Plantas e Plantações..................................................................................... 48 1.7 FAUNA ................................................................................................................ 50 1.8 PALEOAMBIENTE E MEGAFAUNA ........................................................................ 53 8.1 Megafauna ................................................................................................... 58 8.2 Análise polínica ........................................................................................... 66 8.3 Análise sedimentológica.............................................................................. 69 8.4 Cronologia Paleoambiental........................................................................... 72 I.2 AS DINÂMICAS HUMANAS ................................................................................. 75 2.1 O POVOAMENTO AMERICANO: PESQUISA MULTIDISCIPLINAR ............................ 77 1.1 Um estudo de caso: O Boqueirão da Pedra Furada (BPF) .......................... 82 1.2 A Antiguidade da Arte Rupestre ................................................................. 88 2. 2 OS HOMENS DO HOLOCENO: O APOGEU ARTÍSTICO E TECNOLÓGICO .................. 94 2.1 Datações Holocênicas.................................................................................. 97 2.2 A indústria lítica: a tradição Itaparica........................................................ 100 2.3 Arte rupestre: da escolha da matéria prima à execução técnica ................ 102 2.3 OS INDÍGENAS CERAMISTAS: O CONTATO COM O COLONIZADOR ....................... 108 2.4 O SERTANEJO: UMA OCUPAÇÃO RECENTE ......................................................... 113 4.1 A colonização tardia .................................................................................. 113 4.2 Vida e obra dos maniçobeiros..................................................................... 116 I.3 ANTECEDENTES HISTÓRICOS ......................................................................... 119 Arqueologia do Movimento [i]

Índice

CAPÍTULO II - A PESQUISA. HISTÓRIA E FUNDAMENTOS II.1 HISTORIOGRAFIA DA ARTE RUPESTRE NO BRASIL .................................123 1.1 PANORAMA GERAL DA DOCUMENTAÇÃO ASSOCIADA À ARTE RUPESTRE .........124 1.1 Primeiros Documentos Escritos .................................................................124 1.2 Primeiras Ilustrações ..................................................................................129 1.2 DOCUMENTAÇÃO ASSOCIADA À ARTE RUPESTRE DO ESTADO DO PIAUÍ .............135 2.1 “Carta de Jacob Viçoso a Lobo da Silva, 27 de março de 1757” ..............136 2.2 “Diário de Antonio do Rego Castelo Branco sobre a entrada de 1779” .....................................................................................................137 2.3 A descoberta da Arte rupestre da Serra da Capivara (anos 60) .................139 1.3 O PENSAMENTO APLICADO AS DESCOBERTAS DA ARTE RUPESTRE .....................141 3.1 Arte Rupestre como Escrita ........................................................................141

3.2 Início do Levantamento Sistemático da Arte Rupestre .............................144 II.2 CATEGORIAS ANALÍTICAS APLICADAS À ARTE RUPESTRE ..................146 2.1 TRADIÇÕES NO BRASIL ......................................................................................147 2.2 A REGIÃO DO PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA....................................154 CAPÍTULO III – A PESQUISA. METODOLOGIA...............................................165 III.1 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA............................................................................167 1.1 TEMAS ABORDADOS...........................................................................................167 1.2 BIBLIOTECAS PESQUISADAS ..............................................................................169 III.2 PESQUISA DE CAMPO (ESPECÍFICA DA REGIÃO SERRA BRANCA)......170 2.1 PROSPECÇÕES ARQUEOLÓGICAS ........................................................................170 1.1 Histórico.....................................................................................................170 1.2 Tipos de sítios arqueológicos cadastrados .................................................176 1.3 As sub-áreas e os sítios arqueológicos correspondentes............................180 3a - Sub-área do CAIXA PREGO (A) ......................................................182 3b - Sub-área da IGREJINHA (B) ............................................................185 3c - Sub-área do VENTO (C)....................................................................188 3d - Sub-área do OLHO DÁGUA (D) .....................................................191 3e - Sub-área do BOQUEIRÃO NOVO (E) .............................................195 3f - Sub-área da EXTREMA (F) ...............................................................197 3g - Sub-área da PASSAGEM (G)............................................................199 3h - Sub-área do CONFLITO (H) .............................................................200 3i - Sub-área do CHAVES (I) ...................................................................202

[ii] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Índice

3j - Sub-área do LAJEDO DAS BOLAS (J) ............................................ 205 3k - Sub-área do PEDRA SOLTA (K) ..................................................... 208 3l - Sub-área do PINGA DO BOI (L) ....................................................... 211 3m - Sub-área do NEZINHO (M) ............................................................. 215 3n - Sub-área do MORCEGO (N)............................................................. 217 3o - Sub-área do ANGICAL (O)............................................................... 219 1.4 Síntese quantitativa dos tipos de sítios por sub-áreas................................ 222 1.5 Ficha de sítio arqueológico........................................................................ 225 2.2 LEVANTAMENTO FOTOGRÁFICO ........................................................................ 230 2.3 ESCAVAÇÕES..................................................................................................... 232 III.3 ANÁLISE LABORATORIAL ............................................................................. 233 3.1 Análise da Arte Rupestre.................................................................................. 233 1.1 ETAPA 1. .................................................................................................. 233 1.2 ETAPA 2 ................................................................................................... 235 1.3 ETAPA 3 ................................................................................................... 243 1.4 ETAPA 4 ................................................................................................... 246 4a - Predominância IMAGÉTICA-VISUAL ............................................ 246 4b - MATRIZ VISUAL ............................................................................ 248 1.5 ETAPA 5. .................................................................................................. 250 3.2 ANÁLISE DOS DEMAIS VESTÍGIOS ARQUEOLÓGICOS ........................................... 251 2.1 Os Líticos................................................................................................... 251 2.2 Os Fragmentos de Cerâmica...................................................................... 252 3.3- APLICAÇÃO DO SISTEMA DE INFORMAÇÃO GEOGRÁFICA (SIG)....................... 253

Arqueologia do Movimento [iii]

Índice

CAPÍTULO IV – OS CONTEXTOS ARQUEOLÓGICOS....................................255 IV.1 TOCA DO MORCEGO ........................................................................................261 1.1 DESCRIÇÃO DO ABRIGO .....................................................................................261 1.2 A ESCAVAÇÃO ...................................................................................................262 1.3 ANÁLISE DOS VESTÍGIOS DA CULTURA MATERIAL ............................................268 3.1 Fragmentos de Cerâmica............................................................................268 3.2 Indústria Lítica ...........................................................................................269 3.3 Outros Vestígios.........................................................................................271 1.4 A ARTE RUPESTRE ..............................................................................................272 4.1 Aplicação da matriz visual.........................................................................275 4.2 Síntese Visual das figuras humanas de braços abertos ..............................287 1.5 DATAÇÕES .........................................................................................................288 1.6 CONCLUSÕES .....................................................................................................290 IV.2 TOCA DO PINGA DA ESCADA ........................................................................291 2.1 DESCRIÇÃO DO ABRIGO .....................................................................................291 2.2 A ESCAVAÇÃO ...................................................................................................295 2.3 ANÁLISE DOS VESTÍGIOS DA CULTURA MATERIAL ............................................296 3.1 Indústria Lítica ...........................................................................................296 3.2 Fragmentos de Cerâmica............................................................................299 3.3 Outros Vestígios.........................................................................................299 2.4 A ARTE RUPESTRE ..............................................................................................300 4.1 Aplicação da matriz visual.........................................................................302 2.5 DATAÇÕES .........................................................................................................307 2.6 CONCLUSÕES .....................................................................................................308 IV.3 TOCA DO PAU DÓIA .........................................................................................309 3.1 DESCRIÇÃO DO ABRIGO .....................................................................................309 3.2 A ESCAVAÇÃO ...................................................................................................310 3.3 ANÁLISE DOS VESTÍGIOS DA CULTURA MATERIAL ............................................317 3.1 Indústria Lítica ...........................................................................................317 3.2 Outros Vestígios.........................................................................................319 3.4 A ARTE RUPESTRE ..............................................................................................320 4.1 Aplicação da matriz visual.........................................................................321 3.5 DATAÇÕES .........................................................................................................333

[iv] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Índice

3.6 CONCLUSÕES..................................................................................................... 334 IV.4 TOCA DO PICA-PAU ......................................................................................... 335 4.1 DESCRIÇÃO DO ABRIGO ..................................................................................... 335 4.2 A ESCAVAÇÃO .................................................................................................. 336 4.3 ANÁLISE DOS VESTÍGIOS DA CULTURA MATERIAL ........................................... 339 3.1 Indústria Lítica........................................................................................... 339 3.2 Fragmentos de Cerâmica ........................................................................... 341 4.4 A ARTE RUPESTRE ............................................................................................. 342 4.1 Aplicação da matriz visual ........................................................................ 346 4.5 DATAÇÕES ........................................................................................................ 355 4.6 CONCLUSÕES..................................................................................................... 356 IV.5 TOCA NOVA DO INHARÉ................................................................................ 357 5.1 DESCRIÇÃO DO ABRIGO ..................................................................................... 357 5.2 A ESCAVAÇÃO .................................................................................................. 358 5.3 ANÁLISE DOS VESTÍGIOS DA CULTURA MATERIAL ........................................... 361 3.1 Indústria Lítica........................................................................................... 361 5.4 A ARTE RUPESTRE ............................................................................................. 364 4.1 Aplicação da matriz visual ........................................................................ 364 5.5 DATAÇÕES ........................................................................................................ 366 5.6 CONCLUSÕES..................................................................................................... 367 IV.6 TOCA DA GAMELA .......................................................................................... 369 6.1 DESCRIÇÃO DO ABRIGO ..................................................................................... 369 6.2 A ESCAVAÇÃO .................................................................................................. 371 6.3 ANÁLISE DOS VESTÍGIOS DA CULTURA MATERIAL ........................................... 374 3.1 Indústria Lítica........................................................................................... 374 3.2 Fragmentos de Cerâmica ........................................................................... 377 6.4 A ARTE RUPESTRE ............................................................................................. 377 4.1 Aplicação da matriz visual ........................................................................ 380 6.5 DATAÇÕES ........................................................................................................ 387 6.6 CONCLUSÕES..................................................................................................... 387

Arqueologia do Movimento [v]

Índice

IV.7 TOCA DA PASSAGEM.......................................................................................389 7.1 DESCRIÇÃO DO ABRIGO .....................................................................................389 7.2 INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA .........................................................................389 7.3 A ARTE RUPESTRE ..............................................................................................393 3.1 Aplicação da matriz visual.........................................................................394 7.5 DATAÇÕES .........................................................................................................408 7.6 CONCLUSÕES .....................................................................................................408

CAPÍTULO V – ARQUEOLOGIA DO MOVIMENTO.........................................409 V.1 DINÂMICAS NATURAIS ....................................................................................409 1.1 SITUAÇÃO TOPOGRÁFICA DOS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS......................................410 1.2 ABERTURA E ORIENTAÇÃO DOS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS ...................................413 1.3 ESTADO DE CONSERVAÇÃO DO SUPORTE ROCHOSO ............................................415 1.4 DINÂMICA HIDROGRÁFICA .................................................................................421 V.2 DINÂMICAS CULTURAIS..................................................................................423 2.1 PREDOMINÂNCIAS IMAGÉTICA-VISUAIS .............................................................426 2.2 PRINCIPAIS TEMÁTICAS REPRESENTADAS NO CORPUS PICTÓRICO .......................434 2.3 TEMÁTICAS E SUA DISTRIBUIÇÃO NO VALE DA SERRA BRANCA .........................437 3.1 Cenas de Caça ............................................................................................437 3.2 Cenas de Pesca e Coleta.............................................................................440 3.3 Cenas de Sexo ............................................................................................442 3.4 Cenas de Dança..........................................................................................446 4a. Duo de Antropomorfos ........................................................................452 4b. Trio de Antropomorfos........................................................................456 4c. Sequência de Antropomorfos ..............................................................458 4d. Cena de árvore.....................................................................................463 4e. Frente e Perfil ......................................................................................466 3.5 Figuras míticas ...........................................................................................472 3.6 Jogo Lúdico................................................................................................479

[vi] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Índice

CAPÍTULO VI – CONCLUSÃO .............................................................................. 485 VI.1 ABORDAGEM .................................................................................................... 485 VI.2 PERIODIZAÇÃO................................................................................................. 493 2.1 MOVIMENTO DE OCUPAÇÃO 1, GRANDES ANIMAIS ........................................... 493 2.2 MOVIMENTO DE OCUPAÇÃO 2, POVOS DE TRANSIÇÃO ...................................... 496 2.3 MOVIMENTO DE OCUPAÇÃO 3, POVOS DE PASSAGEM........................................ 501 3.1 Movimento de Ocupação 3A, PINGA DA ESCADA...................................... 503 3.2 MOVIMENTO DE OCUPAÇÃO 3B, MULUNGU ............................................... 504 3.3 MOVIMENTO DE OCUPAÇÃO 3C, MORCEGO ............................................... 506 2.4 MOVIMENTO DE OCUPAÇÃO 4, HISTÓRICO ........................................................ 508 2.5 SINTESE DOS MOVIMENTOS DE OCUPAÇÃO ....................................................... 511 VI.3 CARACTERIZAÇÃO GLOBAL DA ARTE DA SERRA BRANCA ................ 519 VI.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 524 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 525

INDICE E LEGENDA DAS FIGURAS.................................................................... 569

INDICE E LEGENDA DAS TABELAS E DOS GRÁFICOS................................ 585

Arqueologia do Movimento [vii]

INTRODUÇÃO

Muitos povos ignoram a harmonia Alguns podem ignorar a melodia Nenhum ignora o ritmo. VINCENT D.INDI

BUCO, C. A. 2012. Arqueologia do Movimento. Relações entre Arte Rupestre, Arqueologia e Meio Ambiente, da Pré-história aos dias atuais, no Vale da Serra Branca (Volume I).

Introdução

PREFÁCIO Nesta pesquisa nosso principal objetivo não foi questionar os conceitos tradições, sub-tradições e estilos aplicados à arte rupestre do Parque Nacional Serra da Capivara dando-lhes “julgamento de valor”, somos cientes da importância dessas classificações para um primeiro ordenamento do corpus pictórico de uma região tão ampla e variada. Buscamos alternativas analíticas para provar a tese de que “a narratividade da arte complementada pelo contexto arqueológico e ambiental, permite propôr a estrutura do modo de vida das culturas pré-históricas que ocuparam o Vale da Serra Branca”, e para isso, esse questionamento fez-se necessário. Com o decorrer da pesquisa a questão da gestão do território, conhecer os diferentes grupos que ocuparam a nossa área de estudo, o vale da Serra Branca, suas margens e o próprio leito do rio, hoje seco e repleto de sedimento, tornou-se fundamental para compreender como os homens viviam em distintos períodos. Tentamos construir um raciocínio aonde o homem é visto na sua integralidade, portanto, não separamos os universos, o natural, de subsistência e o simbólico, imaginário e percebemos que trabalhando com um tema, essa relação era mais fácil de ser absorvida, expressada e portanto analisada. Por essa razão, chamamos nossa pesquisa de arqueologia do movimento, movimento este encontrado nos diferentes momentos de ocupação humana desse vale e no gesto técnico, que requer um gesto biológico para dar forma - movimento aos pontos, linhas e planos gerando novos movimentos, reflexivos, interpretativos, acadêmicos e populares por parte do observador atual. E é o resultado desses olhos transformados em letras que se movimentam, o sentido da arte que nos chega através das palavras e dos tempos. Antes de escrever, descrever, analisar, fundamentar e concluir anos de pesquisa apresenta-se uma ficção sobre o Vale da Serra Branca, com o principal intuito de, através das palavras, levar o leitor a ter uma noção da realidade histórica recente, que movimenta na comunidade atual, o sentido de “pertencimento” dessa arte, desse parque - uma razão para preservar esse patrimônio cultural para novas gerações.

Arqueologia do Movimento [1]

Introdução

ESTÓRIA DAS NOSSAS HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA (Ficção inicial sobre as ocupações humanas no vale da Serra Branca, Parque Nacional Serra da Capivara)

Eu, Josilvaldo, quando me vi diante de tanta seca, resolvi pegar minha mulher, meu filho, nosso cachorro e partir do sertão pernambucano em busca de terras melhores. Meu pai não queria, mas compreendia, fazia 5 anos que não chovia, nosso gado morreu todo, água só do olho d’água, para ele e minha mãe, talvez desse para mais alguns meses, mas para todos nós, não sobreviveríamos. Ele era um homem valente, mas de pouca saúde e por consequência de pouco trabalho, quem plantava mandioca e feijão era minha mãe, a Maria dos Santos. Ah! Quanta saudade tenho… dela e da sua força interior, que sempre, toda manhã me acordava com um copo de leite de cabra e bijou1, feito com a farinha da nossa mandioca. Pedrinho, nosso menino, tinha só 6 anos de idade quando saímos do sertão para o centro, lá para as bandas do Piauí. Um amigo do meu pai havia dito que por lá, plantavam maniçoba e tiravam um líquido, como uma borracha, para vender, e havia comprador, o que era o mais importante em tempo de crise, sem chuva e sem dinheiro. Arrumamos as trouxas, ajeitei as coisas na cangalha2 que nosso jumento carregava e fomos, dias e mais dias, caminhando nessas terras secas até a Serra Branca, no Piauí. Depois de longo tempo, chegamos num pequeno povoado, que chamavam de São Pedro, com uma igreja, umas casas pequenas mas bem cuidadinhas e...muita gente. Parei em um bar, que era também pousada, e pedimos abrigo. Estávamos muito cansados de tanto viajar dormindo ao relento. Ficamos felizes, finalmente tínhamos chegado ao Piauí e bem perto de onde se explorava a tal maniçoba.

1

Beiju é um tipo de bolo (panqueca) feito com a goma da tapioca ou da massa de mandioca assada. Muito conhecido no Norte/Nordeste do Brasil. O seu sabor pode ser adequado ao gosto de cada um, com sal, açucarado, com coco ralado, queijo, manteiga, carne de sol, frango, etc. Típico da comunidade rural que planta a mandioca e produz todos os derivados para venda, mas principalmente para consumo próprio. 2

Cangalha é uma forquilha de madeira usada de cada lado do lombo de animais de carga para pendurar carga, de ambos os lados o dorso da cavalgadura. À cangalha fixam-se os cambitos - forquilhas ou ganchos em forma de V, de madeira, que sustentam a carga, que pode estar em fardos ou em grandes cestos de vime ou cipó, sem tampa e com alças.

[2] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Introdução

Lá conheci um senhor chamado Durval que logo na primeira noite foi me mostrar seus amigos e parentes, enfim à toda a gente daquele povoado. Rimos muito e comemos muito bem, a sua mulher fez uma galinha a cabidela, feita com o sangue e muito coentro. Ah! Quanta saudade que já tínhamos do nosso coentro. Comi também arroz de leite e o meu Pedrinho passou até mal de tanto que comeu, sua mãe bem que avisou. No dia seguinte fui a Serra Branca junto com quatro casais que tinham uma casa no povoado e outra na Serra, pois ainda era uma grande caminhada chegar lá. A vida ficava muito dura se tivéssemos que ir e vir todos os dias. Além disso era tanto calor e pouca água, só havia água quando chovia, e pelos vistos... demorava muito para São Pedro soltar a água lá do céu, tinha que esquentar muito mais. Maria e Pedrinho ficaram com a mulher do Durval que ia mostrar um tanque natural para ela poder lavar roupa. Nossa roupa já nem parecia a mesma de tão cheia de pó amarelo da estrada. Depois de duas horas e meia de caminhada, subindo e descendo serra, passamos pelo Desfiladeiro da Capivara, subimos em direção da Chapada e lá fomos numa reta só, cortando-a em direção Noroeste até descer no vale, ao Olho d’água da Serra Branca e a Toca do Juazeiro. O pessoal que estava por lá nos esperavam com festa e tudo, tinha carne de bode, farinha de mandioca, cachaça mangueira e forro pé de serra, com um sanfoneiro que tinha andado dois dias para estar lá tocando para todos, vinha de longe, das bandas de Don Inocêncio. Fiquei emocionado, afinal tinha chegado ao lugar prometido, de lá eu ia tirar o sustento para toda a minha família. Ao chegar, só queríamos saber de água, a sede era tanta, a subida dura e com o calor tive a impressão da distância ser muito maior que a realidade. Depois de descansar uns 15 minutinhos, foram me mostrar uma toca que estava sem ninguém, uma que era do João Sabino, ele tinha se mudado para o Pará, lá no Norte do Brasil. Gostei muito! Tem forno pequeno para torrar a mandioca, e paredes de taipa, além do mais, do lado há muita maniçoba e estou a 100 metros da Toca do Juazeiro, “que pelo que” percebi, é o ponto de encontro de todos. Amei! Estou muito feliz. Sei que vamos nos dar bem aqui, sinto isso.

Arqueologia do Movimento [3]

Introdução

Na manhã do dia seguinte sai andando pela serra para conhecer, afinal ia passar ali os próximos 50 anos da minha vida, e vi muita coisa mudar, crescer, melhorar e algumas até piorar. Por cima da nossa toca, era um grande lajedo, o sol batia com tanta luz na rocha, o chão parecia uma carapaça de tatu gigante, ofuscava os olhos. Tudo fica muito claro e quente, tinha até fumaça das “costas do bicho”. De lá era possível ver o vale da Serra Branca que outrora tinha sido um grande rio, dá para imaginar e até ouvir o som da água, descendo daqui de cima, em pequenas cachoeiras, carregando muito peixe e, grandes. Já vi pintado nas paredes das tocas esse peixes, será que são peixes? Acho que são peixes, pois estão tão bem desenhados e, tenho a impressão que só fazemos bem aquilo que conhecemos, de imaginação fica uns desenhos esquisitos, acho eu. São umas figuras com pernas e corpo de homem e, focinho com orelha e tudo de bicho. Eu também desenho, gosto de riscar com o facão as paredes da serra, coloco letras formando alguns nomes que conheço e datas, afinal só sei escrever isso, nunca tive a oportunidade de ir a escola, alias em terras do sertão, poucas pessoas, da minha idade, sabem ler ou escrever, e ir a escola então, é mais raro ainda. Há pouca esperança para o sertanejo, a vida é dura, e muitos acreditam que o mundo foi reduzido ao que eles conhecem, que vão fazer o que seus avôs e seus pais fizeram – viver da roça! As coisas por aqui mudaram muito, eu vou tentar contar, mas não é suficiente, tem que conhecer, ver com seus próprios olhos. Minha mãe dizia duas frases que marcaram a minha vida. A primeira era que “o que os olhos não vêem o coração não sente” e a outra é que temos que ser como São Tomé “tem que ver para crer”. Sempre fui curioso, e nunca tive preguiça para trabalhar, e isso me fez conseguir chegar aonde cheguei, e me sinto bem de participar, de presenciar uma região, que cresceu e se desenvolveu, com o respeito para com o passado do homem e com a “mãe natureza”. Ficamos cinco dias na Serra Branca, me ensinaram a fazer a lega, a cuia e a recolher o látex da maniçoba3. Na hora do trabalho parecíamos todos uma grande 3

Maniçoba, a qual se refere nesta tese, não é comestível, portanto não é a conhecida feijoada paraense, um dos pratos da culinária brasileira de origem indígena, feita com as folhas da mandioca venenosa. Na região da Serra da Capivara há 6 espécies de maniçoba, e delas extraia-se uma seiva que era utilizada para a produção láctea (borracha)

[4] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Introdução

família, um sempre ajudava o outro, me senti em casa, apesar da saudade dos meus pais, que nunca mais ia voltar a vê-los. Aproveitei também para “massar” um pouco mais a nossa toca, levantei uma parede de taipa para mais um quarto, o do Pedrinho e reconstrui o fogão de lenha, que estava meio destruído. Uma das paredes da toca é toda preta da fumaça, mas como vamos continuar a viver e cozinhar por lá, limpar para quê? Afinal vai sujar cada dia mais um pouco. E, eu cá não estou para fazer serviço desnecessário. Voltamos ao povoado. Abracei tão forte meu filho, acho que nunca tinha ficado cinco dias longe dele, nós nordestinos, só saímos do lado da família porque somos obrigados, é a vida! Se pudéssemos vivíamos todos juntos, uma casa ao lado da outra, jogando “converse” todo dia. Podemos ter pouco, mas dividimos com quem precisa, sempre. E...voltamos a Serra Branca e nos instalamos. Como tínhamos pouca tralha, optamos em fazer da Toca a nossa casa e passamos a viver ali, dia após dia, na época da exploração da maniçoba trabalhávamos todos, e depois andávamos pela Serra, conhecendo as tocas e se encantando com os letreiros pintados. Eram tantos! Plantei uns pés de fruta, mandioca e feijão, mas lá tem tanta areia, tanta areia branca, que isso pouco rendeu para se ganhar dinheiro, foi mais para consumo próprio. Eu nunca gostei da caça, nem para comer, e meu filho também, que bom. De carne, gostamos do bode e do boi e, de bicho que voa, uma boa galinha nos sustenta. Prefiro os bichos lá e nós cá. Dizem que nesta região há onça-pintada, não nego que tenho um certo medo, ela mede quase 2 metros de comprimento, ou seja é maior do que eu, e não sei qual vai ser a reação que posso ter quando ver uma. Já me disseram para não sair correndo, mas quando temos medo não sabemos nem o nosso nome direito, vou tentar me acalmar e se acontecer, vai tudo dar certo. E deu! Alguns meses depois, eu e o Pedrinho vimos uma “pintada” bebendo água no Olho d’água da Serra Branca, um gato gigante que olhou para nós, abanou o e estava relacionada ao desenvolvimento das indústrias automobilísticas e elétricas. Foi a segunda planta produtora de borracha conhecida no mundo comercial, ficando atrás apenas da produção das seringueiras na região norte do país. Ela era exportada principalmente para os Estados Unidos e Inglaterra e, no período entre 1900 à 1960, foi quando teve a maior importância econômica.

Arqueologia do Movimento [5]

Introdução

rabo e foi-se tranquilamente. Se nós tivemos medo, a onça não percebeu. Tem um senhor que já caçou mais de 72 onças e amarrou uma, se é verdade não sabemos, mas que ele não tem medo, esse “não tem medo não”. Nos letreiros também tem “onça-pintada”, e algumas figuras humanas do lado dela, parece que eles caçavam-na, mas a carne não parece boa para comer, o que será que faziam? Por aqui, o animal que mais aparece pintado é o veado, inclusive até hoje, ficam por detrás das árvores escondidos olhando para a gente quando estamos explorando a maniçoba, é divertido. Só eles não sabem que uma árvore fininha sem folhas não esconde nada! Nem veado! Quando não estava trabalhando e meu filho ainda era pequeno, conhecemos a Serra toda andando e vendo letreiros, o que hoje chamam então de arte rupestre. Vimos tantas! E contamos muitas histórias. Inventei! E eu, lá sei, o que essas escrituras querem dizer ! Os antigos dizem que foram os índios, que moravam aqui na época em que chegaram os portugueses, que pintaram esses desenhos todos. É bem capaz, eu sou curioso para saber com que tinta que fizeram isso, hoje em dia, pintamos nossa casa e depois de alguns anos precisamos pintar de novo. Atualmente parece que fazem tudo com material para não durar e antigamente era para durar a vida toda, como essas pinturas na rocha, faz anos que estou aqui e elas continuam iguais, com cores vivas, como se tivessem terminado de pintar agora. Se fosse contar todas as historias que eu e Pedrinho inventamos, ou mesmo descrever um pouquinho de cada toca que vimos acho que nem 500 páginas dava, por isso vou contar só algumas, as outras ficam por conta do seu imaginário quando tiver a oportunidade de ver, com seus olhos, o que vi com os meus. Nessas andanças, fomos parar numa toca com mais de 700 figuras, rimos muito contando-as, vendo cada uma delas e falando sobre. De repente, Pedrinho adolescente na idade, mas ainda criança de cabeça viu várias figuras humanas com, bem, sabe o que é, muito grande e reto como o horizonte, e de repente, me pergunta o que era aquilo. Naquele dia sua mãe estava conosco e ficou toda sem jeito, nos nunca tínhamos conversado com o Pedrinho sobre sexo, nem como, nem quando e nem porquê. Bem, o que ele viu ao meu entender, era uma cena de sexo entre dois homens, mas antes que eu

[6] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Introdução

me expressasse, ele se adiantou e disse que eram duas crianças, uma atrás da outra, brincando com um cabo de vassoura entre as pernas. Sua mãe ficou aliviada e eu calado. Meu filho era uma besta, ou o quê! Será que não percebia as coisas?! No outro dia tive que sair muito cedo para a coleta da maniçoba e passei todo o dia a pensar na resposta do Pedrinho. No fim do dia, até voltei na toca para olhar o desenho com mais calma. E sabe a conclusão que cheguei! O que cada um vê, é o que cada um com o seu conhecimento tem a capacidade de perceber, sentir e transmitir em palavras. Quando cheguei aqui chamavam essa arte rupestre de desenhos dos “neguinhos da serra”, hoje são figuras, grafismos, registros, palavras e palavras bonitas para dizerem sempre a mesma coisa. Essa serra é maravilhosa, ver essas pinturas, sentar dentro da toca, olhar para o vale é poder se transportar para um outro mundo, que também é meu mundo, pois foi gente como eu que fez tudo isso, e sou eu que estou aqui e agora.

Quem esta mais certo na resposta? Pedrinho? Por quê? Talvez seja o menino, ele ainda não tem sua vida e nem seu conhecimento condicionado aos conceitos e preconceitos da nossa sociedade, quem dera sermos adultos que ainda pudéssemos ver as coisas com o olhar de uma criança, que fala o que vê, e não o que os outros gostariam que ela tivesse visto. Qual é o nosso papel nessa história?

Tive que voltar na toca com Pedrinho preparado à dizer o que eu e sua mãe víamos naquela imagem. Me espantei novamente, e desta vez foi pior o susto. Sabe o que ele me disse? - Eu sei pai o que quer dizer! Não precisa me explicar não! Eu é que inventei outra história. Mas a minha história também pode ser, “não pode não”? Se o senhor olhar bem para os desenhos até parece um cabo de vassoura bem grande, igual a esses que a mãe usa para varrer a casa.

Arqueologia do Movimento [7]

Introdução

De imediato fiquei mudo com a resposta, depois concordei com ele, era apenas mais uma explicação para o que estavamos observando com os nossos olhos. Naquele dia, eu e Pedrinho esquecemos da hora, fomos chegar a nossa toca de noite, pois ficamos naquele lugar olhando as figuras, pensando e falando sobre como eles, os autores daqueles desenhos, faziam muitas coisas diferentes, como: brincavam, dançavam, tocavam, lutavam, caçavam, corriam e que deviam ser felizes, pois parecia que conviviam em total harmonia com aquele lugar. Eu, ainda abraçado a ele, ouvia sua voz que não parava de falar e perguntar. - Pai! Eles eram sabidos, né! Como o senhor é sabido assim, se nunca foi a escola? Meu filho! Tem a escola de vida e cada um vai aonde pode. Eu sempre acompanhei seus avôs e os irmãos da sua avó na roça e ficava de orelha em pé nas conversas deles, nas histórias. Disseram que o famoso tio Quim de Joaquim (bisavô), que não tinha medo de nada, nem de caboclo bravo e nem de “livuzia” 4, veio lá de Portugal, um lugar que dizem que fica muito depois do mar, mas muito mesmo, e se apaixonou pela Maria dos Anjos, sua bisavô e fugiu com ela para lá aonde a vó, filha deles, mora até hoje. Ela era cabocla brava, que nem sabia falar nossa língua e que corria muito pela mata, ninguém pegava, só o seu Quim. Acho que ela gostava dele, fugia de todos os outros menos dele! Contam que num dia de muito sol, ele pegou nela e desapareceram, fugiram para o Sertão, e é dai que conheço a história do seu bisavó que era contada pela sua avó, eu o vi quando era menor que você, lembro pouco dele, mas sinto o cheiro do fumo de rolo que ele usava para fazer seu cigarrinho de palha que fumava toda tarde deitado na rede, já velhinho, contando histórias de reis e rainhas, castelos e pescadores. Sabe meu filho, tenho saudade dessas histórias que me contavam, é o conhecimento da vida que cada um leva para sí. Nós sabemos o que nos contam, o que vemos, o que sentimos e, principalmente o que fazemos com o nosso próprio esforço. E também, devia ser assim com os homens que pintavam essas paredes. 4

Livuzia quer dizer fantasma, assombração. Termo originariamente usado por brasileiros do Nordeste do Brasil, muito comum, ainda nos dias de hoje, nas comunidades rurais.

[8] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Introdução

- Pai! Eles também eram sabidos, né? - Claro, eram como nós! Mas, já faz tanto tempo e não sobrou nenhum deles para contar a verdadeira historia, por isso meu filho que, as vezes, agente inventa. - Pai! Então não tem problema inventar? - Claro que pode inventar! Mas... tem que saber que a verdade foi perdida com quem pintou isso tudo. O que não pode fazer é destruir, para você daqui muitos anos vir aqui com seu filho e contar essas histórias que nós inventamos. Assim, Pedrinho, você vai lembrar dos bons momentos que passamos aqui olhando e admirando isso tudo. É importante, meu filho, ouvir a voz do seu coração e respeitar cada coisa, pois todas têm a sua própria história e esta é a nossa história. O passado tem que ser preservado, isso tudo é a memória das nossas origens, do nosso povo e, crianças como você tem que aprender amar e respeitar as marcas do passado, é a história da pré-história construída dia-a-dia por cada um de nós. Lembre sempre disso! - Pai, lembrarei sempre!

Esta história não passa de uma ficção, mas Pedrinho poderia pertencer ao grupo de jovens que hoje fazem a diferença na região da Serra da Capivara, são guias do Parque, guardas, técnicos em arqueologia, arqueólogos, artesãos, comerciantes, artistas, professores simplesmente “gente que lembra sempre que” a Serra da Capivara é a sua história e preservar não é uma condição, nem um direito e nem um dever, é simplesmente, o ato de viver um dia após o outro, da melhor maneira possível, em equilíbrio consigo, com a natureza e por consequência com o património.

Arqueologia do Movimento [9]

Introdução

JUSTIFICATIVA DA ESCOLHA Associado ao termo “Tradição”5 não necessariamente está um único grupo cultural, por exemplo, no caso da região do Parque Nacional Serra da Capivara temos os “povos da tradição Nordeste” (GUIDON 1983, 1984, 1985, 1986a, 1991c, 1992; MARTIN 1999; PESSIS & GUIDON 1992, PESSIS 2003). Acredita-se que, as duas principais tradições pictóricas, a Nordeste e a Agreste, indicam a hipótese da existência de dois grandes grupos, separados em pequenos grupos (os povos). O primeiro grupo teria tido o seu foco de origem na região da Serra da Capivara expandindo-se para além da fronteira nordestina chegando até a região central do Brasil, e o segundo teria tido o seu foco de origem no Agreste Pernambucano se espalhando pelo Nordeste, passando pela região da Serra da Capivara, chegando até o Planato Central Brasileiro (PROUS 1991, 1994; MARTIN 1999 & MARTIN & ASÓN 2000a, 2000b) (cf. Cap. II.2.2). Na Serra da Capivara, região Sudeste do Estado do Piauí, essas duas tradições conviveram juntas, fato demonstrado em um conjunto de vários sítios arqueológicos estudados (ALVARENGA & LUZ 1991; MARTIN 1999 & PESSIS 2003). Inicialmente a tradição Nordeste foi considerada a mais antiga, porém dentro do limite do Holoceno, e a tradição Agreste a mais recente (GUIDON 1984, 1986a, 1989a). No decorrer dos últimos 25 anos um conjunto de sítios foi escavado e foram descobertos diversos painéis enterrados, assim como fragmentos de parede pintados dispersos em contextos arqueológicos datados (ALVARENGA & LUZ 1991; GUIDON & BUCO 2006; GUIDON et al. 2007b) (cf. Cap. IV.3, IV.4 & IV.5). Evidenciou-se a necessidade de rever os dados comparativos com o intuito de construir um novo quadro cronológico que permite sobrepor as pinturas em um novo arranjo. Concluímos esta tese com uma proposta de um novo ordenamento, uma nova maneira de ver e compreender essas pinturas. Paradigmaticamente, como nossa principal área de estudo, escolhemos uma pequena parte desse vasto território, situada a Noroeste do Parque Nacional Serra da Capivara, o Vale da Serra Branca. 5 O primeiro autor a utilizar esse termo associado à arte rupestre foi Valentin Calderón. Ele realizou uma pesquisa, num conjunto de sítios arqueológicos, na Bahia e definiu-a da seguinte maneira: o conjunto de características que se refletem em diferentes sítios ou regiões, associados de maneira similar, atribuindo cada uma delas ao complexo cultural de grupos étnicos diferentes, que as transmitiam e difundiam gradualmente modificadas, através do tempo e do espaço (AGUIAR 1982: 92-93) (cf. Cap. II).

[10] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Introdução

Esse vale compreende uma faixa longitudinal de aproximadamente 45 km de comprimento, direção norte-sul, com níveis de altitude que variam entre 520 m (topo) e 400 m (fundo), outrora um grande rio com 21 afluentes (SANTOS 2007) (cf. Cap. I.1). Analisamos os “grafismos” 6, as diferentes figuras pictóricas, observando-as no painel, independente das classificações estilísticas associadas às duas tradições principais, mas inseridas em um conjunto misto, englobando morfologias de ambas. Estudamos as diferentes temáticas que podemos associar às figuras, segundo o nosso universo conhecido, e apresentamos possíveis relações entre essas composições e os demais vestígios arqueológicos da cultura material e o contexto ambiental. Nossa intenção foi trazer à tona um conhecimento que permita inferir questões sobre a vida do homem pré-histórico, do comportamento humano à gestão do território, principalmente antes do período do contato, embora que, as ocupações históricas não sejam ignoradas. A região sudeste do Estado do Piauí teve uma colonização tardia, era uma área ocupada por índios bravos, os “tapuias do sertão”, que foram todos dizimados (MACHADO 2002; MEDEIROS 2002; OLIVEIRA 2007a) (cf. Cap. I.2). Pode-se dizer que até pouco tempo atrás, não havia investimento financeiro nesta região e por consequência pouco desenvolvimento econômico. Em terras secas aonde houve falta de água, por um longo tempo, e por consequência poucos alimentos, toda uma população foi prejudicada pela desnutrição generalizada e a falta de programas sociais e de desenvolvimento oriundo do poder público. Por outro lado, muito do patrimônio arqueológico foi preservado “in situ”, situação que não aconteceu na grande maioria dos Estados brasileiros devido o rápido desenvolvimento urbano. Em nosso trajeto acadêmico, pesquisamos principalmente a música na arte rupestre, sendo possível realizar analogias visuais em um primeiro trabalho, em sede de mestrado (BUCO 1999), mas no momento que procuramos co-relacionar com

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Tive uma formação aplicada à arte rupestre na qual se classifica a mesma como um complexo sistema de comunicação, composto por grafismos (palavra largamente utilizada no Brasil para referir-se aos diferentes tipos de figuras, com variadas morfologias e técnicas de execução), no qual, temos acesso ao significante, pois o significado perdeu-se com seus autores. Essa forma de pensar contribuiu com uma tendência de classificar a arte rupestre como um registro rupestre, desvinculando-a do conceito de arte, evitando a subjetividade ao qual esse termo pode inferir. Atualmente, como arte-educadora que sou, vejo a arte também como um processo de comunicação – expressão cultural de um grupo manifestada através das diferentes linguagens artísticas, portanto, segundo o meu ponto de vista, uma categoria não elimina a outra. Nesta tese, trato arte rupestre como arte, chamo de figuras por ser um termo mais universal e busco, na medida do possível, a interpretação fundamentada na associação dos dois universos aos quais pertencemos, o natural – de subsistência, e o simbólico – imaginário, sem detrimento de valores entre eles.

Arqueologia do Movimento [11]

Introdução

informações etnológicas e históricas percebemos que era impossível estudar a música isoladamente das outras manifestações artísticas, por quê? A música para os grupos indígenas 7 faz parte do seu viver, ela não está separada do seu cotidiano, está presente desde as atividades básicas aos ritos repletos de simbolismo (LUKESCH 1976; CAMEU 1977; SEEGER 1980 & MELLATI 2007). A música é uma forma específica de comunicação. Suas características nãoverbais fazem dela um veículo privilegiado para transmitir valores e éthos que são mais facilmente “musicados”que verbalizados. Estes são comunicados não somente através dos sons, mas também dos movimentos dos intérpretes, do tempo, do local e das condições em que são executados (SEEGER 1980: 84).

As diferentes manifestações artísticas são integradas através das diferentes linguagens (dança, música e artes decorativas) fazendo parte do ser, estar, conviver, aprender, educar e fazer do indivíduo e do grupo ao qual pertence (LUKESCH 1976; SEEGER 1980; CUNHA 1992; VILLAS BÔAS 2000 & MELLATI 2007). É uma outra maneira de ver e conceber o mundo físico e espiritual, na maioria das vezes, distante da compreensão racional ocidental de perceber e conceber o mundo. A boca e a orelha são os órgãos mais importantes para o homem Suyá8. A audição e a fala são as faculdades sociais mais importantes. O disco auricular e labial é o artefato corporal mais importante. É a representação física de uma elaboração conceptual. Através da perfuração da boca e do lobo da orelha e da inserção de discos pintados, o corpo torna-se socializado. Os discos auriculares e labiais estão relacionados com conceitos fundamentais da pessoa, da moral e do simbolismo das partes corporais. (SEEGER 1980: 52)

No caso do homem que viveu na pré-história, que pintou nas paredes, fez ferramentas, caçou, relacionou-se com o seu entorno ambiental, conviveu com tudo e todos da sua maneira, inferimos que, as diversas manifestações artísticas fazendo parte

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Infere-se que os indígenas, em termos culturais, podem ser o grupo mais próximo do homem pré-histórico, porém, não é possível correlacionar diretamente com os autores da arte rupestre, pois há uma grande distância temporal e uma não lembrança desse ato, por parte das diversas etnias indígenas de maneira geral. O Estado do Piauí teve seus índios dizimados, mas é possível observar na fisionomia, que a herança indígena mantêm-se viva na população local dos municípios do entorno do Parque Nacional Serra da Capivara.

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Os Suyá pertencem aos Jê setentrionais, que também incluem os grupos Timbira-Krahó, Kanella, Krikati, Gavião e os Apinayé e os Kayapó. Eram grupos que tradicionalmente viviam em grandes aldeias circulares, alcançando uma população de até 1.500 pessoas, muito maiores do que as dos seus vizinhos que habitam nas florestas tropicais (SEEGER 1980). Na medida do possível, quando fazemos analogias com os grupos indígenas, buscamos uma maior proximidade com os Jê setentrionais (índios da Caatinga e do Cerrado), apesar de que, até hoje não há nenhuma evidência arqueológica que nos permita confirmar essa relação. Está presente na memória oral de alguns moradores da região do Parque Nacional Serra da Capivara que, quando havia índio naquelas terras eles tinham uma falta de cabelo ao redor de toda a cabeça, como uma cinta, e essa característica mantêm-se até os dias de hoje entre os indios Krahó, que atuamente vivem no interior do Estado do Tocantins, vizinho do Estado do Piauí.

[12] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Introdução

do cotidiano, da própria ação de viver, da concepção da idéia à execução da mesma personificada, são em parte, transformadas em arte rupestre. Por isso fizemos uma análise da arte rupestre levando principalmente em consideração as variáveis da representação do movimento presente na gestualidade das figuras que compõem as cenas, permitindo deduzir quais as diferentes temáticas escolhidas, trabalhadas e recorrentes nos sítios arqueológicos dispersos pelo Vale da Serra Branca (corpus pictórico principal desta tese), com ampliação para a área do Parque Nacional Serra da Capivara e seu entorno (envolvente) quando necessário. Integrando essas informações com os dados técnicos, análises dos vestígios arqueológicos líticos e cerâmicos, as datações e os dados paleoambientais, conseguimos aventar conclusões à respeito desse homem, do seu modo de viver, da convivência com o seu entorno ambiental, interagindo com os outros e com a natureza a sua volta, do cotidiano ao simbólico, identificando diferentes momentos de ocupação humana desde a Pré-história. Portanto, o principal objeto desta pesquisa é provar que a narratividade da arte, complementada pelo contexto arqueológico e ambiental, permite conhecer o “modo de vida” das culturas que ocuparam o Vale da Serra Branca. Para esse fim, enfatizamos não separamos os universos, o natural-subsistência e o simbólico-imaginário, mas os unimos com um tema transversal, o movimento, presente das figuras rupestres ao contexto ambiental, e em todas as inter-relações associadas aos diferentes vestígios da cultura material. Com relação a arte rupestre podemos dizer que são várias as cenas em que não identificamos o significante, ou seja, o mesmo não faz parte do nosso universo conhecido, porém, o universo imaginário do homem que, na pré-história, viveu neste vale, está representando independente do fato de que a intenção ficou com seus autores. O significado, apesar de desconhecido, por vezes é inferido com base no nosso universo, que como humanos que somos repetimos ações e pensamos no que possa ter significado esta ou aquela cena, neste ou naquele contexto, provavelmente longe, distante da verdadeira intencionalidade dos autores, mas relativo a nossa realidade, atual, contemporânea e globalizada. Nessa riqueza imagética-visual, o homem do Vale da Serra Branca se exprime pintando e gravando, diferentes figuras e composições, nas paredes rochosas das serras Arqueologia do Movimento [13]

Introdução

e nos blocos soltos, sítios arqueológicos ora distribuídos na margem de um rio, ora nas margens de um lago, hoje nas margens de um vale seco, coberto pela vegetação da caatinga que ressalta uma paisagem semi-árida. É a arte manifestada por artistas anônimos que conheciam e dominavam a técnica, o entorno ambiental, o conhecimento necessário para sua sobrevivência e o saber social da época. O que, porém, aqui nos importa frisar é o fato de a herança genética, isto é, o potencial consciente e sensível de cada um, se realizar sempre e unicamente dentro de formas culturais. Não há, para o ser humano, um desenvolvimento biológico que possa ocorrer independente do cultural. O comportamento de cada ser humano se molda pelos padrões culturais, históricos, do grupo em que ele, indivíduo, nasce e cresce. Ainda vinculado aos mesmos padrões coletivos, ele se desenvolverá enquanto individualidade, com seu modo pessoal de agir, seus sonhos, suas aspirações e suas eventuais realizações...Segundo os conhecimentos atuais a respeito do passado, o homem surge na história como um ser cultural. Ao agir, ele age culturalmente, apoiado na cultura e dentro de uma cultura...por cultura compreende-se que são as formas materiais e espirituais com que os indivíduos de um grupo convivem, nas quais atuam e se comunicam e cuja experiência coletiva pode ser transmitida através de vias simbólicas para a geração seguinte (OSTROWER 1999: 11, 12 & 13).

Não sabemos o que eles pensavam mas podemos conhecer um pouco da sua história, ou construir uma história, por esses vestígios, por esse registro pictórico deixado ao tempo. A arte rupestre é um complexo sistema de comunicação que cumpriu e cumpre sua principal função até hoje, o comunicar. A própria forma compreende-se quando entendida como acto de comunicação de pessoa para pessoa. Uma vez formada, a forma não continua a ser realidade impessoal, mas configura-se como memória concreta não só do processo formante, mas da própria personalidade formadora (ECO 1981: 29).

Uma imagem é uma vista que foi recriada ou reproduzida. È uma aparência, ou um conjunto de aparências, que foi isolada do local e do tempo em que primeiro se deu o seu aparecimento, e conservada – por alguns momentos ou por uns séculos. Todas as imagens corporizam um modo de ver (BERGER et al. 1980: 13).

Reconhecê-la como arte exalta-a, mas não a inferioriza perante os demais vestígios da cultura material. O “fazer arte” permite juntar os dois universos, o natural (subsistência), com o simbólico (imaginário), e se buscamos conhecer o homem, precisamos reconhecê-lo na integralidade como espelho de nós.

[14] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Introdução

Entre todos aqueles que discutem “arte”, Erwin Panofsky (2001) apresenta elementos que podem ser associados à arte rupestre e que nos ajudaram a fundamentar o nosso quadro explicativo (cf. Cap.VI) 9. Nos objetos feitos pelo homem (cultura material) há sempre uma intenção (feito com o intuito de) ao realizá-lo, construí-lo, mas não necessáriamente há a necessidade de experimenta-lo estéticamente. Os objetos que não exigem a experiência estética são considerados práticos, e podem ser separados em duas categorias, ou serem veículos de comunicação aonde há o intuito de transmitir um conceito, ou, uma ferramenta (aparelho) com o intuito de preencher uma função, que por vezes pode ser a de produzir e transmitir comunicação. A maioria dos objetos que exigem a experiência estética também pertencem a essas categorias, sendo-o num certo sentido. No caso da obra de arte, o interesse na idéia é equilibrado e pode até ser eclipsado por um interesse na forma. Todo objeto consiste de “Matéria & Forma”, não há maneira de se determinar com precisão científica, em que medida, esse elemento da “Forma” é o que recebe a ênfase. Em se tratando de Arte Rupestre, apesar de desconhecermos a intenção da experiência, a riqueza temática presente nessa arte associada ao nosso universo social conhecido nos permite inferir “intenções”, observando-os como objetos práticos, aonde o ênfase pode estar no “intuito de transmitir um conceito”, de comunicar entre os grupos autores e para gerações futuras como também, preenchendo uma função que pode ser mítica-simbólica. Porém esse objeto não está desprovido da experiência estética, e é a forma associada ao movimento que permitirá inferir relações entre os universos natural (subsistência) e simbólico (imaginário), que nos permitirão compreender ou aproximarnos da idéia original dos autores. Observar esse objeto de estudo como arte não é defeito, oferece-nos mais elementos analíticos, mais hipóteses interpretativas de conhecer os grupos autores, enfim, seu “modo de vida”.

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Não há problemas com relação aos outros estetas, mas como a proposta desta tese não foi discutir questões estéticas, escolhi um autor que me pareceu mais coerente para co-relacionar com a arte rupestre (com a minha forma de encadear o pensamento). Verdade que, quando, a grande maioria, escreveu sobre esses conceitos estéticos desconheciam a arte rupestre como temos acesso hoje, e não se escreve sobre o que não se conhece. Detalhe que, não se pode garantir que “Panovsky”, pensaria dessa maneira, que fique claro.

Arqueologia do Movimento [15]

Introdução

Pensando como autor que vive a sua obra partimos em busca de elementos geradores das relações sociais, associados a “Matéria x Forma” e, como se comportam e onde, associando com a relação “Espaço x Tempo”. Observar o movimento foi perceber como a arte, os autores (artistas), se comportavam nos diferentes sítios, suas semelhanças, suas diferenças e suas individualidades (identidades). As intenções daqueles que produzem os objetos são condicionadas pelos padrões da época e meio ambiente em que vivem (PANOFSKY 1989: 32).

Distribuídos no Vale da Serra Branca existem 208 sítios arqueológicos cadastrados, e para um estudo comparativo mais detalhado, os mesmos foram separados em sub-áreas, segundo critérios geográficos de proximidade. Alguns desses sítios foram estudados anteriormente e trabalhando com os resultados destas pesquisas elaboramos um primeiro edifício de dados a serem comparados. A Toca do Vento, é o sítio considerado epônimo do estilo Serra Branca, da subtradição Várzea Grande, tradição Nordeste, definido por Niède Guidon (1984). Os grandes antropomorfos, estáticos, desenhados por traços largos, classificados como pertencentes à tradição Agreste, foram classificados dentro da sub-tradição Extrema, definida pela representatividade dos mesmos no sítio arqueológico da Toca Extrema II. A complexidade da gestualidade presente em composições com mais de 5 figuras em movimento infere diversas interpretações, a cena da Toca do João Arsena há quem considere uma cena de violência (PESSIS 1991) em oposição há quem considere uma cena de dança (BUCO 1999) (cf. Cap. V). Uma figura antropomorfa, com mais de um metro e meio de altura, com seu corpo preenchido geométricamente na Toca do Morcego, característica do Estilo Serra Branca da Tradição Nordeste é única pela sua originalidade e diferença de tamanho em relação aos outros antropomorfos (cf. Cap. IV.1). Na escavação da Toca do Veado, foram encontrados vários fragmentos de painéis soterrados, os quais foram recuperados e limpos. Alguns fragmentos voltaram ao seu lugar original e outros, que não mais puderam ser encaixados, estão numa base de areia e seixos, dentro do abrigo, protegidos de sol e chuva, expostos para os

[16] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Introdução

pesquisadores e turistas. Hoje, este sítio é considerado um exemplo de preservação de arte rupestre in situ (cf. Cap. I.3). Este nosso trabalho é o primeiro estudo sistemático de um conjunto de sítios no interior do Vale da Serra Branca, que não ficou restrito aos estudos tipológicos descritivos e quantitativos exaustivos. Observou-se os dados como pré-historiador, refletindo sobre eles de uma maneira interdisciplinar e global analisando-os em prol de um novo conhecimento sobre a ocupação pré-histórica dessa região buscando conhecer os autores dessas pinturas e seu comportamento social. Não queremos dizer que estudos tipológicos descritivos e quantitativos não devam ser feitos, mas neste caso, as cinco mil figuras analisadas inicialmente, na primeira fase desta pesquisa (cf. Cap. III.3), indicaram que havia a necessidade de lançarmos novos olhares sobre a arte rupestre, e assim estamos fazendo. Ao fazermos uma pesquisa centrada no conhecimento do conjunto dos sítios arqueológicos, 200 abrigos pintados visitados uma a um, acompanhada do estudo realizado através das reproduções fotográficas e cópias de levantamentos antigos, observou-se que o quantitativo das figuras não corresponde com a realidade imagética de um determinado sítio sob o ponto de vista do observador. Isto quer dizer que o “olho nos engana”, porém nos delimita um campo que também pode ter sido uma escolha consciente por parte do artista ou do grupo cultural que as fez. Tivemos a necessidade de conceituar esse conjunto de imagens, ou de uma imagem isolada, que sobressaem aos olhos do observador, pelo seu tamanho, pela sua diversidade pictórica, técnica e morfológica, pelo seu gesto-movimento, pela sua temática, e principalmente pelo seu posicionamento, no nicho ou no abrigo, como uma predominância imagética-visual daquele sítio arqueológico (cf. Cap. III.4). De modo geral, diferentes predominâncias imagético-visuais foram observadas nos sítios arqueológicos da Serra Branca, tal como na Serra da Capivara e noutros complexos rupestres (cf. Cap. V.II). Elas traduzem o olhar do observador atual, e podem condicionar a abordagem classificatória, por exemplo o estilo Serra Branca da sub-tradição Várzea Grande, tradição Nordeste não é o estilo predominante na região da Serra Branca quantitativamente, mas aonde há figuras nesse estilo elas são a predominância imagética-visual, dando-nos a impressão, ou a “ilusão” de uma predominância real quantitativa.

Arqueologia do Movimento [17]

Introdução

Será o quantitativo o elemento principal a ser analisado quando o que nos importa é o conhecer aquela comunidade que além de outras coisas, fez arte rupestre, pintou aquela figura “tão marcante”? Quem tem mais importância nas mudanças culturais, a maioria ou a minoria? Se é a maioria o que mais importa, porque é uma minoria que define conceitos e pré-conceitos que, por vezes, tornam-se até regras que parecem-leis? No percurso artístico individual e por consequência em um percurso social, há quem só aceita um Pablo Picasso porque, apesar de fazer arte inserida no Movimento Cubista (vanguarda para a época), ele sabia desenhar bem, ou seja, podia ter feito cópia perfeita se quizesse mas optou fazer daquela maneira. Se transportamos para a apreciação da arte pré-histórica, na maioria das vezes pensa-se semelhante, ou seja aceita-se um estilo, por exemplo o estilo Serra Branca, porque antes havia um estilo Serra da Capivara, inserido na tradição Nordeste, supostamente de um desenho mais simples para um mais complexo, há porém um pequeno “elemento-problema” levantado, como medimos o processo de aprendizagem? Se os povos da tradição Nordeste optaram em pintar, desta ou daquela maneira, neste ou naquele contexto, são questões à serem estudadas, argumentadas e fundamentadas. A tradição Agreste, grosseiramente é vista como aquela em que os artistas optavam pintar figuras estáticas e de forma “tosca”, com menos domínio técnico do traço pictórico. Pintar toscamente também pode ser opção. Quem comprova que pintar com o dedo ou com pincel mais grosso é mais simples, menos elaborado que com pincéis finos e médios? Afinal, desenho e pintura também se aprendem, e se fazer for importante para a sua cultura (o grupo ao qual se pertence), faz-se da maneira que for, com traço de quem tem pouco habilidade mas aprende, ou com traço de quem tem talento, com mais destreza e rapidez. Os traços, pintados de diversas maneiras no corpus pictórico, da Serra da Capivara, foram respeitados sem detrimento de valor, por isso que podemos estudá-los hoje. Aliás, se todos os traços pictóricos fossem iguais isso provavelmente indicaria um condicionamento por parte de uma relação de poder hierárquica, o que não parece ser o caso. [18] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Introdução

Para estudar, esse corpus sem levar em consideração a separação estilística associada as tradições vigentes nesta região, aplicamos uma “matriz analítica visual” (cf. Cap. III.3. 1. 4b). Analisamos as figuras, os conjuntos composicionais em 3 aspectos, o técnico-morfológico, o morfológico-temático e o temático-estratigráfico(cf. Cap. IV). A pesquisa contextualizada nos permitiu inferir que aconteceram, pelo menos 4 momentos, movimentos culturais no Vale da Serra Branca, onde distintos grupos culturais deixaram a sua “arte”. São pelo menos três momentos de ocupações préhistóricas e um momento de ocupação histórica com datações absolutas associadas. Não há nenhuma datação direta de pigmentos, porém foram encontrados e estudados ocres com marcas de uso, placas com pinturas, godês e painéis enterrados associados aos contextos arqueológicos com diversos vestígios da cultura material (cf. Cap. IV & Cap. VI). Com exceção do período histórico não há vestígios da cultura material que nos permitam afirmar que moraram naquele vale, temos apenas evidência de uma intensa ocupação temporária. No caso da ocupação histórica há relatos de dois momentos associados, um de ocupação indígena (cf. Cap. I.2. 3) e outro de exploração da maniçoba (cf. Cap. I.2. 4) Esclarecemos que, entre os anos 70 e 80, quando as tradições foram definidas eram conhecidos apenas 30 % dos sítios arqueológicos cadastrados atualmente. Ao estudar a totalidade dos sítios arqueológicos de uma área, percebeu-se que há mais sítios com figuras gravadas do que as observadas anteriormente nesta região, mas apesar de merecer um detalhamento, nesta pesquisa as gravuras são apenas citadas, mas pouco estudadas. A predominância técnica desta região é a pintura e esta foi o nosso principal objeto de estudo (cf. Cap. III.2). Com base nos resultados das primeiras etapas de análise, abrangendo um conjunto de 19 sítios e de 5.333 figuras, espalhados nas diferentes regiões do Parque Nacional Serra da Capivara e entorno (cf. Cap. III.3. 1. 2), escolheu-se um figura para ser o elemento analítico norteador das etapas seguintes. Essa figura, a predominância imagética visual do Vale da Serra Branca é a figura humana de braços abertos direcionados para o alto, elas são de diversos tamanhos, cores e traços distintos (cf.p.448).

Arqueologia do Movimento [19]

Introdução

Essa figura parece ser um ícone que transpassa as classificações estilísticas, o ato de pintar passa por um processo de aprendizagem e de experimentação dos diversos materiais, o que resultaria em diferentes representações de uma mesma figura, por vezes feita inclusive pelo mesmo autor, pela mesma escola artística. A escolha de um tipo de representação, pode ser indicativa da permanência de um rito importante para gerações que resolvem perpetuar um gesto, um movimento, diretamente associado ao indivíduo. É natural do ser humano o reconhecimento de si, do seu eu, antes do reconhecimento do outro10, em algumas sociedades pré-históricas a figura humana está raramente presente na arte rupestre, em outras, como é o caso da região do Parque Nacional Serra da Capivara ela é determinante no conjunto das temáticas reconhecidas (cf. Cap. V.2. 3). Hábitos culturais diferentes de representação podem nos indicar ideologias distintas entre grupos pré-históricos, ou pequenas diferenças que nos fazem refletir sobre possíveis mudanças econômicas, de ordenamento de território. Portanto segregando a representaçao do eu, como um marco ideológico atemporal e observando as demais composições, o movimento intra e extra-sítio, supomos um novo ordenamento temporal, aonde as temáticas são o eixo condutor e multidisciplinar da pesquisa para o conhecimento da Pré-história dessa região. Não se ignoram as classificações estilísticas mas observamos de uma maneira linear atemporal, paralela ao invés de evolutiva cronológica. Analisamos entorno de 10 mil figuras nos 200 sítios arqueológicos, com arte rupestre, da Serra Branca nas duas últimas etapas desta pesquisa (cf. Cap. III.3, Cap. IV, V e VI; Vol. III, fichas dos sítios arqueológicos). Neste vale a diversidade temática nas composições predominam no corpus pictórico, em relação as figuras isoladas. Há uma predominância imagética-visual da composição que mostra uma figura humana, representada de frente e a seu lado outra figura desenhada de perfil, conhecida como “frente e perfil”. Em todos os sítios que há essa representação ela está em posição de destaque no conjunto pictórico. Um estudo minucioso das figuras que a compõem nos permitiu perceber que, na maioria dos casos, a figura de braços abertos é masculina e a figura de perfil é feminina, com detalhes caracterizadores dessa diferenciação de gênero. Propômos que pode se tratar de uma 10

Quando desenvolvemos um trabalho educacional observamos a naturalidade de uma criança no reconhecimento de si, antes do reconhecimento do outro, reconhecendo no outro aquilo que lhe é semelhante, juntos adquirem o conhecimento que manifesta-se principalmente através das linguagens artísticas, por exemplo o desenho “clássico” da família e a casa (GARDNER 1999).

[20] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Introdução

representação de um ritual de união e fertilidade através da dança, sugerida pelo movimento das pernas da figura humana de perfil e dos braços de ambas. Interpretar essa composição como uma cena de dança é uma hipótese, mas classificá-la como tal foi o meio que encontramos para orientar a nossa pesquisa. (cf. Cap. V.2. 3. 4 & Vol.II, Estampa 4). Há outras cenas que também podemos classificar como dança: a cena da árvore, quando várias figuras humanas são representadas em torno de uma árvore com gestualidade diversa; as fileiras de figuras humanas, composição na qual uma figura está ao lado da outra com repetição da gestualidade orientada em um certo ritmo, movimento corporal e espacial; conjuntos que possuem figuram humanas segurando objetos que podem ser identificados como instrumentos musicais, e os antropomorfos, que isolados, em dupla ou em trio (por vezes, vestidos e conhecidos com o nome de “mascarados”) possuem movimentos, posturas observadas pelo posicionamento das diferentes partes do corpo que confirmam um ritmo de dança (cf. Cap. V.2). A dança faz parte do universo cotidiano do índio, por isso nós a classificamos dentro desse universo, seu significado mítico perdeu-se no tempo, mas seu caráter imaginário, observado na riqueza da gestualidade e na técnica aplicada para definir a representatividade desta cena, nos permite deduzir que a dança, essa manifestação artística, era importante para o homem do vale da Serra Branca. Portanto a temática da dança têm a predominância temática desta área e desta pesquisa. A iconografia indígena também nos auxiliou nas comparações entre essas culturas, assim como a arte rupestre mundial nos permitiu inferir hipóteses interpretativas para determinadas temáticas encontradas (cf. Cap. V.2 & Cap. VI).

Arqueologia do Movimento [21]

Introdução

DESCRIÇÃO DOS CAPÍTULOS INTRODUÇÃO A Introdução consistiu numa apresentação da pesquisa em dois níveis distintos. O primeiro é composto por um texto entitulado “Estórias da Pré-história”, uma ficção sobre as ocupações da região da Serra Branca contada na forma literária de um conto para introduzir o leitor no ambiente do sertão, das dificuldades á esperança de uma vida melhor em terras semi-áridas. E, o segundo, este, teve duas partes, uma primeira (já apresentada) composta por uma apresentação da tese com justificativa da escolha desse tema de pesquisa com indicação sucinta de alguns pontos relevantes da tese, e uma segunda parte, composta por uma síntese dos capítulos seguintes.

CAPÍTULO I. O Território e as Dinâmicas Humanas Este capítulo, sub-dividido em três partes, é descritivo e apresenta o resultado parcial das pesquisas desde os anos 70. Na primeira parte trata-se do Território apresentando-o desde suas bases físicas, com os dados da Geologia, Geomorfologia, Solos, Hidrografia, Clima, Vegetação, Fauna e Paleoambiente, incluindo a megafauna - uma síntese dos dados que foram estudados e apresentados pela equipe multidisciplinar da FUMDHAM nesse período permitindo construir um quadro ambiental que nos auxiliará na compreensão da dinâmica ocupacional desse território. Na segunda apresenta-se as Dinâmicas Humanas associadas a cronologia, inicia-se com os primeiros ocupantes associados ao povoamento americano, com detalhamento das sequências culturais utilizadas, neste enclave arqueológico acompanhado de um histórico da pesquisa sobre o sítio arqueológico da Toca do Boqueirão da Pedra Furada, que tem as datações mais antigas conhecidas nas Américas; os homens do Holoceno, com o apogeu artístico e tecnológico mostrando uma revisão das datações associadas a arte rupestre; a ocupação indígena, dos primeiros ceramistas aos indígenas que estavam nesta área na época do contato e o sertanejo, em especial os maniçobeiros, que também deixaram marcas rupestres nos abrigos da nossa área de estudo, o Vale da Serra Branca.

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Introdução

Na terceira descreve-se os antecedentes históricos do Parque, dos motivos da sua criação à atual gestão desse património cultural.

CAPÍTULO II. História e Fundamentos Nesse capítulo mostra-se uma introdução historiográfica da arte rupestre geral citando os primeiros documentos que mencionam a existência dela no território brasileiro, destacando a documentação associada ao Nordeste do Brasil, em especial o Estado do Piauí, inclusive fazemos referência a um documento inédito, a “Carta de Jacob Viçoso ao Lobo da Silva, 27 de março de 1757” (cf. p.136). Em seguida, apresentamos alguns exemplos da “maneira de pensar” a arte rupestre no Brasil, fazendo uma revisão das classificações estilísticas vigentes aplicadas ao corpus visual, pintado e gravado, do geral ao particular destacando as categorias analíticas utilizadas para o estudo da arte rupestre do Parque Nacional Serra da Capivara.

CAPÍTULO III. A Metodologia. Nossa metodologia esta sub-dividida em três partes, com distintas etapas. Na primeira parte apresenta-se os temas e as bibliotecas pesquisadas para fundamentar esta pesquisa, sendo que as referências encontram-se no final desta tese. Na segunda mostra-se os resultados da pesquisa de campo, específica da Serra Branca, que consistiu de três etapas: uma primeira que foi composta por Prospecção arqueológica, na qual apresentou-se uma descrição das diversas prospecções realizadas na área, salientando os diferentes sítios arqueológicos encontrados; uma segunda etapa composta da apresentação das técnicas utilizadas e os resultados obtidos nos distintos levantamentos fotográficos, estabelecendo critérios distintos para painéis de levantamento e de análise e, uma terceira etapa descritiva associada aos sítios arqueológicos escavados, estes apresentados no quarto capítulo. Na terceira parte apresentamos os resultados da análise laboratorial, separados em três partes, sendo a primeira, um detalhe sobre a Análise de Arte Rupestre, subdividida em 5 etapas. A segunda uma apresentação dos critérios utilizados para análise

Arqueologia do Movimento [23]

Introdução

dos demais vestígios arqueológicos contextualizados e a terceira, uma descrição da aplicação SIG (Sistema de Informação Geográfica) utilizada para a modelagem dos dados compreendendo as relações ambientais com as arqueológicas necessárias. Detalhando a segunda parte, a Análise de Arte Rupestre, salienta-se que os resultados das três primeiras etapas são apresentados neste capítulo da seguinte maneira: A etapa 1 foi composta pelo reconhecimento e estudo do material fotográfico existente sobre a região da Serra da Capivara; a etapa 2 consistiu na análise tipológica das figuras que compunham a integralidade de um conjunto de sítios arqueológicos do Parque Nacional Serra da Capivara pré-estabelecidos; e a etapa 3 foi composta pela análise preliminar de um conjunto de cenas (estudo detalhado das composições formada pelas diferentes figuras rupestres, associadas a temas do nosso universo conhecido de um conjunto de sítios pré-estabelecidos). As etapas 4 e 5, são apresentadas nesse capítulo mas seus resultados são apresentados no decorrer dos demais capítulos. A etapa 4 consistiu de uma análise detalhada da integralidade imagética de sítios arqueológicos selecionados, estes associados a contextos arqueológicos, escolhidos para a aplicação da matriz analítica visual, definida no capítulo III como, o conceito de predominância imagético-visual. E; a etapa 5 introduz a análise do estudo temático comparativo entre as composições, figuras rupestres, dos diversos sítios da região da Serra Branca com ampliação comparativa, quando necessário, com sítios arqueológicos além da nossa principal área de estudo.

CAPÍTULO IV. Os Contextos Arqueológicos Nesse capítulo são apresentados os resultados da pesquisa realizada em sete sítios arqueológicos escavados, assim como o estudo detalhado analítico da arte rupestre, descrevendo-a através da aplicação da matriz analítica visual para cada sítio. São eles: a Toca do Morcego, a Toca do Pinga da Escada, Toca do Pau Dóia, Toca do Pica-pau, Toca Nova do Inharé, Toca da Gamela e Toca da Passagem.

[24] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Introdução

CAPÍTULO V. Arqueologia do Movimento Este capítulo está separado em duas partes, uma primeira referente as Dinâmicas Naturais, aonde são apresentadas as relações entre os sítios arqueologicos e o meio ambiente, sua situação topográfica, sua abertura e orientação, a dinâmica hidrográfica do Vale da Serra Branca e, o estado de conservação do suporte rochoso, apresentando os problemas que interferem diretamente com a preservação da arte rupestre na região. Uma segunda, associada as Dinâmicas Culturais, sub-dividida em etapas relacionados aos resultados da análise das figuras rupestres dos 200 sítios com pinturas. Na primeira etapa são apresentadas as: Predominâncias Imagética-visuais observadas na totalidade do corpus, na segunda etapa, realiza-se uma introdução as temáticas encontradas na análise desse corpus, e na terceira etapa mostram-se as temáticas e sua distribuição, assim como uma apresentação das diversas possibilidades de relação com outras culturas, que permitiram a realização de hipóteses interpretativas para todas essas temáticas. As temáticas na arte rupestre são associadas aos dois universos: Subsistência e Imaginário (que coexistem ao mesmo tempo), compreendidas entre : Cenas de Caça e Pesca, Cenas de Coleta, Cenas de Sexo, Cenas de Dança (rituais de iniciação e coletivos), Figuras isoladas, duos, trios e sequências de antropomorfos, figuras míticas e jogo lúdico.

CAPÍTULO VI. Conclusão Como conclusão foram detalhados três pontos. A apresentação da possibilidade de estudar a arte rupestre sem as classificações estilísticas usadas, propondo um novo agrupamento visual, este por características temáticas (predominância gestomovimento), no qual a morfologia e a técnica fazem parte, mas não a definem; o reconhecimento de movimentos culturais, traduzidos em ocupação e gestão do território da Serra Branca em 4 movimentos de ocupação: Movimento 1 “Os grandes animais”, Movimento 2 “Povos de transição”, Movimentos 3 “Povos de Passagem” e Movimento 4 “Histórico” e as considerações finais

Arqueologia do Movimento [25]

Introdução

Esta tese é composta por três volumes, este, o primeiro é composto pelo texto, a bibliografia e a lista das legendas. O segundo volume é composto por 21 estampas coloridas, que incluem os mapas ilustrativos dos capitulos I e IV deste volume, e desdobráveis com levantamento de arte rupestre, reproduções digitais de antigos levantamentos (Missão Franco-Brasileira) e novos, realizados especialmente para esta tese. E no terceiro volume há a reprodução das 200 fichas dos sítios arqueológicos da Serra Branca e as listagens referenciadas no corpo desta tese. Para complementar, anexado a este volume, está um DVD com o primeiro volume em pdf (cores) e os demais volumes (cores), assim, também é possível o acesso digital a todo o conjunto. Ver em digital não elimina a observação em papel, principalmente das estampas (volume II).

[26] Cristiane de Andrade Buco, 2012

CAPÍTULO I

Poemeto Geológico Quero ser concreta como O mais concreto dos poetas Falar dos veios, diques, rochas, Minerais (mineralizar meus sonhos). Dissolver-me nos tempos Quaternários, pleistocênicos, Holocênicos. Pintar nos canyons sobre o quartzito Como o xamã pré-histórico. Entender a explosão primeva, Medir a luz pela termoluminescência, Consolidar-me em basalto e Derreter-me como a lava vulcânica. MARIA BELTRÃO

BUCO, C. A. 2012. Arqueologia do Movimento. Relações entre Arte Rupestre, Arqueologia e Meio Ambiente, da Pré-história aos dias atuais, no Vale da Serra Branca (Volume I).

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I.1 – O TERRITÓRIO I.1. 1 - LOCALIZAÇÃO O Parque Nacional Serra da Capivara está localizado na região Nordeste do Brasil, nos municípios de São Raimundo Nonato, Coronel José Dias, João Costa e Brejo do Piauí, no Sudeste do Estado do Piauí.1 Ele corresponde a uma área de 129.140 hectares com um perímetro de 214 quilômetros, situado entre as seguintes coordenadas geográficas: 8º 26’ 50” e 8º 54’ 23” de latitude sul e 42º 19’ 57”e 42º 45’ 51” de longitude oeste (GUIDON et al. 1991: 10).

Fig. I.1 Ilustração composta pelos mapas de localização, do Brasil, do Estado do Piauí e do Parque Nacional Serra da Capivara (BUCO E. 2011: 6). 1 Encontram-se citados em diversas publicações outros municípios, tais como São João do Piauí e Canto do Buriti. A questão é que, desde a criação do parque em 1979, alguns municípios foram desmembrados criando novos municípios na mesma área. Atualmente, ano de 2011, configura-se o território, ocupado pelo Parque Nacional Serra da Capivara, da maneira apresentada no texto acima, não coincidindo com o nome dos municípios citados no documento oficial da criação do Parque.

Arqueologia do Movimento [27]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

A região da Serra Branca, nossa principal área de pesquisa, está situada na porção Noroeste do Parque Nacional, os sítios arqueológicos estão posicionados nos municípios de Brejo do Piauí (68,6%), João Costa (24,7%) e São Raimundo Nonato (6,7%), numa faixa longitudinal no sentido Sul – Norte de aproximadamente 40 quilômetros [Fig. I.2]. O acesso faz-se por duas guaritas, a da Serra Branca, uma entrada turística e a da PI, uma entrada de fiscalização, ambas na Rodovia PI-140, estrada que liga esta região à cidade de Teresina, capital do Estado (503km).

Fig. I.2 Mapa Político do Parque Nacional Serra da Capivara.

[28] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Para melhor compreensão, do contexto físico no qual nossa área de pesquisa está inserida, apresenta-se nos mapas um território maior, a região sudeste do Estado do Piauí, que compreende o Parque Nacional Serra da Capivara, o Parque Nacional da Serra das Confusões e o Corredor Ecológico (área entre os dois parques) (Vol. II, Estampas 11, 13, 15, 16).

I.1. 2 - GEOLOGIA & GEOMORFOLOGIA I.1. 2. 1 - Geologia O Parque Nacional Serra da Capivara está situado entre duas formações geológicas: sua quase totalidade está na Bacia Sedimentar do Parnaíba e uma pequena parte no embasamento cristalino, na Faixa de Dobramentos Riacho do Pontal, na Província tectônica da Borborema2. A Bacia do Parnaíba ocupa metade da Província Parnaíba (Província Sedimentar do Meio-norte) em sua parte centro-sul3, tendo 350 quilômetros quadrados de área abrangendo os Estados do Piauí, Maranhão, Tocantins, Bahia, Pernambuco e Ceará [Fig. I.3]. É uma bacia Fanerozóica4 com diversas formações litoestratigráficas ordenadas em grupos, seguindo as idéias de sequências deposicionais mais ou menos contínuas, e a evolução da própria bacia (LIMA FILHO & VALENÇA 2002). Na área de estudo, afloram rochas, cujos sedimentos foram depositados durante o Siluriano e o Devoniano, correspondendo aos grupos Serra Grande5 e Canindé.

2

A província tectônica da Borborema é a unidade dominante no Nordeste Brasileiro (MABESOONE 2001 apud LIMA FILHO & VALENÇA 2002: 4).

3 Esta designação foi proposta por Góes (1995), que comprovou a dificuldade de compreensão do quadro tectônicosedimentar, no contexto de uma bacia única. Ela foi implantada sobre os riftes cambro-ordovicianos de Jaibaras, Jaguarapi, Cocoi/Rio Jucá, São Julião e São Raimundo Nonato (SILVA et al. 2003: 67). 4

“As bacias sedimentares formaram-se ao longo do Fanerozóico, ou seja, nos últimos 600 milhões de anos. Os sedimentos mais antigos são do Paleozóico, os intermediários do Mesozóico e os mais recentes do Cenozóico. Quando essas bacias se organizaram, os terrenos do continente sul-americano encontravam-se em posições altimétricas bem mais baixas. Os depósitos marinhos e continentais formaram as rochas sedimentares das três grandes bacias (Amazónica, do Maranhão ou do Parnaíba e do Paraná). Assim, nelas são encontrados sobretudo arenito de diferentes idades e granulações, às vezes intercalados por siltitos, argilitos, conglomerados e calcários.” (ROSS 2003: 50) 5

“Dentro dos episódios cíclicos da história geológica da Terra, a seqüência siluriana do Grupo Serra Grande representa um período oscilatório-emergente. A glaciação comum para tal episódio teve seu provável pólo nos Camarões, naquela época próxima à Bacia do Parnaíba (Grahn e Caputo, 1992), e com seus vestígios evidentes também no Saára (Beuf et al., 1971). Assim, o gelo continental do então pólo sul e suas línguas glaciais, em forma de

Arqueologia do Movimento [29]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Fig. I.3 Unidades geotectônicas da Província Parnaíba, modificado de Góes 1995 (SILVA et al. 2003: 67, Fig. II.8).

geleiras, atingiram também a borda sudeste da bacia (Formação Ipu). No fim do episódio, a fusão desse gelo provocou a deposição de espessos pacotes de sedimentos fluvioglaciais, e também permitiu o mar invadir a bacia, não chegando porém, até seus limites extremos (Formação Tianguá). Na regressão com que se encerra o episódio, houve um forte retrabalhamento do material glacial e fluvioglacial, o qual se redepositou em planícies de inundação litorâneas e fluviais (Formação Jaicós). 0 episódio termina com uma fase de não-deposição, erosão e denudação. 0 Devoniano e o Carbonífero Inferior representam um episódio tectono-sedimentar submergente, com fase talassocrática. A Bacia do Parnaíba sofreu uma contínua e lenta subsidência, com uma invasão do mar, implantando um único ciclo transgressivo-regressivo de longa duração (Mabesoone, 1977). Desta maneira, na borda da bacia são encontrados fácies fluviais de planícies litorâneas e fácies costeiras, em ambiente de energia bastante grande (Formação Itaim). O mar chegou até a área, porém tendo ficado bastante raso, o que resultou na deposição da Formação Pimenteiras. A fase regressiva parece ter já começado no fim da época, passando pelos arenitos superiores da Formação Pimenteiras e inferiores da Formação Cabeças, que indicam uma deposição em ambientes litorâneos e deltáicos, com influência fluvial na borda da bacia. Em relação às altas energias e mares tempestuosos, isto deve-se à posição da área então em latitudes bastante altas (Mabesoone, 1975), com climas temperados frios, também confirmado pelo caráter boreal da fauna (Kegel, 1953). O registro [registo] do fim do episódio submergente não é encontrado na área da Serra da Capivara.” (LIMA FILHO & VALENÇA 2002: 33)

[30] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

A coluna adotada na descrição da Geologia do Parque Nacional Serra da Capivara é a de Góes e Feijó, 1993, subdivisão em formações6, refere-se tanto a litologias diferentes, como a idade distintas (Vol. II, Estampa 12). O Grupo Serra Grande7, de Idade Siluriana repousa diretamente sobre o embasamento cristalino e é subdividido em três unidades litoestratigráficas: Formação Ipu, Tiangá e Jaicós. O Grupo Canindé é composto de cinco formações, e repousa discordantemente sobre o grupo Serra Grande. As unidades distinguidas são: Formação Itaim8, Pimenteiras, Cabeças, Longá e Poti (LIMA FILHO & VALENÇA 2002). A maior parte do Parque está inserida nos Grupo Canindé, Formação Itaím/ Pimenteiras e Formação Cabeças, seguida do Grupo Serra Grande, com uma pequena parte no embasamento cristalino, na Faixa de Dobramentos Riacho do Pontal, sub-zona de cisalhamento Barra do Bonito. Marca esse contato uma cuesta bem pronunciada, parte do limite sudeste da Bacia do Parnaíba 9 (Vol. II, Estampa 13). Segundo Joel Pellerin10 (1984a, 1991) as duas formações areníticas, Serra Grande e Cabeças, apresentam características comuns em seu modelado que estão globalmente ligadas ao “sistema morfogenético arredondado ruiniforme” [Fig. I.4], este definido por MAINGUET (1972) e que ele considera como típico de um clima tipo Sahel: vertentes areníticas nuas, degraus em andares com cornija superior mais ou menos arredondada, modelado ruiniforme ao longo dos grandes cortes com drenagem intermitente e, sobre os planaltos, passagem a coberturas de alteritos conservados.

6

Detalhes dessas formações, fáceis e sub-fáceis, com ilustrações existe no Relatório sobre a GEOLOGIA DO PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA – PI. Versão Preliminar, 2002, realizado pelos Professores Mario de Lima Filho e Lúcia Mafra Valença da Universidade Federal de Pernambuco (LAGESE - UFPE). 7

O Grupo Serra Grande tem formações caracterizadas em sub-superfície, porém ainda não individualizadas em trabalhos de cartografia geológica de superfície (SILVA et al. 2003: 67).

8

Em muitos trabalhos a Formação Itaím é considerada como membro inferior da Formação Pimenteira (SILVA et al. 2003: 67). 9

A CPRM, Serviço Geológico do Brasil, implantou em 1996 o Programa Água subterrânea para a região Nordeste. No Piauí, enfocou o aqüífero Serra Grande na borda Sudeste da Bacia Sedimentar do Parnaíba, enfatizando sua avaliação e a possibilidade desse manancial subterrâneo abastecer as regiões cristalinas semiáridas desse contorno. Das informações obtidas com a análise e a interpretação dos dados desse projeto apresentaram dois volumes contendo textos e mapas, disponibilizados na internet.

10 Joel PELLERIN foi o responsável pela elaboração da carta geomorfológica do Parque Nacional Serra da Capivara (1984b). Teve como base as pesquisas do Projeto RADAM (NUNES et al. 1973) e um exaustivo levantamento de campo da equipe da Missão franco-brasileira, na qual participava.

Arqueologia do Movimento [31]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Fig. I.4 Vista aérea da Serra Branca mostrando o sistema morfogenético arredondado ruiniforme.

Esses arenitos maciços são cortados por vales ou canyons com vertentes abruptas ou com paredes verticais formando tetos. No contacto, de duas camadas de resistência levemente diferente ou, em locais onde os planos de estratificação foram aumentados pela erosão fluvial, cavaram-se abrigos, locais privilegiados para abrigar sítios arqueológicos com pinturas e gravuras rupestres [Fig. I.5]. Nas vertentes desnudadas, todas as formas de pirâmides, colunas e grandes torres, lâminas e fatias paralelas, rochas furadas, clássicas do modelado arenítico (AB’SABER 1977a) são encontradas na região [Fig. I.6]. Os altos das vertentes menos abruptas apresentam

escamas

gigantes

ou

formas

de

crocodilo conhecidas também como cascos de tatu (AB’SABER 1977b) comum na região da Serra Branca [Fig. I.7]. Fig. I.7 Arenitos da Formação Cabeças e sua estrutura típica de erosão. Subida para a Toca do Conflito (ao lado).

[32] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

O Vale da Serra Branca encontra-se inserido na Formação Cabeças do Grupo Canindé (Vol. II, Estampa 14). O Relevo da bacia mostra um caráter bem individualizado, como área de transição entre o sertão semi-árido nos flancos leste e sul, e a região amazônica mais úmida no flanco oeste (MOREIRA 1977 apud LIMA FILHO & VALENÇA 2002). Seu flanco sul é limitado pela linha de cuesta, uma escarpa abrupta com desníveis que variam de 80 à 150m. Numa distância de alguns quilômetros, duas zonas cársticas se destacam no relevo, projetando-se quase uma centena de metros acima da planície frente à cuesta (GUÉRIN et al. 1999) [Fig. I.8].

A Faixa de Dobramentos Riacho do Pontal, apresenta-se de forma irregular com 28 mil quilômetros de área (NEVES 1975) abrangendo parte dos Estados de Piauí, Pernambuco e Bahia. Tem 5 subzonas de cisalhamento sendo que nossa área de estudo está situada na subzona de cisalhamento Barra do Bonito (OLIVEIRA 1998 apud SANTOS 2007). O embasamento de rochas cristalinas pertence a essa faixa que constitui a margem sudoeste da Província Borborema com o Cráton do São Francisco. Sua litologia é composta de terrenos mesozonais (gnaisses, migmatitos) e alguns metassedimentos epizonais (ou supracrustais), nos quais se destacam quartzitos, calcários metamórficos e xistos (LIMA FILHO & VALENÇA 2002). Essa faixa pertence a unidade geomorfológica da Depressão Periférica do São Francisco, uma larga área de pedimento de caráter erosivo, bastante aplainada localizada entre o sopé da Cuesta e os morros de Quartzito da Serra Dois irmãos. A cuesta chamada localmente Serra da Capivara, é uma ramificação da Serra Bom Jesus de Gurguéia que define o limite sul do Parque Nacional Serra da Capivara. Margeando essa cuesta, encontram-se muitos sítios arqueológicos11 inseridos parcialmente nesta unidade geomorfológica. É também nessa área que estão localizados os serrotes, um conjunto com diversas grutas calcárias que conservam fósseis de distintos animais incluíndo espécimes da megafauna (cf. Cap. I.1. 8. 1) e ossos humanos de diferentes períodos, da Pré-história aos dias de hoje.

11

Por ocasião da delimitação do parque, realizou-se a colocação dos marcos geodésico por cima da serra, nos pontos mais elevados no relevo, fazendo com que, boa parte dos sítios arqueológicos, distribuídos na base dela (margeandoa) ficasse fora do limite do Parque. Aquela situação gerou a necessidade de preservar também o entorno, fazendo um cinturão, de 10km, por toda a volta dessa unidade de conservação.

Arqueologia do Movimento [33]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Fig. I.5 Vista de uma vertente no Vale da Serra Branca, com destaque, em primeiro plano, a Toca do Oswaldo, um abrigo histórico com paredes restauradas pela equipe da FUMDHAM.

Fig. I.6 Vista parcial do Vale da Serra Branca, na região do Vento e Inácio. Caatinga Verde.

Fig. I.8 Vista aérea da cuesta, onde se observa a chapada (planalto), a planície e os boqueirões na região da Toca do Sítio do Boqueirão da Pedra Furada. Caatinga Seca. [34] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I.1. 2. 2 - Geomorfologia Há dois grandes domínios geomorfológicos apresentados nesta região: ao Sul, a Depressão Periférica do São Francisco, com rochas Pré-cambrianas tectonizadas e migmatizadas, que constituem o embasamento cristalino; e ao Norte, as rochas sedimentares da Bacia do Parnaíba (GUÉRIN et al. 1996) (Vol. II, Estampa 15). Segundo Joel Pellerin (1982, 1984a, 1984b) podem ser reconhecidas três unidades geomorfológicas, que se estendem pelo Parque Nacional Serra da Capivara e circunvizinhanças: planaltos areníticos, cuestas e pedimentos. Os planaltos areníticos situam-se a oeste do Parque Nacional Serra da Capivara e constituem chapadas do reverso da cuesta, de relevo regular, que passam de 600 m até 300m a sudeste e de 500m até 520m a nordeste. O planalto é cortado por vales orientados N-S, com fundo plano, profundamente encaixados e dominados diretamente por cornijas de arenitos subverticais, esculpidos em relevos ruiniformes e arredondados, como por exemplo, o vale do Riacho Nova Olinda, na Serra Branca [Figs I.10 e I.11] (cf. Figs I.4, I.5 & I.6). As cuestas foram modeladas em rochas predominantemente areníticas e conglomeráticas do Grupo Serra Grande. O desnível entre a cuesta e o pedimento oscila entre 200m e 250m. O front da cuesta exibe canyons de entalhe profundo e muito dendriformes, dominados diretamente por paredões de morfologia ruiniformearredondada. O pedimento é uma vasta área de erosão, situada no sopé da cuesta. É uma área muito plana, sendo testemunho de uma longa evolução em regime de dissecação, variando de 60km à 80km de largura, localizado entre a cuesta formada pelas rochas areníticas e conglomeráticas da Bacia do Parnaíba, a oeste e, os morros de quartzito que constituem a Serra dos Dois Irmãos também a oeste. A sul está a área de afloramentos de gnaisse, composta por numerosos inselbergs isolados, ou dispostos em maciços. E ao norte está a área dos micaxistos, é a mais aplainada, com relevos residuais, compostos de inselbergs, isolados de granito intrusivo e de pequenos maciços carstificados de mármores, localmente chamados de serrotes.

Arqueologia do Movimento [35]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Fig. I. 9 Vista do entorno da Toca do Centro do Boqueirão I. Relevo arredondado do Vale da Serra Branca.

Fig. I.10 Vista da chapada do Chaves tendo em destaque a Toca do Chaves I. Relevo arredondado do Vale da Serra Branca.

De acordo com os estudos de detalhe geomorfológico realizado por Santos (2007) o Parque Nacional Serra da Capivara apresenta 3 unidades morfoestruturais, os Patamares estruturais (Sul e Nordeste), o Reverso da cuesta e o Vale da Serra Branca [Fig. I.11 & Fig. I.12].

[36] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Curso de água temporário Poligonal de contorno do P.N.S.C.

ESCALA: 1.100.000

Fig. I.11 Localização esquemática das unidades morfoestruturais do Parque Nacional Serra da Capivara, com indicação dos perfis topográficos AB e CD (SANTOS 2007: 58, Figura 17).

Fig. I.12 Perfis topográficos do Parque Nacional Serra da Capivara, indicados na figura anterior (SANTOS 2007: 59, Figura 18).

Arqueologia do Movimento [37]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

O Vale da Serra Branca apresenta direção norte-sul e é caracterizado por dois níveis de altitude, o primeiro que representa o topo com 520m e o segundo representado pelo fundo do vale, a calha de drenagem, com 400m. A área do vale propriamente dito, é formada por sistema de drenagem composto pelo leito do Riacho da Baixa da Lima, de regime intermitente, com 21 afluentes, também intermitentes, separados por interflúvios de morfologia suave que são antigas áreas de deposição sedimentar (Vol. II, Estampas 11 e 16). Pontualmente, nessas áreas, são encontrados morros-testemunho, que foram individualizados pela presença de rupturas côncavas e convexas [Fig. I.13]. Ao longo do vale de aproximadamente 45km, as encostas podem apresentar três configurações morfológicas distintas: a primeira está recoberta de sedimentos do topo ao sopé, a segunda apresenta paredões desnudados do topo até o sopé e a terceira com cobertura sedimentar desde a média encosta até o sopé [Fig. I.14]. Na segunda e terceira configuração morfológica encontram-se os sítios arqueológicos estudados nesta tese.

Fig. I.13 Vista do Vale da Serra Branca pela Toca do Amâncio. Destaca-se em primeiro plano um morro testemunho.

Fig. I.14 Vista parcial da vertente leste do Vale da Serra Branca da vertente oeste.

[38] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Os depósitos quaternários Propriedades sedimentológicas como má seleção, variabilidade granulométrica e ausência de acamamento sugerem que a deposição teria ocorrido através de fenômenos de episódios espasmódicos durante chuvas torrenciais em clima semiárido. A deposição dos sedimentos coluviais ocorreria por aumento da pluviosidade subsequente a um longo período de semi-aridez (SANTOS 2007: 156).

Segundo Lima Filho e Valença (2002) os depósitos recentes foram configurados na superfície das áreas planas e nos vales fluviais e, geralmente, são de caráter arenoso. Acima das superfícies planas encontram-se também areias, produtos de intemperismo dos arenitos subjacentes. Os aluviões fluviais são areias procedentes do intemperismo das unidades geológicas clásticas mais antigas, transportados pelas águas de escoamento para os vales, onde se acumulam, não tendo sido porém transportados a longa distância devido à escassez de água nesses rios. Uma vez que os arenitos são altamente permeáveis por causa da sua porosidade e da rede de diáclases, o escoamento superficial fica reduzido. O clima semi-árido quente da região causa um intemperismo dominantemente físico, permitindo a formação da capa arenosa eluvial, que constitui atualmente o sedimento mais recente da região. Os depósitos sedimentares quaternários da Bacia do Parnaíba, segundo Santos (2007) têm por substrato arenitos, conglomerados e folhelhos sílticos de idade paleozóica. Duas unidades deposicionais quaternárias foram encontradas: elúviocoluviais e coluviais. Recobrindo a unidade morfoestrutural Reverso da cuesta, estão os depósitos arenosos elúvio-coluviais, cujo substrato é composto de arenitos da Formação Itaím, além de argilitos e folhelhos da Formação Pimenteira. O relevo acidentado possibilitou a existência de encostas íngremes, situadas nas unidades morfoestruturais, como o Vale da Serra Branca e os Patamares Estruturais, onde repousam os depósitos coluviais. Na planície encontra-se os depósitos aluviais associados ao curso do Rio Piauí. Associados aos sítios arqueológicos de meia encosta ela identificou e estudou áreas de colúvio. Todas essas informações contribuíram para uma cronologia paleoambiental do Parque Nacional Serra da Capivara e entorno. Essa cronologia é uma síntese dos resultados comparados das pesquisas de paleontologia, palinologia, sedimentologia e arqueologia relacionando-os com as datações carbônicas e de luminescência (cf. Cap. I.1. 8).

Arqueologia do Movimento [39]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I.1. 3 - SOLOS Os solos são predominantemente latossólicos, com latossolos vermelhoamarelos de textura média sobre as rochas sedimentares, e eutróficos sobre as rochas cristalinas, além de solos litólicos e areias quartzosas (LIMA FILHO & VALENÇA 2002). Certas características dos solos da área de São Raimundo Nonato são indicadoras de uma marcada aridez, havendo uma dependência estreita com o tipo de formação geomorfológica. Os solos são de baixa fertilidade natural devido à ausência de minerais, resultante de um processo de lixiviação, contendo altos teores de óxidos de ferro. Os depósitos sedimentares, do ponto de vista pedológico, são latossolos cobrindo o planalto arenítico com nenhuma capacidade de retenção de água, em oposição aos terrenos précambrianos, havendo possibilidades inclusive da formação de lagos12. Segundo Santos (2007) os latossolos foram denominados de depósitos elúvio-coluviais e coluviais porque são denominações genéticas de dois tipos distintos de latossolos. Em relação ao Vale da Serra Branca, segundo o projeto RADAM (1973)13 , os solos estão distribuídos da seguinte maneira: no interior do vale predominam os solos areno-quartzosos, composto por areias quartzosas e latossolo vermelho-amarelo textura média (AQ2), na chapada predomina o latossolo vermelho-amarelo textura média (LV1) e a Nordeste do vale acompanhando o seu interior há uma pequena concentração de solos pouco desenvolvidos compostos por solos litólicos e areias quartzosas (R3). Os três tipos de solos são inaptos para a agricultura pela baixa fertilidade natural e a deficiência de água, sendo que os solos areno-quartzosos são apropriados para o pastoreio extensivo (MARTINS et al. 1973). Segundo Santos (2007) os colúvios da Serra Branca que se localizam na porção meridiana da encosta são de areias a areias lamosas, pobremente selecionadas apresentando concentrações de arenito (seixos, blocos, calhaus e matacões) que interrompem a deposição da areia, e se dispõem paralelamente a topografia, sem nenhuma evidência de imbricação. Nesses colúvios ocorrem fragmentos de carvão dispersos ou concentrados em estruturas de fogueiras humanas. Coletas e datações permitiram identificar os eventos de coluviação que serão apresentados nos dados paleoambientais neste capítulo (cf. Cap. I.1. 8. 3). 12

PELLERIN 1984 apud BASTOS 1991: 69.

13

Foram consultados, mapas e textos do primeiro volume de uma série de publicações programadas pelo projeto 2 RADAM BRASIL (Radar da Amazônia), que contém o estudo de uma área de 219. 510 km , abrangendo partes da Folha cartográfica SC.23, Rio São Francisco e da Folha SC.24 Aracaju, na escala de 1: 250.000, área na qual o Parque Nacional Serra da Capivara está inserido.

[40] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I.1. 4 – HIDROGRAFIA O Parque Nacional Serra da Capivara está inserido na Bacia do Parnaíba, subbacia do rio Piauí-Canindé. Os rios e riachos, afluentes do rio Piauí, o maior da região (parcialmente assoreado), são temporários e intermitentes, eles transportam pouca água mesmo na estação chuvosa e essa água acumula-se nos caldeirões escavados nas rochas que é absorvida rapidamente pelos solos. A rede de drenagem reflete o regime climático semi-árido. O rio Piauí, afluente do rio Parnaíba, tem regime torrencial com escoamento temporário (PELLERIN 1984a) (Vol. II, Estampa 17)14. A serra funciona como um divisor local das águas, apesar de todos esses cursos chegarem ao rio Piauí. No flanco dos fronts das cuestas, a rede de drenagem tem se encaixado em canyons relativamente estreitos e profundos, chamados de boqueirões passando pelos sedimentos conglomeráticos e areníticos permeáveis. Mas nem todos os cursos d’água formaram-se nos depósitos friáveis e permeáveis, a presença de uma rede de diáclises e fraturas facilitaram a ação erosiva vertical da água, fazendo com que os canyons não se alargassem muito, provavelmente devido ao regime hidrológico temporário do clima semi-árido. O antigo curso do Rio São Francisco para o norte, sugerido por Moraes Rêgo (1936) e elaborado por Mabesoone (1994), teve influência na forte repartição da frente de cuestas, salienta-se que esse rio, até no Quaternário Médio, seguiu um curso para o Oceano Atlântico Equatorial, através do amplo vale do rio Piauí, para o rio Parnaíba e seu delta no oceano. Aonde esse curso, com bastante água atravessou a borda da bacia sedimentar, recebeu muito cascalho dos depósitos aflorando, explicando a presença dos numerosos terraços com cascalho no rio Piauí. Tal fato contribuiu também para o recuo das escarpas das cuestas e sua repartição em serras individuais (LIMA FILHO & VALENÇA 2002). É o movimento das águas moldando o território por milhares de anos. O resultado na paisagem atual é o fruto de mudanças bruscas, leves e intermitentes que alteraram e alteram a vida de tudo o que está à sua volta (Vol. II, Estampas 11 e 16).

14

A Estampa 17 é uma Ilustração composta por mapas adaptados da Bacia Hidrográfica do Parnaíba. Observa-se a malha hidrográfica com os nomes dos principais rios associados a drenagem do Parque Nacional Serra da Capivara, direção dos cursos d’água e localização do Parque com o Riacho Nova Olinda (Baixa da Lima) passando no seu interior (cf. Cap. V.1).

Arqueologia do Movimento [41]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I.1. 5 - CLIMA Durante a estação chuvosa, toda a paisagem tem uma coloração verde, pintalgada das cores de milhares de flores que enfeitam a caatinga. Durante as chuvas, a água escorre pelos paredões rochosos, formando cataratas. Os fundos de vales e canyons transformam-se em rios. Algumas horas depois de terminada a precipitação, tudo se acalma e a terra sedenta bebe rapidamente toda a água. Quando terminam as chuvas, as folhas começam a se revestir de tons amarelados e vermelhos; a caatinga muda de roupa. Depois, quando se instala definitivamente a estação da seca, em julho, as folhas coloridas caem e a caatinga adquire sua tonalidade característica: um cinza esbranquiçado, que de longe dá à paisagem uma tonalidade arroxeada. Região de mudanças, região de contrastes, região de fronteira, região de beleza paisagística ímpar (GUIDON apud BUCO 2005a: 11).

No Nordeste, popularmente nos dias atuais, são conhecidas apenas duas estações, o verão e o inverno, este último caracterizado pelo período que chove: dia bonito é dia com nuvens que prenunciam chuva. A estação da seca é bem prolongada variando entre 7 e 10 meses.15 A temperatura média anual é elevada 28º C, com amplitude térmica anual na faixa de 5º C. O mês mais frio é junho, com temperatura mínima de 12º C, máxima de 35º C e média de 25º C. O início da estação das chuvas é o período mais quente do ano, com média de 31º C, máximas de 45º C e mínimas de 22º C. Esta região possui um clima semi-árido quente com seca invernal BShw classificação de Köppen, com precipitações pluviométricas irregulares no tempo e no espaço, com médias anuais da ordem de 650mm (EMPERAIRE 1991a). A estação das chuvas ocorre, geralmente, entre outubro e final de abril. São, em geral, localizadas e de curta duração. Pelo método de Thornthwaite estima-se uma evapo-transpiração potencial anual da ordem de 1400mm (GUÉRIN et al. 1999). Nos meses de chuva concentra-se, em média 94% do total anual de precipitações, nos meses de Fevereiro e Março costuma chover cerva de 41% do total anual, com totais mensais de chuva superior a 100mm, e nos meses de Maio até Outubro chove apenas 6%, sendo portanto um período muito seco, os solos se apresentam então muito deficitários em umidade, podendo os deficits alcançarem até 700mm (BASTOS 1991).

15

Dados meteorológicos podem ser consultados no site do Instituto Nacional de Meteorologia, estação meteorológica de São Raimundo Nonato (www.inmet.gov.br/sonabra/maps/automaticas.php).

[42] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I.1. 6. - VEGETAÇÃO I.1. 6. 1. - A Caatinga A Caatinga (do tupi: caa (mata) + tinga (branca), mata branca) é o único bioma exclusivamente brasileiro. Este termo designa formações florestais decíduas com espécies espinhosas abundantes, características do Nordeste brasileiro (EMPERAIRE 1991b). É composta principalmente por árvores caducifólias [Fig. I.15], perdendo as folhas no período da seca, permitindo brilhar os galhos secos e o reflexo das areias claras que cobrem o solo. Com as primeiras chuvas, nascem as folhas modificando a paisagem. A flora é rica porém com pouca durabilidade [Figs I.16], e as cactáceas e bromeliáceas dominam a paisagem [Figs. I.17].

Fig. I.15. Caatinga seca no entorno da Toca do João Sabino, composta por árvores caducifólias e cactáceas (rabo de raposa e xique-xique), região do Olho d’àgua da Serra Branca.

As diversas formas de caatinga presentes dependem essencialmente do tipo do solo. A vegetação típica é a caatinga arbustiva, de difícil penetração, mas com ocorrência de formações florestais nas ravinas, locais de uma maior concentração hídrica (EMPERAIRE 1987) [Fig.I.18]. A vegetação das chapadas e das planícies, é formada com mais arbustos e plantas rasteiras, e aquela dos canyons, com matas mais altas devido a uma maior umidade (GUÉRIN et al. 1999). Distribuídos no parque encontram-se também pequenos nichos de Floresta Amazônica e Mata Atlântica, testemunhos de uma paisagem diferente no passado (GUIDON 2008a).

Arqueologia do Movimento [43]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Fig. I.16A “Beleza de Soinho”.

Fig. I.16B “Moleque Duro”.

Fig. I.17 Cactáceas e Bromeliáceas.

Fig. I.18 Caatinga verde no entorno da Toca do Beco, região do Vento. [44] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Laure Emperaire realizou o mais extenso levantamento sobre a vegetação16 do Parque Nacional Serra da Capivara, estabelecendo cinco categorias de vegetação distinguindo os domínios destas no relevo: Caatinga arbustiva alta densa do reverso da cuesta, Caatinga arbórea média densa da frente da cuesta e das ravinas, Caatinga arbustiva baixa aberta das bordas da chapada, Caatinga arbustiva arbórea baixa densa e Caatinga arbustiva arbórea média densa dos vales areníticos e siltoareníticos (EMPERAIRE 1987, 1991b) [Fig.I.19].

Fig. I.19 Mapa da Vegetação do Parque Nacional Serra da Capivara.

16 Para caracterizar essa vegetação foram usadas as seguintes definições de estratos: herbáceo, 0-1m (I); sufruscente, 1-2m (II); arbustivo baixo, 2-4m (III); arbustivo alto, 4-6m (IV); arbóreo baixo, 6-8m (V); arbóreo médio, 8-12m (VI) e arbóreo alto, maior que 12m (VII) (EMPERAIRE 1987, 1991b).

Arqueologia do Movimento [45]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Como observado no mapa (cf. Fig. I.19, página anterior) a vegetação dominante no Vale da Serra Branca, nos dias de hoje, é a Caatinga Arbustiva Arbórea Baixa Densa seguida da Caatinga Arbustiva Alta Densa. Antes, na Pré-história, a cobertura vegetal era diferente da atual, autores como, Ab’Saber (1977, 1989) infere que houve uma expansão dos climas secos nos períodos glaciais quaternários, tendo por consequência, mudanças na cobertura vegetacional de toda a América, mapeando que, entre 18 e 13 mil anos as “caatingas” predominavam no Nordeste brasileiro. Infere, inclusive, que houve mobilidade dos grupos humanos préhistóricos diretamente associada às mudanças climáticas. ...Quando a tropicalização começa a retornar, por volta de 13.000-12.700 A.P., amplia-se o ecúmeno dos grupos indígenas brasileiros (páleo-índios tardios). Ao mesmo tempo em que as florestas refúgios se ampliam e entram em coalescência, os cerrados se restringem ao Brasil central e as caatingas se retraem à área nuclear dos sertões nordestinos, as araucárias se concentram e se ajustam aos altiplanos basálticos do Brasil Meridional...a essa nova roupagem da cobertura vegetal dos solos e das condições ecológicas, equivaleu uma reexpansão de faunas e novas formas de distribuição dos acervos bióticos....Acredita-se que os pequenos ciclos de climas quentes e localmente mais secos – ocorrentes no Holoceno, por volta de 5.000-4.000 anos e em torno de 2.000 A.P., possam ter tido influências na retomada de processos migratórios, um pouco por toda a parte na América Tropical. Sobre isso, há um grande consenso entre diferentes pesquisadores, pertencentes a variadas áreas do conhecimento (AB’ SABER 1989: 17).

Atualmente estudos palinológicos e paleontológicos apresentam dados mais específicos para a Pré-história da região do Parque Nacional Serra da Capivara. Fica a dúvida do momento em que a caatinga foi instalada na região, os dados nos indicam quando ela estaria instalada, que é entorno de 5.340 mil anos antes do presente (SANTOS 2007) e que, anteriormente, havia alternância entre períodos com muita e pouca pluviosidade, alterando a cobertura vegetacional. Segundo pesquisa realizada em pólens e esporos encontrados em coprólitos humanos e de animais, provenientes do sítio arqueológico Toca do Boqueirão da Pedra Furada, no período entre 8.450 e 7.230 BP, pode-se inferir que a vegetação nesse período era típica do Cerrado-Cerradão (CHAVES 2002 e CHAVES et al. 2008) (cf. Cap. I.1. 8). O Cerrado, reconhecido como a segunda savana mais rica do mundo em biodiversidade, é o segundo maior bioma brasileiro, estendendo-se por uma área de 2.045.064 km2, abrangendo oito estados do Brasil Central. É composto pelas mais diversas formas de vegetação, desde campos sem árvores ou arbustos, até o cerrado

[46] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

lenhoso denso com florestas-galeria. A vegetação do Cerrado apresenta também diversas paisagens florísticas diferenciadas, como os brejos, os campos alagados, os campos altos, os remanescentes de mata atlântica. Ele apresenta grande variedade em espécies em todos os ambientes, que dispõem de muitos recursos ecológicos, abrigando comunidades de animais com abundância de indivíduos, alguns com adaptações especializadas para explorar o que fornece seu habitat. O Cerradão é a uma formação florestal do bioma cerrado com características esclerófilas (grande ocorrência de órgãos vegetais rijos, principalmente folhas) e xeromórficas (com características como folhas reduzidas, suculência, pilosidade densa ou com cutícula grossa que permitem conservar água e, portanto, suportar condições de seca). Caracteriza-se pela presença preferencial de espécies que ocorrem no Cerrado sentido restrito e também por espécies de florestas, particularmente as da mata seca semidecídua e da mata de galeria não-inundável. Do ponto de vista fisionômico é uma floresta, mas floristicamente se assemelha mais ao cerrado sentido restrito. É um tipo mais denso de vegetação. Ainda hoje, no Parque Nacional Serra da Capivara e entorno é possível encontrar plantas características do Cerrado, exemplos: gameleira, marmeleiro, angico, aroeira branca e o ipê, também conhecido como pau d’arco [Fig. 20], porém em poucas quantidades. O Parque Nacional Serra das Confusões comporta os dois biomas, a Caatinga e o Cerrado.

Fig. I.20 Pau d’arco na entrada de um sítio arqueológico no interior do Parque.

Arqueologia do Movimento [47]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I.1. 6. 2 - Plantas e Plantações Foram registradas 382 plantas e dessas 206 tinham uma ou mais utilidades, as plantas terapeuticas são as mais numerosas, seguidas pelas plantas alimentares, estas últimas são raramente consumidas tendo seu uso reservado para os tempos de penúrias, períodos de seca que já duraram anos. Os dados etnohistóricos indicam o cultivo do milho, feijão, mandioca e algodão, mas esses grupos indígenas emigraram ou foram dizimados por ocasião da penetração europeia neste sertão (Séc.XVII) (EMPERAIRE 1983). Salienta-se que o milho e feijão são culturas que foram domesticadas, ou seja, selecionadas e propagadas em sistemas agrícolas tradicionais até que houvesse mudanças nos genótipos e fenótipos que fizessem as populações mais úteis aos humanos (CLEMENTE 1999) e são de origem americana introduzidos no Brasil em épocas pré colombianas. O milho (Zea mays mays) é uma planta de origem mexicana (MATSUOKA 2002) e domesticada por lá há cerca de 7 mil anos atrás. Seus parentes silvestres não são encontrados no Brasil. A origem evolutiva do género Phaseolus e sua diversificação primária também ocorreu nas Américas, existindo atualmente vários registros de amostras arqueológicas de feijão (Phaseolus vulgaris), desde o sudoeste do Estados Unidos até o centro norte da Argentina e Chile, datadas de até 10 mil anos (GEPTS & DEBOUCK 1991)17. Segundo Mott (1976)18, estudioso da ocupação histórica do Estado do Piauí nos séculos XVII e XVIII, as fazendas de gado, instaladas por consequência da necessidade dos bois como força motriz de funcionamento dos engenhos de cana-de açucar, atividade econômica dominante no litoral do nordeste brasileiro em expansão, foi o germe do povoamento desta região, constituindo a partir daí o modelo dominante de ocupação do território. Para as fazendas as culturas agrícolas eram pouco importantes, e a mandioca, o arroz, o milho e os feijões são principalmente cultivados. Portanto a agricultura era pouco desenvolvida e voltada exclusivamente para a subsistência familiar.

17

Apud BUSTAMANTE & FREITAS 2006: 96-97.

18

Apud EMPERAIRE 1983: 56.

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Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

No final do Séc. XIX surge uma nova atividade de desenvolvimento, a exploração do latex da maniçoba (Manihot glaziovii) e as culturas do algodão e do tabaco também tem importância (EMPERAIRE 1983). Atualmente mantêm-se uma cultura de subsistência, basicamente de mandioca, milho e feijões em todo o entorno do Parque. A cobertura vegetal da região do Parque Nacional Serra da Capivara é dinâmica não esquecendo que partes dela foram ocupadas intensamente nestes últimos séculos. No caso específico da Serra Branca, houve uma intensa exploração da maniçoba (cf. Cap. I.2. 4), e paralelamente pequenas roças foram instaladas, queimando e plantando pequenas áreas, alterando a cobertura vegetal, enfim construíndo uma nova paisagem.

Arqueologia do Movimento [49]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I.1. 7 - FAUNA A fauna do sudeste do Piauí não é muito conhecida. Com o manejo do Parque19 e a vigilância efetiva hoje é possível ver os animais e estudá-los, ações efetivas de preservação ambiental permitiram reconhecer e catalogar espécies endêmicas da caatinga. As espécies de mamíferos existentes na região do Parque são encontradas em outros ecossistemas no país, notadamente no cerrado, com poucas exceções. O único mamífero endêmico do sertão do Nordeste (presente também nas regiões semi-áridas de Minas Gerais) é o mocó (Kerodon rupestris), uma espécie abundante na área do parque que vive em grupos nas áreas rochosas, particularmente nas encostas dos vales e boqueirões. O parque é especialmente rico em espécies de edentados, cinco espécies de tatus foram registradas nesta área, o tatu-canastra (Priodontes maximu), aparentemente extinto na Serra da Capivara, o tatu-china (Dasypus septencinctus) em extinção, o tatubola (Tolypeutes tricinctus), o tatu-verdadeiro (Dasypus novemcinctus) [Fig. I.21A], e o tatu-peba (Euphractus sexcinctus) (BARBOSA SOUZA & OLMOS 1991). Essas espécies sofrem com a ação ilegal constante dos caçadores nesta região, ato proibido por lei em todo o território nacional. A figura pintada do tatu é largamente representada nos paredões dos abrigos do Parque, em especial na região sul e sudeste [Fig. I.21B]. Pode ser, a representação desse animal (típico do semi-árido), observada como um elemento indicativo de mudanças climáticas e, por consequência, mudanças culturais associadas às adaptações alimentares em função da disponibilidade dos recursos naturais? Ou seja, a representação pintada do tatu pode ser um elemento importante para identificar o comportamento humano associado as relações espaciais e temporais na Pré-história? Na pesquisa paleontológica realizada nesta região, foram encontrados diversos restos de distintas espécies desse animal, inclusive restos de tatu de um tamanho análogo aos gêneros atuais (uma mandíbula muito similar, mas um pouco maior do que a de um Euphractus sexcinctus, assim como placas idênticas às de um Tolypeutes atual). E, os restos de espécies de grande porte, por exemplo: um esqueleto de Pampatherium humboldti em conexão anatômica acompanhado de sua carapaça, descoberto em 1989, 19

A grande maioria dos dados apresentados sobre a fauna do Parque foi retirada do estudo realizado para o Plano de Manejo do Parque Nacional Serra da Capivara, publicado, não oficialmente, em 1991. Esse Plano, apesar de ter servido como base, para o manejo ambiental do parque e, modelo para outros parques no Brasil, ainda não foi aprovado pelas instituições devidas, portanto nunca foi oficialmente publicado.

[50] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

na Toca da Janela da Barra do Antonião Este gênero tem a idade do Pleistoceno médio ao final do Pleistoceno Superior (GUÉRIN et al. 1999). Há uma grande diversidade na representação pictórica desse animal, inclusive formando composições (cenas) que nos remetem a determinadas temáticas, por exemplo: a mais comum é aquela que o tatu está ao lado da figura humana que, na grande maioria das vezes está segurando o rabo do animal, podendo significar uma caça, dado o fato de que caçam o tatu com as mãos até nos dias de hoje [Fig. I.21B]. No caso, da nossa área de estudo, o Vale da Serra Branca, no conjunto de 10 mil figuras analisadas, ele aparece menos que 10 vezes, o que nos fica claro, o não interesse de representá-lo. Se era desconhecimento desse animal inferindo-o uma não importância, ou a intenção proposital de não representá-lo, não sabemos, mas, podemos afirmar que representá-lo no conjunto de sítios desse Vale não foi prioridade. Neste caso não nos serve como elemento indicador das relações espaciais – temporais, por outro lado, outros animais vão nos auxiliar nessa compreensão, em especial o Veado Galheiro. O tamanduá-mirim, também conhecido como michila ou lapicho (Tamandua tetradactyla) de pequeno tamanho é um dos mamíferos mais facilmente detectados no parque, inclusive na nossa principal área de estudo, o Vale da Serra Branca [Fig. I.22A]. Os Tamanduás-bandeira (Myrmecophaga trydactyla) ocorrem na região, com raros registros. Esses animais, ou seja a falta deles, em função da caça ilegal, provocou um desequilíbrio ecológico que aos poucos está sendo recuperado, eles comem cupins (termitas) e, sem esse predador natural houve uma proliferação desses cupins, com suas galerias, sobre as pinturas rupestres fazendo-se necessário um trabalho de limpeza e conservação dessa arte constantemente. Há poucas representações de tamanduá na arte rupestre nesta região, a mais evidente está localizada na toca do Enoque no Parque Nacional Serra das Confusões [Fig. I.22B]. Três espécies de primatas foram encontradas na região: o sagui-de-tufo-branco ou sôinho (Callithrix jachu), o macaco-prego (Cebus apella)20 [Fig. I.22C], e o guariba (Alouatta caraya). Todas são restritas às formações mais arbóreas dos boqueirões e baixões. Fileiras de macacos também foram pintadas nos paredões rochosos, apesar de poucas quando comparada com os felinos e herbívoros. 20

Pesquisas recentes com os grupos de macaco-prego nesta região comprovaram o uso de ferramentas líticas entre eles (MANNU & OTTONI 2001)

Arqueologia do Movimento [51]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

A comunidade de carnívoros do PARNA é notavelmente diversa, destacam-se seis de felídeos, são eles: onça-pintada (Panthera onca), onça-vermelha (Puma concolor) [Fig.I.23], jaguatirica ou maracajá-grande (Felis pardalis), maracajá-peludo (Felis wiedii), gato-macambira (Felis tigrina) e jaguarundi ou gato-vermelho (Felis yaguaroundi) (BARBOSA SOUZA & OLMOS 1991). Há felinos representados pintados, na grande maioria das vezes, em cenas de caça, prática também realizada nesta região até a criação do Parque [Fig. I.24]. Uma pesquisa recente comprova que depois da criação do parque e destes anos de manejo esses animais estão bem adaptados a esse bioma21.

Fig. I.23 Pele da Onça-vermelha, resultado da caça nos anos 80 na região do Parque Nacional Serra da Capivara.

Quatro espécies de herbívoros maiores existem na região do Parque, são os veados catingueiro (Mazama guazoubira) e mateiro (Mazama americana) e, os porcosdo-mato, a queixada (Tayassu pecari) e o caititu (Tayassu tajacu) [Fig. I.25]. Os veados catingueiros [Fig. I.26], são bem mais comuns que os mateiros, ambas as espécies procuram áreas próximas às fontes de água, e atualmente próximos aos turistas. O cervo do pantanal (Blastocerus dichotomus) conhecido como veado galheiro, apesar de abundante nas pinturas rupestres dessa região não existe nos dias de hoje, apenas em fósseis recentemente encontrados e datados. Os herbívoros são largamente pintados nas paredes dos abrigos, com uma grande diversidade de tamanho e estilos, inclusive no Vale da Serra Branca.

21

Segundo Samuel Astete-Perez (2008) o valor de densidade das onças pintadas registrado com armadilhasfotográficas em sua pesquisa de campo, na chapada (interior do Parque) permite estimar a população total do Parque Nacional Serra da Capivara em 35 ± 14 indivíduos.

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Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Fig. I.21A Tatu-verdadeiro (Dasypus novemcinctus).

Fig. I.21B Representação pictórica do tatu. Toca do Boqueirão da Pedra Furada (luz artificial).

Fig. I.22A Tamanduá--mirim (Tamandua trydactyla).

Fig. I.22B Representação pictórica do tamanduá. Toca do Enoque, Serra das Confusões.

Fig. I.22C Macaco-prego e filhote, Fazenda da Jurubeba, entorno do Parque Nacional Serra da Capivara.

Arqueologia do Movimento [53]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Fig. I.24 Onça-vermelha (Puma concolor).

Fig. I.25 Caititus (Tayassu tajacu), popularmente conhecido como porco do mato.

Fig. I.26 Filhote de Veado catingueiro (Mazama guazoubira).

[54] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Foram identificadas na região, 222 espécies de aves, sendo 187 espécies no interior do Parque, havendo diversas espécies de aves endêmicas do semi-árido (OLMOS 2005). Há o beija-flor (Phaethornis gounellei), o jacu (Penelope jacucaca), o periquito (Aratinga cactorum), o curiango (Caprimulgus hirudinaceus), o furnarídeo (Pseudoseisura cristata), o pintassilgo baiano (Spinus yarrellii) e o tico-tico-rei (Coryphospingus pileatus) entre tantos. Típicos da caatinga são o periquito (Aratinga cactorum), a cancã (Cyanocorax cyanopogon) e o Sofreu, também conhecido como Currupião (Icterus icterus) [Fig. I.27].

Fig. I.27 Sofreu (Icterus icterus).

Parte das espécies de aves da caatinga parece capaz de utilizar e sobreviver em áreas que foram degradadas e que estão em regeneração, como roças abandonadas ou áreas queimadas. Um dos maiores problemas enfrentados pela avifauna, na região do Parque, é a caça, que elimina espécies como os jacus (já raros) e nambus, além daquelas utilizadas como mascotes e para comercialização, como os papagaios e o pintassilgobaiano (raro na região). Foi, provavelmente, esse fator que quase exterminou as araras (Ara). Nas representações de aves pintadas destacam-se exemplares de uma figura de pássaro com asas abertas e pernas retas dispostas em diversas regiões do Brasil, que variam do tamanho pequeno ao grande também presente no Vale da Serra Branca [Fig. I.28]. Arqueologia do Movimento [55]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Fig. I.28 Representações pictóricas de pássaros. Toca do Enoque, Serra das Confusões.

Com relação aos répteis e anfíbios podemos dizer que, um Tapinurus (Iguanidae), muito abundante na região, foi coletado em 1988 e mostrou tratar-se de uma espécie nova Tapinurus helenae (MANZANI & ABE 1990). Os lagartos são abundantes, constantes nos afloramentos e paredões rochosos. O camaleão (Iguana iguana) e o teiú (Tupinambis teguixim) são os lagartos de maior porte encontrados no parque. Há poucos dados sobre serpentes da região, são comuns duas espécies de cobracipó Phylodryas nattereri e Oxybelis aeneus, a boipeva (Waglerophis merremii), a caninana (Spillotes pullatus) e a jibóia (Boa constrictor), cuja pele é muito apreciada para a comercialização. Das serpentes peçonhentas, foram registradas 4 espécies: a coral verdadeira (Micrurus ibiboboca), duas jararacas que ocorrem especificadamente na caatinga, Bothrops erythromelas e B. newiedii, e a cascavel (Crotalus durissus cascavella). Sobre os anfíbios podemos dizer que os mais comuns são os sapos Bufo granulosus e B. paracnemis e a jia (Leptodactylus labyrinthicus), que surgem em grande número nas poças e lagoas após as chuvas (BARBOSA SOUZA & OLMOS 1991). Cobras

e

lagartos

representados

na

são arte

rupestre, tanto gravados como pintados, porém de recorrência [Fig. I.29]. Fig. I.29 Serpente gravada. Riacho Santana.

[56] Cristiane de Andrade Buco, 2012

minoritária

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I.1.8 – PALEOAMBIENTE Os pesquisadores que, em razão do atual clima semi-árido, afirmaram que os fogos naturais deveriam ser freqüentes na pré-história local, não levaram em consideração as mudanças climáticas que afetaram a região. As pesquisas demonstraram que, até cerca de 10.000 anos BP, o clima local era tropical úmido; o setor norte da região estava coberto pela Floresta Amazônica e o setor sul fazia parte da Mata Atlântica, dois biomas úmidos. Até hoje, espécies animais e vegetais originárias desses dois biomas, existem no Parque Nacional Serra da Capivara (GUIDON 2008a: 381).

Para definirmos um quadro paleoambiental da região do Parque Nacional Serra da Capivara, levou-se em consideração os dados obtidos em diversas pesquisas, estas associadas a estudos paleontológicos, palinológicos, sedimentológicos e arqueológicos, que são feitos na área desde os anos 70. Surgem indicadores que nos levam a crer que no Pleistoceno o clima era mais úmido que o atual, com uma vegetação de savanas abertas e arborizadas, confirmada pelas necessidades ecológicas dos achados paleontológicos (GUÉRIN 1991, GUÉRIN et al. 1996 & GUÉRIN & FAURE 2008, PARENTI et al. 2003) e, uma transição Pleistoceno-Holoceno que foi intercalada de oscilações climáticas, mantendo nichos ecológicos durante o Holoceno antigo, inclusive com sobrevivência de espécies animais atualmente extintas (FAURE et al. 1999 & GUÉRIN & FAURE 2009). It seems that the megafauna of the Serrote do Artur testifies the beginning of the drying in the region at the Pleistocene-Holocene transition (FAURE et al. 1999: 445). A proporção elevada de carnívoros e de entomófagos, a abundância de onívoros, adominância dos herbívoros hipsodontes sobre herbívoros braquiodontes, a presença de formas aquáticas e aquáfila falam a favor de uma paisagem mista com amplas extensões abertas (savanas, localmente arbustivas) entrecortadas de setores de florestas, sob um clima muito mais úmido que o atual (GUÉRIN et al. 1996: 95).

Essas informações são também confirmadas através dos dados observados nas análises polínicas (CHAVES 1994, 1997, 2002; CHAVES et al. 2008), e nos processos sedimentares que alteraram a paisagem atual e a ocupação do território, culminando com a caatinga instalada por volta de 5 mil anos atrás (SANTOS 2007).

Arqueologia do Movimento [57]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I. 1. 8. 1. - Megafauna Mais de 20 anos de estudos paleontológicos sistemáticos da fauna fóssil dessa região permitiu identificar mais de 50 espécies de mamíferos, mais de 30 espécies de aves, répteis (Caiman, Dracaena, quelônios e anfíbios) e o peixe Plecostomus22, representando para a região um panorama da densidade e diversidade de espécies pleistocências, sobretudo da megafauna e avifauna fósseis, que habitaram a região do Parque Nacional Serra da Capivara, entre um período compreendido entre 180.000 e 8.000 BP (GUÉRIN et al. 1996). Esses

estudos

realizaram-se

sobretudo

nos

sítios

paleontológicos,

e

arqueológicos, situados na região calcária, região Sudeste do Parque (planície précambriana), onde encontram-se os serrotes e as cavernas, como também nas lagoas (PARENTI 2003, 2004, 2007, PARENTI et al. 2003) [Fig. I.30], hoje maioritariamente secas, espalhadas além desse território, ou seja, sempre fora dos limites do Parque Nacional Serra da Capivara.23

Fig. I.30 Vista geral do estrato fossilífero da Lagoa do Quari.

22

Um espécime deste pequeno peixe foi descoberto, sem a cabeça, mumificado, na Toca da Barra do Antonião. Essa espécie é atualmente frequente nos cursos d’água do Nordeste (SHUFFELDT 1926; FOWLER 1954 apud GUÉRIN et al. 1996: 89). 23

Os maciços calcários metamorfizados são propícios à conservação do material ósseo, tendo sido encontrado vários esqueletos em conexão anatômica, facilitando a identificação das espécies. Os principais sítios estudados, pelos paleontólogos Claude Guérin e Martine Faure (Lyon, França) foram: Toca da Janela da Barra do Antonião, Toca de Cima do Pilão, Toca do Garrincho, Toca do Serrote do Artur, Sumidouro do Sansão, Toca do Barrigudo, Toca das Moendas e as Lagoas São Vitor e Quari. Todo esse material encontra-se catalogado no Centro Cultural Sérgio Motta, sede da FUMDHAM, em São Raimundo Nonato, Piauí, Brasil.

[58] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

As espécies mais comuns da megafauna encontradas foram: as preguiças gigantes, Catonyx cuvieri e Eremotherium lundi (GUÉRIN & FAURE 2000) [Fig. I.31]; o tigre-dente-de-sabre, Smilodon populator (LUZ 1989) [Fig. I.32]; o mastodonte, Haplomastodon waringi; o toxodonte, Toxodon sp; o tatu gigante, Glyptodon clavipes; os cavalos, Hippidion bonaerensis e Hippidion sp. (GUÉRIN et al. 1996) e as lhamas, Palaeolama major e Paleolama niedae (GUÉRIN & FAURE 1999). Junto dessa fauna gigante, também existiam as espécies de médio e pequeno porte, que foram fontes de alimentação das populações que ali viviam (GUÉRIN et al. 1996, GUÉRIN & FAURE 2008).

Fig. I.31 Bacia do Eremotherium lundi, Lagoa do Quari (Laboratório de Paleontologia FUMDHAM).

Fig. I.32 Dentes do Tigre-dente-de-sabre, coletado na Toca de Cima dos Pilão (restaurado).

Uma nova espécie de preguiça, em conexão anatómica [Fig. I.33] a Scelidodon piauiense, foi encontrada recentemente na região do Calcário (GUÉRIN & FAURE 2004a).

Fig. I.33 Scelidodon piauiense em conexão. Toca do Barrigudo.

Arqueologia do Movimento [59]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Do ponto de vista biocronológico, a presença dos gêneros Eremotherium, Haplomastodon, Equus e Catonix, indica uma idade do Pleistoceno Superior. No plano paleoecológico, a fauna caracteriza uma paisagem de savana aberta entrecortada de zonas florestais, com um clima mais úmido que o atual (GUÉRIN 1991). Notar-se-à a ausência, surpreendente, das antas e a escassez dos Cervídeos que não sejam Mazama, assim como ausência da capivara (Hydrochaerus hydrochaeris) e da ema (Rhea). Ora, a capivara dá seu nome ao principal relevo da região e está abundantemente representada nas figuras rupestres do começo do Holoceno, como é o caso da ema e do veado com chifres ramificados, que poderia corresponder ao atual Blastocerus, ou a um gênero desaparecido como Morenelaphus ou Antifer. A capivara (como também o Blastocerus) é altamente dependente dos hábitats úmidos, ela foi assinalada no Pleistoceno do Rio Grande do Norte (Nordeste do Brasil), na Bahia e mais ao Sul, em Lagoa Santa, Minas Gerais. As mais antigas representações rupestres interpretáveis são 12 mil anos BP (GUIDON 1989), elas tratam de formas que estão ainda presentes (diversos tatus, onça e jacarés) e outras recentemente desaparecidas da região, mas não foi possível reconhecer os principais representantes da megafauna pleistocênica (GUIDON et al. 1996: 95).

Analisando o conjunto da fauna total encontrado nos diversos sítios pensa-se numa maior antiguidade, como também, na problemática do desaparecimento tardio de alguns gêneros da megafauna. A fauna da área arqueológica de São Raimundo Nonato não pode ser mais antiga que o Lujaniano, que corresponde ao Pleistoceno superior, e é altamente provável que seja do Lujaniano superior. Por outro lado a riqueza em indivíduos e sua diversidade excluem uma idade mais recente; não é provável que uma fauna do final do Pleistoceno seja tão abundante e variável (GUÉRIN et al. 1996: 89).

La Toca do Serrote do Artur pose donc le problème de I’extinction tardive, a I’Holocène ancien, de certains genres de la megafaune en Amérique du Sud (FAURE et al. 1999: 448).

Na Toca do Serrote do Artur foi possível datar, em contexto estratigráfico, uma fauna holocênica (8.490+/-120 BP), composta em parte por Paleolama, Equus e Glyptodonts, animais que não sobreviveriam longe da água e de largas áreas arborizadas (FAURE et al. 1999). Outras evidências paleontológicas, além da área em questão, atestam a sobrevivência de alguns elementos da megafauna do Pleistoceno da América do Sul, durante o Holoceno (MARSHALL 1994; GUÉRIN 1993; POLITIS 1996).

[60] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Recentemente, as escavações na Toca das Moendas confirmaram uma variada e abundante fauna silvestre, inclusive associada aos restos humanos e ferramentas líticas.24 Cerca de 15 espécies de grandes mamíferos, bem como diversos pequenos mamíferos estão presentes. Os grandes mamíferos dominantes são Palaeolama major, seguida pelos Cervidae (GUÉRIN & FAURE 2009), estes representados pelos fósseis de Mazama gouazoubira (inclusive um esqueleto, parcialmente em conexão) e Blastocerus dichotomus (Veado galheiro ou Cervo do Pantanal); os Equidae, representados por Hippidion e Equus, sendo que Hippidion é o mais comum; os Tayassuidae por Dicotyles tajacu e Tayassu pecari. Acrescenta-se também a presença de conjuntos25 de Macrauchenia patachonica, Catonyx e/ou Scelidodon, Glyptodon, Pampatherium e de um grande número de placas de Dasypodidae como de alguns carnívoros: Cerdocyun thous, Conepatus sp. , Felidae cf. Panthera onca (um dente) e Felis concolor (um fragmento da mandíbula). A característica mais notável desta fauna é a abundância de cervídeos que, no que concerne a frequência relativa, somente são ultrapassados por Palaeolama major26 (GUIDON et al. 2009). Este é o primeiro sítio da região no qual se encontra uma tal quantidade de cervídeos, principalmente Blastocerus dichotomus [Figs I.34], que já havia sido encontrado, em raros fragmentos em outros sítios da área (GUÉRIN et al. 1996). Afirma-se finalmente, a presença desse grande cervídeo, que aparece largamente pintado nas paredes dos abrigos-sob-rocha da área arqueológica da Serra da Capivara (FAURE et al. 2010) [Fig. I.35]. Essa espécie tem um papel importante na vida do Homem pré-histórico e, será por nós observada como um elemento indicador, de um meio ambiente úmido, ele necessita de mais água para sua sobrevivência do que aquela que existe na região nos dias de hoje.

24 Nem todo o material encontrado foi analisado porque muitos fósseis estão em brechas consolidadas pela calcita que não puderam ser ainda isolados (GUIDON et al. 2009). 25 Chama-se de conjuntos os ossos reconhecidos como pertencente a um mesmo individuo e considerados como uma unidade (GUÉRIN et al. 1996: 59). 26

Um estudo que poderia ser feito é o de observar alguns animais, grande maioria classificados como cervídeos, como lhamas, principalmente pela característica alongada do pescoço. Ainda não foi feita essa associação justamente pelo fato de ser um animal não característico de um clima semiárido, não existir no atual território brasileiro, e por estar vinculado, unicamente, a fauna pleistocênica. No capítulo V desta tese apresentamos algumas figuras, na região da Serra Branca, que podem ser observadas como lhamas, mas não detalhamos essa relação nesta pesquisa.

Arqueologia do Movimento [61]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

A

B

Figs I.34 Mandíbula do Blastocerus dicothomus encontrado na Toca das Moendas. A) Localização no momento em que foi encontrada. B) Vistas laterais e posterior (GUÉRIN & FAURE 2009: 191, fig.16).

Fig. I.35 Representação pictórica do Cervo do Pantanal em destaque. Toca do Pinga do Boi.

Pela primeira vez encontrou-se restos fósseis de animais significativos na arte rupestre da região do Parque Nacional Serra da Capivara, são eles: a capivara, Hydrochoerus [Figs 36], espécie maior que a atual Hydrochoerus hydrochaeris (encontrada em uma mesma camada que fósseis da preguiça gigante, cervo do pantanal, paleolama e uma grande tartaruga, Chelonoidis sp), a ema, Rhea fossilis [Fig. I.37 & Fig. I.38], diferente da atual, Rhea americana e ainda fragmentos de uma jacaré, Caiman sp [Fig. I.37 & Fig. I.39] gênero sempre raro no estado fóssil (FAURE et al. 2010).

[62] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Fig. I.36A Fragmento rostral da mandíbula direita de Hydrochoerus sp. (FAURE et al. 2010: 10, fig. 3).

B

Fig. I.36B Representação pictórica de capivaras. Toca do Caldeirão do Rodrigues I. Estes animais são frequentemente representados na arte rupestre da região, à Tradição Nordeste, datada entre 12000 e 6000 anos. Curiosamente, apesar do nome Serra da Capivara, esse roedor gigante jamais foi encontrado até o presente em estado fóssil na região, como também o cervo do Pantanal e a ema, enquanto milhares de restos paleontológicos foram evidenciados há mais de vinte anos na região calcária do entorno do Parque Nacional Serra da Capivara. De modo geral, essas espécies testemunham um ambiente mais úmido que o atual, durante a realização das pinturas nos abrigos sob rocha e, contribuem indiretamente para sua datação, anterior a importante aridificação começada no início do Holoceno (FAURE et al. 2010).

Essa fauna, tão rica em diversidade, confirma um ambiente muito diferente do atual, com maior umidade e uma cobertura vegetal muito importante. Os grandes veados, cavalos, camelos, a Capivara, o Mylodontidae, Pampatherium e os Glyptodontes, não teriam alimentos e água suficientes para viver em um bioma do tipo caatinga. As únicas espécies, encontradas na Toca das Moendas e ainda presente na região, são os pequenos veados Mazama gouazoubira, o caitetu, três espécies de tatus, pequenos gatos, a onça, o puma, o pequeno canino, Conepatus e dois tamanduás. O preenchimento da Toca das Moendas data do Pleistoceno Superior (GUIDON et al. 2009).

Arqueologia do Movimento [63]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Fig. I.37 Representação pictórica de emas e jacarés na Toca do Boqueirão da Pedra Furada. .

Figs I.38 Extremidade distal de um metatarso esquerdo do fóssil de Rhea, A) Vista frontal, B) Vista posterior (FAURE et al. 2010: 12, fig. 8).

Figs I.39 Caiman sp. A) Dente isolado, B) Fragmento anterior esquerdo do maxilar contendo os dentes 4 e 5 (FAURE et al. 2010: 13, fig. 10).

[64] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Neste sítio também há arte rupestre, esta composta por gravuras em um bloco na entrada da toca e riscos nessa entrada e na parte interna. Por não localizar-se na nossa principal área de estudo e não haver representações de composições à serem comparadas com a arte da Serra Branca, portanto, deste sítio, apenas aproveitamos os dados paleoambientais, paleontológicos e a relação que podemos fazer com os demais vestígios arqueológicos. Por exemplo, foram datados dois dentes de Blastocerus dichotomus (encontrados próximos a um sepultamento) por ESR em dois laboratórios distintos, obtendo-se as seguintes datas, uma 232 ka (Departamento de Física e matérias, FFCLRP, Brasil) e a outra 222 ka (Chemistry Department Williams College, USA) localizados abaixo de uma concreção, que teve seus grãos de quartzo datados por OSL em 133 (BAFFA et al. 2010). Estes dados confirmam um período para a existência desse animal, e nos faz pensar numa maior antiguidade humana nessa área, e por consequência, da arte rupestre associada. Nel quadro dello studio delle mammalofaune dei principali giacimenti fossiliferi dell’area del Parco Serra da Capivara (Toca da Janela da Barra do Antonião, Toca do Garrincho, Toca da Cima dos Pilão, Toca da Serrote do Artur, Toca do Barrigudo, Lagoa São Vitor), è stata evidenziata una grande biodiversità e si pensa che i cambiamenti climatici più rilevanti siano avvenuti fra 10 e 7 millenni da oggi (PARENTI 2004: 1).

Como pode ser observado, conhecer a fauna fóssil é de extrema importância para o reconhecimento do território ocupado por ela e pelos homens. A extinção tardia de espécies da megafauna confirma um ambiente mais úmido no Holoceno antigo, época de grande expansão demográfica dos grupos culturais que ocuparam a região do Parque Nacional Serra da Capivara. Havia uma grande biodiversidade, que atualmente está reduzida a nichos ecológicos e aos fósseis, sedimentos, pólens e esporos que movimentaram-se em um passado, e hoje, analisados numa perspectiva multidisciplinar, nos auxiliam na construção de um quadro paleoambiental, onde o homem também participa, inserindo-se nesse meio ambiente, como um agente que, além de ocupar esse território também o modifica.

Arqueologia do Movimento [65]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I. 1. 8. 2. – Análise polínica ... entre +/-8.450 e 7.230 BP, constatou-se a atenuação da última crise árida holocênica. Nesta época, a paisagem da região de São Raimundo Nonato era muito diferente da que conhecemos hoje em dia. Os diagramas polínicos mostram uma forte percentagem de taxa arbóreos, assim como de associações típicas que confirmam a existência, no passado, de uma vegetação do tipo cerrado-cerradão. Esses registros revelam também a existência de um clima ligeiramente mais frio e menos seco que o clima atual. Os homens que habitavam essa região naquele período, beneficiavam-se de uma vegetação rica e heterogênea, sempre relacionada a um ambiente favorável à presença de uma fauna diversificada (CHAVES 2002: 100).

Os estudos palinológicos nesta região, tem fornecido dados importantes à reconstituição do paleoambiente, foram coletadas amostras em distintos sítios arqueológicos do Parque Nacional Serra da Capivara (CHAVES 1994, 1997, 2002) e em lagoas no entorno (PARENTI 200427, CHAVES et al. 2008 & SANTOS 2007). Nos anos 90 foi realizada uma reconstituição ambiental baseada em pólens e esporos encontrados no interior de coprólitos28 humanos e animais que foram recolhidos em camadas Holocênicas (fases Serra Talhada 1 e Serra Talhada 2), da Toca do Boqueirão do Sítio da Pedra Furada (cf. Cap. I.2. 1. 1). Estas camadas se caracterizaram pela presença de fogueiras (fogos estruturados), que foram reutilizadas inúmeras vezes, datadas entre 8.450 e 7.230 BP. Essa análise permitiu a identificação de espécies vegetais características de períodos de chuva, como os taxa da família Combretaceae e a presença de espécimes de climas úmidos e de solos argilosos, como a Apocynaceae, todos relacionados aos espaços arbóreos (CHAVES & RENAULT-MISKOVSKY 1996 & CHAVES 2000). Os resultados desses estudos indicam que, por volta de 8.450 anos BP, havia um quadro ambiental mais úmido e arborizado que o dos dias atuais, com refúgios florestais de clima ameno. Mas a presença de espécimes como a Acácia e a Mimosa verrucosa, indicam a existência de uma vegetação de transição entre o cerrado e a caatinga. Conclui-se que existiam na região algumas formações abertas com retomadas temporárias das vegetações do cerrado e do cerradão, presentes ainda hoje na região, 27

Relatório da Missão Italo-brasileira da Fundação Carlo Maurilio Lerici, Instituto Politécnico de Milano sob a responsabilidade do arqueólogo Fabio Parenti (ano 2004).

28

Essas amostras foram compostas de trinta e um coprólitos animais e cinco humanos que foram exaustivamente analisados. As coleções de referência utilizadas para esse trabalho são provenientes dos herbários do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Piauí. O tratamento químico foi feito no “Institut de Paleontologie Humaine de Paris”, as análises paleoparasitológicas na Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP, RJ e as datações C14 no laboratório de Gif-sur-Ivette, França.

[66] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

observadas nos brejos29, vestígios do antigo período úmido (CHAVES 1994, 2000, 2002). Foram também realizados estudos palinológicos em coprólitos30 de outros dois sítios arqueológicos, o Sítio do Meio e o Sítio Baixa do Cipó. As análises correspondentes aos três sítios arqueológicos, juntas, ofereceram um conjunto de dados possíveis de serem associados a dieta alimentar31 de seres humanos e de animais, tendo sido identificadas plantas que, provavelmente, não foram somente utilizadas para alimentação, mas também, para fins terapêuticos; poucas amostras apresentaram restos ósseos, não sendo possível afirmar se a dieta da população pré-histórica era mais vegetal ou carnívora (CHAVES 1997). Essas descobertas permitem, sobretudo, aprofundar nossos conhecimentos relativos aos “tratamentos” de doenças pela população humana pré-histórica da Toca do Boqueirão do Sítio da Pedra Furada. Da mesma maneira, nosso trabalho permitiu confirmar o que FERREIRA et al. (1987) afirmaram sobre a presença de pequenos vermes parasitos nos coprólitos humanos dessa mesma população. Podemos então provar que esses habitantes, que foram parasitados há 9.000 anos BP, procuravam se livrar desses vermes parasitos utilizando parte de flores e/ou folhas de algumas plantas selecionadas. Estas descobertas mostram a utilização de medicamentos encontrados no seu ambiente. Essas plantas são, ainda hoje utilizadas no tratamento de verminoses32, diarréias, doenças oculares e problemas respiratórios (CHAVES 2002: 92).

Da mesma forma, que na Toca do Boqueirão da Pedra Furada, há no Sítio do Meio uma predominância de ovos dos parasitas Trichuris sp. que, segundo CHAVES, permite pensar num ambiente mais úmido que o atual para a préhistória do Parque Nacional Serra da Capivara. Uma vegetação de transição entre cerrado e caatinga também está presente neste sítio por volta de 7.411 a 6.669 BP. Verificou-se durante o Holoceno aumento e diminuição de gêneros que evidenciaram uma reocupação de áreas através do processo de substituição da vegetação local, partindo anteriormente de uma 29

Há no interior da caatinga do Nordeste do Brasil, inúmeros morros suficientemente altos, que permitem o estabelecimento de uma vegetação densa e úmida, chamada localmente de brejos, são isolados uns dos outros e também das grandes áreas de florestas; no interior desses brejos, encontramos espécies vegetais de Amazônia, típicas da floresta úmida, como por exemplo: Gallezia gorarema, Huberia avalifolia, Manilkaria rufula, Myracarpus fastigiatus e Phyllastyllon brasiliensis; durante os períodos secos, esses “refúgios” demonstram a existência, no passado, de áreas úmidas (CHAVES 2002: 101). 30

Os coprólitos podem conter pólens e esporos no seu interior e sobre eles mesmos, uma vez que os grãos de pólen depositam-se na sua superfície, funcionando como uma verdadeira “armadilha orgânica” (CHAVES 2002: 89).

31

No interior dos coprólitos do Sítio da Pedra Furada foram encontradas taxa pertencente às famílias Cucurbitaceae, Fabaceae, Chenopodiaceae, Convalvulaceae e de outros taxa “hortículas” indicando uma utilização alimentar dessas plantas (CHAVES 2002: 101). 32

Um dos exemplos de planta terapêutica encontrada, que ainda é muito usado no Nordeste brasileiro é a folha de Chenopodium sp. (mentruz) que serve como remédio de base, sendo fortificante e vermífuga.

Arqueologia do Movimento [67]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

vegetação aberta para uma vegetação relativamente homogênea e arbórea, que se manteve, pelo menos, até essa data (MELO 2004). Na Toca da Ema do Sítio do Brás I junto à parede do fundo, numa camada de areia argilosa, havia uma cova, na qual existia 320 gramas de sementes carbonizadas que foram datadas, fornecendo o resultado calibrado de 10.170 à 9.580 BP. Uma primeira análise sugeriu que se trataria de um gênero da família das Leguminosas, ou o gênero Dioclea, talvez grandiflora, ou o gênero Mucuna sp. que hoje somente existe na floresta tropical úmida. Essas sementes estavam todas juntas, dentro da cova que foi a seguir, recoberta de ramos que foram queimados carbonizando as mesmas em ambiente úmido, nos fazendo pensar nos fornos cavados no sedimento de beira-rio, procedimento conhecido por algumas tribos indígenas brasileiras. Essa datação marca o momento no qual o rio ainda corria nessa altura, cerca de 40m em relação ao fundo atual do vale. Nessa parede ao fundo também foram encontradas gravuras, típicas do estilo de gravuras encontradas na beira-rio (GUIDON et al. 2002). Foram também realizados estudos palinológicos em lagoas no entorno do parque, locais favoráveis a conservação dos pólens e esporos. Duas delas apresentaram resultados que elucidam o paleoambiente da região. A Lagoa Grande, em Brejo do Piauí, norte do Parque Nacional Serra da Capivara, trouxe dados paleoambientais do Holoceno Médio aos dias atuais que mostram alterações na cobertura vegetacional, como consequência das oscilações paleoclimáticas. Entre 5.130 e 3.300 BP, houve grande desenvolvimento de Mauritia flexuosa e proliferação de Ludwigia, ambas espécies associadas a áreas úmidas e pantanosas. Grande concentração de esporos do tipo Blechnum, associados a ervas aquáticas e terrestres, também nos indica um clima úmido. Entre 3.300 e 950 anos BP, parece ter havido declínio de pólen de plantas arbóreas, em especial da espécie Mauritia flexuosa e, nos táxons arbustivos, nota-se baixa concentração de Ludwigia. Esses dados sugerem um clima mais seco, pois as espécies encontradas, vivem em solos mal drenados e arenosos. Entre 950 e 137 anos BP, o paleoclima teria sido mais seco pois a Mauritia flexuosa, estava praticamente ausente, havendo baixa concentração de pólen de plantas arbóreas e arbustivas. De 137 anos BP até o Presente, houve aumento de Mauritia flexuosa, ervas aquáticas, esporos e algas, que sugerem uma recuperação de ambiente mais úmido, possivelmente relacionada à atual paisagem (SANTOS 2007).

[68] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Em síntese, a análise palinológica nesta lagoa, mostrou que houve várias oscilações nas concentrações de árvores e arbustos desde 5.130 anos BP, inferindo que, a caatinga, passou desde o Holoceno Médio até o presente, por momentos mais úmidos e mais secos que o clima atual. A Lagoa do Quari, a sudoeste do Parque Nacional Serra da Capivara, afirma a extinção tardia (Holoceno antigo) da megafauna, e os estudos palinológicos, confirmam a existência de um período mais úmido, áreas abertas com 65% de presença de espécimes arbóreas (Piptadenia moniliformis, Mimosa verrucosa, Arecaceae, Bauhinia sp.). As amostras de sedimentos33 foram retiradas em duas camadas composta por solos argilosos, a 240cm e 180cm de profundidade, datadas de 8.770 +/- 55 BP à 5.425 +/- 45 BP respectivamente (PARENTI 2004, CHAVES et al. 2008).

I. 1. 8. 3. – Análise Sedimentológica A sedimentação quaternária desta região, segundo Santos (2007) é formada por leques coluviais e depósitos aluviais de rios entrelaçados, sugestivos de clima semiárido34. Os valores do pH encontrados nos sedimentos do Parque Nacional Serra da Capivara variaram de 2,53 a 5,57, justificando a ausência de restos esqueletais e fósseis nas escavações, exceto e, ocorrências pontuais (LAGE et al. 2007). Os dados nos permitem inferir que havia na Pré-história muita movimentação de água alterando a paisagem, transportando areias, seixos, blocos pequenos e grandes que hoje, podemos observar nos cortes estratigráficas das escavações arqueológicas e nas trincheiras realizadas nos últimos anos (cf. Cap. IV). Sabe-se que os sítios de habitação ocupavam as áreas planas e que estão a salvo das inundações. Uma datação de 4.885 +/- 35 BP35, associada aos vestígios líticos encontrados em uma camada formada por sedimentos típicos de um terraço fluvial, 33 Os pólens foram extraídos dos sedimentos no “Laboratório de Ecologia da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil”. 34

A pesquisadora Janaina Santos (2007) realizou um doutoramento sobre o Paleoambiente da região do Parque Nacional Serra da Capivara e entorno, recolheu e analisou uma série de amostras de sedimentos que lhe permitiu construir uma sequência sedimentar cronológica que será apresentada neste capítulo. 35

Amostra de Carvão (Etiqueta 107628), encontrado no Setor 1, Decapagem 5 (Stafford Research Laboratories, Inc./ USA).

Arqueologia do Movimento [69]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

obtida no sitio aldeia Baixa do Carvoeiro (Cód.131) localizado em uma altitude de 492 metros, demonstra que até essa data fortes enchentes da rede de drenagem norte alcançavam até essa altitude. A força da torrente depositou blocos de arenito e seixos de cerca de 20/30 cm de comprimento. Atualmente, por ocasião das grandes chuvas, a torrente passa pela curva de nível de 360m (GUIDON et al. 2007; GUIDON 2008a). Observando a estratigrafia dos sítios arqueológicos escavados na Serra Branca percebe-se o efeito da água, inclusive com a constatação de sedimentos de coloração diferente e argilosos (cf. Cap. IV). O ambiente era diferente do atual, houve uma evolução da paisagem e do processo de erosão e assoreamento em alguns vales tributários do grande vale da Serra Branca, ocasionando um processo de diminuição do caudal dos rios por volta de 9.000/ 8.000 anos BP (ocorreu tanto no sistema de drenagem sul, região da Toca do Boqueirão da Pedra Furada, como no sistema de drenagem norte, nossa região de estudo). O assoreamento foi acelerado depois que os colonos iniciaram o processo de desmatamento e queimadas anuais, estando todo o vale em franco processo de assoreamento (GUIDON 2002a). Até cerca de 9.000 anos atrás, a região tinha clima tropical úmido e floresta úmida, observamos, ainda hoje, espécies animais e vegetais da região amazônica na vertente norte/oeste do Parque Nacional enquanto que na vertente sul/leste e na planície existem espécies da Mata Atlântica. Provavelmente, no que é hoje a fronteira entre cerrado e caatinga, tínhamos a fronteira floresta amazônica / mata atlântica (GUIDON 2005). A descrição sedimentológica que apresentamos neste capítulo esta diretamente associada aos eventos de coluviação que foram analisados pela pesquisadora Janaina Santos (2007) no Vale da Serra Branca. Foram estudados, 4 afloramentos coluviais36 localizados nos seguintes sítios arqueológicos Toca do Vento (Cód. 26), Toca da Gamela (Cód. 802), Toca do Pica-pau (Cód. 570) e Toca Nova do Inharé, inseridos na meia encosta (Tabela I.1).

36

As amostras foram retiradas pela pesquisadora acima citada, e as datações, nestes casos, foram realizadas pelo método de LOE, Luminescência Opticamente Estimulada, no laboratório de Vidro e Datação da FATEC-SP, integradas ao projeto de pesquisa realizada pela pesquisadora acima citada (Doutoramento).

[70] Cristiane de Andrade Buco, 2012

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Estação coleta

de

Datações

Descrição Sedimentológica

Fonte

Toca do Vento (SC-01, 5m de profundidade) [3 amostras, somente a mais baixa teve sinal LOE]

135.000+/-16.400 BP Depósito arenoso de 5 m de espessura, onde ocorrem duas concentrações de fragmentos de arenito, seixos (5m) de quartzo, e fragmentos de carvão esparsos ou concentrados em fogueiras

SANTOS 2007: 78

Toca da Gamela (SC-86, 2,10m de profundidade) [2 amostras]

11.360 +/- 1.730 BP (-0,7m)

Depósito arenoso, base formada de fragmentos de arenito, seixos e blocos angulosos e sub-angulosos de arenitos e também seixos de quartzo

SANTOS 2007: 79

Toca do Picapau (SC-87, 4,4m de profundidade) [3 amostras]

11.150+/-1.900 BP (-0,6m)

Depósito coluvial arenoso com três níveis de fragmentos de arenito e fragmentos de carvão

SANTOS 2007: 80

Depósito coluvial arenoso com um nível de fragmentos de arenito e dois níveis descontínuos de fragmentos de carvão

SANTOS 2007: 81

Depósito maciço de areia muito fina com grânulos e seixos de quartzo e fragmentos de carvão dispersos por todo o depósito

SANTOS 2007: 82

12.200+/-1.700 BP (-1,7m)

28.460+/-5.000 BP (-2m) 29.250+/-4.950 BP (-4m)

Toca Nova do Inharé (SC-88, 5m de profundidade) [3 amostras, sendo que a primeira, com 90cm de profundidade não teve sinal LOE]

21.770+/-3.610 BP (-2,85m)

Trincheira na frente da Toca do Morcego (SC-21)

Sem sinal LOE

84.700+/-13.400 BP (-4,7m)

Tabela I.1 Síntese das datações sedimentológicas com descrição dos depósitos. Sítios arqueológicos da Serra Branca (baseado em SANTOS 2007: 78,79,80 e 81).

Considerando as margens de erro, essas datações permitem inferir três conjuntos cronológicos de coluviação para a região da Serra Branca. O primeiro, entre 135 e 84 mil anos, o segundo entre 29 e 21 mil anos, e o terceiro, entre 12 e 11 mil anos. Abrangendo assim idades do Pleistoceno Superior até a transição Pleistoceno-Holoceno Esses sedimentos são produtos do manto de intemperismo, gerado por desagregação física e química dos arenitos do Grupo Serra Grande, resultando em areia, seixos, blocos, calhaus e até matacões. Duas litologias foram identificadas, a primeira formada por areias, às vezes lamosa (diâmetro médio variando entre areia muito fina e areia fina), e a outra constituída por concentrações de fragmentos de arenito, com matriz

Arqueologia do Movimento [71]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

arenosa. Na Serra Branca, as encostas de morfologia côncava, foram recobertas, ao longo do tempo, por esses sedimentos (SANTOS 2007) [Fig. I.40].

Fig. I.40 Rampas de colúvios na Serra Branca, onde se pode notar a vegetação de caatinga (SANTOS 2007: 61, Fig. 20).

I. 1. 8. 4. – Cronologia Paleoambiental Os conhecimentos existentes sobre os paleoclimas quaternários, no lapso de tempo decorrido entre 50 e 13.000 anos A.P., infelizmente são escassos e fragmentários… Na América do Sul, uma forte invasão dos climas secos por ocasião dos estádios glaciários, e um retorno da tropicalidade ao sabor das ascensão geral do nível dos mares e do recuo das correntes frias e expansão das correntes quentes. Ao máximo do descenzo do nível geral dos mares correspondeu um máximo de expansão dos climas secos em condições ligeiramente mais frias ou menos quentes para latitudes intertropicais sulamericanas. Pouco se sabe das condições “transicionais” que marcaram os dois períodos de retorno da tropicalidade, com reexpansão e coalescência de matas, anteriormente postadas em refúgios de diferentes portes. A semi-aridificação de extensas porções de terras baixas inter-planálticas foi progressiva; o retorno a condições quentes e úmidas tendo comportado etapas complexas, envolvendo flutuações paleoecológicas efetivamente caleidoscópicas (AB’ SABER 1989: 13).

Baseado nos dados, recolhidos em mais de 30 anos de pesquisa na região do Parque Nacional Serra da Capivara, realizamos um quadro síntese (Tabela I.2) com as prinicipais informações sobre o Paleoambiente dessa área.

[72] Cristiane de Andrade Buco, 2012

CRONOLOGIA

Sítio arqueológico & Vestígio analisado

Atribuição cronológica (Datação) Amostra

Lagoa Grande, Brejo do Piauí De 137 anos BP ate os dias de Sedimento

Análise Polínica, Parasitológica & Paleofauna

Aumento de Mauritia flexuosa, ervas Há uma recuperação de ambiente

FONTE

SANTOS 2007

mais úmido,possivelmente

(norte do Parque Nacional Serra da Capivara)

Paleoambiente

relacionado com a paisagem atual hoje

aquáticas e algas

desta região

Sedimento

A Mauritia flexuosa estava praticamente ausente. Baixa concentração de pólen de plantas arbóreas e arbustivas

Clima mais seco

SANTOS 2007

Sedimento

Declínio de pólen de plantas

Clima mais seco (as espécies

SANTOS 2007

500 BP

Lagoa Grande, Brejo do Piauí De 950 a 137 anos BP (norte do Parque Nacional 1.000 BP 1.500 BP 2.000 BP 2.500 BP

Serra da Capivara)

3.000 BP

Lagoa Grande, Brejo do Piauí De 3.300 à 950 anos BP

arbóreas, em especial da espécie

(norte do Parque Nacional 3.500 BP 4.000 BP 4.500 BP 5.000 BP

Mauritia flexuosa.Táxons arbustivos

Serra da Capivara)

encontradas vivem em solos mal

com baixa concentração de Ludwigia. drenados e arenosos)

Lagoa Grande, Brejo do Piauí De 5.130 à 3.300 anos BP

Sedimento

Grande desenvolvimento de Mauritia Áreas pantanosas, permanentemente SANTOS 2007 flexuosa; proliferação de Ludwigia; ervas aquáticas e terrestres inundadas; ambiente pantanoso, abundantes com grande concentração de esporos de clima úmido Blechnum

Fósseis &

Presença de megafauna - Extinção

(norte do Parque Nacional Serra da Capivara) 5.500 BP

Toca do Serrote do Artur

6.890+/-60 BP

Clima mais úmido e outro tipo de vegetação que a atual, tendo o clima atual se instalado no período

6.000 BP 6.500 BP 7.000 BP

Sítio do Meio

7.411 BP a 6.669 BP

Carvão

tardia

coprólitos

Uma reocupação de áreas através do Vegetação de transição entre o processo de substituição da

posterior à 6 mil anos BP.

FAURE et al. 2009

apud GUIDON et al. 2002:107

CHAVES 1997,

Cerrado e a Caatinga. Clima menos

vegetação local, partindo anteriormente de uma vegetação

seco que o atual. Quadro ambiental

aberta para uma vegetação

mais úmido e arborizado que os dias

2002 apud MELO

relativamente homogênea e arbórea, que se manteve, pelo menos, até essa 7.500 BP 8.000 BP

Serrotes Calcários

8.490+/-120 BP

atuais , com refúgios florestais de

data. Presença de Trichuris sp

clima ameno

2007

Fauna Holocênica

Escavação continua para

Faure, Guerin &

esclarecimento de problemas paleoambientaisna Passagem do Toca do Boqueirão da Pedra

8.450 BP e 7.230 BP

coprólitos

Presença de: taxa da família

Pleistoceno para o Holoceno Clima mais frio e menos seco. Uma

Combretaceae (associada a períodos

vegetação típica do Cerrado-

de chuva); espécimes de climas humanos e de úmidos e de solos argilosos, como a

Parenti (1999) CHAVES 1994,

Cerradão, com momentos de transição para a Caatinga. Formações abertas e retomadas temporárias das

Apocynaceae (associada a espaços

vegetações do cerrado e do cerradão, arbóreos) e; espécimes como a Acácia presentes ainda hoje nos BREJOS 8.500 BP

Furada Toca do Boqueirão da Pedra

8.450 BP e 7.230 BP

animais coprólitos

e a Mimosa Verrucosa Presença de parasitos ( Trichuris

(vestígio de antigo periodo úmido) Quadro ambiental mais úmido e

2002 FERREIRA 1987

arborizado que os dias atuais, com

apud CHAVES

refúgios florestais de clima ameno Período mais úmido, áreas abertas

2002 PARENTI 2004,

com predominância de estrato

CHAVES et al .

trichiura e ancilostomídeos) junto humanos e de com espécimes até hoje utilizadas Furada Lagoa do Quari

animais 8.770+/- 55 BP à 5.425 +/-45

para fins terapéuticos Presença de fósseis da megafauna e, 65% de presença de espécimes arbóreas (Piptadenia moniliformis, Mimosa verrucosa, Arecaceae,

9.000 BP

Presença confirmada em

9.000 BP

arbóreo Bauhinia sp. ) Ovos de Trichuris (parasita associado Mudança climática entre 10.000 e

2008 ARAUJO et al.

a clima mais úmido que o atual)

8.000 BP

1996

Uma primeira análise sugeriu que se

Regime tropical úmido perdurou

Guidon et al.

coprólitos de pequenos roedores, Kerodon rupestris , imediações da Toca do Boqueirão do Sítio da Pedra Furada. (Atualmente esse verme não existe nesses roedores). 9.500 BP

Sementes carbonizadas em cova no sedimento a beira rio, típica de algumas tribos

10.000 BP

10.170 à 9.580 BP

trataria de um gênero da família das Leguminosas, ou o gênero Dioclea, talvez grandiflora, ou o gênero

indígenas.Toca da Ema do

Mucuna sp . que hoje somente existe

Sítio do Brás I.

na floresta tropical úmida

nesta região até datas tardias, havendo rios perenes e de grande débito até cerca de 8.000 atrás

2002d

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I.2 – AS DINÂMICAS HUMANAS Após 35 anos de pesquisa interdisciplinar na região, infere-se resultados que nos permitem avançar no conhecimento científico de diversas áreas. Os trabalhos realizados nesse período propiciaram a descoberta de 1158 sítios arqueológicos, dos quais 800 com arte rupestre (pinturas e gravuras). Sítios arqueológicos com distintos tipos de sepultamento, antigas aldeias e acampamentos indígenas, sítios a céu aberto caracterizados como oficinas líticas, sítios com distintos vestígios da cultura material do período histórico e restos de fauna, atual e antiga, também foram identificados e cadastrados.37 Nos últimos dez anos, realizaram-se prospecções arqueológicas em todo o Sudeste do Estado do Piauí, incluíndo as áreas do Parque Nacional Serra da Capivara, Parque Nacional Serra das Confusões e o Corredor Ecológico. Para compreender questões diretamente associadas à gestão deste território através dos tempos, inclusive sobre o povoamento americano, é necessário conhecer a maior parte dos dados referentes a um amplo território. Diferentes caminhos foram percorridos, para desbravar o sertão nordestino vindo à chegar na Toca do Sítio do Boqueirão da Pedra Furada (BPF). Faz-se necessário entender um pouco da nossa história para compreender como pensamos a Pré-história nesta região, esta inserida no território brasileiro e por consequência no grande território americano. Diferente do que acontece na Austrália com os aborígenas australianos, ou mesmo na África com os boschimanos, os habitantes do Brasil – os índios, milhares38 na época do descobrimento, hoje reduzidos a provavelmente menos de 10 %, não têm hoje o hábito de pintar e gravar nas rochas, o que denominamos Arte rupestre. Motivos geométricos semelhantes aos encontrados pintados nas paredes rochosas fazem parte do repertório visual, inclusive corporal (vestimentas, máscaras e pintura no corpo [Fig. I.41], de distintas tribos (GALLOIS 1992; MULLER 1992; TORAL 1992; VELTHEM 1992; VIDAL 1992) que podem ser comparados 37

Esses dados podem ser consultados nos Cadernos de Campo da Missão Franco-Brasileira (anos 70 e 80) e da FUMDHAM (final dos anos 80 até a atualidade), assim como, nas fichas de cadastro de campo da FUMDHAM e do IPHAN. As fichas de campo da FUMDHAM também contêm dados associados ao diagnóstico e ao estado de conservação da arte rupestre dos sítios arqueológicos. Esse material encontra-se em papel na sede da FUMDHAM, em São Raimundo Nonato (PI) e, parcialmente, em formato digital. O quantitativo dos sítios arqueológicos, apresentado nesta tese, está associado a Lista de Fevereiro de 2011 da FUMDHAM. 38

Cf. Nota de rodapé 39, p.76.

Arqueologia do Movimento [75]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

(MORALES 2002), havendo porém, uma grande distância temporal, evidenciada pela falta de “lembrança desse ato” por pelo menos 500 anos.

Fig. I.41 Índia Assurini com aplicação do desenho marcando o ventre, uma divisão vertical do corpo identifica a pintura feminina usada por Matuia. Motivo : kwasiarapara (MULLER 1992 :233, fig.2).

Recentemente há notícias de que há grupos que fazem arte rupestre, mas esta parece fruto da interligação (convergências e divergências) entre grupos culturais distintos, eles e nós, ou seja, os índios e o “homem civilizado”. No Brasil, por vezes, chama-se o período do contato, “choque” das diferenças culturais, entre os nativos desta terra e os que vem de fora, como Proto-história, período em que começamos a ter registro escrito sobre os indígenas mas sempre vindos de terceiros àquela cultura. São documentos provenientes da observação cuidadosa do contexto cultural, nos quais os hábitos são salientados, “aceitáveis ou não”, partindo do mais simples gesto à maneira de se vestir e, das interpretações do que se compreendiam das diferentes línguas faladas. Estima-se que seriam cinco milhões de índios no Brasil em 1.500 A.D. e hoje há 350 mil, antes seriam mais de mil tribos diferentes atualmente deve haver 215 tribos e, 53 grupos não contactados; um terço das tribos do Brasil tem menos de 200 individuos cada39, estando por isso abaixo do nível de stress social que gera tensões internas conducentes ou à estratificação ou à fissão social. 39

Informações obtidas da publicação “DESERDADOS. Os Ìndios do Brasil.” da Survival Internacional (www.survival-international.org) s/d. “No Brasil de hoje há duzentos e trinta mil índios, duzentos e vinte povos e cento e setenta línguas nativas, quando em 1500 havia, aproximadamente, cinco milhões de habitantes e trezentos e quarenta línguas” (GOMES 1988; RODRIGUES 1986 apud ALVIM 1993: 11).

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Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

No Brasil não existe um denominador comum para a periodização em préhistória, mas a tendência é a de se utilizar combinações tecno-geográficas. Tendência, em parte, influenciada por Annette-Laming Emperaire que contrária ao difusionismo e a utilização de terminologias que considerava duvidosas, propôs termos de significado cultural aos quais se pôde agregar uma atribuição geográfica e cronológica, como por exemplo: “Caçadores coletores da pedra lascada ou da pedra polida de tal região e de tal época”, ao invés de “estágio proto-arcaico da América do Sul”40. Seguindo uma orientação da “Escola Francesa”, a equipe da FUMDHAM definiu os grupos culturais da região do Parque Nacional Serra da Capivara priorizando a economia de subsistência, são os Povos Caçadores - coletores do Pleistoceno, os Povos Caçadores - coletores do Holoceno e os Agricultores-ceramistas. (GUIDON 1991b; MARANCA 1991a, 1991b).

I. 2. 1 – O POVOAMENTO AMERICANO Os sítios para os quais se reivindicam as mais antigas datas estariam – complicador adicional – antes a sul do que a norte do continente, contrariando a hipótese de uma descida em que a América do Sul teria sido povoada após a do Norte. Não há consenso sobre o assunto, no entanto na comunidade arqueológica (LYNCH, 1990). Mas, recentemente, uma linguista (NICHOLS, 1990 e 1992), com base no tempo médio de diferenciação de estoques linguísticos, fez suas próprias avaliações e afirmou um povoamento da América que ter-se-ia iniciado há 30 - 35 mil anos. Mais conservadora quanto a profundidade temporal é a estimativa de outro linguista, Greenberg (1987), que mantém os fatídicos 12 mil anos mas estabelece a existência de três grandes línguas colonizadoras que teriam entrado no continente em vagas sucessivas (URBAN, 1992). Tudo isto põe em causa a hipótese de uma migração única de população siberiana pelo interior da Beríngia. A possibilidade de outras fontes populacionais e de rotas alternativas se somando a do interior da Beríngia não está portanto descartada (CUNHA 1992: 11).

Hoje, infere-se que a entrada do Homo sapiens para o continente americano se fez em vagas que, saindo de diferentes lugares, seguiram diferentes caminhos em períodos distintos (ARAUJO et al. 2008; ARAUJO & FERREIRA 1996, 1997; BUSTAMANTE & FREITAS 2008; GUIDON 2008b; HUBBE et al. 2011; LAHR & SOUZA 2006; MONTENEGRO et al. 2006; MOORE & STORTO 2002; NEVES 2006; PARENTI et al. 1999; SANTOS F. & TARAZONA-SANTOS 2002).

40

MARTIN 1999: 161.

Arqueologia do Movimento [77]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Antes de apresentarmos a Toca do Boqueirão da Pedra Furada, o sítio arqueológico que nos anos 80 incitou na comunidade científica a polêmica do Povoamento Americano mais antigo (GUIDON & DELIBRIAS 1985, 1986), mostraremos algumas pesquisas paralelas e ao mesmo tempo co-relatas cujas evidencias arqueológicas associadas às distintas áreas do conhecimento científico estão permitindo confirmar a diversidade populacional pré-histórica e atual, assim como pensar e inferir, outras entradas no continente americano para além da teoria clássica do povoamento pela Beringia, como única passagem entre o Pleistoceno e o Holoceno. A pesquisa parasitológica nos indica que a infecção por Trichuris trichiura distribui-se tanto na América do Sul, quanto na América do Norte no período précolombiano (REINHARD et al. 1987; FERREIRA et al. 1980, 1983, 1989). A ancilostomose foi encontrada apenas na América do Sul, bem exemplificado pelos coprólitos do Sítio do Boqueirão da Pedra Furada, onde Ancilostoma duodenalis foi encontrado, analisado e datado em 7.230 +/- 80 BP (FERREIRA et al. 1987). Ambos não teriam mantido seu ciclo de transmissão sob temperaturas muito baixas, os ovos embrionados resistem apenas 20 dias a 0º C, mas só conseguem tornarse infectantes sob temperaturas superiores a 15º C (SKRJABIN et al. 197041), a infecção humana por ancilostomídeos transmite-se de hospedeiro à hospedeiro, com estágios larvares obrigatoriamente evoluindo no solo, sob condições específicas de temperatura e umidade que, em condições ideais, dá-se entre 25º a 30ºC (ARAUJO & FERREIRA 1996). …”Clovis first and only” hypothesis does not provide a convincing explanation for the presence of the hookworm in the Pre-columbian Americas (MONTENEGRO et al. 2006: 198).

Esses estudos, nos levam a indagar questões sobre, como e por onde essa infecção chegou até os ocupantes da região do Parque Nacional Serra da Capivara, dado o fato que esses parasitas não resistem às temperaturas frias, associadas à passagem pelo Estreito de Behring. Os dados da paleoparasitologia nos fazem pensar em contatos transmarítimos, não necessariamente de intensos, ou numerosos, movimentos migratórios, mas caminhos além das temperaturas frias entre Sibéria e Alasca, ficando evidente a 41

Apud ARAUJO & FERREIRA 1996: 109.

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Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

possibilidade de navegação existir há mais de 7.200 anos atrás42 (ARAUJO et al. 1988; ARAUJO & FERREIRA 1996; ARAUJO et al. 2006; MONTENEGRO et al. 2006). Pesquisa sobre a origem e difusão das plantas também servem para inferir a migração e contatos culturais daquelas populações humanas que as cultivaram no Brasil em épocas remotas. São os estudos genéticos (FREITAS 2001 & GOLOUBINOFF 1993) que indicam que na América existiram duas migrações distintas associada à propagação do milho. Há cerca de 5 mil anos, um grupo migratório teria saído do que hoje é o México levando o tipo mais simples de milho e se fixado na Cordilheira dos Andes e, 3 mil anos atrás, outra corrente teria saído da mesma região em direção as terras baixas da América do Sul, trazendo a variante mais complexa (FREITAS 2003)43. Outro caso relevante é a proteína Phaseolina da amostra de Phaseolus vulgaris (feijão), encontrada em Januária, atual estado de Minas Gerais, e datada do final do séc. XVII. A comparação genética (alelos), sugere que, essas populações possuíam uma relação ou influência de materiais cultivados, muito maior com amostras vindas da região da América Central e norte da América do Sul do que com amostras da região dos Andes Centrais, como Peru (BUSTAMANTE & FREITAS 2008). Na Serra da Capivara foram encontrados milho, feijão, amendoim e cabaça em contextos arqueológicos, por exemplo, na Toca do Gongo I foram datados relativamente, entre 1.600 e 1.200 BP, feijão e amendoim (MARTIN 1999). É evidente que a gestão do território tem que ser pensada em termos de distintas migrações, movimentos de ir e vir, não somente na área arqueológica estudada mas na grande área chamada América, pois somente com a visão do todo vamos conseguir compreender a dinâmica humana realizada pelos povos na Pré-história desde o Pleistoceno. São diferentes pesquisas, de distintas áreas, colaborando com a teoria das múltiplas entradas povoando o continente americano. Analisando elementos similares incluídos nos conhecimentos tanto da evolução biológica (morfologias cranianas, ancestralidade materna - DNA mitocondrial e,

42

A título de complementação da hipótese do homem pré-histórico saber navegar, o caso do Homo floresienses, descoberto na Indonésia, Ilha das Flores (JUNGERS et al. 2009) é um indicador dessa possibilidade do homem da pré-história saber navegar, a pelo menos 17 mil anos atrás. 43

Apud BUSTAMANTE & FREITAS 2008: 96.

Arqueologia do Movimento [79]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

ancestralidade paterna - cromossomo Y) como da evolução cultural (estudos linguísticos44 e arqueológicos), as teorias não são consensuais (SANTOS F. 2008). In conclusion, our results support previous studies (Stringer, 1992b, 2002; Neves et al., 2003; Grine et al., 2007, Harvati et al., 2007; Harvati, 2009), suggesting that the morphological differentiation that characterizes modern human groups occurred long after the initial expansion of Homo sapiens out of Africa. More importantly, our analyses favor the argument that this morphological differentiation occurred only after the first human expansion into the New World at the end of the Pleistocene (HUBBE et al. 2011: 451).

Estudos de antropologia física, com ênfase na morfologia craniana, associados aos dados arqueológicos, nos levam a crer que, houve duas entradas nas Américas de dois grupos distintos, um primeiro grupo, mais antigo com características africanas que teria desaparecido totalmente sem deixar descendentes e, outro grupo, com características físicas dos povos mongolóides, traços observados até hoje entre tribos indígenas do nosso continente, mais recente, entre 10 e 9 mil anos atrás, grupos mais adaptados ao frio da Sibéria (HUBBE et al. 2007, 2011; NEVES & HUBBE 2008). Recentemente, a morfologia de cinco crânios humanos oriundos da Serra da Capivara, Piauí, Brasil, datados do Holoceno Antigo e Tardio foram estudados numa perspectiva comparativa. O grupo formado por Coqueiros [Fig. I.42] e Paraguaio 1 mostra clara afinidade com australo-melanésios e africanos atuais; enquanto que o grupo formado por Caboclos, Gongo e Paraguaio 2 mostra grande afinidade morfológica com os asiáticos e índios americanos atuais. Na Toca do Paraguaio houve a presença dessas duas morfologias, o fato de terem sido encontrados em proximidade de contexto estratigráfico, datado de 8,5 e 8,8 Kyr BP, confirma uma ocupação conjunta de grupos distintos, de origem diversas (BERNARDO & NEVES 2009). Esses pesquisadores propuseram uma abordagem teórica focada nesses dois grupos, o primeiro oriundo de uma entrada pleistocênica e o outro de uma entrada holocênica. Analisaram um conjunto de 48 esqueletos, sendo 32 da América do Sul, 2 44

Foram definidos, por Greenberg três grupos lingüísticos de nativos americanos, os Aleutas-Esquimós, os Na-Denes e os Ameríndios (GREENBERG et al., 1986 apud SANTOS F. & TARAZONA-SANTOS 2002: 46) A classificação lingüística das línguas nativas das Américas que Greenberg apresenta é ousada principalmente no que se refere ao terceiro grupo, o ameríndio, pois contém todas as outras línguas do hemisfério, agrupadas em somente onze grupos, dos quais sete estão localizados na América do Sul (Macro-Gê, Macro-Panoan, Macro-Carib, Equatorial, MacroTucanoan, Andean e Chibchan-Paezan).Segundo ele, o povo que falava a língua ancestral ao agrupamento ameríndio entrou no Novo Mundo antes dos povos que falavam línguas dos outros dois agrupamentos, que chegaram mais recentemente (MOORE & STORTO 2002: 86).

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Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

da Ásia, 14 da Europa e 2 mil atuais, inferindo que os traços físicos do homem que abandonou a África e, 40 mil anos mais tarde desbravou as Américas, eram praticamente os mesmos. De acordo com essa visão a conquista do mundo foi um fenômeno tão rápido que o Homo sapiens teria usado rotas costeiras, menos difíceis de serem vencidas, não dando tempo para ele desenvolver, de imediato, adaptações físicas aos nossos ambientes (HUBBE et al. 2011).

Fig. I.42 Crânio encontrado na Toca dos Coqueiros, Parque Nacional Serra da Capivara.

Um outro grupo de pesquisadores, analisando um conjunto de 10 mil informações genéticas e 576 crânios de Norte e Sul nas Américas chegaram a conclusão que toda a diversidade está presente numa única entrada no continente americano: a mais antiga, há 18 mil anos atrás. A genética mostra que há mutações que só estão presentes na América, e não nos povos asiáticos, exemplo da mutação presente no cromossomo Y, denominada DYS 199-T e que define o haplogrupo chamado 1845. Infere-se que, saindo da Ásia teriam parado, entre 26 e 18 mil anos antes do presente, na Beringia, uma escala obrigatória que permitiu produzir mutações genéticas específicas e que, depois desceram em vagas povoando todo o continente americano (GONZÁLEZJOSÉ et al. 2008; SANTOS F. 2008). Mas afinal, qual a importância do Parque Nacional Serra da Capivara nas questões do povoamento americano? A arte rupestre também pode ser um elemento importante para o conhecimento das migrações pré-históricas? Essa arte pode colaborar com as abordagens multidisciplinares associadas as questões do povoamento? 45

As relações filogenéticas dos haplogrupos 18, 10 e 23, presentes nos nativos americanos, são observadas nas mutações que os definem e identificadas nos ramos. O haplogrupo 18 é definido pela presença da mutação C-T no loco DYS199 e é específico de nativos americanos. O haplogrupo 10 é o haplogrupo ancestral do 18, ocorrendo também, em siberianos (SANTOS et al. 1999). O haplogrupo 23 é definido pela mutação no loco RPS4Y, que é distante, filogeneticamente, de 10 e 18 e se encontra em baixas freqüências nos nativos americanos, mas em alta freqüência na Mongólia (KARAFET et al. 1999) (SANTOS F. & TARAZONA-SANTOS 2002: 45).

Arqueologia do Movimento [81]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I.2. 1. 1 – Um estudo de caso: O Boqueirão da Pedra Furada (BPF) e seu entorno The first escavation campaign at the site of Boqueirão of Pedra Furada was undertaken to date the rupestral art which is abundant in the region, and the first two dates obtained were from 7,640 +/- 140 yr (GIF-4928) and 8,050 +/- 170 yr BP (GIF-4625) (GUIDON & DELIBRIAS 1986: 769).

O sítio Boqueirão da Pedra Furada, Parque Nacional Serra da Capivara, escavado no período de 1978 até 1988 [Fig. I.43], forneceu uma coluna cronoestratigráfica, composta por 47 datações de carvões (C14) entre 50.000 anos BP. (GIF 9019) e 6.150 anos BP (GIF 8108) (FELICE 2002: 147).

Fig. I.43 Vista geral da escavação do Sítio arqueológico Boqueirão da Pedra Furada (anos 80).

A ocupação humana esta associada a presença de fogueiras estruturadas e líticos dispersos nas diversas camadas arqueológicas. (GUIDON 1984, 1985; GUIDON & DELIBRIAS 1985, 198646; GUIDON & ARNAUD 1991; PARENTI 1993, 2001; FELICE 2002). Baseado nesses vestígios da cultura material foram definidas fases culturais [Fig. I.44] que são utilizadas como referência para os atuais estudos dos demais sítios arqueológicos que possuem tecnologia semelhante, um legado cultural distribuídos em um mesmo espaço-funcional - uma área arqueológica. A fase Pedra Furada, subdividida em 4 estágios, corresponde cronológicamente aos níveis pleistocênicos, basicamente uma indústria lítica sobre seixos; de quartzo e quartizito, com técnica unifacial e pouco retocadas; a fase Serra Talhada, também subdividida em 4 estágios, correspondente ao período de transição e níveis holocênicos 46

Neste primeiro artigo são mostrados os resultados da primeira fase da pesquisa na qual se apresenta para a comunidade científica (em inglês) a possibilidade da presença humana faz 32 mil anos, surge a polêmica da ocupação Pleistocênica no Brasil e por consequência a problemática de um povoamento americano para além da teoria “clássica”, a passagem pelo estreito de Behring como única via de acesso as Américas.

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Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

antigo e médio, mantendo-se a indústria sobre seixos porém há o acréscimo de peças mais elaboradas, tamanhos médio e pequeno, executadas em quartzito e matéria prima silicificada, destacando os plano-convexos, principalmente as peças conhecidas como “lesmas”. E por úlitmo, uma fase Agreste, também correspondente ao nível holocênico médio, havendo uma predominância de peças de tamanho médio e grande, uma indústria lítica sobre seixos mais “tosca”, formada por peças simples com pouca elaboração técnica (GUIDON & DELIBRIAS 1986; GUIDON & ARNAUD 1991; PARENTI 1993, 2001).

Fig.I.44 Quadro composto com as datas em anos antes do presente, com as camadas estratigráficas, fases culturais e presença de arte rupestre (GUIDON & ARNAUD, 1991: 171, tabela 1).

Esses diferentes grupos que ocuparam o Sítio Boqueirão da Pedra Furada baseiam-se em uma economia de caça e coleta, sendo considerados caçadores-coletores (caçadores-recoletores). Arqueologia do Movimento [83]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Com relação aos agricultores ceramistas, é possível observar vestígios da cultura material, como machados, machadinhas, potes de cerâmica, em abrigos pintados e nas aldeias indígenas (cf. Cap. I.2. 3). Porém, associar diretamente com as fases culturais, não é tarefa simples e exigiria um estudo mais aprofundado dos contextos arqueológicos e das relações intra e extra sítio. Não foram encontradas peças (fragmentos de cerâmica e machados polidos) que caracterizem esse tipo de economia no sítio Boqueirão da Pedra Furada. Porém, próximo a ele, na Toca do Sítio do Meio foi encontrada uma machadinha de pedra polida [Fig. I.45], em contexto estratigráfico datado de 9.200 +/60 BP (BETA 65856), considerada, até então, o machado de pedra polida mais antigo das Américas (GUIDON & PESSIS 1993).

Fig. I.45 Machado polido verde-cinza granodiorite, Sítio do Meio (GUIDON & PESSIS, 1993: 79, fig. 2).

As pesquisas multidisciplinares existentes na região nos permitem inferir que houve muitas ocupações neste vasto território, a região do Parque Nacional Serra da Capivara, as de caçadores-coletores do holoceno são as mais evidentes, mas há também presença de caçadores-coletores do pleistoceno e agricultores-ceramistas (cf. Cap. I.2. 3). É muito provavel que haja mais sítios arqueológicos a céu aberto (acampamentos indígenas e aldeias) que precisam ser descobertos, para compreendermos melhor a dinâmica de ocupação associada aos agricultores ceramistas. A questão que se levanta é se, pelo fato de haver tal registro em um determinado sítio arqueológico, podemos confirmar uma co-existência temporal, uma relação entre os ceramistas e os autores da arte rupestre. As datações associadas aos vestígios arqueológicos e as camadas de ocupação dos ultimos 35 anos de pesquisa confirma uma grande concentração vestigial

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Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

no Holoceno antigo e médio, o que nos faz pensar e inferir que os artistas pré-históricos estão prioritariamente associados com esse período (cf. Cap. I.2. 2. 1). Apresentaremos portanto uma série de dados associados a esses caçadorescoletores que ocuparam a região da Serra da Capivara desde o Pleistoceno, deixando inclusive suas marcas pictóricas. Novos dados, novas análises, novas tecnologias, com o tempo, permitirão traçar um melhor quadro sobre o povoamento americano associado ao conjunto de vestígios da cultura material, por enquanto evidenciamos os dados que até o presente momento são importantes para compreender o porque optamos em estudar arte rupestre pela sua diversidade ao invés de sua especificidade. Para finalizar a discussão sobre o Povoamento Americano, salientamos que sempre houve polêmica sobre o assunto (LYNCH 1990; BAHN 1993; LIMA 2006), independente da aceitação de uma ocupação pleistocênica, o fato é que o maior questionamento está sobre a indústria lítica que não corresponde a uma indústria semelhante ao conhecido na Europa para esse mesmo período, duvidou-se inclusive da veracidade das análises, havendo quem, partindo da hipótese de que as pedras tinham sido lascadas naturalmente, provavelmente produto de quedas da parte de cima do abrigo (geofato), e que os fogos seriam naturais, divulgou-os na comunidade científica como verdades, independente de conhecer, ou não, em detalhes o contexto do sítio arqueológico Boqueirão da Pedra Furada e a pesquisa intensa realizada por mais de 10 anos consecutivos (GUIDON 2008a; GUIDON & PESSIS 1996; GUIDON et al. 1996, 2002; MELTZER et al. 1994, 1996; SANTOS G.et al.2003). As observações levantadas sobre a qualidade e a natureza das peças líticas que, segundo alguns colegas, seriam simplesmente o resultado de choques e fraturas naturais, foram também avaliadas. Considerando que os resultados, das análises feitas pelos pesquisadores europeus da equipe haviam sido questionados, o Prof. Robson Bonnichsen, da Texas A & M University, realizou uma série de análises das mais antigas peças líticas da Pedra Furada utilizando o microscópio eletrônico. Em dezembro de 2004 enviou seu primeiro relatório, com as fotografias e suas conclusões. Tinha também, programado escavar o setor do sítio Pedra Furada ainda intocado e reservado para fornecer novos dados para a procura de eventuais respostas. O projeto previsto para janeiro de 2005, foi truncado como conseqüência de seu falecimento (GUIDON 2008: 381).

Arqueologia do Movimento [85]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

Como citado anteriormente, 4 peças líticas, dos níveis mais baixos do sítio arqueológico Boqueirão da Pedra Furada, foram analisadas através da microscopia eletrônica, sendo possivel observar detalhes do lascamento antrópico inclusive as marcas de uso, difíceis de ver a olho nú.47 [Fig. I.46]. Comprova-se assim que essas peças foram manipuladas pelo homem da Pré-história.

Figure 1: Dorsal view of a flaked cobble.

Figure 2: Ventral side of flaked cobble. The colored boxes enclose magnified areas of the tool’s edge in the following imagens.

Figure 3: Polished and abraded surfaces with linear indicators (100 x) from the red boxed area in Figure 2.

Figure 4: Close-up (200 x) of the central area of Figure 3.

Figure 5: The lower right portion of Figure 4 at 500 x. Note the linear tracks of plastically reformed silica indicating tool movement in two directions.

Figure 6: The blue boxed area in Figure 2 shown here at 200 x. Note linear tracks indicating tool movement in two directions.

Fig. I.46 Fotos acompanhadas de descrição de uma das peças líticas, etiqueta18352 (Nivel 12). Toca do Boqueirão da Pedra Furada, por Robson BONNICHSEN (GUIDON 2008: 398, 399, 400).

47

Essas peças analisadas encontram-se em exposição no Museu do Homem Americano, São Raimundo Nonato (PI).

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Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

É importante salientar que no II Simpósio sobre o Povoamento Americano, realizado em dezembro de 2006, 13 anos após o primeiro, também em São Raimundo Nonato, houve consenso sobre a datação radiocarbônica de 58 mil anos48. Passou-se então para uma nova fase da pesquisa nesta região, encontrar mais elementos culturais, biológicos e naturais que juntos possam compôr um conjunto de informações irrefutáveis sobre a ocupação humana, das diferentes imigrações e migrações que possam ter acontecido neste território, o sudeste do Estado do Piauí. Para refutar a hipótese de que os blocos e seixos tinham sido aquecidos em fogos naturais foram realizadas sondagens, descendo a vertente desde o sítio até o fundo do vale. Caso tratasse de um incêndio florestal natural deveria haver carvões em toda a área, mas somente em alguns locais é que foram encontrados carvões e material lítico. Uma datação de 18.660 associada a ocupação humana foi obtida (FELICE 2000, 2002). Ossos humanos e dentes encontrados nas tocas da Janela da Barra do Antonião (GUERIN et al. 1999; PEYRE 1993), do Garrincho (FELICE 2007; GUIDON et al. 2000; PEYRE et al. 1998, 2009), dos Coqueiros (GUIDON et al. 1998; HUBBE et al. 2007; LESSA & GUIDON 2002; RUSSELL NELSON 2005) e do Elias (GUIDON et al. 2009b), foram datados entre 15.000 e 9.000 anos BP. Essas evidências humanas estão entre as mais antigas das Américas, conhecidas até hoje. Dado tantas evidências multifacetadas por diferentes áreas do conhecimento científico trabalhamos com a hipótese de distintos grupos terem povoado a América em vagas, que provavelmente iniciou-se no Pleistoceno Superior. Qual grupo ou quais grupos, chegaram a região da Serra Branca é uma outra questão a ser respondida com tempo e muita pesquisa. Nesta tese concluímos que pelo menos 4 grupos estiveram na região da Serra Branca desde a transição PleistocenoHoloceno manifestando-se artísticamente nas paredes dos 200 abrigos estudados (cf. Cap. VI).

48 Nesta última década novos métodos de datação foram aplicados, uma série de datações entre 30 e 100 ka obtidas pela técnica da termo luminescência, aplicada aos seixos e blocos rochosos queimados encontrados na camada mais baixa do Sítio Boqueirão da Pedra Furada (VALLADAS et.al. 2003), fez além de reavivar a polêmica do povoamento americano incitou o questionamento aos métodos de datação utilizados para confirmar essa presença humana pleistocênica. Por não ser a temática desta nossa tese, as datações pleistocênicas são apenas citadas e não discutidas.

Arqueologia do Movimento [87]

Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

I. 2. 1 1 – A antiguidade da Arte Rupestre ...Dans une couche datée de 32.000 ans un morceau de paroi portait des taches d’ocre rouge mais ces vestiges, très pâles et sans forme définie, ne peuvent pas constituer la preuve absolue que cette pratique était déjà courante, mais sont le fondement de l’hypothèse de que l’art était une très ancienne pratique dans l’aire archéologique de São Raimundo Nonato. Par contre, un fragment portant deux droites parallèles, en ocre rouge, a été trouvé dans un foyer daté de 17 000 ans BP. A partir de 12 000, quand apparaissent les premiers panneaux qui peuvent être lus, l’art est très répandu et son degré de développement conforte l’hypothèse selon laquelle l’art a des racines très anciennes dans la région (GUIDON 1995: 121).

Como observado na citação, o sítio arqueológico Boqueirão da Pedra Furada trouxe evidencias da existência de uma arte rupestre antiga, ocres remontam a existência de uma prática pictórica pleistocênica, assim como, duas retas paralelas pintadas na cor vermelha em um fragmento de parede, encontrado em uma camada arqueológica, datada de 17.000 +/- 400 BP (GIF 5397). Essa antiguidade é inclusive, citada internacionalmente (BAHN 1998)49. Estudos de arqueoquímica também colaboram com dados para a compreensão dos pigmentos e sua antiguidade. Na década de 90 foram realizadas análises em pigmentos, encontrados em camadas que puderam ser datadas nesse sítio (20 amostras) e na Toca do Perna I (8 amostras). A confrontação dos resultados dessas análises, quando comparados com os dados físico-químicos dos pigmentos selecionados das próprias pinturas e das jazidas naturais (7 amostras), nos deram informações importantes para a compreensão do processo de realização da arte rupestre. (LAGE 1996) Para apresentarmos as evidências associadas aos pigmentos que atesta uma arte desde o Pleistoceno faz-se necessário esclarecer alguns pontos. Segundo Ballet (1976) as relações de identidade e não identidade entre dois pigmentos, somente existe se houver a mesma composição físico-química dos elementos maiores e dos elementos traços. Amostras de cores diferentes (vermelho e amarelo) podem ser idênticas, a diferença pode estar apenas na maneira de preparar a tinta, a vermelha pode ter sofrido um aquecimento superior a 250º C, ou uma pode ter sido mais exposta ao sol do que outra. Os pigmentos pré-históricos estudados na Serra da Capivara, quando observados 49

Recentemente publicou-se a descoberta de uma gravura antropomórfica enterrada associada a uma antiguidade de pelo menos 10.500 anos atrás na Lapa do Santo, zona cárstica de Lagoa Santa. É considerada a mais antiga gravura do Novo Mundo (NEVES et al. 2012).

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Capítulo I / O Território e as Dinâmicas Humanas

na lupa binocular apresentavam uma camada de argila homogênea sem cristais de quartzo ou com minúsculos cristais de quartzo (
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