Cá e Acolá: experiências e debates multiculturais

June 7, 2017 | Autor: Gledson de Oliveira | Categoria: Multiculturalism, African Diaspora Studies, Luso-Afro-Brazilian Studies
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Presidente da República Dilma Vana Rousseff Ministro da Educação Aloizio Mercadante Universidade Federal do Ceará Reitor Prof. Jesualdo Pereira Farias Vice-Reitor Prof. Henry Campos Conselho Editorial Presidente Prof. Antônio Cláudio Lima Guimarães Conselheiros Profa Adelaide Maria Gonçalves Pereira Profa Ângela Maria Mota Rossas de Gutiérrez Prof. Gil de Aquino Farias Prof. Italo Gurgel Prof. José Edmar da Silva Ribeiro Diretor da Faculdade de Educação Maria Isabel Filgueiras Lima Ciasca Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação B ­ rasileira João Batista de Albuquerque Figueiredo Chefe do Departamento de Fundamentos da Educação Adriana Eufrásio Braga Sobral Série Diálogos Intempestivos Coordenação Editorial José Gerardo Vasconcelos (Editor-Chefe) Kelma Socorro Alves Lopes de Matos Wagner Bandeira Andriola

Conselho Editorial Dra Ana Maria Iório Dias (UFC) Dra Ângela Arruda (UFRJ) Dra Ângela T. Sousa (UFC) Dr. Antonio Germano M. Junior (UECE) Dra Antônia Dilamar Araújo (UECE) Dr. Antonio Paulino de Sousa (UFMA) Dra Carla Viana Coscarelli (UFMG) Dra Cellina Rodrigues Muniz (UFRN) Dra Dora Leal Rosa (UFBA) Dra Eliane dos S. Cavalleiro (UNB) Dr. Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Dr. Emanuel Luís Roque Soares (UFRB) Dr. Enéas Arrais Neto (UFC) Dra Francimar Duarte Arruda (UFF) Dr. Hermínio Borges Neto (UFC) Dra Ilma Vieira do Nascimento (UFMA) Dra Jaileila Menezes (UFPE) Dr. Jorge Carvalho (UFS) Dr. José Aires de Castro Filho (UFC) Dr. José Gerardo Vasconcelos (UFC) Dr. José Levi Furtado Sampaio (UFC) Dr. Juarez Dayrell (UFMG) Dr. Júlio Cesar R. de Araújo (UFC)

Dr. Justino de Sousa Júnior (UFC) Dra Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (UFC) Dra Lia Machado Fiuza Fialho (UECE) Dra Luciana Lobo (UFC) Dra Maria de Fátima V. da Costa (UFC) Dra Maria do Carmo Alves do Bomfim (UFPI) Dra Maria Izabel Pedrosa (UFPE) Dra Maria Juraci Maia Cavalcante (UFC) Dra Maria Nobre Damasceno (UFC) Dra Marly Amarilha (UFRN) Dra Marta Araújo (UFRN) Dr. Messias Holanda Dieb (UERN) Dr. Nelson Barros da Costa (UFC) Dr. Ozir Tesser (UFC) Dr. Paulo Sérgio Tumolo (UFSC) Dra Raquel S. Gonçalves (UFMT) Dr. Raimundo Elmo de Paula V. Júnior (UECE) Dra Sandra H. Petit (UFC) Dra Shara Jane Holanda Costa Adad (UFPI) Dra Silvia Roberta da M. Rocha (UFCG) Dra Valeska Fortes de Oliveira (UFSM) Dra Veriana de Fátima R. Colaço (UFC) Dr. Wagner Bandeira Andriola (UFC)

Gledson Ribeiro de Oliveira Jeannette Filomeno Pouchain Ramos Bruno Okoudowa Organizadores

ALINE NEVES RODRIGUES ALVES BAS´ILELE MALOMALO BRUNO OKOUDOWA DENISE ROCHA FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO FAUSTO ANTONIO GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO IVAN MAIA DE MELLO IZABEL CRISTINA DOS SANTOS TEIXEIRA JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS JOÃO B. A. FIGUEIREDO JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS LUÍS TOMÁS DOMINGOS NILMA LINO GOMES RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE RODRIGO ORDINE SURA SUBUHANA VERA RODRIGUES

Fortaleza 2013

Cá e Acolá: Experiências e Debates Multiculturais © 2013 Gledson Ribeiro de Oliveira, Jeannette Filomeno Pouchain Ramos e Bruno Okoudowa (Organizadores) Impresso no Brasil / Printed in Brazil Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Edições UFC Av. da Universidade, 2932, Benfica, Fortaleza-Ceará CEP: 60020-181 – Livraria: (85) 3366.7439. Diretoria: (85) 3366.7766. Administração: Fone/Fax (85) 3366.7499 Site: www.editora.ufc.br – E-mail: [email protected] Faculdade de Educação Rua Waldery Uchoa, No 1, Benfica – CEP: 60020-110 Telefones: (85) 3366.7663/3366.7665/3366.7667 – Fax: (85) 3366.7666 Distribuição: Fone: (85) 3214.5129 – E-mail: [email protected] Normalização Bibliográfica Perpétua Socorro Tavares Guimarães Projeto Gráfico e Capa Carlos Alberto A. Dantas ([email protected]) Revisão de Texto Leonora Vale de Albuquerque

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará – Edições UFC

Cá e acolá: experiências e debates multiculturais / Gledson Ribeiro de Oliveira, Jeannette Filomeno Pouchain Ramos e Bruno Okoudowa [organizadores] et al ... – Fortaleza: Edições UFC, 2013.

339p. : il. Isbn: 978-85-7282-607-5

1. Educação multicultural  2. Multiculturalismo – ­Brasil  3. Educação pós-colonial  4. Políticas afirmativas

CDD: 370.5

SOBRE OS AUTORES Aline Neves Rodrigues Alves – Mestranda em Educação pela Faculdade de Educação (FaE/UFMG). Graduada em Geografia pelo Instituto de Geociências – IGC/UFMG. Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Ações Afirmativas ­(NERA-CNPQ). E-mail: [email protected] Bas´Ilele Malomalo – Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro do Grupo de Pesquisa ORITÁ: Espaços, Identidades, Memórias e Pensamento Complexo (UNILAB). Pesquisador do NUPE, Núcleo Negra da UNESP para Pesquisa e Extensão e do Centro de Estudo de Línguas e Culturas Africanas e da Diáspora Negra. E-mail: [email protected] Bruno Okoudowa – Doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa Estudos de Línguas Africanas (GELA-USP), Oritas. Desenvolvimento e Cooperação Internacional do CNPQ. Coordenador do Projeto de Extensão: La francophonie à l’Unilab. E-mail: [email protected] Denise Rocha – Doutora em Literatura e Vida Social e Graduação em Letras pela UNESP, campus de Assis (São Paulo). Professora Visitante do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB. Bacharelado em História na Ruprecht-KarlsUniversität Heidelberg (Alemanha). Contato: [email protected] Fábio Baqueiro Figueiredo – Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Adjun-

to do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro do Grupo de Pesquisa África: história e identidades (UFBA). Contato:  E-mail: [email protected] Carlindo Fausto Antonio (Nome: literário Fausto Antonio) – Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB; membro do NEAB- Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros e atua, no âmbito da UNILAB, na linha de pesquisa”África no Brasil: produção e circulação de saberes”. E-mail: [email protected] Gledson Ribeiro de Oliveira – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB, vice-coordenador do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos de Religião, Cultura e Política (UFC) e membro do Grupo de Pesquisa História, Literatura e Cultura dos Espaços Lusófonos (UNILAB). E-mail: [email protected] Isaac Bruno Oliveira Araújo – Discente do curso do Bacharelado em Humanidades da UNILAB. Bolsista de BICT-FUNCAP. E-mail: [email protected] Ivan Maia de Mello – Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (2012). Professor Adjunto de Filosofia do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB. Coordenador de Arte e Cultura da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa Filosofia e Linguagens Artísticas Modernas e Contemporâneas (UNILAB), Spinoza e Nietzsche (UFRJ), Epistemologia do educar e práticas Pedagógicas (UFBA). E-mail: [email protected]

Izabel Cristina dos Santos Teixeira – Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB. Projeto de Pesquisa (CNPq-UNILAB): Sustentabilidade e Meio Ambiente: Representações na Literatura Moçambicana Contemporânea. E-mail: [email protected]. Jeannette Filomeno Pouchain Ramos – Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora Visitante do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB. E-mails:[email protected] [email protected] João B. A. Figueiredo – Doutor em Ciências (Ecologia) pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pós-Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor Associado da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mails: [email protected]; [email protected] José Antônio Souza de Deus – Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Associado da Graduação e Pós-Graduação do Instituto de Geociências da UFMG. Integrante do Laboratório de Geografia Agrária e Agricultura Familiar – Instituto de Geociências – IGC/UFMG. E-mail: [email protected] Luís Tomás Domingos – Doutor em Anthropologie et Sociologie du Politique. – Université de Paris VIII- França. Professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa Políticas Públicas, Diversidade Cultural e Inclusão Social (UNILAB), Baobah –Grupo de pesquisa em Educação, Religião e Laicidade (UFPB), Cotidiano, cidadania e educação (UEPB). E-mail: [email protected].

Nilma Lino Gomes – Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e pós-doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra; Reitora Pró-Tempore da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Professora do Programa de Pós-Graduação Conhecimento e Inclusão Social da FAE/UFMG. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Étnico-Raciais e Ações Afirmativas (NERA/CNPQ). E-mail: [email protected] Ramon Souza Capelle de Andrade – Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa Guerra e Justiça (UNILAB), CLE – Auto-organização (UNICAMP), Acadêmico de Estudos Cognitivos (UNESP), Lógica e Epistemologia (UNICAMP). E-mail: [email protected] Rodrigo Ordine – Doutor em Letras (Estudos de Literatura) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa  ORITÁ: Espaços, Identidades, Memórias e Pensamento Complexo (UNILAB) e Literatura, Política e Cultura: as relações entre Portugal, Brasil e África (PUC-Rio).  E-mail: [email protected] Sura Subuhana – Discente do curso de Licenciatura em Letras da UNILAB. Bolsista de PIBIC- UNILAB. E-mail: [email protected] Vera Rodrigues – Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa Oritá: espaços, identidades, memória e pensamento complexo (UNILAB), Guerra e Justiça (UNILAB). Ex-Bolsista International Fellowship Program Ford Fundation. E-mail: [email protected]

SUMÁRIO DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA Gledson Ribeiro de Oliveira Jeannette Filomeno Pouchain Ramos Bruno Okoudowa........................................................................13

1 Colonização e Descolonização do Saber COMUNIDADES QUILOMBOLAS: UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS Aline Neves Rodrigues Alves José Antônio Souza de Deus Nilma Lino Gomes......................................................................27 DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE Luís Tomás Domingos............................................................... 58 A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890): SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? Jeannette Filomeno Pouchain Ramos....................................... 87 João B. A. Figueiredo................................................................. 87

2 Religião, Política e Igualdade Racial ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS Gledson Ribeiro de Oliveira Isaac Bruno Oliveira Araújo.................................................... 115

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA: UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA Bas´Ilele Malomalo..................................................................134 BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”? DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL. Vera Rodrigues.........................................................................158 VOZES DA ÁFRICA — CONTEÚDOS E CONTINENTES: RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS Fábio Baqueiro Figueiredo.......................................................178

3 Literatura, Língua e Filosofia MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO Rodrigo Ordine........................................................................ 205 O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL: O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE Izabel Cristina dos Santos Teixeira Sura Subuhana......................................................................... 224 UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) Denise Rocha............................................................................ 242 OS RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS NO CONTO “QUANDO O MALANDRO VACILA”, DE MÁRCIO BARBOSA Fausto Antonio..........................................................................272

OS DESAFIOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA OS ALUNOS DE PAÍSES LUSÓFONOS DOS CONTINENTES AFRICANO E ASIÁTICO NA UNILAB: COMPREENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DO BRASIL Bruno Okoudowa..................................................................... 283 UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA Ivan Maia de Mello.................................................................. 295 TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL: UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO Ramon Souza Capelle de Andrade...........................................310

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA Gledson Ribeiro de Oliveira Jeannette Filomeno Pouchain Ramos Bruno Okoudowa Preciso ser um outro para ser eu mesmo Sou grão de rocha Sou o vento que a desgasta Sou pólen sem insecto Sou areia sustentando o sexo das árvores Existo onde me desconheço aguardando pelo meu passado ansiando a esperança do futuro No mundo que combato morro no mundo por que luto nasço (Mia Couto, 1977).

Na “modernidade tardia”, as informações, mercadorias, símbolos, signos, imagens e pessoas deslocam-se em fluxos globais sem precedentes formando uma economia-mundo que potencializa o processo de compressão espaço-tempo, a formação de um sistema interestatal de controle, a acumulação por meio da financeirização econômica e entretece uma rede de interdependência sociocultural pela qual são intercambiados etnias, línguas, tradições culturais e religiões. Como parte de variados sistemas mundiais de interação entre sociedades e Estados que, nem sempre, são harmoniosas ou simétricas, porque ocidentalizada e pautada por trocas mercantis, os encontros socioculturais decorrentes dessas interações estimulam a desterritorializações e bricolagens culturais para além das fronteiras nacionais.

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O deslocamento ou dissolução dessas fronteiras nacionais através de diásporas complexas tem como uma de suas expressões flagrantes os fluxos migratórios globais pelos quais pessoas e grupos passam de uma comunidade de pertencimento para outro lugar, sem começo nem fim (IANNI, 1999; HALL, 2011). Esse movimento de idas e vindas nem sempre se materializou a partir da vontade subjetiva, mas, muitas vezes do contexto histórico-social, podendo ser compulsória, como foi o caso do tráfico de negros africanos para a América, Europa e Ásia e, como ainda hoje, no caso do tráfico de pessoas e órgãos. Stuart Hall (2011), que cresceu na Jamaica e vive na Inglaterra, tem contribuído significativamente para a compreensão desse fenômeno. Para Hall, o estudo da diáspora deve ser relacional e não estático, como também deve fomentar uma análise tanto de aspectos sociais como simbólicos, ou seja, em sua complexidade e totalidade. Dessa forma, ele rejeita o pensar reducionista que trata apenas do que é visível aos olhos. Nessa perspectiva, não há uma identidade cultural. As identidades culturais são múltiplas, pois, na modernidade, as comunidades são transnacionais (2011, p.26). A concepção fechada de tribo, de diáspora e de pátria sugere uma identidade cultural “com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical que se chama ‘tradição’”. (HALL, 2011, p.29). A identidade é uma questão histórica, portanto, não está restrita a um movimento de continuidade, mas também de rupturas, como é o caso da diáspora africana. Tanto os aspectos “autênticos da origem”, como genético, hereditário e do Eu interior (p.28), bem como os diferentes elementos culturais africanos, asiáticos e europeu, em fusão na fornalha colonial, resultaram em cul-

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turas híbridas, múltiplas. Pode-se afirmar que, nas zonas de contato coloniais, a copresença espacial e temporal de sujeitos antes isolados geográfica e historicamente forjaram e forjam, na dialética do hibridismo cultural, uma identidade-como-diferença, isto é, um processo em que a diferenciação cultural tem como ponto de partida não o que é idêntico no interior do grupo, mas a constituição de uma operação em que se nega, negocia-se e se deslocam as fronteiras entre o Eu e o Outro. Tratando dos paradigmas dos estudos culturais, Hall (2011, p. 123) sintetiza que o que importa são as rupturas significativas “em que as velhas correntes de pensamento são rompidas, velhas constelações deslocadas, e elementos novos e velhos são reagrupados ao redor de uma nova gama de premissas e temas”. Não necessariamente é o cá dos paradigmas culturalistas nem o acolá dos estruturalistas, mas, é no confronto entre os dois grupos que despontam outras possibilidades de análises. Nesse sentido, as pesquisas reunidas nesta coletânea pressupõem uma diversidade cultural, paradigmática e cognitiva na apreensão da realidade que apontam o desafio da ruptura política e epistemológica do pensamento único e da formação de intelectuais orgânicos “comprometidos com um trabalho intelectual radical que gera mudanças sociais e econômicas” (p.14). A partir de outras lentes do cá e do acolá, Catherine Walsh (2008), ao tratar sobre as insurgências na refundação do Estado na América do Sul, destaca que é fundamental analisar as relações culturais cunhadas nas possibilidades de inter, pluri e multiculturalidade, pois a diversidade cultural na transição para o século XXI tem se materializado de diferentes formas no hemisfério norte e no sul. Para a autora, o multiculturalismo emerge no ocidente como uma possibilidade de re-

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conhecer a diversidade, no entanto, não desenvolve políticas públicas de promoção e reparação das desigualdades históricas, socioeconômicas. Segundo Walsh (2008), são coleções de culturas singulares sem relações entre elas. A pluralidade se caracteriza como sendo o reconhecimento da diversidade cultural e a coexistência e convivência num mesmo território/ nação, sem relações equitativas (WALSH, 2008, p.140). A alternativa que desponta como desafio é a interculturalidade, que se apresenta como a existência de várias culturas que se relacionam de forma harmoniosa, no entanto, esta pressupõe políticas reparadoras e afirmativas na promoção da igualdade social e jurídica, respeitando a diversidade cultural. Esta, portanto, para Walsh, não existe ainda; é um desafio! O mesmo desafio que em epígrafe, Mia Couto expressa: “existo onde me desconheço”. Para além desta trimembração, há ainda o transcultural ou transnacional que, em consonância com o movimento de globalização (DREIFUSS, 2004), emerge de diferentes lugares criando redes infindáveis, que se transversalisam perpassando culturas que influenciam e são influenciadas, rompendo com as fictícias fronteiras nacionais. Dessa forma, este livro trata dos encontros entre o cá e o acolá reunindo pesquisas sobre universos culturais distintos e interdependentes. O “Cá” é o Brasil que por si, já é multicultural. São muitos brasis numa única nação, numa única república de dimensões continentais. Essa diversidade está representada não apenas nos artigos que compõem esta publicação, mas no próprio coletivo de pesquisadores que se reuniram em tal empreitada. Estes explicitam os fluxos multiculturais entre cá e acolá. Do Brasil, Congo, Gabão ou Moçambique, os autores compõem rico painel histórico, político, cultural, educacional, linguístico, literário, filosófico e religioso. A di-

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versidade de olhares e objetos indica, igualmente, diferentes domínios do conhecimento e trajetórias de vida. Em abordagens interdisciplinares, os autores se utilizam de instrumentos conceituais e metodológicos de variadas searas do saber na construção de seus objetos. “Acolá” refere-se tanto aos falantes da língua portuguesa da outra margem do Atlântico como de Timor-Leste. No que diz respeito ao continente africano, trata-se de um espaço formado por 54 países de línguas, etnias e culturas diferentes. A divisão da maioria desses países resultou de um processo de invasão regularizada pelo tratado de Berlim de 1884-1885. Essa divisão foi feita sem considerar as línguas e culturas nativas africanas. As consequências disso são sofridas pelos africanos até hoje. Igualmente o Timor-Leste está transpassado pela empresa colonial capitaneada por Portugal e pela ocupação militar da Indonésia. As trocas multiculturais nos continentes africano, asiático e americano foram envolvidos na mesma história, pelo continente europeu, através do tráfico negreiro, da busca por temperos na Índia e pela exploração de riquezas via colonização. No que diz respeito à relação Brasil-África, há ainda muitos passos a serem dados para que um diálogo multicultural contemple o continente africano como um todo. Dos 54 países africanos, apenas cinco formam os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa- PALOP’s, sendo três no continente: Angola, Guiné Bissau e Moçambique; e dois formados por ilhas: Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. A invenção da África explicita desafios linguísticos, sociais, econômicos, cultural, entre outros. Quanto ao continente asiático, a ‘lusofonia’ nele é representada por três espaços: Goa, na Índia, Macau, na China e Timor-Leste, que é um país recém-independente.

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Não obstante, a noção de lusofonia apele para a unidade cultural e linguística, as diferentes perspectivas políticas e históricas nas ditas “comunidades lusófonas” têm desvelado, peremptoriamente, a fragilidade e artificialidade do discurso lusófono acerca de uma ‘herança’ ou ‘identidade comum’ a ser celebrada. Com efeito, o reconhecimento à diferença e a afirmação da herança local têm gestado uma memória e sentimento de pertença na qual é valorizada, menos a unicidade, que a pluralidade cultural. A cooperação solidária Sul-Sul pressupõe uma integração que começa pelo interesse compartilhado entre os povos em vistas do estabelecimento de um diálogo que passa pelo conhecimento e valorização cultural e multicultural. Dialogar para se conhecer melhor, analisar os problemas comuns para, se possível, encontrar soluções comuns e para aprender com a experiência do outro, do diverso, pois “Preciso ser um outro, para ser eu mesmo” (COUTO, s.d, p.13). Inserida no circuito da cooperação Sul-Sul, a UNILAB tem como um dos seus objetivos institucionais e pedagógicos o estímulo e adensamento da produção, parceria e trocas de saberes entre os países da ‘comunidade lusófona’, principalmente com os da África Negra. A UNILAB, portanto, é uma possibilidade nessa caminhada de diálogos multiculturais, no sentido em que se trata de uma Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. Isso envolve todos os países onde a língua portuguesa é falada. Como ensina Paulo Freire (2004) o diálogo é uma exigência existencial e do lugar de encontro, pois não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. Adverte ainda que a autossuficiência e os “guetos” de homens puros é incompatível com o diálogo quando se está fechado à contribuição do Outro. O diálogo, portanto,

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poderá possibilitar a conscientização, a superação, o sentir-se e saber-se tão sujeito quanto os outros; da caminhada que ainda está por vir a ser e da busca do saber e ser mais. Em cadência com o dito acima, este livro socializa as experiências de pesquisa que têm por objeto a diáspora afro-brasileira, a África Negra e além, a citar, Timor-Leste e Portugal, em seus diferentes lapsos temporais. Abrindo a primeira seção desta coletânea, Colonização e descolonização do saber, Aline N. Rodrigues Alves, José Antônio S. de Deus e Nilma Lino Gomes propõem um estudo da comunidade quilombola de Barro Preto, Minas Gerais. Explorando a história do movimento negro e quilombola no Brasil, os autores refazem o percurso das lutas pelo reconhecimento social e acesso à terra dos remanescentes das comunidades dos quilombos. A noção de lugar, como subjetivação do espaço pelo qual se apreende os significados e relações de pertencimento da comunidade, é compreendida metodologicamente por meio de “mapas mentais” elaborados por estudantes do ensino fundamental que vivem na comunidade de Barro Preto. Nestes, as representações das crianças sobre seu lugar de pertença, a relação com seus parentes e o senso de identidade quilombola ganham contornos reais por meio de traços pueris. No segundo texto, Luís Tomás Domingos analisa os efeitos “ambíguos” da educação formal em Moçambique. Ao contrário da educação ocidental, centrada no domínio de técnicas e conteúdos, a educação africana valoriza a harmonia e a compatibilização global de todas as disciplinas face ao Universo, tendo por fundamento gnoseológico a “dinâmica da alteridade”. Sua problematização busca compreender os desafios educacionais, em um contexto de África Negra, que conjugue as contribuições da educação europeia e a cultura ancestral africana na construção de uma educação pós-colonial.

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Como conclui, a concepção de um novo projeto educacional em África deve “descobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial criativo e revelar o potencial que está escondido em cada cultura (Africana, Europeia e outros) para o desenvolvimento integral do homem, o ser humano”. Por sua vez, Jeannette Ramos e João Figueiredo navegam pela história da educação portuguesa e brasileira, identificando os processos que constituíram o modelo de instrução colonizante, elitista e desigual. Explicitam que o projeto educacional português, por um lado, dava instrução às classes subalternas com o objetivo de formar súditos alfabetizados e tementes a Deus e, por outro, oferecia a educação média e superior para os futuros gestores de Estado e da burocracia sacerdotal. Na Terra de Santa Cruz-Brasil, os padres jesuítas acrescentaram ao projeto educacional português o extermínio, a dominação e a “negação da cosmovisão indígena e africana”, estabelecendo as bases do modelo desigual da educação brasileira que foi perpetuado por todo o período imperial, e que alcançou os primeiros anos de república sem profundas mudanças estruturais. Na seção seguinte, intitulada Religião, Política e Igualdade Racial, Gledson Ribeiro de Oliveira e Isaac Bruno Araújo examinam as relações conflituosas das igrejas evangélicas com as religiões afro-brasileiras e o lugar em que o continente africano ocupa nas representações religiosas. Analisando três casos recentes, o capítulo aponta que é de livre curso a condenação pública das religiões e cultura afro-brasileira por parte das igrejas evangélicas, principalmente as igrejas neopentecostais. Infere, também, que há uma continuidade entre o passado e o presente das missões evangélicas que difundem uma visão empobrecida e salvacionista, no campo evangélico, do continente africano. No texto seguinte, Bas´Ilele Ma-

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lomalo discorre sobre os desafios a serem transpostos em África para alcançar um desenvolvimento socioeconômico sustentável. Estudando o caso da República Democrática do Congo, reconstrói, na longa duração, a dinâmica histórica de dominação, exploração e autoritarismo que levou o país a figurar entre as mais desiguais do globo, ponderando que a resposta aos dilemas da sociedade congolesa passa por uma educação voltada à complexidade e solidariedade, sustentabilidade ambiental e comprometimento social dos dirigentes políticos. Vera Rodrigues toma as políticas públicas de igualdade racial dos períodos Collor, Fernando Henrique Cardoso e Lula, e as trajetórias de lutas dos movimentos negros como materiais de sua reflexão sobre as conquistas e recuos na promoção das políticas de igualdade racial no Brasil. Compreende que as desigualdades por motivo de “cor” e “procedência” só podem ser superadas com a igualdade de acesso aos bens públicos “como um direito inerente ao exercício pleno da cidadania.” Já Fábio Baqueiro Figueiredo, traça um panorama de dois grandes pólos simbólicos, África e Terceiro Mundo, situando as raízes do novo discurso africano de emancipação à virada do século XIX para o XX, num inventário que vem se estabelecendo como uma espécie de “contracânone” da modernidade. Para o autor, as raízes intelectuais do nacionalismo africano das independências revela uma longa e multiforme tradição pan-africana que combinam-se com a emergência do Terceiro Mundo, como categoria de identificação coletiva que mudou o panorama do campo nacionalista, e dão forma ao complexo e conflituoso campo da política africana a partir da década de 1960. Iniciando a terceira seção, Literatura, Língua e Filosofia, Rodrigo Ordine faz emergir de Sôbolos rios que vão,

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do português António Lobo Antunes, temas frequentes nos romances desse médico psiquiatra que atuou na guerra colonial em Angola: a experiência traumática, o esquecimento e a memória. Considerando-o uma intricada narrativa de construção romanesca e autobiográfica hibridizada, faz uma reflexão sobre as variações estéticas narradas a partir da personagem “senhor Antunes da cama onze” que, tal como o autor, está transpassado, talvez, pelo seu maior momento de dor, a descoberta de um câncer. O texto de Izabel Cristina e Sura ­Subuhana convida o leitor a percorrer o livro da escritora moçambicana Paulina Chiziane, Balada do Amor ao Vento. O tempestivo amor entre as personagens Sarnau e Mwando é o fio pelo qual os autores urdem os fluxos, com suas trocas e negociações culturais em um contexto colonial, com os fixos, representados pela aldeia Mambone, o povoado de além-mar Vilanculos e a cidade de Lourenço Marques (Maputo), em interface com o meio ambiente. O texto de Denise Rocha trata dos valores, da religiosidade e da riqueza da cultura africana retratadas por meio do pai de santo Jubiabá, personagem ficcional do romance homônimo de Jorge Amado. Este era o último remanescente da geração de escravos e o patriarca de negros e mulatos, aos quais narra a ancestralidade africana e a saga de Zumbi dos Palmares, ao mesmo tempo em que denuncia a perseguição policial ao candomblé, nos anos 1920 e 1930, em Salvador. Numa análise literária do ser negro diaspórico e desvelando as relações encruzilhadas com os recursos jornalísticos e cinematográficos, Fausto Antônio, discute e revela, a partir do conto “Quando o Malandro Vacila”, de Márcio Barbosa, publicado na Coletânea Cadernos Negros (volume 10, 1987), os traços indispensáveis para a construção de personagens negros com história, problemática e uma cosmogonia referenciada

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nos sistemas culturais negro-africanos radicados no Brasil. As variações linguísticas apreendidas pela experiência de ensino da língua portuguesa aos alunos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Brasil, do curso de agronomia da UNILAB, é o tema do estudo de Bruno Okoudowa. No processo de apreensão do português, explica, o “discente ou falante estrangeiro quando não encontra o som do português na sua língua materna, a tendência natural é substituí-lo por um som semelhante que exista na sua língua”. O ensaio de Ivan Maia parte da noção de “estética da existência” de Foucault para traçar uma cartografia da produção poética afro-brasileira em autores como Solano Trindade e Oliveira Silveira. Maia considera a negritude poeticamente enunciada como uma ação coletiva que expressa valores estéticos que remetem a um modo de ser transformado que, construindo o domínio de si, resiste às relações de poder e controle. Finalizando essa coletânea, Ramon Souza Capelle de Andrade oferece uma caracterização de identidade pessoal à luz da Teoria Geral dos Sistemas ao traçar como hipótese que a identidade pessoal constitui uma propriedade emergente de um sistema (ou feixe) de hábitos. A identidade pessoal ou sistêmica poderia ser concebida, da perspectiva que o autor defende, como emergindo de um conjunto próprio, e individual, de hábitos inscritos na estrutura ou sistema psicocomportamental de um agente. Acreditamos que esta coletânea permitirá ao leitor transitar pelos diferentes tons teóricos e caminhos de investigação percorridos pelos autores, além de contribuir para o debate, em vários campos do saber, das múltiplas interfaces entre o continente negro, a diáspora afro-brasileira, a cultura lusitana e o Timor-Leste, numa perspectiva de ruptura política e epistemológica.

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Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE, F. C. A. Breve ensaio sobre o discurso único em educação: “there is no alternative. In: ALBUQUERQUE, M. G. M. T.; FARIAS, I. M. S.; RAMOS, J. F. P. (Orgs.). Política e gestão educacional: contextos e práticas. Fortaleza: EdUece, 2008. COUTO, Mia. Raiz de orvalho e outros poemas. 4. ed. Lisboa: Editorial Caminho, [s.d.]. DREIFUSS, René Armand. Transformações: matrizes do século XXI. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 38. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. FREIXO, Adriano. Minha pátria é a língua portuguesa: a construção da ideia da lusofonia em Portugal. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2011. IANNI, Otávio. A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Revista Tabula Rasa, núm. 9, julio-diciembre, 2008, p.131-152. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2013.

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1 Colonização e Descolonização do Saber

COMUNIDADES QUILOMBOLAS: UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS Aline Neves Rodrigues Alves José Antônio Souza de Deus Nilma Lino Gomes

Introdução O grande número de comunidades quilombolas oficialmente reconhecidas, no Brasil, traz consigo a necessidade de investigarmos a evolução do próprio conceito de quilombo no país, suas referências nos estudos, ressemantizações e discussões teóricas com ele envolvidas. Atualmente, observa-se que tais leituras buscam repensar as comunidades quilombolas no presente, não mais a partir de uma estrutura escravista ou calcada no imaginário de fuga. Essa relativização do conceito ocorre também enquanto condições operacionais e conjunturais, ou seja, meios de atendimento ao artigo 68 da Constituição Federal do Brasil de 1988, que prevê o direito à propriedade das terras ocupadas por remanescentes de quilombos. Interessa-nos ainda observar, no interior das comunidades quilombolas, os processos educativos vividos por seus membros dentro e fora da escola, considerando suas características socioculturais, uma vez que, a convocação à escola para o respeito à diversidade étnica e à pluralidade cultural desse país é algo também contemplado no aspecto legal, tanto na Constituição Brasileira quanto na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e suas alterações. A pesquisa tem primeiramente a intenção de se contrapor a uma tendência presente no imaginário social brasileiro de que as comunidades de quilombos situam-se num passado remoto, e que por isso, não há necessidade de serem reconhe-

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cidas como portadoras de direitos específicos por sua história e legado social. Visa também contribuir teoricamente, ainda que com certas limitações, com as discussões a respeito da Educação sobre o direito à diferença, notadamente o direito a uma identidade étnico-racial, que pode ser encontrada em comunidades quilombolas, rurais e urbanas em todo o país. Além disso, insere-se nas recentes reflexões sobre a categoria: Lugar da Geografia Humanístico Cultural num diálogo possível a partir do uso de mapas mentais. Para isso, o presente trabalho de pesquisa envolveu as ações cotidianas e a história de uma comunidade quilombola rural denominada Barro Preto, situada no município de Santa Maria de Itabira, no estado de Minas Gerais, em articulação com as práticas educativas de âmbito escolar. Para tal, os princi­pais sujeitos acompanhados e entrevistados foram um grupo de crianças, estudantes do quinto ano do Ensino Fundamental de uma escola pública municipal localizada no interior dessa comunidade. A escolha destas crianças deve-se ao fato de estarem cursando o último ano escolar ofertado dentro da comunidade e por isso, terem passado maior tempo de estudos naquela escola. Além das crianças-estudantes, o trabalho incluiu entrevistas com moradores, professores, diretora e técnicos da Secretaria Municipal de Educação dessa escola, buscando-se uma compreensão do histórico da comunidade e outras ações ligadas ao seu reconhecimento enquanto quilombolas. Assim, o estudo teve por objetivo compreender a vivência de crianças da comunidade de Barro Preto e suas inter-relações com a educação escolar e com os processos educativos mais gerais, levando-se em consideração o lugar de vivência, as relações étnico-raciais e a questão quilombola. A investigação foi realizada por meio de estudo de caso, com observação e intervenção em campo, entrevistas, produ-

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ção de mapas mentais, oficinas com crianças e uma oficina com moradores adultos. Para Cláudia Rosa Acevedo, a propósito, o estudo de caso “caracteriza-se pela análise em profundidade de um objeto ou um grupo de objetos, que podem ser indivíduos ou organizações” e, enquanto método preocupa-se “com planejamento, as técnicas de coleta de dados e as abordagens de análise dos dados” (ACEVEDO, 2007, p.56). Como forma de aproximação das crianças e tentativa de compreender como concebem o seu “estar no quilombo” do ponto de vista geográfico e espacial, os mapas mentais foram os principais procedimentos metodológicos adotados. Esses foram construídos por um grupo de dezessete estudantes da escola da comunidade. Por mapas, entende-se a metodologia de investigação nos debates sobre percepção ambiental, percepção de paisagens e nos trabalhos de antropólogos, em que se procura visualizar, nas imagens mentais traçadas pelos homens, traços ligados à cultura, conforme Nogueira (2002).

Quilombos no Brasil: Ressignificações, Pressões Sociais, Avanços Políticos e Educacionais O processo de aquilombamento existiu onde houve escravidão dos africanos e seus descendentes, recebeu nomes distintos de acordo com a região onde viveram. Como exemplos têm-se marroons na Jamaica, na Guiana Francesa, na Guiana Inglesa e nos Estados Unidos da América do Norte, pelenques em Cuba e na Colômbia, ou cimarrónes em muitos países de colonização espanhola. Segundo Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes (2006), a palavra kilombo é originária da língua banto Umbundo, falada pelo povo Ovimbundo e que se refere a um tipo

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de instituição sociopolítica militar conhecida na África Central, já a sua conceituação, atualmente, é passível de várias interpretações. Algumas são interpretações que remontam à sua primitiva concepção, ainda no século XVIII, e que se transformaram social e politicamente, de acordo com as mudanças sofridas por essas mesmas comunidades, suas realidades rurais e urbanas, e há outras ligadas à ressignificação e ressemantização do conceito. O processo de ressignificação e ressemantização decorre das mudanças, tendências e interferências dos estudos realizados pelo campo teórico, sobretudo da antropologia, na arena jurídica, pelas instituições governamentais e pelo movimento social negro e quilombola brasileiros, principalmente após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, na qual consta o Art. 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que versa: “aos remanescentes de comunidades quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. No século XVIII, o conceito clássico e que perduraria até a década de 1970, foi definido pelo Conselho Ultramarino em 1740 ao dirigir-se à Coroa Portuguesa: “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. Tal definição, ao tornar-se jurídica, marginalizava e penalizava os grupos quilombolas que eram identificados, então, de forma depreciativa (CARRIL, 2006, p.53). Uma análise desse conceito é encontrada em Almeida (1999), que, entre suas reflexões, nos apresenta uma crítica à visão de senso comum da época em que apontava as comunidades quilombolas como grupos que estariam fora do mundo do trabalho. De acordo com Schimitt (2002), paralelamente

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ao aparelho de perseguição aos fugitivos, existiu também uma rede de informações que ia das senzalas a muitos comerciantes. Estes tinham interesse na manutenção dos grupos, pois eram lucrativas as trocas de produtos agrícolas dos quilombos por outros, repassados a eles pelos comerciantes por não existirem no interior dos quilombos. No século XIX, principalmente nos finais do período escravista, foi formado um grande número de quilombos no Brasil que conseguiam sobreviver durante a escravidão, sendo que obtinham mais êxito aqueles que mantiveram relações de reciprocidade com brancos pobres, indígenas e outros segmentos populacionais. Portanto, os quilombolas mantinham laços de solidariedade e convivência com seu entorno. Os quilombos não correspondiam exclusiva ou essencialmente, portanto, a refúgios de escravos fugidos, mas sua gestação vinculava-se ao esforço dos negros escravizados em resgatar sua liberdade e dignidade. Além disso, as diferentes formas de ocupação de terras, praticamente negadas com o sistema de Sesmarias e Lei de Terras de 1850 no Brasil, foram, aos poucos, ganhando sentido a partir da necessidade de designação da realidade quilombola, sobretudo, para efeito de medidas legais, jurídicas ou definição de direitos sociais, econômicos, políticos para esses grupos e seus descendentes. As novas definições compreenderiam as estratégias de sobrevivência e outras relações sociais criadas para além da fuga. Afinal, poderíamos encontrar terras doadas, compradas ou mesmo sua existência a partir da apropriação de grandes propriedades que entraram em decadência (LITTLE, 2002, p.6). Temos assim, comunidades negras rurais, terras de pretos, terras de santo ou santíssimo e/ou mocambos, quilombos contemporâneos, comunidades quilombolas e rema-

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nescentes de quilombos. Ou seja, é possível vislumbrarmos vários critérios para denominar a luta desses grupos, ao indicar que o conceito elaborado anteriormente à abolição formal da escravatura, além de ampliado, foi também ressignificado1. Constatam-se, ainda nessa luta, os atributos simbólicos, como o caso do quilombo de Palmares e o líder Zumbi. Sobre esses territórios2 étnicos, entendemos os “espaços” cujas referências de uma possível origem comum estão grafadas pelas construções materiais ligadas à identidade e ao pertencimento territorial (ANJOS, 2007), e em que são valorizadas as tradições culturais a partir de “normas de pertencimento explícitas, consciência de sua identidade étnica” (MOURA, 2007, p.10). Vale ressaltar ainda que a identidade desses grupos étnicos pressupõe experiências coletivas compartilhadas por meio de uma trajetória comum. Portanto, o quilombo não se define pelo tamanho da comunidade ou número de membros. (O’DWYER, 1995). Além disso, a constituição da identidade é algo transitório, no tempo e no espaço, e se transforma durante toda uma vida, aí consideradas as mudanças de seu contexto sociopolítico-econômico e cultural (HALL, 2003). 1

É nessa perspectiva que nos aproximamos dos seguintes autores: Alfredo Wagner Berno de Almeida (1999); José Maurício Arruti (2006), Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes (2006); Lourdes Carril (2006); Paul Elliott Little (2002) ou ainda, para reflexões acerca da atualidade da luta quilombola no campo das lutas jurídicas: Carlos Hasenbalg (1992), Luiz Fernando Linhares (2002) e Lílian Cristina Gomes (2009). 2 As atuais leituras dessa autora sobre território, como categoria geográfica, concentram-se no entendimento de que este, à priori, é um espaço que existe antes mesmo da intenção humana de apoderar-se dele, mas que tomado por um ator, concreta ou abstratamente, é territorializado. Assim, o território seria um espaço onde se projeta trabalho, energia e informação (RAFESTTIN, 1993). Leitura semelhante e complementar se encontra em Milton Santos (2000) e Lefebvre (1978), que ao conceberem o território como não somente como uma base que sustenta trocas materiais e espirituais, mas onde se encontra a identidade e o “sentimento de pertencer àquilo que nos pertence”, ou seja, o território visualizado como espaço vivido (SANTOS, 2000, p.96).

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Hoje, as comunidades quilombolas urbanas ou rurais, longe de serem reproduções do passado, realizam em seus territórios um movimento de respeito ao passado e desenvolvimento contemporâneo de busca do direito à terra, à cultura e educação de qualidade. Portanto, não é mais possível ostentarmos uma visão estática e cristalizada no passado sobre os quilombos ou calcada no binômio isolamento e segregação, salvo no imaginário social. Segundo Carril (2003), os atuais estudos sobre a formação quilombola têm sido realizados sob a perspectiva aberta pelos estudos antropológicos, assim, não abandonam a problemática cultural nem a influência marxista. Há autores que identificam uma visão de inversão ao tratamento da questão quilombola, haja vista que, se no período colonial, os quilombolas foram tratados como criminosos, após a Constituição de 1988, na República, esses atores sociais tornaram-se público-alvo de políticas de reparação aos danos historicamente sofridos. Almeida (2002) relembra que isso ocorre com limitações/restrições dada a dificuldade destes sujeitos terem efetivamente acesso aos direitos que lhes cabem. O movimento social negro e quilombola denuncia o atual tratamento recebido por vários outros coletivos sociais, pois ainda são, muitas vezes, taxados por alguns como “baderneiros” e “aproveitadores” ao lutarem pela reparação aos danos sofridos no passado e sua justa correção no tempo presente. Hoje, os quilombolas lutam também contra os interesses do mercado econômico que explora suas terras em busca de recursos naturais e mercadorias, planeja implantar projetos hidrelétricos e viários, realiza compra de terras e implanta unidades de conservação. Obviamente a temática quilombola se tornou cara ao país por transitar nas esferas das questões raciais e de distribuição de terras. As terras brasileiras, desde sua origem com o sistema de sesmarias, são um bem possuído

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por poucos e, com a abolição da escravatura, em 1888, fazendeiros e políticos latifundiários se organizaram para impedir que negros pudessem se tornar donos de terras. Segundo Carlos Hasenbalg (1992), as tensões provocadas pelo regime autoritário produziram a necessidade da sociedade, através dos movimentos sociais, articularem-se e refletirem sobre números temas, entre eles a questão racial e da terra. Esses temas foram suprimidos por mais de duas décadas e incorporados à agenda nacional através do movimento social negro. (ALVES, 2012, p.27).

Nesse sentido, aproximamo-nos também da atual conjuntura de políticas públicas de ações afirmativas3 voltadas para esses povos, que incorporam as leituras de âmbito territorial, cultural e educacional. A construção de políticas afirmativas para populações quilombolas é tributária do movimento social negro, notadamente o movimento quilombola, e pressupõe a ideia de cidadania que ganhou corpus na luta social que se inicia na década de 1970 e culmina em 1988, com a vigência do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias4. 3

Joaquim Barbosa Gomes apresenta um conceito bastante abrangente, que define as ações afirmativas como: “um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como educação e emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias  baseadas em lei de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza multifacetária e visam evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas prática culturais e no imaginário coletivo” (GOMES 2001, p.40 e 41). 4 Art. 68 – Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

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E ainda é importante refletir a respeito da ideia reducionista de comunidades vulneráveis, caracterizadas por sua condição rural, que impede o reconhecimento de sua identidade específica e, consequentemente, induz a opção política por ações assistencialistas em detrimento das políticas de diversidade (MIRANDA, 2011). Entre as várias políticas de diversidade voltadas às comunidades quilombolas no Brasil, destacamos a Educacional, em que, a partir do século XXI, as organizações governamentais, não governamentais e sociais (entidades do movimento negro) interessadas em debater e criar condições de enfrentamento aos problemas raciais no Brasil, visualizaram na “3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerância”, ocorrida em Durban (África do Sul), a oportunidade de verem seus esforços e reivindicações contemplados, especialmente aquelas vinculadas ao reconhecimento de responsabilidade pelo governo brasileiro em criar condições estratégicas de políticas de superação do racismo, notadamente no âmbito escolar, em que os prejuízos de ações discriminatórios e racistas se manifestam em fracassos escolares das crianças negras, de acordo com pesquisas. Destacamos aqui pressões sociais, notadamente do movimento social negro, em prol de melhores condições de acesso da comunidade negra ao ensino público de qualidade, valorização e reconhecimento das contribuições do negro na História do Brasil, a introdução nos currículos escolares da História da África e cultura afro-brasileira, a participação dos pesquisadores e militantes negros na elaboração dos currículos, e a sanção no ano de 2003, da Lei no 10.639/03 (alterada para 11.645/08, que dá a mesma orientação quanto à temática indígena) A fim de regulamentar essa alteração da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), o Conselho Nacional de Educação (CNE)

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aprovou o Parecer CNE/CP 03/2003 que instituiu as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas a serem implantadas pelos estabelecimentos de ensino público e privado em todo país. Esse parecer é ratificado pela resolução CNE/CP 01/2004, a qual explicita os deveres dos sistemas de ensino na implementação da Lei. Esse conjunto de medidas legais, assim como as reivindicações e propostas do Movimento Negro e Quilombola ao longo do Século XX, pode ser considerado como instrumento de implementação de políticas de ações afirmativas responsáveis por reconhecer e valorizar a diversidade cultural no âmbito da educação. Essas medidas têm, na escola, o lugar de formação cidadã e a responsabilidade em reparar a produção e reprodução de imaginários coletivos de supremacia e subordinação de um grupo étnico-racial em relação a outro. Ou seja, visam transformar positivamente a ordem cultural, pedagógica e psicológica alicerçadas no mito da democracia racial que atinge particularmente os negros. Ainda levando em consideração a realidade histórica e política que envolve a questão quilombola, ou seja, seu histórico de reivindicações, lutas e ações compreendidas pelos movimentos sociais que não dissociam a necessidade de possuírem uma escola com qualidade, em territórios étnicos, e atendendo às suas especificidades, é que temos a recente inclusão da educação escolar quilombola como modalidade da educação básica por meio do parecer do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica(CNE/CEB) 16/2012 e da Resolução CNE/CEB 08/2012 que instituem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Estas terão por objetivo orientar os sistemas de ensino para que eles possam colocar em prática a Educação Escolar Qui-

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lombola mantendo um diálogo com a realidade sociocultural e política das comunidades e do movimento quilombola.

Quilombo Barro Preto: o Reconhecimento Enquanto Mobilização Coletiva A comunidade de Barro Preto é reconhecida enquanto comunidade remanescente de quilombo no ano de 2006 pela Fundação Cultural Palmares (FCP). O processo de auto-declaração dessa comunidade é baseado no Decreto Lei no 4.887 de 2003, que “regulamenta o procedimento para a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos”. E embora o decreto apresente um novo caráter fundiário e dê ênfase à cultura, memória, história e territorialidade, até o presente momento, a comunidade ainda não conseguiu a titulação definitiva de suas terras. Estas terras se encontram delimitadas por cercas de arame colocadas por fazendeiros vizinhos que limitam/cerceiam as possibilidades de permanência de muitos moradores no interior da comunidade, já que não podem construir novas moradias no quilombo, situação recorrente entre os diferentes problemas territoriais das comunidades já reconhecidas no Brasil. O processo de reconhecimento e titulação de terras pelos organismos brasileiros, além de moroso e burocrático, tende a enfraquecer a luta das comunidades que buscam o direito coletivo de suas terras, daí a necessidade de se articularem e manterem diálogo com entidades estaduais e nacionais do próprio movimento quilombola. Em Barro Preto vislumbramos ações coletivas que envolveram atividades empreendidas primeiramente pelo contato de uma moradora junto à

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Pastoral Afro de Itabira, entidade filiada à Igreja Católica de município vizinho, e posteriormente, novas ações pessoais de moradores e líderes comunitários que conseguiram mobilizar a escola em prol da necessidade de serem reconhecidos, e, portanto, respeitados, por sua identidade étnica. Destacamos dessa nova rede social em Barro Preto, o envolvimento da escola e seu corpo docente, e também, gestores da Secretaria Municipal de Educação, que buscaram implantar, a partir de recursos públicos e acompanhamento pedagógico específico, a Lei no 10.639/20035 e suas Diretrizes Curriculares para Educação das Relações Étnico-Raciais na escola da comunidade no período de 2003 a 2008. E como consequência dos novos conhecimentos a respeito da luta quilombola, temos a reforma da escola local, a construção de uma quadra de esportes, calçamento da rua principal e a criação da Associação dos Quilombos Unidos de Barro Preto e Indaiá6, cuja importância está em representar a comunidade nos assuntos político-jurídicos referentes ao reconhecimento e titulação das terras. Nesse movimento, temos ainda a iniciativa de moradores, com apoio da comunidade escolar, de criação do Museu do Negro no interior da comunidade e que constitui motivo de orgulho para a comunidade quanto a suas origens. Toda essa articulação, ao envolver a escola, traz consigo uma importante mobilização juntamente com os estudantes, no sentido de desenvolver o espírito crítico e de valorização da cultura local. O grupo de crianças, cuja faixa etária oscila 5

A Lei no 10.639/03 torna obrigatório o Ensino de História da África e Cultura Afro-Brasileira nas escolas públicas e privadas de todo o país. 6 Indaiá é uma comunidade quilombola localizada no município vizinho de Antônio Dias e distanciada cerca de sete quilômetros de Barro Preto. De acordo com Maria Aparecida S. Tubaldini (2009), as duas comunidades possuem laços de parentesco. De Indaiá, partiram famílias que contribuíram para a origem de Barro Preto. Vale ressaltar que ambas possuem uma área de uso comum localizada em Indaiá, daí a justificativa de criarem uma única Associação.

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entre dez e onze anos, além de presenciar as manifestações políticas no interior da comunidade, participou das ações culturais com apresentações nos municípios vizinhos, e também recebeu, na comunidade e no museu, a visita de outras escolas da rede de ensino do município. E, para compreendermos suas experiências com o lugar de vivência, é que apresentamos na sequência, a discussão conceitual sobre a categoria de análise: Lugar, no campo da Geografia Cultural.

O Lugar na Geografia Humanística Cultural A discussão do conceito de lugar dentro da perspectiva humanística ganhou força na ciência geográfica principalmente a partir da década de 1970. Porém, como nos lembra Amorim, a geografia humanística possui marcos fundamentais notadamente já firmados no final do século XIX com a evolução dos estudos de percepção ambiental (AMORIM, 1999, p.140). Apresentamos a seguir uma caracterização desse importante conceito da Geografia Humana: Segundo Tuan (1980) a percepção se dá através dos sentidos (mecanismos biológicos), entretanto a cultura influencia a forma de perceber, construir uma visão de mundo e de ter atitudes em relação ao ambiente. Descreve como as características culturais dos diferentes grupos humanos interferem no modo de perceber o ambiente, porém combinadas a elas, destaca o importante papel da sensibilidade biológica humana nesse processo perceptivo. Os seres humanos atribuem significado e organizam o espaço de acordo com os símbolos que constroem a partir de sua ­percepção (KOZEL, 2010).

Assim, a categoria lugar é fundamentalmente uma concepção ligada a valores subjetivos que podem estar ain-

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da referenciados por aspectos localizacionais, classificatórios ou determinando a presença de fenômenos, porém, nesta nova abordagem, conferindo-lhe significados (KOZEL, 2001, p.152). É relevante assinalar que o lugar poderá ser um bairro, um povoado, um terreiro, uma casa, uma rua e outros. [...] o lugar é uma unidade entre outras unidades ligadas pela rede de circulação; o lugar, no entanto tem mais substância do que nos sugere a palavra localização; ele é uma entidade única, um conjunto “especial” que tem história e significados. O lugar encarna as experiências e as aspirações das pessoas. O lugar não é só um fato a ser explicado na ampla estrutura do espaço, ele é a realidade concreta a ser esclarecida e compreendia sob a perspectiva das pessoas que lhes dão significados (TUAN, apud HOLZER, 1999, p.70).

A experiência, por sua vez, implica na capacidade do ser humano aprender a partir da própria vivência, atuando sobre o dado e criando a partir dele – dado este não conhecido em sua essência. O que significa que experienciar seja vencer os perigos (TUAN, 1983, p.10) Dessa forma, em Tuan o lugar é afetivamente recortado e emerge da experiência, sendo um “mundo ordenado e significado”. Antes, porém, existe o espaço que, sendo amplo e vulnerável, provoca medo e ansiedade e é desprovido de valores e significação afetiva. Portanto, o espaço pode ser transformado em lugar nas experiências cotidianas, enfim, torna-se lugar no contato do eu com outros sujeitos (TUAN, 1983, p.61-65) Nesta perspectiva, não se pode deixar de apresentar dois conceitos dos estudos em percepção. Da relação dos homens entre si e com o meio físico, emergem as categorias conceituais: topofilia e topofobia. O primeiro foi discutido inicialmente por Bachelard, e em seguida, por Tuan em 1979, e diz respeito ao sentimento e afeição das pessoas para com o lugar.

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Assim, relacionada à categoria lugar, a Topofilia seria: o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. A palavra topofilia é um neologismo, útil quando pode ser definida em sentido amplo, incluindo todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material. Estes diferem profundamente em intensidade, sutileza e modo de expressão. Outro conceito importante seria: topofobia, que inversamente ao primeiro, decorre da ideia de paisagem do medo (TUAN, 1980) Com a geografia humanístico-cultural contemporânea há assim o privilégio da subjetividade, das experiências, dos simbolismos que por sua vez reduzem/relativizam a tendência homogeneizante que muitas teorias geográficas produziram sobre o espaço e sobre fenômenos sociais, tais como as comunidades quilombolas e seu movimento de luta por terra e reconhecimento de suas identidades.

O Uso de Mapas Mentais A metodologia de interpretação do lugar que utilizaremos corresponde à abordagem da “cartografia cultural” ou mapas mentais, que são representações do vivido, uma expressão de nossa história com os lugares experienciados. Ou seja, revelam como o lugar é vivido e compreendido pelas pessoas. Enfim, é uma representação que se faz integrada, ao englobar várias representações que colaboram para a interpretação da realidade ao redor dos sujeitos. O conceito de mundo vivido discutido pela fenomenologia é importante no entendimento dos mapas mentais, pois corresponde a uma análise que permite ir além das representações espaciais assumindo também caráter sociocultural em suas interpretações.

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Na elaboração dos mapas mentais, a ideia principal é representada/posicionada no centro de uma folha de papel em branco, utilizada na horizontal para proporcionar maior visibilidade. E vale ressaltar que, embora utilizemos a imagem enquanto representação do espaço desde a pré-história, foi a partir da década de 60 (do século XX) que houve a busca por novas perspectivas de comunicação e preocupação em desvendar essa imagem. Os mapas mentais, portanto, são imagens construí­das por “sujeitos históricos reais, reproduzindo lugares ­reais vividos, produzidos e construídos materialmente”. E que portanto, devem ser lidos como produtos em movimento, ou seja, não estáticos e não apenas cartográficos7 (KOZEL E ­NOGUEIRA, 1999, p.240) Nos mapas mentais, a imagem é apenas uma faceta da representação. Em Kozel (2007) temos que essa representação é indissociável de tudo que envolve o sujeito e a linguagem. Esta linguagem uma vez referendada por signos, que são construções sociais e refletem o espaço vivido representado em todas as suas nuances. E ancorando-se na sociolinguística é que Kozel nos apresenta um referencial teórico-metodológico para interpretação ou decodificação desses signos construídos socialmente. A autora parte do pressuposto que o objeto de análise é uma forma de linguagem e encontra em Mikhail Bakhtin (1986) o referencial para análise dos signos (mapas mentais) como enunciados. Assim, os mapas mentais enquanto construções sígnicas que requerem interpretação/decodificação 7

Ressaltamos que os mapas mentais são imagens que os homens constroem dos lugares, paisagens e regiões. Assim houve na geografia uma tentativa de se trazer para o campo das técnicas cartográficas estas representações, que na verdade devem ser tratadas enquanto fatos cartográficos com significações subjetivas. (AMORIM, 1999, p.141).

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estão inseridos em contextos sociais, espaciais e históricos coletivos, apresentando singularidades e particularidades (KOZEL, 2007, p.114-115). O método bakhtiniano estuda a linguagem e o homem numa interação ou encontro dialógico. O ser humano é visto aí como ser social, portanto, esta teoria leva em consideração expressões ou interações entre a linguagem e a importância do ser humano como elemento de expressão da sociedade. E é assim que o signo, produzido dentro de um contexto que lhe dá sentido, poderá ser decodificado como forma de ­linguagem. Kozel (2007), em sua metodologia, entende que o ser humano utiliza signos para representar a realidade, de modo que a construção destes não ocorre de maneira vazia, mas a partir da consciência que geralmente coincide com a orientação semântico-ideológica de sua realidade. O que, numa perspectiva sociológica, significa dizer que os signos, quando retirados do contexto real vivido transformam-se, apenas, em sinais. Assim, a codificação dos signos que formam a imagem à medida que compartilham valores, significados com comunidades e redes de relações tornam-se uma representação não apenas individual, mas coletiva, referendando um signo social em comum (KOZEL, 2007). Os aspectos de interpretação dos mapas mentais foram realizados de forma qualitativa a partir da metodologia proposta por Kozel (2007), que adaptada8, assim define os seguintes aspectos a serem avaliados: 1. Interpretação quanto à forma de representação dos elementos na imagem; 2. Interpretação quanto à distribuição dos elementos na imagem; 8

A adaptação refere-se ao fato de cruzarmos informações contidas nos mapas mentais com dados obtidos em campo, ou seja, entrevistas e oficinas.

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3. Interpretação quanto à especificidade dos ícones; yyRepresentação dos elementos da paisagem natural yyRepresentação dos elementos da paisagem construída yyRepresentação dos elementos móveis yyRepresentação dos elementos humanos 4. Apresentação de outros aspectos ou particularidades. Em termos práticos, propusemos, aos estudantes do quinto ano da escola, a elaboração de dois desenhos da comunidade e a participação deles em duas oficinas. As oficinas9, ao precederem a confecção dos mapas mentais (desenhos, para os estudantes), tiveram como objetivo criar um primeiro diálogo para tornarem-se um meio de estimular a memória dos estudantes sobre suas experiências com o lugar em que vivem, isto de maneira mais lúdica. Assim, ampliaram as possibilidades de interpretação dos mapas mentais.

Discussão dos Resultados Entre as interpretações realizadas pela pesquisa elegemos algumas imagens que seguem abaixo agrupadas a partir de seus aspectos ou particularidades, bem como informações adicionais. Elas demonstram resultados da decodificação dos mapas mentais, ou seja, da experiência das crianças quilombolas com seu lugar de vivência:

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A primeira oficina O Auto Retrato e a Identidade, foi realizada na escola da comunidade e nos apresenta notadamente a forte ligação entre os estudantes, quer por algum parentesco ou por estarem juntos desde as séries iniciais, bem como os traços fenotípicos, marco identitário, em autorretrato registrado em papel do tipo craft. Já na segunda oficina Contação de História, foi possível conhecermos a comunidade em caminhadas com as crianças, assim como um intenso diálogo que apresentava hábitos e costumes comunitários.

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A. Questão da água:

Andréia, 11 anos

Atualmente a população de Barro Preto é de aproximadamente 600 habitantes distribuídos em cerca de 150 casas. Dentre os problemas territoriais, destacamos as dificuldades no acesso e abastecimento de água dentro da comunidade. À direita da imagem temos o principal reservatório de água captada em terras que já foram da comunidade. B. Relações com o plantio:

Rosiane, 10 anos

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A economia local se caracteriza por trabalhos sazonais nas fazendas do entorno e trabalhos de capina em empresas locais de recuperação e recomposição vegetal de áreas degradadas. Já o trabalho de cultivo em áreas próprias da comunidade, ou seja, na roça, sofreu retração motivada pelo confinamento territorial. Anteriormente, as práticas de cultivo eram desenvolvidas nas serras, todo o entorno da comunidade. C. Relações de vizinhança:

Brenda, 11 anos

Os fortes laços de parentesco existentes dentro da comunidade e as informações constantes nos mapas mentais sobre o pertencimento territorial demonstram uma trajetória histórica de Barro Preto que surgiu em meados do século XIX, e onde por muito tempo, se realizavam casamentos apenas entre os membros das famílias pertencentes à comunidade.

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D. Relações com o urbano:

Eliel, 10 anos

Barro Preto embora com características rurais, é um povoado situado na Região Metropolitana de Belo Horizonte-MG e sofre influências dessa grande capital. Equipamentos característicos do urbano, embora recentes, se apresentam aí, como elementos da paisagem construída. E. Relações com os limites:

Luana, 10 anos

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As fronteiras criadas a partir de porteiras não parecem sugerir limitação na circulação das pessoas. Porém, ganham dimensões de limites no uso dos espaços, isto devido ao confinamento territorial que a comunidade sofre pela ação sistemática de cerceamento dos fazendeiros do entorno. F. Relações com o lazer:

Luis, 11 anos

A quadra de esportes, conquistada por meio de ações populares da comunidade durante o processo de reconhecimento enquanto remanescentes de quilombolas, foi constantemente retratada nos mapas mentais, quer em termos de sua escala de representação quanto por meio da intensidade de cores com que foi representada nos “desenhos” (mapas).

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G. Relações com os projetos educacionais:

Izadora, 11 anos.

A escrita “Barro Preto Resgata sua História e tem Orgulho de sua Cor”, neste mapa mental é também a frase-título de um dos primeiros projetos realizados na escola, num momento em que estudante, provavelmente, esteve envolvida com as atividades escolares de valorização da cultura local. A julgar pela data, ela estava no primeiro/segundo ano do Ensino Fundamental.

Conclusões A função dos mapas mentais, de acordo com Oliveira (2002) está em tornar visíveis as construções do mundo real ou da imaginação de seu autor, mas não diz respeito a lugares imaginários; e, portanto, foi possível, através deles, nos aproximarmos do lugar, “a dimensão mais concreta do espaço, da qual ninguém pode desligar-se, por ser o espaço das relações imediatas”. (KOZEL, 2001, p.154). Percebemos inclusive, nessa dinâmica de trabalho, um evolução/atualização do conceito

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de comunidade quilombola, direta ou indiretamente, a partir do resultado dos mapas mentais que engloba: a valorização de elementos materiais e simbólicos resultantes da autodeclaração; pertencimento territorial com consciência dos limites/ restrições ao domínio e usufruto desse território; afirmação das relações de parentesco; as referências de identidade; e por fim, a constatação de que os sujeitos investigados não se encontram isolados ou alheios às inovações que ocorrem no seu entorno. E mesmo as ausências significaram aqui, de alguma forma, um dado importante da realidade experimentada pelas crianças de Barro Preto. Vale ressaltar que a própria ação coletiva entre comunidade, entidades do movimento negro e poder público que resultaram no reconhecimento da comunidade de Barro ­Preto, é representada por seus elementos materiais e simbólicos, e em alguns casos perceptíveis na análise dos mapas mentais. Entre as melhorias advindas do reconhecimento do povoado como comunidade quilombola, temos a captação e distribuição da água, que, além de ser uma questão conflitiva discutida entre a comunidade, fazendeiros e poder público, mostrou-se como uma experiência que gerou satisfação entre as crianças que a retrataram registrando em seus desenhos com frequên­ cia as caixas de água sobre as casas da comunidade, além de expressarem/ documentarem também a sua satisfação em obterem um local de lazer, a quadra esportiva da comunidade. Outras questões políticas foram apresentadas, tal qual o atual confinamento territorial experimentado pelos habitantes de Barro Preto e suas consequências na vida deles. Partimos da constatação de que o reservatório de água da comunidade situa-se em terras hoje não mais sob domínio dos quilombolas e, além disso, a presença de cercas e porteiras arbitrariamente instaladas pelos fazendeiros da vizinhança e,

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por consequência, a dificuldade de se manter a reprodução de roças em áreas para além desses limites, as quais eram terras ocupadas por seus antepassados, foram retratados pelos estudantes. Portanto são perceptíveis as noções que eles possuem da potencialidades e limites de seu território, como também, de pertencimento ao Lugar, ou seja, “o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence”, a identidade. (SANTOS, 2001, p.96). Outra importante vivência apresentada pelas crianças é o fato de identificarem os moradores do lugar integrantes de uma família extensa, corroborando com a ideia de que as comunidades quilombolas no Brasil “[...] são comunidades negras rurais habitadas por descendentes de escravos que mantêm laços de parentesco” vivendo de “[...] culturas de subsistência em terra doada/comprada/secularmente ocupada” (MOURA, 2007, p.10). No caso de Barro Preto, as terras foram compradas por ex-escravos das fazendas do atual entorno da comunidade e trazidos do Rio de Janeiro – RJ (diferentemente, portanto, da ideia generalizada de fuga de escravos, recorrente no imaginário social brasileiro sobre os quilombos). A luta quilombola e do próprio movimento negro local, em busca da construção de uma escola que seja realmente diferenciada para suas crianças e adultos, ou seja, que respeite as diferenças étnicas sem, contudo, hierarquizá-las, foi explicitamente verificada no conteúdo de apenas um mapa mental, na inscrição “Barro Preto Resgata sua História e tem Orgulho de sua Cor”. Esta escrita na parte central do mapa diz respeito ao nome do primeiro projeto pedagógico realizado na escola e remete a uma leitura de consciência da identidade étnica, despertada por projetos que buscaram quebrar o silêncio produzido socialmente pelo racismo ao trazer a afirmação positiva, e ruptura com as experiências de muitos adultos quilombolas,

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que ser negro é sim um motivo de orgulho. Assim, percebemos também que uma proposta antirracista na escola só encontra sentido quando o racismo é desmistificado, pois o silêncio reforça e perpetua as suas conseqüências (GOMES, 2005, p.51). Embora se trate de um trabalho que para ser eficaz é de duração prolongada, e ademais, não pontual, localizado. Percebemos ainda que essas comunidades não se encontram imobilizadas em relação ao que se passa ao seu redor, e, nessa perspectiva, gostaríamos de enfatizar o contato dessa comunidade rural com o urbano e seus aparatos. Portanto, não é difícil para Barro Preto conceber em seu interior a valorização das tradições culturais dos antepassados, as normas de pertencimento, acompanhadas simultaneamente da vontade de ter acesso a novas tecnologias e outros valores socioculturais, que em nossa ótica, devem ser vistos como “processos que não devem ser negados, eles existem, e ao contrário, devem ser compreendidos enquanto direitos” (ALVES, 2012, p.56). Portanto, diferentemente do imaginário social para o qual os quilombolas estariam “congelados” no tempo (em um passado remoto e isolados), eles se atualizam culturalmente e com essas novas experiências adquiridas, lutam em busca de concretização de direitos, dentre eles, territoriais e educacionais. Já o importante dado que nos coube traduzir em “produção de ausências” liga-se à seguinte constatação: embora a escola tenha profunda importância no processo de reconhecimento da comunidade, ela atualmente não desenvolve um trabalho que sustente práticas e ações determinantes/ significativas para as crianças em que o processo educativo formal dê sentido aos conteúdos, à aprendizagem, ao conhecimento, extrapolando os muros institucionais. Nos mapas mentais elaborados pelos estudantes há poucos registros da existência da escola no território quilombola. Contraditoriamente, a

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estrutura escolar foi reformada e, diferentemente das construções comunitárias locais, ela tem um imenso muro de cor laranja, possui o único telefone público de Barro Preto, comporta o museu criado pelos moradores e está localizada na rua principal da comunidade. Outra constatação que emergiu do trabalho sobre as ausências nos resultados dos mapas mentais situa-se no plano das relações humanas, salvo aquelas estabelecidas entre as próprias crianças. Curiosamente, há poucos adultos em suas imagens (representações nos mapas mentais). Pelas investigações da pesquisa, percebemos que possivelmente essa representação tenha relação com o próprio distanciamento das crianças da comunidade com o atual mundo adulto. ­Sabe-se que os adultos (assim como os jovens) estão imersos no ­mundo do trabalho, e mesmo da escola (nas séries ­sequenciais do Ensino Médio), e por isso ficam fora da comunidade, durante os dias da semana. No seu cotidiano, os cuidados das crianças ficam a cargo dos mais velhos e da escola e, portanto, são poucos os adultos que permanecem cotidianamente no interior das casas, e talvez, por isso, nos mapas mentais eles são representados apenas nas janelas das casas. Tais resultados nos aproximam, em certa medida, do conceito de comunidade quilombola elaborado para o atendimento do Artigo 68 da ADCT, em que se busca conjugar a referência da identidade ao uso territorial tentando, portanto, superar as ideias clássicas a respeito do tema. Pelo Decreto Lei no 4.887 do ano de 2003, temos: remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnicos raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com formas de resistência à opressão histórica sofrida. (BRASIL, 2003).

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Concluímos assim que os elementos que configuram, na atualidade, uma comunidade quilombola e a rede de comunicação que a mesma experimenta em busca de direitos geram ou intensificam outros elementos simbólicos e materialmente construídos, que podem ser assimilados pelas crianças em diferentes graus. E nessa pesquisa eles foram reproduzidos e puderam ser passíveis de decodificação (não sem o auxílio de uma pesquisa que busca revisar conceitos e com o auxílio de diálogos oportunamente estabelecidos in loco entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa). Portanto, o significado de comunidade quilombola, embora não seja objetivo da pesquisa, pôde ser verificado e analisado pelos mapas mentais, sendo possível inclusive nos aproximarmos do lugar de vivência experimentado pelas crianças. É válido procurarmos resgatar, por fim, os postulados do ­grande geógrafo sino-americado Yi-Fu Tuan quando ele demarca que: [...] muitos lugares, altamente significantes para certos indivíduos e grupos, têm pouca notoriedade visual para seus visitantes. São conhecidos emocionalmente, e não através do olho crítico ou da mente. (TUAN, 1983).

Daí os mapas mentais terem atraído o interesse, principalmente, de educadores, psicólogos, antropólogos, urbanistas, e evidentemente, também de geógrafos.

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DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE Luís Tomás Domingos

Introdução Conforme as nossas pesquisas de campo efetuadas em Moçambique, constatamos que o impacto da educação dita formal, com fundamentos ocidentais, tem desempenhado um papel ambíguo nas culturas africanas. A história humana foi marcada por choques de culturas no processo de educação e hoje se acentua a crise epistemológica e paradigmática sobre a educação. Isto ocorre no contexto onde as sociedades ditas modernas se preocupam cada vez mais em ampliar o acesso à educação com o pretexto de diminuir os índices da exclusão social. No entanto, a persistência de diversos questionamentos é frequente: que tipo de educação se pretende instituir nas nossas sociedades multiculturais onde as identidades culturais são diversas? Até quando as línguas dos colonizadores – assumidas como línguas oficiais dos países africanos após as independências – serão consideradas como parâmetros para mensurar o “nível de alfabetização” de povos que não as praticam, mas leem e escrevem em suas línguas maternas? Como ensinar na África, tendo em vista a característica da oralidade das sociedades africanas? Como explicar os conceitos da educação, da ancestralidade, sabedoria, conhecimentos e religiosidade africanos nas sociedades ocidentais e vice-versa? Como integrar as tradições culturais africanas, suas línguas, ritos etc. nas escolas oficiais da África? É possível um povo se apropriar da técnica moderna e suas formas especificas de organização sem renegar a sua cultura

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tradicional? Uma cultura não europeia, diante do processo de globalização, pode se modernizar sem nada alterar da sua forma de ver e construir a sua própria história, cultura e valores? Enfim, o setor da educação formal está habilitado, capacitado e preparado para responder a estes múltiplos desafios? Nós consideramos essas e outras preocupações como desafios da educação em Moçambique e na África em geral. Na sociedade moderna, onde sistemas educativos formais tendem a privilegiar o acesso, muitas vezes, ao conhecimento escolar, em detrimento de outras formas de saberes e aprendizagem, é essencial conceber a educação do ser humano de uma maneira integral. O conhecimento de outras culturas, outras formas de educação, interfaces de saberes, o confronto através do diálogo e de trocas de argumentos, é um dos meios indispensáveis para enfrentar os desafios da educação. Esta perspectiva deve inspirar e orientar as reformas educativas, tanto na elaboração de programas quanto na definição de novas políticas pedagógicas que respeitem as diversidades socioculturais. A nossa reflexão tem como objetivo ultrapassar a visão puramente instrumental da educação formal, considerada hoje como a via obrigatória para obtenção de algo (diplomas, ascensão e status social, aquisição de capacidades diversas com fins econômicos etc). No mundo da educação tradicional africana, diversos elementos do Cosmos estão em função do homem. O homem está no centro do universo. E é nesta dinâmica que o negro africano se organiza e vive a totalidade das realidades visíveis e invisíveis. E a razão da existência do homem na cultura africana se realiza no seu equilíbrio consigo mesmo, com a sociedade, a natureza e o universo. Trata-se de um esforço permanente de integração das energias do Cosmos no circuito

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da força vital do ser humano e a sua participação integral e total no universo (DOMINGOS, 2005). Neste contexto tudo está interligado numa dimensão participativa e solidária. E a educação do munthu, ser humano, se desenvolve acompanhada por etapas de vida e rituais precisos e necessários, conforme os preceitos de cada tradição cultural africana. Dentro das diversidades culturais étnicas, existe uma unidade cultural. No mundo africano, ao lado do visível e aparente das coisas, há sempre um aspecto invisível e enigmático. A concepção da educação tradicional se fundamenta na força vital, no principio da vida e na interação dessa em diferentes etapas da vida humana: nascimento, iniciação, casamento e morte. É neste contexto que a educação na cultura africana participa de uma forma dinâmica, marcante, pertinente e contribui para compreensão da dimensão simbólica e esotérica do homem: o mistério humano. Enfim, a educação tradicional Africana visava a integração harmoniosa do individuo no grupo social, conforme o seu status que lhe consignava, seu sexo, sua posição de nascimento, função da família (PREVOST e LAYE, 1968, p.115).

A escola é uma grande família onde se faz a aprendizagem da vida. Ela é uma casa aberta sobre o mundo onde as crianças ricas ou pobres se juntam e partilham todos os seus sentidos da felicidade. “Todos os dias os ouvidos vão à escola”, (Provérbio Bambara/Mali). E “cada dia a orelha ouve o que não tinha ainda entendido”. (Provérbio Malinké). No processo da educação tradicional africana, as pessoas idosas são consideradas como os detentores privilegiados da sabedoria da ancestralidade e são considerados como autênticas bibliotecas vivas nas quais as prateleiras estão ligadas entre si por um laço invisível. “Na África, velho que morre é

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uma biblioteca que se queima e perde.” (Provérbio Africano) E as fichas imateriais do catálogo de tradição oral são máximas, provérbios, contos, lendas mitos etc. que constituem ora um esboço a ser desenvolvido, ora um ponto de partida para narrativas didáticas antigas ou improvisadas. A filosofia de educação africana está confirmada por canais de transmissão práticos e na dimensão iniciática. As oficinas artesanais, por exemplo, eram verdadeiras escolas tradicionais, onde se ensinava não apenas uma tecnologia, mas todo um conjunto de conhecimentos científicos e culturais ligados ao oficio. O aprendiz de ferreiro, por exemplo, que trabalhava silenciosamente ao lado de seu mestre, tinha acesso, através do simbolismo dos instrumentos da forja, a uma explicação particular do mundo e do papel do homem no universo, papel fundado na ideia  de responsabilidade e de interdependência de todas as coisas. Ele recebia, além disso, um conjunto de conhecimentos concretos sobre geologia, mineralogia, botânica, e toda uma educação do comportamento. As escolas artesanais tradicionais ferreiros, tecelões, sapateiros, trabalhadores da madeira, narradores..., reunidas em torno dos mestres, eram, assim, lugares de transmissão de toda uma cultura. (HAMPATE BA, 1981).

A educação tradicional africana não tem o mesmo sistema do ensino europeu. Tradicionalmente, a própria vida era educação. O jovem era educado desde criança a aprender a ouvir e aprofundar os conhecimentos que vinha recebendo desde sua iniciação, na adolescência. Muitas vezes os jovens realizavam longas viagens iniciáticas e as investigações e extensão do aprendizado dependiam da destreza, da memória e, sobretudo, do caráter do jovem. Se o jovem era cortês, simpático e serviçal, os velhos lhes contavam segredos que não contariam aos outros, pois diz o proverbio africano: “O segredo do velho não se

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compra com dinheiro, mas com boas maneiras.” Assim a educação dura toda a vida da pessoa. Como dizia Hampathe Ba: Pode-se dizer que o oficio, ou a atividade tradicional [na África], esculpe o ser do homem. Toda a diferença entre a educação moderna e a tradição oral encontra-se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre é válido, enquanto o conhecimento herdado na tradição oral se encarna na totalidade do ser. Os instrumentos ou as ferramentas de oficio materializam as Palavras sagradas, o contato do aprendiz com o oficio obriga a viver a Palavra a cada gesto. (HAMPATE BA, 1972, p.199).

A educação africana tem seus valores positivos e seus limites: a ausência da escrita, o excesso de culto à memória e introversão exagerada, a sua insuficiência de fazer face a uma extensão na transmissão e mobilidade de conhecimentos, as dificuldades dos métodos de aprendizagem e assimilação de conhecimentos; o limite do processo de transmissão da oralidade diante das exigências cientificas da cultura contemporânea, pós-modernidade marcada pelo processo de globalização. Como observa M’Bokolo (2009, p.48): Ao lado destas dificuldades técnicas, [...], há problemas de fundo muito mais árduos que poderíamos esquematicamente formular desta maneira: de qual (ais) historia(s) as tradições orais são elas “fontes”? Será de resto necessário só as considerar como “fontes”? Só nos falam do passado ou também – e talvez – do presente? Um dos numerosos exemplos que mostram a imperiosa necessidade do rigor e da delicadeza com as quais é necessário manipular estas fontes é das narrativas de origem tão abundantes em todas as áreas culturais e políticas Africanas. A identidade e a posição social das pessoas participando na cadeia de transmissão do testemunho são tão importantes como o conteúdo do próprio testemunho.

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A filosofia da educação africana sempre foi vista com reservas e excluída dos fundamentos da educação ocidental, da educação considerada “universal”. Todo o pensamento filosófico e intelectual africano era considerado primitivo. O termo “primitivo’ foi, ao longo de tempo, associado a “selvagem” e/ ou “bárbaro”. Em relação aos povos europeus, ditos “civilizados”, as populações (não europeias) colonizadas passavam pelo processo de evolução. Esses povos não europeus, por conseguinte, eram primitivos, selvagens, animistas, praticavam a magia, etc. (MORGAN, 1877; TYLOR, 1871; FRAZER, 1890). Essas ideias evolucionistas foram advogadas socialmente por Spencer através da doutrina “Darwinismo social” e todas suas consequências nefastas para a humanidade. E, [...] ao longo da história colonial a Europa voluntariamente considerou os africanos do sul do Saara como pagãos, selvagens, homens primitivos, naturais vivendo no estado original da espécie humana (JAHN, 196, p.17).

Na antiguidade grega se designava por bárbaro tudo o que não fazia parte da cultura helênica. No Renascimento (séculos XVII e XVIII), se consideravam os naturais ou selvagens, opondo deste modo a animalidade à humanidade. O termo primitivo triunfou no século XIX, enquanto na época atual se opta preferencialmente pelo termo subdesenvolvido. Essas conotações pejorativas e etnocêntricas foram compartilhadas por muitos autores e intelectuais da época posterior. Como exemplo, podemos citar o Conde de Gobineau (1963, p.369) que resume as características da “raça” negra na sua famosa obra Essai sur l’inégalité des races humaines: A variedade melaniana é a mais humilde e sem movimento embaixo da escala. O caráter de animalidade emprenhada na forma da sua bacia lhe impõe o seu destino, desde o instante da sua concepção. Ele não será

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jamais do ciclo intelectual o mais restrito. É, portanto, um bruto puro e simples, que este negro com fronte estreita e fugitiva, que traz na parte do meio do seu crânio, os índices de certas energias grosseiramente potentes (poderosos). Se estas faculdades pensantes são medíocres ou mesmo nulas, ele possui no seu desejo, e na sua vontade, uma intensidade, muitas vezes terrível. Vários dos seus sentidos são desenvolvidos com o rigor desconhecido às outras raças: o gosto e principalmente o odor.

Ideias que serão retomadas e expressas nos mesmos termos pelo filosofo alemão Hegel, que em sua obra La Raison dans l’Histoire: Introduction à la Philosophie de l’Histoire, nos descreve o horror que sente frente ao estudo da natureza que é a desses povos, que jamais ascenderão à “história” e à “consciência de si”. Ele prefere falar de “sociedades sem escrita”, o conceito que oferece oposição à historia: A África longe de ter a história, ficou fechada, sem o contato com o resto do mundo, é o país de ouro, fechado sobre ele mesmo, o país da infância que para além do dia da história consciente é envolvido na cor da noite. (HEGEL, 1965, p.39).

A África, ao longo dos séculos, foi considerada desprovida de história, conforme os princípios da filosofia da história e da historiografia ocidental. Por conseguinte, a África é uma criação do ocidente. Ao longo de séculos, a relação entre a Europa e a África foi uma relação de poder, de dominação, de graus variados de exploração, e de complexidade de hegemonia, sobretudo, pelo não reconhecimento do sistema da educação do outro. Sobre este aspecto, Mudimbe (1988), apresenta: “a invenção da África: gnosis, filosofia e a ordem de conhecimento.” Aliás, como constata M’Bokolo (2009, p.45-46):

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As fontes escritas de todas as origens- egípcias, gregas, latinas, chinesas, árabes, européias... – de que certos historiadores tinham feito a condição sine qua non da produção de obras históricas, se revelam também difíceis de explorar, ou até enganadoras. A fascinação exercida pelos mirabila [sic.] – a respeito dos quais as fontes da Antiguidade clássica oferecem o primeiro exemplo conhecido – prolongou-se através dos escritos árabes e europeus, até o fim do século XIX e talvez mesmo até os princípios do século XX. Qual é a historia que semelhantes fontes permitem estudar? Trata-se da história da África ou antes a história da percepção da África pelos outros, percepção da qual sabemos que não cessou de reproduzir preconceitos e estereótipos ao mesmo tempo que ia criando novos?

Se o contato entre Europa e África tivesse sido feito num contexto “igualitário”, e se existissem objetivos e projetos comuns, provavelmente os preconceitos e a hostilidade latente poderiam ser apaziguados e relativizados, dando lugar a uma cooperação sincera e humana. Nessa perspectiva, a nossa proposta de educação se prioriza na descoberta progressiva do Outro como o ser humano. E esta educação exige duas vias complementares. Num primeiro momento, a descoberta progressiva do Outro, através de imersão prolongada na sua cultura. Num segundo momento, e ao longo de toda vida, a participação em projetos comuns, que parece ser um método eficaz para resolver conflitos latentes. A tentativa de estabelecer concordâncias dos conceitos de escola e educação na África com as categorias culturais ocidentais arrisca deixar de fora a essência da educação na visão do mundo africano. Numa série de estudos, Foucault restabeleceu uma espécie de “genealogia do sujeito moderno.” Ele aborda um novo tipo de poder, que designa de “poder disciplinar”, que se desdobra ao longo do século XIX, chegando ao

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seu desenvolvimento culminante no século XX. O poder disciplinar se preocupa em primeiro lugar, com a regulação, a vigilância e o governo da espécie humana ou de populações inteiras e, em segundo lugar, do indivíduo e do corpo. Seus locais são aquelas novas instituições educativas ou reeducativas que se desenvolveram ao longo do século XIX e que “policiam” e disciplinam as populações modernas- oficinas, quartéis, escolas, prisões, hospitais, e assim por diante (FOUCAULT, 1975). O objetivo destas instituições ditas educativas consiste em produzir “um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil” e obediente (DREYFUS e RABINOW, 1982, p.135). Para o Africano, a educação não é apenas tornar dócil, obediente e obter aquisições de diplomas, ter o “domínio” técnico e cientifico sobre a natureza, promover o desenvolvimento da “razão” face à realidade contingente etc. A educação Africana se fundamenta no Ser Humano. Numa perspectiva dinâmica de encontrar uma harmonia, o equilíbrio, justiça, uma coerência, uma compatibilidade global de todas as disciplinas face ao Universo (KAGAME, 1976). É na educação que se integra Ujamaa, o desenvolvimento e a fraternidade entre os homens (NYERERE, 1968). É com a educação que o munhtu, ser humano, diante da força vital, encontra uma harmonia consigo mesmo, com a sociedade e com o universo (TEMPELS, 1965). Uma abordagem epistemológica do pensamento africano: na confiança em si surge a partir da confiança do conhecimento de si mesmo” (KI-ZERBO, 1978). E a alteridade bem compreendida é a referência crítica ao passado e a importância insubstituível de pesquisa que se apoia na sabedoria ancestral africana. A pesquisa faz parte integrante do desenvolvimento, como uma das dimensões do direito ao desenvolvimento, mas

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também como a etapa estrutural de toda mudança positiva. Sem a pesquisa endógena, não há desenvolvimento endógeno. Não há progresso material, sem a reflexão teórica, sem a ciência e consciência prática. Neste sentido, a educação se torna um fator primordial, no sentido pleno do termo. Cabe à educação fornecer a bússola e os mapas que permitam navegar através de um mundo complexo, constantemente agitado e em transformação permanente. Nessa visão de educação, uma resposta puramente quantitativa à necessidade insaciável – uma abordagem escolar cada vez mais pesada – já não é possível nem mesmo adequada. A escola [ocidental] sozinha não engloba toda a dimensão integral da educação do homem. A escola é apenas um dos meios (oportunidades) dentro de tantos outros, certamente organizada, mas não talvez a melhor, sobretudo na África (KI-ZERBO, 1978, p.642).

Não basta que cada homem acumule, no começo da vida, uma determinada quantidade de conhecimentos da qual possa abastecer-se indefinidamente. É necessário, desde o início, e em todas as fases de vida explorar, enriquecer todas as dimensões da existência da vida humana e se adaptar a um mundo de mudanças. Uma abordagem sistemática sobre a escola, educação no mundo, na África, e em Moçambique passa, necessariamente, pela integração sociocultural entre as teorias e as práticas pedagógico-educativas, que possam responder ao desenvolvimento integral e harmonioso do ser humano.

O Impacto da Educação Colonial na África A análise da educação colonial permite compreender a difícil tarefa de ruptura e/ou continuidade com o passado

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que foi preciso empreender após a independência das antigas colônias europeias na África. No período colonial, os colonizadores europeus tinham acesso ao ensino. As crianças e os jovens africanos negros, para frequentar a escola, deveriam ser assimilados, ou seja, eles tinham que pertencer às famílias que comprovadamente possuíssem hábitos europeus “cultura civilizada”: saber ler e escrever a língua portuguesa, deixar de falar “dialetos” (as línguas africanas), ser batizado cristão, não ter práticas culturais africanas (“primitivas” e “selvagens”) e mostrar “bom comportamento”. Assim, em torno de 0,3% da população africana era considerada assimilada ou “evoluída” e aos demais, 99,7%, estava vedado o acesso às escolas. O africano seduzido pelas “vantagens” da civilização ocidental, se adaptou a novas formas de existência com objetivo supremo de se tornar, senão um europeu, ao menos proprietário parcial ou da parte inteira de seus bens, desses instrumentos e desse prestígio que se fundamenta à sua vista a superioridade do branco. Segundo Fanon (1991, p.91): O que eles [colonizados] exigem não é o status do colono, mas o lugar do colono. Os colonizados, na sua imensa maioria, querem a fazenda do colono. Para eles não se trata de entrar em competição com o colono. Eles querem o lugar do colono.

Como conta o escritor africano Kane (1961, p.44-45): Ha quase cem anos, o nosso avô, e ao mesmo tempo todos os habitantes deste país, foram acordados numa manhã pelo clamor que subia no rio. Ele [o avô] pegou o seu fuzil e seguido pela elite se precipitou sobre os novos que chegaram. O seu coração era intrépido e apegado mais ao preço de liberdade do que à vida. O Nosso avô, assim como a sua elite foram derrotados. Por quê? Como? Só os novos que chegaram sabem. E é preciso lhes perguntar, é preciso ir aprender na casa

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deles a arte de vencer sem ter razão. De mais a mais, o combate ainda não terminou. A escola estrangeira é a forma nova de guerra que nos fazem os novos que vieram, e é preciso enviar a nossa elite, e esperando lhes expulsar do nosso país. E é bom que a nossa elite a proceda. Se há um risco, basta uma elite melhor e bem preparada para fazer face, porque está apegada a ela mesma. Se é bom disparar; é preciso que a elite seja a primeira a fazer. (Grifo nosso).

Um dos grandes projetos do governo Colonial na África era de assimilar os povos colonizados à civilização europeia pela educação. Como se situavam os Africanos face ao sistema educacional colonial? Foi na ambiguidade de comportamento frustrante, de ser e/ou não ser africano, que muitos professores e alunos africanos se encontravam na época. Este era o dilema de muitos africanos. Eis o testemunho de Laye (1953, p.84-85) que expressa o sentimento dos alunos que frequentavam a escola colonial: Nós procurávamos não chamar a atenção, ou chamar a atenção o menos possível do professor. Pois nós tínhamos o medo constante de sermos enviados ao quadro-negro. Esse quadro era o terrível pesadelo: o seu reflexo sombrio refletia muito pouco o nosso saber, e este saber era muitas vezes muito pequeno e até não o havia, ele era frágil, e o saber vazio circulava em nós. Para evitar receber a palmatória e ter nota alta e enfim ter o diploma, o certificado de estudo, então era preciso repetir decorado o que o professor dizia.

Eram poucos africanos que conseguiam estudar e obter os tais diplomas. Aprendiam a se comportar como colonos europeus. Tornavam-se assimilados, evoluídos (les évolués), e a eles eram oferecidos os postos de trabalho mais insignificantes. Eram então considerados africanos civilizados e tinham direito de ter alguns privilégios do sistema colonial.

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No caso de Moçambique, o país herdou um legado colonial pesado em quase 500 anos de dominação: o colonialismo apenas conseguiu converter 7% de população indígena para o mundo da leitura e escrita. E é importante lembrar que, todo africano colonizado era considerado indígena. Uma minoria de africanos que tivera o privilégio de ter acesso à escola na época colonial, recebera uma educação que era a negação dos valores culturais de tradição africana, acusada de primitiva, obscurantista, supersticiosa etc. A educação colonial era, por conseguinte, o veiculo de dominação, de manutenção do sistema colonial português. As políticas governamentais para educação moçambicana definidas em 1929-1930 eram fundamentadas numa base de discriminação racial e religiosa. A legislação de 1929 proibia o uso de línguas vernáculas (línguas maternas locais) para o ensino, impondo a obrigatoriedade da língua portuguesa. E regulamentava a construção de escola e seus anexos, formação de professores para as escolas indígenas (africanas), impunha limites de idade de acesso às escolas primarias e internatos para a população indígena. Somente era permitida a religião cristã, de preferência católica. O uso da língua portuguesa como um meio de imposição e dominação ideológica e transmissão de valores culturais coloniais foi sempre uma regra fundamental no sistema educacional. Assim, reforçando os decretos de 1929, – que regulamentavam o exercício das missões religiosas e diversas confissões e nacionalidades e das escolas de ensino primário (diplomas legislativos n° 167 e 168/1969)-, o Estatuto missionário (art. 16) reafirmava que nas escolas missionárias para indígenas, o ensino de língua portuguesa era compulsório. (FERREIRA, 1967, p.7). A praticada educação separada entre o ensino primário para a população indígena – criada pelo di-

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ploma legislativo n°238/1930 –, e para os cidadãos foi oficialmente introduzida em 1941, quando a educação para indígenas foi entregue à responsabilidade da Igreja católica. (RAUL, 1995). Para os europeus, os não negros (indianos e mulatos) e negros com o estatuto de assimilados, a escola tinha planos e programas semelhantes aos lecionados em Portugal. Para a população africana, considerada indígena, estava reservada a educação rudimentar. A partir de 1956 foi instituído o ensino de adaptação. Esta realidade ilustra o papel desempenhado pela educação na África de maneira geral e na realidade moçambicana, em particular, e por um processo de assimilação de uma ordem social colonial. As categorizações étnicas, raciais e religiosas foram incentivadas pelo sistema de educação colonial dentro do preceito de dominação “dividir para reinar”. A educação colonial, por outro lado, criava o desenvolvimento de competência, o alargamento do universo cultural e uma abertura para novas visões e valores. Nesta dinâmica contraditória, permitia aos jovens africanos desenvolver a consciência crítica, analisar o mundo que os rodeava e consequentemente compreender melhor a realidade social e política. Reforçava a tomada de consciência da fronteira entre o pertencimento e o não pertencimento, entre o colonizador e o colonizado, o dominante e o dominado. Os estudantes se conscientizavam diante de uma sociedade colonial onde a religião, a língua e a educação padronizavam as diferenças. O cristianismo e o colonialismo eram aliados e impuseram novos valores morais e culturais às sociedades africanas provocando choques de culturas e crises de identidades. Alguns moçambicanos, face ao processo de discriminação, aprenderam a construir as suas estratégias de resistências, negociações e sobrevivências em relação ao sistema colo-

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nial racista. E outros se resignaram, assumindo formalmente o estatuto de assimilados à cidadania portuguesa alegando ser: [...] para evitar o trabalho forçado, o serviço militar para nativos e uma total ausência de direitos civis [...] bem como para assegurar pelo menos um futuro menos degradante para os seus filhos (HONWANA, 1985, p.72).

Depois da Independência de Moçambique, em 1975, o povo foi convidado a lutar contra a miséria, o analfabetismo, o subdesenvolvimento, a superstição, a ignorância etc. O povo observa que a vida é uma luta permanente. Nesta conjuntura, a guerra não é uma batalha, mas uma sucessão de combates locais nos quais, de maneira real, nenhum deles é decisivo ou determinante. Por outro lado, observa-se que os jovens países africanos abordam com uma facilidade perigosa os conceitos da nação para etnia, de Estado para tribo e o discurso da unidade nacional prevalece, aparentemente, como sendo politicamente correto e recomendável. Estas foram algumas das formas alternativas de sobrevivência, uma alteridade, mantendo a sua identidade africana “camuflada” num processo transcultural e trans-étnico resultante do processo de construção e reconstrução de identidade que caracteriza, geralmente, as sociedades africanas.

O Papel Ambíguo de Educação na Formação de Identidades Para além da ambivalência de identidades criada pela educação colonial através do processo da assimilação, o conceito de identidade acabou por se ampliar num campo mais vasto, ultrapassando as fronteiras da etnia ou da região geográfica, resultando num sistema de múltiplas identidades. A identidade cultural é dinâmica e híbrida. Como confirma Hall (2006, p.409):

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Acho que a identidade cultural não é fixa, é sempre hibrida. Mas é justamente por resultar de formações históricas especificas, de histórias e repertório culturais de enunciação muito específicos, que ela pode constituir um “posicionamento”, ao qual nós podemos chamar provisoriamente de identidade. Isto não é qualquer coisa, Portanto cada uma dessas histórias de identidade está inscrita nas posições que assumimos e com as quais nos identificamos. Temos que viver esse conjunto de posições de identidade com todas as suas especificidades.

Se considerarmos a “etnicidade” ou o “tribalismo” e o nacionalismo, como conceitos em movimento, concluiremos que a natureza da consciência sobre mutações ocorre de acordo com o contexto histórico. A elaboração de um conceito mais lato de identidade, dentro de novas fronteiras, construídas nas áreas sociais e reforçadas pelo contexto sociocultural do colonialismo português em Moçambique vai estimular, de certa forma, a consciência de construção de uma identidade nacional. A consciência nacional emergente em Moçambique foi imaginada, inventada e criada no seio das fronteiras coloniais. E as identidades inicialmente construídas foram depois “re-imaginadas” para poderem se ajustar a uma causa nacional, que mais tarde veio a se transformar numa oposição política ao desenvolvimento do projeto nacionalista português. Com abolição do indigenato em 1961, novos caminhos se abriram para outra educação. As reformas subsequentes trouxeram oportunidades, sobretudo, para o ensino primário. O acesso a outros níveis sociais mantinha ainda barreiras que tinham por objetivo evitar o crescimento de uma elite africana que podia vir a construir uma possível oposição política face ao colonialismo português. Assim, nas décadas de 1960-1970 algumas congregações das igrejas católica e protestante, entre outras a Missão Suíça, centralizaram suas ações no ensino se-

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cundário e superior, através de uma política de concessões e distribuição de bolsas de estudo, investindo ainda em um esforço adicional na formação ideológica e escolar dos pastores e seus colaboradores. No período das lutas de libertação, muitos países africanos lançaram campanhas contra o analfabetismo. Em Moçambique, esta iniciativa começou nas zonas libertadas, durante o processo da luta de Libertação Nacional. A alfabetização para os africanos não era apenas o aprendizado da técnica de ler e escrever, mas sim um instrumento de mobilização, o processo de tomada de consciência da realidade de dominação em que viviam. A alfabetização foi e ainda é o instrumento de mobilização para a busca coletiva de soluções para os problemas socioculturais e políticos etc. O processo de alfabetização incentivou a necessidade de resgate das raízes africanas, ou seja, a tomada de consciência de pertencer a uma identidade cultural africana dentro das suas diversidades. As diferentes ditas “tribos” e “etnias” que eram rivais tomavam a consciência dos seus aspectos culturais semelhantes e tinham o mesmo inimigo, o regime de dominação colonial. As relações de parentesco africanas desempenham funções na lógica social de solidariedade entre as comunidades e etnias. A solidariedade entre as comunidades é atribuída às relações de parentesco nuclear e da família alargada. A hospitalidade e solidariedade são baseadas na reciprocidade. As trocas comerciais, econômicas se fundamentam na responsabilidade social. E as relações sociais dentro e fora da comunidade são definidas e fundamentadas na justiça, equidade e equilíbrio. Nesta constante procura do equilíbrio, os conflitos sociais não estão ausentes. A dinâmica de relações sociais africanas contribui para criação de bases para o humanismo

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e, de acordo com Julius Nyerere, é “uma atitude da mente” e é o fundamento do “socialismo africano” baseado na ideia de Ujamaa ou “familiaridade”. A família estendida não está definida, apenas, pelo sangue nem pela linhagem. A tradição cultural africana considera que todos os homens constituem uma única irmandade – onde cada homem é membro integrante da família humana estendida. Este constitui o fundamento dos valores da hospitalidade e solidariedade africana, Ujamaa, o humanismo africano. (NYERERE, 1987, p.512-5)

A Educação na Fase Pós-Colonial Depois da independência, por volta dos anos 1960, muitos africanos pensavam que a vida ia mudar drasticamente, agora sob o controle de um governo nacional e as escolas iriam passar para as mãos deles próprios, onde poderiam traçar o seu destino. Mas o processo de mudança é lento, requer tempo e reformas profundas das mentalidades influenciadas pelo regime colonial secular. As consequências da educação colonial ainda constituem os desafios para as elites africanas na construção de identidades nacionais e africanas. Mas nem todo processo de subdesenvolvimento, de pobreza que assola o continente e alguns países africanos, se explica pelo mecanismo de colonização. Outros fatores adversos intervêm: falta de iniciativa local, ambições individuais e puramente econômicas, a ganância do poder gerando conflitos armados, muitas vezes equacionados pelas mãos invisíveis externas com a conivência das internas e vice-versa, corrupção etc. A independência é, porém, um processo de construção permanente. A experiência dolorosa do povo moçambicano durante o regime colonial teve, de certa maneira, um impacto deter-

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minante nas decisões tomadas sobre a educação após a Independência (1975). Muitas dessas diretivas educacionais, fruto de circunstância, foram assessoradas pelos especialistas e consultores que desconheciam o país e a cultura africana. As orientações básicas educacionais e os pressupostos teóricos da então dita doutrina do “socialismo cientifico”, se tornaram autênticas aventuras pedagógicas educacionais inseridas nos projetos utópicos e experimentais. Os autores militavam pela formação de uma identidade do “homem novo” com nova mentalidade nacional moçambicana. Afinal, qual era o fundamento desta educação que menosprezava as tradições africanas? As respostas são enigmáticas. Hoje, certas correntes de intelectuais não-africanos persistem em negar a importância e o interesse do desenvolvimento do ensino universitário na África em proveito da educação de base. Outros defendem a criação do ensino técnico elementar (agrícola incluso) sob pretexto discutível da África ser muito pobre para que se possa defender a existência de universidades, já que o continente é de cultura essencialmente agrícola (BELONCLE, 1989). Ora, a educação universitária, através de ensino, pesquisa cientifica e extensão revela, cada vez mais, as condições de desenvolvimento na África. A articulação entre os diversos saberes tradicionais e os conhecimentos modernos permite aprofundar e compreender o mundo africano sob as suas diferentes vertentes. O sistema universitário contribui com o despertar da curiosidade intelectual, estimula o sentido crítico e permite compreender os fatos, mediante a aquisição de relativa autonomia e capacidade de distanciamento e de discernimento. Todavia, é também necessário imergir no conhecimento da Filosofia, Sabedoria e Ancestralidade da cultura Africa-

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na para compreender o mundo africano. Kagame, Ogotemmeli, Tempels, formularam de uma forma sistemática a filosofia africana, dos Ruandeses, dos Dogons, dos Bantos. Eles concordam nos seus princípios fundamentais, embora sejam povos de regiões aparentemente bem distantes uns dos outros. Entretanto, têm um denominador comum que nos permite interpretar a unidade da cultura africana dentro da sua diversidade, no tempo e no espaço. Para Mbiti (1990, p.5), a filosofia e religiões africanas estão relacionadas com o homem no tempo passado, sobretudo, no presente. Deus aparece dentro de uma figura como uma explicação do contato do homem com o tempo. E a doutrina filosófica é o resultado do evento histórico ou circunstâncias, em que se produzem ideias e conceitos em função das necessidades de resposta(s) às experiências vividas no tempo e espaço especifico. Por conseguinte: Como se trata de filosofia africana e não uma variedade da filosofia europeia, é evidentemente perigoso fazer correspondência no vocabulário filosófico europeu. Ao querer estabelecer a correspondência muito precisa com as nossa próprias categorias ocidentais, se arrisca de deixar escapar o que é precisamente essencial em relação ao pensamento africano (JAHN, 1961, p.25).

Desde que haja consciência, a imagem do mundo que era objeto de crença, de intuição e de experiência vivida, se transforma em filosofia. Como dizia Friedell (apud JAHN, 1961, p.25): Tudo é filosofia. A tarefa do homem é de pesquisar a ideia que se encontra escondida em cada fato, perseguir em cada fato o pensamento na qual é, apenas uma forma simples.

A educação de base universal e eficaz, por consequente, constitui ainda uma prioridade para muitos estados africanos,

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diante do fraco índice de escolaridade, levando em consideração a elevada taxa de analfabetismo existente na população adulta, no mundo rural em particular. A educação de base é uma exigência primordial de desen­volvimento. Mas educação de base e alfabetização, sem a intervenção das universidades e das pesquisas científicas que garantem as orientações ou as adaptações necessárias, não terão resultados necessários e esperados. Para serem eficazes e eficientes, eles deverão sofrer algumas modificações no tocante à sua estrutura, ao seu funcionamento, ao seu conteúdo e às suas finalidades dentro da perspectiva da emancipação sociocultural, psicológica dos beneficiários e das expectativas sociais que estão nelas. No conteúdo da educação não se pode esquecer “o conceito da cultura sobre o conceito do homem”, sobretudo na sua interpretação (GEERTZ, 1978). Os universitários e pesquisadores são também responsáveis pela perspectiva de integração da educação na sociedade e cultura africanas. Isto passa pelo processo de “africanização” dos programas e desenvolvimento de um método pedagógico que privilegie a cultura de um “espírito novo”, espírito de observação apto à criação, para uma libertação de imaginação e de uma curiosidade das crianças, passando pela necessidade de introdução das línguas africanas, (KI-ZERBO, 1978, p.642). E é essencial que cada criança, esteja onde estiver, possa ter acesso, de forma adequada, às metodologias científicas e aos conhecimentos tradicionais africanos de modo a se tornar, para toda a vida, amiga da ciência e da sua própria cultura. Várias instituições de ensino superior e centros de pesquisas cientificas na África, estão ainda sob tutela econômica de países europeus e as suas prioridades de ensino e pesquisas seguem, frequentemente, orientações estrangeiras. Alguns e

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consideráveis teóricos da educação nunca foram educadores nem sequer professores na África. Cabe aos universitários e aos pesquisadores africanos assumir o “papel-chave” do projeto “original” para as ciências e técnicas, trabalhando em correlação a “educação formal” e a “educação não-formal” a partir da consideração sistemática das necessidades e aspirações reais das massas e as exigências do mundo contemporâneo. A educação para a democracia está profundamente relacionada ao respeito dos Direitos Humanos: valorização da cultura de cada povo, desenvolvimento do ensino técnico, da formação profissional etc. A educação passa pela tomada de consciência da necessidade inelutável de uma neoeducação africana que se instala progressivamente nos que tomam as decisões políticas. No caso de Moçambique, o atual sistema de educação está organizado em três níveis principais: primário, secundário e universitário. A taxa de analfabetismo, nos anos 1970 era de 93%. Em 1975, diminuiu para 72% e, em 1980, para 62%, de acordo com as estatísticas do governo moçambicano. De 100 alunos que iniciam a primeira séria, a proporção de crianças que começam a estudar na idade correta, de 6 anos, é de 43% para os homens e de 35% para as mulheres. Esses dados revelam que o país se encontra em desvantagem relativamente à média regional, e mostram que, apesar da oportunidade de ingressar no sistema educacional ter aumentado significativamente nos últimos anos, a progressão e a permanência escolar ainda são muito baixas e compromete a obtenção dos objetivos de desenvolvimento país. É importante salientar que, em 1997, depois do conflito armado entre Renamo e Frelimo, cerca de 15% dos homens e 28% das mulheres de 10 a 14 anos não tinham nenhum grau de escolaridade. E, por consequência de

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diversos fatores: a guerra civil, Aids, minas antipessoais terrestres, entre outros fatores, as crianças órfãs apresentavam taxas de matricula menores que as não órfãs. O aparecimento de fatores imponderáveis como a epidemia de AIDS representa outro desafio: a educação é chamada a desempenhar função preponderante na sociedade moçambicana, não só na proteção dos seus dirigentes e pessoal especializado contra os vírus, mas também a se estruturar para servir simultaneamente como palco de batalha contra a propagação do vírus. A educação, por conseguinte, torna-se o meio através do qual se faz a gestão dos seus impactos e a prevenção da epidemia. Conforme estudo sobre o impacto da epidemia (MOZAMBIQUE, 2000), o setor da educação pública teria que se ajustar para compensar a perda de cerca de 17% do seu pessoal, compreendendo professores e gestores, e acomodar um número elevado de órfãos, devido ao HIV/SIDA, no período 2000-2010. Isso ocorre em um momento em que o setor se prepara para alargar cada vez mais o acesso à educação, visando diminuir os índices de exclusão. Perguntamos: será que o setor da educação em Moçambique está preparado para responder a esses múltiplos desafios? Destaque-se ainda que, sobretudo nas famílias mais pobres, as crianças deixam de frequentar a escola para complementar o orçamento familiar pelo trabalho doméstico e infantil. Nas primeiras séries do sistema escolar, a língua tem sido um dos fatores que inviabilizam a progressão escolar, porque a maioria das crianças que ingressam na escola pela primeira vez só falam as línguas africanas locais, não sabem falar português, a língua oficial de ensino. (NGUNGA, 2000). A elevada taxa de analfabetismo e a baixa frequência escolar são mencionadas como consequência do fator linguístico. Nas

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áreas onde a maioria da população não fala a língua portuguesa, a escola é percebida como algo fora da cultura local, como uma instituição “estranha” que veicula valores e conhecimentos numa língua estrangeira, e estranha ao ambiente da família e comunidade tradicional africana. Por outro lado, em certas regiões, observa-se certo preconceito linguístico: mesmo sendo africanos, valorizam a língua portuguesa, oficial. Paradoxalmente há forte presença da “identidade africana” expressa pelos falantes das línguas africanas. Estas atitudes estão presentes nas diferentes manifestações socioculturais: música, dança, canções, artes etc. E o moçambicano que aprende português, como língua oficial, cultiva também as línguas locais africanas num nacionalismo evidente (SAMBO, 2002). Há evidências da inclusão no vocabulário da língua portuguesa de algumas palavras africanas, criando “o português de Moçambique”. Por exemplo: machimbombo (ônibus); machamba (roça) etc. Muitas palavras portuguesas foram e estão sendo africanizadas, alias, “moçambicanalizadas”. É um processo da “inculturação” e/ou “interculturação” das duas línguas, das duas culturas: portuguesa e ­moçambicana. O não reconhecimento de complexidade cultural e da pluralidade linguística foi um equívoco do sistema educacional ocidental na África e em Moçambique, em particular. Tal desconhecimento promove um cenário de exclusão mútua entre os europeus e africanos.

Conclusão A educação na África, e Moçambique poderia ser repensada na perspectiva de ensinar para combater a pobreza, a alienação, a submissão, para que diversas formas de dominação e de neocolonização possam ser evitadas.

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Para haver um verdadeiro desenvolvimento da escola e educação na África deve-se passar necessariamente pela dinâmica de alteridade. Nesta perspectiva, o intelectual africano poderia conservar algumas práticas educativas da sua tradição ancestral, sobretudo as que ainda são válidas e necessárias no mundo contemporâneo em processo de globalização e, servi-las para a construção do presente da África. Não se trata de lamentar o paraíso perdido, este não existe. A finalidade não é preservar a África tradicional, nem sequer fazer um “europeu negro”; trata-se de criar o Africano “moderno”. Em outras palavras: trata-se de integrar elementos da cultura ocidental e das outras culturas não africanas e os conhecimentos tradicionais africanos na perspectiva de responder às exigências da vida contemporânea que passam pela tomada de consciência sistemática e de renovação dinâmica e constante, conforme a necessidade da própria tradição Africana. Como dizia Jahn (1961, p.14): ... que não seja somente uma reiteração formal e uma copia passada, mas o surgimento de qualquer coisa de verdadeiramente nova. Portanto, esta ‘ qualquer coisa de novo’ existe já.

No âmbito de educação, nós chamaríamos a educação neoafricana. Esta educação se apresenta de maneira participativa, dinâmica e integrada, e no centro está munthu, o ser humano na sua totalidade. E a ciência não é o fim em si mesma, mas sim, um instrumento, um meio para participar, ao lado dos povos europeus e africanos na luta pelo desenvolvimento integral do munhtu, do ser humano, o Homem. A rejeição de maneira global de paradigmas da educação tradicional africana é como rejeitar a própria ciência ou, em última análise, é a negação do próprio homem. Em outras palavras, a ciência da educação impõe uma responsabilidade ao edu-

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cador, pedagogo, que estudou na “escola colonial”, a escola que ensina a “vencer sem ter razão”. (KANE, op.cit.). Diante dos desafios existentes, o pesquisador da educação na África deve possuir os conhecimentos através de imersão prolongada na cultura tradicional africana, ter acesso a interpretação dos seus símbolos para poder agir de forma prudente, com um olhar sem complexos. Trata-se de uma alteridade, em que a educação africana na sua Ancestralidade, Filosofia e Religiosidade, seja tomada em consideração, reconhecida na sua integra como parte do patrimônio da humanidade. Todo o desenvolvimento é autodesenvolvimento (do indivíduo a si próprio) que se caracteriza pela descoberta de cada um da sua própria potência, sua riqueza, antes de ir à procura no Outro. Isso passa pelo respeito à educação e cultura do Outro. Uma nova concepção ampliada da educação na África deve fazer com que todos os povos, os europeus, africanos etc., possam descobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial criativo e revelar o potencial que está escondido em cada cultura (Africana, Europeia e outros) para o desenvolvimento integral do homem, o ser humano.

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A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890): SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? Jeannette Filomeno Pouchain Ramos João B. A. Figueiredo

Introdução Não há uma educação universal, boa em si. Ela é uma forma irresistível, imposta sobre os outros para cumprir fins determinados de fora. Se não podemos nos libertar totalmente do seu poder, o conhecimento dele pode atenuar seus efeitos. Se cada sociedade considerada em determinado momento histórico do seu desenvolvimento, impõe um tipo de educação, é necessário que conheçamos esta sociedade e seu momento histórico se queremos desnudar o seu sistema de Educação. Especialmente quando é preciso reverter o processo em que se está mergulhado. (RODRIGUES, 2001, p.78).

Em nossa partida, para a viagem que aqui nos propomos, optamos por utilizar como nossa caravela, para singrar estes mares bravios, algumas leituras referentes à educação escolar no Brasil, em que percebemos este setor como alvo da disputa entre projetos educativos antagônicos, desde a colonização do Brasil pelos portugueses até os dias atuais, em diferentes cenários e fenômenos (RIBEIRO, 2001; ROMANELLI, 2000; WEREBE, 1997; VIEIRA, 2000, 2002; RAMOS, 2009). Os caminhos e tendências da educação escolar básica no contexto da realidade social, política e econômica brasileira, bem como suas especificidades e consequências na consolidação da colonização portuguesa que impõe um padrão, se constituem como objeto deste estudo. As primeiras tentativas para se ter um projeto educativo no Brasil foram feitas pelos Jesuítas, em consonância com as

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diretrizes da coroa portuguesa. Mas em que se fundamentava o seu projeto educativo? O que ele promovia? A emancipação do homem ou a formação para submissão? Houve processos de resistência ao padrão educativo colonial português? Este artigo intenta desvelar o cenário educativo moderno e suas pretensões colonializantes (QUIJANO, 1991; FIGUEIREDO, 2010; LANDER, 2005; WALSH, 2008), presentes, embora de modo sutil e invisibilizado, nos primeiros passos que prenunciam e consolidam, posteriormente, um projeto educativo no Brasil, o que se materializa fortemente por meio das reformas e políticas implementadas de 1549 a 1890. Neste interstício, desvela-se a educação para a submissão (1549-1890) com a chegada e a expulsão dos jesuítas, a Independência Monárquica em 1822, sinalizando os feitos de regulamentação da educação escolar e a Proclamação da República (1889). Destacamos, porém, que este trajeto não se dá de forma incólume, sem oposições. Desde sua origem, encontramos muitos(as) que se posicionam favoravelmente a uma proposta educativa descolonializante, libertadora, na linguagem de Paulo Freire (1983). Nessa viagem, nossa nau favorece e estimula um passeio relevante pela pesquisa documental e bibliográfica, com base em autores como Romanelli (2000), Werebe (1997), Saviani (2004), Walsh (2008), Figueiredo (2012) e Ribeiro (2001), o que nos permite analisar não só o contexto nacional, mas também o de Portugal, por compreendermos que a história do Brasil, “[...] com interpretação consequente de organização social, deve começar antes do descobrimento” (DUARTE, 1939, p.11). Em outras palavras, os fundamentos desse modelo educacional colonializante, opressor, foram instituídos bem antes de acontecerem em nossa pátria. Este navegar também possibilita a releitura da literatura e dos documentos com o intuito

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de repensar e reformular os problemas atuais da educação escolar e desvelar as contradições mediante a colonialização do saber, do poder e do ser desde a colônia portuguesa. A partir do pressuposto acima, da releitura do Estado e da organização educacional em Portugal, iniciamos este artigo. Em seguida, discorremos sobre o projeto educacional de colonialização dos jesuítas, como podemos afirmar fundamentados em Quijano (1991), e as resistências a estes processos subalternizantes (AZIBEIRO, 2002; FIGUEIREDO, 2009). Neste contexto, a análise da educação básica, de cunho eminentemente propedêutico, apresenta elementos importantes para a compreensão deste paradigma educacional moderno e sua repercussão na atualidade, bem como o desvelar das contradições e possibilidades para a descolonização do saber nacional.

Contexto Social e Educacional de Portugal Todo ato educativo deve objetivar, em primeiro lugar, formar o cidadão, dando-lhe a capacidade de se tornar governante, isto é, de ser uma pessoa capaz de pensar, estudar, dirigir e controlar quem dirige. (GRAMSCI).

Navegar em águas calmas, em um navio a velas, gera estagnação e muitos conflitos. Neste movimento da história portuguesa, que dá origem a uma história colonializante para o Brasil, vamos nos deparar com momentos distintos, alguns dos quais potencializam as contradições de um povo europeu que se diferencia de outros povos europeus, como, por exemplo, da Espanha, sua aliada nestas primeiras grandes navegações que frutificaram nas primeiras grandes invasões marítimas. Assim é que podemos reler esta história com o devido cuidado e criticidade descolonializante. Dito isto, lembramos que a formação histórica do Estado Português é permeada por uma formação fundamentada

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na família que vai constituir a base do povo brasileiro. Por sua vez, a formação deste povo era e continuará a ser eminentemente particularista, comunal, municipalista, impregnada e convicta do espírito de facção, já que se embasa na dimensão privada, a família. Cada município constituía um núcleo histórico e político próprio e singular e, assim, Portugal se dividia em frações comunais e díspares. Segundo Duarte (1938), naquele país nunca houvera uma totalidade, de forma que o absolutismo pudesse imperar, nunca houve uma integração territorial soberana e única, tal como ocorreu com muitos outros países. A relação deste tipo social com o Estado, considerado como organização diferenciada para atender interesses coletivos e reparar as desigualdades sociais históricas (CHAUI, 2000), é hostil e refratária. Neste permanente duelo entre o público/Estado e o privado/família, a Igreja Católica encontrou brechas para se impor como um poder concorrente e, por vezes, superposto ao poder político. O poder, a autoridade e o prestígio da Igreja advêm da Idade Média e, em Portugal e no Brasil, ela se prolonga até a Idade Moderna e a Contemporânea, inclusive na área educacional. Constatamos mesmo que este poder da “religião” possibilitou maior poder de invasão cultural, de colonialização do saber, do poder, do ser, da natureza (WALSH, 2008). À época da invasão e colonização do Brasil pela Coroa Portuguesa, na Europa, o debate educacional refletia o movimento social entre a Reforma Protestante, a Contra Reforma da Igreja Católica, a utopia e a revolução. Porém, em certa medida havia uma lógica comum que permeava este conflito eurocêntrico1: a manutenção de uma lógica civilizatória colonia1 Salientamos que, segundo Lander (2005, p.34), esta lógica eurocêntrica estrutura e organiza tempo e espaço para toda a humanidade, desde sua percepção única válida e referência superior e universal para todos os demais. Define um marco zero

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lizante, opressora, mantenedora de um estado de exploração e ordenamento social que homogeneíza e hierarquiza as relações, de tal modo que se mantém o padrão de favorecimento de um pequeno segmento social elitista e elitizante. A educação, para os reformistas, tinha como objetivo central instruir a fim de que cada um pudesse ler e interpretar pessoalmente a Bíblia, portanto, sem a mediação do Clero, nas escolas comunais, [...] instruídos e doutrinados com diligência e gratuitamente, [...], para que cada criança, segundo suas capacidades, possa tornar-se cada vez mais hábil no seu ofício ou atividade [...] (MANACORDA, 2002, p.195).

Além de exprimir exigências populares como uma escola gratuita, o projeto de instrução e a função social desta escola propõem conhecimentos que possibilitariam a formação de gestores (De Corrigendis studiis apud MANACORDA, 2002, p.199). Salientamos que a educação escolar em Portugal era uma prerrogativa da Igreja Católica, que instituiu a Contra Reforma, caracterizada como uma defesa intransigente desta, no enfrentamento à expansão do Protestantismo, e culmina envolvendo, entre as estratégias de resistência à inovação, a condenação das iniciativas alheias à extensão da educação às classes populares e a proibição de livros. Neste movimento, a intensa e multiforme atividade educativa católica se reorganiza por meio do Ratio Studiorum (1586-99), que regulamentou rigorosamente todo o sistema escolástico: [...] a organização em classes, os horários, os programas e a disciplina. Eram previstos seis anos de “studia inferioda história e da geografia instituindo o próprio mapa mundi de conformidade com sua centralidade. Neste projeto colonializante, as demais formas de epistemes, de valores, de modos de ser e viver se caracterizam como inferiores e subalternas por sua própria condição de ser arcaica ou primitiva ao se comparar com este padrão civilizatório, epistemológico, social.

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ra”, dividido em cinco cursos (três de gramática, um de humanidades ou poesia, um de retórica); um triênio de “studia superiora” de filosofia (lógica, física e ética), um ano de metafísica, matemática superior, psicologia e fisiologia. Após uma “repetitio generalis” e um período de prática de magistério, passava-se ao estudo da teologia, que durava quatro anos. (MANACORDA, 2002, p.202).

Este projeto educativo da Igreja Católica impõe, na perspectiva de manutenção do status quo, uma regulamentação rígida da organização do trabalho na escola e dos conteúdos escolares e retroalimentou a colonização em curso de modo bastante retrógrado. Decerto, a matriz da colonização portuguesa pode ser pensada em quatro dimensões que se retroalimentam na consolidação do modelo civilizatório colonializante com estruturas, instituições, racionalidades etc., são eles: o poder, o ser, o saber e a mãe natureza/o conviver. Ao destacar o eixo da colonialização do saber, Walsh sintetiza: [...] el posicionamiento del eurocentrismo como la perspectiva única del conocimiento, la que descarta la existencia y viabilidad de otras racionalidades epistémicas y otros conocimientos que no sean los de los hombres blancos europeos o europeizados. Esta colonialidad del saber es particularmente evidente en el sistema educativo (desde la escuela hasta la universidad) donde se eleva el conocimiento y la ciencia europeos como el marco científico-académico-intelectual. (WALSH, 2008, p.137).

Do pensamento único eurocêntrico a projetos educativos distintos, por vezes complementares ou contraditórios, Manacorda (2002) nos ensina, mediante sua máxima, que nenhuma batalha pedagógica pode ser dissociada da batalha política e social. Exemplo disto é a formação social, política e educacional do povo português que expressa desafios como a

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reinvenção da relação promíscua entre a esfera privada e a esfera política – pública, dos interesses coletivos versus proveitos particulares e a educação popular e a educação burguesa. No âmbito educacional, a Contra-Reforma instituída restringe ainda mais os avanços sociais, como o direito de instrução das mulheres, a universalização da educação na perspectiva de formação de governantes e não somente governados, bem como a dimensão científica mediante um padrão de pensar, sentir e querer. Por outro lado, nela fica mais evidente a intencionalidade colonializante que se manifesta de modo mais sutil na Reforma. Aqui, aportamos para reconhecer que foi este o contexto que envolveu os elementos fundantes do projeto educativo brasileiro, nosso objeto de estudo a seguir, em busca de trilhar na compreensão de alguns processos históricos em volta da invenção da escola brasileira, marcada com intensidade por conflitos e contradições.

Educação para a Submissão ou Libertação (1549-1890)? A estrutura social do Brasil – Colônia já foi caracterizada como sendo organizada à base de relações predominantemente de submissão. Submissão externa em relação à metrópole, submissão interna da maioria negra ou mestiça (escrava ou semiescrava) pela minoria ‘branca’ colonizadores).[...]. A opressão era tão intensa, bloqueando as manifestações de descontentamento, que aparentemente parecia ser aceita como necessária ou, pelo menos, como inevitável. (RIBEIRO, 2001, p.38).

Enquanto na Europa os conflitos políticos e educacionais estavam expressos nos movimentos da Reforma e Contra-Reforma, Portugal e Espanha se conservaram católicos, diferenciando-se em ideias e processos dos demais países e dos continentes em decurso de ocupação. Uma educação para

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submissão reflete o projeto educativo português no Brasil-Colônia, pautado na exploração, bem como no Brasil monárquico “quase” (in)dependente, o que influencia a educação na República, numa urdidura sutil que garante a perpetuação do padrão colonial, agora ainda mais colonializante. Ao considerar esta terra como colônia de exploração, o projeto educativo, a ocupação produtiva, os elementos humanos e os recursos materiais foram transplantados de fora para dentro, pelo invasor-opressor português. Esta dependência do Exterior 2 perpassa a história do Brasil e da educação escolar. A importação do modelo educacional dos Jesuítas para a Colônia, por meio da chegada da Companhia de Jesus, em 1549, atendia tanto aos interesses da Metrópole, quanto aos da Igreja Católica. No cenário conflituoso da Europa, esta última tinha como objetivo o recrutamento de fiéis/servidores, a restauração do dogma e da autoridade. Atende também aos interesses da Coroa, ao atuar junto aos gentios com a escolarização e catequese destes, com a finalidade de integração ao projeto do explorador na formação do estado brasileiro, por meio da “anulação” de toda diferenciação étnica, cultural, portanto, da sua identidade, ao serem incorporados à sociedade, ao mercado, evidentemente numa perspectiva subalterna. A escolarização3, segundo este projeto educativo, passa a ser um instrumento de imposição do modelo educacional, social 2 Como

nos reforça Walsh (2008), ao destacar que desde sua “formação” os Estados nacionais sul-americanos, possuem em sua estrutura de base a pretensão de políticas homogeneizantes que garantem a manutenção da ordem de dominação, seja econômica, política, social, cultural, ordem que alimenta os interesses do capital e do mercado global. 3 Movimento similar é retratado na publicação da UNESCO (2010, p.639), África desde 1935, sobre a relação entre a língua, a evolução social e o Instituto Africano Internacional – IAI, organismo internacional, com o seu plano colonializante de escolarização, com a elaboração de manuais escolares africanos destinados a iniciar os estudantes no estudo da civilização e do pensamento ocidentais, cuja influência seria decisiva na formação de futuros chefes.

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e cultural, em consonância com a matriz colonial determinado externamente, mediante extermínio, dominação, integração, negação da cosmovisão indígena e africana4, homogeneização cultural, entre outros. Segundo Romanelli (2000, p.36): Foi ela, a educação dada pelos jesuítas, transformada em educação de classe, com características que tão bem distinguiam a aristocracia rural brasileira, que atravessou todo o período colonial e imperial e atingiu o período republicano, sem ter sofrido, em suas bases, qualquer modificação estrutural, mesmo quando a demanda social da educação começou a aumentar, atingindo as camadas mais baixas da população e obrigando a sociedade a ampliar sua oferta escolar. [...] esse tipo de educação, veio a transformar-se no símbolo da própria classe, distintivo desta, almejado por todo aquele que procurava adquirir status.

Ao abordar os índios adultos, no entanto, os jesuítas enfrentaram uma grande resistência, por serem estes defensores da sua cultura tradicional. Desde então, retomaram os processos de catequese e escolarização junto às crianças, consideradas como campo fértil, onde tudo o que é cultivado surte resultado. O projeto educativo jesuítico era pautado por uma educação religiosa uniforme, neutra e conservadora, que concentrava esforços na formação intelectual, no desenvolvimento de atividades literárias e acadêmicas, em outras palavras, na formação do homem branco erudito e na domesticação dos índios. Este modelo refletia a organização social e política do Estado Português, que pretendia manter a dualidade do ensino, o status quo do ciclo de navegação e do período áureo do imperialismo português ao ocupar e povoar as suas colônias. 4

Segundo a tradição africana, Nascimento (1981, p.40) cita que os eventos “[...] são integrais: não há a pretensão de rigidamente separar a política da vida social, a luta econômica da vida cotidiana popular, ou o ensino e a educação da alegria, da música e do culto”. É preciso liberar a mente da dualidade da existência marginal.

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Além disso, as atividades de produção, exploração e administração na época não exigiam nem o preparo de mão de obra especializada nem o ensino qualificado, sendo o último deixado à margem, sem qualquer utilidade prática, a não ser para a garantia do domínio político da Colônia e da submissão, pela reafirmação do dogma e da autoridade junto aos nativos, minando assim toda forma de busca pela emancipação do homem nativo aqui presente. Como podemos deduzir, a educação jesuítica no Brasil promovia e alimentava a divisão social, como cita Romanelli (2000, p.35): Os padres acabaram ministrando, em princípio, educação elementar para a população índia e branca em geral (salvo as mulheres), educação média para os homens de classe dominante, parte da qual continuou nos colégios preparando-se para o ingresso na classe sacerdotal, e educação superior religiosa só para esta última.

Além desta divisão social, a Ratio Studiorum regulamentava rigidamente a organização do trabalho escolar. Este papel dominador e conservador da Igreja, associado a uma postura excludente, potencialmente colonializante, de algum modo, se cumpliciaram com o Estado colonial, o que possibilitou que culturas inteiras fossem dizimadas do mapa do Brasil. Comunidades indígenas foram destruídas, sendo suas tradições esmagadas e seus saberes ancestrais substituídos por informações e conhecimentos alienados dos jesuítas. Faz-se necessário registrar o fato de que, no âmbito da educação formal, não havia nas sociedades indígenas, uma instituição responsável por esse processo: toda a comunidade, em geral, é responsável por fazer com que as crianças se tornem membros sociais plenos. Isto habitualmente com todos os povos tradicionais, em todas as épocas, sempre mantiveram suas formas de transmissão do conhecimento e da cultura, seja

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por via oral, a citar, por meio dos contos, fábulas, lendas..., ou por outros meios, como o desenho, a escrita etc., perpetuando a herança cultural ancestral de geração para geração. Entre os procedimentos que possibilitaram a esses povos a produção de ricos acervos de informações e reflexões sobre a natureza, a vida social e os mistérios da existência humana, a praxiologia se constituía como critério de verdade, por meio de vários mecanismos, a citar: a observação, a experimentação, o estabelecimento de relações com a casualidade, a formulação de princípios, a definição de métodos adequados, entre outros (Parecer CEB/CNE no 19/1999). De volta ao navio, destacamos que enquanto o projeto conservador se efetivava na Colônia, na Europa “[...] o livre exame, o espírito de análise e de crítica, paixão pela pesquisa e o gosto da aventura intelectual [...]” (ALMEIDA, TEIXEIRA, 2000, p.39) eram incentivados. Nesta mesma obra ainda se afirma que este projeto teria ampliado o horizonte mental de nosso povo, considerando que o Iluminismo, pautado numa razão dita científica, possibilitaria um contraponto aos dogmas religiosos. Será que isto teria sido um efetivo avanço ou apenas outra face escura desse projeto colonializante? Afinal, a lógica eurocêntrica, colonializadora, excludente, opressora, focada no mercado e na homogeneização social e cultural também ali se evidenciava. A real mudança seria no modo como o modelo se organizaria e nos meios que utilizaria para alimentar ou contrapor estes procedimentos hierarquizantes. Em nossa viagem, percebemos que o sistema educacional dos jesuítas atuou durante 210 anos e promoveu a educação religiosa por via de um modelo elitista e de cunho academicista, sob anuência do governo português. Sua decadência resulta do excesso de ambição pelo poder e pelas riquezas e da manipulação dos governos como instrumentos políticos para

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atender aos interesses da Comapanhia de Jesus. Isto tudo passa a concorrer e ameaçar os interesses da Coroa Portuguesa (HAIDAR e TANURI, 2004). Deste modo, o Marquês de Pombal, influenciado também pelo enciclopedismo, expulsou os jesuítas do Brasil e de Portugal, em 1759, por um Alvará que é, segundo Castelo (1970, p.28), [...] uma síntese das ideias iluministas de Pombal, não um iluminismo revolucionário, anti religioso, anti histórico, mas reformista, humanista, em que procura laicizar a estrutura da sociedade portuguesa, mantendo, porém, a religião.

Esta expulsão já havia ocorrido na França, Espanha, Nápoles e Sicília. A Companhia de Jesus chegou a ser extinta em 1773 e restabelecida em 1814. Determinou-se, então, o fechamento dos colégios jesuítas sob a alegação de que este método distanciava os estudantes do mundo, tornando-o ineficaz para a vida prática. Foram introduzidas as Aulas Régias – aulas avulsas a serem mantidas pela Coroa por meio do subsídio literário (1772). Seria uma ampliação do modo como se exploraria os nativos brasileiros? Seria esta outra maneira de continuar a colonializar, agora de forma mais sutil e mais perversa, pois que nem sempre perceptível? Segundo seus defensores, o novo projeto educativo pretendia modernizar e liberar da estreiteza do obscurantismo. Ao expulsar os jesuítas, a Colônia viveu novos tempos de desmantelo e falta de organização educacional, ao não substituir o sistema educacional destes por um novo. Em vez de um sistema único, passaram a existir escolas leigas e confessionais que seguiam os mesmos preceitos da ordem anterior. O ensino médio, por exemplo, quase “desapareceu como sistema e se resumia, de maneira, irregular, às aulas

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régias que só tiveram vantagem, em relação ao dogmatismo jesuítico, por introduzir novas matérias, como as línguas vivas, matemática, física, ciências naturais, etc.” (WEREBE, 1997, p.27). Estas transformações que ocorreram no ensino médio não atingiram o ensino fundamental que manteve a Ratio Studiorum. Seria um gradativo processo de ampliação do mercado de consumidores/produtores no novo cenário mundial? A aproximação histórica com Portugal promoveu crescente intercâmbio que levou inúmeros jovens brasileiros a estudar em universidades na Europa, e delas trouxeram ideias liberais e revolucionárias, na perspectiva de mudanças sociais e econômicas. Concomitantemente, havia aí um reforço na relação entre o Estado, a elite mediadora local e o povo subalternizado e oprimido. Constatamos a lógica do dividir e dominar dos romanos, bem como a ideia de compartilhar poder para melhor continuar os procedimentos exploratórios numa condição mais viável para os novos tempos globais. Afunilando nosso trajeto náutico, constatamos também que o modelo educacional para a submissão é igualmente retratado na História do Ensino no Ceará (CASTELO, 1970), sendo as primeiras escolas fundadas no início de 1700 em Aquiraz e Viçosa. Estas promoviam o ensino público, tanto em relação à educação primária como secundária. A última somente para os que se destinavam ao sacerdócio, ou seja, a perpetuação dos processos colonializantes. As terras cearenses eram habitadas por indígenas de tribos diferentes, que foram dizimados ou “domesticados” por meio da catequese cristã, transformando-os em pacíficas e quietas nações de tapuias. Estes processos foram marcados pela resistência indígena à invasão de suas terras e à submissão imposta ao seu povo. Exemplar é a leitura feita pelo padre

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Antônio Vieira (apud CASTELO, 1970, p.20), acerca de como reconhecem a resistência dos indígenas: [...] que a fereza natural destes brutos, entraram um dia de repente na aldeia e pela Igreja os chamados Tocarijus, e estando o Padre Francisco Pinto ao pé do altar para dizer a missa, sem lhe poderem valer os poucos índios cristãos, que o assistiam, com frechas e partazanas, que usavam paus mui agudos e pesados, lhe deram três feridas mortais pelos peitos, e pela cabeça, e no mesmo altar, onde estava para oferecer a Deus o sacrifício do corpo e sangue do seu filho, ofereceu e consagrou o de seu próprio corpo e sangue, começando aquela ação sacerdotal e consumando-a o sacrifício.

Desvela-se a mentalidade colonial, de educador para benfeitor, este é o caminho desenhado pelo autor para justificar as ações dos jesuítas no Ceará e os “índios”, “selvagens”, passam a ser domados, obedientes e vassalos. Para estes “educadores”, índio bom é o que obedece e se submete à lógica eurocêntrica. Mas, continuemos nosso embarque. Com a expulsão da Companhia de Jesus, as escolas da aldeia passaram a ser ministradas por “mestres” sem experiência, nem moral suficientes, tanto que um dos diretores da Vila da Parangaba informa que: “[...] retirara da escola e vendera quarenta e um meninos, índios, de ambos os sexos” (CASTELO, 1970, p.23). Sem sistema nem método, a evolução do ensino, no período de 1759 a 1772, permaneceu sob critério dos interesses locais e reproduzindo este corpus colonializante, que implica em: [...] oprimir, subalternizar, explorar, desumanizar, coisificar, tornar o indivíduo não humano, torná-lo coisa de uso, que serve a um propósito alheio a ele mesmo (FIGUEIREDO, 2012, p.70).

No início do século XIX, com a vinda da Família Real, apresentam-se grandes mudanças na estrutura social e um

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tanto na organização educacional, pois este passa de colônia de extração de recursos naturais para a sede do Governo português. Registram-se, neste período, o rápido processo de urbanização e modernização. Na disputa interna de culturas e projetos educativos distintos, ou melhor, de contrários, portugueses e indígenas se confrontaram, se chocaram e, em algumas situações, se fundiram. Neste conflito, coube ao português invasor a posição predominante e o papel de padrão para o país que se formava, por exemplo, a língua, a forma e o modelo organizacional civil, político e educacional. No âmbito educacional, foram criadas diversas instituições de formação, em diferentes ramos e níveis, inclusive no nível técnico, e inaugurou-se o ensino superior no Brasil, que deveria atender às necessidades urgentes da conjuntura local. A educação passou assim, a ter uma utilidade prática, ao formar quadros técnicos para a administração do Estado e atender a demanda da aristocracia local. A ruptura com a tradição da escola jesuítica, porém, não fora total, pois a formação literária se manteve como eixo central, mesmo nos cursos de formação técnica e científica, bem como na organização dos níveis escolares. Deste modo, além da propriedade de terra e do número de escravos, os graus de bacharéis mestres passam a ser instrumento de ascensão social no período colonial. Este projeto educativo dos jesuítas foi consolidado enquanto educação de classe, da elite, e tornou-se símbolo dela. Foi o coroamento de um exitoso projeto de colonialização do saber que se desdobra na colonialização do poder e do ser. Do outro lado do barco, constatamos que, após a derrota de Napoleão na Europa, a Corte Portuguesa exigiu o retorno de D. João VI a Lisboa e este deixou seu filho, Pedro, como príncipe regente do Brasil. Havia a necessidade de garantir

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uma hegemonia política lusitana e o monopólio de exploração sobre o Brasil, no ambiente colonializante em franco desenvolvimento. Assim, em 1822, Pedro tomou medidas para declarar o Brasil independente como uma monarquia constitucional e coroando a si mesmo como D. Pedro I. No movimento pela Independência, Ramos (2009) registra que este processo incidiu na formação de dois grupos, um de direita, representado pela classe dominante e parte da classe média, e outro de esquerda, constituído por intelectuais da classe média, sob a influência de ideais revolucionários franceses. Mas o grupo dominante da direita mantém o País à imagem e semelhança do projeto original português. A mesma oligarquia local permanece no poder, agora sob a alcunha de Império. Com a Proclamação da Independência do Brasil, outro projeto educativo nacional poderia ter sido implementado na Constituição de 1824, caso efetivamente houvesse interesse de potencializar um amplo e real processo de libertação para o país. O texto inicial propunha um sistema nacional de educação com escolas primárias em cada termo, ginásios em cada comarca e universidades nos mais apropriados locais (art. 250). Em 1827, a Lei das Escolas de Primeiras Letras poderia ter estabelecido a escola pública nacional, mas isso não aconteceu, pois o que vigorou foi a ideia da distribuição, por todo o território nacional, apenas das escolas de primeiras letras, limitadas tanto na abrangência quanto no conteúdo. Em 1831, D. Pedro I abdicou de seu trono e é decretado o Ato Adicional de 1834 que restabelece a descentralização, concedendo mais autonomia às províncias ao situar “as escolas primárias e secundárias sob a responsabilidade das províncias, renunciando, assim, a um projeto de escola púbica nacional” (SAVIANI, 2004, p.17). Decorre daí uma instabili-

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dade da política educacional, insuficiência de recursos, bem como o compartilhamento do controle por uma elite regional, no que de pior carregava, associado a uma globalização de conhecimentos ditos humanistas, de caráter enciclopedista, dissociado da realidade local, que impera ainda hoje nos estados e municípios. Entre as leis aprovadas, no que diz respeito à educação, há de se mencionar a independência também relativa ao método e à organização do ensino. A influência dos jesuítas se mantém, embora associada ao método inglês lancasteriano5, que é adotado para resolver um problema interno de falta de professores. Em 1879, a Reforma Leôncio de Carvalho é difundida e poucas consequências são observadas. Outro projeto educativo, de 1882, apresentado e bem debatido, embora não implementado, foi o projeto Rodolfo Dantas, que deu origem a um parecer de Rui Barbosa. Este parecer foi na verdade: [...] um plano global de educação, abrangendo todos os níveis e ramos de ensino, todos os aspectos relativos à administração escolar, aos programas e à didática das várias disciplinas, à formação dos professores, ao financiamento do ensino, à psicologia dos alunos, à avaliação do sistema e do rendimento escolar, à construção escolar etc. Preconizava ainda um Museu Pedagógico (que reuniria a documentação educacional e as estatísticas escolares) e de um ministério próprio consagrado à educação. (WEREBE, 1997, p.35-36).

Apesar de reconhecermos um idealismo romântico de Rui Barbosa, permeado pela concepção ingênua de que pela educação se poderia reformar a sociedade, para nós merece 5 Este método propõe a seleção de monitores entre os alunos mais avançados para tra-

balhar diretamente com seus colegas, reforçando o ensinado pelos mestres momentos antes. Além desta seleção, vale registrar o papel do inspetor de ensino, que deve vigiar os monitores e apontar ao mestre os que devem ser premiados ou corrigidos.

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destaque neste parecer a sinalização da necessidade de um projeto educativo nacional, respaldado numa legislação específica para o setor educacional, e, portanto, pressupõe a formação de um sistema nacional de educação6. Quanto à instrução secundária, esta não fora objeto de grandes transformações, ao continuar focada em uma pequena parcela da elite, na preparação para os cursos superiores em escolas particulares, enquanto o ensino público passou a se organizar em liceus e colégios, plasmando o sistema educacional francês, que havia adotado o sistema de estudos seriados desenvolvidos em cursos regulares de curta duração, em contraposição às aulas avulsas7, que continuavam e proliferaram em razão da ausência da quantidade necessária de docentes, bem como dos parcos recursos disponíveis. A formação livresca e precária no ensino secundário também incidiu no ensino superior, que não possibilitava a leitura concreta da realidade, embora contraditoriamente envolvesse o gosto pela palavra ao mesmo tempo em que limitava a ação. Este: [..] tipo de formação do ensino superior recebida, que oferece uma interpretação da realidade, fruto desta perspectiva de privilégios a serem conservados ou quando muito uma interpretação da realidade segundo mode6

A origem do sistema educacional no Brasil remonta ao início do século XX, com o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (AZANHA, 2004), que propõe a elaboração de um plano sobre a organização do ensino. Nesta transição do Século XX-XXI, a pauta central das conferências nacionais de educação retoma o debate sobre o Sistema Articulado de Educação Brasileira, ou seja, a “[...] unidade de vários elementos intencionalmente reunidos de modo a formar um conjunto coerente e operante” (SAVIANI, 2009). No entanto, há a perpetuação da matriz colonial de quatro obstáculos que inviabilizam a consolidação deste, são eles: político, econômico, legal e financeiro (SAVIANI, 2009, RAMOS, 2013). 7 Em 1854, havia no Brasil 20 liceus, 148 aulas avulsas e 3713 alunos, enquanto, na Europa, a Revolução Francesa pregava a universalização e a gratuidade do ensino elementar (HAIDAR, TANURI, 2004). Em 1822, registrava-se no Ceará uma população estimada de 200.000 habitantes e somente 27 escolas (CASTELO, 1970).

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los importados, os mais avançados, mas resultado de situações distintas e, por isso, inoperantes. (­RIBEIRO, 2001, p.55).

É a reafirmação do modelo colonializante, portanto, conveniente à formação da elite e participante do poder que não expõe o seu projeto político a jogo. Em contraparte parcial a este modelo, a formação humana com base na ciência moderna, que promove o gosto pelos fatos científicos, continuava sendo vivenciada em inúmeros países na Europa desde a Reforma Protestante. Enquanto os dilemas educacionais na Europa estavam ao sabor da conciliação entre a formação clássica e a ciência, Ribeiro (2001, p.61) assinala que a realidade brasileira “enfrentava um dilema anterior – conciliar a formação humana e o preparo para o ensino superior”. O controle indireto do ensino secundário pelo Governo imperial ficou explícito na centralização do ensino superior (Ato Adicional de 1834), que, além de dar direção à leitura da realidade, também estabelece os exames de admissão e os cursos preparatórios do ensino superior. A não-organização do sistema educacional brasileiro, por meio da centralização do sistema de avaliação e da “descentralização da educação primária e secundária”, atendia aos interesses alheios, ou seja, da iniciativa privada, que expandia a sua rede de atendimento, gozando de toda a liberdade (ver em RAMOS, 2009, p.53) e perpetuando a educação para a submissão.

Considerações Finais Tales reconocimientos hacen interculturalizar y descolonizar la lógica y racionalidade dominantes, abriéndolas a modos otros de concebir y vivir, modos que encuentran sus fundamentos en el pensamiento, los

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principios y las prácticas de los pueblos ancestrales. Desde la filosofía o cosmovisión indígena, la Pachamama o madre naturaleza es un ser vivo “con inteligencia, sentimientos, espiritualidad”, y los seres humanos son elementos de ella. La naturaleza, tanto en el concepto del «buen vivir» como en el «bien estar colectivo» de los afrodescendientes (conceptos similares pero no iguales por sus mismas diferencias históricas), forma parte de visiones ancestrales enraizadas en la armonía integral, una armonía que la sociedade occidentalizada y el sistema de capitalismo “ahora neoliberal” ha hecho no solo perder, sino destruir. (WALSH, 2008, p.146).

Estamos próximos do porto que nos aguarda o desembarque. Após uma releitura descolonializante da realidade da educação escolar luso-brasileira, percebemos que nossa herança colonial traz muitas mazelas, tais como a extinção de muitos povos, de milhares de línguas, tradições e de muitos princípios educacionais dos povos indígenas e dos africanos escravizados, bem como a negação de suas culturas. Decerto, [...] a linguagem cria e unifica uma consciência nacional, em que as fronteiras culturais correspondem muitas vezes mais poderosas e fundamentadas do que as fronteiras políticas e geográficas. (PARADISO, 2009, p.34).

Isto demonstra a gravidade desta atitude de subalternização e tentativa de opressão e negação dos processos de resistência. Durante todo o Império, a educação escolar permaneceu desorganizada, desde a expulsão dos jesuítas até a política de centralização do ensino superior, que atende a camada privilegiada, só se tem agravado os problemas educacionais. O ensino primário e secundário foi jogado (descentralizado) para as províncias e, com isto, se apresenta um desenvolvimento educacional diferenciado, conforme as disposições políticas,

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sociais e econômicas locais. O ensino médio era meramente propedêutico, a ponto de transformar-se em simples ilustração e preparação para funções nas quais a retórica tem papel mais importante do que a vida, a ação, além de fomentado basicamente pela iniciativa privada, em sua ampla maioria. A proclamação da chamada Independência no Brasil se concretiza na dimensão formal da política e na relação com Portugal. Porém, no setor educacional, a dependência é registrada numa formação precária de intelectuais que continuam transplantando modelos educativos, seja da França, Inglaterra e Alemanha, como forma de resolver os problemas nacionais. Para uma reorganização e sustentabilidade de um projeto educativo nacional seria necessário, além do reconhecimento da educação como prioridade e compromisso nacional, a aplicação de recursos financeiros que os viabilizassem. Contudo, tal como em outros momentos históricos, o Brasil continua afirmando o déficit econômico, a falta de recursos, como fator de restrição das possibilidades do poder central desenhar um projeto educativo libertador, descolonializante para a Nação. Fica explícita, portanto, uma vontade política excludente e uma formação educacional subalternizante e opressora. Em síntese, concluindo esta viagem marítima entre Portugal e nosso país, podemos enfatizar que o Brasil, durante séculos, esteve absolutamente submisso politicamente à Metrópole portuguesa e, consequentemente, à Igreja, cujos objetivos eram a exploração das riquezas naturais e o recrutamento de fiéis ou de servidores. A República prometia uma revolução que foi abortada8 na sua essência e a mudança no 8

Do ponto de vista cultural e pedagógico, a República foi uma revolução que abortou e que, contentando-se com a mudança de regime não teve o pensamento ou a decisão de realizar uma transformação radical no sistema de ensino para provocar a revolução intelectual das elites culturais e políticas, necessárias às novas instituições democráticas (AZEVEDO apud ROMANELLI, 2000, 43).

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regime político possibilitou a permanência da elite no poder e a submissão do projeto educativo aos interesses do “invasor” português. Para invisibilizar o problema, o caminho escolhido foi o da dimensão instrumental-legal, através de reformas e políticas que refletem a ineficácia e a intencionalidade subalternizante em prejuízo da população. Como prognóstico, podemos apontar para o aprofundamento da crise da educação escolar brasileira, da formação do jovem e da sociedade como um todo, no entanto, este não será o fim da escola. Assim como os povos da África, no pós-independência, é preciso que o povo brasileiro se descubra diferente e tome consciência de tudo o que lhe caracteriza e os diferencia dos europeus, dos demais povos (CANÊDO, 1992, p.7). Somente assim, neste reconhecimento do valor e da riqueza das diferenças, poderemos avançar na direção desse mundo melhor que desejamos. É preciso descolonializar a lógica e a racionalidade dominantes e conceber outras formas de poder, saber, ser e conviver. Dentre os caminhos possíveis para a educação libertadora, desvela-se a necessidade de refundar o Estado, numa perspectiva intercultural critica e descolonializante, com o reconhecimento, socialização e implementação dos fundamentos epistêmicos, princípios e práticas dos povos ancestrais na escolarização básica. Afinal, como dizia Paulo Freire, é na experiência da conscientização que se supera a submissão, ou seja, o medo da libertação.

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2 Religião, Política e Igualdade Racial

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS1 Gledson Ribeiro de Oliveira Isaac Bruno Oliveira Araújo

Sem Preconceito de Ter Preconceito Nos últimos anos pastores e membros de igrejas neopentecostais2 voltaram aos noticiários por seu envolvimento conflituoso com as religiões afro-brasileiras e seus símbolos culturais. Ao tornarem públicas posições e condutas classificadas pelos movimentos negros e ativistas de direitos humanos como preconceituosas e discriminatórias, desencadeou-se, de parte a parte, críticas, indignação e atos de solidariedade por todo o país. Em uma dessas situações, quatorze estudantes de uma escola estadual em Manaus, Amazonas, se recusaram a par1 Este texto faz parte do projeto de pesquisa “Transnacionalização religiosa: igrejas

neopentecostais brasileiras em Angola” contemplado pelo edital BICT/FUNCAP 2013-2014. 2 As tipologias criadas para distinguir os vários pentecostalismos no Brasil tentam dar conta da circularidade de suas práticas e crenças ao longo do tempo. Essa circularidade de práticas e crenças cria um fio tênue de separação entre elas. Por exemplo, se as características da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), tipificada como neopentecostal são – para além da gestão empresarial e da teologia da prosperidade – a guerra espiritual, o exorcismo, o transe e a manipulação mágica, algumas desses elementos já eram praticados pela Assembleia de Deus no Brasil e pela Igreja do Evangelho Quadrangular. Essa última, quando ainda chamada de “Prece Poderosa”, já realizava sessões de curas, oferecia “óleos e bênção a dinheiro” ainda nos anos 1950, portanto, antes da IURD. Em comum a todas elas está o desenvolvimento dos dons do Espírito Santo. Para efeito didático pode-se dividir o campo religioso evangélico brasileiro em protestantismo histórico (luteranos e anglicanos, batistas, presbiterianos e congregacionais) e pentecostal que é subdividido no pentecostalismo clássico (Assembleia de Deus e Congregação Cristã), deuteropentecostalismo (Brasil Para Cristo, Igreja Quadrangular, Deus é Amor), e neopentecostalismo (IURD, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Apostólica Renascer em Cristo, Igreja Mundial do Poder de Deus, Sara Nossa Terra, Catedral do Avivamento etc.).

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ticipar de uma feira sobre a cultura africana. Como contraproposta à atividade, os estudantes decidiram realizar uma apresentação sobre as missões evangélicas na África. Para os professores, a atividade fugia ao objetivo da feira, a ­saber, o estudo da cultura africana através de obras selecionadas da literatura brasileira. Não obstante, os estudantes ergueram uma tenda à porta da escola para falar do trabalho missionário no continente. A atitude foi entendida como um ato de intolerância étnico-religiosa pelos professores. Já os estudantes alegaram discriminação por serem evangélicos. Um dos argumentos apresentados em reunião com os representantes do Conselho de Direitos Humanos, do Movimento Religioso de Matriz Africanas, da Comissão de Diversidade Sexual, da Ordem dos Advogados do Brasil e da Marcha Mundial de Mulheres era de que na obra de Jorge Amado, Jubiabá, uma das personagens possuía amizade com um “pai de santo” e que, além disso, havia citação de práticas homoafetivas. Já a obra Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, foi considerada insidiosa aos princípios evangélicos. Diante da repercussão, e retirando do foco a resistência em apresentar um trabalho sobre a cultura africana, um pastor, em defesa dos pais e dos estudantes, argumentou que a literatura indicada pelo professor continha “homossexualismo no meio.” (EVANGÉLICOS, 2012a). Em Olinda, Pernambuco, ocorreu uma tentativa de invasão do terreiro Pai Jairo de Iemanjá Sabá. Segundo o babalorixá, que presenciou a ação, membros de uma igreja evangélica gritavam em frente ao terreiro “Sai daí, satanás”. Com seu filho à frente da entrada, e buscando filmar e impedir a invasão, ele ouviu de um dos que forçavam o portão que eles tomassem cuidado, pois “era evangélico, mas era também um ex-matador.” (EVANGÉLICOS..., 2012b).

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Recentemente o líder da Igreja Assembleia de Deus Catedral do Avivamento e Deputado Federal pelo Partido Social Cristão em São Paulo, pastor Marcos Feliciano, escreveu em uma mídia social: “africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato.” Replicado na internet e repercutindo nos meios de comunicação, o deputado explicou durante uma pregação no Rio de Janeiro o sentido bíblico de sua afirmação: argumentou que, de acordo com a Bíblia, um dos motivos pelos quais a África é um continente pobre, com fome e pestes é a maldição de Noé sobre seu filho Cão3 relatado no capítulo 9 versículos 18-27 do livro de Gênesis. Cão, após ver seu pai bêbado e nu, teve sua família e sua descendência amaldiçoadas com a “servidão”, enredo que justificara simbolicamente a violência do tráfico negreiro e a escravização de africanos ao longo da era moderna. Estes três casos, separados no tempo por apenas alguns meses, sugerem que não há somente uma luta concorrencial por espaço e visibilidade no campo religioso brasileiro, mas um enfrentamento, encabeçado pelo pentecostalismo, contra o candomblé e a umbanda. Especificamente a busca de estabelecer o monopólio legítimo, isto é, socialmente reconhecido, sobre a oferta de práticas mágicas e de transe4, parece mo3 Mantenho aqui a grafia Cão, e não Cam, em acordo com a tradução da Bíblia por

João Ferreira de Almeida, largamente usada no meio evangélico. 4 Diferenciando o êxtase do transe, Marion Aubrée (1985), explica que o primeiro é a saída de si e o segundo a descida de uma divindade ou espírito. Enquanto o êxtase é a plena memória do evento, o transe é a perda da consciência, a impossibilidade de acesso à memória. O êxtase surge com a fixidez, o silêncio e a solidão enquanto o transe beneficia-se da polifonia de sons e palavras. Seguindo Gilbert Rouget, Aubrée diferencia o transe de possessão do de inspiração. No transe de possessão, a exemplo da cerimônia xangô, o possuído muda de personalidade, transformando-se na divindade. Já no transe de inspiração, caracterizado pela glossolalia, o pentecostal conserva sua personalidade, mas ele está investido da divindade que dominando-o, faz dele o seu porta-voz. É tempestivo lembrar que os conceitos de êxtase, transe e possessão não fazem parte do léxico pentecostal em nenhum tempo. Na linguagem própria do pentecostal diz-se “derramar o espírito”,

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tivar as ações contra as religiões afro-brasileiras, bem como é o mote das pregações que buscam atrair novos fiéis interessados nessas experiências em um contexto cristão (SILVA, 2007; MARIANO, 1999). Em particular, o neopentecostalismo abominou e, ao mesmo tempo, retrabalhou à sua maneira a manipulação mágica e pessoal que há muito compõe o sistema de crenças brasileiro do qual são agentes os curandeiros, adivinhos, videntes, feiticeiros, santos milagreiros etc. Partindo-se do princípio de que o mundo é permeado de seres divinos e malignos que provocam graça ou infortúnio e podem ser suprimidos através de orações e sessões de descarrego, é o equilíbrio na oferta de serviços mágicos – transes, dons, curas etc. – e dos serviços religiosos – sacramentos e salvação – que garante a eficácia da mensagem que carreia fiéis das religiões afro-brasileiras, principalmente, para as igrejas neopentecostais.5 (ORO, 2001; MONTERO, 1986). Se o protestantismo histórico aportou no Brasil para converter principalmente católicos, o pentecostalismo tem hoje como um de seus principais alvos as religiões afro-brasileiras. A mensagem direcionada a conversão de fieis católicos tem demonstrado, desde o evento conhecido como o “Chute na Santa”, em 1995, menor eficácia simbólica que a mensa“receber o Espírito Santo”, “cheio do Espírito”, “plenos do Espírito” ou “possuído pelo Espírito” ao invés do termo “possessão”. Para os pentecostais transe, êxtase e possessão são palavras carregadas de conotação negativa porque ligadas ao espiritismo e às religiões afro-brasileiros. 5 O que distingue a religião da magia é que a primeira é um serviço a Deus e a segunda uma coação sobre Deus, isto é, a religião é “por favor”, respeito, prece, culto e doutrina; a magia é coerção do sagrado, implicando a subordinação dos deuses e a conjuração dos espíritos. (PIERUCCI, 2001). Se o monoteísmo judaico e a teologia calvinista na Europa seiscentista e setecentista – e depois o protestantismo estadunidense – buscaram expurgar a magia da religião através da racionalização ético-ascética do cotidiano, nos países de forte religiosidade popular, como no caso do Brasil, a magia permaneceu como fundamento inexterminável. (WEBER, 2009).

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gem de enfrentamento à umbanda e ao candomblé, o que não significa o esmorecimento do trânsito religioso de católicos para os bancos de igrejas evangélicas. Demograficamente majoritário e culturalmente hegemônico, o catolicismo possui condições estruturais e massa de adeptos que lhe permitem gozar de alguma imunidade. Se não lhe coloca a salvo das ações proselitistas próprias do mercado religioso, impede que suas igrejas sejam alvos de ações diretas como aquelas observadas contra as religiões afro-brasileiras. A constituição em unidades autônomas e os tênues laços de solidariedade entre os terreiros contribuem para essa situação levando babalorixás e ialorixás a buscarem se organizar na defesa de seus direitos constitucionais movendo ações legais contra pastores e suas igrejas (PRANDI, 2004).6 Direta ou indiretamente, essa situação tem repercutido nas amostras dos Censos de 2000 e 2010 que indicam uma constante perda de adeptos por parte das religiões afro-brasileiras. No Censo de 2000, 0,26% da população brasileira disse pertencer à umbanda, 0,08% ao candomblé. Já no último Censo, 0,21% afirmou ser umbandista, 0,09% que era do candomblé, e 0,01% disse pertencer a alguma religiosidade afro-brasileira não determinada. Em um contexto diferente daquele empregado por Florestan Fernandes (2007), pode-se dizer que, em relação às religiões afro-brasileiras, não existe um preconceito de não ter preconceito.7 A prática, classificada como intolerância étnico6 Igualmente mediúnicos os adeptos do espiritismo apresentaram crescimento de

1,38% em 2000 para 2,02% no Censo de 2010. 7 Em seu contexto original, Florestan escreve que, a despeito de o preconceito de cor ser considerado ultrajante para quem sofre e degradante para quem pratica, continua intocável no cotidiano desde que se mantenha o decoro no seu exercício. Essa “ambiguidade axiológica”, em parte produzida por um ethos católico de comportamento, aponta para um dilema racial brasileiro no qual o preconceito de cor, mesmo não institucionalizado como foi nos Estados Unidos e na África do

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-religiosa, se realiza tanto na esfera da intimidade como publicamente. Não há decoro ou dissimulação quanto ao que se pensa sobre as religiões afro-brasileiras. Pelo contrário, sua condenação é francamente aberta como parte da propaganda religiosa das igrejas pentecostais e neopentecostais. Pode-se inferir, a partir da somatória de casos arrolados nos últimos anos, que, no pentecostalismo, tem livre curso e aceitação a condenação pública das religiões afro-brasileiras. Ora, na alquimia religiosa que transforma as relações sociais em relações transcendentes não é relevante a “lei dos homens”, mas sim a livre interpretação e revelação da lei “extraída” das Escrituras. O evangélico, pentecostal ou protestante, tem seu pensamento, percepção e conduta de vida transpassada pela sua condição, segundo a linguagem nativa, de “salvo”. O salvo, ou o convertido, é o indivíduo que por busca pessoal ou por fruto da propaganda salvacionista deixou sua religião de origem para escolher outra religião na qual o messias cristão é o princípio-eixo de sua vida8. Converter-se é, ao mesmo tempo, uma experiência confessional em que se afirma publicamente o desejo de pertencer e seguir o deus da comunidade moral – igreja – e uma experiência vazia de conhecimento, pois ainda não se sabe totalmente no que se deve crer. É uma resposta a uma crise emocional desencadeSul, continua a pautar as relações sociais atravessando todo o espectro social. Seu resultado tem sido uma forma historicamente gestada e elaborada de dissimulação da discriminação que teve no mito da democracia racial, com sua defesa da mestiçagem, o seu principal expoente teórico (Cf. FERNANDES, 2007). 8 No campo evangélico, a transmissão familiar da filiação religiosa também sofre perturbações externas como em outras religiões. Hoje não é mais incomum ver filhos de pais evangélicos “desviados”, ou seja, que deixaram suas igrejas de origem para transitar em outras religiões e crenças, para tornarem-se agnósticos ou, raramente, para negarem qualquer profissão de fé. A fase em que as rupturas começam a surgir é ao final da adolescência e começo da vida social adulta, momento em que estímulos externos a família e a igreja influenciam a conduta de vida do fiel e abalam suas convicções religiosas.

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ada por eventos cotidianos que podem estar relacionados a infortúnios – morte, desemprego, doença etc.-, ou a questões existenciais – o ser-no-mundo sem sentido, situações em que os esquemas de interpretação disponíveis não mais traduzem adequadamente a experiência vivida. Inicialmente, o salvo não tem a dimensão do significado de sua decisão, pois não sabe ainda nominar o que está sentindo. É necessário adotar uma nova conduta e uma nova linguagem sobre o mundo que estejam adequadas a sua nova expectativa de vida. Quem inicia o neófito à mistagogia do universo evangélico são os pastores, bispos ou missionários, e os próprios membros da igreja. Nesse processo de socialização ele aprende a exprimir corretamente o léxico que o identifica como salvo, pois adotar um novo vocabulário é uma das mais importantes formas de diferenciação entre o ser evangélico e o ser de outra religião. No modelo proposto por Rubem Alves (1982, p.71) eles são de quatro tipos: o vocabulário jurídico-penal, em que o pecado é proibido; o da impureza, em que o pecado é uma nódoa na vida do fiel; o medicinal, em que o pecado é doença que deve ser tratada e curada pelo “sangue de Jesus”; e o sentido político-comercial, no qual o pecador é um ser que vendeu sua alma ao diabo exigindo um preço por sua salvação que foi pago com a morte e ressurreição do Cristo. Acrescento à lista um quinto sentido: o sentido “guerreiro”, no qual o deus do monoteísmo judaico-cristão é o “Senhor dos exércitos”, o “Leão da tribo de Judá” que guia seu povo na “batalha espiritual” contra o diabo e seus demônios. Ainda com Rubem Alves, a conversão deve ser encarnada na conduta social. Deve-se assumir que a consciência individual é sempre a consciência do pecador e que há limites entre o permitido e o não permitido: não se deve beber, fumar, jogar, ir a festas “mundanas”, cultuar imagens, consultar adi-

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vinhos, ir a terreiros... É essa nova conduta e linguagem, com seu vocabulário centrado no pecado, na batalha espiritual e na redenção, que estrutura o agir e as representações evangélicas. Se for possível falar de um habitus evangélico, ele se estrutura, precisamente, a partir da experiência de conversão. No caso do pentecostalismo, a linguagem de guerra em cadência com a atitude guerreira desencadeia as situações de enfrentamento contra os terreiros e as cerimônias públicas afro-brasileiras. Pode-se dizer, seguindo Weber (2008, p.109), que a santificação ascética exige uma ecclesia militans. Na batalha espiritual afronta-se o “inimigo” em todos os lugares e momentos. Afirmando que está em curso uma batalha pela salvação da sociedade, diz-se e age-se sem considerar as suscetibilidades de ordem social e jurídica, conduta que também tem criado impasses entre o governo federal e as igrejas evangélicas no tocante aos direitos de religião na esfera pública e às políticas afirmativas homoafetivas presentes no Plano Nacional de Direitos Humanos.9 É possível afirmar que as representações acerca das religiões afro-brasileiras não são uma particularidade apenas do 9 Em reunião com o Ministro Chefe da Secretaria Geral da Presidência da República,

representantes da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil entregaram um manifesto em que se colocam contrários às políticas afirmativas homoafetivas presentes no Plano Nacional de Direitos Humanos: “MANIFESTAMOS nossa posição contrária à redefinição da família incentivada no PNDH que se distancia frontalmente dos preceitos bíblicos e do que é estabelecido na própria Constituição Federal. Assim, CONCLAMAMOS os representantes do povo no Congresso Nacional que se posicionem a favor da manutenção dos ideais expressos em nossa Constituição Federal, rejeitando qualquer dispositivo que subverta a constituição da família conforme preceitua a referida Constituição e a Bíblia; as demais instâncias da República, cidadãos e líderes de instituições sociais, que se unam em defender a manutenção saudável da família que, ao longo da história, tem sido o esteio de nossa sociedade; aos Pastores Batistas que continuem ensinando claramente os preceitos bíblicos sobre a família, garantindo, assim, o esclarecimento do povo de Deus que vive nesta Nação, bem como suas Igrejas e comunidades de modo a demonstrar a sociedade os benefícios que a família, biblicamente constituída, vem trazendo ao longo da história”. (BATISTA..., 2013).

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pentecostalismo. Na longa duração histórica, a igreja católica apropriou-se de ritos e elementos das religiões afro-indígenas que a estimulou a criar pastorais específicas e retrabalhá-los no contexto da catolicidade. No campo evangélico, a relação das várias igrejas com a religiosidade brasileira – catolicismo, a umbanda, o candomblé e as religiões indígenas... – foi de confronto e rejeição-apropriação. As igrejas do protestantismo histórico, por exemplo, não fizeram concessões de ordem religiosa, como fizera o catolicismo. Pelo contrário permaneceram como críticos das tradições e costumes brasileiros, concebendo o catolicismo como uma heresia e idolatria a ser combatido. Já o candomblé e a umbanda foram considerados demoníacos muito antes que os primeiros pentecostais aportassem no Brasil. Por sua vez, ao mesmo tempo em que confrontou o catolicismo e as religiões afro-brasileiras, o neopentecostalismo incorporou alguns rituais católicos e abraçou o magismo, típico do sincretismo brasileiro, ao oferecer benção, milagres, curas e prodígios a seus adeptos credenciando-se como religião a serviço da consumação das demandas religiosas do aqui e agora. Além disso, incorporando à sua linguagem ritual expressões que remetem diretamente ao imaginário religioso brasileiro – “encosto”, “olho grande”, “sessão espiritual”, “descarrego”.. – conseguiu alcançar as camadas populares e além. Indiferentemente se protestantes ou pentecostais, a religiosidade brasileira permanece, em geral, alvo de crítica e reprovação. Para pastores e teólogos, a experiência religiosa brasileira é “sincrética”, “pluralista”, “secularista”, “superficial”, cheia de “crendices populares” e “mágica”; que concebe um deus “tolerante, informal e em última análise, superficial” (ROCHA et al., 2004). A resposta dada pela ética social evangélica à religiosidade brasileira também permanece inaltera-

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da ao longo do tempo: converta-se o indivíduo e a sociedade se transformará (ALVES, 1982). Paradoxalmente, pelo Censo de 2010, as igrejas pentecostais e neopentecostais congregam mais membros negros e pardos.10 Igualmente, o pentecostalismo é a religião que mais cresce na África lusófona. A Assembleia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Mundial do Poder de Deus, por exemplo, têm alcançado êxito nos países de língua portuguesa e junto aos imigrantes de países anglófonos. Não obstante, no meio evangélico, ser negro não tem gerado uma relação de pertença com o continente africano. O que parece ser óbvio. A ascendência africana de milhões de brasileiros não significa que se faça ideia de qual povo da África corresponde a sua origem, como escreve Antônio Risério (2007). Menos óbvio é dizer que entre os evangélicos negros ou não, ela é desconsiderada ou negada em nome de outro lugar-tempo de referência onde tudo começou: Israel. Aliás, a defesa da política militar israelense na Palestina é causa mansa, e seu pavilhão nacional um ornamento presente em algumas igrejas do pentecostalismo. Há uma tendência de que o evangélico negro – ou pardo – perceba o continente africano como um lugar distante 10

Há 25.370.484 evangélicos pentecostais no Brasil, representando 13,30% da população. As demais igrejas do protestantismo histórico somam 6.095.089 membros (3,19%). Nas igrejas pentecostais, 1,12% declaram-se negras, 6,50% pardas, e 5,49% da cor branca. O percentual de negros no protestantismo histórico é de apenas 0,28%, o de pardos 1,60% e o de brancos é 2,08%. Levando apenas em consideração o item “cor preta”, as igrejas pentecostais possuem uma pequena vantagem em relação às igrejas protestantes históricas no número de adeptos negros (1,88%). Entre as igrejas pentecostais, 5,49% declararam-se brancos. Só com a união dos percentuais de negros (1,12%) e “pardos” (6,50%) é que as igrejas pentecostais se tornam a “religião mais negra” do país (7,62%). Também, entre as igrejas pentecostais, a Assembleia de Deus permanece com o maior percentual (6,46%). A maior igreja protestante é a batista, com 1,95%. O catolicismo segue perdendo adeptos. No Censo de 2000 os católicos somavam 73,77% decaindo para 64,63% no Censo de 2010. Novamente o item “sem religião” registrou um aumento de 7,28% para 8,4%. Fonte: Censo Demográfico, 2010.

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a ser salvo de si mesmo. Se a religião implica na mobilização de uma memória que reconstrói no tempo um sentimento de pertença, o continente africano não faz parte desse circuito de memória a não ser como território a ser cristianizado ou um lugar de cativeiro, como invocado na celebrada história do Êxodo do Egito. Escrevendo de outra maneira, a pauta dos movimentos negros tem dificuldade em alcançar o meio evangélico – ao contrário do que ocorre no catolicismo – pelo fato de que a única ação afirmativa que importa manifestar é a do messias como “salvador”.11 Transculturais, protestantes e pentecostais proclamam um deus que age em um mundo, segundo eles, sem fronteiras socioculturais que impeçam o proselitismo. É exatamente essa percepção sobre a cultura-mundo, inerente às religiões monoteístas, que impulsionam as missões evangélicas em África.

África e as Representações Religiosas Há, nos três casos mencionados no início deste texto, outra unidade de pensamento que chama atenção: o lugar em que a África figura nas representações religiosas. Dois dos três casos descritos cristalizam a África como um lugar amaldiçoado com uma cultura, que antes de ser conhecida ou celebrada, deve ser transformada através da ação missionária e da pregação salvacionista. De que forma é possível compreender a lógica de produção e de reprodução dessas práticas e representações em relação à África no campo evangélico? Um caminho metodológico a ser seguido é a atu11

Apesar da pouca visibilidade o chamado Movimento Negro Evangélico tem realizado um debate sobre a questão racial no interior das igrejas. As poucas informações sobre o movimento dificultam uma análise de suas propostas e atuação, uma faceta do campo evangélico ainda ignorada pelos pesquisadores em sociologia das religiões.

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ação de missionários evangélicos que atuaram e atuam no continente africano. A fase contemporânea das missões protestantes se iniciou ainda no século XVIII liderada pela Sociedade Missionária de Londres. Começando pelo sul do continente, a interiorização do trabalho missionário foi capitaneada por anglicanos, metodistas, presbiterianos e batistas alcançando durante o século seguinte os territórios subsaarianos, a costa atlântica e o Magrebe.12 No campo missionário, foi francamente admitida a afinidade eletiva entre missões e imperialismo europeu. Os lemas de dois dos mais iminentes representantes e inspiradores do trabalho missionário em África, Robert Moffat – “a Bíblia e o arado” – e de seu cunhado, David Livingstone – “Comércio e cristianismo” –, são um exemplo da cadência entre o processo de evangelização e a expansão capitalista. Segundo eles, só era possível criar um ambiente propício à pregação do evangelho com a modernização das sociedades africanas (TUCKER, 2010). A situação colonial estava dominada pela presença branca e seus dispositivos civilizatórios. O modelo de administração colonial determinava a eficiência, ou não, das negociações de conflitos e de assimilação que não raramente desconsideravam as singularidades políticas e socioculturais nos espaços colonizados. Junto à administração colonial figurava à testa as missões protestantes ou católicas 12

Os pentecostais iniciam seus trabalhos na África ainda nos anos 1920. Uma das primeiras igrejas foi a Igreja do Espírito Santo, no Quênia, fundada por Jakobo Buluku e Daniel Sande em 1927. Seus fundadores estabeleceram o batismo pelo Espírito Santo, o dom de falar em línguas e a livre confissão dos pecados como condições necessárias para a salvação e a comunhão religiosa. Particularmente, em Angola, uma das mais antigas igrejas pentecostais, a Assembleia de Deus, é fruto do trabalho missionário português que aportou em Luanda nos anos 1950. Tão importante na construção do pentecostalismo em Angola foi – e ainda é – a influência da República do Congo. A alta incidência de igrejas neopentecostais na região é fruto do circuito de emigração de congoleses para Luanda e do regresso de angolanos do Congo para seu país.

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com suas escolas, hospitais e campos agrícolas, estes últimos transformados de uma economia de subsistência em verdadeiras empresas agrícolas e artesanais nos quais o trabalho oscilou entre o compulsório e o “mal pago” como ocorrido no Congo belga e países lusófonos (M’BOKOLO, 2007).13 Na primeira década do século XX reafirmou-se a necessidade de se levar o evangelho à África no aclamado e lamentado Congresso Mundial de Missões Protestantes de Edimburgo (1910), Escócia. Para além das divergências entre os delegados alemães e os delegados estadunidenses a respeito da permanência ou não da América Latina como uma fronteira a ser missionada, porque católica, ficou decidido pela continuidade e estímulo às missões junto aos africanos, asiáticos e orientais, que, diziam, não conheciam em sua maioria o cristianismo.14 Aliados do trabalho de evangelização, os serviços sociais continuaram como estratégia de inserção e conversão, não somente no continente africano, mas em todas as fronteiras missionárias do globo. Nestes locais, é o equilíbrio na 13

Particularmente, nos “países lusófonos”, a presença de missões protestantes foi considerada pelas autoridades coloniais uma luta entre a “cultura da pátria” e o “estrangeirismo”. Em Angola, os batistas iniciaram seus trabalhos ainda em 1878, com a Sociedade Missionária Batista, em São Salvador (antiga Mbanza Kongo), seguidos pelos congregacionalistas e metodistas. O modelo de missões foi o mesmo para toda a África Negra: possuíam prensas para confeccionar literaturas religiosas em língua kimbundo, hospitais e escolas de ensino pré-primário e primário que visavam o controle da educação e do trabalho, atividades condenadas pela administração ultramarina e que levaram vários missionários ao exílio ou à clandestinidade. Não à toa a Revolução dos Cravos de 1974 foi percebida como uma oportunidade para a conquista de espaço e visibilidade pelos missionários em territórios lusófonos. 14 Aclamado por nele terem sido desenhados os primeiros contornos do diálogo ecumênico entre as igrejas protestantes. Lamentado devido à mudança de atitude em relação ao catolicismo latino-americano. De maioria cristã, mesmo que católica, a América Latina já conhecia o evangelho, sendo o alvo missionário deslocado para outros continentes. Essa resolução resultou no Congresso da Ação Cristão do Panamá (1916) capitaneado pelos estadunidenses. A única exceção apoiada em Edimburgo foi dada às sociedades missionárias que trabalhavam evangelizando os povos indígenas do continente americano.

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oferta dos serviços sociais e dos serviços religiosos à medida de aproximação e assimilação aos povos nativos. As visões registradas nos relatos de missionários sobre a África Negra colonial são similares. Etnocêntricos, eles descrevem um continente rico em recursos naturais, com condições precárias de vida e de trabalho, atormentado pela ação colonizadora, dominado pela poligamia, pelo infanticídio de irmãos gêmeos, carente de valores cristãos e imersos na superstição “tribal” de feiticeiros (TUCKER, 2010, p.169-203). Um enredo substantivamente similar pode ser encontrado nos relatos atuais dos missionários que trabalham na África. Para estes, os povos africanos permanecem envolvidos pela magia e pelo culto aos mortos, sendo responsabilidade do cristão derrotar os espíritos e destruir o poder da feitiçaria. Mesmo que, para isso, como escreve o missionário Wilbur O’Donovan em seu livro O Cristianismo Bíblico da Perspectiva Africana, tenha que se criar rituais paralelos àqueles praticados pelos feiticeiros e estimular a queima de amuletos e fetiches após a conversão de nativos. O renascimento cultural da África pós-colonial trouxe consigo o retorno às religiões ancestrais e às práticas mágicas no interior do cristianismo. O cristianismo africano criou sua própria configuração religiosa de base sincrética, associando teologia cristã com a tradição africana. O sincretismo, muitas vezes consentido por missionários liberais, é considerado como o símbolo do declínio da influência das chamadas missões verdadeiramente cristãs. Nos relatos de campo, os feiticeiros permanecem os principais antagonistas ao trabalho missionário. Rivais de ofício, ambos buscam legitimar sua atuação junto à comunidade nativa. Os primeiros, através dos sacrifícios, práticas mágicas e ritos ancestrais, busca perpetuar sua posição de chefe espiritual da comunidade. Os segundos, ao invocar um deus

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superior aos deuses ancestrais e amuletos, procuram desestabilizar a credibilidade do chefe espiritual local. Em momentos rituais, a presença de um missionário é sinal de infortúnio, principalmente quando não alcança o êxito desejado. Não à toa a conversão de feiticeiros é um evento celebrado, tornando-se rapidamente emblema do progresso do trabalho de evangelização. Seu efeito de propaganda é similar àquele em que um pai de santo se converte a uma igreja evangélica. Nas últimas quatro décadas, tem sido dada especial atenção a forma de comunicação dos missionários com os povos nativos. A sofisticação no trato do tema é um diferencial em relação àquela geração que nos setecentos deu início ao processo de evangelização protestante no continente. A chamada “Antropologia Missionária”, de matriz evangélica é disciplina recente que, em última instância, visa dar um verniz “científico” ao trabalho no campo missionário. A disciplina tem por objetivo, segundo Ronaldo Lidório (2011b), aplicar às pesquisas e ações missionárias a fortuna academicamente acumulada desde Taylor e Morgan passando pelos antropólogos contemporâneos. Teologicamente orientada, seu fundamento é a interculturalidade, isto é, a compreensão de que o trabalho missionário acontece em um contexto em que há um contato entre atores de diferentes culturas que exige o prévio conhecimento lingüístico e sociocultural em todos os processos de interação. Trata-se de traduzir a partir de um padrão dito “étnico-teológico” a experiência vivida no campo em acordo com “valores bíblicos supraculturais”. Isso significa afirmar que os valores extraídos da Bíblia podem ser compreendidos e aceitos por qualquer cultura humana, bastando que haja a contextualização linguística e cultural desses mesmos valores à realidade missionada. Se para o povo Kokomba da região de Koni, nordeste de Gana, o ser criador de tudo é Uwumbor, ele

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pode ser traduzido pela experiência vivida como Javé, porque são teologicamente equivalentes (LIDÓRIO, 2011a). Ora, toda tradução se realiza segundo um código cultural dominante. Na interface com os povos africanos, os missionários tornam-se tradutores arbitrários da cultura nativa, organizando e difundindo ideias, imagens e pensamentos em cadência com a sua condição religiosa e etnocêntrica. É certo que, no processo de negociação de significados culturais, há margem para apropriações e releituras nativas que são características do cristianismo africano. Contudo, e há muito tempo, a visão missionária tem contribuído, em seus termos, na forja de representações empobrecidas e trágicas sobre a África15. As representações são uma forma singular de conhecimento e de construção do mundo social que variam segundo a posição social e os interesses dos agentes no campo evangélico. Segundo Bourdieu (2004), as representações são um produto do habitus – a internalização da exterioridade -, isto é, um sistema de determinações adquiridas pelo qual se realiza a produção e percepção das práticas religiosas – agir religioso – e de apreciação, apropriação e classificação dessas mesmas práticas – representações religiosas. A elaboração, transmissão e internalização de uma visão empobrecida e trágica sobre o continente africano se dão por diferentes instituições e meios de difusão. Os seminários, cursos de formação, cartas e diários de campo, além dos testemunhos sobre o trabalho missionário, figuram como os prin15 A compreensão de que a passagem de Isaías 14: 12-14, que não menciona o nome

“satanás”, se refere à queda do diabo na Terra continua vívida no meio pentecostal. Teria sido o continente africano o lugar em que o ele fora lançado ao ser expulso dos céus. “Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da alva! Como foste lançado por terra, tu que debilitavas as nações! Tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do Norte; subirei acima das mais altas nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo.”

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cipais reprodutores dessas representações sobre a África no campo evangélico. Na esfera da ação religiosa, as missões e seus agentes de campo constróem um circuito de produção-reprodução de sentidos transpassados por uma leitura salvacionista e altruísta que permanece, em nível simbólico e prático, no marco colonial. Isso significa dizer que há uma continuidade na longa duração histórica entre os fazeres e interpretações que sustentam e direcionam o trabalho missionário de ontem e de hoje. Dois dos casos que se referem à África no início deste texto podem ser compreendidos como desdobramentos de um aprendizado historicamente socializado e internalizado que não perdeu pulsão ao longo do tempo. Uma rápida olhadela nas listas de discussões dos sites das agências missionárias brasileiras reforça o argumento aqui urdido. A produção e reprodução dessas ideias, imagens e pensamentos continuam alimentando a verve de voluntários e de aspirantes à fronteira missionária africana.

Referências Bibliográficas ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1982. AUBREE, Marion. O transe: a resposta do xangô e do pentecostalismo. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 7, n. 37, p.10701075. Julho 1985. BATISTAS convocados ao Palácio do Planalto. Batistas. com, Rio de Janeiro, 24 de junho de 2013. Disponível em: http://www.batistas.com/index.php?option=com_content& view=article&id=1218: batistas-brasileiros-convocados-ao-palacio-do-planalto&catid=16:artigos1&Itemid=42. Acesso em: 24 jul. 2013.

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DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA: UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA Bas´Ilele Malomalo Exílio A toda diáspora africana exilada e migrante No meu país Só os pássaros cantam [...] Eu sinto a morte, o cheiro da pobreza Vergonha que carrego na terra do exílio Vergonha de um exilado Sem país [...] (Bas´Ilele Malomalo).

Introdução O texto que apresento neste livro foi discutido pela primeira vez na I Conferência Internacional do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN) e do NUPE – Grupo de Estudo, Pesquisa do Negro da Universidade Estadual Paulista (UNESP) promovida pela Faculdade de Ciências e Letras, pelo Departamento de Antropologia Política e Filosofia, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Centro de Referência Afro da mesma universidade, nos dias 15, 16 e 17 de maio de 2007. As reflexões decorrentes dele situam-se no contexto dos acontecimentos que ocorreram na África e na República Democrática do Congo (RD Congo) até 2007. A minha comunicação fez parte do seminário temático do CLADIN: “Lugar político e estado da cultura africana e afro-diaspórica no século XXI”.

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Sugiro, portanto, o seguinte tema para nossa reflexão: “Desafios da democracia e do desenvolvimento na África: um olhar sobre a República Democrática do Congo a partir da diáspora negra brasileira”. A minha intenção não é abordar a realidade social, cultural, política e econômica do continente africano na sua generalidade, que pode ser encontrada no relatório 2006 da União Africana (UA), mas destacar uma de suas realidades, tendo a RD Congo como um caso particular por dois motivos. Primeiro: foi nesse país que nasci e comecei a alimentar a minha consciência crítica sobre a negritude/africanidade. Segundo: o advento da III República, nessa parte da África, é um belo exemplo para discutirmos – nós, intelectuais africanos, negros da diáspora, africanistas e simpatizantes da nossa luta – sobre o nosso futuro e o dos nossos filhos. Desenvolverei esta reflexão a partir dos instrumentos teóricos que fazem parte da minha realidade intelectual na atualidade, qual seja os estudos do desenvolvimento, especificamente a sociologia do desenvolvimento e das relações raciais e do multiculturalismo. Articularei o meu discurso a partir de três pontos: 1) o campo dos estudos do desenvolvimento: dos velhos aos novos temas; 2) o paradoxo do subdesenvolvimento africano: o caso da RD Congo; 3) os desafios da democracia e do desenvolvimento na África a partir da República Democrática do Congo. Finalizo o meu texto com uma nota de esperança para o Congo, tendo por pano de fundo a epígrafe de um poema de minha autoria intitulado de “Exílio”.

O Campo dos Estudos do Desenvolvimento: dos Velhos aos Novos Temas Os estudos do desenvolvimento são um campo multidisciplinar que faz uso dos conceitos da sociologia, da antropologia, da economia e da ciência política para pensar a reali-

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dade social. Nasceram após a Segunda Guerra mundial, num contexto histórico que Gunnar Myrdal caracterizou de Guerra Fria, da descolonização e de aspiração dos países em desenvolvimento em ocupar um melhor lugar na ordem política e econômica mundial e as condições de vida mais digna para o conjunto de suas populações (FORSTER, 2007). Na atualidade existem duas correntes desse campo do conhecimento. O pensamento dominante do desenvolvimento que tem a economia como o núcleo duro. Essa primeira abordagem tende a pecar pelo seu economicismo. As grandes instituições financeiras, tais como FMI, Banco Mundial, são as defensoras dessa linha de pensamento. De outro lado, existe o pensamento crítico do desenvolvimento, conhecido também como o pensamento alternativo (FAVREAU, 2004; MÉSZÁROS, 2002, 2003, 2004). Perante a crise atual, a primeira corrente considera que não há outra saída. A própria lei do mercado irá corrigindo as desigualdades sociais criadas pelo próprio mercado. Os defensores do pensamento alternativo pensam o contrário. Estes fazem parte da nova sociologia econômica, da teoria da economia social e solidária, do desenvolvimento humano, do desenvolvimento local, do desenvolvimento econômico comunitário ou do desenvolvimento sustentável. Para eles, é preciso introduzir um novo olhar sobre o conceito econômico. (GENDRON, 2004). A economia, o mercado e suas transações são vistos como construções sociais. Nessa ordem de raciocínio, a superação das desigualdades sociais contemporâneas, da pobreza e da agressão ao meio ambiente causadas pela manipulação política do sistema econômico capitalista só é possível definindo-se novas leis, normas e regras na forma de se pensar e construir a economia e sociedade. Em outras palavras, isto significa que o desenvolvimento é um conceito

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que vai para além do simples crescimento econômico: diz respeito à qualidade de vida das populações e do seu meio ambiente (FAVREAU, 2004; GENDRON, 2004). Fundamento minha reflexão sobre o novo paradigma do desenvolvimento que nasceu nos anos de 1990. O seu surgimento tem muito a ver com a gênese das ciências do desenvolvimento que, conforme Forster (2007), tinham por velho tema o Sul. Buscava entender a situação de subdesenvolvimento em que se encontravam a maioria dos países da Ásia, da América Latina e da África após suas independências. Se de um lado as teorias do subdesenvolvimento e da dependência nos ajudaram a entender, nos anos de 1960 a 1980, as relações de assimetria e de dominação existentes nas relações diplomáticas, econômicas e nas cooperações internacionais entre o centro e a periferia, do outro lado, somente a partir dos anos 1990 é que o novo paradigma do desenvolvimento vai nos possibilitar apreender a complexidade da lógica de dominação dos impérios ocidentais em relação aos países do Sul no contexto da globalização (MÉSZÁROS, 2004; COMELIAU, 2007). Pode-se perceber que essa reflexão se alicerça sobretudo nas abordagens que têm usado o método genético-estrutural ou sistêmico (BOURDIEU, 1979; COMELIAU, 2004). Pode-se afirmar que as mudanças trazidas pela globalização tanto no Norte quanto no Sul fizeram emergir novos temas para a agenda dos estudos de desenvolvimento. Forster (2007) qualifica esses temas de “problemas globais”. Estes afetam, portanto, toda a humanidade e dizem respeito ao acesso aos recursos e a repartição da riqueza ligada às questões das desigualdades sociais, da pobreza e da distribuição de poder nas instâncias locais e globais, do comércio equitativo e da ética nos negócios, das necessidades de construção de sociedades multiculturais que valorizem as diferenças, de

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elaboração de uma política regional e internacional que atenda os direitos dos trabalhadores migrantes; a problemática da preservação do meio ambiente e, por fim, a questão da segurança que foi definida durante a última década a partir de três dimensões: a da segurança humana, a prevenção dos conflitos e a luta contra o “terrorismo”. Todos esses temas, na perspectiva deste trabalho, constituem os desafios da democracia e do desenvolvimento. O tratamento adequado desses novos temas dos estudos do desenvolvimento exige um novo olhar teórico sobre um desenvolvimento que vai além do econômico. O desenvolvimento como conceito científico é ao mesmo tempo um projeto social, cultural, político e econômico cuja construção implica nas negociações entre vários agentes sociais: o Estado, o Mercado e a Sociedade civil (LÉVESQUE, 2002). Trata-se de uma teoria e prática que dizem respeito à sustentabilidade das populações locais, do (seu) meio ambiente e do planeta. A avaliação crítica do desenvolvimento, nesse sentido, conforme Comeliau (2007), passa pelas considerações das competências técnicas e éticas presentes nos projetos de desenvolvimento. Além disso, os ativistas e intelectuais que lidam com o novo paradigma do desenvolvimento acreditam que a discussão em torno desse assunto requer também uma nova cultura, uma nova ética baseada em valores como democracia, autonomia, cooperação, solidariedade e justiça nas transações econômicas, políticas e culturais que acontecem em vários níveis sociais, locais, regionais, nacionais e internacionais. É nesse contexto que os intelectuais e ativistas do Sul têm interpretado o conceito de desenvolvimento em termos de deslocamento do centro de decisão dos países centrais para os países periféricos (FERNANDES, 1968; FURTADO, 1992), de desenvolvimento como caminho da liberdade (SEN,

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2000), ou seja, ter a capacidade e as condições necessárias para construir o destino de suas nações. Eles entendem também que há uma inter-relação entre os problemas ligados ao desenvolvimento dos Estados-Nação, das localidades e das populações. Os problemas econômicos presentes no destino desses agentes são, ao mesmo tempo, problemas sociais (políticos, culturais e ambientais). A compreensão dessa problemática passa pela mudança teórica e política de se estudar e enfrentar o problema das desigualdades, da pobreza e do subdesenvolvimento. Trata-se ali de uma problemática política e epistemológica. Em relação a essa última, gostaríamos de acrescentar mais um elemento típico desse campo de conhecimento: a valorização da ­particularidade de cada sociedade sem perder de vista a complexidade do tema do desenvolvimento (FORSTER, 2007).

Os Paradoxos do Subdesenvolvimento Africano: o Caso da RD Congo Acho melhor fazer uso do conceito de subdesenvolvimento para descrever a situação da África a partir da realidade da RD Congo. Subdesenvolvimento parece ser um conceito velho e esquecido, mas a meu ver ainda possui a sua força explicativa. Remete à privação de liberdades, de violação da cidadania, de impedimento de ter acesso e de exercer os direitos econômicos, sociais, culturais de um indivíduo ou de uma coletividade (SEN, 2000). Não falarei da situação do subdesenvolvimento do continente africano. Para isso bastaria ler os Relatórios de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e outros documentos, como Relatório da UA sobre o estado das populações africanas (2006). Interessa-me particularmente a situação da RD Congo.

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Os indicadores econômicos apresentados pela Revista Jeune Afrique ilustram a situação de precariedade em que se encontrava a RD Congo em 2007. Paridade Euro Paridade Dólar Renda Nacional Bruta (RNB) por habitante RNB por habitante Paridade de

1 Euro vale (em 01/01/2004) 518,71 Francos Congoleses (FC) 1 Dólar vale (em 01/01/2004) 439,7 FC 120 $/ hab (entre os 175 países) 697 $/hab.

Poder de Aquisitivo (PPA) Partilha do Produto Interno Bruto (PIB)

Primário: 52% Secundário: 18% Terciário: 30%

Inflação

6%

Investimento interno bruto

12% do PIB

Investimento estrangeiro

900 milhões de $

Exportações

1813 milhões de $

Principais recursos

2056 milhões de $

Risco país

D

Fonte: Indicadores Econômicos da RDC (2007).

O subdesenvolvimento da RD Congo é um paradoxo na temática do desenvolvimento das nações. Esta nação africana rica em recursos naturais e humanos, cotada entre os dez países do mundo em termos de potencial, é ao mesmo tempo classificada entre os dez países mais pobres do planeta (MALEKERA, 2007). “Pois a história econômica do país resume-se a uma longa descida aos ‘infernos’. Em 1960, o PIB do ex-Zaire (entenda-se Congo) era superior ao do Canadá”, escreve Laurence Tovi (2006). Só que, em 2007, esse país passava por grandes dificuldades. A reflexão a ser feita é que nin-

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guém desce ao inferno sozinho. No caso do Congo, só existe inferno porque houve “diabos” que o construíram. O inferno é a sua situação de subdesenvolvimento. Para entendermos o processo de subdesenvolvimento da RD Congo, precisamos entender a sua história nacional, regional e internacional. Nossos pressupostos para ­análise são esses: desde o tempo colonial até a III República, em 2007, esse país sempre foi vítima da cobiça do poder e do capital internacional, continental e regional e o sucesso dessa dominação só se justifica pela cumplicidade de uma parte da sua liderança política seduzida pelo poder e pela ganância material (MOYROUD; KATYNGA, 2002). A seguir explicarei essa afirmação dividindo a história do Congo em três fases: período pré-colonial (antes de 1493), período colonial (18851960) e período pós-colonial (1960 aos nossos dias). Antes de 1493, o território congolês era composto de reinos tais como Kongo, Luba, M´siri, Zande, Mangbetu, Mongo etc. Essas instituições políticas contribuíram durante séculos para a coesão social. Como diria o filósofo congolês Tshamalenga Ntumba, o poder tradicional africano era colocado a serviço da comunidade. Pois, para povos os afro-luba, ­conforme o mesmo autor: “o chefe era o chefe da comunidade e a comunidade era comunidade do chefe” (NTUMBA, 1997). A vida comunitária, a solidariedade, o respeito pelo mais velho, as alianças entre grupos étnicos, o respeito para com o outro, as divindades, a comunidade e a natureza eram valores que constituíam a cosmovisão, o ethos africano pré-colonial. Mesmo que as culturas africanas que eram praticadas nos diversos espaços civilizatórios de seus povos não fossem perfeitas, deve-se reconhecer que conseguiam manter o equilíbrio e o bem-estar das populações. É dessa forma que os primeiros missionários europeus que chegaram nas terras dos Bakongo se admiraram

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pelo fato de não encontrar crianças órfãs abandonadas nas ruas, fenômeno corriqueiro na Europa do século XV. Com a chegada dos portugueses, em 1493, no reino do Kongo, essa parte da África central entrara na rota do tráfico negreiro e assim se iniciara o processo de saque da RD Congo e da desestruturação de suas instituições sociais. Se por um lado os portugueses ocuparam-se do comércio negreiro na parte oeste da RD Congo abastecendo o mercado do Brasil, por outro lado sabemos que os árabes entraram pela parte leste, comercializando os escravos nos mercados de Zanzibar, de Quelimane e Oriente Médio. O tráfico transatlântico dos escravos africanos marcara a primeira fase da espoliação do continente africano e da RD Congo durante quatro séculos, entre XV e XIX (NZIEM, 2009). A abolição da escravatura no final do século XIX, não significou o início de um “novo” projeto de desenvolvimento nacional, pelo contrário, o início de um novo ciclo de saque e dominação dos territórios congoleses, de suas populações e de seus descendentes pelos europeus e euro-descendentes. Na conferência de Berlim (15 de novembro de 1884 – 26 de fevereiro de 1885), a atual RD Congo foi objeto de disputa política entre as coroas portuguesa e belga. Desta conferência ela foi constituída como um país, que foi batizado de Estado Independente do Congo (EIC, 01 de julho de 1885 – 1908), propriedade privada da família do Rei Leopoldo II. O mesmo país será assumido pelo governo belga anos após, tornando-se sua colônia a partir de 15 de novembro de 1908 até 30 de junho de 1960 (NZIEM, 2009). Não seria necessário lembrar que o sistema colonial foi um sistema de dominação dos povos africanos e de exploração de seus recursos naturais. Todo aparato cultural, administrativo, político e econômico montado pelo colonizador com uso

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da mão de obra escrava ou assalariada dos nativos africanos visava servir seus próprios interesses econômicos e políticos. Sendo assim, contribuíram para o desenvolvimento e prosperidade das nações colonizadoras e, portanto, para o processo de subdesenvolvimento dos povos das nações dominadas. Em uma palavra, a colonização foi um projeto de dominação cultural, político e econômico que beneficiou mais o colonizador que o colonizado (RODNEY, 2010; KI-ZERBO, 2006). Entre 1950 e 1960, a humanidade assistira ao processo de descolonização das nações africanas. O Congo Belga tornou-se independente em 30 de junho de 1960, tendo Joseph Kasa-Vubu como presidente e Patrice Lumumba como primeiro-ministro. Vale ressaltar duas dinâmicas sociais nesse contexto de libertação. A primeira é o movimento de resistência, de luta contra o colonialismo, que só foi possível graças à solidariedade existente entre as diásporas negras das Américas e da Europa, com as lideranças locais africanas determinadas a elaborar um projeto de desenvolvimento alternativo para o seu continente a partir da sua realidade cultural. Na figura de uma personalidade como Lumumba, podemos encontrar os germes de um pensamento do desenvolvimento local africano: o nacionalismo africano que entendia que a cultura, a política e a economia deviam colocar-se a serviço das populações (NZIEM, 2009). Essa visão de Lumumba, como de tantos outros pais das independências africanas, se contrapunha ao projeto do imperialismo euro-norte-americano. Por isso, foi assassinado em 17 de janeiro de 1961. Para Carlos Moore (2010), o assassinato é uma das estratégias do imperialismo. Não foi por acaso que vários outros líderes africanos e da diáspora negra foram assassinados nesse mesmo período. Foi um projeto homicida do imperialismo, que via seus interesses econômicos sendo

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questionados. Dessa forma, a segunda dinâmica que marcou esse período das independências africanas foi a do conservadorismo imperialista. Com a cumplicidade de alguns líderes africanos interesseiros, o Ocidente continuara a dominar o continente africano através do neocolonialismo (MUNANGA, 1988; MÉSZÁROS, 2003, 2004). Na RD Congo, no dia 24 novembro de 1965, Joseph-Désiré Mobutu, com a cumplicidade dos governos americano e belga, realizou um golpe de Estado e se proclamou presidente da República. Em 27 de outubro de 1971, o Congo tornou-se Zaire; o governo Mobutu implementou a política da negritude dos pais das independências africanas em termos de política de autenticidade, política cultural de resgate da identidade negro-africana e zairense. Como presidente, batiza-se de Mobutu Sese Seko. Nos primeiros anos do seu governo, Mobutu se mostrou um pouco “nacionalista”, mas de fato era um elemento a serviço do capital internacional (MÉSZÁROS, 2003). Assim, o imperialismo hegemônico norte-americano, através de seus sucessivos governos, usaria Mobutu e o posicionamento geopolítico do Zaire para implementar a política de segurança nacional. Como se sabe, essa era o braço político do capital internacional que conseguiu se sustentar pela criação de regimes autoritários e ditatoriais na América Latina, na Ásia e na África. Para se manter, esses governos recorrem frequentemente às práticas de corrupção, violência e intimidação dos opositores e das populações, assim como ao nepotismo e rombo dos cofres públicos. Foi o que aconteceu com o ex-Zaire. A manutenção do autoritarismo e da ditadura levou à miséria e ao subdesenvolvimento toda uma nação. O Zaire, que se tornara uma nação sem Estado, a partir do fim dos anos de 1989, se viu sacudido pelo grito da ­liberdade de uma parte de sua população e líderes de oposições, sobre-

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tudo Tshisekedi wa Mulumba, reivindicando as mudanças. Em 18 de dezembro de 1990, o governo Mobutu foi obrigado a restaurar o multipartidarismo. Depois de eleger o líder da oposição, Tshisekedi, como primeiro-ministro e o arcebispo Mosengo Pasinya como presidente da Conferência Soberana (um tipo de fórum nacional construído para pensar as reformas políticas e econômicas da nação), Mobutu, com medo de perder o poder, fechara essas novas instituições em abril de 1991, gerando assim uma crise política (BRAECKMAN, 1999). Mapa da República Democrática do Congo

Fonte: HISTOIRE de la République Démocratique du Congo (2007).

Foi assim que, em outubro de 1996, Laurent-Désiré Kabila, ex-rebelde nos anos de 1965 que lutava contra o regime de Mobutu, socialista por ideologia, iniciara uma rebelião contra a ditadura mobutista com o apoio de Rwanda e Uganda no

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Kivu. Em 17 de maio de 1997, Aliança de Forças Democráticas para a Libertação do Congo (AFDL) entra em Kinshasa, e Kabila proclama-se chefe de Estado. Em 16 de janeiro de 2001, L. D. Kabila foi assassinado. Não há dúvida que a mão invisível dos proprietários do capital global esteve atrás dos 47 golpes do estado que esse dirigente político sofrera. Apesar do seu autoritarismo, o governo de L.D. Kabila procurou, bem ou mal, defender os interesses da nação congolesa. Sabia mais do que ninguém que o Congo era um potencial econômico e só precisava da autonomia para se desenvolver (BRAECKMAN, 2008). O seu filho, Joseph Kabila, o sucedeu em 30 de junho de 2003. Em 22 de fevereiro, após o Diálogo Inter-Congolês em Sun City, J. Kabila formou um governo de transição com a aplicação do esquema “1+4”: um presidente com quatro vice-presidentes, três oriundos das facções rebeldes e um da sociedade civil. De 19 a 20 de novembro de 2004, foi organizada a Conferência dos Grandes Lagos em Dar es-Salaam, visando o respeito dos acordos de paz nível regional (MOYROU e KATYNGA, 2002). Em 21 de outubro de 2006, a RD Congo fez suas primeiras eleições democráticas da história e iniciou-se a III República. J. Kabila se elegeu presidente. O que se diz dos governos liderados por J. Kabila em 2007? Diferentemente do seu pai e dos outros dirigentes que o Congo já conheceu, J. Kabila é diplomático e flexível nas negociações. Do ponto de vista da crítica do novo paradigma do desenvolvimento, não deve ser escondido que durante a transição, como nesse novo governo da III República, os dirigentes do Congo continuaram com o modelo neoliberal. Por ser novo, a única pergunta que deve se fazer é essa: o modelo neoliberal do Congo estará a serviço do capital global ou a serviço das populações marginalizadas? Parece-nos que a resposta a essa pergunta dependerá da capacidade do governo atual de en-

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frentar os desafios da democracia e do desenvolvimento que se apresentam a ele nessa fase histórica. (BRAECKMAN, 2008).

Desafios da Democracia e do Desenvolvimento na África a partir da República Democrática do Congo O termo “desafios” quer lembrar que tanto a democracia como o desenvolvimento são tarefas, construções históricas. São processos que envolvem escolhas de estratégias para a sua construção. Comeliau (2007) indica dois tipos de escolha: uma técnico-científica e a outra político-ética. O advento da “Nova África”, da “Segunda independência africana” (ROBERT, 2006), a superação dos desafios da “III República no Congo” para realização “dos cincos canteiros” do governo atual (SABAHARA, 2006) tão falados, mais do que realidades místicas e imutáveis, são desafios históricos nesse terceiro milênio para os filhos dessa parte do mundo. A sustentabilidade desse novo projeto de nação passa pela criatividade e pela boa vontade política dos afro-congoleses em enfrentar os desafios da construção de uma nova história, que requer a implementação de uma nova cultura, de uma democracia política e social, de uma sociedade civil orgânica. Para isso, o Congo precisa inovar na economia e ter a capacidade de negociar os conflitos, lidar com a questão da segurança. A análise crítica desses desafios não deve omitir as relações de forças recíprocas que existem entre a variedade de agentes locais, regionais, nacionais, continentais e internacionais envolvidos na sua realização, apesar de grande parte da responsabilidade estar nas mãos dos dirigentes congoleses. É comum, entre os intelectuais que pensam o desenvolvimento do continente africano, falar-se de uma nova cultura para a eclosão de uma Nova África. Esta nova cultura remete

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a uma prática ética, uma mudança de mentalidade e de ações da parte de seus dirigentes, dos aliados da cooperação e dos governados. A história político-econômica particular da RD Congo mostra como a falta de ética por parte dos dirigentes nacionais, regionais e internacionais, levou a população congolesa a pagar o preço da sua “descida ao inferno”, isto é, da sua miserabilidade, do seu subdesenvolvimento. A educação nos parece ser a porta de entrada para o enfrentamento dos desafios citados. Trata-se de construir uma educação formal e difusa que tenha como fundamento a ética. Estamos nos referindo a uma educação que vai construir um homem novo: um congolês que é nacionalista, não egoísta, não traidor da nação, não predador das riquezas e dos bens comuns, senhor de guerra e aliado do poder e do capital internacional. Um congolês cosmopolita, que sabe negociar as diferenças étnicas, os conflitos e é capaz de perceber que a nacionalidade é uma construção política e histórica. Como se pode ver, trata-se ali de uma educação para a complexidade e para a solidariedade com intuito de formar cidadãos democráticos (PERREROUD, 2005). Esses conceitos não são estranhos à cultura africana e congolesa. O diálogo com a memória histórica é um passo indispensável para se caminhar nessa direção. Resgatar criticamente os valores da democracia, da solidariedade, da partilha, da comunidade, assim como o fizeram os pais das independências africanas (NTUMBA, 1997; MONARE, 2007), é uma tarefa indispensável para o Congo de hoje. Portanto, o cidadão, administrador político e o homem comum, o homem congolês novo nascerá desse diálogo crítico com o nosso passado de ancestralidade africana e o nosso presente híbrido afro-ocidental. Outro elemento indiscutível da memória histórica congolesa é esse: lembrar-se sempre que o

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advento da III República, da democracia formal, de luta de resistência contra o colonialismo, o neocolonialismo, a ditadura mobutista e o egoísmo de alguns de nossos compatriotas, “senhores de guerras”, com a cumplicidade dos países vizinhos e detentores do capital internacional, custaram a vida de mais de 4.000.000 de nossos irmãos e irmãs (PÉANS, 2010). Portanto, é nossa responsabilidade tornar essa democracia formal e substantiva (SEN, 2000; MÉSZÁROS, 2002). Para isso, a educação para a democracia deve ter por base também a criatividade nos setores da economia e da segurança considerados cruciais para o desenvolvimento do país. Essa atitude deve partir dos dirigentes políticos e dos setores dinâmicos da nação. No campo da economia nacional, regional e internacional, exige-se que os atores endógenos e exógenos incorporem uma nova cultura, bem como uma ética nos negócios e no uso do meio ambiente congolês. O professor Albert Cirimwami Malekera (2007) entende que esses atores devem abandonar a lógica da economia do saque que tem visado unilateralmente o serviço dos interesses leopoldinos, mobutistas e dos novos senhores de guerras, para a adoção de uma prática da economia do saber e geradora de empregos e, acrescento, de trabalho. Para que isso aconteça, do ponto de vista da responsabilidade nacional, o Congo deve aderir e cultivar o espírito inovador, questionar políticas coloniais do passado e neoliberais do presente e elaborar uma estratégia para o bem-estar e o desenvolvimento comunitário. No que diz respeito ao último ponto, Malekera (2007) acha que é preciso, primeiro, identificar a existência dessas atitudes nos dirigentes do Congo: a ambição e o reconhecimento da gravidade da situação da miserabilidade do país. Em seguida, para trilhar o caminho do desenvolvimento, é necessário inserir o país no meio da

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sua realidade nacional, regional, continental e internacional, isto é, o Congo deve fazer uso da inovação como instrumento de realização de uma economia do saber, do uso bem feito de seus recursos naturais e humanos, evitando o desperdiço. Nessa perspectiva, o governo do Congo deve investir nas políticas de meio ambiente, valorizando assim, a floresta equatorial cuja 4/5 parte, no contexto africano, se encontra no seu território e investir na produção de energia do Rio Congo, cuja capacidade atual lhe permite vendê-la para oito países africanos. Em relação a imensidão de seus recursos minerais, para além da prática da economia extrativista, o Estado congolês deve estimular a criação de microempresas nacionais que atendam a demanda interna e externa, assim como as parcerias entre o setor privado nacional e internacional com as universidades para que se possa aproveitar das capacidades humanas para o desenvolvimento da tecnologia. Outro ponto importante a ser considerado é investir na agricultura, [...] porque nosso país tem com certeza fortes potencialidades agrícolas, é, portanto, a sua vocação. Assim, a agricultura não industrial é desenvolvida por 70% da população ativa da economia. Porque esse é um dos países do mundo que, dispõe de uma terra fértil e onde pode se cultivar todo ano (MAFELLY-MAKAMBO, 2007).

A diáspora congolesa é e deve ser também vista como um potencial agente do desenvolvimento desse país. Colocando suas habilidades éticas, democráticas e técnicas a serviço da nação. Paralelamente ao desafio da inovação da econômica política, o que a RD Congo deve enfrentar para trilhar o caminho do seu desenvolvimento, é a política da segurança. A insegurança nesse país está ligada à história, à cobiça de seus recursos naturais e à ausência de um Estado nacional forte.

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Na atualidade, o desafio que o governo eleito enfrenta é, de um lado, desarmar e integrar os grupos de rebeldes nacionais, e, de outro lado, desarmar e expatriar os grupos rebeldes dos países vizinhos que semeiam o pânico nos territórios do leste, ou seja, nas regiões de Norte Kivu e Sul Kivu. Existem duas situações a serem consideradas na busca por soluções. De um lado, o governo congolês enfrenta os grupos rebeldes nacionais e seus aliados, os países vizinhos, pelo uso da força, isto é, a guerra. De outro lado, os países vizinhos, pelo intermédio de seus aliados congoleses, atacam no território congolês os seus rebeldes. Cria-se assim um círculo vicioso de acusações entre os envolvidos na guerra, sem saída para a crise. O mais grave é que essa situação de guerra continua criando mortes entre os civis e, desde 1997, a região leste está numa insegurança total (MUIKENZA, 2007). Nessas circunstâncias, as populações locais não conseguem criar condições para o seu desenvolvimento como faziam no passado. A insegurança atua como inibidor de eclosão de um desenvolvimento sustentável nessa região e no território nacional. O caminho para o diálogo interno e/ou regional realizado pela intermediação da Organização das Nações Unidas (ONU) para apaziguar os conflitos na região leste do Congo está encontrando dificuldades. A ONU alega que a extensão do território, a falta de recursos e os limites legais do seu mandato têm impedido a realização do seu trabalho. O que sabemos é que, na atualidade, quem sai ganhando nesse conflito são os rebeldes nacionais, os governos vizinhos e as empresas multinacionais aliadas que não visam outra coisa senão o saque das riquezas naturais desse país. Quem está perdendo é toda nação congolesa que está querendo levar nas mãos o seu destino. O parlamento atual está discutindo a questão de segurança do leste no momento como assunto prioritário (XINHUANET, 2007).

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Do nosso ponto de vista, a RD Congo ainda vai encontrar dificuldades, enquanto seus vizinhos continuarem a ser governados por ditadores. A comunidade internacional, as organizações regionais africanas, a UA, as populações africanas e outros grupos da diáspora negra devem pressionar esses grupos rebeldes nacionais dos países vizinhos e seus respectivos exércitos para que se retirem do território do Congo. Além disso, é necessário forçar esses países a iniciar um processo de democratização. Enfim, a RD Congo deve se dotar de um Estado forte, democrático e organizado militarmente para que tenha condições de exercer a hegemonia tanto na política da segurança nacional quanto regional. Se isso não é interesse dos atuais “senhores de guerra” e dos grupos armados ilegalmente no seu território, para a nação congolesa essa tarefa é uma questão de vida ou morte, pois o seu destino depende da sua soberania. Enfim, é nesse sentido que entendemos que a sociedade civil congolesa, na atualidade, deve desempenhar um papel político-pedagógico crucial para que a democracia e o desenvolvimento se tornem realidades substantivas no seu território (ROBERT, 2006). A tarefa prioritária a ser feita é lutar pela implementação da nova cultura e da educação cidadã, no momento em que uma grande parte dos dirigentes de sua classe política está ainda limpando suas mãos sanguinárias dos crimes cometidos durante a ditadura mobutista e as duas últimas guerras que mataram milhões de seus compatriotas (MONARE, 2007). Essa sociedade civil pode e deve, ainda, contar com a sua base, uma parcela dos homens de negócios e políticos nacionais e internacionais que desejam o bem dessa pátria. A sociedade civil congolesa composta por igrejas, sindicatos, universidades, setores da mídia, associações nacionais e da diáspora, deve desempenhar mais do que nunca o papel do intelectual orgânico coletivo, sobretudo nesse mo-

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mento histórico da abertura da democracia formal para que essa se torne substantiva. Assim, com a pressão e o diálogo com o setor privado, o governo e outros agentes internacionais movidos pela solidariedade, essa sociedade civil pode se tornar um agente de construção da democracia, da educação cidadã e do desenvolvimento nacional e regional.

Conclusão Geralmente, no final de um trabalho científico espera-se que o pesquisador retome as ideias principais da sua reflexão. Nos estudos do desenvolvimento é comum fazer as recomendações. Não é o que vou fazer no momento. Gostaria de deixar um testemunho. Nasci em 1973, no ex-Zaire. Na época, encontrei um país próspero social e economicamente. Sou também testemunha da descida para o “inferno” do nosso país. Por sorte, desde cedo aprendi a identificar quais são os “demônios” que o levaram para tal lugar. Gostaria de agradecer aos organizadores da I Conferência Internacional do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra por me ter dado a oportunidade de reconciliação com o meu passado e o meu presente, que apontam para um futuro melhor para o nosso país. Quem sabe para o Paraíso ou Renascimento. Para que isso ocorra precisamos trabalhar, pois o pastor, o padre, o nganga nzambe (que em Lingala significa “médico de Deus”) só expulsam demônios rezando. A nossa reza será o trabalho de reconstrução da democracia e do desenvolvimento para a RD Congo e para o nosso continente. Quem sabe se, dessa forma, os pássaros não hão mais de cantar sozinhos, mas acompanhados pelo coro das vozes encantadoras de homens e mulheres da nossa terra: África! Eis o meu grito de esperança para o Congo e para a África desde a terra do exílio.

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BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”? DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL Vera Rodrigues

A Política Pública Universalista no Brasil: Definições e Trajetória As políticas públicas no Brasil possuem um histórico complexo que abrange desde sua elaboração teórica até sua aplicação prática. Para começar, na literatura especializada encontram-se múltiplas definições resultantes do acúmulo teórico sobre o tema. Em Silva & Melo (2000) e Souza (2006) há definições clássicas concentradas na análise do Estado, instituições e ação governamental. Tais definições vêm ancoradas, principalmente, na tradição dos estudos oriundos do campo da Ciência Política, Sociologia e Administração Pública, em que também foram cunhadas as expressões policy analysis (análise da política pública); policy makers (tomadores de decisão); policy cicle (ciclo de política); impact analysis or evaluation (impacto ou avaliação da política) pelos “pais fundadores” H. Laswell (1936), H. Simon, (1957) C. Lindblom (1979) e D. Eastone (1965). A definição aqui apresentada é aquela proposta por Souza (2006) em termos daquilo que “o governo escolhe fazer ou não fazer” e que implica buscar responder quem ganha o quê com a política pública, por que e que diferença isso faz no cenário social. Essa é uma proposta, a meu ver, em diálogo com dois modelos explicativos do processo de formulação de políticas públicas: o modelo de “arenas sociais” e de ‘'múltiplos fluxos”. O modelo de arenas sociais vê a política pública como uma iniciativa dos chamados empreendedores políticos ou de políticas públicas. Isto porque, para que uma

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determinada circunstância ou evento se transforme em um problema, é preciso que as pessoas se convençam de que algo precisa ser feito. É quando os policy makers do governo passam a prestar atenção em algumas questões e ignorar outras. [...] Esses empreendedores constituem redes sociais que envolvem contatos, vínculos e conexões que relacionam os agentes entre si. [...] O foco está no conjunto de relações, vínculos e trocas entre entidades e indivíduos. (SOUZA, 2006 p.32). [...] Kingdon considera as políticas públicas como um conjunto formado por quatro processos: o estabelecimento de uma agenda de políticas públicas; a consideração das alternativas para a formulação de políticas públicas, com base nas quais escolhas serão realizadas; a escolha dominante entre o conjunto de alternativas disponíveis e, finalmente, a implementação da decisão. Em seu modelo de multiple streams, o autor preocupa-se especificamente com os dois primeiros processos, chamados estágios pré-decisórios: a formação da agenda (agenda-setting) e as alternativas para a formulação das políticas (policy formulation). (CAPELLA, 2007, p.88).

A reflexão, com base na complementaridade desses modelos, privilegia o olhar para a formulação de políticas públicas como ponto inicial que deflagra todo um processo que produzirá resultados concretos na realidade social. Assim, utiliza-se um modelo de “arenas sociais” para analisar como se dão as relações entre aqueles que demandam a política pública e aqueles que deverão implementá-la. De forma complementar, observar via modelo de “múltiplos fluxos” como e quais foram os mecanismos utilizados no jogo relacional capazes ou não de transpor a abstração de um problema para a concretude da solução ou, ainda, a dinâmica de construção de uma agenda política. Por essa via, chego ao momento atual em que Estado e sociedade convergem – ainda que de forma tensa, parcial e

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incipiente – para as políticas públicas de promoção da igualdade racial, bem como o período que o antecede. Se a arena social da política pública no Brasil for dividida temporalmente o marco será a Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã. Assim, tomo como ponte de transição o artigo 3º, relativo ao compromisso estatal com a redução das desigualdades sociais: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, Art. 3o).

O antes e o pós-1988 têm marcas próprias, as quais podem dizer algo sobre o caminho percorrido até aqui. Por exemplo, em Bacelar (2003) o período que abrange entre 1920 e 1980 caracteriza um Estado desenvolvimentista, conservador, centralizador e autoritário, cujo objetivo maior era consolidar o processo de industrialização, portanto uma política de caráter notadamente econômico. Segundo a autora, o contraponto a essa política desenvolvimentista foi a desigualdade gerada pelo modelo político e econômico adotado. Outra interpretação desse dado aponta que a política de cunho social ficou por conta do direcionamento às áreas de previdência, legislação trabalhista, saúde, educação, saneamento básico, habitação e transporte. As áreas de saúde e saneamento refletiram certo conservadorismo, pois incidiram basicamente no controle de doenças e epidemias e não necessariamente na qualidade e oferta de serviços básicos à população. Tal postura pode ser relembrada via episódio da Revolta da Vacina (Rio de Janeiro,

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1904), ocasião em que a população foi alvo tanto de uma política higienista, quanto de uma reforma urbana que previa a remoção de determinados grupos sociais (pobres, desempregados, mendigos) do centro da cidade para as periferias. Na área da educação também há críticas quanto ao investimento feito no acesso à educação básica e ao formato da política educacional. Nas demais áreas também coexistiram contradições, entre avanços (direitos trabalhistas) e recuos (limitada participação política dos trabalhadores). Nesse ínterim, fatores como o patrimonialismo e o populismo engessaram de tal forma a estrutura social que dificultaram a organização da sociedade e a reivindicação por direitos. A influência desses fatores pode ser pensada a partir da leitura de Silvério (2009) em que se verifica que da era Vargas, passando pelo plano de metas do governo Juscelino Kubitschek até o milagre econômico dos governos militares, o desenvolvimento econômico brasileiro se refletiu de forma desigual para o conjunto da população: No Brasil, a sequência acima sugerida se inverteu [refere-se às fases no desenvolvimento dos direitos do homem: direitos civis e políticos, em seguida os direitos sociais] os direitos sociais foram institucionalmente desenvolvidos a partir da década de trinta do século XX. No entanto, os direitos civis, mesmo figurando em todas as Constituições, foram constantemente desrespeitados. O peso da herança colonial, da escravidão e da grande propriedade privada são fatores que produziram um país comprometido com o poder privado e com uma ordem social que, ao negar a condição humana de grande parcela da população, obstruía e reprimia intencionalmente a participação popular. (SILVERIO, 2009, p.18).

Um aspecto agregador à luz de elucidação é apresentado por Silvério (2009) em relação a negação da condição

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humana da população negra, surge em Santos (2000) quando o autor estabelece um paralelo entre a noção teórica de cidadania e o seu exercício condicionado ao lugar social ocupado pelo indivíduo negro na sociedade brasileira: A cidadania define-se teoricamente por franquias políticas, de que se pode efetivamente dispor, acima e além da corporeidade e da individualidade, mas, na prática brasileira, ela se exerce em função da posição relativa de cada um na esfera social. Costuma-se dizer que uma diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá existe uma linha de cor e aqui não. Em si mesma, essa distinção é pouco mais do que alegórica, pois não podemos aqui inventar essa famosa linha de cor. Mas a verdade é que, no caso brasileiro, o corpo da pessoa também se impõe como uma marca visível e é frequente privilegiar a aparência como condição primeira de objetivação e de julgamento, criando uma linha demarcatória, que identifica e separa, a despeito das pretensões de individualidade e de cidadania do outro. (SANTOS, 2000, p.2).

A leitura de Santos (2000) pode ser provocativa em termos de alguns questionamentos: qual foi a cidadania que a população pôde dispor na franquia política? Por que os empreendedores sociais, no caso os movimentos negros só recentemente conseguem inserir na agenda política uma pauta propositiva de políticas públicas? Arriscando uma resposta: a causalidade dos processos que delimitam a cidadania e influenciam a formulação de políticas públicas encontra no conceito de racismo institucional uma explicação adicional para o tema das desigualdades: O racismo institucional é a incapacidade coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado ou profissional às pessoas devido à sua cor, cultura ou origem étnica. Ele pode ser visto ou detectado em pro-

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cessos, atitudes e comportamentos que contribuem para a discriminação através de preconceito não intencional, ignorância, desatenção e estereótipos racistas que prejudicam minorias étnicas. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos em desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações (XAVIER, 2011. p.10). [...] a partir dos projetos políticos que assumiram em seus programas de governo o compromisso com esta bandeira fundamental do movimentos negros: o Estado tem a responsabilidade de atuar contra as desigualdades sociais e raciais no Brasil. São dezenas de novos gestores e gestoras que se deparam com uma máquina estatal ainda despreparada, em grande medida, para lidar com os desafios de inclusão social das populações negra e indígena, por exemplo, ao mesmo tempo em que enfrentam nas estruturas governamentais o chamado racismo institucional (RIBEIRO, 2009, p.9).

A incapacidade e/ou o fracasso estatal na promoção da equidade, só muito recentemente (por volta dos anos 1990) teve no conceito de “racismo institucional”, conforme citado acima, uma ferramenta de análise no campo das desigualdades sociorraciais. A incorporação conceitual suscitou uma travessia entre a análise que, geralmente, focava o racismo nas relações interpessoais para uma análise, e também a intervenção, no plano institucional. Isso acarretou envolver o Estado, suas instituições e todo o aparato que o sustenta numa leitura mais abrangente do cenário político brasileiro.

O Movimento Negro e o Estado Brasileiro na Construção de Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial Entre os anos 2001 e 2007 realizou-se o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), que, através de

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uma parceria entre poder público, organizações dos movimentos negros e agências internacionais buscou atuar favoravelmente na formulação e implementação de políticas públicas de promoção da igualdade racial. Ainda que não estejam disponíveis os dados de avaliação do PCRI, é possível considerar interessante essa iniciativa no setor público pelo desafio que representa para a superação de desigualdades. O desafio de superação das desigualdades sociorraciais tem destacado o papel dos movimentos negros na luta por cidadania. Se a noção de cidadania, como provoca a pensar Dagnino (1994), comporta a dimensão de estratégia política, justamente por expressar interesses, desejos e aspirações de parte da sociedade, abrigando assim projetos diferenciados em seu interior, tem-se na experiência dos movimentos sociais nos anos 1990 uma experiência concreta dessa dimensão. No caso, os movimentos negros protagonizam uma luta por direitos que se dá tanto pela via do direito à igualdade, quanto à diferença, já que emergem da luta política especificidades em direitos e sujeitos, como ocorre com as comunidades quilombolas e as demandas por reconhecimento. Se Santos (2000) discute de uma “cidadania mutilada” da população negra, Dagnino (1994) indica uma cidadania “de baixo para cima” via constituição de sujeitos sociais ativos que definem seus direitos e lutam por seu reconhecimento. Essa “cidadania de baixo para cima” transparece nas políticas públicas de promoção da igualdade racial desencadeadas, a partir do marco da Constituição Federal de 1988. Esse período é emblemático para os movimentos sociais de forma geral, os quais se fortalecem no cenário de redemocratização do país. Assim é que organizações representativas dos direitos das mulheres, homossexuais, juventude e negros, por exemplo, protagonizam demandas ao poder público com vistas à

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concretização da cidadania e da própria democracia. No que tange aos movimentos negros, esse período demarca uma nova fase de sua atuação política, pois ultrapassa o viés da denúncia para investir na proposição de políticas públicas. Essa dinâmica em relação ao Estado tem sido marcada por avanços e recuos na resposta governamental, além do reflexo disso no seio dos próprios movimentos. Os principais fatos dessa dinâmica se dão ao longo dos mandatos presidenciais de três governos: José Sarney (1985-1990); Fernando Henrique Cardoso (1995-1999) e (1999-2003) e Luis Inácio Lula da Silva (2004-2007) e (2008 -2010). A seguir, estabeleço uma linha de tempo que abrange a dinâmica de demanda e ação governamental durante esse período, entre os movimentos negros e o Estado brasileiro na construção de uma agenda de políticas promotoras da igualdade racial. A construção do atual quadro de políticas de promoção da igualdade racial vem sendo delineada desde o final dos anos 1980. Nesse intervalo de tempo os atores políticos em foco, movimentos negros e Estado, interagiram num cenário feito de mobilizações, definições de pautas e estratégias políticas. Quando falo em movimentos negros, refiro-me às diversas gerações de militantes e organizações negras que compuseram um mosaico de bandeiras de luta e formas de mobilização e ação, mas mantendo o fio condutor da luta antirracista. Assim, interagiram nesse período organizações com reconhecimento regional e/ou nacional, a começar por aquelas fundadas nos anos 1970, tais como: IPCN – Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (Rio de Janeiro, 1975), MNU – Movimento Negro Unificado (São Paulo, 1978) e CCN – Centro de Cultura Negra do Maranhão (Maranhão, 1979). Dos anos 1980 veio uma militância composta por entidades recentemente instituídas, tais como a UNEGRO – União

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de Negros pela Igualdade (Bahia, 1988) e as primeiras Organizações Não Governamentais (ONGs) negras, destacando-se: Maria Mulher Organização de Mulheres Negras (Rio ­Grande do Sul, 1987), Geledés – Instituto da Mulher Negra (São Paulo, 1988) e CEAP – Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (São Paulo, 1989). A atuação conjunta desses ­militantes e organizações exigiu a construção de uma pauta comum, permeada pela heterogeneidade de temas ­representativos de cada entidade, da realidade social em que estava inserida, bem como da época vivida. Por conta disso, temas antigos como a violência policial contra a população negra – fator de contínua denúncia pelo MNU – foi evidenciado ao lado de novos temas trazidos, especialmente, pelas ONGs de mulheres negras, as quais colocaram em evidência o feminismo negro, através do debate sobre a participação das mulheres nas organizações ­negras e a defesa de políticas públicas com recorte de gênero e raça. Quadro Governo Fernando Governo Fernando Governo Lula Collor Henrique 1985-1990 1995-2003 2003-2010 Centenário da Abo-  Marcha Zumbi  Conferência Relição da Escravatura dos Palmares pela gional para Améno Brasil. Cidadania e pela rica Latina e CariVida (1995) be – Preparatória  Conferência Mun- para a ConferênContextos Nadial das Nações cia de Revisão de cional e InterUnidas contra o Durban (2008) nacional Racismo (2001)  2ª Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo/Revisão de Durban (2009)

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(continuação)  R e i v i n d i c a ç õ e s  Programa de Su-  Concretização do por avanços entre peração do Racis- Programa de Suigualdade formal mo e da Desigual- peração do Racise substancial. dade Racial. mo e da Desigualdade Racial Demandas dos  Cumprimento do Movimentos Programa de Ação Negros da Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo.  Programa Nacional do Centenário da Abolição da Escravatura  Criação da Fundação Cultural Palmares  Artigo 68 da Constituição Federal: Reconhecimento dos Direitos das CoAções Governamunidades Quimentais lombolas

 Programa Nacional de Direitos Humanos  Grupo de Trabalho Interministerial  Grupo de Trabalho para Eliminação da Discriminação no Emprego e Ocupação  Conselho Nacional de Combate à Discriminação  Programa Diversidade na Universidade  Programa Nacional de Ações Afirmativas  Marcha Zumbi dos Palmares pela Cidadania e pela Vida

 Secretaria de Promoção da Igualdade Racial  Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial  Programa Brasil Quilombola  Decreto nº 4.887 referente à regularização fundiária das comunidades quilombolas  Conferência Regional para América Latina

Por conta disso, avalio também como elemento de rede­ finições temáticas dos movimentos negros nos anos 1980 o lugar social de onde emergiram as novas organizações. Se nos anos 70 muitos militantes vinham de entidades de classe e culturais, agora eles e elas vinham de segmentos religiosos, grupos de estudantes universitários e partidos políticos.

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Por exemplo, nessa linha enquadram-se respectivamente, os APNs –Agentes de Pastoral Negros (São Paulo, igreja católica, 1983), os grupos de religiosos de matriz afro-brasileira (Candomblé, Umbanda e Batuque), o Grupo Negro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (São Paulo, 19791983), o qual deu origem a SOWETO Organização Negra (São Paulo, 1991), a Secretaria de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores (São Paulo, 1980), Secretaria Nacional do Movimento Negro do Partido Democrático Trabalhista (Rio de janeiro/Rio Grande do Sul, 1980) e os Conselhos de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra (órgãos consultivos de caráter municipal e estadual presentes em vários estados brasileiros). Esse painel de temas e lugares de atuação militante contribuiu para a formatação de discursos e práticas políticas capazes de responder à articulação necessária com o poder executivo. Para que isso acontecesse, sem dúvida houve um exercício coletivo de acomodação e/ou superação de inúmeras questões internas. Assim, deve ter ocorrido em relação às diferenças político-partidárias as contradições entre a representatividade feminina e masculina ou, ainda, ao viés religioso defendido. Dessa construção política, consolidaram-se novas organizações como a Coordenação Nacional das Entidades Negras – CONEN (São Paulo, 1991), Centro de Estudos de Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT (São Paulo, 1991), Criola (Rio de Janeiro, 1992) e Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes – EDUCAFRO (Rio de Janeiro/São Paulo, 1995), as quais, juntamente com outras organizações anteriormente citadas – lembrando que os movimentos negros extrapolam os limites deste texto –, foram a cara e a voz negra dos anos 1990.

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Retornando ao final dos anos 1980, saliento no contexto nacional, os eventos de promulgação da Constituição Cidadã e o centenário da abolição da escravatura. O conteúdo simbólico do centenário se assentava nas ideias de “liberdade”e “democracia racial”, porém, isso foi alvo de crítica por organizações dos movimentos negros que repudiavam o tom celebrativo do centenário, e reivindicavam medidas concretas de igualdade a partir da nova Constituição Federal: Eu acho que em 1988 o movimento negro brasileiro deu a resposta adequada ao Estado brasileiro, às tentativas de manipular o sentido do centenário da abolição. Aquilo que a gente havia definido anos atrás como uma data de denúncia, acho que a gente fez isso cabalmente no contexto do centenário. (apud PEREIRA, 2009, p.252).

A resposta dos movimentos negros transpareceu por vias de mobilização na “Marcha contra a Farsa da Abolição”, realizada no Rio de Janeiro em maio de 1988. Além dessa mobilização visível, aconteceram outras articulações não tão aparentes, mas que impulsionaram ações em todo o país. Assim, foi a presença de militantes nos núcleos de partidos políticos, sindicatos, bem como nas coordenadorias, programas e conselhos da população negra que começavam a ser criados nesse momento, em âmbito municipal, estadual, federal e que imprimiram força às reivindicações. Esse diálogo tão próximo com o Estado não foi fácil ou aceitável para todos os envolvidos, já que para alguns isso significava a cooptação do militante pela máquina estatal, sendo essa apenas uma das questões delicadas e em jogo no momento. A principal ação do governo em resposta à pressão militante foi a criação da Fundação Cultural Palmares (FCP), a qual nascia como a primeira instância responsável por formular e implantar políticas públicas para a população negra.

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Para alguns, isso representou um avanço na concretização de uma pauta política, porém, para outros, o caráter cultural da Fundação revelava o lugar em que, preferencialmente, a problemática racial era definida e tratada. Esse último entendimento se fez sentir quando se verificou que a Fundação não dispunha de poder legal, técnico e orçamentário para titular os territórios quilombolas – uma das atribuições previstas inicialmente – mas apenas o de emitir certidões de reconhecimento como comunidade quilombola. Apesar dos limites impostos à plena atuação da Fundação Palmares, não apenas na questão quilombola, a “visão de futuro” que consta em sua apresentação institucional é de “consolidar-se como instituição de referência nacional e internacional na formulação e execução de políticas públicas da cultura negra”. A ênfase sobre a “cultura negra” revela outro caminho possível de direcionamento que não é excludente aos anseios de participação, reconhecimento e visibilidade da população negra. Na fase intermediária, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o contexto em parte assemelha-se ao anterior: uma data a celebrar (tricentenário da morte de Zumbi de Palmares, em 1995) e nova marcha oposicionista dos movimentos negros (Marcha Zumbi dos Palmares pela Cidadania e pela Vida em Brasília, no dia 20 de novembro de 1995). A marcha até hoje é considerada um momento histórico para os militantes, já que exigiu o enfrentamento das fragilidades dos movimentos (apoio financeiro, organização interna, superação de antagonismos etc), além de ampliar o horizonte das articulações com centrais sindicais, políticos de esquerda e outros atores que vieram a construir a agenda política. Em relação às diferenças com o contexto político anterior, cabe atentar para o seguinte: primeiro, a marcha origina um do-

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cumento intitulado “Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade”, que foi um conjunto de reivindicações cujo ponto central era a ênfase nas políticas públicas para a população negra, conforme excertos a seguir: yy Inclusão do quesito cor nos sistemas de dados governamentais; yy incentivos fiscais para empresas que adotassem políticas de promoção da igualdade racial em seus quadros de funcionários e yy desenvolvimento de ações afirmativas no acesso à educação básica ao nível superior. Fonte: Fundação Perseu Abramo, 2003, p.10 Dentre as ações governamentais desencadeadas está a criação de um grupo de trabalho interministerial (GTI), composto por membros dos movimentos negros e do próprio governo. O GTI sinalizou em seus objetivos para o atendimento da demanda por políticas públicas a elaboração, proposição e promoção de políticas governamentais antidiscriminatórias e de consolidação da cidadania da população negra, assim como o estímulo e apoio a iniciativas públicas e privadas. Obviamente, isso não significou a efetivação plena das reivindicações, mas cimentou o caminho para a continuidade delas. Outro diferencial marcante no contexto dos anos 1990 foi a fala presidencial assumindo o racismo como um ­problema pertinente ao Brasil e, mais ainda, segundo Santos (2009, p.249), o reconhecimento que “as históricas desigualdades raciais necessitariam de tratamento específico por parte do ­Estado”. No final do segundo mandato, militância e governo são influenciados pelo debate internacional trazido pela Conferência Internacional das Nações Unidas contra o Racismo,

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realizada em Durban, África do Sul em 2001. As organizações negras promoveram encontros preparatórios, inclusive abrangendo outros países latino-americanos como exemplifica a Conferência de Santiago (2000). Nesses espaços de interlocução construíram-se consensos relacionados às ações afirmativas e eixos temáticos levados para Durban e é dentro deste contexto que se entrelaçam o local e o global da pauta dos movimentos negros, bem como o Brasil torna-se signatário de acordos e convenções internacionais na área de direitos humanos e cidadania. No governo seguinte, mais precisamente no dia internacional pela eliminação da discriminação racial, 21 de março de 2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). A estrutura organizacional da SEPPIR configurou-se em subsecretarias de planejamento e formulação de políticas de promoção da igualdade racial, políticas de ações afirmativas e políticas para comunidades tradicionais, além de um órgão colegiado de caráter consultivo, o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR). O CNPIR foi composto por 22 órgãos do Poder Público Federal, entre ministérios e as secretarias com status ministerial, sendo interessante que o Ministério do Meio Ambiente não teve representante, ao menos não divulgado. Da sociedade civil foram escolhidas 19 entidades1 através de edital públi1

No biênio 2010-2012 o CNPIR está composto pelas seguintes entidades: Agentes de Pastoral Negros (APN’s); Articulação de Organização de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB); Associação de Promoção Humano Serumano (SERUMANO); Associação Nacional dos Coletivos de Empresários e Empreendedores Afro-Brasileiros (ANCEABRA); Central Única dos Trabalhadores (CUT); Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro- Brasileira (CENARAB); Coletivo de Entidades Negras (CEN); Confederação Israelita do Brasil (CONIB); Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-/ Pastoral-Afro (CNBB); Congresso Nacional Afro- Brasileiro (CNAB); Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN); Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL); Federação Nacional das Associações de Doença

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co, as quais desenham um perfil de ONGs, entidades de classe, entidades religiosas e organizações dos movimentos negros e por três notáveis indicados pela SEPPIR. Coube ao CNPIR a proposição das políticas de promoção da igualdade racial com ênfase na população negra, bem como incorporar outros segmentos sociais representativos da lógica de exclusão. Assim, representantes de judeus, indígenas, ciganos, árabes e palestinos debateram sobre a participação e pertinência na construção da política. Essa não foi uma discussão sem tensões, pois havia posturas de que a política da SEPPIR deveria voltar-se para a população negra, em face do histórico e incidência do racismo brasileiro, e outras que defendiam uma lógica multicultural, englobante de vários segmentos. Venceu a multiculturalidade das ações da SEPPIR, sem perder de vista ações focadas na população negra como, especialmente defendidas pelas organizações do movimento negro. Na sequência dos fatos, o CNPIR propôs alternativas de superação das desigualdades raciais, tanto do ponto de vista econômico quanto social, político e cultural. A construção e articulação política dessas ações nas três esferas governamentais (federal, estadual e municipal) ficou a cargo do Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial (FIPIR) criado em 2005. O FIPIR veio suprir a ausência de órgãos similares a SEPPIR nas demais esferas, além de se constituir como o canal de diálogo com os gestores públicos. Entre 2005-2010 seiscentos e nove (609) municípios aderiram ao FIPIR, ou seja, Falciforme (FENAFAL); Federação Nacional dos Jornalistas/ CONAJIRA; Fórum  Nacional de Mulheres Negras (FNMN); Fundação Santa Sara Kali (FSSK); Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro- Brasileira (INTECAB); Rede Amazônia Negra (RAN); União Nacional dos Estudantes (UNE) e Notório Reconhecimento em Relações Raciais.

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adotaram em alguma medida políticas públicas de promoção da igualdade racial. Isso não significa dizer aderência institucional plena, pois há entraves na efetivação, tais como vontade política, barreiras partidárias, resistências a aplicações da Lei no 10.639 ou, ainda, o trato da questão quilombola e falta de estrutura. Em relação a esse último item, um dado interessante é que só recentemente, a partir de 2009, embora o FIPIR atue desde 2005, passou-se a exigir dos municípios um plano municipal de promoção da igualdade racial e instituição de um organismo local do FIPIR A exemplo do estado de São Paulo, sessenta e seis municípios aderiram ao FIPIR, isso equivale em torno de 10% do total. No restante do país é possível que o quadro não seja diferente, o que demonstra ainda o longo percurso a ser percorrido na efetivação das políticas. Os municípios participantes comprometem-se a desenvolver ações nos seguintes eixos: yy Implementação do Programa Brasil Quilombola; yy Implementação das diretrizes curriculares da Lei n o 10.639/03, e da Lei no 11.645/2008; yy Desenvolvimento socioeconômico nos eixos do Empreendedorismo, Trabalho e Geração de Renda; yy Política Nacional de Saúde; yy Cultura e Religiosidade de Matriz Afro-Brasileira; yy Segurança Pública e yy Relações Internacionais. Também na esfera federal esses eixos, com maior ênfase que os demais, foram objeto de atenção e pressão pela sua consecução. Isso se deu em um cenário em que a SEPPIR, de forma geral, desde a primeira gestão até a última, enfrentou limites impostos por questões que foram do orçamento limi-

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tado, ausência de transversalidade das políticas com os ministérios e frágil base de apoio político-partidário. No início do atual governo alguns fatos sugerem que esses obstáculos permanecem. Para começar, houve redução de orçamento para a Secretaria de Políticas Públicas para Mulher (SPM) e SEPPIR. Na primeira reunião ministerial que discutiu o Plano de Erradicação da Miséria, a SEPPIR não estava presente à mesa lembrando que diversos estudos já abordaram a concentração da pobreza entre a população negra ou como o economista Hélio Santos diz: “a pobreza aqui tem cor e procedência” (informação verbal).2 Ainda que, “cor” e “procedência” estejam ausentes, ou surjam quase como um dado natural na pauta governamental, permanece o desafio de trazer para uma política universalista de combate à pobreza os sujeitos nela inseridos. Esse desafio pode ser o que define a proposta de transversalidade da perspectiva racial nas políticas públicas. Assim, considera-se que o “País de Todos” é, sobretudo, um processo de construção política que abarca novos moldes democráticos em que o eixo norteador é a igualdade de acesso aos bens públicos (educação, saúde etc.) como um direito inerente ao exercício pleno da cidadania.

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Palestra proferida durante audiência pública sobre educação e mecanismos para a promoção da igualdade racial no ensino superior – Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo.

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VOZES DA ÁFRICA — CONTEÚDOS E CONTINENTES: RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS1 Fábio Baqueiro Figueiredo

Há um certo consenso historiográfico em situar o marco inicial dos estudos sobre o nacionalismo africano no fim da Segunda Guerra Mundial. É bem verdade que existe um debate interessante sobre a pertinência e os termos de uma continuidade entre, de um lado, os diversos e multifacetados episódios de resistência à dominação europeia desde a conquista militar até meados de século XX e, de outro, as atividades mais imediatamente discerníveis como nacionalistas que surgiram em períodos mais recentes. Existe, ainda, um reconhecimento generalizado da relevância, para o nacionalismo emergente após 1945, de mudanças sociais, políticas e culturais, bruscas ou lentas, que remontam aos primeiros anos do século XX e estão intimamente relacionadas à imposição da administração colonial e da penetração de uma economia baseada na exportação maciça de produtos agrícolas e minerais no seio das estruturas locais (RANGER, 1968a, 1968b, 2010). O fim da guerra representou, no entanto, e sem sombra de dúvida, uma espécie de ponto de maturação desses processos anteriores nas sociedades africanas sob dominação colonial, que permitiu por sua vez uma viragem nos discursos públicos anticoloniais, os quais tenderam a abandonar a ênfase nas propostas reformistas até então em voga para 1 Este artigo é uma versão ligeiramente modificada de uma seção de minha tese de

doutorado, intitulada Entre raças, tribos e nações: os intelectuais do Centro de Estudos Angolanos, 1960-1980. Alguns temas cruciais a que me refiro aqui e que não puderam ser desenvolvidos, por questões de espaço, receberam um tratamento mais pormenorizadamente na tese.

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defender cada vez mais clara e urgentemente a necessidade da independência política tout court. Essa viragem, além de estar fundamentada no aumento decidido das demandas de participação política africana — expresso através da crescente adesão a sindicatos, associações e partidos políticos, e corporificado em um sem-número de manifestações e greves — foi facilitada pelo contexto internacional do pós-guerra, em que determinados fundamentos políticos liberais foram erigidos em princípios estruturantes da nova ordem mundial que estava sendo construída. Que o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, e o presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, considerassem natural negar às colônias africanas e asiáticas o direito universal e inalienável à autodeterminação dos povos sacramentado na Carta do Atlântico, que assinaram em 1941 e que serviria de base para a constituição da Organização das Nações Unidas (ONU), era algo previsível nos termos da “lei da diferença colonial”. (CHATTERJEE, 1993, p.16-18). A grande novidade era existirem então grandes contingentes africanos prontos a exigi-lo, e a apoiar com atos de rebeldia a denúncia, repetida incansavelmente por seus intelectuais, do racismo implícito na perpetuação do domínio colonial, frente a um público europeu extremamente sensível às lembranças sangrentas da guerra, e vacilante em seu apoio a alegações demasiado explícitas de sua própria superioridade racial. Ainda em 1943, por exemplo, o jornalista e nacionalista nigeriano Nnamdi Azikiwe distribuía um panfleto intitulado The Atlantic Charter and British West Africa (A Carta do Atlântico e a África Ocidental Britânica), em que propunha um cronograma para a obtenção da independência em 15 anos. Esse programa serviu de plataforma para reivindicações formais dos nacionalistas nigerianos diante do poder metro-

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politano, que terminou obrigado a reconhecer, de muita má vontade, o direito à autodeterminação dos habitantes de seus territórios na África Ocidental (ADEBIYI, 2008; IBHAWOH, 2007; JACKSON, 2006, p.220-225). Ao longo do período que vai do final da Segunda Guerra até a obtenção das independências, pode-se traçar uma história contínua de conquistas políticas cada vez mais abrangentes, especialmente no que se refere às colônias francesas e britânicas, que juntas constituíam cerca de três quartos de todo o território do continente. Essas duas metrópoles tomaram a dianteira, diante da pressão exercida sobre sua opinião pública doméstica e sobre suas administrações coloniais, no sentido de admitir progressivamente concessões de representação política e de alguns dos direitos civis que proclamavam publicamente como universais. Para os representantes políticos africanos, entretanto, a exigência de que as potências europeias observassem de fato o universalismo que diziam promover era apenas uma tática no longo caminho que deveria levar à completa independência (BENOT, 1981; COOPER, 2002, p.38-65; MAZRUI; WONDJI, 2010, seç. II). As raízes desse novo discurso africano de defesa da emancipação podem ser remetidas à virada do século XIX para o XX. Recentemente, diversos autores engajados na chamada crítica pós-colonial têm-se dedicado a inventariar uma série de contribuições intelectuais que partiram de fora da Europa e dos Estados Unidos (ou de suas margens), e que procuraram deslocar os termos da modernidade, seus conteúdos, seus significados e seus protagonistas (MUDIMBE, 1988; APPIAH, 1997; SAID, 1994; para uma coletânea recente ver SANCHES, 2011). É em meio a esse inventário, que vem se estabelecendo como uma espécie de “contracânone” da modernidade, que podemos encontrar um importante

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subconjunto que vai desembocar nos discursos nacionalistas africanos a partir de 1945, e que podemos reunir, de forma algo frouxa, sob o rótulo do pan-africanismo. É verdade que a designação “pan-africanismo” costuma ser utilizada de forma bem mais restrita, e, muitas vezes, em contraposição à “négritude”. Acredito que essa oposição, bem como uma definição demasiado fechada, não são particularmente produtivas em termos analíticos, como procurarei evidenciar mais à frente. Em todo caso, esse rótulo e essas contribuições não são exclusivamente africanas em sua origem. A visão pan-africanista quase sempre incluiu em sua ideia de África os descendentes de africanos escravizados e levados à força para as Américas. De fato, o termo “africano” em língua inglesa era utilizado como sinônimo para “negro”, mesmo nos Estados Unidos ou na Inglaterra, até pelo menos a década de 1960; e já foi observado que o agora disseminado termo “diáspora” guarda uma forte relação com visões religiosas propostas pelos “retornados” protestantes, ex-escravos ou descendentes de escravos que migravam dos Estados Unidos e Caribe para a África Ocidental no final do século XIX e que enxergavam sua própria experiência em termos de um enredo bíblico de cativeiro e redenção. Os principais porta-vozes desse grupo eram, via de regra, homens de fé, em geral vinculados a congregações religiosas nas Américas: Edward Blyden, James “Africanus” Horton, Alexander Crummell, Samuel Johnson, todos “voltavam” à África imbuídos de uma missão; todos percebiam o futuro da experiência africana como parte de um desígnio divino para o cumprimento do qual acreditavam ter um papel a desempenhar. Compartilhando das visões europeias do seu tempo sobre o continente africano, acreditavam no entanto serem o

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grupo em melhor posição para realizar a tarefa de redimir a África — sua própria raça — das trevas do animismo e da barbárie. A experiência da imposição do domínio europeu, que assistiram de perto, faria alguns deles mudarem de posição quanto ao valor relativo da Europa e da África em termos civilizacionais: Blyden, por exemplo, passou a criticar as camadas urbanas de Serra Leoa, de hábitos ocidentalizados, por se terem “desafricanizado”, e Crummell, desiludido com a realidade da cristianização no terreno africano, terminou por abandonar o Cristianismo e se converter ao Islã. (APPIAH, 1997; MACAMO, 2003; MUDIMBE, 1988). De qualquer modo, um ponto a reter desde já é o fato de que essas formulações se introduziam no debate público a reivindicação, a partir de dentro, de um espaço geográfico africano enquanto uma comunidade de destino, o faziam em termos de uma identidade de “raça” a que se emprestavam as funções tradicionalmente assumidas pela “nação”. De fato, Samuel Johnson foi provavelmente o único que empreendeu sua missão em termos de um quadro nacionalista de inspiração herderiana mais estrito, baseado em uma língua, em uma história e em uma cultura compartilhadas. Curiosamente, o resultado último de seu ativismo e de sua produção acadêmica não foi o surgimento de um Estado nacional, mas a constituição de uma moderna identidade étnica iorubá em parte do território que viria a ser a Nigéria contemporânea (PEEL, 1989). Percebemos, assim, como o pensamento político africano via-se às voltas com a opção por diferentes categorias para descrever (e organizar) a identificação e a ação social coletivas — nomeadamente a etnia, a nação e a raça. A história do conhecimento ocidental sobre a África, e da própria constituição das Ciências Sociais, nos séculos XVIII a XIX, pode ajudar a explicar essa situação, à medida que a distribuição

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espacial desta ou daquela categoria como unidade descritiva e explicativa preferencial das realidades sociais obedeceu a uma hierarquização assentada sobre as pretensões da superioridade europeia, corporificada na projeção sobre o globo de uma concepção evolucionista da história da humanidade, segundo a qual ao continente africano corresponderiam os estágios mais arcaicos, ou “primitivos”, do suposto desenvolvimento — do espírito ou das forças produtivas, conforme as orientações políticas — que deveria desembocar na Europa industrial capitalista. O contínuo deslizamento categorial etnia-nação-raça e sua problemática conciliação com as fronteiras do Estado que a dominação colonial instituiu mais ou menos artificialmente foram, como se pode facilmente perceber, uma das mais marcantes características do nacionalismo africano, tanto antes quanto depois da obtenção das independências políticas. Para os fins deste artigo, entretanto, teremos de abandonar a análise dessa escala de categorias coletivas e nos concentrar na vinculação persistente entre um de seus polos (a raça) e a própria ideia de África. A primeira atividade pública coletiva que reivindicava a África como locus de enunciação política, a Conferência Pan-africana, realizada em Londres, em 1900, reuniu cerca de trinta delegados, quase todos negros de origem caribenha vivendo na Inglaterra (muitos, novamente, ligados a denominações protestantes), e uns poucos africanos e estadunidenses. Um deles, W. E. B. Du Bois, que iniciava nessa época sua carreira como militante antirracista em seu país natal, assumiria o fardo de dar sequência à ideia de constituir uma rede transatlântica antirracista, passando a se dedicar à organização de uma série de Congressos Pan-africanos nas duas décadas seguintes (DECRAENE, [s.d.], cap.1-2).

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O primeiro desses eventos foi celebrado em 1919, em Paris, de modo a coincidir com a assinatura do tratado de paz de Versalhes, que punha fim à Primeira Guerra Mundial. Dentre os cinquenta e sete delegados havia ainda muito poucos africanos, mas um número maior de representantes dos negros estadunidenses e caribenhos, incluindo um delegado da Universal Negro Improvement Association (Associação Universal para a Promoção dos Negros, UNIA), liderada por Marcus Garvey, que defendia a migração maciça dos negros das Américas para a África, e a autodeterminação imediata do continente. O Congresso foi viabilizado pela intervenção de Blaise Diagne, deputado africano negro à Assembleia Nacional Francesa pelo Senegal, com uma longa carreira pregressa na administração colonial, que foi apontado presidente. É significativo, entretanto, que Diagne tenha marcado seu distanciamento de algumas propostas que circularam no Segundo Congresso, em 1921, por considerá-las muito radicais. Na manchete do jornal conservador francês Le Figaro, “sábias palavras são pronunciadas — o Sr. Diagne denuncia uma fórmula perigosa: a África aos africanos”.2 Diagne não estava então, como muitos outros africanos nas colônias francesas e portuguesas, interessado na independência política, mas na extensão dos direitos de cidadania vigentes na metrópole aos estratos africanos educados em escolas de modelo europeu e que haviam assumido um estilo de vida ocidentalizado, no quadro unitário da República metropolitana. A absoluta maior parte da população do continente africano, composta por camponeses que não se expressavam na língua colonial, 2 United States, University of Massachusetts Amherst Libraries, Special Collections

and University Archives, W.  E.  B.  Du  Bois Papers (US  UM  SCUA  MS  312), doc. mums312‑b018‑i017, Congrès des Noirs à Paris, Paris, 5 set. 1921. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2012.

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estava à altura completamente excluída desse tipo de debates. Sua participação política dava-se então num âmbito mais local, num jogo complexo de adaptação e resistência às demandas e possibilidades suscitadas pela implantação e pela consolidação das agências do poder colonial (RANGER, 2010). De toda forma, a partir de 1920, a ideia do pan-africanismo, implicando possibilidades de conexão, organizacional ou ideológica, entre associações negras em diversos pontos do Atlântico, passou a funcionar como um ponto focal para a mobilização dos estudantes negros nas metrópoles europeias, cujo número cresceu devagar mas continuamente ao longo das duas décadas seguintes (SHEPPERSON, 1960; LANGLEY, 1969). Para além das tentativas de organização política, o pan-africanismo enquanto ponto focal também serviu de ponte entre expressões culturais variadas, mas que tinham em comum a experiência do cotidiano de sociedades baseadas na discriminação racial e em recordações ainda muito próximas da escravidão. Movimentos como a renascença do Harlem, iniciada na década de 1920, nos Estados Unidos, o negrismo cubano dos anos de 1930 e o renascimento literário haitiano convergiram com as iniciativas literárias de estudantes negros do Caribe e da África em Paris, como por exemplo a revista L’Étudiant Noir (O Estudante Negro), conformando o movimento da négritude a partir do fim da Segunda Guerra. É significativo que a revista fundada em 1947 para dar expressão pública ao movimento tenha sido intitulada Présence Africaine (Presença Africana) — a referência à raça negra, dominante até então nos títulos de revistas e nas denominações dos movimentos, sendo substituída por uma alusão à África. Se, por um lado, essa África era tomada como um espaço geográfico substantivo, reflexo do aumento da quantidade de intelectuais africanos atuantes na metrópole e empenhados

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na denúncia da situação colonial, era também o “país natal” (na expressão consagrada de um dos fundadores da revista, o poeta martinicano Aimé Césaire) em que os movimentos artísticos negros das Américas de uma forma ou de outra se referenciavam (IRELE, 1965a, e 1965b). Em relação ao processo político da descolonização africana, o afastamento progressivo de atores, meios e programas que se verificou entre os nacionalistas das possessões inglesas e aqueles oriundos das colônias francesas foi interpretado muitas vezes como uma oposição fundamental entre a opção por uma estratégia de combate político (à qual se costuma reservar a designação “pan-africanismo”) ou por uma forma que seria fundamentalmente cultural ou literária, no âmbito da qual as reivindicações políticas estariam em segundo plano (à qual se aplica, por extensão, o termo “négritude”). Em parte, essa percepção binomial é fruto da tentativa de Léopold Sédar Senghor, um dos fundadores da Présence Africaine e mais tarde presidente do Senegal, de transformar a négritude em uma base de justificação filosófica para suas próprias posições na disputa política no âmbito do Senegal e da África Ocidental Francesa, conjunto administrativo no qual seu país estava inserido até as independências. Essa tentativa, que mobiliza as categorias de raça, nação e etnia, não poderá ser analisada aqui, por questões de espaço. Em todo caso, desejaria expressar minha inquietação diante da opção analítica de destacar a négritude do conjunto desse grande movimento de reivindicação da África como espaço de enunciação. A meu ver, ao contrário, esse afastamento envolve menos diferenças profundas de conteúdo ou orientação filosófica e ideológica, e mais as necessidades conjunturais do enfrentamento a duas potências coloniais com estilos de dominação, climas intelectuais, opiniões públicas, quadros legislativos e

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formas de repressão significativamente diferentes. A alegada contradição entre a produção literária e a atuação política dos intelectuais comprometidos com a négritude simplesmente não se verifica na prática — não apenas as edições de Présence Africaine veiculavam artigos muito claramente políticos, mas muitos de seus associados candidataram-se a uma série de cargos em seus territórios de origem, e foram, quase sempre, eleitos por ampla maioria. Além disso, muitos dos nacionalistas das colônias francesas não tinham pretensão literária alguma. Houve, é verdade, muito pouca comunicação entre os nacionalistas que lutavam contra a dominação francesa e aqueles que lutavam contra a dominação britânica (para não falar dos nacionalistas das colônias portuguesas e belgas, que se moviam em espaços bem menos abrangentes). Nesse quesito, o domínio da expressão culta em francês ou em inglês era provavelmente o aspecto definidor das articulações possíveis e de suas respectivas zonas de silêncio — algo que só começou a mudar nos últimos anos da década de 1950, quando Gana e Guiné, tão logo emancipados, passaram a promover tentativas de unidade política e econômica nos níveis regional e continental, no contexto de uma África formada por uma multiplicidade de Estados independentes. (sobre o domínio da língua colonial, ver ELAIGWU, 2010; SOW; ABDULAZIZ, 2010; PRAH, 2008; para o caso do português, MATA, 2006, 2007, p.144-165). Em termos de concepções de base sobre a África, seu passado e seu destino, os nacionalistas que lideraram o caminho para as independências após a Segunda Guerra — fosse confrontando a Inglaterra, a França, a Bélgica ou Portugal — concordavam mais do que divergiam. Eles compartilhavam não apenas um significativo conjunto de textos, literários e ensaísticos, constituído ao longo da primeira metade do sécu-

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lo XX nas duas margens do Atlântico, como vimos acima, mas também uma marcada influência moral cristã (fosse católica ou protestante), quase sempre derivada de sua formação escolar inicial em missões religiosas em seus territórios de origem — considerando a importância das missões para a escolarização formal de modelo europeu, não admira que muitos fossem filhos de pastores e catequistas protestantes, ou tivessem um padre católico na família. Finalmente, os nacionalistas africanos das independências compartilhavam ainda um certo corpo de noções antropológicas sobre o continente que circulavam então na Europa. Com efeito, especialmente a partir dos anos 1930, tanto antropólogos profissionais quanto missionários e administradores coloniais com preocupações etnográficas vinham-se dedicando a “reabilitar” a África, seus habitantes, rituais e instituições, do universo simbólico ligado à sua classificação como espaço por excelência do “primitivo”, herdada do século XIX. Em 1936, a editora Gallimard traduzira para o francês a obra da maturidade do historiador da cultura alemão Leo Frobenius, como Histoire de la Civilisation Africaine (História da Civilização Africana). Essa obra, que condensava de trinta anos de pesquisas sobre mitos e cultura material de diversos povos africanos, investiu contra o consenso vigente ao defender a existência de uma história africana significativa e a relevância de estudá-la — ainda que seu autor se recusasse a reconhecer nos africanos os autores das obras mais sofisticadas que encontrou em campo. Por sua vez, em 1937, o antropólogo inglês E. E. Evans-Pritchard declarou ter identificado um pensamento lógico perfeitamente racional nas crenças de um grupo africano acerca dos efeitos do sobrenatural, em Witchcraft, oracles and magic among the Azande (Bruxaria, oráculos e magia entre os azande). Mais tarde, observou que

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mesmo os povos africanos “sem Estado” tinham, sim, uma organização política, em sua etnografia sobre os nuer, publicada em 1940; e tornou respeitável o estudo das instituições políticas africanas com o livro coletivo organizado no mesmo ano em colaboração com seu colega sul-africano Meyer Fortes, African political systems (Sistemas políticos africanos). Em 1945, saía em francês, na então colônia belga do Congo, a primeira versão de La philosophie bantoue (A filosofia bantu), do padre franciscano Placide Tempels, que declarava haver desvendado um sistema filosófico completo e coerente entre os baluba. Já o administrador e etnólogo Marcel Griaule impôs a discussão ao universo acadêmico francês com a publicação de Dieu d’eau (Deus de água), em 1948, no qual demonstrava que o nível de sofisticação intelectual envolvido nos mitos cosmogônicos dogon era comparável ao da Grécia antiga. Toda essa produção intelectual africanista apontava no sentido de reforçar a tese, que se tornou consensual apenas na segunda metade do século XX, da unidade fundamental da espécie humana. Entretanto, se essa tese implicava o reconhecimento formal de uma igualdade potencial entre africanos e europeus, seus defensores não estavam necessariamente preparados para admitir uma igualdade prática em todos os níveis; muito pelo contrário. Na verdade, muitas dessas obras foram escritas com a finalidade explícita de subsidiar as tarefas da administração colonial — melhor compreender os africanos para melhor governá-los, evitando mal-entendidos culturais e conflitos desnecessários. De modo geral, esse movimento de descoberta da humanidade fundamental dos africanos contribuía para afastar do discurso científico, de uma vez por todas, alegações de uma superioridade europeia de base racial, mas a suposição de superioridades sociais, políticas, econômicas e culturais, contextuais e mais ou menos

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matizadas, persistia, junto com um arcabouço evolucionista subjacente, cada vez mais implícito nas análises. Essa série de influências intelectuais comuns fez emergir um conjunto de características inter-relacionadas e largamente disseminadas, que se encontram, com variações, no pensamento da maior parte dos intelectuais nacionalistas africanos. Em primeiro lugar, a associação entre África e a raça negra, ainda que a noção de raça envolvida assumisse, para além de qualquer determinação genética, um aspecto de unidade cultural e civilizacional que a aproximava da nação — o que se ligava à certeza, experimentada existencialmente por muitos deles, da ineficácia dos projetos de assimilação. Em segundo lugar, um nativismo difuso, corporificado nas representações da África pré-colonial como um espaço de exercício de uma solidariedade social ampla e de realização humana coletiva, em que os conflitos eram pouco significativos e facilmente resolvidos, com o recurso à observação de valores morais superiores àqueles em vigor no mundo ocidental. Essa visão estava relacionada à ideia de que a conquista e a dominação colonial haviam interrompido a trajetória civilizacional do continente africano — uma trajetória percebida como largamente unitária, comparável à trajetória civilizacional da própria Europa, mas essencialmente diferente, e capaz de aportar valores e realizações particulares, necessários ao desenvolvimento do conjunto da humanidade, que se orientariam por um humanismo profundo, sensível e irredutível, em contraste com a racionalidade técnica e instrumental individualista que seria característica da Europa. Em terceiro lugar, e como consequência lógica das duas primeiras, uma certa relutância em admitir a validade, para o caso africano, de categorias de análise social que enfatizassem o conflito (especialmente classe e, mais ainda, luta de classes), o que podia

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ser traduzido em uma desconfiança, maior ou menor, em relação ao marxismo, ou, quando menos, na afirmação da necessidade de adaptação de suas fórmulas à realidade africana (fórmulas essas que correspondiam, é bem verdade, à versão esquemática de uso corrente entre os partidos comunistas das metrópoles). Tendo em vista o contexto da inescapabilidade da Guerra Fria, os matizes envolvidos nessas propostas discursivas de minimização do conflito social interno chegaram a assumir enorme significação prática. Esse conjunto de características gerais constituíram uma base intelectual comum a partir da qual os diversos atores políticos africanos, confrontados com situações específicas, esboçaram um ideal de futuro, formularam seus programas, identificaram seus oponentes, planejaram seus métodos, e elencaram suas justificações em disputas concretas nos planos intra e supranacionais. Mas, neste breve panorama do contexto intelectual e político em que se moviam os nacionalismos africanos na época das independências, é preciso ainda mencionar o processo de constituição do Terceiro Mundo como um personagem global. O deslanchar do processo de descolonização na Ásia havia antecedido ao da África em cerca de dez anos, com a proclamação da independência da República Democrática do Vietnã, ainda em 1945. Entretanto, a década que se seguiu foi repleta de golpes e contragolpes marcados fortemente pelos interesses das novas superpotências e de sua Guerra Fria: a recusa da França em aceitar a independência e a implantação de um regime comunista em sua antiga colônia levando à Guerra da Indochina (1946-1954) e à partição do Vietnã; a guerra civil na China, com a vitória dos comunistas em 1949 e a fuga dos nacionalistas para Taiwan; a tentativa militar de reunificação da Coreia pelo regime comunista do norte em

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1950 seguida da intervenção estadunidense e da partição definitiva em 1953 (PANIKKAR, 1977). Em busca de articulações diplomáticas que permitissem afastar o risco de intervenções militares em seus próprios territórios, um grupo de cinco paí­ ses — Indonésia, Índia, Paquistão, Ceilão (atual Sri Lanka) e Birmânia — convocou uma Conferência Afro-Asiática de Chefes de Estado, que teve lugar na cidade de Bandung, na Indonésia, em 1955. Da parte africana, compareceram os países já formalmente independentes e aqueles que viviam sob governos de transição. Mas, e talvez mais importante, estiveram também em Bandung, como observadores, movimentos armados de libertação e partidos políticos que lutavam pela independência. Uma outra indicação da importância simbólica desse evento para o contexto intelectual que venho tentando esboçar nesta seção é a participação do romancista estadunidense negro Richard Wright, provavelmente o maior herdeiro intelectual da renascença do Harlem, que deixou um testemunho literário do encontro, centrado na questão da raça e suas implicações na política internacional (WRIGHT, 1956). A declaração final da Conferência reafirmava alguns princípios norteadores das relações internacionais já estabelecidos na Carta das Nações Unidas, e fazia menção explícita a esse documento em sua primeira resolução — no que vemos mais uma vez em operação a estratégia de forçar as potências coloniais a respeitarem as normas universais que elas mesmas haviam estabelecido. A condenação a qualquer forma de colonialismo, a recusa do alinhamento automático às superpotências, a defesa da não interferência estrangeira e a denúncia das alianças militares da Guerra Fria completavam o modelo internacional defendido em Bandung. O conjunto das resoluções aponta para um padrão de atuação que as antigas

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colônias da África e da Ásia passaram a adotar dali por diante: o reforço incondicional do papel da ONU como canal legítimo para a resolução de disputas interestatais, e a formação de um “bloco” afro-asiático na Assembleia Geral do órgão, bastante coeso quando o assunto em pauta dissesse respeito à situação de territórios sob domínio colonial — embora, se fosse outra a matéria, esse bloco tendesse a se dividir conforme os alinhamentos da Guerra Fria (GAREAU, 1972). O legado da Conferência de Chefes de Estado pode ser avaliado pela proliferação posterior de conferências que reuniam antigas colônias de diferentes continentes, ainda que nenhuma delas tenha sido, oficialmente, uma continuação da primeira. Na verdade, o “espírito de Bandung” e seu enorme prestígio foram apropriados por forças significativamente mais à esquerda, e dedicadas a um anticolonialismo muito mais militante. Um exemplo é o percurso que vai da Conferência de Solidariedade dos Povos Afro-Asiáticos, no Cairo, em 1957, à Conferência de Solidariedade aos Povos da África, Ásia e América Latina, em Havana, em 1966, mais conhecida com a Conferência Tricontinental (BRIEUX, 1966; JACKSON, 1995; KIMCHE, 1969). No âmbito estritamente africano, cabe destacar a aproximação entre o impulso pan-africano legado pelo Congresso de Manchester, em 1945, e o “espírito de Bandung”, o que tomou corpo nas três edições da Conferência dos Povos Africanos — em 1958 em Acra, em 1960 em Túnis, e em 1961 no Cairo — a qual reunia governos independentes e movimentos de libertação do continente. Por outra via, Bandung desembocou também na constituição do Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), cuja primeira reunião de cúpula ocorreu em Belgrado, em 1961. É significativo que as três reuniões de cúpula subsequentes tenham sido realizadas na África —

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em 1964 no Cairo, em 1970 em Lusaka, e em 1973 em Argel (SAHOVIC, 1977; VERLET, 1980; EDMONDSON, 2010). Não foi propriamente com a Conferência de 1955 que se introduziu na história do século XX o Terceiro Mundo. O termo fora sugerido pela primeira vez em 1951 e entrara definitivamente no vocabulário acadêmico em 1956, com a publicação de um número especial de um periódico acadêmico francês voltado para o estudo estatístico, acerca do problema do desenvolvimento e do subdesenvolvimento (BALANDIER, 1956). Mas, inicialmente, essa formulação abstrata não passava do rótulo a aplicar a um conjunto inerte de países problemáticos, que apresentavam indicadores estatísticos muito semelhantes. Foi o legado organizacional de Bandung e a apropriação de seu “espírito” por uma esquerda militante nos países saídos ou que iam saindo da situação colonial, ao longo da década de 1960, que fez o Terceiro Mundo se tornar progressivamente a referência coletiva a um protagonismo multiforme, que abrangia um conjunto de atitudes políticas concretas embasadas em uma clara opção anticolonial, fosse ela feita por governos ou por partidos ou movimentos sociais de oposição a situações consideradas neocoloniais. (GUITARD, 1974). Essa emergência como ator coletivo global encontra sua corporificação última com o lançamento das revistas L’economiste du Tiers Monde (O economista do Terceiro Mundo), em 1973, em Paris — pelo egípcio Simon Malley, que quatro anos antes havia fundado Africasia, mais tarde rebatizada Afrique‑Asie (Africa‑Ásia) — e Cuadernos del Tercer Mundo, em 1974, em Buenos Aires. Ao longo desse processo, o Terceiro Mundo tornara-se um outro locus de enunciação para o nacionalismo africano — um espaço em que a independência da África se colocava no quadro de um discurso global de enfrentamento da hegemonia europeia.

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Embora obedecendo a diferentes cronologias de desenvolvimento, tanto “África” (ca. 1900-1945) quanto “Terceiro Mundo” (ca. 1955-1970) foram, para o nacionalismo africano das independências, loci de enunciação política tanto quanto categorias de identificação coletiva em macroescala, comunidades de destino reivindicadas por acadêmicos, literatos e nacionalistas, cujo devir compreenderia uma etapa fundamental da história da emancipação humana. Sua capacidade de mobilização política não deve ser menosprezada. Internamente, no âmbito de cada território independente ou em vias de o ser, ambas foram invocadas, simultânea ou alternadamente, em contraposição a categorias de identificação coletiva em escalas infraestatais, em particular a etnia. Concebida como inerentemente conflitante com o projeto modernizador encampado pelo nacionalismo, a etnia foi, quase sempre, a culpa do outro, o estratagema ilegítimo que se acusa o oponente político de lançar mão. Externamente, em termos das relações entre movimentos de libertação africanos (e mais tarde os governos que eles se tornaram), poderíamos dizer que, se o pan-africanismo forneceu os fundamentos ideológicos sobre os quais os nacionalistas africanos pensaram a relação entre etnia, nação e raça em cada território específico, o Terceiro Mundo em constituição e sua rede de alianças internacionais serviram para conformar a grade na qual essas ideias tiveram de se posicionar em relação umas às outras ao longo da década de 1960. São esses fundamentos e essas redes que se articularam para conformar a política africana das independências. De um lado, o espaço africano viu nascer logo no início da década, sob o impacto da crise do Congo, uma clivagem que dividiu o campo do nacionalismo em duas grandes opções políticas (GIBBS, 1993, 2000; NWAUBANI, 2001; WITTE,

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2002). Essas opções diziam respeito, primariamente, à manutenção ou à transformação das relações entre a colônia que se independentizava e os interesses comerciais metropolitanos. Obviamente, a adesão mais ou menos explícita a um terceiro-mundismo revolucionário estava implicada aqui. (WALLERSTEIN, 1971). Mas a relevância de um discurso de identificação baseado na raça não deixava de estar presente, por exemplo, no recurso a um discurso de “autenticidade” como legitimador de regimes conservadores frente a oponentes internos “revolucionários”. Por outro lado, a força do pan-africanismo se revela por inteiro na constituição de uma “linha de frente” entre os países independentes e o sul do continente sob dominação branca (BIRMINGHAM, 1992). Tanto as colônias portuguesas de Angola e Moçambique quanto os regimes de apartheid da África do Sul e Rodésia do Sul eram considerados, pelo conjunto dos países africanos, independentemente de suas respectivas orientações ideológicas, como sujeitos à dominação colonial (KUPER, 1964). O movimento negro estadunidense, da mesma forma, empenhou-se fortemente no combate a esses regimes (SHEPHERD JR., 1977). Mas, mesmo aqui, o terceiro-mundismo não deixou de ser extremamente relevante, por exemplo, no apoio aos movimentos de libertação da África austral provido pelos países do norte da África, para os quais uma reivindicação de unidade continental baseada na raça tinha um apelo extremamente limitado. Ao longo deste brevíssimo panorama, esforcei-me para indicar as linhas fundamentais do que acredito serem as raízes intelectuais do nacionalismo africano das independências: uma longa e multiforme tradição pan-africana, uma formação moral predominantemente cristã e um conjunto de concepções sobre a África derivadas de uma Antropologia europeia

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bem-intencionada mas ainda fortemente marcada pela forma evolucionista. Ao mesmo tempo, tentei mostrar como a emergência do Terceiro Mundo como categoria de identificação coletiva mudou o panorama do campo nacionalista, e como esses dois grandes polos simbólicos, África e Terceiro Mundo, combinaram-se para dar forma ao complexo e conflituoso campo da política africana a partir da década de 1960.

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3 Literatura, Língua e Filosofia

MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO Rodrigo Ordine

Desenvolvido no campo da Física, o termo “resiliência” é utilizado para demonstrar a capacidade de resistência de alguns materiais à aplicação de determinada força. Uma vez que tal força deixa de ser exercida, o material retorna ao seu estado original aparentemente sem danos. Esse conceito tem sido usado por pesquisadores, como Sandra Cabral Baron1, que se dedicam à compreensão do processo de trauma sofrido por determinados indivíduos, uma vez que o grau de resiliência poderia ser entendido, por analogia, ao tipo de resposta que é dada por indivíduo à ocorrência de um trauma. Obviamente, quando se refere a seres humanos, o conceito de resiliência pode soar estranho, já que os indivíduos nunca voltarão “o seu estado original” (como lembra Baron): primeiro, porque a noção de origem é de fato essencialista e, em segundo lugar, porque uma dada sociedade acaba por apresentar aos indivíduos nela inseridos várias experiências diárias que os transformam de forma contínua, levando-os a escolher entre diferentes mundos simbólicos, a fim de “viver a vida.” Contudo, após a experiência traumática, o indivíduo procura formas de retornar a um estado possível de ser vivido, isto é, há uma busca de harmonização entre o ser de antes do trauma e o novo ser, já marcado por ele. Nesse movimento, se não há a volta ao estado original, há, contudo, 1

Cf. BARON, Sandra Cabral. Estratégias criativas de sobrevivência psíquica ao traumatismo insidioso de um cotidiano de adversidades. Disponível em: Acesso em: 01 maio 2013.

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a reconstrução de uma nova identidade, e nele se envolve um outro processo que define o quão bem a resposta a um trauma pode(pôde) ser elaborada: o processo de coping ou enfrentamento. De modo geral, o coping pode ser entendido como o modo de se articular o estresse envolvido no trauma, ou seja, da relação particular entre o indivíduo e o ambiente, o qual é apreciado por aquele como excedente aos seus recursos de compreensão. Havendo uma boa administração do estresse envolvido, fundamenta-se o coping, um conjunto de esforços cognitivos e comportamentais utilizados com o objetivo de lidar com demandas específicas que surgem em situação de estresse (LAZARUS & FOLKMAN apud YUNES & SZYMANSKY, 2001). Por via de adaptação, sugiro o entendimento do processo de enfrentamento através do que propõem os teóricos da Sociologia do Conhecimento, Peter Berger e Thomas Luckman (1991), quando definem o conceito de “alternação”, ou seja, uma constante, necessária e semiconsciente escolha por mundos simbólicos disponíveis baseada em processos de instalação e manutenção de realidade, mediada pelo diálogo e por interações face a face. Resumidamente, à medida que o indivíduo se desenvolve, toma contato com diferentes mundos simbólicos que ele apreende como existentes e possíveis através do diálogo e de outros elementos presentes em interações com outros indivíduos. Quanto maior o número de interações em que ele é capaz de participar, mais mundos simbólicos podem lhe ser apresentados e, com isso, o indivíduo se vê impelido a determinadas escolhas a partir de seus critérios pessoais e também grupais. Dito de outro modo: a identidade individual será reconstruída continuamente a partir de seleções de mundos simbólicos reconhecíveis como pertinentes a uma vivência harmônica em determinada sociedade. Como o

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processo é semiconsciente (nem sempre havendo clareza de que se está optando por determinado mundo), o indivíduo tem a sensação de que sua história de vida faz sentido e pode ser narrada linearmente. Por outro lado, nem sempre os mundos simbólicos disponíveis para seleção estão em concordância com o modus vivendi do indivíduo, que, então, buscará mecanismos de enfrentamento para sentir em menor intensidade o estresse advindo das escolhas feitas, especialmente se o processo de alternação for do tipo radical, como numa conversão religiosa, quando há o redimensionamento de uma significativa parte de sua conduta de vida. Se o enfrentamento dessa escolha por um novo mundo simbólico (ou uma mescla de alguns possíveis) não se dá de modo a garantir uma sensação de compreensibilidade, estabilidade e pertencimento a um grupo, o indivíduo pode se encontrar numa situação de desconforto: a realidade, in toto, passa a não ser mais inteligível e, portanto, passa a ser traumática. Assim, o trauma não obrigatoriamente é fruto gerado a partir de um grande evento do qual o indivíduo se tornou vítima, como guerras, acidentes e outros. Ele pode se configurar a partir da realidade cotidiana em si, uma vez que esta realidade precisa ser entendida, tornar-se significativa e compreensível. Logo, indivíduos traumatizados pela cotidianidade apresentam uma necessidade de compreender as experiências vividas pelo processo de tentar dar sentido a uma provação, ao menos a priori, sem sentido. O indivíduo que se caracteriza preso a um cotidiano traumático experiencia dificuldades de responder eficazmente aos eventos rotineiros porque estes são carregados de um excesso de informação impossível de ser processado. De acordo com o meu ponto de vista, a intensidade da condição traumática acaba por não

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comportar uma administração cotidiana e provoca no indivíduo uma imobilidade de respostas aos eventos, muitas vezes não expressa por inatividade, mas pela repetição de diálogos e comportamentos; reações ao invés de ações; ou mesmo em padrões contínuos de relacionamento. Dessa forma, uma vez que se pense em um componente resiliente relacionado ao trauma, é preciso ajustar esse conceito ao que Martineau (1999) denomina de “resiliência performática” ou, por outras palavras, a tentativa de restaurar o contexto original de um indivíduo através de ferramentas que tornarão a sua existência significativa e lhe darão, ao menos, uma justificativa para que ele continue vivendo. Uma dessas ferramentas seria a narrativa: alguns indivíduos encontram na narração de seus traumas uma forma de apaziguamento de suas dores e também um modo de tentar dar sentido à experiência que lhe trouxe um mundo simbólico impossível de ser digerido cognitivamente. Contudo, esse desencontro com o real se apresenta de modo tão intenso que a própria linguagem não se mostra capaz de descrever com exatidão a experiência vivida, impossibilitando um espaço de intelecção. Assim, o que se testemunha é um excesso de realidade e o que configurará o testemunho enquanto narração é uma falta, isto é, uma ruptura entre o evento e a linguagem, “a impossibilidade de recobrir o vivido (o ‘real’) com o verbal” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.46). Todavia, como também aponta Seligmann-Silva, essa impossibilidade pode ser enfrentada através da arte que, pela via da imaginação, utiliza-se da “linguagem entravada” para enfrentar o “real” (Op.cit., p.47). É nesse sentido que proponho a análise da obra Sôbolos rios que vão (2012), do escritor português António Lobo Antunes. Pretendo, porém, refletir inicialmente sobre as primeiras obras do autor para depois chegar ao objetivo enunciado.

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A guerra colonial angolana é um tema recorrente em parte da obra de ficção de António Lobo Antunes. Seus três primeiros romances, Memória de Elefante (1979/2000), Os Cus de Judas (1979/2003) e Conhecimento do Inferno (1980/1999) – conhecidos como a Trilogia da Guerra – são extra­tos de experiências traumáticas literariamente manipula­ das. Mesmo se tendo cuidado para não cair na armadilha de atribuir uma origem autobiográfica ao que é uma criação ficcional, eles apresentam um personagem que é um psiquiatra que voltou da guerra colonial em Angola e se mostra claramente assombrado por memórias desse evento em seu retorno à carreira médica em Lisboa (o próprio Lobo Antunes é um psiquiatra que trabalhou como médico nos campos de guerra em Angola por dois anos durante a luta de libertação). Como Isabel Moutinho (2008) defende, o paradoxo fundamental da obra de Lobo Antunes é que a prosa exuberante e detalhada é fortemente usada para narrar a monotonia na vida dos protagonistas que partilham o gosto pelo silêncio ou a incapacidade de quebrá-lo. Essa dialética de silêncio e fala, ou do aprisionamento em silêncio e a vontade de quebrá-lo, é constantemente reformulada no entrelaçamento entre a ficção autobiográfica e a guerra colonial. Moutinho ressalta que, em Memória de Elefante (2000), ou o médico precisa sentir-se encapsulado em um silêncio protetor ou simplesmente suspeita que suas palavras não terão efeito algum desde que ele não será ouvido. Mesmo que ele diga alguma coisa, essa angústia, por fim, fazê-lo-á sentir-se já não pertencente a algum lugar. Essa é também uma das bases de Os Cus de Judas (2003), como aponta a pesquisadora: His war experience, and his involvement with the (restricted) African civilian populations he also cared for, revealed that the place where he thought he belonged

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was not only a place but a set of values and a time which history had already condemned 2 (MOUTINHO, 2008).

Ao meu ver, o projeto literário dessa trilogia não serve unicamente a apresentar memórias da guerra personalísticas, mas sim criar narradores que deem voz, em seus longos monólogos, aos combatentes esquecidos tanto de Portugal quanto de Angola e aos inúmeros mortos que não podem levantar suas vozes em protesto contra o silêncio reinante. Nessa matéria, a memória privada é usada para cumprir um papel social, o de reverter a amnésia da história e quebrar o silêncio oficial ensurdecedor. De outra forma, pode ser possível afirmar que as narrativas das três obras de Lobo Antunes pretendem abordar, em algum nível, a responsabilidade dos cidadãos portugueses comuns em relação à guerra em Angola, inclusive fazendo com que se sintam culpados por seu próprio silêncio sobre o evento. Muito embora a temática central de Sôbolos rios que vão não seja a guerra, é também o trauma a demarcar a existência de indivíduos o que se apresenta nessa narrativa. Na contracapa da obra publicada no Brasil, a título de sinopse, lê-se: Após a retirada de um tumor, o narrador desta história de fundo autobiográfico passa os dias entregue à fraqueza do corpo. Sofrendo com as dores e humilhações da doença, ele se recorda dos caminhos trilhados até então – a ingenuidade e as descobertas da infância, a vila em que morou e os ares da serra, a convivência com os avós, as cartas não correspondidas pela menina que amava – ao mesmo tempo em que encara a incoerência da morte em relação à infinita riqueza de experiências da vida. (ANTUNES, 2012). 2

Sua experiência de guerra e seu envolvimento (restrito) com as populações civis africanas das quais cuidava, revelou que o lugar ao qual ele achava que pertencia não era apenas um lugar, mas um conjunto de valores que a história já havia condenado. (Tradução minha).

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Inicialmente, a classificação do romance como “de fundo autobiográfico” parece remeter à estrutura já observada na trilogia do início da carreira do escritor português. Apesar das ressalvas já feitas sobre a cilada que pode se tornar uma análise que misture as categorias de autor e de narrador, é importante observar que: a obra é organizada em capítulos representados como se fossem páginas de um diário (datadas de 21 de março a 04 de abril de 2007); o narrador é referido como “senhor Antunes da cama onze” (ANTUNES, 2012, p.16) por uma das vozes presentes no primeiro capítulo e como “Antoninho” (ANTUNES, 2012, p.16) por outra voz logo em seguida; além do fato de que o autor António Lobo Antunes tenha sido diagnosticado com câncer exatamente como o narrador da obra. Tais entrelaces podem levar o leitor ingênuo a pensar que Sôbolos rios que vão (2012) é uma autobiografia. Entretanto, já há algum tempo, produções literárias subvertem o gênero autobiográfico, produzindo obras de efeito caleidoscópico, que emprestam técnicas da autobiografia e as mesclam com traços romanescos (ou vice-versa). Por exemplo, na novela de César Aira, Como me hice monja, estão presentes muitos ingredientes da narrativa autobiográfica (apud KLINGER, 2007). O narrador, em primeira pessoa, promete contar a história de sua vida, que coincide, segundo ele informa, com a história de sua transformação (virar freira). O que instiga é que a trama da novela é construída a partir de elementos que identificam o narrador-protagonista com o autor. O narrador, que ostenta permanentemente ter uma memória implacável, perfeita, é chamado de “César”, “Césarito”, “o menino Aira”; no entanto, o relato de César Aira desmente todas as expectativas do leitor de que se trata de uma ficção autobiográfica: os elementos autobiográficos da ficção chocam-se com as formas paradoxais em que o narrador

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constrói sua história. O gênero do nome do autor que figura na capa (César Aira) não concorda com a voz que enuncia o título “como virei freira”, voz que remete a um sujeito feminino. Klinger (2007) também pontua sobre a novela de Fernando Vallejo, La virgem de los sicarios, onde um “anjo exterminador” percorre as ruas de Medellín, limpando-a de parte de seus moradores e ao mesmo tempo livrando seu amante daquilo que mais parece incomodá-lo: o outro, o ser humano. O narrador da novela, gramático de profissão, voltara já velho à Colômbia da sua infância e iniciara uma relação homossexual com o “anjo”, um rapaz chamado Alexis, um sicário (ou assassino profissional). Em Noches vacías, de Washington Cucurto (apud KLINGER, 2007), o narrador relata suas aventuras noturnas no mundo marginal da “cumbia” (gênero musical que se produz, ouve-se e se dança às margens da cultura oficial, possivelmente comparável ao funk brasileiro), povoado pelas recentes imigrações de latino-americanos que chegaram à Argentina dos anos noventa com a ilusão de encontrar melhores condições de vida. Em Nove Noites, de Bernardo Carvalho (apud KLINGER, 2007), um jornalista se interna na aldeia de índios krahô no Xingu em busca de dados sobre Bell Quain, promissor antropólogo norte-americano que, em 1938, aos 27 anos, suicidou-se em circunstâncias misteriosas quando voltava da aldeia indígena para a cidade de Carolina. O que une os últimos três romances citados e os torna especialmente curiosos para a análise literária é justamente o campo movediço da memória, das relações autobiográficas e dos pactos autobiográfico e ficcional. Segundo Klinger (2007), em Noches vacías, o nome do personagem coincide com o pseudônimo do autor, Washington Cucurto. Na novela de Fernando Vallejo, o narrador possui vários traços da biografia do autor, fora o fato de que ele mesmo declarou para a imprensa de que se trataria de uma “história de amor autobio-

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gráfica”. Por sua parte, em Nove Noites, a figura do narrador também está montada com traços autobiográficos e Bernardo Carvalho, ao colocar na orelha do livro uma foto sua, aos 6 anos de idade, de mãos dadas com um índio no Xingu, insere sua própria imagem na trama romanesca. É precisamente essa transgressão do “pacto ficcional” em textos que, no entanto, continuam sendo ficções, o que os torna tão intrigantes: sendo ao mesmo tempo ficcionais e (auto)referenciais, esses romances problematizam a ideia de referência e assim incitam a abandonar os rígidos binarismos entre “fato” e “ficção”, margeados pelo campo vasto da memória. A análise que proponho de Sôbolos rios que vão (2012) reside, contudo, mais na maneira como o narrador lida com o evento traumático (o câncer) e com a realidade traumática antes e após a doença, ambos margeados pelo oceano da memória. O romance apresenta, já na “primeira página do diário”, datada de 21 de março de 2007, o movimento inicial de acesso ao arquivo da memória. O narrador, ao olhar através da janela de seu leito de hospital, afirma: Da janela do hospital em Lisboa não eram as pessoas que entravam nem os automóveis entre as árvores nem uma ambulância que via, era o comboio a seguir os pinheiros, casas, mais pinheiros e a serra ao fundo com o nevoeiro afastando-a dele [...] (ANTUNES, 2012, p.7).

O caminho de memória que será percorrido pelo narrador é um caminho em espiral, através do qual imagens do presente se fundem a outras do passado. Na verdade, embora o teor de memória dê a entender essa sobreposição – como se o presente remetesse a todo tempo ao passado – defendo que o processo é muito mais marcado por uma concepção de um passado que só existe no presente, não como substituição, mas como sobreposição interdependente. Em outras palavras,

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minha hipótese é que as memórias do narrador devem ser entendidas não como a lembrança de um passado como “antes”, mas sim fundido numa ideia de passado como “agora”, como se o passado só fosse possível no tempo presente. Ainda durante a narrativa da data de 21 de março de 2007, o narrador irá mesclar o seu olhar do mundo presente ao olhar do mundo passado, inserindo nesse “terceiro mundo” justaposto as falas de personagens que travam com ele algum tipo de interação nesse espaço/tempo uno e indivisível, nesse espaço de memória marcadamente ambíguo e dialógico. Falas como “— Aproxima-te rapaz”, proveniente de D. Lucrécia, e “— Ainda não”, usada em diferentes contextos e para diferentes personagens, são passíveis de serem observadas em quantidade no excerto datado. O mesmo se dará nos capítulos/datas seguintes, como no capítulo seguinte (22 de março de 2007), onde a fala de uma prima (“— Quando cresceres compreendes”) irá se repetir por mais seis vezes, sendo utilizadas para contextos diferentes. As constantes repetições de falas e sucessivas iterações trazem à tona a noção de um ato dialógico em que o outro (o receptor) parece ser destituído de valor significativo, gerando uma manutenção da realidade cotidiana muito mais centrada na contingência de um emissor que supervaloriza o seu dizer como aquele único capaz de imprimir sentido e manter o “real” de maneira a satisfazer necessidades do presente, principalmente frente à contraposição ao passado. É óbvio, entretanto, que esse mecanismo de construção de um “real” como fruto de uma contingência individual, sem interação face a face, é somente uma ficção derivada do próprio processo semiconsciente de construção de realidade.3 Tanto 3 Defino “ficção” aqui como construção e/ou manufatura (derivado do latim fingo,

fingere) e não como conceituação oposta à noção de verdade.

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o é que muitas personagens irão se debater com o outro e as construções de si, sobre si e sobre o outro através do encaminhar da narrativa antuniana, vendo-se a si e aos outros como uma miríade muitas vezes desfocada, ambígua, sobreposta e confusa. Atos reiterados de construção do passado, nesse contexto, colocam-se como uma alternação quase desesperada de se interpretar frente a um mundo construído por si mas não muito adequado, à primeira vista, aos mundos dos outros que tomam parte dessas interações face a face. Assim, a personagem António estabelece um ato monológico de reflexão a partir de dois planos simbólicos iniciais, o presente e o passado e, sucessivamente, de outros planos simbólicos oriundos da fusão destes, ou seja, o justaposto tempo “presente que é passado / passado que é presente”. O evento que funciona como gatilho desse irrompimento de memórias em António é justamente a internação para o tratamento do câncer, acontecimento que lhe apresenta tanto uma ocorrência traumática una (o próprio câncer) como o que advém dele, isto é, uma realidade contínua de insatisfação, desconforto e dúvida. Dessa forma, além da ideia de uma “realidade” não mais agradável, necessitando uma reinterpretação, vê-se, também, que a memória não existe em nenhum outro lugar a não ser no estado atual de consciência e em nenhum outro tempo a não ser na hora de sua realização no presente. As memórias não são, por conseguinte, relembradas de algum lugar, mas são geradas com base na auto-estimulatividade ou autorreferencialidade do personagem-narrador. O que se observa é que as memórias de António não o fazem ciente dos acontecimentos passados, mas apenas o conscientizam daquelas ideias que são assim identificadas, na situação presente, como expressão consciente de acontecimentos passados e, muitas vezes, essas memórias cumprirão

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o papel de gerar adaptabilidade a uma situação presente não mais identificável, em especial, a possibilidade de morte. Contudo, a memória não traz garantia de paz. Não apazigua seu detentor e nem é capaz, pelo menos na narrativa de Sôbolos rios que vão, de construir um senso de cronologia linear para dar um tom mais aceitável (agradável?) a uma narrativa de vida, principalmente porque esse passado tradicional, passível de organização, seja de fato uma ficção necessária à vida cotidiana de muitos indivíduos.4 Problematizando o conceito de passado, Beatriz Sarlo, em sua obra Tempo Passado (2007), argumenta que: há algo inabordável no passado. Só a patologia psicológica, intelectual ou moral é capaz de reprimi-lo; mas ele continua ali, longe e perto, espreitando o presente como a lembrança que irrompe no momento em que menos se espera ou como a nuvem insidiosa que ronda o fato do qual não se quer ou não se pode lembrar. Não se prescinde do passado pelo exercício da decisão nem da inteligência; tampouco ele é convocado por um simples ato da vontade. O retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente (SARLO, 2007, p.9).

Para além dessa proposição, a pesquisadora argentina mostra que a lembrança não permite ser deslocada, mas que, pelo contrário, obriga a uma perseguição, pois nunca está completa. “A lembrança insiste porque de certo modo é soberana e incontrolável (em todos os sentidos dessa palavra).” Logo, o passado se faz presente, e como mostrou Deleuze, a respeito de Bergson, ambos citados por Sarlo (2007), o tempo próprio da lembrança é o presente, ou seja, o único tempo apropriado para lembrar e, também, o tempo do qual a lembrança se apodera, tornando-o próprio. 4 É importante manter em mente a definição de “ficção” como manufatura, construção.

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É nesse movimento caleidoscópico, quando o olhar interpretativo é alterado com base na própria condição dos eventos cotidianos, que a realidade cotidiana passa a ser reinterpretada e adaptada para um fim específico: gerar um plano simbólico mais de acordo com a reflexão contingencial semi-consciente proposta. Nesse contexto, a percepção dos objetos e dos eventos cotidianos é moldada não para a construção de um “real” fixo, mas sim para um “real” que gera a ideia de fixação momentânea, ou seja, um plano simbólico que, no agora, parece estar de acordo com os desejos da personagem nesse presente, mas que frente a uma situação interativa não esperada, rui e abre caminho para uma reinterpretação. É válido apontar que nesse roldão de memórias espiraladas, a base da memória é um adulto, António, lembrando de seu passado e, especialmente, sobre sua infância. No capítulo datado como 24 de março de 2007, quando aparecem as memórias de um amor pueril, é interessante observar como características de uma cena de memória vão se misturando a outras cenas, gerando o tempo/espaço uno ao qual me referi anteriormente. Não só a sensação dessa indivisibilidade pode ser sentida, como também o interesse do narrador em apresentar as memórias de um determinado contexto ligadas a outro diferente. Em dado momento do capítulo supracitado, a narrativa se apresenta assim: [...] é impossível que a dona Lucrécia se esfume, durará para sempre, no quintal dela um freixo que assustava os pardais, se um pássaro se aproximasse engolia-o conforme a doença o engolia a ele, puseram-lhe fraldas e não estranhou as fraldas, limpavam-no com um pano e as suas intimidades a baloiçarem inúteis, a estrangeira loura da piscina [...] (ANTUNES, 2012, p.48).

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Nessa fala, a construção literária dá à personagem António a capacidade de fabricar um caminho interessante de analogias de memórias: sua memória de D. Lucrécia como imortal (gerada pela memória do menino que vê impossível a morte daqueles que ama, pelo adulto canceroso que é assombrado pela sua própria perecibilidade e por sua concepção do papel imortalizador da memória) se liga à lembrança do freixo e dos pardais (numa analogia óbvia entre freixo e câncer) que se liga ao seu presente de humilhações quando ele volta a ser criança (o uso de fraldas). Embora isso não o incomode, o fato proporciona ligação a outra memória – o encontro do menino com uma mulher adulta à beira de uma piscina, mulher esta que já havia sido apresentada na narrativa de capítulos anteriores simbolizada como um objeto de desejo à época. Por outro lado, o encontro com a mulher o incomoda pois, consciente de sua meninice, vê a impossibilidade da realização do desejo carnal, evento que se amálgama à sensação de seu órgão sexual inútil no presente, como inútil no passado de criança, no que concerne à realização do desejo. Contudo, é fundamental observar que as memórias de António são mescladas a comentários de um outro narrador, um narrador onisciente que aponta para uma 3ª pessoa: “...engolia-o conforme a doença o engolia a ele...”; “...puseram-lhe fraldas...”; “... limpavam-no com um pano...”. Essa construção traz em si o tom de ambiguidade tão caro aos narradores de Lobo Antunes: ou se entende que de fato há um narrador onisciente na obra ou se conclui que António se refere a si em 3ª pessoa, como se olhasse para si próprio a partir do exterior – o António do presente que se refere ao António do passado (ou vice-versa). Embora essa discussão extrapole os objetivos aqui propostos, permiti-me apontá-la para que estudos futuros se dediquem a ela.

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Se no fragmento acima é possível notar o tom melancólico e até mesmo decadente da personagem, que se ancora em suas memórias para que a vida faça algum sentido, é preciso pensar na escolha do autor pelo título da obra. “Sôbolos rios que vão” é o primeiro verso de um poema de trinta e sete estrofes de Luís de Camões também conhecido como “Redondilhas de Babel e Sião” ou “Super flumina”.5 Muito embora frente às dificuldades de se precisar a exata data de produção e publicação dos poemas de Camões, alguns pesquisadores, como o primeiro biógrafo de Camões, Pedro de Mariz (1551-1615), afirmam que o grande poeta português teria escrito o poema no final da sua vida, visto que há notícia de uma encomenda para que traduzisse em verso os Salmos Penitenciais. Segundo Mariz: [...] como o poeta não se decidia a executar a tarefa, foi-se a ele o mecenas, perguntando-lhe porque não cumpria o prometido, tendo anteriormente escrito tão famosos poemas. Ao que Camões lhe respondeu “que quando fizera aqueles Cantos, era mancebo, farto, e namorado, querido e estimado, e cheio de muitos favores, e mercês de amigos, e de damas com que o calor Poético se aumentava. E que agora não tinha espírito, nem contentamento para nada” (apud SIMÕES, 2012).

É aparente a concordância da pesquisadora Carla Ribeiro em relação ao conteúdo do poema, entendido como uma reflexão sobre a vida que supostamente se apresenta em vias de encerramento. Ribeiro aponta que o poema: consiste numa recuperação do texto bíblico sob uma perspectiva platónica, o que permite ao sujeito poético fazer uma reflexão/síntese da sua própria existência. Os 5

Cf. THE PROJECT GUTENBERG. Obras completas de Luís de Camões. Tomo III. Disponível em: Acesso em: 28 jul. 2013.

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três locais referidos nas redondilhas, nomeadamente Sião, Babilónia e Jerusalém, a pátria celeste, corresponderão a passado, presente e futuro. Só o conhecimento do bem, da felicidade, correspondendo ao passado e a Sião, e, simultaneamente, o conhecimento do mal da tristeza, que correspondem ao presente e a Babilónia, darão ao sujeito poético o conhecimento total que lhe permitirá ascender a um grau superior, a uma verdade absoluta. (RIBEIRO, 2008).

Nesse sentido, a obra de Lobo Antunes parece se assemelhar à proposição de que as vozes dos narradores, em especial a de António, estão a serviço de uma postura de revisão de vida, como na feitura de um balanço da existência. No romance, a personagem António chega à sua ­possibilidade de felicidade quando a doença não existe mais. Contudo, a experiência da morte possível marca-lhe profundamente. Em acréscimo à sensação da morte próxima, os sentimentos de solidão, de incompreensão, de revolta com o divino, todos juntos no roldão de uma vida. Se a memória não apaga as dores, pelo menos cumpre o seu papel em um dos sentidos mais básicos das narrativas de memória: expor as dores para sobre elas refletir, tentando dar-lhes um significado. Entretanto, a exposição das dores não as faz desaparecer: as memórias do “terceiro momento” (a categoria de um presente que é passado, como exposto anteriormente), em seus movimentos espiralados em que memórias se embatem, ao invés de gerarem um campo de apaziguamento, abalam ainda mais a identidade da personagem. Sua serventia, então, jaz na afirmação de que não basta somente saber quem se é (através da oposição “quem não se é”), mas sim saber o que fazer com quem se é. Em outras palavras: sempre que a personagem António é colocada em interações face a face com outros personagens, suas falas – embora compostas por anáforas – estabelecem

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relações diferentes com os objetos ou eventos da realidade entendida como tal. Isso acontece porque, em primeiro lugar, os significados das palavras não são fixos e, assim, o falante não pode, nunca, fixar o significado de uma forma final. Segundo, porque as palavras carregam ecos de outros significados que elas colocam em movimento. Afirmações são baseadas em proposições e premissas das quais não se tem consciência plena e, assim, não se tem total controle do horizonte de expectativa do outro durante um processo dialógico. Logo, como o significado é inerentemente instável, António procura o fechamento (a compreensão de sua identidade), mas é perturbado constantemente pela diferença, pelo não esperado, o que impede a forja de uma ideia de ordem. Se de tudo não é possível a obtenção de uma linearidade cronológica que dê um sentido único às experiências de vida, ainda sim é preciso expor, contar, narrar. António, narrador, parece entender que o evento traumático foi experienciado e, de algum modo, sobrepujado pela extirpação do câncer, mas a realidade (por si só traumática) ainda permanece a lhe enredar. Esse cotidiano traumático que não permite fuga nem esquiva exige, por outro lado, um processo de coping performático que, mesmo não levando à paz total, possibilita que uma fase da vida possa ser entendida como experienciada e que não há nada mais a dizer sobre ela naquele momento: exeunt omnes. É dessa forma que se finaliza a narração de Sôbolos rios que vão (2012), usando uma expressão latina que pode ser traduzida como “tudo para fora”, chave para se observar o coping performático de António: a narrativa de testemunho que, ficcionalmente, debate o poder e as falhas da narração de uma realidade traumática – as possibilidades e impossibilidades do discurso da dor.

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O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL: O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE Izabel Cristina dos Santos Teixeira Sura Subuhana

“Balada de Amor ao Vento” (2003), obra da autora moçambicana Paulina Chiziane, ao mesmo tempo em que traz em destaque o tema de um aparente idílio amoroso, tecido entre as personagens Sarnau e Mwando, com seus encontros e desencontros, também traz, como pano de fundo, a organização estrutural dos espaços de territorialização de ambos e os problematiza, permitindo a observação de como eles aí se acomodam, ou não, em equilíbrio dinâmico. Neste sentido, a obra é um exemplo da relação entre literatura e meio ambiente, de acordo com a perspectiva da Ecocrítica, que concentra dois campos de saberes, intercalando-os, conforme afirma Garrard (2007, p.13). Segundo Walter (2009, p.116), uma vez alinhada com a interface mencionada, a Ecocrítica tem se desenvolvido por meio de três direções fundamentais: a) a do emprego de uma metodologia sociológica interdisciplinar, que examina a relação entre personagens e natureza, enfocando a consciência ecológica destes com relação a questões ecológicas locais e globais; b) a da adoção de uma metodologia cultural-antropológica interdisciplinar que problematiza a alienação e reificação do ser humano, como resultado da dominação da natureza dentro do projeto civilizatório moderno; c) a do emprego de uma metodologia ética interdisciplinar, “cujo objetivo é a revisão do sistema de valores culturais antropocêntricos como base de uma coexistência planetária inter-relacionada. E o que liga estas três abordagens é a compreensão da na-

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tureza como entidade físico-material e como entidade social ativamente envolvida na dinâmica das construções culturais” (WALTER, 2009, p.116). Com efeito, é a partir do conceito de ecocrítica que analisamos os lugares de habitar, à medida que os personagens Sarnau e Mwando se movimentam, tornando-os evidentes, quer seja em seu cotidiano, quer seja por meio de lembranças do passado, evocadas no presente, de onde emergem imagens de elementos da natureza, bem como as relações de ambos com seus afins. A história narrada, predominantemente em primeira pessoa, se passa no período da colonização portuguesa, em Moçambique. Os espaços geográficos identificados são: a aldeia de Mambone, um povoado de além-mar, Vilanculos, banhado pelo Oceano Índico, e a cidade de Lourenço Marques. Também há uma referência a Angola, para onde muitos homens e mulheres são conduzidos para o trabalho escravo, nas lavouras e na construção civil, nessa época. Isoladamente, cada um deles proporciona uma conjuntura social e cultural, com geografia específica. A narrativa, então, conduzida por Sarnau, demarca cada um desses espaços em que os acontecimentos se desenrolam, ao mesmo tempo em que estabelecem contrastes e paralelos, principalmente, em sua vida e na de Mwando.

Mambone: um Espaço Dinâmico dos Costumes Banto Lugar de nascimento de Sarnau, a aldeia de Mambone será reino de Nguila Zucula, de quem ela se torna a primeira esposa, adquirida por lobolo e, portanto, a rainha, dentro de uma prática da poligamia. Localizada nas margens do rio Save, Mambone é descrita por Sarnau como um cenário do “campo de mil cores em

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harmonia, das mangueiras e dos cajueiros e palmares sem fim” (CHIZIANE, 2003, p.11), o que ressalta, numa aparente relação de plenitude entre ambos – ela e o lugar – em sua infância. Adulta, após muitos percalços – a serem trazidos à tona, nesta pesquisa – e já vivendo em Lourenço Marques, por meio de suas lembranças, num misto de influências híbridas, banto e cristã, Sarnau revive (memória) aquela que foi a sua “saudosa terra, onde aprendera a amar a vida e os homens” (CHIZIANE, 2003, p.11). É na aldeia, em sua juventude, que ela ascende para o primeiro idílio amoroso, numa festa local, em meio a uma comemoração exitosa de um rito de passagem de jovens rapazes para a vida adulta (circuncisão), dentre eles, Mwando, objeto de seu desejo, com quem se relacionará, antes e após o casamento com Nguila Zucula. Mambone, conforme Sarnau é o recanto de águas tranquilas, de peixinhos, de pássaros, caniços, céus, e é, por assim dizer, um lugar de previsibilidade, pela constância e apaziguamento de conflitos, e que, na plenitude de suas rotinas, no perene ciclo de sobrevivência, é comparado ao “Jardim do Éden”, por ser um locus de paz e confraternização, para o qual “sempre chega a época do amor” (CHIZIANE, 2003, p.17). Ao mesmo tempo em que é lugar da acomodação emocional para Sarnau, a aldeia abriga uma Missão religiosa cristã, que interfere, de alguma forma, nos comportamentos locais: aí, os homens aprendem a ler, o que não acontece com as mulheres; também podem tornar-se padres, função social de prestígio, e que, entre outros objetivos, serve aos interesses da metrópole colonizadora, no caso, Portugal. Dessa forma, entre as práticas socioculturais dos nativos locais (bantos) e as trazidas pela colonização, a aldeia desenvolve uma espécie de resistência à influência cristã, ao manter determinados costumes, dentre eles, o lobolo e a poligamia e,

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assim, se equilibra em um ciclo contínuo terreno, por meio de “um conjunto de idéias atributos, hábitos, crenças e ritos, significados, símbolos, valores, concepções estéticas, organização social e costumes que formam o ambiente sobreposto ao puramente natural dado, e informam um modo de vida transmitido sem descontinuidade”, atitude comum ao grupo etno-linguístico acima mencionado, conforme lembra Altuna (1993, p.10). A Missão religiosa, por sua vez, abriga os seminaristas, o padre Ferreira e uma cozinheira. Nativa, esta exerce uma dupla função: além de cozinhar, é objeto sexual dos jovens Salomão e Mwando e do próprio padre. Ele, rendendo-se às suas próprias interdições, infiltra no lugar o oposto das regras que estabelece como ideais de comedimento e abstinência sexual (castidade). Ambiguidade recorrente em obras de Paulina Chiziane, a mulher nativa, negra, de nome desconhecido, cujo corpo é objeto de desejo, é, por assim dizer, a própria metáfora da colônia, a então Moçambique (e, por extensão, a África), alvo da exploração desenfreada da supracitada metrópole. Em sua relação com o Sagrado, Mambone convive com práticas de feitiçarias, encantamentos e conhecimentos de ervas medicinais. Nesse caso, apontando para algumas mudanças nos usos e costumes dos bantos – oralidade, prática de lobolo, poligamia, religiosidade – para outros trazidos “de fora”, a aldeia registra uma transição que é a conversão ao cristianismo (casamento monogâmico). Para além disso, acrescenta o aprendizado da escrita e a introdução do dinheiro nas trocas econômicas. Aí, marginalizadas, as mulheres transitam entre a aldeia e o núcleo urbano mais próximo, a cidade, propriamente dita, onde uma nova ordem vai se impondo: a instalação de escolas, de acesso às crianças, em geral. Insatisfeitas, as mencionadas mulheres reagem à sua falta de acesso às “ino-

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vações”, negando-se aos afazeres da lida doméstica, como por exemplo, arrumar casa, rachar lenha, cozinhar. Com isso, geram uma crise no trato das relações de gênero no entorno da aldeia. Essas ações são alvo das críticas, não só de Mwando à sua mãe e irmãs, como também da própria Sarnau, a futura rainha de Mambone. Tendo de conviver com esta dicotomia, este espaço de habitar vai se reconfigurando, diante do que Santos (2012, p.25) denomina de “cisão da totalidade”, representada aqui pela identificação de núcleos de instabilidade no modelo social nele vigente, os quais “arranham o discurso de unidade, uniformidade e horizontalidade”, nos termos definidos por Hommi Bhabha (1998). Noutras palavras, a orientação dada às mulheres é desmantelada por elas mesmas, quando promovem uma certa forma de protesto à sua falta de oportunidades, desencadeando um conflito no núcleo familiar, de acordo com as falas de Sarnau, e de Mwando, nas queixas ao novo comportamento de sua mãe e irmãs. Em uma dinâmica constante, a insatisfação se manifestará nas ações da própria esposa, Sumbi, que responde às críticas a seu respeito, feitas por Mwando e sua família, fugindo do casamento, unindo-se a outro homem. Com efeito, percebe-se que as novas influências vão denunciando formulações diferenciadas as quais, por sua vez, agirão na conduta, social e psicológica dos implicados, num processo de transformação profunda, como a fragmentação que a aparente “presença externa” produz no lugar, trazida pela relação colonial.

Sarnau e Mwando: as Rupturas Dentro de um Mesmo Espaço Ascendendo para o primeiro e grande amor, ainda na aldeia natal, Sarnau, esta jovem negra, de origem banto, en-

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canta-se pela bravura de Mwando, a quem seduz, posteriormente. Este, por sua vez, convertido ao cristianismo, é monogâmico, e atende a uma exigência do pai, que o quer casado com uma cristã, de posses (Sambi). Antes, porém, engravida Sarnau, que acaba provocando aborto, utilizando-se de ervas destinadas a esse fim. Desiludida, Sarnau, então, é adquirida, por meio de lobolo, por Nguila Zucula, o rei, a quem se une, em uma cerimônia realizada ironicamente pelo padre Ferreira, em dois sentidos: o padre não só preside a cerimônia do primeiro casamento de uma série poligâmica, como presenteia Saranu com “um vestido de noiva magnífico” (CHIZIANE, 2003, p.40), e assim, funde as doutrinas do Sagrado de ambas as crenças – banto e cristã, aparentemente se esquecendo das diferenças internas que há entre elas. Mwando, o iniciante do ritual de passagem banto, frágil e dominado pelo pai, vai construindo para si um percurso em que, não sendo de um clã de prestígio, como o de Nguila, descendente régio, entra para o seminário, onde aprende a ler e escrever nas línguas ocidentais e, ainda, a interpretar textos bíblicos, em moldes cristãos. Tendo por horizonte o processo histórico da colonização, o jovem Mwando experimenta a nova crença, o cristianismo, na tentativa de superar o revés de não ter nascido para liderar um grupo social, como Nguila: em lugar de sujeição, ele vai se impondo numa conta-corrente, utilizando-se do aprendizado das línguas (latim e português), do saber religioso e, assim, se deixa seduzir por eles, ainda que lhe convenha a ambiguidade entre o amor carnal por Sarnau e a sexualidade experimentada com a cozinheira até, por fim, ser descoberto pelo padre Ferreira e ser expulso da Missão.

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Do aprendizado, resulta a Mwando, indiretamente, o elo com a orientação patriarcal, que mantém a supremacia masculina, e lhe dará vantagem, futuramente, em um contexto totalmente adverso (Angola) e quase mortal. Ao contrário de Mwando, Nguila é polígamo, violento, de apetite sexual voraz. Pelo casamento, submete Sarnau a sofrimentos diversos, entre eles, a própria rejeição sexual. Pouco tempo depois, a despeito de ser a rainha e sofrer toda sorte de maus-tratos que padece na vida conjugal, vê-se grávida, e dá à luz gêmeas, contra quem, mais tarde, reproduzirá a violência que lhe é impingida pelo marido, além de ter de coabitar com mais outras de suas seis esposas, competindo, em atenção, sobretudo com Phati, a mais jovem e preferida de todas. Convivendo com modelos rígidos de papéis sociais, Sarnau, vai, pouco a pouco, despertando o olhar para a condição física da mulher na aldeia: natureza fértil, luz para a vida, e vai, gradativamente, analisando as desigualdades de gênero, em que prevalece, quase sempre, sua condição de sexualizada e de reprodutora. Inserida em uma forma de organização social que, se por um lado lhe convence que, sendo a rainha, é a figura principal do clã a que passa a pertencer, por outro lado, além de lhe obrigar à maternidade, permite que a violência do marido faça parte do seu cotidiano. Porém, o sentimento por Mwando e a influência dos valores coloniais trazidos pela Missão religiosa atingem em cheio a percepção de Sarnau, a ponto de, gradativamente, ela dar um basta na lógica do sistema social a que se vê condicionada. Isso ocorre quando Mwando reaparece, contrafeito, após a fuga de sua esposa. Reiniciando o idílio amoroso, Sarnau se vê, outra vez, grávida, dando à luz um filho varão. Porém, ameaçada em sua

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posição social, recorre à feitiçaria para seduzir o marido e, assim, resolver o imbroglio. Sanada a questão, ela introduz o filho espúrio no grupo que constitui a sua parentela na aldeia, o qual, na vida adulta, será fiel ao clã, e sucederá Nguila no reinado paterno, fato sobre o qual, jamais, ninguém na aldeia tomará conhecimento. Dessa forma, a ideia de “família ampliada”, pela poligamia, resistência cultural à monogamia trazida pela colonização, sofre um revés, ao contemplar outra forma de “mestiçagem” (social), ainda que de forma escamoteada e, porque não dizer, subversiva. Para preservar seus filhos na aldeia e não levantar desconfiança de Nguila sobre sua paternidade, Sarnau, que não desafia a organização social de seu povo, põe fim ao culto de sua majestade submissa, desliga-se de seu território e foge com Mwando para outras paragens.

Entre Bazaruto (Arquipélago) e Vilanculos (praia): a Fuga de Sarnau e Mwando Sarnau vive, aí, com Mwando, com quem foge. Ele, alimentando valores da cultura ocidental, a convence de sua superioridade, quanto à monogamia, afirmando que “cada homem tem uma só mulher e as pessoas vivem em ninhos de amor” (CHIZIANE, 2003, p.96), desprestigiando todo o passado de costumes bantos, dentre eles, a poligamia, que alimentaram por séculos a fio sua identidade aldeã. Afeito, sem nenhuma criticidade, ao padrão colonial, Mwando, neste próximo lugar de habitar, experimentará com Sarnau uma segunda ordem: nem um, nem outro se revelam, publicamente. Ou seja: eles sobrevivem em um terreno instável, ao sabor das idas e vindas das marés.

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Para chegar a Vilanculos, eles seguem pelo alto-mar, alcançando Bazaruto, até atingir a ilha, onde Mwando se torna empregado de um barco pesqueiro indiano. Esta referência chama a atenção para a então colônia, Moçambique, que funciona como porta de entrada a abrigar muitos povos de partes da Ásia, promovendo um caldeamento de grande diversidade étnica e cultural, favorecendo muitas misturas, conforme lembra Lourenço Rosário (2010). Na chegada ao povoado da ilha de Vilanculos, Sarnau, convencida pelos valores culturais cultivados pelo amado, envereda para uma visão de futuro conformada e, assim, formula este pensamento: “mas que vida tão linda, tão diferente da poligamia” (CHIZIANE, 2003, p.104), como se o casal, uma vez comungado um mesmo ideal, vivesse, enfim, em ­plenitude. No entanto, tempos depois, em meio a uma rotina de trabalhos em alto-mar, ambos recebem a visita de Nhambi, um antigo irmão de rito de passagem (circuncisão) de Mwando, da aldeia de Mambone. O recém-chegado lhe transmite os acontecimentos de lá: a morte de Phati, e o interesse do rei Nguila em reencontrar Sarnau, que lhe deve reaver todos os bens que sua família adquiriu por lobolo. Em relação a essa prática, Paulina Chiziane, em uma entrevista, afirma que o lobolo é um cerimônia tradicional como tantas outras. Portanto, por ser tão importante, tentou-se lutar conta o lobolo, mas ele resiste até hoje. É muito difícil explicar, mas o lobolo é muito mais do que o preço da noiva. É uma união espiritual entre duas famílias. Uma família vai buscar uma mulher, daí, as duas famílias se juntam e os espíritos também (CHIZIANE, 2010, p.178).

Pelo exposto acima, então, para Sarnau, o lobolo significa a violação de um código de ética, do qual ela não poderá

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escapar: essa lembrança lhe traz de volta a dependência moral às práticas sociais (e espirituais) de sua aldeia e ela, para se libertar, certamente necessitará do apoio de Mwando, a quem agora está unida. A despeito dessa tomada de consciência, Mwando, que a convencera da fuga, reage às revelações trazidas de Mambone da seguinte forma: é aconselhado por Nhambi a fugir dali, deixando para trás, mais uma vez, Sarnau, grávida e só. Tal situação a faz relembrar as ocorrências que a marcaram, no passado, em sua tentativa de união com Mwando. Diante do novo horizonte que se lhe descortina, Sarnau debate-se entre o “entre-mundos” que a despertou, em princípio – poligamia X monogamia/tradição X modernidade – e vai construindo a lógica do significado de ser mulher numa sociedade patriarcal, em que ela vive, praticamente como uma simples resposta a uma contingência da sua condição biológica, perante o idílio amoroso, em que mulher e mãe vão se tornando ambiguidades constantes. De início, pela fuga, o casal tenta expandir seus horizontes, após flutuar pelo alto-mar, até encontrar um aparente “porto seguro” – uma ilha. Aí, o isolamento, temporário, a incomunicabilidade com os aldeados e a tentativa de alcançar a plenitude, incorporando outros elementos culturais, como a monogamia, leva-o a uma mobilidade limitada. Neste sentido, esse lugar transitório, isolado, quando sofre, então, o revés da chegada de um elemento de suas relações sociais pregressas, revelador, perde a força de sua aparente consistência. Ou seja: emerge o conflito, colocando os dois sob tensão, o que culmina, mais uma vez, com a partida de Mwando, dessa vez, às escondidas. Abandonada, mais uma vez, Sarnau entrega-se à sorte. Sozinha e grávida, ela sai dali, indo parar na cidade de Lourenço Marques, ao sul de Moçambique.

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Lourenço Marques: Sarnau frente a Novos Desafios Nesta cidade, Sarnau, a ex-rainha de Mambone, vive, inicialmente, como serviçal de um casal de indianos, até o nascimento da filha. Em seguida, larga o emprego e torna-se prostituta. Com os ganhos, acerta as contas com o seu passado de mulher lobolada, ao devolver o pagamento a Nguila. ­Passa a ter um certo domínio sobre si mesma, porém, envolvida com a prática de “vender o corpo”, tem mais um filho, cujo pai recusa-se a reconhecer como tal, por ser casado e monogâmico. Mais uma vez, é levada a se questionar sobre estas duas práticas de relação familiar – poligamia e monogamia – que se impuseram em sua vida. Como uma expressão do colonialismo, a monogamia mais parece a Sarnau uma invenção inutilizável, tal como a poligamia, em uso “por seu povo”, já que as duas a reduzem à condição de mera procriadora, condenada ao abandono e ao desprezo. As duas formas de constituição familiar – poligamia e monogamia – parecem esferas culturais muito semelhantes, em curso em Moçambique, à beira da Independência: ambas envolvem contradições e, ao mesmo tempo, se juntam por circunstâncias históricas, e são incorporadas à percepção de mundo de Sarnau, já quer ela teve a experiência das duas possibilidades, não concluindo em favor de nenhuma. Como consequência para si, ela, sozinha, desenvolve novas formas de sentir a realidade e, com isso, acomoda conflitos pregressos, como, por exemplo, dar o nome de Phati à filha que teve com Mwando, e não se insurgir contra os costumes da aldeia, por isso, devolve o pagamento de seu lobolo. Ajustadas as contas devidas, Sarnau segue em ­Lourenço Marques, em que pode desenvolver uma outra forma de re-

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lação com o novo lugar de habitar: ela, mãe, educa menina e menino, e se sustenta, vendendo alimentos em um mercado – Mafalala – satisfeita por suas filhas gêmeas se casarem em Mambone, e seu primeiro filho tornar-se rei do lugar, “por sucessão hereditária”. Reorientando a vida, a partir da devolução do objeto do lobolo, não nega a importância dos valores preservados pelos costumes do seu povoado, porém, transita agora num universo multifacetado, urbano, e parte para uma nova orientação social: inaugura os passos iniciais, em outros tempo e lugar, já que, para a aldeia, não voltará mais. Apaziguada, ela percebe que, no curso do tempo, os dois espaços (aldeia e cidade) reconfiguram hábitos, formas de pensamento, e ações que, em sua consistência, se perpetuam na vida cultural de cada um.

Novos Saberes nos Lugares de Habitar Na aldeia de Mambone, a geografia, tanto física, quanto cultural, no sentido de ser e pensar o mundo, mostra os dois extremos na vida de Sarnau e de Mwando: a infância (jovem) e a vida adulta. Enquanto jovens, nos festejos rituais de passagem, há as expectativas, e os desejos individuais, em dinâmica com os elementos da natureza: o rio Save, as plantas, o céu, as estrelas, ou seja, há uma aparente internalização de um ciclo bem acabado (?), alimentado, ainda que de forma transgressora, já que Sarnau convive com Mwando, antes de se unir a Nguila. Na vida adulta, os jovens se abandonam, e cada um segue um rumo diferente. Sarnau, a posição de rainha; Mwando, a obediência ao pai (casa-se). Como soberana, Sarnau nada mais é do que o exemplo de uma base que nutre interesses de uma comunidade de orientação patriarcal. Ou, como

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diria Walter (2009, p.15), um exemplo de “manifestação de territorialidade cultural, em múltiplas zonas de contato”, já que, conforme citado acima, há as interpolações sociais e religiosas entre o Sagrado nativo e o trazido pela colonização, em situações diversas. Ante a uma reviravolta no relacionamento de Mwando com a esposa (esta o abandona), ele retorna à aldeia e volta a se envolver com Sarnau. Descobertos por Phati, fogem, para preservar a vida, deixando ali – a ligação de estratos sociais distintos – o filho varão. É na vida adulta que, aos poucos, ambos perdem a percepção da natureza local como lugar de plenitude, ainda que, tempos depois, Sarnau retorne, sem fazer menção aos elementos da Natureza, que antes lhe foram tão caros, e aí negocie com Nguila uma espécie de recomposição dinâmica, que contribui para a sobrevivência dos padrões sociais da aldeia. Neste sentido, o lugar “aldeia” adquire acomodação, pela paz entre o rei, Sarnau e nova rainha (sua irmã de sangue) e, também, pelo filho que será o sucessor do pai, preservando as práticas culturais, contrapostas ao ideal de conduta previsto pela colonização. Sarnau, embora fragmentada por muitas andanças, se harmoniza, podendo seguir frente, rumo a Lourenço Marques, sem dívidas com o passado, até mesmo com relação à jovem Phati (dá esse nome à filha mais nova), morta por ordem de Nguila, por ele acreditar que ela tivesse sido a responsável pelo sumiço da primeira esposa, apelando para a feitiçaria. Mwando, na aldeia, onde se instala a Missão religiosa, também internaliza dos valores da sociedade dominante e com eles se defende, quando é obrigado a permanecer fora de Moçambique. No enredo, Angola é visível a partir de um recurso literário: Paulina Chiziane muda a voz do narrador (de primei-

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ra pessoa para a terceira), mostra a simultaneidade entre o percurso de Sarnau e o enfrentado por Mwando, após o fim do idílio amoroso de ambos, no além-mar. Este último, após deixá-la na Ilha de Vilanculos, envolve-se com a mulher de um sipaio (negro cooptado pelo colonizador). Ao ser descoberto, acaba condenado à deportação para Angola, onde passa a trabalhar como escravo nas plantações de cana e café, praticamente no meio de uma floresta. Lá, utiliza-se de seus conhecimentos religiosos e atua como missionário. Ganha respeito e “faz fortuna”, além de ser reconhecido como “Padre Moçambique” (CHIZIANE, 2003, p.126), usufruindo do aprendizado conquistado na Missão, em Mambone, em seu passado. Em seguida, ele, o antigo rapazote frágil e tímido, que, sem ter permanecido no seminário, chega a ganhar dinheiro em outro país, desiste de tudo, retorna a Moçambique, reaparecendo em Lourenço Marques, robusto (gordo – “que barriga enorme ele tem” (CHIZIANE, 2003, p.140), numa possível referência à sua vida fausta e sedentária, conquistada no exílio. Após quinze anos, liberto, impõe-se-lhe o desejo de retornar à terra natal e procurar por Sarnau. Gasta praticamente todo o dinheiro na viagem de volta e, em Mambone, descobre o tipo de vida que Sarnau leva em Lourenço Marques. Do encontro com Mwando, no mercado (Mafalala), antes descrito como abjeto e degradante, ela se ergue, pondo fim, não apenas à história de amor por Mwando, mas também à sua condição numa sociedade comandada por homens dos quais finalmente se liberta: a retomada crítica de toda sua conturbada trajetória de vida, que a levou da riqueza à miséria, dos casamentos à separação, do amor à solidão, põe fim aos seus questionamentos: ali, em meio a labirintos escuros, diz “não” ao amor. Porém...

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Reencontro: Compreendendo Reveses, Fechando um Ciclo Os sentimentos de Sarnau frente aos costumes de seu povo e, sobretudo, frente ao papel social da mulher, em Moçambique, são colocados em conflito com seus desejos e sentimentos e, ali, em Lourenço Marques, superam os reveses e, também, abrem-se às novas perspectivas. Se, comparados por Sarnau, Mwando, é fisicamente diferente de Nguila, conforme ela mesma afirma: É um búfalo enorme e forte como exige a nobreza de sua raça. Tem a pele bem negra, testa e nariz esbeltos, dentes branquíssimos, o que lhe confere um aspecto de espécie rara. Tem um caminhar dinâmico, dominante, sedutor. É um excelente caçador, o melhor atirador de arco e flecha [...] Nas bangas e tabernas é o primeiro a entrar e o último a sair e, quando se embriaga, é a coisa mais insuportável deste mundo. (CHIZIANE, 2003, p.40).

Mwando, ao contrário, de antes, frágil e, depois, “com uma barriga enorme” demonstra, antagonismos, com o último se “mestiçando”, pela influência do contato com o “lado superior” da colonização. Ele não tem as características de Nguila, que revela o forte domínio social imposto aos demais de sua aldeia. Porém, tem a seu favor, a intelectualidade. Desenvolve-a e usa-a, em Angola. Dessa forma, conforme lembra Glissant (1992, p.105): a relação com a terra torna-se uma questão-chave em um ambiente caracterizado por falta de raízes locais, de origens. Ou seja: alienado por sua não escolha, Mwando incorpora uma espécie de não inscrição numa história, numa cultura e num lugar vivido e percebido como não-lugar, não-história e não-cultura, já que sua ida foi provocada por um ato de traição. Por outro lado, tudo se modifica, à medida que ele incorpora o aprendizado adquirido na Missão, em Mambone. O novo contexto é absorvido pelo “Pa-

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dre Moçambique”, ao mesmo tempo em que ele se torna uma presença imprescindível aos moradores locais. Nesse caso, ele gera uma forma de sobrevivência, apesar de sua prática como religioso ser um embuste. Neste sentido, ele se reapropria do espaço, e torna-se necessário. Visto dessa forma, seu ato, em si, também, “é forma de resistência cultural”. (WALTER, 2009, p.117). Desde o início de sua aparição, na aldeia de Mambone, Mwando envolve-se com uma elite prestigiosa, branca: é ligado aos negócios do pai e também ao seminário. Expulso dali, casa-se com uma moça de boa condição financeira. Tendo de enfrentar as situações inesperadas em seu casamento monogâmico, é abandonado, mas continua submetido à lógica do poder colonial, aprende-lhe as “manhas”, torna-se um mestiço cultural. Vivendo em uma época de colonização, Mwando, que realiza o ritual de iniciação dos jovens bantos, ao mesmo tempo, participa dos negócios do pai, lida com dinheiro, e é cristão. Não reinará num clã, nos moldes da família de Nguila à que Sarnau se liga. Pelo contrário: alia-se à cultura do poder colonial, morando na Missão. De volta a Moçambique, vindo de Angola, já homem maduro, reencontra Sarnau, e a convence a recomeçar a “história de amor” e a “vida em comum”, e sai vitorioso, enfim. Interpretados como metáforas, dentro do sistema colonialista, Sarnau é uma espécie de representação de Moçambique (e, por extensão, como já lembrado antes, da própria África) que progressivamente vai se superando, ante as condições que tem de enfrentar: dividida entre o universo banto de Mambone e a urbanização colonizada de Lourenço Marques, adere à nova conjuntura social, em que ambas, apesar de tudo, coexistem e se modificam, temporal e espacialmente.

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Ela, a miniatura personificada de uma, antes, “aldeia”, cresce, se desloca, vira “Moçambique”, cujos filhos (a pequena Phati e João, por exemplo), nativos e mestiços, serão a nova “África” – de tradição que se moderniza, em meio a práticas de convivência com o Sagrado, de valores sociais e éticos, até aí, tanto banto, quanto cristão. Aos seus olhos, poligamia e monogamia se desorganizam, marcadas por frequentes oposições, entre si, naquilo que devem ser, e não o são, sempre a buscar um sentido necessário que foge ao seu entendimento. Mwando, por outro lado, vai se moldando à lógica de ideologia colonizadora, porém, integrando-se, num tempo futuro, ao sistema social a que Sarnau/Aldeia/Moçambique/ África experimenta: ainda que dominado pelo sexo masculino e sua vinculação ao poder de homens, negros ou brancos, quer na aldeia de Mambone, quer na cidade, ele é alvo das contestações de Sarnau e, portanto, da própria Mãe-África da qual ela se torna um emblema. Com isso, o reencontro do par amoroso, na verdade, dá um desfecho em favor de emancipação de Sarnau: de início, não atende ao chamado de Mwando, e sai pelos “labirintos sinuosos e escuros do mercado de Mafalala, seu último reduto de sobrevivência e de seus filhos.” (CHIZIANE, 2003, p.145). Dessa feita, tateando num escuro, ela, essa mulher que carrega a sociedade alargada, de filhos e filhas de muitas origens, adentra num “presente” ainda precário, a ser explorado, talvez, anunciando os tempos que estão por vir (no caso, a guerra pela Independência de Moçambique, que faz com que Lourenço Marques passe a ser Maputo) – “A alegria virá um dia, nós sabemos disso.” (CHIZIANE, 2003, p.128). Sua entrada “no novo tempo/lugar” não implica eliminação completa de seus antigos relacionamentos sociais: ela aceita os costumes da aldeia a qual, inclusive, ajuda a reorganizar, quando devolve os bens a Nguila. Porém, é em Lou-

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renço Marques – onde ironicamente exerce a prostituição, e adquire doenças e sofre abusos – que ela se reconstitui como “Sarnau”, desmistificando crenças pregressas. É na prostituição, ou seja, na sua degradação, no seu não ser a rainha negra (poligamia), nem a esposa de moldes brancos (monogamia), que Sarnau define o sistema de valores que consegue absorver e, assim, formula sua identidade, enfim, sem dubiedades. Por fim, ao aceitar Mwando de volta, reorienta um sistema social: de pai, mãe e filhos, quaisquer que sejam eles, e, assim, os dois se tornam aptos a receber a Moçambique que está surgindo, antes mesmo da chegada da Independência do país.

Referências Bibliográficas ALTUNA, P. Raul Ruiz de Asúa. Cultura tradicional Banto. 2. ed. Luanda: Secretariado arquidiocesano de Pastoral, 1993. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. Lisboa: Caminho, 2003. DIOGO, Rosália Estelita Gregório. Paulina Chiziane: as diversas formas de falar sobre o feminino. Revista SCRIPTA, Belo Horizonte, v.14, n.27, p.173-182, jul.-dez., 2010. GARRARD, Greg. Ecocrítica. Brasília: Editora da UnB, 2006. GLISSANT, Édouard. Caribbean discourse. Charlottesville: University Press of Virginia, 1992. ROSARIO, Lourenço. Moçambique: história, culturas, sociedades e literaturas. Belo Horizonte: Nadyaia, 2010. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4.ed. São Paulo: EdUSP, 2012. WALTER, Roland (Org.). Afro-América: diálogos literários na diáspora negra das Américas. Recife: Bagaço, 2009.

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UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) Denise Rocha

Introdução No início dos anos 1930, época na qual a elite branca, católica e baiana não conhecia a profundidade da estrutura ritualística, litúrgica e mitológica das práticas espiritualistas de matriz africana e, por isso, as temia e as discriminava, Jorge Amado (1912-2001) consegue, com a publicação do romance Jubiabá (1935), apresentar, de forma simples e didática, a importância do pai de santo homônimo para a comunidade negra de Salvador e da Bahia. A escrita da saga do guardião da memória ancestral africana, o qual renovava em sua gente, por meio da narrativa de Zumbi dos Palmares, a tradição afro-brasileira de lutas em prol da liberdade, confere ao escritor Amado um título: o de promotor literário da apresentação e da valorização sociocultural e religiosa das comunidades de descendentes de africanos da Bahia de Todos-os-Santos. Amado foi membro do Ilê Axé Opô Afonja do terreiro tradicional da nação nagô-queto, localizado no bairro de São Cristóvão, em Salvador, e tinha cargo de Obá de Xangô, isto é, de ministro do Orixá que rege a roça/terreiro. O papel decisivo de Jorge Amado na elaboração literária de estórias/histórias baseadas em fatos verídicos ou construídas por sua imaginação sobre o legado sociocultural afro na vida pluriracial da Bahia é enaltecido pelo pesquisador Fábio Lucas que no artigo A contribuição amadiana ao romance social brasileiro esclarece:

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Na visão crítica do Brasil, Jorge Amado trabalha com a contraposição histórica do branco perante o preto e oferece, como resposta positiva, o imenso estuário da miscigenação. E mitiga os diferentes jogos opositivos com a força do progresso, a astúcia do amor, a alegria de viver, a ruptura das regras e o sincretismo religioso. (LUCAS, 1997, p.108).

A Bahia, como reduto da civilização de matriz africana, é glorificada por Jorge Amado que apresenta em sua obra as celebrações sociais, culturais e espirituais dos negros e mulatos, que entrelaçadas com elementos sincréticos, revelam não somente a riqueza patrimonial humana e física do legado afro de além-mar, mas também as formas de discriminação ­vivenciadas pelos afrodescendentes em uma sociedade patriarcal, branca, católica e estratificada. No romance Jubiabá, Amado exemplifica os contrastes herdados da escravidão ainda preponderantes, nos anos 1930, na paisagem social e profissional dos moradores do ficcional Morro do Capa Negro no qual a vida: [...] é difícil e dura. Aqueles homens todos trabalhavam muito, alguns no cais, carregando e descarregando navios, ou conduzindo malas de viajantes, outros em fábricas distantes e em ofícios pobres, sapateiro, alfaiate, barbeiro. Negras vendiam arroz-doce, munguzá, sarapatel, acarajé nas ruas tortuosas da cidade [...] lavavam roupa [...] eram cozinheiras em casas dos bairros chiques. Muitos dos garotos trabalhavam também. Eram engraxates, levavam recados, vendiam jornais [...]. E não se revoltavam porque desde há muitos anos vinha sendo assim: os meninos das ruas bonitas e arborizadas iam ser médicos, advogados, engenheiros, comerciantes, homens ricos. E eles iam ser criados destes homens. Para isto é que existia o morro e os moradores do morro. [...] Raros eram os homens livres do Morro: Jubiabá, Zé Camarão. Mas ambos eram perseguidos: um por ser macumbeiro, outro por malandragem. (AMADO, 1975, p.26 e 27).

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Ao promover uma releitura do passado escravocrata e de opressão da Bahia, com ênfase na oralidade presente na tradição cultural dos folhetos sobre a saga de Zumbi dos Palmares e sobre a vida dos cangaceiros -Antonio Silvino e Lucas da Feira-, Jorge Amado destaca a voz de protagonistas anônimos e ilustres, históricos e ficcionais, que se insurgiram contra o poder instituído, e enfoca, pela primeira vez na literatura brasileira, as questões de raça e classe, sob uma perspectiva comunista. Em Jubiabá, o protagonista Antonio Balduíno (Baldo), negro órfão criado pela tia Luísa no morro do Capa Negro que teve uma vida turbulenta – moleque de rua, pedinte, lutador de boxe, compositor de samba, agricultor nas plantações de fumo, trabalhador de circo pobre, estivador e líder grevistasonhava ter sua existência imortalizada em um texto literário com estrutura de ABC, presente na literatura popular conhecida como folhetos. Charmoso amante e malandro, Baldo se projeta na paisagem portuária de Salvador, como condutor de greves, que sempre retorna ao terreiro de Jubiabá para receber conselhos e se purificar. No romance, Amado destaca paralelamente à trajetória de Baldo, a longa vida do pai de santo, Jubiabá, que era o último remanescente da geração de escravos e o patriarca de negros e mulatos. Profundo conhecedor da vida de Zumbi, o ancião, como líder dos cultos aos orixás, praticava medicina espiritual e real, por meio de aconselhamento e apoio às questões físicas e psicológicas, em rituais de descarregos, purificações e proteções. No seu terreiro, de caráter sincrético, tinha um altar com imagens de entidades e divindades africanas bem como de santos e santas celebrados no cristianismo. A filosofia de Jubiabá era explicada, de forma clara, por meio da metáfora dos olhos: o ser humano podia expressar seus sen-

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timentos e atitudes por meio do “olho da piedade” e do “olho da ruindade”. Em sua narrativa multicultural sobre a saga do negro Baldo que sempre fora apoiado pelo guia espiritual, Jubiabá, o escritor baiano aborda fatos históricos da cidade e da sociedade de Salvador em um período de repressão policial efetuada pela Delegacia de Jogos e Costumes, a partir dos anos 1920, que promovia “batidas” em terreiros de macumba ou umbanda, destruía altares ritualísticos, trajes, oferendas, instrumentos musicais e prendia líderes religiosos. A publicação do romance Jubiabá, cujo título evocava o caboclo homônimo, recebido por Severiano Manoel de Abreu (1886-1937), provocou um áspero diálogo entre o babalorixá Severiano e o escritor Amado que foi publicado em artigos na imprensa baiana (1936).

A Cultura Africana na Bahia Do golfo da Guiné – África Ocidental atlântica – ao porto da Bahia de Todos-os-Santos chegaram pessoas de diversas etnias e culturas, as quais receberam várias denominações. A partir do século XVII, elas começaram a ser chamadas de minas, e posteriormente, de negros-minas ou negros da Guiné. Aquelas oriundas da região localizada mais a oeste do golfo, que cultuavam os vodus, ligadas a ancestrais fundadores de linhagens, eram conhecidas como jêjês. Os outros grupos, os iorubás, provenientes de área mais a oeste, vinculados às religiões dos orixás, eram denominados de nagôs1 (SOUZA, 2009, p.85). Jorge 1

Popularmente, algumas pessoas de ascendência afro se declaram nagô, filhos de nagô, ou descendentes de nagô. Em Salvador, na segunda metade do século XIX, negros e crioulos de diversas etnias, que falavam o iorubá, eram conhecidos como nagôs, palavra que ficou conhecida como o idioma – o nagô.

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Amado em Jubiabá vai retratar o universo da cosmogonia nagô em terreiro do pai de santo ancião. Esse tipo de líder religioso era conhecido também como babalorixá ou babalaô. A cultura africana pode ser preservada na Bahia não somente pelo interesse dos escravos em preservar sua identidade, mas também com a autorização do Conde de Arcos, sétimo vice-rei do Brasil, o qual aprovou, no ano de 1758, as danças e cânticos ritualísticos, como forma dos negros guardarem as lembranças das raízes e para não se esquecerem a aversão recíproca que sentiam pelos adversários, os quais combatiam no continente africano (VERGER, 1981, p.25). Para justificar suas preces, louvações e pedidos por ajuda aos orixás ou proteção na sociedade branca e católica, os cativos diziam que louvavam os santos cristãos, criando uma prática religiosa sincrética: Oxalá era o Senhor do Bonfim; Oxóssi = São Jorge, Xangô = São Jerônimo, Ogum = Santo Antônio, Obaluê= São Lázaro, Omolu = São Roque, Iemanjá = Nossa Senhora da Conceição, Nanã Buruku = Santa Ana, mãe da Virgem Maria, e Oiá-Iansã = Santa Bárbara (VERGER, 1981, p.26). A casa de candomblé, conhecida como terreiro ou roça, foi originariamente o centro sociocultural e religioso de afro-descendentes, mas na contemporaneidade acolhe pessoas de cores, profissões e credos diversos. O terreiro tem diversos edifícios: uma casa é destinada à moradia das pessoas que fazem parte do candomblé; a construção principal (o barracão) é uma grande sala para danças e cerimônias públicas, e nas outras casas estão instalados os péjis, consagrados aos diversos orixás. Existe ainda um cômodo, sem janelas, mobiliado somente com uma esteira, conhecido como a camarinha, onde são feitas as iniciações de filhos ou filhas de santos. No centro do barracão são reunidos alguns recipientes que têm as

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oferendas às divindades, como a farofa amarela, a cachaça, o azeite de dênde e a acaçá (VERGER, 1981, p.45; e 71 e 72). Na oferta alimentar aos orixás nagôs está “o mito que a prescreve pelas práticas divinatórias”. Por exemplo, o ebô, milho branco cozido, oferecido a Oxalá, não tem nem sal e nem azeite de dendê “porque os mitos de Oxalá e de sua corte remetem à interdição desses temperos.” (LIMA, 1999, p.323). Na cerimônia de macumba ou candomblé, a música desempenha um papel muito importante, pois estabelece a relação entre os homens e as divindades: “Os cânticos, as danças, os gestos, as cerimônias e mitos estão inextricavelmente ligados e formam uma única realidade mítica.” (BASTIDE, 1945, p.111). A orquestra ritual tem instrumentos de percussão: tambores, denominados de atabaques, agogôs e gãs (campânulas de ferro percutidas por baquetas de metal) que apoiam as distintas fases das celebrações: orikis, evocações; orin – cantos de louvação; adura – preces; iba – saudações; e ofó – encantamentos das espécies vegetais. (BARROS, 2006, p.265 e 268). No início da cerimônia religiosa é feito para outros lugares o despacho de uma entidade conhecida como Exu: Em mitos cosmogônicos nagôs ainda hoje relatados em terreiros baianos, Exu interfere na obra do criador, criando disparidades, desequilíbrios, desarranjos, de maneira a gerar mudança e movimento (SERRA, 1999, p.295).

Os cantos e as danças, que são formas de evocar e saudar as divindades, produzem estados de transe nos filhos-de-santos, consagrados a determinado orixá. Levados para o peji (conhecido como camarinha), eles se vestem com as roupas características de sua divindade e portam seus objetos simbólicos. Voltam ao barracão e começam a dançar diante da assistência: “Xangô “pavoneia-se” majestosamente; Oxum requebra-se;

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Oxóssi corre, perseguindo a caça; Ogum guerreia; Oxalufã, enfraquecido e curvado pelo peso dos anos, arrasta-se mais do que anda, apoiado no seu “paxorô”. (VERGER, 1981, p.73). O terreiro é um espaço organizado onde acontecem: “As práticas religiosas, os rituais, os trabalhos, as obrigações, a consulta aos orixás, as atividades de cura e tratamento”. Em relação ao método terapêutico, ocorre o diálogo com o orixá no quarto de consulta (o consultório): “Para lá acorrem os que padecem de dor física, moral e psíquica. Os que padecem fome e sede de justiça. Os perseguidos da má sorte, do destino, da perdedeira na vida.” (PÓVOAS, 1999, p.216 e 218). O pai ou mãe de santo exercem diversas funções e seu “poder sacerdotal não está simplesmente na detenção do conhecimento adquirido, está também no desempenho eclesiástico dentro de um terreiro [...]. O axé do orixá foi sacramentado na cabeça/corpo do sacerdote, tornando-o um único ser. O divino não se separa do profano, apenas existem momentos de vivência diferentes”. Em relação ao significado do contato com o sagrado, o filho ou a filha de santo incorporam o orixá no momento do transe: “Ao vivenciar a divindade, todos os membros da comunidade o reverenciam.” (VALLADO, 1999, p.143 a 146). Os iniciados na categoria de ogãs, que aprendem os cantos e os ritmos (toques), não entram em transe (BARROS, 2006, p.269). São dignatários, sem funções religiosas especiais, que ajudam o terreiro de forma material e contribuem para a sua proteção. Colocados sob a invocação de um santo católico, eles constituem uma sociedade civil de apoio recíproco; alguns recebem o prestigioso título de obá no Terreiro Axé Opô Afonjá (VERGER, 1981, p.71). Jorge Amado recebeu essa denominação honrosa do terreiro tradicional da nação nagô-queto.

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No romance Jubiabá são apresentadas três situações detalhadas sobre as práticas religiosas no terreiro do pai de santo: uma cerimônia com o ogã Antonio Balduíno (Baldo), com a aparição das seguintes divindades: Xangô, Omolu, Oxóssi e Oxalá; outra celebração com a presença de um escritor de folhetos tipo ABC; um momento de consultas particulares a Jubiabá e a ida de Baldo ao terreiro para avisar seus companheiros sobre a greve. Além disso, são citados momentos de preconceito de grande ala da sociedade baiana em relação ao culto dos orixás e o aprisionamento de Jubiabá, por prática ilegal de liderança religiosa.

Perseguição ao Candomblé, à Capoeira e ao Samba na Bahia, nos anos 1920 e 1930 O pai de santo Jubiabá no romance de Jorge Amado foi vítima de repressão policial e, apesar de sua idade muito avançada, foi encarcerado. A Bahia-de-Todos-os-Santos foi palco, nos anos 1920 e 1930, de intensa perseguição religiosa realizada por membros da Delegacia de Jogos e Costumes, que controlavam os terreiros, bem como da imprensa de Salvador, a qual desenvolvia uma crítica cerrada aos ritos de candomblé, à capoeira e ao samba. A pesquisadora Ângela Luhning no artigo “Mito e realidade da perseguição policial ao candomblé entre 1920 e 1942” destaca que: “um dos mais fortes, e talvez mais surpreendentes, é que ‘uma campanha cerrada da imprensa levou a polícia a perseguir os candomblés.’” (LÜHNING, 1995-1996, p.199). O preconceito e intolerância chegaram a tal ponto, que pessoas envolvidas nas práticas de ritos de raiz africana, como umbanda, candomblé e macumba, se distanciavam dessas classificações, por medo de represálias. Alguns deles declara-

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vam ser espíritas e não serem membros do dendê, conforme esclarece Raul Lody na obra Tem Dendê, tem Axé: etnografia do dendezeiro: O estigma cultural do dendê é tão impregnado do saber, do comportamento, do jeito, do conhecimento e reconhecimento dos adeptos do Candomblé, do chamado Povo do Santo – principalmente os feitos ou iniciados, podendo se incluir também simpatizantes e aqueles que não são feitos, mas têm obrigação ou ainda Santo assentado – onde o azeite, o dendezeiro e seus muitos produtos somente atestam como é próximo e uno o ser do santo como o ser do dendê. (LODY, 1992, p.13).

Nessa ambiência de estigmatização sociopolicial em relação ao candomblé foi planejado o 2º Congresso Afro-Brasileiro, que tinha como objetivos o apelo às autoridades para legislarem em prol da liberdade religiosa da população de ancestralidade africana, bem como a criação da União das Seitas Afro-Brasileiras com clara intenção de legitimar a prática de religiões de matriz africana (ritos, benzimentos, curas, aconselhamentos etc.) e com isso tirá-las da esfera da contravenção.

O 2o Congresso Afro-Brasileiro em Salvador (1936) Uma série sobre a cultura africana da Bahia, que seria publicada em O Estado da Bahia no mês de maio de 1936, foi anunciada no dia 9 desse mês, com o título “As Macumbas Através de Interessantes Reportagens do Estado da Bahia” e o subtítulo “Jubiabá, o célebre ‘pai de santo’, ouvido por nós, faz sensacionais revelações”. Foram chamadas jornalísticas para anunciar a série de reportagens – com os babalorixás Martiniano do Bonfim, Manuel Paim, Jubiabá, Joãozinho da Goméia, e a ialorixá Aninha –, que viria a ser publicada nos meses seguintes, como forma de preparativo para o planejado

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2. Congresso Afro-Brasileiro. Tal evento estava sendo organizado pelo jornalista e etnógrafo Edison Carneiro, para ser realizado em Salvador, nos dias 11 e 19 de janeiro de 1937. Nesse momento, maio de 1936, o livro Jubiabá, de Jorge Amado, já tinha sido lançado (1935) e provocado uma reação belicosa no babalorixá homônimo que se chamava Severiano Manoel de Abreu.

Jorge Amado e Severiano Manoel de Abreu: o Conflito sobre Jubiabá (1936) No romance Jubiabá, publicado pela Editora José Olympio do Rio de Janeiro, Jorge Amado cria uma personagem literária homônima que tinha as seguintes características: o pai-de-santo era bem idoso, tinha as pernas tortas e condição econômica humilde, trazia sempre um ramo de folhas, em suas andanças pelo bairro, e resmungava palavras em nagô. Guia espiritual da comunidade do morro do Capa Negro, ele fazia rezas, espantava forças malignas, curava doenças, e aconselhava as pessoas em suas atribulações ­pessoais. Ex-escravo, que narrava sobre as raízes africanas do seu povo e sobre a vida de Zumbi dos Palmares, Jubiabá foi um pai para Antônio Balduíno, menino órfão criado pela tia, o qual se tornou um líder grevista. O aparecimento do romance Jubiabá provocou uma reação profunda em Severiano Manoel de Abreu (1886-1937), capitão do Exército, em Salvador, e guia religioso do Centro Espírita Paz, Esperança e Caridade. Ele recebia o caboclo Jubiabá e incorporou para si a denominação da entidade, de modo que acreditou ser o detentor do nome e não aceitou a licença poética de Jorge Amado. Severiano Manoel de Abreu se posicionou contra o escritor Amado, conforme o teor de sua entrevista, concedida

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ao jornal O Estado da Bahia, e publicada no dia 11 de maio de 1936, com o seguinte título “No mundo cheio de mistérios dos espíritos e ‘pais de santos’”, e dois subtítulos: 1-“Iniciando uma larga reportagem sobre espiritismo e candomblés o Estado da Bahia viu e ouviu o famoso Jubiabá, herói do último romance de Jorge Amado”; e 2- “De incrédulo a médium curador – Cruz do Cosme e seu reduto – Até entre os espíritos há melindres e vaidades – Pai de 22 filhos vivos e influência política”. O capitão Severiano residia em uma casa chique e grande, possuía fazendas e terrenos e era orgulhoso por ter ligações com membros e assessores do governo, como Martinelli Braga, oficial de gabinete do governador Juracy Magalhães. Sentia-se poderoso, pois exercia influência política no seu reduto espiritual: o Centro Espírita Paz, Esperança e Caridade, localizado na rua Cruz do Cosme, 205, renomeada de Avenida Saldanha Marinho: – Minha casa, diz ele, é freqüentada por muitas pessoas de importância. Médicos, bacharéis, negociantes e autoridades vêm aqui. Dentre os meus amigos eu conto o dr. Martinelli Braga. Eu sou amigo do governo! Nas eleições municipais dei mil e tantos votos ao dr. Americano da Costa a pedido do dr. Martinelli. Aquele é um velhinho bom e amigo dos pobres. Para estas casinhas daí do fundo, ele dispensou as plantas e vai mandar botar um chafariz. (CLAY, [s.d.], p.11).

Severiano tinha prestígio social e político e enfatizava muito sua crença no espiritismo, enquanto que negava os ritos de candomblé e de feitiçaria. Após conseguir a orientação e a autorização do doutor Martinelli, Severiano-Jubiabá permitiu que a equipe do jornal O Estado da Bahia fizesse fotografias em seu centro/terreiro e declarou:

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– Não sou feiticeiro! Exclamou aborrecido. Pedem-me às vezes consentimento para “bater”, a fim de agradar aos caboclos. Minha casa é de sessão. Curo e faço caridade com o poder que Deus me deu, com as minhas forças ocultas. Depois desta afirmativa mostra-nos todas as dependências da casa para que constatássemos a inexistência de santos e objetos de candomblé. (CLAY, [s.d.], p.11).

Ao jornalista, Severiano anunciou sua aposentadoria como guia espiritual, médium e negou a prática de curas por meio de medicamentos. Tratava-se de uma postura de defesa de atos considerados ilícitos como o da prática ilegal da medicina. Ele distanciou-se também da realização de festas ao som de atabaques. – Atualmente, concluiu “Jubiabá”, eu não faço “trabalhos”. Dou apenas sessões doutrinárias e preces. Posso garantir ao senhor, que nunca fiz curas com remédios. Troco idéias com os médicos e estes aconselham o remédio de que o doente necessita. Há pouco tempo deixei de fazer estas curas, atendendo a uma determinação do meu amigo tenente Hannequim, ordem esta que estou cumprindo. Quanto a esta história de bater, uns estudantes vieram aqui e me pediram isso. Eu não tinha material e mandei pedir uns courinhos emprestados (atabaques). Perguntei se eles queriam ver de caboclo ou de africano. Fiz a festa, eles ficaram satisfeitos e no meio destes um achou que eu era feiticeiro. (CLAY, s.d., p.13).

Severiano praticava sua crença sincrética que reunia espiritismo kardecista e candomblé de caboclo, em uma forma de união de elementos da espiritualidade indígena e outros de origem africana. Em sua residência e na sua “casa de culto de centro espírita” foram feitas fotografias, publicadas no jornal O Estado da Bahia com as seguintes legendas – “A capela de

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Santo Antonio, na sala principal do palacete de Jubiabá”; o edifício do Centro Espírita Paz Esperança e Caridade; o retrato dele sentado em sua famosa cadeira, com a legenda: “Severiano Manoel de Abreu (Jubiabá) capitão do Exército de 2ª linha e curador espírita, posando para Estado da Bahia para mostrar-se como ele verdadeiramente é” e a imagem de São Tomé, o guia espiritual de líder religioso e o de seu altar. No final do encontro, realizado em maio de 1936, o jornalista e o fotógrafo desceram o morro e tropeçaram: na ladeira com um pombo enfeitado e cheio de pipocas e azeite e mais adiante com uma galinha preta um ‘ebó’ perfeito, completíssimo, que, com certeza, não era destinado a trazer felicidade. (CLAY, [s.d.], p.14).

Severiano Manoel de Abreu foi descrito na reportagem como um “tipo forte de caboclo, estatura um pouco acima da mediana, fala mansa e de boas maneiras, 50 anos de idade há dias feitos” que tinha feudo no Cruz do Cosme e era seguido por mais de uma centena de devotos. Ele não queria ser chamado de candomblezeiro ou macumbeiro, e, sim, preferia ser nomeado como espírita, ou seja, membro de uma doutrina de origem europeia, aceita socialmente. Por ter se comparado ao Jubiabá, velho macumbeiro, pobre e de pernas tortas, personagem criada por Jorge Amado, Severiano detestou o romance, conforme falou em outra conversa concedida a João Duarte dos Diários Associados. Dias depois, em entrevista realizada na Livraria José Olýmpio, no Rio de Janeiro, Jorge Amado negaria ter se inspirado no famoso pai de santo baiano para elaborar a personagem do seu livro. O encontro foi publicado em O Estado da Bahia no dia 28 de maio de 1936, com o título “O Jubiabá do romance e o da vida real”, e o subtítulo “Não pensei no mulato Severiano, um só momento, enquanto escrevia o meu

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livro – declara o romancista Jorge Amado – Macumbeiro e baixo espiritismo – Como o homem se meteu na pele de um personagem de romance”. Jorge Amado disse: “ — Meu personagem está humilhadíssimo...”, bem como afirmou que tinha como objetivo, criar uma personagem que fosse um verdadeiro sacerdote da sua religião, bom, nobre e sereno: “Se você reconhecesse a história do mulato Severiano, haverá de compreender porque o meu personagem está tão humilhado...”. (CLAY, [s.d.], p.26). 2 Jorge Amado disse que não tinha pensado um só momento em Severiano Manoel de Abreu, pois se inspirou em vários outros pais de santo para compor a personagem Jubiabá, principalmente no babalaô Martiniano do Bonfim: É claro que estão mesclados no meu Jubiabá vários pais de santo que deram aquele tipo. O físico de um, a moral do outro, assim por diante. Não lhe nego que pensei muito numa figura de pai de santo da Bahia ao levantar o Jubiabá. Mas aquele em que pensei é uma grande figura, um homem que merece todo o respeito e já mereceu de Gilberto Freyre palavras do maior elogio. E esse pai-de-santo foi uma das primeiras pessoas a receber o meu romance. Foi ele quem me deu a tradução daqueles cânticos nagôs de macumba, daquele conceito, etc. (CLAY, [s.d.], p.26).

O escritor baiano, em seguida, acusa Severiano de tentar se aproveitar da homonímia para obter fama: “Como você vê, estão criando um romance em torno do meu romance. Boa 2 Para

convencer de que seu personagem nada tem a ver com o Jubiabá da vida real, Jorge Amado cita dois depoimentos: “... um artigo do poeta Aydano do Couto Ferraz (“Jubiabá e a poesia do mar”, publicado no “Diário de Notícias”, do Rio), onde o escritor baiano esclarece bem a diferença entre os “xarás” e uma nota no livro de Edison Carneiro, o grande estudioso das questões do negro brasileiro, que se acha no prelo: “Religiões Negras”. Edison também faz notar que muito diferem os dois sujeitos do mesmo nome, o do romance e o da vida”. (CLAY, [s.d.], p.27).

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publicidade, aliás. O pior é esse negócio do mulato Severiano estar a fazer a publicidade dele às minhas custas [...]”. (CLAY, [s.d.], p.27).

Jubiabá: Guardião da Memória Africana e o Reconhecimento da Sociedade em Transformação Militante na Juventude Comunista, Jorge Amado participa, desde o final de 1934, ativamente das atividades da Aliança Nacional Renovadora – ANL –, em uma época de formação das Frentes Populares incentivadas pelas seções partidárias, subordinadas a III Internacional Comunista. Na concepção do historiador Eric Hobsbawm na obra Era dos extremos, a proposta de uma unidade contra o General Franco da Espanha, trouxe para as fileiras comunistas a adesão de vários intelectuais que temiam a ascensão de forças partidárias de direita: prejudiciais “à liberdade intelectual que imediatamente expurgou das universidades alemãs um terço de seus professores.” (HOBSBAWM, 2005, p.151). No Brasil de Getúlio Vargas, a liberdade de opinião e de escrita não existia, inclusive obras de Jorge Amado – Jubiabá, Capitães de areia, Cacau, Suor e País do carnaval- consideradas de teor comunista, foram queimadas em Salvador, no dia 19 de novembro de 1937. No ano de 1935, que foi abalado com o frustrado golpe da ANL contra Vargas, Jorge Amado, depois do aparecimento de O país do carnaval (1931) e Cacau (1933) escreve Jubiabá e o publica pela Editora José Olympio. O pesquisador Eduardo de Assis Duarte, na obra Jorge Amado: Romance em tempo de utopia, destaca a ênfase de Amado na abordagem da negritude, da greve e da opressão religiosa na Bahia:

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Em Jubiabá, a questão da negritude aflora toda vez que se pensa o papel do narrador, já que não se trata simplesmente da fala do proletário negro. O narrador de Jubiabá, aliás, como o de toda literatura socialista, toma para si o discurso do oprimido ou que julga serem os clamores das classes oprimidas. Trata-se, pois, de uma apropriação do discurso do outro, mediatizada pela perspectiva do partido. A postura do escritor é a de vanguarda do proletariado e, como tal, fala desta classe segundo a visão que o partido expressa como correta. Apropriação implica superação, e o texto amadiano, embora representando a umbanda como uma forma de resistência cultural dos negros e mesmo denunciando a perseguição religiosa de que são vítimas, termina por enquadrar a negritude no discurso partidário, pelo qual a de terminação econômica iguala os indivíduos, independentemente de credo ou cor. (DUARTE, 1996, p.107).

Narrado em terceira pessoa, em ótica onisciente, o romance Jubiabá está dividido em três partes: “Bahia de Todos os Santos e do Pai-de-Santo Jubiabá”, “Diário de um Negro em Fuga” e “A.B.C. de Antonio Balduíno em Salvador, na Bahia de Todos-os-Santos”, em uma sociedade plurirracial e cultural, mas que marginalizava os negros e descendentes, e os ritos de cultos aos orixás, bem como oprimia e apoiava a política de perseguição aos líderes religiosos de matriz africana. Trata-se da saga de Antonio Balduíno, o Baldo, um menino sem pais, criado pela velha tia Luísa, que teve uma existência difícil: foi moleque de rua, mendicante, belo e forte boxeador, compositor de samba, trabalhador nas plantações de cacau, no circo, até chegar no porto, onde se engaja no sindicato e torna-se um líder de greves. Seu grande sonho é ser herói cantado nos folhetos tipo ABC. Em sua trajetória sente a discriminação da cor, principalmente quando ainda menino, vai viver na casa do Comendador, após a internação de sua tia

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em um hospital psiquiátrico, e apaixona-se pela jovem Lindinalva. Perseguido pela empregada portuguesa, é alvo de intrigas delas sendo espancado pelo patrão, pois fora acusado de olhar para as coxas da loura filha dele. Injustiçado e incapaz de se defender, Baldo parte para o mundo. Desde sua infância, ele conhece Jubiabá, mas tinha medo dele, porque o pai de santo era acusado por algumas pessoas de ser lobisomem. Desfeito o engano, Baldo o procurava para receber conselhos e foi iniciado na macumba para ser ogã. Jubiabá tinha carapinha branca, o corpo seco e encurvado, apoiado em um bastão, e trazia sempre um ramo de folhas que o vento balançava e resmungava palavras em nagô. Vinha pela rua falando sozinho, abençoando, arrastando a calça velha de casimira em cima da qual o camisu bordado se oferecia ao capricho do vento como uma bandeira. (AMADO, 1975, p.15).

Ele era: [...] como que o patriarca daquele grupo de negros e mulatos que morava no Morro do Capa Negro em casas de sopapo, cobertas com zinco. Quando ele falava todos os escutavam atentamente e aplaudiam com a cabeça, num respeito mutuo. Nessas noites de conversas Antonio Balduíno abandonava os companheiros de corridas e de brincadeiras e se postava a ouvir. Dava a vida por uma história, e melhor ainda se essa história fosse em versos [...] (AMADO, 1975, p.16).

Conselheiro espiritual do povo do morro, Jubiabá tinha uma cosmovisão, baseada na ancestralidade africana, que explicava a junção do mundo, da gente e das forças cósmicas. Para o pai de santo, o ser humano se revelava por meio do órgão da visão: por exibir o “olho da piedade” ou o “olho da ruindade” e mostrar sua índole com sentimentos ou atitudes que refletiam estados de compreensão, pena, misericórdia ou

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de maldade, canalhice etc. A respeito de um homem, que namorava Rosa, mas que foi espancada pelo noivo, depois dele roubar o dinheiro reservado para as núpcias, Jubiabá comentou que o patife tinha morrido de “[...] morte feia. Nele o olho da piedade vazou. Ficou só o da ruindade. Quando ele morreu o olho da piedade abriu de novo.” Repetiu: O olho da piedade vazou. Ficou só o olho da ruindade [...]. — Ninguém deve fechar o olho da piedade. É ruim fechar olho da piedade... Não traz coisa boa. Disse em nagô e quando Jubiabá falava nagô os negros ficavam trêmulos: — Ôjú `anun fó ti ika, li ôku [...]. Antonio Balduino ouvia e aprendia. (AMADO, 1975, p.22).

Dignatário das tradições de matriz africana, o ancião cultuava os orixás e possuía uma pequena e bonita casa no centro no Morro do Capa Negro que tinha um grande terreiro na frente e um quintal amplo, no fundo. Por causa de suas atividades de macumba, o velho senhor tinha sido vítima das forças de repressão policial, “Uma noite tinham metido Jubiabá na chave, o pai-de-santo passara a noite lá e tinham levado Exu.” (AMADO, 1975, p.79). A residência de Jubiabá tinha uma sala bem espaçosa, guarnecida com uma mesa composta de um banco de cada lado e com uma cadeira espreguiçadeira, virada para a porta do quarto de dormir do pai de santo: Nas paredes retratos inúmeros emoldurados em conchas brancas e rosas, mostravam parentes e amigos do pai-de-santo. No nicho, um orixá negro confraternizava o santo salvando um navio de um naufrágio. Porém o ídolo era muito mais bonito, pois era uma negra de belo

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corpo, segurando com uma das mãos o seio punjante e bem feito, num gesto de oferecimento. E era Iansã, deusa das águas, que o homem branco chama de Santa Bárbara. (AMADO, 1975, p.84).

A roça espiritual dele, que era frequentada por pessoas humildes e por “gente rica, doutores de anel, ricaços de automóvel”, tinha um altar católico de dimensão sincrética: Oxóssi era São Jorge; Xangô, São Jerônimo; Omolu, São Roque e Oxalá, o Senhor do Bonfim, que é o mais milagroso dos santos da cidade negra da Bahia de Todos os Santos e do pai-de-santo Jubiabá (AMADO, 1975, p.78).

Nas cerimônias havia um rito: o babalorixá entrava, era conduzido por um participante até sua cadeira, onde alguns o beijavam na mão. Havia bancos ao redor da mesa para as visitas em busca de cura física, emocional e de aconselhamentos. No fundo da sala de barro batido tocava uma orquestra; os ogãs, os “sócios do candomblé”, ficavam sentados em quadrado no meio do cômodo, e ao redor deles, giravam as feitas, como eram conhecidas as sacerdotisas, que podiam receber o santo. A assistência, que se reunia em volta da sala, encostada na parede, era formada por brancos, negros e mulatos e “negras gordas, vestidas com anáguas e camisas decotadas e colares no pescoço”. Em dias de cerimônias, algumas negras vendiam acarajé e abará na frente do terreiro e se ouviam sons de atabaque, chocalho, cabaça e agogô. Certa noite, apareceram o ogã Baldo, sua namorada Joana, seu amigo Gordo, entre outras pessoas, que assistiram o início do rito com o despacho de Exu para bem longe, a fim de evitar a perturbação no desenvolvimento da festa. Uma das mulheres recebeu o santo e foi levada para a camarinha, mas como não era iniciada na casa, o rito não se completou até que uma moça local, escolhida pela divindade,

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pôde entrar no quarto com as sacerdotisas. Ao retornar com as roupas do Orixalá Xangô, o deus do raio e do trovão – vestido branco e contas da mesma cor salpicada de vermelho, com um bastãozinho na mão – a cerimônia pôde começar: A mãe do terreiro puxou o cântico saudando o santo: — Edurô dêmin lonan ê yê! A assistência cantou em coro: — A umbó k’ó wá jô! E a mãe do terreiro estava dizendo no seu cântico nagô: — Abram alas para nós, que viemos dançar (AMADO, 1975, p.75).

Os participantes reverenciavam o orixá, pondo as palmas das mãos voltadas para ele e os braços colocados em forma de ângulos agudos, e as feitas rodavam em torno dos ogãs. No meio deles estava Jubiabá que foi saudado por Xangô: “O santo reverenciava curvando-se três vezes diante da pessoa, depois a abraçava, apertando-lhe os ombros, e punha cara ora de um lado ora de outro da do reverenciado”. Todos gritavam: “Okê! Okê!”: A mãe do terreiro cantava agora: — Iya ri dé gbê ô — Afi dé si ómón lôwô — Afi ilé ké si ómón lérum E ela estava dizendo que: — A mãe se enfeita de jóias. — Enfeita de contas o pescoço dos filhos. — E põe novas contas no pescoço dos filhos. E os ogãs e a assistência faziam o coro pronunciando uma onomatopéia que indicava o ruído das contas “que estavam todas as trincar”: — Ômiro wónrón wónrón wónrón ômirô. (AMADO, 1975, p.76).

Joana, a namorada de Baldo, foi escolhida por uma divindade para a incorporar. Apareceu vestida como Omolu, a deusa da bexiga, trajando roupa multicolor, com predomi-

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nância do vermelho vivo, e um pano branco amarrados nos peitos. Sensual reverenciou Baldo e outros. Excitadas, as pessoas queriam dançar e cantavam em coro: “— Êolô biri ô b’ajá gbá kó a péhindá e estavam dizendo que ‘o cachorro quando anda mostra o rabo’”. Outro orixá, Oxóssi, o deus da caça, surgiu, vestido de branco, verde e um pouco de vermelho e com um arco e flecha, pendurado na lateral do cinto, e portando um capacete de metal de casco de pano verde. A assistência estava em quase êxtase, as mulheres batiam os pés descalços na terra batida e requebravam, em compasso ritualístico: “Havia quem apertasse os lábios e mãos tremiam, corpos tremiam no delírio da dança sagrada”. E o maior dos orixás, Oxalá, que representava pessoas diferentes – Oxodian, o moço, e Oxulafá, o velho –, surgiu e escolheu a moça Maria dos Reis. Com traje branco e apoiado em um bordão com lantejoulas, ele foi reverenciado pelo cântico da mãe do terreiro: — Ê inun ójá l’a ô jô, inun li a ô lo [— O povo da feira que se prepare. Vamos invadí-la. E o coro respondia: — Êrô ójá é pará món, ê inun ójá li a ô lô. [— Povaréu, cuidado, entraremos na feira.]. (AMADO, 1975, p.78).

A jovem Maria dos Reis caiu, sacudindo o corpo, “espumando pela boca e pelo sexo” e a cerimônia chegou ao clímax: A assistência dançava freneticamente ao som dos atabaques, agogôs, cabaças e chocalhos, junto com os quatro orixás que estavam entre as feitas e os ogãs: “Oxossi, o deus da caca, Xangô, deus do raio e do trovão, Omolú, deusa da bexiga, e Oxalá, o maior de todos, que se espojava no chão.” (AMADO, 1975, p.78). O pai de santo Jubiabá atendia no quarto de consultas pessoas que necessitavam de ajuda, de consolo, de esperanças, como um espanhol de queixo inchado e amarrado por um pano que falou: – Pai Jubiabá, yo estou com um dente danado

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pra doer, Caramba! Não me deixa trabajar, nem hacer nada. Caramba! Já gastei um dinheirão com o dentista e nada... Não me resta nada a hacer! O guia medicou: — Bote chá de malva e reze assim: São Nicodemus, sarai esse dente! Nicodemus, sarai esse dente! sarai esse dente! esse dente! dente! Completou: -Vosmecê faz a oração na praia. Escreve na areia e vai apagando de cada vez uma palavra, não sabe? Depois vai pra casa e bota o chá. Mas sem a oração não presta. (AMADO, 1975, p.84).

Outro visitante pediu por um despacho e foi conduzido por Jubiabá no quarto. No dia seguinte apareceu um feitiço forte, farinha misturada com azeite-de-dendê, quatro-mil réis em pratas de dez tostões, dois vinténs de cobre e um urubu novinho ainda vivo, na porta de Henrique Padeiro que pegou uma doença e morreu dela tempos após. (AMADO, 1975, p.85).

Desesperada, uma mulher relata: — Aquela sem-vergonha da Marta tomou meu homem. Eu quero que ele venha de novo pra casa. — A negra estava revoltada. — Eu tenho filhos, ela não tem... — Você arranje uns cabelos dela e traga que eu faço tudo — respondeu Jubiabá. (AMADO, 1975, p.85).

Certa vez, Baldo que estava na expectativa de seduzir Maria dos Reis, uma jovem feita do terreiro que recebia santo, encontrou um soldado, noivo dela, no terreiro de Jubiabá, com pedido de ajuda para reconquistar a moça. O conselheiro ordenou os elementos necessários para se fazer um despacho: “Só trazendo uns cabelos de sovacos dela e uma ceroula sua.

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Eu faço que ela nunca mais largue você [...] Fica amarrada como cachorro [...]” (AMADO, 1975, p.85). Em conversa com Baldo, o guia percebeu que ele desejava a moça noiva, tentou dissuadi-lo do intento imoral, mas nada conseguiu. Pai Jubiabá, que, às vezes, trajava um lindo camisu longo até o chão, bordado no peito, atendeu a muitas outras pessoas que queriam resolver seus problemas e umas foram rezadas com ramos de mastruço. Na madrugada seguinte, a cidade de Salvador se encheu de “coisas feitas que entulhavam as ruas e das quais os transeuntes se afastavam receosos.” (AMADO, 1975, p.85).

O Final do Processo de Aprendizagem de Antonio Balduíno Antonio Balduíno, depois de receber a incumbência de Lindinalva para criar o filho dela, Gustavinho, decidiu mudar de vida. Começou a trabalhar no porto, como estivador na área de embarque e desembarque de mercadorias. No sindicato tomou consciência da situação de exploração que vivia, em uma sociedade imersa nas engrenagens do capitalismo internacional e principiou uma luta em prol dos direitos humanistas e trabalhistas. Ao som dos atabaques e da macumba de Jubiabá, os quais pareciam ser “sons guerreiros, como sons de libertação”, Baldo caminha pelas ruas de Salvador e vê no céu claro uma estrela brilhante que acredita ser Zumbi. Alegra-se, pois aquele dia de greve dos trabalhadores do porto, dos padeiros, dos operários das oficinas de força e de luz, da companhia telefônica e dos condutores de bondes, tinha sido um dos mais bonitos de sua vida, inclusive o sindicato dos estudantes de direito estava solidário com eles. Convicto sobre o motivo de sua luta, o jovem reflete e: “não compreende por que ­Jubiabá

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ainda não lhe ensinara a greve, Jubiabá que sabia tudo. Zumbi dos Palmares, que é o planeta Vênus, pisca para ele do céu”. (AMADO, 1975, p.223). Corre até o terreiro para chamar o Gordo, o Joaquim, o Zé Camarão e o próprio pai de santo. Excitado, Baldo invade, profana a cerimônia e interrompe o despacho de Exu, que não quer partir, e, sim, ser reverenciado. Tal fato inédito assusta os membros do rito e a assistência, mas Baldo explica, em alto e bom som, que elas são vítimas de preconceito e repressão. Recorda-se do aprisionamento de Jubiabá: Meu povo, vocês não sabem nada ... Eu tou pensando na minha cabeça que vocês não sabe nada ...Vocês precisam ver a greve, ir para a greve. Negro faz a greve, não é mais escravo. Que adianta negro rezar, negro vir cantar para Oxóssi? Os ricos manda fechar a festa de Oxóssi. Uma vez os policiais fecharam a festa de Oxalá, quando ele era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi pra cadeia. Vocês se lembram sim. O que é que negro pode fazer? Negro não pode fazer nada, nem dançar para santo. Pois vocês não sabem de nada. Negro faz greve, para tudo, para guindastes, para bonde, cadê luz? Só tem as estrelas. Negro é a luz, é os bondes. Negro e branco pobre, tudo é escravo, mas tem tudo na mão. E só não querer, não é mais escravo. Meu povo, vamos pra greve que a greve é como um colar. Tudo junto é mesmo bonito. Cai uma conta, as outras caem também. Gente, vamos lá. (AMADO, 1975, p.223 e 224).

Baldo acredita ser um enviado para abrir a consciência dos oprimidos, no trabalho, na religião e na vida. Por isso, ele apela para a participação direta ou de apoio a uma greve que poderá abrir outros caminhos para a justiça e igualdade racial e social. O ancião Jubiabá, entretanto, não compreende esse modo de pensar e conclui: “—Exu pegou ele [...]” (AMADO, 1975, p.224).

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Em sua sabedoria ancestral, o pai de santo, posteriormente, começa a entender a sociedade em renovação: De um lado, em busca de melhores condições de vida pra todos, e, de outro, o início de aceitação das religiões africanas pela elite. Tal fato estava evidenciado nas visitas de ricos, brancos e estrangeiros em seu terreiro e no reconhecimento, principalmente do poder da etnobotânica de raiz afro na cura de enfermidades físicas. O reencontro de pai e filho, de líder religioso e ogã, ocorre quando: Antonio Balduíno vai para a casa de Jubiabá. Agora olha o pai-de-santo de igual. E lhe diz que descobriu o que os ABC ensinavam, que achou o caminho certo. Os ricos tinham secado o olho da piedade. Mas eles podem na hora que quiser secar o olho da ruindade. E Jubiabá, o feiticeiro, se inclina diante dele como se ele fosse Oxolufã, Oxalá velho, o maior dos santos. (AMADO, 1975, p.245).

Com essa demonstração de reconhecimento perante o equilíbrio demonstrado por Baldo, que era pai adotivo de Gustavinho, filho de Lindinalva e líder político por melhores condições de vida para todos, negros e brancos, pobres e ricos, e católicos e gente da macumba, Jubiabá conclui seu processo de educação de vida do menino órfão, criado pela tia Luísa. O ciclo se fecha, o pai de santo tem um sucessor de forma diferente, um ogã politizado que se preocupa com o bem-estar dos oprimidos.

Conclusão No romance Jubiabá, publicado no ano de 1935, época de intensa repressão social e policial à liderança religiosa de matriz africana, Jorge Amado humaniza o pai de santo Jubiabá, ao revelar o importante papel do guia espiritual e cul-

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tural da população negra e mulata, cercada por preconceitos, devido a desconhecimento de seus ritos por grande parte da população branca e católica soteropolitana. Amado se arrisca perante a elite por se apresentar como um iniciado nas práticas cerimonialistas afro, descritas com detalhes no romance que apresenta uma faceta didática: a de explicar a dimensão da cosmogonia nagô; o significado das divindades, seus arquétipos, danças e apresentação (vestimentas, acessórios e cores); os ritos; os distintos cânticos de evocação, saudação e de reverência aos orixás; a ambiência dos espaços físicos e sagrados do terreiro, da orquestra ritual e seus instrumentos, das danças, dos gestos, dos transes, dos recipientes das oferendas, das comidas para a assistência e demais participantes, das ervas e do sincretismo. O escritor baiano enfatiza ainda o poder transformador do pai de santo, Jubiabá, que exerce o papel de conselheiro daqueles que o consultam, em busca de amparo espiritual para as atribulações, com atendimento universal, independentemente da cor, credo, profissão e classe social. Amado, conforme declarou em uma entrevista publicada em O Estado da Bahia, no dia 28 de maio de 1936, com o título “O Jubiabá do romance e o da vida real”, reuniu na personagem ficcional aspectos e formas de celebração e de rituais de líderes religiosos que conhecia. Por isso, o pai de santo criado por ele pode elaborar facetas de magia branca e preta. No romance Jubiabá, Jorge Amado aborda as questões raciais vinculadas às questões sociais e reafirma pelo seu narrador que a pobreza está presente não somente na vida dos negros e grevistas, mas também na dos brancos: A greve é dos condutores de bondes, dos operários das oficinas de força e luz, da companhia telefônica. Tem até muito espanhol, entre eles, muito branco mais alvo

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que aquele. Mas todo pobre agora já virou negro, é o que explica Jubiabá. (AMADO, 1975, p.217).

A presença da personagem ficcional, o pai de santo Jubiabá, guardião da memória afro, na vida da comunidade do Morro do Capa Negro, em Salvador, se faz presente não somente nas práticas religiosas e terapêuticas, na participação no cotidiano do morro, como no velório do estivador morto por causa do guindaste etc., mas também na afirmação da identidade africana, demonstrada nas suas frequentes narrativas da saga de Zumbi dos Palmares. Na trajetória tumultuada do protagonista Antonio Balduíno – de órfão pobre, a estivador e líder grevista, de poder reconhecido – nota-se a participação constante do guia religioso em sua vida: em relação à Luzia, tia-mãe de Baldo, e no benzimento de dores de cabeça dela; no reconhecimento da patologia mental da velha senhora; na internação em hospício e nas visitas com o menino até o enterro dela, de um lado. De outro, percebe-se o profundo vínculo afetivo e ­espiritualizado estabelecido com o rapaz, o qual educa para ser ogã; o orienta para reforçar sua identidade africana e para se mirar na saga de Zumbi e o consola depois de ter reencontrado sua ­amada como prostituta decadente. Jubiabá não compreende a ­atitude de Baldo quando adulto e líder grevista: a invasão desrespeitosa a uma cerimônia religiosa para falar de greve aos seus companheiros. No entanto, mais tarde, o guia entende a dimensão do amadurecimento psicológico e social de Baldo que compreendeu a dimensão da metáfora visual (o “olho da piedade” e o “olho da ruindade”) e do poder da luta para todos. O romance Jubiabá teve repercussão internacional, e foi, no ano de 1946, objeto de leitura apaixonada do francês Pierre Edouard Leopold Verger, que chegou em Salvador, onde encantou-se com a gente e a cidade e interessou-se pela

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sua história e sua cultura. Entre 1949 a 1979, ele fez diversas viagens entre a Bahia e a costa ocidental da África, principalmente Daomé (atual Benin) e Nigéria, berços da grande maioria de africanos que vieram para o Brasil. Iniciado nas práticas do candomblé, Verger se tornou ogã no Opô Afonjá da Mãe Senhora, em Salvador, e no Opô Aganju de Balbino, em Lauro de Freitas (Bahia). Em Daomé, por estudar as artes adivinhatórias de Ifá recebeu de seu mestre Oluwwo o nome de Fatumbo: “Aquele que nasceu de novo (pela graça de) Ifá”. Foi iniciado como babalaô, e teve acesso ao patrimônio cultural, à mitologia, à botânica terapêutica, e aos ritos de possessão dos iorubás. (VERGER, 1981, p.294 e 5). As experiências de Pierre Fatumbi Verger foram escritas em obras traduzidas para o português, que são fonte de pesquisa para interessados e estudiosos de religiões africanas e das obras de Jorge Amado.

Referências Bibliográficas AMADO, Jorge. Jubiabá. Obra de Jorge Amado. Rio de Janeiro: Martins, 1975. v. 4. BARROS, José Flávio P.de. Mito, memória e história: A música sacra de Xangô no Brasil. In: CHAVES, Rita; SECCO, Carmen; MACEDO, Tania (Orgs.). Brasil/África: como se o mar fosse mentira. São Paulo: EDUNESP; Luanda; Angola: Chá de Caxinde, 2006. p.263-282. BASTIDE Roger. Imagens do Nordeste místico em branco e preto. Rio de Janeiro: Empresa Gráfica O Cruzeiro, 1945. CLAY, Vinicius. O Negro em O Estado da Bahia: de 09 de maio de 1936 a 25 de janeiro de 1938. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Comunicação. Departamento de Jornalismo, s.d. Disponível em: apud . Acesso em: 7 jul. 2012. DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal, RN: UFRN, 1996. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. LIMA, Vivaldo da Costa. As dietas africanas no sistema alimentar brasileiro. In: CAROSO, Carlos; BACELAR, Jeferson (Orgs.). Faces da tradição afro-brasileiro: religiosidade, sin­ cretismo, anti-sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. Rio de Janeiro: CEAO, 1999. p.319-325. LODY, Raul Lody. Tem dendê, tem axé: etnografia do dendezeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 1992. LUCAS, Fábio. A contribuição amadiana ao romance social brasileiro. In: Jorge Amado. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Pancron, 1997. p.98-119. LÜHNING, Angela. Mito e realidade da perseguição policial ao candomblé baiano entre 1920 e 1942. Revista USP, Dossiê Povo Negro – 300 anos, n. 28, p.195-220, dez. 1995- fev. 1996. PÓVOAS, Ruy do Carmo. Dentro do quarto. In: CAROSO, Carlos; BACELAR, Jeferson (Orgs.). Faces da tradição afro-brasileiro. Rio de Janeiro: CEAO, 1999. p.213-137. SERRA, Ordep.A etnobotânica do candomblé nagô da Bahia: Cosmologia e estrutura básica do arranjo taxonômico. O modelo da liturgia. In: CARDOSO, Carlos; BACELAR, Jeferson (Orgs.). Faces da tradição afro-brasileiro. Rio de Janeiro: CEAO, 1999. p.289-302 SEVERIANO MANOEL DE ABREU. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2012.

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SOUZA, Marina de Mello. África e Brasil africano. 2. ed. São Paulo: Ática, 2009. VALLADO, Armando. O sacerdote em face da renovação do candomblé. In: CAROSO, Carlos; BACELAR, Jeferson (Orgs.). Faces da tradição afro-brasileiro. Rio de Janeiro: CEAO, 1999. p.140-147. VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo. Tradução de Maria Aparecida da Nóbrega. São Paulo: Corrupio, 1981.

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001)

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OS RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS NO CONTO “QUANDO O MALANDRO VACILA”, DE MÁRCIO BARBOSA1 Fausto Antonio

A tópica principal da coletânea Cadernos Negros2 inaugurada no ano de 1978, diz respeito ao processo criativo de construção de personagens, histórias, textos literários, teorias e poemas preocupados com a inclusão do negro no enunciado e na enunciação. No transcorrer dos seus 36 anos de existência, a Série Cadernos Negros produziu muitos textos nos quais o negro é, de fato, sujeito e criador de uma cosmovisão transfiguradora dos limites previamente estabelecidos pelo racismo à brasileira. A representação do negro nesta coletânea é questão nodal e não se limita à linguagem estritamente literária. No conto “Quando o malandro vacila”, por exemplo, há transbordamentos e relações encruzilhadas com os recursos, entre tantos outros, jornalísticos e cinematográficos. Assim, visando à leitura e à discussão de um texto literário que ofereça recursos cinematográficos como parte integrada da narrativa e, do mesmo modo, apresente personagens negros com história e deslocados dos valores sociais ou das profissões de prestígio, passaremos, agora, a uma análise de “Quando o malandro vacila”, conto publicado pela série Cadernos Negros, de autoria do escritor Márcio Barbosa (1987). Antes, é fundamental destacarmos que personagens negros com história, problemáticas, com uma cosmogonia e referen1 Cadernos Negros é uma coletânea de autores negros, que tem por objetivo publicar anualmente contos, nos anos ímpares, e poemas, no anos pares. Site: www. quilombhoje.com.br. E-mail: [email protected] 2 Há contos e poemas na série Cadernos Negros referenciados na tradição dos orixás, no rap, repente, capoeira, samba e inúmeras manifestações da diáspora negra e igualmente referenciados na intertextualidade com a tradição literária, com os meios de comunicação e com a cultura de massa.

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ciados no seu grupo étnico-racial, é questão nuclear para a efetiva inclusão do negro nos espaços sociais e ficcionais, o que justifica a crítica à mera inclusão alicerçada apenas nas profissões de prestígio socialmente falando e, no entanto, sem densidade humana e ficcional. Para incluir personagens negros, jovens e do universo das favelas, Márcio Barbosa valeu-se da oralidade e de uma técnica de roteiro que pontua e vincula os meandros internos da narrativa (enredo e história) com os ganchos externos soprados pelo histórico-social, considerando a crítica feita acima no que concerne às densidades humanas e ficcionais. “Quando o malandro vacila” traz, subjacente à linguagem oral, uma expressiva técnica de roteiro cinematográfico. As chamadas que aparecem a título de referência para o leitor, antecedendo a cada um dos 34 blocos que compõem a história, lembram também as manchetes jornalísticas. A partir desse suporte, cada fragmento do conto de Barbosa (1987) é iniciado por uma frase informativa, como por exemplo: “De como ele quase deixou a pretinha” (p.85); “Aí, otário, segura...” (p.85); “Eu avisei você p’ra largar a Kizzy, otário” (p.85) e “Que está acontecendo, preto?” (p.88). Destinam-se estas frases, como chamadas de texto jornalístico, manchetes, à unificação do discurso fragmentado da narrativa e/ou orientar o leitor e, ao mesmo tempo, resumir a ideia de cada um dos episódios que compõe, na íntegra, o conto. Os recursos de roteiro e manchete jornalística fundam uma gramática textual através da qual os personagens Kizzy e William trafegam pela oralidade e pelos recursos visuais. Há dois tempos no transcorrer do conto. Um deles é o tempo cinematográfico, dado pelas marcas rápidas sintetizadas nos títulos oralizados: “Certo, Preta. Então eu vou me adiantar”. (BARBOSA,1987 , p.88). Além disso, no corpo dos

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34 blocos que estruturam o conto, existe o tempo da narrativa, marcado pela escrita e, portanto, sujeito à lógica dessa modalidade. No tocante às chamadas, há um pronto manuseio de suas funções. Esse recurso é ideal para um roteiro jornalístico ou cinematográfico, textos que se utilizam desses suportes para operar ou facilitar a comunicação. O exemplo a seguir é didático, essencialmente informativo e evidencia bem a realidade a que estamos nos referindo: “Era um carro de polícia”. (BARBOSA, 1987, p.91). O registro rápido dos acontecimentos feito por enquadramentos é a gramática oral e visual de “Quando o malandro vacila”, mas é apenas uma parte dessa construção textual. Em contrapartida, a escrita, nesse conto marcado pela oralidade cinematográfica das chamadas, transita numa outra dimensão temporal. O corpo do texto é feito de discurso indireto, a rigor, o tempo é mais lento. É possível entrever esse descompasso temporal no fragmento inicial do conto e na chamada que abre o bloco seguinte: ‘De como ele quase deixou a pretinha’ Tudo parecia irreal. O exagerado silêncio noturno, as mortiças luzes amareladas despejando-se violentamente dos postes, a sensação da pele de Kyzzy muito forte em suas mãos. E ele teve a impressão de que nunca tomaria o ônibus para voltar p’rá casa. Mesmo aquele Volkswagen todo estourado, pintado num brilhante azul de ofuscar os olhos parecia trazer a morte subindo a rua em sua direção. E ele estava certo. O carro trazia Mãezinha, o branco da favela, que parou ao seu lado com um revolver calibre 38 na mão: ‘Ai, otário, segura [...]’ (BARBOSA, 1987, p.85)

O arquivamento da história tem duas sequências, todas fortemente marcadas por uma dimensão cênica de um roteiro acoplado à narrativa. É assim que se dão, intermediadas pelos

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recursos cinematográficos, as aproximações das linguagens escritas e orais nas quais a condição de vida do personagem negro está inserida do começo ao fim. Como ponto de partida, no bloco denominado “De como ele quase deixou a pretinha”, o espaço e os objetos são definidos como um conjunto indissociável dos homens, do próprio espaço, do tempo e das ações. Desse modo, a oralidade, conforme expressa a frase gancho “aí, otário, segura...”, introduz o desfecho e o início de outra sequência ou plano no qual emergem, mais uma vez, os elementos cinematográficos e os verdadeiros atores do conto, vistos na sua história conjunta: “Aí, otário, segura...”, gritou Mãezinha e jogou cinco vezes. Cinco tiros varando seu peito com uma dor insuportável causando-lhe uma infinita expressão de terror. E seu rosto estava cheio deste horroroso medo quando acordou de repente e Kizzy entrando na sala surpreendeu-o. “Que foi, William?”, ela perguntou, assustada. (BARBOSA, 1987, p.85).

Cresce, no recurso fílmico, uma maneira de contar a história. Nesse caso, para que o circuito cinematográfico se complete, é preciso que haja algum tipo de adequação entre suas significações e o modo de apresentação ou de chamada que, num jogo de tensão e de distensão, é explicado ou esvaziado do seu conteúdo final quando em oposição ao nexo oral, “Aí, segura, otário”, temos a informação espacial: “Ele respirou aliviado ao ver que ainda estava na casa da Preta e que tudo não passava de um sonho”. No caso vertente, o que se busca, a bem da história e da verossimilhança, é uma caracterização precisa e num plano extrafísico, no sonho, do espaço em que os cortes e as sobreposições se alinham num campo de imagens, sons e palavras. Campo, em outros termos, do esboço fílmico, do roteiro.

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A construção da coerência interna da narrativa está na base das chamadas e da caracterização espacial e física do desenvolvimento da trama. Entram, nesse mosaico, os traços de Kizzy: Os castanhos olhos rasgados tinham uma turbulência devastadora. Mas o rosto de pele escura brilhante era suavemente pequeno e redondo encimado pelo cabelo trançado na frente e adornado lateralmente com tranças de canecalon. (BARBOSA, 1987, p.86).

Entram também as características dos objetos: “Sozinho outra vez, William inclinou-se para o relógio. Havia nos números uma estranha coloração avermelhada”. (1987,p.86). Da mesma maneira e a partir do mesmo ponto de partida, levanta-se a questão dos recortes espaciais, propondo o debate do histórico-social. Podemos dizer que um relato, um roteiro cinematográfico acoplado à narrativa, é verossímil quando se ajusta à realidade e ao desenvolvimento da própria história. Os traçados fílmicos contam, tecem, constituem-se em argumentos e consubstanciam um trajeto. Os esboços fílmicos se consolidam em planos que se sucedem, fecham-se e abrem-se a novos blocos de uma história que, cinematograficamente, se desenvolve. Decorre daí o possível, o verossímil. Ele se dá, então, na relação do texto com as manchetes e com o sentido de complementos, de contrapartes que se procuram. O humano, os personagens aparecem da forma-conteúdo que integra a chamada inicial: “Que está acontecendo, Preto”??? “Duas vezes William tivera o mesmo sonho e estava preocupado, pois dias antes Mãezinha havia mandado lhe dizer que se ele não se afastasse de Kizzy iria morrer” “Revelou isto à namorada e ela ficou espantada ante o atrevimento do branco. Conhecia – o pouco. Lembrava-se de tê-lo visto em diversos bailes do Chic Show no Palmeiras.” (BARBOSA, 1987, p.87).

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As manchetes dão as divisões e os sentidos para cada bloco da narrativa. Mas há manchetes que são ilustrativas e/ ou explicativas da história num sentido geral. É o caso da chamada intitulada “Eu avisei você p’rá largar a Kizzy, otário”. A informação revela a história contida nos dois blocos, isto é, aquele imediato que a manchete sintetiza e nos outros pelos quais a história se torna realidade empírica ao revelar, nos embates entre dois oponentes, o eixo central da trama. Há um recurso que pressupõe avanços e retomadas do fio narrativo. Impõe-se a necessidade de, revisitando o lugar, ou melhor, o problema expresso pelas marcas enunciadas pelas manchetes, pelos recortes que modelam os episódios, encontrar a história e os seus novos significados. O texto pretende, literariamente, oferecer uma discussão sobre o tempo presente e sobre o lugar do autor e dos personagens negros. Avultam, nessa saga inventiva e identitária, o uso das frases telegráficas e a força da oralidade. No entanto, para que se produza o cruzamento entre os planos narrativos e a relação de semelhança entre as partes e a história em si, é preciso que haja frases nominais carregadas do máximo de significado. É o caso do “Não” e das frases de cunho popular, verbais, onde Barbosa (1987) segue enfatizando o tempo presente, a linguagem de um determinado grupo étnico-racial e o período histórico: “Não” (p.88). “Certo, Preta. Então eu vou me adiantar”, (p.88) e “puxar a turbina” (p.89). O espaço não existe por si mesmo, ele só vale como quadro da vida de William e Kizzy. O sonho, a sua relação efetiva com a realidade de William, aparece na seleção exibida pelas chamadas intituladas: “Jogar brasa”, “Então, mano, se liga no movimento” e ‘Todos os Pretos são parecidos”. Desse modo, a escrita e a vida ficam submetidas a uma lógica do enunciado e da enunciação e, igualmente, pela maneira de contar a história

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e de instituir personagens, de criar um ser linguagem (ou um ser da linguagem) comprometido com a negrura. É o que sugere o fragmento nomeado de “Todos os Pretos são parecidos”: [...] dissera-lhe uma vez um patrão branco, segundos antes de William arrebentar-lhe a boca. E pensou que eles achavam aquilo mesmo. Pretos seriam apenas rostos idênticos sem personalidade, sem problemas, sem nada por dentro. Mas ali ele via nitidamente que não era isto. Os patrícios não eram pessoas parecidas. Eram a mesma pessoa dividida. A mesma pessoa que por alguma cisão, alguma ruptura ocorrida em sua vida, estava assim eccionada, perdera a unidade, procurava completar-se. (BARBOSA, 1987, p.90).

O texto de Márcio Barbosa reflete, muito especialmente, sobre o jogo de linguagem e o racismo à brasileira. O jogo de linguagem é o valor cinematográfico sobre o qual o conto se constrói, dilatando a fronteira entre oralidade e escrita. As manchetes, as chamadas, em destaque no início de cada episódio, nesse conto desmontável, são vistas como metonímia do processo em que se inclui a releitura da figura do negro. Numa trilha recheada da geografia e da vivência dos próprios personagens, a narrativa avança sua ação recolhendo, no traçado de William e Kizzy, o espaço da cidade de São Paulo. No enquadramento, no qual “William subiu e desceu ladeiras”, saltam aos olhos os nomes, os planos espaciais que revelam com intimidade os cruzamentos, as vielas, as casas e o bairro. No escuro, os obstáculos são vencidos por uma câmera que revela o trajeto: Mais à frente havia uma viela estreita e sem iluminação... De um lado e de outro as paredes das residências erguiam-se assustadoras. Mal conseguia enxergar o chão, mas sabia que existia uma ladeira (BARBOSA, 1987, p.91).

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Nos fragmentos “Ouviu passos atrás de si” e “Mulher de verdade” e “Ela sorriu”, o autor recolhe, nesse itinerário, os sentidos com os quais as falas ganham o significado banal da quinta dimensão do espaço, o cotidiano no qual os homens e suas relações são o centro. O espaço banal pode ser percebido, com toda a sua força, pelo vigor descritivo que diz muito da localidade e mais ainda da localização dos personagens. Os lugares estão, portanto, entranhados nos homens e na história. Há uma rigorosa inseparabilidade de pessoa e ambiente. A inseparabilidade no caso em questão não é um valor determinista, mas um dado visceral da condição humana e do universo de vivência dos personagens negros. Podemos dizer, de outro modo, que a transfiguração da realidade, no lugar, não aliena o sujeito da negrura no tocante à leitura e/ou à apreensão da realidade étnico-racial e social. O desfecho narrativo do conto, a propósito da visibilidade do racismo à brasileira e de uma estética inclusiva do negro, tem início com a composição denominada “O retorno”, (BARBOSA, 1987, p.94). As chamadas seguintes, “Mas ele não tinha fome” (p.94), “sentiu frio, muito frio” (p.95), “Foi até o quarto” (p.96) e “Será que haviam conseguido enquadrá-lo?” (p.97), são emblemáticas dessa passagem que o trecho abaixo parece resumir: “Então isto é a detenção?”, perguntava-se William. Muitos de seus amigos haviam estado ali. Alguns haviam saído, outros jamais. Morreram lá dentro. Dentre eles havia os que nunca tinham cometido qualquer espécie de crime. Os tiras simplesmente não haviam gostado da cara deles porque eram pretos. Por isso quem conseguia sair era visto com respeito pelo resto da malandragem. (BARBOSA, 1987, p.98).

O caráter verossímil da trajetória de William reside não numa suposta capacidade de refletir fielmente a realidade,

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mas no fato de que sua saga, vivida no plano real e numa espécie de sonho e delírio, é conhecida e possível de ser compreendida. O plano mítico, centrado na tradição dos orixás, é buscado para transfigurar a realidade: À noite, sentado na cama, ele percebeu uma figura diferente tomar forma na parede. Não tinha barba, usava colares de miçangas e era bem escura.’Quem é você’, perguntou, homem ou orixá? A figura nada respondeu, mas de manhã onde ela estivera havia na parede uma abertura no formato de uma vagina grande e peluda com longos fios de cabelo incrustando-se nas bordas. Um colar de miçangas jazia sobre a cama. A abertura dava para a parte externa da detenção. Começou a tecer uma corda com as miçangas e o fio, e, ao anoitecer, antes de ir embora, quis dar uma olhada em Rui Barbosa, o carcereiro. (BARBOSA, 1987, p.99).

O nexo, ou de outra forma, a verossimilhança, tal como comprova a descrição do carcereiro (que é no conto, simbolicamente, Rui Barbosa), é o resultado de mecanismos que operam no interior do discurso e dos detalhes cinematográficos. A conformidade entre os significados e as representações fala sem cessar: O carcereiro era aquilo mesmo: apenas cabeça, tronco e o cotoco dos braços, sem pernas, como nos livros da História. Estava com a parte da cintura seccionada apoiada numa cadeira. Não o perseguiria. Os guardas não o veriam. Assim, saiu dali e voltou às ruas buscando retornar p’ra casa. (BARBOSA,1987, p.99).

Há, dessa forma, nos fragmentos “[...] o bicho estava solto e numa encruzilhada”, um aprofundamento da relação com a cosmovisão negra, que é um acúmulo que releva o negro e o contexto em toda a sua extensão e profundidade, como sugerem os dois fragmentos que, a partir da ­cosmogonia ­negra,

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trazem exu (o eixo nuclear e estruturante da matriz afro) para solucionar os impasses. A ideia de polifonia e encruzilhada como chaves interpretativas e em conformidade com artigo “As Noções Textuais da Negrura na Série Cadernos Negros” (RIBEIRO; BARBOSA, 2008), pode ser observada além do círculo desenvolvido no desfecho da trajetória do herói, do conto de Márcio Barbosa. Os recursos utilizados pelo autor, no conto cinematográfico, nos possibilitam entrever relações transculturais, remarcando traços de aproximação entre o conceito de polifonia e o princípio estruturante da cosmogonia negra referenciada na tradição dos orixás. A polifonia textual é recoberta, no texto, pelas citações e diálogos resultantes das convergências e divergências entre o literário, o cinematográfico e o jornalístico. Não é demais dizer, de acordo com o artigo publicado nos Cadernos Negros Três Décadas (2008), que a polifonia, conforme a concebe Bakthin (1997, p.338), “[...] é sempre compreensão e implica duas consciências, dois sujeitos. A compreensão é, em certa medida, dialógica.” Tal relação se amplia na medida em que consideramos a presença de Exu (e também da encruzilhada) como um conceito, como uma chave hermenêutica e, de igual modo, a presença da vagina à semelhança da placenta ou umbigo como canal ou meio pelo qual os personagens terão acesso à liberdade. A liberdade significa também, através da placenta-umbigo e/ou vagina, acesso ilimitado ao mundo da transfiguração ancestral e de relação transitiva com a cosmogênese e antropogênese negro-brasileira. Temos, em “Quando o malandro vacila”, uma encruzilhada dos sentidos literários e cinematográficos (dos discursos também) e uma interseção cultural e ponto de mediação entre múltiplas linguagens, a literária, a cinematográfica e da tradição negro-africana, não investida tão-somente como orixá, Exu ou encruzilhada, mas como conceito, filosofia e cosmogonia.

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Referências Bibliográficas BARBOSA, M. Cadernos Negros. Contos afro-brasileiros. São Paulo: edição dos autores, v. 10, 1987. ______. RIBEIRO, E. Cadernos negros: três décadas. Ensaios, poemas, contos/organizadores. São Paulo: Quilombhoje, 2008. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. 2000 ______. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara F. Vieira. 2. ed. São Paulo: HUCITEC, 1984. BROOKSSHAW, D. Raça & cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. DELEUZE, G.; FOUCAULT, M. Tradução de Cláudia Sant`Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 1988. JÚNIOR, T. de Q. Preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira. São Paulo: Ática, 1975. LUZ, M. A. de O. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2000. RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Globo: 1988.

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OS DESAFIOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA OS ALUNOS DE PAÍSES LUSÓFONOS DOS CONTINENTES AFRICANO E ASIÁTICO NA UNILAB: COMPREENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DO BRASIL Bruno Okoudowa

Introdução O presente trabalho nasce no contexto de ensino da língua portuguesa na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Mais especificamente no curso de Agronomia (Turma de 2012.2), na disciplina de Leitura e Produção de Textos I. A turma era composta de alunos oriundos de vários países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). São eles: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Não havia alunos de Macau, nem de Moçambique nessa turma. Como temas de seminários, sugeri a eles que trouxessem especificidades do uso da língua portuguesa em cada país acima citado. Foi, portanto, a partir das diferenças observadas no uso do português por cidadãos de cada um desses países que tive a ideia de elaborar este trabalho, que tem três objetivos: destacar aspectos do português brasileiro (PB) que representam um desafio para alunos de países lusófonos dos continentes africano e asiático na UNILAB; ajudar a compreender algumas variações do português para além do Brasil e ajudar os professores e alunos na sua interação em salas de aula internacionais como as da UNILAB. Os exemplos citados neste trabalho são baseados na vivência do autor com os cidadãos dos países lusófonos citados, nos trabalhos apresentados em sala de aula e nas diferentes

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obras consultadas. A metodologia usada foi a de comparar os diferentes falares em alguns países da CPLP e, a partir daí, isolar algumas palavras e expressões típicas de cada país. Quanto à análise do português falado no Timor Leste, ela baseou-se, em grande parte, no trabalho de Albuquerque (2011).

O Português falado no Brasil (PB) versus o Português falado em Portugal (PP) Algumas palavras Portugal Comboio Hospedeira de bordo Mandioca Mais novo (a) Puto Roupa interior Sumo

Brasil Trem Aeromoça, comissária de bordo Mandioca, aipim, macaxeira Caçula Menino, moleque, rapaz, guri etc. Camisola Suco

Na tabela acima, no que diz respeito aos exemplos brasileiros e portugueses, observa-se que há uma grande diferença entre as palavras para designar a mesma pessoa ou o mesmo objeto. Parece até que se tratam de línguas diferentes embora se trate da língua portuguesa em ambos os casos. Pois no PB, observamos palavras de origem indígena, isto é, da língua Tupi. São elas: aipim e macaxeira para designar mandioca que é também uma palavra de origem Tupi. Encontramos também palavras africanas oriundas de alguma língua banta. São elas: caçula e moleque que vêm do Quimbundu, uma das línguas bantas falada em Angola até hoje. Moleque é um nome da primeira classe dos nominais bantos, por ter o prefixo nominal mo- realizado [mu]. É uma classe reservada para nomes de pessoas. Quanto a caçula, é

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um nome da décima terceira classe dos nominais bantos, por ter o prefixo ca-, realizado [ka]. É uma classe de nomes específicos. No caso de caçula, trata-se do nome do último filho. Esse nome só podia ser oriundo de uma língua africana, já que não se encontra nas línguas indígenas do Brasil, nem em Portugal. Os portugueses dizem mais novo (a) ao invés de caçula. No caso das palavras comboio e trem, a diferença é que no Brasil, comboio indica apenas “uma porção de veículos que se dirigem ao mesmo destino.” (FERREIRA, 2004, p.247). Quanto a puto, por exemplo, é uma palavra que representa um palavrão. Sumo, embora seja uma palavra existente no PB, não é usada para designar líquido nutritivo feito, de preferência, a partir de alguma fruta. Usa-se suco. Portanto, podemos afirmar que há casos de mudanças semânticas. Isto é, às vezes as palavras existem nos dois países, mas não têm o mesmo significado. Podemos encontrar muitos outros exemplos. Por sua vez, as palavras Hospedeira de Bordo e Roupa Interior recebem outros nomes no Brasil: em vez de hospedeira de bordo, diz-se aeromoça, ou melhor, comissária de bordo. Ao invés de roupa interior, diz-se camisola. Tudo isso mostra que se trata da expressão de outra realidade ou de outro cotidiano (o cotidiano brasileiro).

Algumas expressões A diferença entre o Brasil e Portugal se nota também no uso de algumas expressões típicas de cada país: Portugal Dar opinião Fazer desordem Fazer escândalo Um bocadinho Uma pessoa muito feia

Brasil Dar pitaco Fazer bagunça(1) Armar barraco Um pouquinho Um cão chupando manga (azeda)

OS DESAFIOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA OS ALUNOS DE PAÍSES LUSÓFONOS DOS CONTINENTES AFRICANO E ASIÁTICO NA UNILAB: COMPREENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DO BRASIL

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Nesse quadro, as expressões portuguesas são do português padrão. Portanto seriam facilmente interpretadas pela maioria dos falantes do português padrão, não importa o país dos falantes. Entretanto, expressões usadas no Brasil não seriam automaticamente entendidas pela maioria dos falantes. Esses precisariam de uma explicação suplementar.

Expressões tipicamente brasileiras Expressões

Significado

Engolir sapos

Aguentar desavenças ou escutar barbaridades e ficar quieto

Falar pelos cotovelos

Falar muito

Farinha do mesmo saco

Utilizada para generalizar um comportamento reprovável

Pentear macaco

Utilizada para mandar alguém cuidar da sua própria vida, não a dos outros

Quebrar um galho

Fazer um favor

Rebolar no mato(2)

Jogar fora (no mato), arremessar

Ter uma carta na manga

Ter um plano B, uma alternativa, outra estratégia

Vá plantar batatas!

Saia daqui!/ Me deixe em paz!

Nota: 1 Palavra de origem banta, da segunda classe dos nominais, por ter o prefixo ba- e plural da primeira classe que tem como prefixo mo- realizado [mu]. Portanto o singular de bagunça, em proto-banto, seria mugunça. 2 Expressão muito usada no estado do Ceará (Nordeste brasileiro). Trata-se, portanto, de um regionalismo.

As expressões do quadro acima tratam, em sua maioria, de metáforas usadas no Brasil. Essas não devem ser interpretadas literalmente. Elas expressam aspectos da cultura brasileira. Portanto língua também é um veículo da cultura.

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Variação Linguística para Além do Brasil (África e Ásia) ƒƒ O português em Angola O português falado em Angola reflete também a realidade local. Isto é, a sua convivência com as línguas locais (Umbundu, Quimbundu, Quikongo etc.) que pertencem, na sua maioria, ao grupo banto (GUNTHRIE, 1967). Alguns exemplos Exemplo 1: a) muá1 ngolé2 = filho de Angola (angolano) b) brazuka = brasileiro Exemplo 2: “E aí, muangolé. Está tudufich?” = “E aí irmão, está tudo bem?” “Yaa, tudufich!” = “Sim, tudo bem.” ƒƒ O português em Guiné-Bissau Em Guiné-Bissau, o contato do português com as línguas locais: fula, balanta, mandinga, mancanha, bijagó etc., línguas que se dividem entre as famílias mande e atlântica. (HEINE; NURSE, 2000). Esse contato produziu um crioulo de base portuguesa. • Alguns exemplos em crioulo Exemplo1: I kastá = ele não está Exemplo2: Sukurutip = muito escuro Exemplo3: Limpupus = muito limpo 1

Mua é a abreviatura de Muana ‘filho ou criança’. É uma palavra que se encontra em muitas línguas bantas e pertence à primeira classe dos nominais por ter o prefixo Mo-, realizado Mu-. 2 Na transcrição de palavras de outras línguas diferentes do português, procuramos a maneira mais fiel de reproduzir o som na escrita. Aqui, neste caso ‘ngolé’ tem duas sílabas ‘ngo’ e ‘lé’. O ‘n’ da primeira sílaba não se separa do ‘g’. Portanto se pronunciam juntos. Trata-se de uma consoante pré-nasalizada: oclusiva velar pré-nasalizada. São sons comuns nas línguas africanas em geral e bantas em particular. É o caso da língua lembaama (OKOUDOWA, 2005).

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Nos exemplos acima, podemos facilmente reconhecer o português no crioulo falado em Guiné-Bissau: Português

Crioulo

Está

Stá

Escuro

Sukuru

Limpo

Limpu

Observando os exemplos em crioulo acima, podemos afirmar que no contato do português com as línguas africanas faladas em Guiné-Bissau, houve uma integração do léxico português na formação do léxico do crioulo. Esse léxico adquiriu outra estrutura silábica. É o caso do termo escuro (es.cu.ro), de estrutura VC.CV.CV3), virou sukuru (su.ku.ru) e passou a ter a estrutura CV.CV.CV., estrutura mais encontrada nas línguas do mundo. Quanto a primeira palavra, está para stá, houve queda da vogal inicial por ela ser menos vozeada do que o restante dos segmentos. No caso de limpo para limpu houve apenas uma troca do o pelo u no final da palavra. É um fenômeno fonológico que é frequente tanto no português quanto em algumas línguas africanas. yy O Português em São Tomé e Príncipe Em São Tomé e Príncipe, nota-se uma convivência da língua portuguesa com línguas locais como o forro ou são tomense, o angolar, o tónga, o moncó e o crioulo cabo-verdiano. Noventa e cinco por cento da população falam o português. Trata-se de um caso raro dentro dos países de língua oficial portuguesa do continente africano. 3

C = Consoante e V = Vogal

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• Alguns exemplos Exemplo 1: paitar = comer. Exemplo 2: apagar = dormir. Exemplo 3: faltar as aulas = bicar. Exemplo 4: gente vê só = até logo. Nota-se que excluindo-se paitar, no exemplo 1, estamos diante de palavras da língua portuguesa. Portanto, trata-se de uma variante do português. yy O português em Timor Leste (Ásia) No Timor Leste há uma convivência do português com outras línguas que podemos dividir da seguinte maneira:

a) línguas locais de origem papuásica e austronésica (Tetun, Kemak, Galolen, Fataluku, Makasae, Bunak etc) b) línguas oficiais que são: o português e o tetun (língua veicular também). O português é a língua da escola (ALBUQUERQUE, 2011) e da administração, sendo a única língua normalmente escrita (BRITO, 2007).

O que mais chamou nossa atenção no português falado por alguns timorenses foi a realização de certos segmentos. Assim, observamos as seguintes mudanças que classificamos por casos:

Mudanças Fonéticas yy Variação na realização dos segmentos palatais: ƒƒ Caso 1: O segmento fricativo alveolar S pode ser realizado S ou Si. Exemplos: a) Chegar pode ser realizado [se.‘ga.a] ou [‘sie. ga.a]. b) Bicho é realizado [‘bi.su].

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ƒƒ Caso 2: O segmento palatal e lateral lh pode ser realizado de três formas: lh, l, li. Exemplos: a) Velho é realizado [‘ve.liu] ou [‘be.lio]. Reparem a troca do V pelo B na primeira sílaba. Isso acontece porque os dois segmentos são próximos. Portanto, na ausência do segmento português, o falante timorense o substitui pelo mais próximo que exista na sua língua materna. Isso acontece com todo falante iniciante de língua estrangeira. b) Olho pode ser realizado [‘o.liu] ou [‘oi.lu]. ƒƒ Caso 3: O segmento nasal e palatal nh tem três realizações pelos falantes timorenses: nh, n, ni. Exemplos: a) Vinho pode ser realizado [‘bi.niu] ou [‘vi.niu]. Nota-se,como no caso 2 acima, a troca do V pelo B no início da palavra. b) Bonitinho pode ser realizado [bo.ni. ‘ti.iu] ou [bo.ni. ‘ti.niu]. ƒƒ Caso 4: O segmento fricativo alveolar Z pode ser realizado de quatro formas diferentes: z, dz, d, di Exemplos: a) Ajuda pode ser realizado [a.‘ zu.da] ou [a.‘ dzu.da]. b) Hoje pode ser realizado [‘o. ze] ou [‘o. dzi].

yy Homonímia A homonímia entre segmentos de diferentes significados é o outro fenômeno fonológico que notamos nos falantes timorenses. Por exemplo: Ouvir, ouvi, houve são todos realizados [‘o.vi]. Pois não há distinção fonética na realização dessas palavras. Tanto o [r] quanto o [e] são simplesmente apagados na

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final da palavra. São desnecessários. Trata-se de uma aplicação da lei do menor esforço na realização de certos segmentos. yy Mudanças semânticas Trata-se da mudança de sentido das palavras. São palavras que adquirem outros significados nos ouvidos dos estudantes timorenses:





Exemplo 1: amo “padre católico” = amo-bispo “bispo”, amo-papa “papa” etc. Exemplo 2: serviço = profissão, trabalho, trabalhar. Exemplo 3: valor = resultado dos exames escolares. Exemplo 4: colega = tratamento entre amigos íntimos de mesma idade ou de idade aproximada. Refere-se a um tipo específico de amizade. Vamos imaginar um professor que ignora esse significado pede para alunos trabalharem com colegas. Qual seria a reação dos estudantes timorenses? Obviamente trabalhariam com as pessoas mais íntimas. Parece-me que é o que tem acontecido em algumas turmas da nossa Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Tal desentendimento da palavra colega não pode ajudar no processo de integração. Exemplo 5: mestre, para os timorenses, significa professor de escola o que é diferente de docente que representa apenas o professor universitário. Exemplo 6: topaz = mestiço, timorense assimilado à cultura portuguesa/descendente. Exemplo 7: estilo = cerimônia tradicional de sacrifício de animais. Exemplo 8: irmão [‘ma.un] = irmão ou amigo mais velho; irmã [‘ma.na] forma de tratamento para as mulheres mais velhas para os timorenses.

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Exemplo 9: condutor = motorista de carro. Exemplo 10: motorista = condutor de moto.

yy Léxico quinhentista Outro aspecto do português falado no Timor Leste é a presença de palavras usadas nos anos 1500. Exemplos:

a) Usa-se formosura para dizer beleza. b) Usa-se gentio para designar timorense não praticante do catolicismo.

yy Integração Tetun e Português A integração do português com a língua local e oficial tetumé é um tipo de crioulo de base portuguesa. Vejam este exemplo de uma conversa entre mãe e filha segundo Albuquerque (2011, p.232). A conversa acontece, na verdade, entre a mãe, a filha e o marido: — Cuzabênmamãi. = Cozinhe bem mamãe. — Ôi, nônôi, seu marido já vênláquêlê! = Oi filha, seu marido já está vindo! — Hou, nónó, bên, senta bê! Cómèbai? = Oi filho, bem, senta! Como vai? — Ó nônôi, tira depressa arrôze, eu anta cómi (ou eu quérècomê). = Oh filha, tire o arroz depressa, eu quero comer. (1996 apud ALBUQUERQUE, 2011, p.232).

Considerações Finais A lusofonia se manifesta de diversas maneiras dependendo do espaço, do tempo, das pessoas. É preciso ficar atento a esses aspectos. A compreensão dessa diversidade e das mu-

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danças linguísticas que mostramos neste trabalho por todos os interlocutores é necessária para uma comunicação bem-sucedida. No que diz respeito a nós, docentes da UNILAB, é preciso entender que o discente, longe de ser uma tábua rasa, traz uma linguagem que precisamos entender para passarmos com sucesso a nossa mensagem. O discente ou falante estrangeiro quando não encontra o som do português na sua língua materna, a tendência natural é substituí-lo por um som semelhante que exista na sua língua. Isso é normal, acontece com todos os falantes de língua estrangeira. A compreensão de tudo isso pode nos ajudar nas nossas interações cotidianas e no nosso processo de integração internacional.

Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE, David Borges. O português de Timor-Leste: contribuições para o estudo de uma variedade emergente. Revista PAPIA (Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares), Universidade de Brasília, p.65-82, 2011. Disponível em: BRITO, Regina Helena Pires de e BASTOS, Neusa Maria Oliveira Barbosa. “Hello, mister”, “Obrigadubarak” e “boa tarde”: desafios da expressão linguística em Timor-Leste. Revista ACOALFA: Acolhendo a Alfabetização nos Países de Língua portuguesa, São Paulo, ano 2, n. 3,2007. Disponível em: e . Acesso em: 13 mar. 2013. HOLANDA, Aurélio Buarque de. Mini-aurélio: o minidicionário da língua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2008. GUTHRIE, M. Comparative Bantu: an introduction to the comparative linguistics and prehistory of the bantu languages. Farnborough: Gregg Press, 1967-71. 4v.

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HEINE, B.; NURSE, D. African languages. Cambridge: ­Cambridge University Press, 2000. OKOUDOWA, B. Descrição preliminar de aspectos da fonologia e da morfologia do lembaama. 2005. 102p. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, SP.

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UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA Ivan Maia de Mello

A Abordagem Genealógica dos Processos de Subjetivação Este ensaio visa problematizar a produção de subjetividade na poesia afro-brasileira, buscando analisar a produção de alguns poetas negros brasileiros quanto a questões micropolíticas que permeiam o processo por meio do qual eles se constituem a si mesmos como sujeitos no desempenho do que Michel Foucault (1992) chamou de função-autor, enquanto um dos modos de subjetivação que se dá na experiência da linguagem. A proposta é pesquisar a referida produção quanto aos processos de subjetivação experimentados pelos poetas negros e elaborar uma cartografia da subjetividade nos poemas que abordam temas ligados à cultura afro-brasileira. Os vários processos de subjetivação por meio dos quais os poetas que se consideram negros e/ou se referem a temas da cultura afro-brasileira assumem posições subjetivas singulares são considerados em seus devires e fluxos heterogêneos à medida que expressam os componentes do processo de subjetivação em jogo. Será levada adiante a interpretação genealógica, ao modo formulado por Friedrich Nietzsche (1987), visando a compreensão dos modos de singularização subjetiva experimentados na expressão dos poetas escolhidos. Com isso, pretende-se formular a estética da existência, que pode ser pensada a partir dessa cartografia da subjetividade na poesia afro-brasileira. Ou seja, pretende-se compreender como estes poetas tornam-se poetas de suas próprias vidas e, especificamente, de sua negritude, fazendo da vida uma obra de arte, assim como propôs Nietzsche.

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Em termos legais, a justificativa para essa pesquisa baseia-se nas Leis nos 10.639/03 e 11.645/08 que tornaram obrigatório o estudo da cultura afro-brasileira em todas as escolas do Brasil nos diversos níveis de ensino, o que dá relevância à pesquisa voltada para aspectos dessa cultura, como a literatura afro-brasileira de poetas negros. Isto torna necessário que estudos concernentes à poesia afro-brasileira sejam empreendidos possibilitando a compreensão dos mais diversos aspectos relativos à produção literária dos poetas negros, tanto aspectos propriamente linguísticos quanto os históricos, sociológicos, antropológicos e filosóficos. Do mesmo modo, essa pesquisa é necessária para dar visibilidade, com a devida apreciação crítica, a essa produção literária que, no entanto, tende a ser marginalizada nos espaços editoriais e na imprensa literária brasileiros pelos mesmos motivos que levaram à promulgação da referida lei: o desinteresse e o preconceito em relação à contribuição dos negros para a cultura brasileira. Particularmente no campo acadêmico da pesquisa em filosofia, mesmo entre aqueles poucos pesquisadores que se voltaram para a relação entre filosofia e literatura como os que participam das coletâneas Filosofia e Literatura (2004) e Poetas que Pensaram o Mundo (2005), a produção poética afro-brasileira não tem sido apreciada, o que torna necessário que se leve adiante uma problematização filosófica capaz de avaliar criticamente os aspectos estéticos relativos à linguagem, sobretudo os que dizem respeito à poética, assim quanto outros de natureza ético-política relativas aos valores e posições assumidas no discurso desses autores. Teoricamente, a pesquisa proposta neste ensaio se justifica tomando como fundamentos as concepções teóricas de alguns pensadores críticos da noção de sujeito que renovaram

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a compreensão da subjetividade, a saber, Friedrich Nietzsche, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari. A crítica nietzschiana da metafísica da subjetividade, elaborada ao longo do conjunto de suas obras, que passa pela análise do caráter metafísico da estrutura gramatical das línguas europeias em geral, levou pensadores como Foucault, Deleuze e Guattari a investigarem criticamente a micropolítica dos processos de subjetivação por meio dos quais os sujeitos são constituídos. Particularmente, Foucault foi conduzido por essa perspectiva ao formular o que ele chamou de “estética da existência”, que consiste em uma articulação de valores estéticos, éticos e políticos que configuram um modo de existência. No âmbito da cultura afro-brasileira, a poesia produz um agenciamento coletivo de enunciação por meio do qual é apresentada uma série de valores constitutivos de uma estética da existência afro-brasileira, que pretende-se aqui interpretar por meio da consideração da produção de alguns poetas que se posicionaram nesse agenciamento discursivo. Para isso, consideremos antes algumas das perspectivas que guiarão nossa abordagem dessa poesia, como aquela enunciada pelo Zaratustra criado por Nietzsche (2003) como personagem poeta e dançarino que afirma, no discurso chamado Da redenção: E isso é tudo a que aspira o meu poetar: juntar e compor em unidade o que é fragmento e enigma e horrendo acaso. E como suportaria eu ser homem, se o homem não fosse também, poeta e decifrador de enigmas e redentor do acaso! (p.172).

Portanto, a decifração do enigma da negritude e a redenção do sofrimento advindo do enfrentamento do racismo são os desafios presentes na poesia afro-brasileira que abordaremos nos poemas considerados.

UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA

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Zaratustra afirma ainda a condição de autenticidade autoconfiante para que o poeta alcance uma plenitude de expressão: “Ousai, primeiro, acreditar em vós mesmos – e nas vossas vísceras! Quem não acredita em si mesmo mente sempre”. Eis porque Zaratustra, na parte chamada Do ler e escrever, afirma como critério de valor para a apreciação de tudo que se escreve a visceralidade espiritual da linguagem de quem foi capaz de digerir suas experiências e incorporá-las em seu próprio sangue, ou em suas palavras: “De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito.” (p.66). Alguns poetas são capazes de uma franqueza digna daqueles que Zaratustra chamou de “homens autênticos”, quando disse na parte intitulada Da virtude amesquinhadora: “Os homens autênticos são cada vez mais raros, especialmente os atores autênticos.” (p.205). Essa autenticidade não está de modo algum presa a qualquer realismo ingênuo que ignorasse o caráter ficcional da verdade, por mais objetiva e “neutra” que ela pretenda parecer. Esses poetas compreendem historicamente e fisiologicamente, no sentido nietzschiano da avaliação da potência dos impulsos, ou seja, genealogicamente, o que a humanidade tem se tornado. Isto aparece no poema História da Humanidade, no qual França, poeta de Olinda, que ficou conhecido como “o poeta errante” pelos recitais que fazia reunindo vários poetas, diz: “Quanto mais sei/ mais sinto/ vergonha.” (FRANÇA, 2003, p.3). Esse poeta, que marcou a cidade de Olinda com sua trajetória de recitais itinerantes e suas publicações artesanais, deixou esta vida cedo, mas antes desafiou a morte num brinde que se eternizou pela ironia trágica: “À morte – por ser imortal,/ ergo um brinde, dizendo:/ – À nossa vida!/ E

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ela ­responde ofendida:/ Não me escaparás!” (FRANÇA, 2003, p.4). Sua ousadia deixa claro qual a disposição que anima essa poesia, seu pathos trágico e seu ethos singular intempestivo e extramoral, como bem sugeriu o filósofo de bigode que se considerava um bufão, um sátiro, além de poeta e músico. Michel Foucault empreendeu em sua última fase de produção filosófica (particularmente no curso de 1982 no Collége de France, cujas aulas foram transcritas e publicadas com o título Hermenêutica do Sujeito) um estudo das formas históricas como foram usadas, em diversos contextos, diferentes “técnicas de si”, visando uma elaboração, um trabalho de si sobre si mesmo, no sentido que foi chamado pelos gregos, desde Sócrates, de “cuidado de si”. A abordagem foucaultiana se desenvolveu no sentido da genealogia dos processos de subjetivação que ele havia empreendido antes, como no livro Vigiar e Punir (1983) (depois da pesquisa arqueológica que a antecedeu), mas com certa ­inflexão em sua produção teórica, no sentido de estudar os modos como o pensamento filosófico desde a antiguidade interpretou seu próprio processo de autoconstituição de si como sujeito, daí vinda a denominação hermenêutica do projeto. A abordagem genealógica havia sido caracterizada no texto ­chamado Nietzsche, a Genealogia e a História, no qual encontramos uma definição da proveniência como categoria central da pesquisa histórica de viés genealógico, como nas seguintes passagens: [...] a proveniência diz respeito ao corpo. Ela se inscreve no sistema nervoso, no humor, no aparelho digestivo. Má alimentação, má respiração, corpo débil e vergado daqueles cujos ancestrais cometeram erros; que os pais tomem os efeitos por causas, acreditem na realidade do além, ou coloquem o valor eterno, é o corpo das crianças que sofrerá com isto. […] O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos. (FOUCAULT, 1989, p.22).

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Pensamos em todo caso que o corpo tem apenas as leis de sua fisiologia, e que ele escapa à história. Novo erro: ele é formado por uma série de regimes que o constroem, ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por venenos – alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria resistências. (FOUCAULT, 1989).

Portanto, a pesquisa genealógica tem no corpo uma realidade histórica fundamental e a noção de cuidado de si, encontrada como um termo em uso durante cerca de dez séculos, constituiu o conceito central do pensamento filosófico que se ocupou de uma “arte de viver”, compreendida em diferentes sentidos ao longo das três principais épocas em que o cuidado de si foi estudado, como afirma Foucault: Parece-me que a epimeleia heautou (o cuidado de si e a regra que lhe era associada) não cessou de constituir um princípio fundamental para caracterizar a atitude filosófica ao longo de quase toda a cultura grega, helenística e romana. (FOUCAULT, 2004, p.12).

Nessa pesquisa, Foucault considerou a estética da existência como um processo de subjetivação formulado pelos gregos e romanos da antiguidade, por meio da noção do cuidado de si, no sentido de fazer da própria vida uma obra de arte, como explica Roberto Machado: Uma das idéias mais interessantes dessa genealogia dos modos de subjetivação é a hipótese de que, entre o século IV a.C. e o século II de nossa era, os gregos e depois os romanos formularam uma estética da existência, no sentido de uma arte de viver entendida como cuidado de si, de uma elaboração da própria vida como uma obra de arte, da injunção de um governo da própria vida que tinha por objetivo lhe dar a forma mais bela possível. (MACHADO, 2006, p.181).

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A estética da existência aparece, então, como a formulação final do pensamento de Foucault, concebida a partir da noção de cuidado de si como uma arte de viver. Isso requer a criação de uma ética singular que promova a estética da existência e resista às relações de poder que tendem a exercer um controle das sensações e uma repressão de emoções, particularmente as que constituem a sexualidade. E o que Foucault entende por estética da existência, ele expressa da seguinte forma: [...] deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de condutas, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo. (FOUCAULT, 1998, p.51).

Para Foucault, a tarefa crítica da filosofia seria sua função principal de questionar as relações de dominação em todos os campos da existência. Diz ele numa entrevista: Em sua vertente crítica – entendo crítica no sentido amplo – a filosofia é justamente o que questiona todos os fenômenos de dominação em qualquer nível e em qualquer forma com que eles se apresentem – política, econômica, sexual, institucional. (FOUCAULT, 2004, p.284).

A palavra ética surgiu do termo grego ethos, o qual é interpretado por Foucault como uma maneira de se conduzir em relação a si mesmo e aos outros, algo que ganhava certa visibilidade através dos hábitos e das posições ocupadas nas relações sociais, ou seja: o ethos era a maneira de ser e a maneira de se conduzir. Era um modo de ser do sujeito e uma certa maneira de fazer, visível para os outros. O ethos de alguém se traduz pelos seus hábitos, pelo seu porte, pelo seu jeito de caminhar [...]. O ethos também implica uma relação com os

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outros, já que o cuidado de si permite ocupar na cidade, na comunidade, ou nas relações inter-individuais o lugar conveniente. ((FOUCAULT, 2004, p.270).

A liberdade praticada através do cuidado de si, pensada como uma ética singular, alcança então um significado político ao resistir à dominação nas relações de poder, visando o exercício de um domínio de si que se expressa no termo grego arché, que Foucault interpreta assim: A liberdade é, portanto, em si mesma política. Além disso, ela também tem um modelo político, uma vez que ser livre significa não ser escravo de si mesmo nem dos seus apetites, o que implica estabelecer consigo mesmo uma certa relação de domínio, de controle, chamada de arché – poder, comando. (FOUCAULT, 2004, p.270).

O que Foucault procurou mostrar foi, principalmente, como o próprio sujeito se constituía, sua autoformação nessa ou naquela forma determinada, através de certas práticas de liberdade nas relações de poder nas quais conquista o domínio de si, que caracteriza a autonomia de sua autocriação. A compreensão de seu próprio trabalho de pesquisa sobre a história da subjetividade apresentada no curso do College de France, cujas aulas foram transcritas e publicadas com o título de Hermenêutica do sujeito evidencia a íntima ligação entre arte de viver e cuidado de si na história dos períodos grego antigo e helenístico greco-romano, como afirma: [...] se evoquei tudo isto é porque pretendia apresentar-lhes um fenômeno, a meu ver importante, na história desta vasta cultura de si que se desenvolveu na época helenística e romana, e que tentei durante este ano descrever. Em linhas gerais, diria o seguinte: desde a época clássica, parece-me, o problema estava em definir uma certa tekhne tou biou (uma arte de viver, uma estética da existência). E, como lembramos, foi no interior desta

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questão geral desta tekhne tou biou que se formou o princípio “ocupar-se consigo mesmo”. (FOUCAULT, 2004, p.542).

Foucault situa, portanto, toda a cultura de si que se desenvolveu na antiguidade no âmbito das artes de viver (tekne tou biou), que assim foram ganhando um enfoque cada vez mais ampliado, tornando-se uma questão relativa à vida como um todo, em todos os seus aspectos e em toda a sua duração. Isso foi ocorrendo de tal modo que toda uma busca filosófica pela verdade foi sendo direcionada para as práticas por meio das quais se pode transformar a si mesmo possibilitando o acesso à verdade, o que Foucault chamou de espiritualidade, e que configurou o cuidado de si praticado pelos epicuristas e estóicos. Isso foi dito por ele na seguinte passagem do curso citado há pouco: [...] percebemos que entre a arte da existência (a tekhne tou biou) e o cuidado de si – ou então, para falar mais sucintamente, entre a arte da existência e a arte de si mesmo – há uma identificação cada vez mais acentuada. A pergunta: ‘como fazer para viver como se deve?’ – era a pergunta da tekhne tou biou: qual é o saber que me possibilitará viver como devo viver, [...] Isto, evidentemente, acarretará algumas conseqüências. Desde logo, por certo, a absorção cada vez mais acentuada no decorrer da época helenística e romana, da filosofia como pensamento da verdade, pela espiritualidade como transformação do modo de ser do sujeito por ele mesmo. (FOUCAULT, 2004, p.219)

Chegamos, assim, à noção de uma espiritualidade como “transformação do modo de ser do sujeito por ele mesmo” que pode nos conduzir à apreciação de como isso se dá na poesia afro-brasileira, particularmente nos poetas aqui considerados.

UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA

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Os Processos de Subjetivação na Poesia Afro-Brasileira No livro Cantares ao meu povo (1981), Solano Trindade, um dos primeiros poetas a afirmar sua negritude poeticamente, diz no poema Sou negro: “Sou negro/ meus avós foram queimados/ pelo sol da África/ minh’alma recebeu o batismo dos tambores, atabaques, gonguês e agogôs [...]” (TRINDADE, 1981, p.32). E continua o poema descrevendo seus ancestrais até falar no que resultou: “Na minh’alma ficou/ o samba/ o batuque/ o bamboleio e o desejo de libertação [...]”. No poema Canto de esperança, Solano expressa que se tornou cantiga e sua vida enfeitada, por estar voltada para a grandeza de seu destinar-se, nunca terá “tempo para morrer”: Há sempre um poema me esperando/ nas amadas feitas de ternura/ e por isso o meu tempo/ não é contado à velhice// Estou conservado no ritmo do meu povo/ Me tornei cantiga determinadamente/ e nunca terei tempo para morrer// Meu desejo de paz se tornou rosa/ e a minha vida é enfeitada/ com bandeirolas coloridas/ porque eu tenho uma festa interior/ voltada para o grande Amanhã. (TRINDADE, 1981, p.42).

No poema Estética (1981), ele defende a liberdade de suas emoções estéticas ainda que a vida passe por disciplinados modos de existência, o que aponta para uma vida regrada e esteticamente livre: Não disciplinarei/ as minhas emoções estéticas/ deixá-las-ei à vontade/ como o meu desejo de viver...//É grande o espaço/ embora se criem limites...//Basta somente/ que eu sofra a disciplina da vida/ mas a estética/ deve ser sempre liberta. (TRINDADE, 1981, p.60).

Essa liberdade em meio a uma vida regrada chega a ser motivo de paródia na poesia de Solano, o que aparece no poema Gravata colorida (1981):

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Quando eu tiver bastante pão/ para meus filhos/ para minha amada/ pros meus amigos/ e pros meus vizinhos/ quando eu tiver/ livros para ler/ então eu comprarei/ uma gravata colorida/ larga/ bonita/ e darei um laço perfeito/ e ficarei mostrando/ a minha gravata colorida/ a todos os que gostam/ de gente engravatada. (TRINDADE, 1981, p.61).

No livro O vento (2003), Lande Onawale descreve sua “negrice” no poema que leva este neologismo como título, através da unidade e da multiplicidade de sua cor, sua dor e seu cantar, que não se deixam reduzir à cor da pele, embora a ela estejam intrinsecamente ligados em seu processo de subjetivação pautado pela beleza e por sua história afrodescendente. Beleza que caminha em muitas direções/ uma cor/ e muitas outras/ brotando dos corações//consciência pergaminha desfiada nas canções/ uma dor/ e tantas alegrias/ ressoando qual perdões// histórias carapinhas sobrevindas nos porões/ um cantar/ de muitas vozes/ emergindo em orações...//quem só vê no negro pele/ vê o espelho do branco/ nada há num corpo inerte/ ou numa boca muda que revele/ minha tragédia e fantasia// há em mim veias que anseiam/ os incontáveis caminhos da existência/ há em mim uma memória/ que vem lamber ou devastar/ as praias rasas do presente// quem a isso tudo vele/ não me acha o onde/ não me encontra o quando. (ONAWALE, 2003, p.60).

Em outro texto do mesmo livro, esse poeta baiano que vê a reterritorialização da África no quilombo, desterritorializa sua negritude de sua cor de pele e diz no poema Em negro: Eu sou negro/ muito mais pelo que penso/ menos pela cor da pele/ (ou traços que se revelem)/ nesse país de tantos matizes/ pra me ver negro/ é sentir como é que vivo/ é olhar tudo que falo/ é ouvir tudo que digo [...] (TRINDADE, 1981, p.63)

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No livro Caxinguelê (1993), o escritor Lepê Correia expressa sua corajosa resistência à crueldade do racismo que tenta desumanizar os negros calando-os, inclusive não lhes dando voz e vez, como escreve na poesia Resistência: [...] Pois saibam, mesmo mortos, sem abastança/ reconhecidos como heróis da míngua/ se a crueldade nos cortar a língua/ em nosso corpo ainda resta a dança. (CORREIA, 1993, p.31).

No livro Axé – Antologia contemporânea da poesia negra brasileira, Oliveira Silveira transita pelos territórios existências das palavras que usa para identificar-se com suas metáforas num fluxo de desterritorializações e reterritorializações pelo qual resiste a ser capturado por uma identidade servil, como diz nas seguintes estrofes do poema Sou [...] Já fui a palavra canga,/ sou hoje a palavra basta./ E vou refugando a manga/ num atropelo de aspa.// Meu canto é faca de charque/ voltada contra o feitor,/ dizendo que minha carne/ não é de nenhum senhor. [...] (COLINA, 1982, p.35 e 36).

Outro poeta presente nessa coletânea, Cuti (1982), expressa a tragicidade de seu amor à vida falando de sua namorada como alguém que, como a vida, se apresenta repleta de sofrimentos, belezas, tristezas e esperanças mescladas e portadoras de um futuro a ser reinventado, como no poema Minha namorada, onde escreve: Minha namorada?/ é a violência vestida de esperança// a legítima filha da mãe história amarga/ a mulher criança/ de tranças de sorriso na cabeça/ e olhar perdido na distância do brinquedo roubado// sorrindo saudade/ dum paraíso perdido antes de ser criado// Minha namorada? Tá todo dia me esperando na porta de casa/ com seus olhos brilhantes feito lágrimas emperoladas// com um montão de aurora nas mãos/ pra gente brincar de futuro. (CUTI, 1982, p.59).

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Paulo Colina (1982), o poeta organizador dessa coletânea, descreve poeticamente seu movimento insurgente que se lança, sem rancor nem ódio, no clamor por uma decisão de resistir às mordaças de palavras incertas que se arriscam num cenário sombrio de opressão social, como no poema Pequena balada insurgente: Não há rancor nem ódio:/ há esse clamor surdo/ que rebenta em meu coração/ face a tantas bocas subterrâneas,/ [...] Há que se decidir, senhores, pois mesmo entre as noturnas sombras desse imenso véu,/ as asas negras do meu nariz/ continuarão insistindo em ganhar/ o espaço aberto dos céus. (COLINA, 1982, p.88).

Eis, portanto, uma pequena exposição de pinturas que usa as tintas da negritude para mostrar a pujança, a ousadia e a coragem de encarar a tragicidade da existência, em meio a todo sofrimento advindo das condições sociais em que vive o povo negro no Brasil, com a alegria de afirmar a aventura de tornar-se um poeta negro, como experiência subjetiva de resistência e superação.

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TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL: UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO Ramon Souza Capelle de Andrade

Introdução Gostaria, neste trabalho, de oferecer uma caracterização de identidade pessoal à luz da Teoria Geral dos Sistemas. A minha hipótese é a de que a identidade pessoal constitui uma propriedade emergente de um sistema (ou feixe) de hábitos. Assim, na seção 01, procuro caracterizar sistema e organização. Apresento em seguida, na seção 02, o que entendo constituir (como componente organizacional da estrutura do sistema psicocomportamental) a forma lógica do hábito: um condicional Se A (representando uma circunstância antecedente), então B (representando um consequente ou curso comportamental deflagrado pela ocorrência de A). Sugiro, mais explicitamente, que H é um hábito se H é uma relação binária R entre antecedentes circunstanciais a e consequentes comportamentais b que constituem pares ordenados de conexões nomológicas fracas (quebráveis) inscritas na estrutura do sistema psicocomportamental de um agente. O hábito seria, por conseguinte, uma prontidão para se comportar do modo B na presença da circunstância A. Como a circunstância A tende a disparar o consequente comportamental B, e a circunstância A é externa ao indivíduo que adota o comportamento B, essa concepção de identidade pessoal enraizada em um sistema de hábitos é mais próxima de uma concepção externalista de pessoa, de acordo com a qual quem somos não pode deixar de constituir, também, expressão do contexto no qual nos colocamos (no qual estamos incorporados e situados).

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Na seção 03 procuramos, em uma primeira aproximação (bastante parcial e provisória), caracterizar a concepção de pessoa à luz do pensamento africano. Essa concepção de pessoa, além do corpo (ara), da mente/corpo (emi), e da mente interna (ori), pressupõe a ancestralidade como traço identitário, fonte de proteção, sabedoria e orientação. Como, contudo, os ancestrais (mesmo que concebidos como pertencentes aos traços identitários da pessoa) não estão, por assim dizer, no interior do indivíduo, a concepção africana de pessoa e uma concepção externalista de pessoa (mais distante, pela mesma razão, de uma concepção internalista ou cartesiana de pessoa).

Teoria Geral dos Sistemas A Teoria Geral dos Sistemas (BERTALANFFY, 1968; LASZLO, 1996) procura descrever, analisar, abstrair e idealizar os contextos físico, biológico, mental, formal e social, tendo o conceito de sistema como o seu pressuposto epistemológico e ontológico fundamental. Não por outra razão, o acesso à organização dos existentes é guiado pelo conceito de sistema (o pressuposto epistemológico). Além disso, os princípios e subconceitos extraídos do conceito geral de sistema podem orientar e promover o conhecimento de sistemas particulares, pertencentes a múltiplos âmbitos da realidade. Já uma afirmação mais forte, ligada ao pressuposto ontológico, é que a realidade pode ser, ela mesma, concebida como uma escala, em sobreposição, de sistemas. Segundo Laszlo (1996, p.16), “pensar sistemicamente” significa pensar “[...] em termos de fatos e eventos no contexto de totalidades”. Essas totalidades formam “[...] conjuntos integrados com suas propriedades e relações” (LASZLO, 1996, p.16). Os elementos, as propriedades e as relações, quando inscritos em um conjunto, constituem,

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da perspectiva lógico-matemática, uma estrutura. A estrutura pode gerar uma organização. O conceito de organização é de fundamental importância para a caracterização da identidade pessoal que defendo. Proponho a seguinte definição, baseada no trabalho do filósofo-biólogo Tom Stonier: uma organização constitui um padrão regular, habitual, ou não aleatório, de partículas e campos de energia, ou de elementos correlacionados entre si e unificados via sistema (STONIER, 1999). O conceito de organização está associado ao conceito de sistema. Bertalanffy (1968, p.9), um “dos pais fundadores da sistêmica”, sustenta que há apenas um modo frutífero de abordar a organização: “[...] abordá-la como um [...] sistema de variáveis mutuamente dependentes”. Já uma das principais características de uma organização sistêmica, ou complexa, é a presença de propriedades emergentes. As propriedades emergentes inauguram, em um sistema, níveis mais complexos de organização. Níveis que possuem um estatuto ontológico próprio, não sendo possível concebê-los ou abordá-los a partir de níveis organizacionais mais simples, elementares ou menos complexos. Como afirma Gershenson (2007), uma célula, por exemplo, pode ser concebida como um sistema vivo, mas os elementos isoladamente concebidos que a constituem não podem ser pensados dessa mesma forma. As propriedades dos sistemas (a vida, digamos exemplarmente) que não são encontradas em níveis mais elementares constituem propriedades emergentes, que têm suas gêneses essencialmente dependentes das interações complexas entre elementos reunidos em um contexto sistêmico. Assim, por exemplo, (I) células, como unidades-organizadas, emergem da complexa dinâmica de interação/relação entre moléculas (DNA, RNA, proteínas e metabólitos (açúcares e aminoácidos), (II) tecidos emergem da complexa dinâmica de interação/relação entre células, e assim

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por diante. Minha hipótese (a ser mais bem explorada adiante) é que, do conjunto de hábitos (entendidos como padrões organizados de conduta) de um indivíduo, emerge (como emergência sistêmica) o sentido de Eu, ou identidade pessoal. Considerando a associação entre o conceito de organização e o conceito de sistema, adoto agora a seguinte definição para sistema: uma unidade complexa e organizada, formada por um conjunto não vazio de elementos ativos que mantêm relações com características de invariância no tempo que lhe garantem a sua própria identidade (BRESCIANI; D’OTTAVIANO, 2004, p.239). O “complexo”, “de unidade complexa e organizada”, aponta para a presença de elementos e/ou partes em múltiplas interações/relações/conexões recíprocas. Mais precisamente, “complexo” envolve e pressupõe, em geral, um grande número de elementos e/ou partes mutuamente conectados e interdependentes, de modo que, por exemplo, mudanças em um elemento e/ou parte provocarão mudanças em outros elementos/partes (os associados) do sistema. As “partes” de um sistema podem constituir “subsistemas”. Já o conjunto não vazio de elementos de um sistema é o universo da estrutura que subjaz ao sistema mais geral. Um conjunto é uma coleção de elementos que compartilham ao menos uma ­propriedade. Apresento, agora, outra definição de sistema: um sistema constitui uma estrutura, um conjunto de elementos e relações (BRESCIANI; D’OTTAVIANO, 2004). Os elementos (e/ou os subsistemas) são as “partes”, os “componentes” ou os “agentes” de um sistema. Os elementos (I) “realizam atividades”, (II) “conduzem processos”, (III) “produzem fenômenos” e “transformações”. Assim, (I), (II) e (III) caracterizam o comportamento do sistema (BRESCIANI; D’OTTAVIANO, 2000). Já as relações entre os elementos de um sistema podem se manifestar em termos de (I) interações, (II) inter-relações,

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(III) interdependências, (IV) conjunções, (V) inclusões, (VI) implicações, (VII) combinações, (VIII) conexões e assim por diante. Essas relações “exercem restrições”, “determinações” e “estabelecem sujeições”, e tudo isso (restrições, determinações e sujeições) pode se manifestar como “leis”, “hábitos”, “relações fixas”, “hierarquia”, “controle das regularidades” e “ajuste” (BRESCIANI; D’OTTAVIANO, 2000). Enfatizemos que as relações entre “elementos”, “partes” e/ou “subsistemas” constituem aquilo que confere organização ao sistema. É como se um sistema fluísse relacional e interdependentemente do seu arranjo particular de “elementos”, “partes” e “subsistemas”. Assim, por exemplo, há nos sistemas biológicos em especial uma substituição dos elementos, “dos componentes materiais”, mas a “identidade do sistema” é prioritariamente preservada através da instanciação constante do mesmo arranjo relacional que o caracteriza e o organiza como sistema. Como afirma Laszlo (1996, p.05), no que diz respeito ao átomo de carbono, não importa [...] qual elétron preenche qual camada, desde que as suas (do carbono) ‘faixas energéticas’ sejam preenchidas com um número de elétrons proporcional (eis aí a relação) ao número de nêutrons em seu núcleo.

De modo similar, argumenta Laszlo (1996) que as células do nosso corpo são substituídas aproximadamente a cada sete anos. Contudo, as relações que conferem identidade biológica e pessoal a um indivíduo não são, a despeito do processo de renovação de elementos, modificadas juntamente com essa renovação, e/ou, quando são modificadas, tal modificação acontece em um período de tempo mais estendido. Entendo um hábito psicocomportamental como sendo constituído por uma relação (de tipo condicional, Se A, então B) entre um antecedente A (que representa a ocorrência de

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uma circunstância/ocasião ou acontecimento) e um consequente B (que representa um padrão de comportamento tido como apropriado para promover o ajuste do agente à circunstância antecedente A). Nesse sentido, o hábito constitui, tal como propõe Peirce (1958) uma disposição (ou prontidão) para se comportar de um modo característico B na ocorrência de uma circunstância específica A, e essa conexão entre A e B (entre antecedente circunstancial e consequente comportamental) estaria embutida na estrutura psicocomportamental do indivíduo. Mas vale dizer que os hábitos que conferem organização ao sistema psicocomportamental de um agente possuem, como relação, um grau de permanência e determinação causal fraco ou, talvez, melhor que isso, essencialmente plástico, mutável e passível de transformação. A relação habitual cumpre, contudo, e a despeito da sua plasticidade, a função de conferir organização à conduta do agente. O ciberneticista Ross Ashby (1962) chega mesmo a definir a organização de um sistema como um conjunto de relações de condicionalidade. Mais exatamente, na concepção de Ashby, o núcleo do conceito (de organização) é o de “condicionalidade”. Assim, “[...] tão logo a relação entre duas entidades A e B torna-se condicionada pelo valor ou estado de C, então uma componente [...] de “organização” está presente” (ASHBY, 1962, p.255). Ashby reconhece, pois, que as relações de condicionalidade são essenciais para caracterizar a organização de um sistema. Sustento, como fiz acima, que no sistema psicocomportamental os hábitos possuem a forma condicional Se A, então B subjacente ao seu modo de expressão. Na presença de A (o antecedente representado por uma circunstância específica, ocorrida no contexto de atuação de um agente), teríamos provavelmente que B (o consequente representado pelo comportamento) se seguiria em consonân-

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cia com a prescrição Se A, então B, o hábito que representa a relação de condicionalidade. Percebo, assim, o hábito como uma relação fixa, todavia quebrável, inscrita e conferindo organização ao sistema psicocomportamental de um agente rotineiramente engajado em seu mundo. Mais especificamente, essa relação possui um conteúdo organizador à medida que se manifesta pela não aleatoriedade e regularidade da conexão entre um estado de coisas A (representativo de um acontecimento) e um curso de comportamento (ou consequente) B em geral, mas não necessariamente, seguido ou adotado pelo agente. Possuir um hábito é, por conseguinte, possuir uma prontidão para, na presença de uma circunstância/ocasião A, comportar-se do modo B. O hábito requer que uma relação de condicionalidade (ainda que uma relação nomologicamente fraca) esteja em atividade na estrutura que subjaz ao sistema psicocomportamental de um agente. Na próxima seção desejo aprofundar um pouco mais a caracterização do hábito como relação de condicionalidade e como componente organizacional do sistema (ou estrutura) psicocomportamental.

A Forma Lógica (Nomológica) do Hábito Lembrarei agora, em vista do objetivo de aprofundar a caracterização do hábito como uma relação binária de condicionalidade entre antecedentes circunstanciais e consequentes comportamentais, alguns conceitos matemáticos. Uma relação n-ária sobre um conjunto (A, digamos) constitui um subconjunto (B, digamos) do conjunto A x A x ... A (n vezes). Além disso, os elementos desse subconjunto (os elementos de B) constituem sequências finitas de n elementos do conjunto A. Em particular, as relações binárias constituem subconjun-

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tos do conjunto formado pelos pares ordenados de elementos de um conjunto considerado (de A, digamos). Em outras palavras, se um par ordenado (a, b) pertence a uma relação binária, caracterizada como um conjunto de pares, então o par satisfaz a relação e, ipso facto, o primeiro elemento do par, “a”, está na relação com o segundo elemento do par, “b”. Um par ordenado (a, b) constitui um conjunto formado pelo elemento {a} e pelo elemento {a, b}, a e b podem ser conjuntos. A ordem sob a qual a e b aparece é relevante para a caracterização do par ordenado: a constitui a primeira coordenada do par e b constitui a segunda. Assim, sugiro que H é um hábito se H é uma relação binária R entre antecedentes circunstanciais a (as primeiras coordenadas) e consequentes comportamentais b (as segundas coordenadas), antecedentes e consequentes que constituem pares ordenados de conexões nomológicas fracas (quebráveis) inscritas (como padrão de organização) na estrutura do sistema psicocomportamental de um agente. A relação R é instituída pela satisfação de um acontecimento (ou circunstância) a está na relação R com um modo de comportamento b se a ocorrência de a é (na maioria dos casos) acompanhada pela adoção do modo de comportamento b. A relação R pode ser expressa como uma prescrição condicional contrafactual: se a circunstância a fosse o caso (ou acontecesse no mundo), então b (um modo de comportamento específico) seria provavelmente adotado pelo agente. Assim, R constitui uma relação binária entre circunstâncias (estados de coisas) e modos de comportamento ocasionados pela apresentação ou ocorrência dessas mesmas circunstâncias (estado de coisas). O par ordenado (06h00, acordar) pode constituir (como manifestação de “Se 06h00, então acordar”) um elemento do subconjunto formado pelos pares ordenados (circunstân-

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cia, modos de comportamento) que satisfazem uma relação (habitual) R (a relação habitual de acordar, todos os dias da semana, bem cedinho, às 06h00, para ir ao trabalho). Se R é uma relação binária, então: (a) o conjunto de todos os x que estão na relação R com algum y é chamado o domínio de R, denotado por dom R. Assim, dom R = {x/ existe y tal que xRy}, tal que x está na relação R com y. Dom R constitui o conjunto de todas as primeiras coordenadas dos pares ordenados em R (HRBACEK; JECH, 1999, p.17). No caso dos hábitos condicionais Se a, então b, o domínio de R constitui um subconjunto do conjunto de acontecimentos possíveis (como antecedentes a) para os quais o sujeito possuiria uma forma eficiente (os consequentes b) de resposta ou adoção de linha de conduta ou ação, (b) o conjunto de todos os y tais que, para algum x, x está na relação R com y, constitui a imagem “range” de R e é denotado por ran R. Assim, ran R= {y/ existe x tal que xRy}, ran R constitui o conjunto de todas as segundas coordenadas dos pares ordenados em R (HRBACEK; JECH, 1999). No caso de um hábito psicocomportamental, ran R constitui um subconjunto do conjunto de respostas ou consequentes comportamentais possíveis que podem ser adotados por um agente, conectados a certos antecedentes circunstancias (as primeiras coordenadas). Já (c) o conjunto dom R U ran R constitui o field (“campo”) de R (HRBACEK; JECH, 1999). O field pode ser interpretado como um contexto, um conjunto de circunstâncias possíveis e modos de comportamento possíveis (e considerados apropriados/eficientes para promover o ajuste do agente às circunstâncias do contexto). Considerando o hábito como relação e/ou considerando a natureza relacional do hábito (capaz de conectar de modo exitoso no sistema psicocomportamental certas circunstâncias a certos comportamentos ou padrões de conduta), sugiro

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que, quando analisamos um hábito H, encontramos, ao menos, o seguinte: (I) um conjunto Ci de circunstâncias em que H pode ser aplicado com eficiência prática, (II) um conjunto Cq de consequências que provavelmente decorreriam, caso H fosse aplicado aos elementos de Ci e (III), uma prontidão ou disposição para adotar o comportamento prescrito por H, caso qualquer das circunstâncias de Ci ocorressem no contexto de atuação do agente. A prontidão ou disposição para professar o comportamento prescrito pelo hábito constitui a determinação nomologicamente fraca da conduta embutida na conexão entre antecedente e consequente (conexão essa que é, propriamente falando, o que caracteriza o hábito). A determinação da conduta é fraca em virtude do fato de sermos sempre capazes de impedir, por intermédio de uma reflexão racional, a atualização e/ou instanciação da linha de conduta (ou curso comportamental) prescrito pelo hábito. Além disso, podemos, ainda, alterar ou dissolver o hábito, caso o hábito não esteja cristalizado na estrutura psicocomportamental. Como quer que seja, a ideia que defendo é a de que o conjunto de hábitos do agente constitui a estrutura (e/ou padrão de organização) da personalidade desse mesmo agente (os hábitos conferem forma/personalidade ao agente). A nossa personalidade (já, em maior ou menor grau, consolidada) seria meramente uma personalidade possível entre muitas outras lógica e psicologicamente igualmente possíveis (mas não, ipso facto, atuais ou atualizadas). Uma versão alternativa, diferente da atual ou contrafactual, de nós mesmos seria concebível caso organizássemos nossa ação-no-mundo em concordância com outros hábitos, do mesmo modo que, digamos exemplarmente, um mundo possível, diferente do mundo atual ou contrafactual, seria concebível caso um conjunto alternativo de leis físico-químicas (leis naturais) estivesse em atividade na na-

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tureza. O filósofo Charles Sanders Peirce, nas citações abaixo, parece expressar uma visão semelhante à visão que defendo acerca da estrutura da personalidade: “[...] Cada hábito de um indivíduo é uma lei.” (CP, 1.348)1. Lemos, ainda, que [...] por um hábito condicional, desejo denotar uma determinação da natureza oculta de um indivíduo que tende a causá-lo a atuar de certo modo geral [um consequente] no caso de certas circunstâncias gerais aparecerem (os antecedentes) [...] (CP, 5, endnotes).

Assim, o que o conjunto de leis naturais faz pelo mundo físico/material (confere organização e identidade ao mundo físico/material) é análogo, do ponto de vista formal e funcional, ao que o conjunto de hábitos de um agente faz por esse agente (confere organização e identidade pessoal ao agente). Não por outra razão, quando nos tornamos nós mesmos, quando estabelecemos quem somos pelos hábitos e/ou papel que desempenhamos, outros possíveis (ou ­contrafactuais) “quem poderíamos ser”, ou “quem poderíamos ter sido”, são deixados para trás como possibilidades não atualizadas, versões meramente possíveis de nós mesmos. A “vantagem” é que, ao atualizar/esculpir uma personalidade ou uma versão de nós mesmos, se, com tal versão, produzimos ou instanciamos, também, um sentido (profundo e enraizado) de pessoa, teremos sido exitosos na criação/produção de quem somos como indivíduos humanos. Sugeri acima que parte da identidade de um agente é dada por um conjunto de hábitos como prescrições condicionais (relações de condicionalidade contrafactual embutidas na estrutura psicocomportamental de um agente). Gostaria, 1

Conforme padrão de referência à obra de Charles Peirce, CP significa Collected Papers e, após CP, o primeiro número indica o livro do qual a citação teria sido extraída (na citação acima, livro 01). O segundo número indica, por sua vez, o parágrafo (na citação acima, o parágrafo 348).

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agora, de oferecer uma classificação dos hábitos em dois subconjuntos bem característicos: os hábitos identitários (que, mais marcadamente, codificam traços da identidade do agente) e os hábitos adaptativos (responsáveis pelo ajuste do agente ao seu contexto de atuação) (ANDRADE et al., 2010). Os hábitos identitários seriam hábitos mais fortes ou estáveis (em comparação com os hábitos adaptativos racionais) e que, por conseguinte, não variariam de domínio para domínio e/ ou de contexto para contexto. Na medida em que o hábito compõe uma relação entre ocasião/circunstância, como domínio, e comportamento, como imagem, é lícito afirmar que, a cada momento, quem somos como pessoas é estabelecido, ao menos em parte, pelo domínio e/ou contexto de atuação no qual estamos inseridos (incorporados e culturalmente situados). Uma parcela da nossa identidade pessoal seria, assim, atualizada pelas circunstâncias de um domínio, uma vez que o comportamento constitui o modo pelo qual respondemos a essas circunstâncias. Os hábitos identitários constituem, contudo, hábitos transportáveis de domínio para domínio e/ou de contexto para contexto. Se, digamos exemplarmente, um agente possui o traço (e/ou hábito identitário) da “polidez”, tal agente tende a transportar esse traço para todos ou para a grande maioria de seus domínios de atuação, como o lazer, trabalho e assim por diante (ANDRADE et al., 2010). Por sua vez, os hábitos adaptativos (representativos de estratégias de ajuste ao domínio e/ou contexto) precisam persistir fracos e passíveis de modificação. Modificação esta que deve ser empreendida sempre que aparecerem razões para tanto, de modo a fazer com que o agente seja permanentemente capaz de congregar novidades, desenvolver e incorporar, por exemplo, respostas inauditas a circunstâncias inauditas, que se apresentam em seus (do agente) domínios de

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interação e vivência. Gostaria, ainda, de desenvolver mais a classificação dos hábitos. Caracterizo os hábitos adaptativos que permanecem como adaptativos (que podem ser modificados, casos razões para tanto se apresentem) como hábitos racionais. Ainda que constitua uma resposta comportamental pronta e “automatizada”, como é o caso com o comportamento gerado por qualquer hábito, o comportamento instanciado pelo hábito racional tem a “razão” como fundamento. O hábito racional é, por conseguinte, um hábito deliberadamente automatizado.É como se, para usar uma metáfora, a razão admitisse que operássemos no modus “piloto automático”. Ao menor sinal, todavia, de “turbulência”, que denotaria a experiência da inadequabilidade do comportamento gerado pelo hábito, a “razão” seria convidada a redefinir, ajustar tal comportamento (ANDRADE et al., 2010). Mais explicitamente, sugiro que, no que diz respeito ao hábito racional, a prontidão para se comportar do modo B na presença da circunstância A (que caracteriza qualquer hábito) deve estar em conformidade com um propósito escolhido pelo agente. Assim, se reconhecemos que um hábito não está em conformidade com um propósito, podemos alterar tal hábito. O insucesso em assim o fazer, na ausência de obstáculos físicos e/ou fisiológicos, denotaria algum grau de cristalização do hábito, tipificando-o, ipso facto, como um hábito degenerado. Seja como for, escolhido um propósito P, a decisão racional de alterar o hábito que não promove P, será um passo importante na reestruturação do sistema psicocomportamental, do conjunto de hábitos do agente. Como sugeri acima, a organização psicocomportamental é, em especial, dada por um conjunto de hábitos interconectados em uma unidade sistêmica (ANDRADE et al., 2010).

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Assim sendo, se desejamos modificar um hábito H, será necessário, também, e dada a interconexão dos hábitos no sistema psicocomportamental, modificar os hábitos associados (diretamente conectados) a H. Pode acontecer que um curso de mudança comportamental descubra um impedimento, em virtude de uma cristalização, em um hábito I (que não promove o propósito P), hábito esse diretamente relacionado ao hábito H. Pode ser que o agente decida persistir nessa mudança comportamental, revelando-se capaz de evitar a atualização dos consequentes comportamentais gerados pelo hábito I por certo tempo, porém não de um modo definitivo. Pode ser que a mudança comportamental necessite ser repensada. Como quer que seja, os hábitos psicocomportamentais devem interagir entre si para que uma mudança comportamental venha a expressar um ajuste organizatório e sistêmico entre eles e não tão somente mero desejo da razão (ou capacidade reflexiva) do agente. Estou aqui pensando em uma concepção sistêmica de agente, agente como sistema/sujeito, o que pressupõe que a capacidade reflexiva e as propriedades de autonomia e autodeterminação de um agente são propriedades/partes importantes da organização que suporta o sistema/agente, mas elas não constituem as únicas propriedades ou partes caracterizadoras da identidade do sistema/agente. Temos, por exemplo, o corpo, os diversos subsistemas, os hábitos, o papel do contexto de atuação do sistema/agente e assim por diante. Mais precisamente, as propriedades de autonomia e autodeterminação não constituem as únicas propriedades ou partes relevantes nesta concepção de sistema/agente (e identidade pessoal) em ­virtude de o termo “sistema” se aplicar a uma “totalidade organizada”, e não apenas, por isso mesmo, a uma de suas partes, como a mente (ou capacidade reflexiva de um sujeito).

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Ao considerar, sistemicamente, que o contexto de atuação de um agente é relevante para determinação de sua identidade, estou me afastando de uma concepção internalista e/ou subjetivista de identidade pessoal (eu como substância racional, pensante, que governa o corpo e estabelece as ações em conformidade com as luzes que constantemente emanam da razão). Estou igualmente, ipso facto, me aproximando de (ou defendendo) uma concepção externalista de pessoa, segundo a qual a identidade está, também, dissolvida nas – e é moldada – pelas circunstâncias e domínios pertencentes ao contexto de atuação do agente. Como disse acima, os hábitos psicocomportamentais, no caso de uma alteração de hábitos vislumbrada pelo sujeito, devem interagir entre si, para que esta corresponda a um ajuste organizatório e sistêmico entre eles, e não apenas constitua um desejo da razão ou expressão de uma pessoa concebida em termos internalistas. Caso, contudo, tal ajuste ocorra e o agente o reconheça como algo similar à mudança comportamental por ele vislumbrada, haverá uma significativa auto-organização do seu sistema psicocomportamental (ANDRADE et al., 2010). Proponho, portanto, a seguinte caracterização: X é um hábito racional para o agente S no instante t’se, e somente se, X traz boas consequências para S em t’, e S pode mudar X em t’’, caso as consequências de X em t” se tornarem ruins para S (ANDRADE et al., 2010). Desse modo, um hábito racional constitui uma prontidão para a ação que, em concordância com um propósito P (estabelecido pelo agente), tende a trazer consequências exitosas (favoráveis à consecução de P), ou que seja fraco ou alterável, ou seja, que seja um hábito capaz de participar de um processo positivo de ajuste sistêmico ou organizatório do conjunto de hábitos inscritos na estrutura psicocomportamental

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de um agente. Em oposição aos hábitos racionais, os hábitos adaptativos que se cristalizaram, ou perderam a plasticidade, e que, por isso mesmo, não podem mais ser modificados pelo agente, serão caracterizados como hábitos degenerados (talvez as mais diversas modalidades de vícios – para quem aspira se livrar e não consegue – constituam exemplos de hábitos degenerados). Para encerrar essa seção seria pertinente dizer algumas palavras acerca da função propriamente cognitiva (de economia mental/representacional) desempenhada pelo hábito. Acredito que a função do hábito seja a de evitar surpresas. Se um curso comportamental produz e tem nos conduzido a consequências desejáveis e adaptativas, caso adotado diante de certa circunstância, então, uma vez que a circunstância venha a ocorrer em nosso contexto de atuação, poderemos nos comportar da maneira usual, regular, já que muito provavelmente a maneira usual (o modo regular prescrito pelo hábito) nos transportará às próprias consequências desejáveis e adaptativas. Um comportamento não usual ou comum (não apoiado em hábitos bem estabelecidos) pode, não obstante, levar a consequências indesejadas e, ipso facto, preferimos, em geral, não adotar tal curso comportamental. É como se os hábitos bem estabelecidos diretamente conectassem percepção sensorial, memória e comportamento, produzindo modalidades exitosas de adaptação do agente ao contexto. Tendemos, quando guiados pelos hábitos, a nos comportarmos de modo ao mesmo tempo hábil e espontâneo, sem o controle e a vigilância constante da experiência consciente. Sem contar, contudo, com os hábitos, temos que conceber hipóteses comportamentais e testar linhas comportamentais.

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Pensamento Africano A presente seção constitui expressão de um estudo, recentemente iniciado,e, por essa mesma razão, muito preliminar e provisório acerca do conceito de pessoa no pensamento africano. Adeofe (2004) argumenta em defesa da tese segundo a qual a pessoa, concebida à luz do pensamento africano, é ontologicamente constituída por uma tríade (por três elementos necessários à caraterização do Eu). São eles: (I) ara (corpo), (II) emi (mente/corpo) e (III) ori (mente interna). Diferentemente do corpo (ara), que possuiria natureza física/ material, tanto a mente/corpo (emi) quanto a mente interna (ori) possuiriam natureza mental e/ou espiritual. Adeofe sugere, também, que a partição acima esboçada entre físico/material e mental/espiritual não significa um dualismo (como a partição cartesiana entre Res cogitans – a mente racional, que controla o corpo mecânico – e Res extensa – o corpo material). A concepção africana de pessoa seria, antes, e de acordo com Adeofe (2004), genuinamente triádica, uma vez que ori (a mente interna) seria independente tanto de ara (o corpo) quanto de emi (a mente/corpo). Nesse sentido, ara (corpo) constituiria a base material interna (aí incluindo processos metabólicos e fisiológicos) e externa (dos pés à cabeça) da pessoa. Ara torna-se consciente em virtude da presença de emi (mente/corpo). Emi, por sua vez, é concebido como sendo imortal e indicativo da presença, em ara, de experiências fenomenológicas e capacidades cognitivas e racionais. Já ori (a mente interna) é propriamente o portador do destino da pessoa, ipso facto, constituindo parte fundamental (talvez a parte mais fundamental) da identidade da pessoa. De ori decorrem, também, os propósitos que as pessoas adotam para suas vidas (ADEOFE, 2004).

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Emi e/ou ori estão (ou podem estar) conectados ao domínio da ancestralidade, entendida, de modo bastante geral, como fonte inesgotável de valores, atitudes, proteção e orientação. Os ancestrais seriam, mais explicitamente, espíritos desencarnados, no aqui e agora do mundo, benevolentes, além de responsáveis por estabelecer a ligação e partilha do conhecimento entre o mundo material (dos vivos) e o mundo espiritual (das entidades divinas). Quanto mais a pessoa envelhece, tanto mais se aproxima do mundo espiritual, do domínio da ancestralidade. Razão pela qual os mais velhos tendem a ser respeitados e venerados na cultura africana. Mas o ponto que gostaria mesmo de destacar nesta seção é que a ancestralidade constitui, além de ara, emi e ori, senão mesmo um elemento, um traço identitário forte da pessoa africana. Uma vez, contudo, que os ancestrais não habitariam o espaço físico circunscrito pela epiderme da pessoa (o corpo ou ara), e a ancestralidade constituiria um traço identitário forte da pessoa africana, parece lícito afirmar (comparando a concepção africana de pessoa com a concepção cartesiana de pessoa) que a concepção africana de pessoa está próxima a uma concepção externalista de pessoa, que considera que a identidade pessoal não decorre apenas da racionalidade da pessoa (emi?) como ser pensante, mas está presente também no ambiente externo e na tradição ou cultura (na condição de um conjunto de hábitos coletivos) como um todo. Por fim, gostaria de indicar como continuarei conduzindo a pesquisa sobre o conceito de pessoa no pensamento africano. Estou, em especial, e em primeiro lugar, interessado em melhor compreender as relações entre ara, emi e ori. Assim, por exemplo, Adeofe (2004) sugere que ori, além de constituir elemento da identidade da pessoa, confere estabilidade e unidade ao eu, unificando (assim entendo) as relações entre ara e

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emi. Nesse sentido, poderíamos aplicar os conceitos da Teoria dos Sistemas na análise da concepção africana de pessoa? Em Teoria de Conjuntos, o conjunto potência de um conjunto S, P(S) (“power set”) é o conjunto de todos os subconjuntos do conjunto S considerado. Um sistema é um conjunto interdependente de unidades de organização ou subsistemas. É como se, nesse sentido, um sistema constituísse um power set, colecionando e, mais do que isso, integrando todos os seus subconjuntos ou planos de organização (MORIN, 1999). O sistema é, nesse sentido, uma “unidade unificadora”, um conjunto potência que preserva o múltiplo representado pelos planos de organização (os subconjuntos) que ele, como sistema, “coleciona” e, mais do que isso, “unifica”. Poderíamos, à luz do acima exposto, conceber (metodologicamente) ori como uma “unidade unificadora”? Poderíamos, igualmente, conceber (metodologicamente) ara e emi como unidades de organização ou subsistemas? Esse é o curso que tomarei na condução futura da minha pesquisa sobre o pensamento africano.

Considerações Finais A identidade pessoal ou sistêmica poderia ser concebida, da perspectiva que defendo, como emergindo de um conjunto próprio e individual, de hábitos inscritos na estrutura ou sistema psicocomportamental de um agente. Esses hábitos seriam, no exercício da vida, substituídos e alterados, garantindo a construção de um sentido de identidade plástico, em constante adaptação ao contexto (realidade sociocultural). Mais explicitamente argumentamos, no escopo da hipótese segundo a qual a organização é instanciada fundamentalmente via relações de condicionalidade, que nossa identidade como agente é essencialmente constituída por um conjunto de hábitos psi-

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cocomportamentais (hábitos condicionais). Isso consistiu uma questão de enfoque, ou perspectiva, e é mais uma espécie de proposta de uma caricatura de nós mesmos (e/ou da concepção de agente) do qualquer outra coisa. Ou seja, se acentuássemos nossos hábitos em uma representação tal como os traços físicos mais salientes de um sujeito são acentuados na composição de uma caricatura, teríamos uma caricatura psicocomportamental de nós mesmos (como agentes). Com um pouco de sorte, caso tal caricatura tenha sido bem feita, como a relação que a caricatura guarda com seu objeto (no caso, agentes) é uma relação estabelecida pela semelhança (signo icônico), talvez possamos reconhecer propriedades nossas, como agentes, na análise do hábito psicocomportamental que explorei.

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SÉRIE DIÁLOGOS INTEMPESTIVOS

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22. Culturas, currículos e identidades. Luiz Botelho de Albuquerque (Org.). 231p. ISBN: 85-7282-165-1. 23. Polifonias: vozes, olhares e registros na filosofia da educação. José Gerardo Vasconcelos, Andréa Pinheiro e Érica Atem (Orgs.) 274p. ISBN: 857282166-X. 24. Coisas de cidade. José Gerardo Vasconcelos e Shara Jane Holanda Costa Adad. ISBN: 85-7282-172-4. 25. O caminho se faz ao caminhar. Maria Nobre Damasceno e Celecina de Maria Vera Sales (Orgs.). 2005. 230p. ISBN: 85-7282-179-1. 26. Artesania do saber: tecendo os fios da educação popular. Maria Nobre Damasceno (Org.). 2005. 169p. ISBN: 85-7282-181-3. 27. História da educação: instituições, protagonistas e práticas. Maria Juraci Maia Cavalcante e José Arimatea Barros Bezerra. (Orgs.). 458p. ISBN: 85-7282-182-1. 28. Linguagens, literatura e escola. Sylvie Delacours-Lins e Sílvia Helena Vieira Cruz (Orgs.). 2005. 221p. ISBN: 85-7282-184-8. 29. Formação humana e dialogicidade em Paulo Freire. Maria Ercília Braga de Olinda e João Batista de A. Figueiredo (Orgs.). 2006. ISBN: 85-7282-186-4. 30. Currículos contemporâneos: formação, diversidade e identidades em transição. Luiz Botelho Albuquerque (Org.). 2006. ISBN: 85-7282-188-0. 31. Cultura de paz, educação ambiental e movimentos sociais. Kelma Socorro Lopes de Matos (Org.). 2006. ISBN: 85-7282-189-9. 32. Movimentos sociais, educação popular e escola: a favor da diversidade II. Sylvio de Sousa Gadelha e Sônia Pereira Barreto (Orgs.). 2006. 172p. ISBN: 85-7282-192-9. 33. Entretantos: diversidade na pesquisa educacional. José Gerardo Vasconcelos, Emanoel Luís Roque Soares e Isabel Magda Said Pierre Carneiro (Orgs.). ISBN: 85-7282-194-5. 34. Juventudes, cultura de paz e violências na escola. Maria do Carmo Alves do Bomfim e Kelma Socorro Lopes de Matos (Orgs.). 2006. 276p. ISBN: 85-7282-204-6. 35. Diversidade sexual: perspectivas educacionais. Luís Palhano Loiola. 183p. ISBN: 85-7282-214-3. 36. Estágio nos cursos tecnológicos: conhecendo a profissão e o profissional. Gregório Maranguape da Cunha, Patrícia Helena Carvalho Holanda, Cristiano Lins de Vasconcelos (Orgs.). 93p. ISBN: 85-7282-215-1. 37. Jovens e crianças: outras imagens. Kelma Socorro Lopes de Matos, Shara Jane Holanda Costa Adad e Maria Dalva Macedo Ferreira (Orgs.). 221p. ISBN: 85-7282-219-4. 38. História da educação no Nordeste brasileiro. José Gerardo Vasconcelos e Jorge Carvalho do Nascimento (Orgs.). 2006. 193p. ISBN: 85-7282-220-8. 39. Pensando com arte. José Gerardo Vasconcelos e José Albio Moreira de Sales (Orgs.). 2006. 212p. ISBN: 85-7282-221-6. 40. Educação, política e modernidade. José Gerardo Vasconcelos e Antonio Paulino de Sousa (Orgs.). 2006. 209p. ISBN: 978-85-7282-231-2. 41. Interfaces metodológicas na história da educação. José Gerardo Vasconcelos, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, Zuleide Fernandes de Queiroz e José Edvar Costa de Araújo (Orgs.). 2007. 286p. ISBN: 978-85-7282-232-9. 42. Práticas e aprendizagens docentes. Ercília Maria Braga de Olinda e Dorgival Gonçalves Fernandes (Orgs.). 2007. 196p. ISBN 978.85-7282.246-6. 43. Educação ambiental dialógica: as contribuições de Paulo Freire e as representações sociais da água em cultura sertaneja nordestina. João B. A. Figueiredo. 2007. 385p. ISBN: 978-85-7282-245-9. 44. Espaço urbano e afrodescendência: estudos da espacialidade negra urbana para o debate das políticas públicas. Henrique Cunha Júnior e Maria Estela Rocha Ramos (Orgs.). 2007. 209. ISBN: 978-85-7282-259-6.

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45. Outras histórias do Piauí. Roberto Kennedy Gomes Franco e José Gerardo Vasconcelos. 2007. 197p. ISBN: 978-85-7282-263-3. 46. Estágio supervisionado: questões da prática profissional. Gregório Maranguape da Cunha, Patrícia Helena Carvalho Holanda e Cristiano Lins de Vasconcelos (Orgs.). 2007. 163p. ISBN: 978-85-7282-265-7. 47. Alienação, trabalho e emancipação humana em Marx. Jorge Luís de Oliveira. 2007. 291p. ISBN: 978-85-7282-264-0. 48. Modo de brincar, lembrar e dizer: discursividade e subjetivação. Maria de Fátima Vasconcelos da Costa, Veriana de Fátima Rodrigues Colaço e Nelson Barros da Costa (Orgs.). 2007. 347p. ISBN: 978.85-7282-267-1. 49. De novo ensino médio aos problemas de sempre: entre marasmos, apropriações e resistências escolares. Jean Mac Cole Tavares Santos. 2007. 270p. ISBN: 978.85-7282-278-7. 50. Nietzscheanismos. José Gerardo Vasconcelos, Cellina Muniz e Roberto Kennedy Gomes Franco (Orgs.). 2008. 150p. ISBN: 978.85-7282-277-0. 51. Artes do existir: trajetórias de vida e formação. Ercília Maria Braga de Olinda e Francisco Silva Cavalcante Júnior (Orgs.). 2008. 353p. ISBN: 978-85-7282-269-5. 52. Em cada sala um altar, em cada quintal uma oficina: o tradicional e o novo na história da educação tecnológica no Cariri cearense. Zuleide Fernandes de Queiroz (Org.). 2008. 403p. ISBN: 978-85-7282-280-0. 53. Instituições, campanhas e lutas: história da educação especial no Ceará. Vanda Magalhães Leitão. 2008. 169p. ISBN: 978-85-7282-281-7. 54. A pedagogia feminina das casas de caridade do padre Ibiapina. Maria das Graças de Loiola Madeira. 2008. 391p. ISBN: 978-85-7282-282-4. 55. História da educação — vitrais da memória: lugares, imagens e práticas culturais. Maria Juraci Maia Cavalcante, Zuleide Fernandes de Queiroz, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior e José Edvar Costa de Araujo (Orgs.). 2008. 560p. ISBN: 978-85-7282-284-8. 56. História educacional de Portugal: discurso, cronologia e comparação. Maria Juraci Maia Cavalcante. 2008. 342p. ISBN: 978-85-7282-283-1. 57. Juventudes e formação de professores: o ProJovem em Fortaleza. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos e Paulo Roberto de Sousa Silva (Orgs.). 2008. 198p. ISBN: 978-85-7282-295-4. 58. História da educação: arquivos, documentos, historiografia, narrativas orais e outros rastros. José Arimatea Barros Bezerra (Org.). 2008. 276p. ISBN: 978-857282-285-5. 59. Educação: utopia e emancipação. Casemiro de Medeiros Campos. 2008. 104p. ISBN: 978-85-7282-305-0. 60. Entre línguas: movimentos e mistura de saberes. Shara Jane Holanda Costa Adad, Ana Cristina Meneses de Sousa Brandim e Maria do Socorro Rangel (Orgs.). 2008. 202p. ISBN: 978-85-7282-306-7. 61. Reinventar o presente: . . . pois o amanhã se faz com a transformação do hoje. Reinaldo Matias Fleuri. 2008. 76p. ISBN: 978-85-7282-307-4. 62. Cultura de paz: do Conhecimento à Sabedoria. Kelma Socorro Lopes de Matos, Verônica Salgueiro do Nascimento e Raimundo Nonato Júnior (Orgs.) 2008. 260p. ISBN: 978-85-7282-311-1. 63. Educação e afrodescendência no Brasil. Ana Beatriz Sousa Gomes e Henrique Cunha Júnior (Orgs.). 2008. 291p. ISBN: 978-85-7282-310-4. 64. Reflexões sobre a fenomenologia do espírito de Hegel. Eduardo Ferreira Chagas, Marcos Fábio Alexandre Nicolau e Renato Almeida de Oliveira (Orgs.). 2008. 285p. ISBN: 978-85-7282-313-5.

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65. Gestão escolar: saber fazer. Casemiro de Medeiros Campos e Milena Marcintha Alves Braz (Orgs.). 2009. 166p. ISBN: 978-85-7282-316-6. 66. Psicologia da educação: teorias do desenvolvimento e da aprendizagem em discussão. Maria Vilani Cosme de Carvalho e Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Orgs.). 2008. 241p. ISBN: 978-85-7282-322-7. 67. Educação ambiental e sustentabilidade. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2008. 210p. ISBN: 978-85-7282-323-4. 68. Projovem: experiências com formação de professores em Fortaleza. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2008. 214p. ISBN: 978-85-7282-324-1. 69. A filosofia moderna. Antonio Paulino de Sousa e José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 2008. 212p. ISBN: 978-85-7282-314-2. 70. Formação humana e dialogicidade em Paulo Freire II: reflexões e possibilidades em movimento. João B. A. Figueiredo e Maria Eleni Henrique da Silva (Orgs.). 2009. 189p. ISBN: 978-85-7282-312-8. 71. Letramentos na Web: Gêneros, Interação e Ensino. Júlio César Araújo e Messias Dieb (Orgs.). 2009. 286p. ISBN: 978-85-7282-328-9. 72. Marabaixo, dança afrodescendente: Significando a Identidade Étnica do Negro Amapaense. Piedade Lino Videira. 2009. 274p. ISBN: 978-85-7282-325-8. 73. Escolas e culturas: políticas, tempos e territórios de ações educacionais. Maria Juraci Maia Cavalcante, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, José Edvar Costa de Araujo e Zuleide Fernandes de Queiroz (Orgs.). 2009. 445p. ISBN: 97885-7282-333-3. 74. Educação, saberes e práticas no Oeste Potiguar. Jean Mac Cole Tavares Santos e Zacarias Marinho. (Orgs.). 2009. 225p. ISBN: 978-85-7282-342-5. 75. Labirintos de clio: práticas de pesquisa em História. José Gerardo Vasconcelos, Samara Mendes Araújo Silva e Raimundo Nonato Lima dos Santos. (Orgs.). 2009. 171p. ISNB: 978-85-7282-354-8. 76. Fanzines: autoria, subjetividade e invenção de si. Cellina Rodrigues Muniz. (Org.). 2009. 139p. ISBN: 978-85-7282-366-1. 77. Besouro cordão de ouro: o capoeira justiceiro. José Gerardo Vasconcelos. 2009. 109p. ISBN: 978-85-7282-362-3. 78. Da teoria à prática: a escola dos sonhos é possível. Adelar Hengemuhle, Débora Lúcia Lima Leite Mendes, Casemiro de Medeiros Campos (Orgs.). 2010. 167p. ISBN: 978-85-7282-363-0. 79. Ética e cidadania: educação para a formação de pessoas éticas. Márie dos Santos Ferreira e Raphaela Cândido (Orgs.). 2010. 115p. ISBN: 978-85-7282-373-9. 80. Qualidade de vida na infância: visão de alunos da rede pública e privada de ensino. Lia Machado Fiuza Fialho e Maria Teresa Moreno Valdés. 2009. 113p. ISBN: 978-85-7282-369-2. 81. Federalismo cultural e sistema nacional de cultura: contribuição ao debate. Francisco Humberto Cunha Filho. 2010. 155p. ISBN: 978-85-7282-378-4. 82. Experiências e diálogos em educação do campo. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos, Carmen Rejane Flores Wizniewsky, Ane Carine Meurer e Cesar De David (Orgs.) 2010. 129p. ISBN: 978-85-7282-377-7. 83. Tempo, espaço e memória da educação: pressupostos teóricos, metodológicos e seus objetos de estudo. José Gerardo Vasconcelos, ­Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, José Edvar Costa de Araújo, José Rogério Santana, Zuleide Fernandes de Queiroz e Ivna de Holanda Pereira (Orgs.). 2010. 718p. ISBN: 97885-7282-385-2.82. 84. Os Diferentes olhares do cotidiano profissional. Cassandra Maria Bastos Franco, José Gerardo Vasconcelos e Patrícia Maria Bastos Franco. 2010. 275p. ISBN: 978-85-7282-381-4.

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85. Fontes, métodos e registros para a história da educação. José Gerardo Vasconcelos, José Rogério Santana, ­Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior e Francisco Ari de Andrade (Orgs.) 2010. 221p. ISBN: 978-85-7282-383-8. 86. Temas educacionais: uma coletânea de artigos. Luís Távora Furtado Ribeiro e Marco Aurélio de Patrício Ribeiro. 2010. 261p. ISBN: 978-85-7282-389-0. 87. Educação e diversidade cultural. Maria do Carmo Alves do Bomfim, Kelma Socorro Alves Lopes de Matos, Ana Beatriz Sousa Gomes e Ana Célia de Sousa Santos. 2009. 463p. ISBN: 978-85-7282-376-0. 88. História da educação: nas trilhas da pesquisa. José Gerardo Vasconcelos, José Rogério Santana, ­Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior e Francisco Ari de Andrade (Orgs.) 2010. 239p. ISBN: 978-85-7282-384-5. 89. Artes do fazer: trajetórias de vida e formação. Ercília Maria Braga de Olinda (Org.). 2010. 335p. ISBN: 978-85-7282-398-2. 90. Lápis, agulhas e amores: história de mulheres na contemporaneidade. José Gerardo Vasconcelos, Samara Mendes Araújo Silva, Cassandra Maria Bastos Franco e José Rogério Santana (Orgs.) 2010. 327p. ISBN: 978-85-7282-395-1. 91. Cultura de paz, ética e espiritualidade. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos e Raimundo Nonato Junior (Orgs.). 2010. 337p. ISBN: 978-85-7282-403-3. 92. Educação ambiental e sustentabilidade II. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2010. 241p. ISBN: 978-85-7282-407-1. 93. Ética e as reverberações do fazer. Kleber Jean Matos Lopes, Emílio Nolasco de Carvalho e Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Orgs.). 2011. 205p. ISBN: 978-85-7282-424-8. 94. Contrapontos: democracia, república e constituição no Brasil. Filomeno Moraes. 2010. 205p. ISBN: 978-85-7282-421-7. 95. Paulo Freire: teorias e práticas em educação popular — escola pública, inclusão, humanização (Org.). 2011. 241p. ISBN: 978-85-7282-419-4. 96. Formação de professores e pesquisas em educação: teorias, metodologias, práticas e experiências docentes. Francisco Ari de Andrade e Jean Mac Cole Tavares Santos (Orgs.). 2011. 307p. ISBN: 978-85-7282-427-9. 97. Experiências de avaliação curricular: possibilidades teórico-práticas. Meirecele Caliope Leitinho e Patrícia Helena Carvalho Holanda (Orgs.). 2011. 208p. ISBN: 978-85-7282-437-8. 98. Elogio do cotidiano: educação ambiental e a pedagogia silenciosa da caatinga no sertão piauiense. Sádia Gonçalves de Castro (Orgs.). 2011. 243p. ISBN: 978-857282-438-6. 99. Recortes das sexualidades. Adriano Henrique Caetano Costa, Alexandre Martins Joca e Francisco Pedrosa Ramos Xavier Filho (Orgs.). 2011. 214p. ISBN: 978-857282-444-6. 100. O Pensamento pedagógico hoje. José Gerardo Vasconcelos e José Rogério Santana (Orgs.). 2011. 187p. ISBN: 978-85-7282-428-6. 101. Inovações, cibercultura e educação. José Rogério Santana, José Gerardo Vasconcelos, Vania Marilande Ceccatto, Francisco Herbert Lima Vasconcelos e Júlio Wilson Ribeiro (Orgs.). 2011. 301p. ISBN: 978-85-7282-429-3. 102. Tribuna de vozes. José Gerardo Vasconcelos, Renata Rovaris Diorio e Flávio José Moreira Gonçalves (Orgs.). 2011. 530p. ISBN: 978-85-7282-446-0. 103. Bioinformática, ciências biomédicas e educação. José Rogério Santana, Lia Machado Fiuza Fialho, Francisco Fleury Uchoa Santos Júnior, Vânia Marilande Ceccatto (Orgs.). 2011. 277p. ISBN: 978-85-7282-450-7. 104. Dialogando sobre metodologia científica. Helena Marinho, José Rogério Santana e (Orgs.). 2011. 165p. ISBN: 978-85-7282-463-7.

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105. Cultura, educação, espaço e tempo. Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, José Gerardo Vasconcelos, José Rogério Santana, Keila Andrade Haiashida, Lia Machado Fiuza Fialho, Rui Martinho Rodrigues e Francisco Ari de Andrade (Orgs.). 2011. 743p. ISBN: 978-85-7282-453-8 106. Artefatos da cultura negra no Ceará. Henrique Cunha Júnior, Joselina da Silva e Cicera Nunes (Orgs.). 2011. 283p. ISBN: 978-85-7282-464-4. 107. Espaços e tempos de aprendizagens: geografia e educação na cultura. Stanley Braz de Oliveira, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, José Gerardo Vasconcelos e Márcio Iglésias Araújo Silva (Orgs.). 2011. 157p. ISBN: 978-857282-483-5. 108. Muitas histórias, muitos olhares: relatos de pesquisas na história da educação. José Rogério Santana, José Gerardo Vasconcelos, Gablielle Bessa Pereira Maia e Lia Machado Fiuza Fialho (Orgs.). 2011. 339p. ISBN 978-85-7282-466-8. 109. Imagem, memória e educação. José Rogério Santana, José Gerardo Vasconcelos, Lia Machado Fiuza Fialho, Cibelle Amorim Martins e Favianni da Silva (Orgs.). 2011. 322p. ISBN: 978-85-7282-480-4. 110. Corpos de rua: cartografia dos saberes Juvenis e o Sociopoetizar dos Desejos dos Educadores. Shara Jane Holanda Costa Adad. 2011. 391p. ISBN: 978-85-7282-447-7. 111. Barão e o prisioneiro: biografia e história de vida em debate. Charliton José dos Santos Machado, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior e José Gerardo Vasconcelos. 2011. 76p. ISBN: 978-85-7282-475-0. 112. Cultura de paz, ética e espiritualidade II. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2011. 363p. ISBN: 978-85-7282-481-1. 113. Educação ambiental e sustentabilidade III. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2011. 331p. ISBN: 978-85-7282-484-2. 114. Diálogos em educação ambiental. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos e José Levi Furtado Sampaio (Org.). 2012. 350p. ISBN: 978-85-7282-488-0. 115. Artes do sentir: trajetórias de vida e formação. Ercília Maria Braga de Olinda (Org.). 2011. 406p. ISBN: 978-85-7282-490-3. 116. Milagre, martírio, protagonismo da tradição religiosa popular de Juazeiro: padre Cícero, beata Maria de Araújo, romeiros/as e romarias. Luis Eduardo Torres Bedoya (Org.). 2011. 189p. ISBN: 978-85-7282-462-0.91. 117. Formação humana e dialogicidade III: encantos que se encontram nos diálogos que acompanham Freire. João Batista de Oliveira Figueiredo e Maria Eleni Henrique da Silva (Orgs.). 2012. 212p. ISBN: 978-85-7282-454-5. 118. As contribuições de Paramahansa Yogananda à educação ambiental. Arnóbio Albuquerque. 2011. 233p. ISBN: 978-85-7282-456-9. 119. Educação brasileira em múltiplos olhares. Francisco Ari de Andrade, Antonia Rozimar Machado e Rocha, Janote Pires Marques e Helena de Lima Marinho Rodrigues Araújo. 2012. 326p. ISBN: 978-85-7282-499-6. 120. Educação musical: campos de pesquisa, formação e experiências. Luiz Botelho Albuquerque e Pedro Rogério (Orgs.). 2012. 296p. ISBN: 978-7282-505-4. 121. A questão da prática e da teoria na formação do professor. Ada Augusta Celestino Bezerra, Marilene Batista da Cruz Nascimento e Edineide Santana (Orgs.). 2012. 218p. ISBN: 978-7282-503-0. 122. História da educação: real e virtual em debate. José Gerardo Vasconcelos, José Rogério Santana. Lia Machado Fiuza Fialho. (Orgs.). 2012. 524p. ISBN: 978-857282-509-2. 123. Educação: perspectivas e reflexões contemporâneas. Alice Nayara dos Santos, Ana Paula Vasconcelos de Oliveira Tahim e Gabrielle Silva Marinho (Orgs.). 2012. 191p. ISBN: 978-85-7282-491-0.

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124. Úlceras por pressão: uma Abordagem Multidisciplinar. Miriam Viviane Baron, José Rogério Santana, Cristine Brandenburg, Lia Machado Fiuza Fialho e Marcelo Carneiro (Orgs.). 2012 315p. ISBN: 978-85-7282-489-7. 125. Somos todos seres muito especiais: uma análise psico-pedagógica da política de educação inclusiva. Ada Augusta Celestino Bezerra e Maria Auxiliadora Aragão de Souza. 2012. 183p. ISBN: 978-85-7282-517-7. 126. Memórias de Baobá. Sandra Haydée Petit e Geranilde Costa e Silva (Orgs.). 2012. 281p. ISBN: 978-85-7282-501-6. 127. Caldeirão: saberes e práticas educativas. Célia Camelo de Sousa e Lêda Vasconcelos Carvalho. 2012. 135p. ISBN: 978-85-7282-521-4. 128. As Redes sociais e seu impacto na cultura e na educação do século XXI. Ronaldo Nunes Linhares, Simone Lucena, e Andrea Versuti (Orgs.). 2012. 369p. ISBN: 978-85-7282-522-1. 129. Corpografia: multiplicidades em fusão. Shara Jane Holanda Costa Adad e Francisco de Oliveira Barros Júnior (Orgs.). 2012. 417p. ISBN: 978-85-7282-527-6. 130. Infância e instituições educativas em Sergipe. Miguel André Berger (Org.). 2012. 203p. ISBN: 978-85-7282-519-1. 131. Cultura de paz, ética e espiritualidade III. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2012. 441p. ISBN: 978-85-7282-530-6. 132. Imprensa, impressos e práticas educativas: estudos em história da educação. Miguel André Berger e Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento (Orgs.). 2012. 333p. ISBN: 978-85-7282-531-3. 133. Proteção do patrimônio cultural brasileiro por meio do tombamento: estudo crítico e comparado das legislações estaduais — Organizadas por Regiões. Francisco Humberto Cunha Filho (Org.). 2012. 183p. ISBN: 978-85-7282-535-1. 134. Afro arte memórias e máscaras. Henrique Cunha Junior e Maria Cecília Felix Calaça (Orgs.). 2012. 91p. ISBN: 978-85-7282-439-2. 135. Educação musical em todos os sentidos. Luiz Botelho Albuquerque e Pedro Rogério (Orgs.). 2013. 300p. ISBN: 978-85-7282-559-7. 136. Africanidades Caucaienses: saberes, conceitos e sentimentos. Sandra Haydée Petit e Geranilde Costa e Silva (Orgs.). 2012. 206p. ISBN: 978-85-7282-590-0. 137. Batuques, folias e ladainhas [manuscrito]: a cultura do quilombo do Cria-ú em Macapá e sua educação. Videira, Piedade Lino. 2012. 399p. ISBN: 978-857282-536-8. 138. Conselho escolar: processos, mobilização, formação e tecnologia. Francisco Herbert Lima Vasconcelos, Swamy de Paula Lima Soares, Cibelle Amorim Martins, Cefisa Maria Sabino Aguiar (Orgs.). 2013. 370p. ISBN: 978-85-7282-563-4. 139. Sindicalismo sem Marx: a CUT como espelho. Jorge Luís de Oliveira. 2013. 570p. ISBN: 978-85-7282-572-6. 140. Catharina Moura e o Feminismo na Parahyba do Norte: processos, mobilização, formação e tecnologia. Charliton José dos Santos Machado, Maria Lúcia da Silva Nunes e Márcia Cristiane Ferreira Mendes (Autores). 2013. 131p. ISBN: 978-85-7282-574-0. 141. Sequência Fedathi: uma proposta pedagógica para o ensino de matemática e ciências. Francisco Edisom Eugenio de Sousa, Francisco Herbert Lima Vasconcelos, Hermínio Borges Neto, et al. (organizadores). 2013. 184p. ISBN: 978-85-7282-573-3. 142. Transdisciplinaridade na educação de jovens e adultos: colcha de retalhos – conhecimento, emancipação e autoria. Ada Augusta Celestino Bezerra e Paula Tauana Santos. 2013. 109p. ISBN: 978-85-7282-476-7.

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143. Pedagogia organizacional: gestão, avaliação & práticas educacionais. Marcos Antonio Martins Lima e Gabrielle Silva Marinho (organizadores). 2013. 221p. ISBN: 978-85-7282-496-5. 144. Educação e formação de professores: questões contemporâneas. Ada Augusta Celestino Bezerra e Marilene Batista da Cruz Nascimento (organizadoras). 2013. 368p. ISBN: 978-85-7282-576-4. 145. Configuração do trabalho docente a instrução primária em Sergipe no século XIX (1826-1889). Simone Silveira Amorim. 2013. 331p. ISBN: 978-85-7282-575-7. 146. Dez anos da Lei No 10.639/03: memórias e perspectivas. Regina de Fatima de Jesus, Mairce da Silva Araújo e Henrique Cunha Júnior (Orgs.). 2013. 366p. ISBN: 978-85-7282-577-1. 147. A História, Autores e Atores: compreensão do mundo, educação e cidadania. Rui Martinho Rodrigues. 2013. 306p. ISBN: 978-85-7282-583-2. 148. Os intelectuais. Rui Martinho Rodrigues. 2013. 164p. ISBN: 978-85-7282-581-8. 149. Dinamérico Soares do Nascimento: uma história de poesia, paixão e dor. Charliton José dos Santos Machado, Eliel Ferreira Soares e Fabiana Sena (Autores). 2013. 76p. ISBN: 978-85-7282-580-1. 150. História e Memória da Educação no Ceará. José Gerardo Vasconcelos,

Lia Machado Fiuza Fialho, José Rogério Santana, Lourdes Rafaella Santos Florêncio, Rui Martinho Rodrigues, Dijane Maria Rocha Víctor e Stanley Braz de Oliveira (Orgs.). 2013. 218p. ISBN: 978-85-7282-591-7.

151. Pesquisas Biográficas na Educação. José Gerardo Vasconcelos, José Rogério Santana, Lia Machado Fiuza Fialho, Dijane Maria Rocha Victor, Antonio Roberto Xavier e Roberta Lúcia Santos de Oliveira (Orgs.). 2013. 299p. ISBN: 978-85-7282-578-8. 152. Vejo um museu de grandes novidades, o tempo não para... Sociopoetizando o museu e musealizando a vida. Elane Carneiro de Albuquerque. 2013. 233p. ISBN: 978-85-7282-587-0. 153. A construção da tradição no Jongo da Serrinha: uma etnografia visual do seu processo de espetacularização. Pedro Somonard. 2013. 225p. ISBN: 978-85-7282-588-7.

154. Medida socioeducativa de internação: educa? Ercília Maria Braga de Olinda (Organizadora). 2013. 370p. ISBN: 978-85-7282-592-4. 155. Palavras e admirações. Fernando Luiz Ximenes Rocha. 2013. 208. ISBN: 978-85-7282-593-1. 156. Educação Ambiental e sustentabilidade IV. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Organizadora). 2013. 564p. ISBN: 978-85-7282-596-2. 157. Educação Brasileira: rumos e prumos. Francisco Ari de Andrade, Dijane Maria Rocha Víctor e Regina Cláudia Oliveira da Silva (Orgs.). 2013. 462p. ISBN: 978-85-7282-594-8. 158. Currículo: diálogos possíveis. Alice Nayara dos Santos e Pedro Rogério (organizadoras). 2013. 418p. ISBN: 978-85-7282-585-6. 159. Pesquisas educacionais biográficas. Lia Machado Fiuza Fialho, Gildênia Moura de Araújo Almeida e Edilson Silva Castro (Orgs.). 2013. 166p. ISBN: 978-85-7282-600-6. 160. Hierópolis: o sagrado, o profano e o urbano. Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, Jörn Seemann, Josier Ferreira da Silva, Christian Dennys

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Monteiro de Oliveira e Stanley Braz de Oliveira (Organizadores). 2013. 486p. ISBN: 978-85-7282-603-7. 161. Práticas educativas, exclusão e resistência. José Gerardo Vasconcelos, Lia Machado Fiuza Fialho e Lourdes Rafaella Santos Florêncio (Organizadores). 2013. 166p. ISBN: 978-85-7282-601-3. 162. Cultura de paz, ética e espiritualidade IV. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Organizadora). 2014. 520p. ISBN: 978-85-7282-602-0. 163. No ar, um poeta. Henrique Beltrão. 2014. 361p. ISBN: 978-85-7282-615-0. 164. Cá e Acolá: experiências e debates Multiculturais. Gledson Ribeiro de Oliveira, Jeannette Filomeno Pouchain Ramos e Bruno Okoudowa (Organizadores). 2013. 339p. ISBN: 978-85-7282-607-5.

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