Caça aos bichos

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TECNOLOGIA

CAÇA AOS A CONTROVÉRSIA EM TORNO DO JOGO POKÉMON GO MOSTRA QUE A RELAÇÃO DOS CRISTÃOS COM OS GAMES AINDA É CONFLITUOSA. MAS ESSA POSTURA ESTÁ MUDANDO Felipe Carmo e Gabriel Ferreira

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R e v i s t a A d v e n t i s t a // Setembro 2016

Imagem: © blackzheep | Fotolia

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om o avanço tecnológico, os dispositivos móveis são ferramentas úteis para atividades que vão do trabalho ao entretenimento. Entre as múltiplas funções desses aparelhos, as grandes companhias não poderiam deixar de explorar o nicho dos games para celulares. Uma iniciativa dessa natureza alcançou popularidade inesperada com o lançamento do jogo Pokémon Go, uma parceria entre as empresas Nintendo, Pokémon Co. e Niantic. O game toma como base o desenho animado japonês Pokémon (Poketto Monsuta, literalmente “monstros de bolso”), em que o protagonista decide sair de casa para capturar criaturas com poderes especiais e se tornar um treinador renomado. Similarmente, após o lançamento do jogo, em menos de uma semana, milhares de crianças, jovens e adultos saíam às ruas a fim de capturar e treinar seus pokémons.

A popularidade de Pokémon Go ocorreu devido à inclusão da tecnologia “realidade aumentada”: uma imagem virtual sobreposta à imagem captada pela câmera do celular. A sensação da realidade virtual se torna quase palpável. Assim, guiado por seu dispositivo com conexão GPS, um jogador pode caminhar livremente enquanto se depara com diversos tipos de pokémons (aquáticos, elétricos, psíquicos). As criaturas podem ser capturadas, treinadas e, eventualmente, utilizadas em batalhas. O jogo popularizou-se imediatamente entre todas as faixas etárias. Entretanto, como qualquer “febre”, o game gerou controvérsias. Por um lado, Pokémon Go é responsabilizado por episódios como acidentes de carro, assaltos, abuso sexual, irreverência (em museus, cemitérios, igrejas), demissão de funcionários, problemas de saúde e invasão de propriedades privadas. A National Society for the Prevention of Cruelty to Children, na Inglaterra, chegou a publicar um “guia de segurança” para os pais cujos filhos são usuários do aplicativo. Isso sem falar nas denúncias de alienação. Por outro lado, Pokémon Go também é elogiado por promover atividade física, interação social, convívio familiar e saúde mental. O hospital C. S. Mott Children, em Michigan (EUA), por exemplo, utiliza o jogo como instrumento terapêutico, por meio do qual crianças acamadas podem dinamizar sua rotina e construir uma perspectiva menos hostil do ambiente hospitalar. Em virtude da complexidade do fenômeno, a comunidade cristã também passa a inquirir sobre a utilidade do jogo. Infelizmente, a polaridade de opiniões permanece a mesma. Pokémon Go foi recebido entre alguns cristãos como uma ferramenta demoníaca. Alguns líderes chegaram a afirmar que futuramente o game poderá possibilitar a comunicação dos jogadores com espíritos do mal. Ao mesmo tempo, o jogo é utilizado por cristãos como ferramenta de atração, a exemplo da Arquidiocese de São Paulo, que passou a convidar seus visitantes à caça de pokémons na igreja: os jogadores deveriam publicar sua captura nas redes sociais da comunidade e, posteriormente, respeitar a solenidade da missa. R e v i s t a A d v e n t i s t a // Setembro 2016

Nesse contexto, é evidente que a relação entre os cristãos e os games apresenta um aspecto ainda confuso. Soma-se a isso a desconfiança de muitos cristãos sobre qualquer inovação tecnológica. Portanto, algumas questões são de nosso interesse: Qual é a relação que os cristãos costumam ter com os games em geral? Como os adventistas consideram os games, além de outras novidades tecnológicas no contexto dos meios de comunicação? Por último, é possível identificar alguma utilidade dos games para a mensagem adventista? CONFLITO COM OS GAMES No caso da primeira pergunta, podemos afirmar que a relação dos cristãos com os “jogos” em geral é conturbada em muitos sentidos. Essa postura remonta ao período medieval, quando sermões e tratados teológicos eram dedicados ao perigo do vício e à caracterização maligna dos jogos de azar. Essa relação perdura de maneiras diversificadas.

poderia ser aplicado ao relacionamento entre os adventistas e os meios de comunicação em geral, com destaque para os visuais: (1) em primeira instância, há certa demonização de determinado veículo; (2) posteriormente, iniciativas evangelísticas conferem espaço à análise da utilização do veículo por meio de erros e acertos; (3) por fim, o objeto passa a ser utilizado em contextos “seculares” entre os adventistas. Segundo Novaes, em entrevista concedida à Revista Adventista de maio, o motivo da crítica consistia “no poder de manipulação mental” que supostamente esses meios possuem. O ser humano era concebido como uma vítima da tecnologia, incapaz de se defender dela. De acordo com o autor, essa dinâmica ocorreu com o rádio, a TV e a internet. Embora ele não faça menção aos games, eles são parte da mídia e da cultura audiovisual e, portanto, devem ser incluídos nessa relação. Uma evidência do relacionamento conflituoso entre os adventistas e os jogos pode ser encontrada no documento

OS JOGOS NÃO PODEM SER VISTOS COMO MERO ENTRETENIMENTO, MAS COMO PARTE DE UMA CULTURA MAIS AMPLA, QUE ENVOLVE MILHÕES DE PESSOAS AO REDOR DO MUNDO Por exemplo, em um dos capítulos do livro Understanding Evangelical Media (InterVarsity, 2008), Kevin Schut resume essa tensão em duas perspectivas: os evangélicos costumam condenar os jogos devido (1) ao conteúdo violento e ao apelo sexual do material e (2) em virtude da visão alterada da realidade oferecida por eles, assim como os falsos dogmas introduzidos em seu conteúdo. A Igreja Adventista do Sétimo Dia não foi exceção entre a maioria evangélica. A natureza desse convívio foi exemplificada de maneira mais sistemática na tese defendida pelo pastor e jornalista Allan Novaes na PUC-SP. Em sua pesquisa, analisando a relação entre os adventistas e a TV, Novaes verificou um padrão que

redigido por Arthur White ao “Irmão S” (em 1963). Essa carta, conforme disponibilizada no site do Ellen G. White Estate, responde à indagação a respeito de uma citação de Ellen White que, aparentemente, condena a prática de “jogos de tabuleiro”: damas e xadrez. Em primeira instância, Arthur White comenta que “jogar dominó sempre foi considerado uma recreação simples e inofensiva” entre os adventistas. Contudo, “a relação com damas [e xadrez] é um pouco mais complicada”. Ele explica que as duas menções de Ellen White devem ser lidas como preocupações quanto ao princípio envolvido, e não em relação aos jogos em si. No primeiro caso, ela estaria enfatizando o excesso 45

dessas atividades na vida do cristão (a mesma opinião a respeito do futebol); no segundo, ela recrimina um método terapêutico aplicado pelo doutor Jackson, do Instituto Médico de Dansville, que preferia divertir seus pacientes com danças e jogos a incentivar atividades físicas e reflexões bíblicas. Em ambas as situações, segundo Arthur White, os jogos em si não eram prejudiciais, a não ser que transgredissem algum princípio de sua fé. Portanto, embora o cristianismo medieval e o evangelicalismo atual pretendam, em certas ocasiões, demonizar os games, assim como outros meios de comunicação, pioneiros adventistas como Ellen White e Arthur White parecem não ter condenado um inocente jogo ou outro, mas tratado de princípios mais abrangentes. Tudo depende do tipo de jogo e de suas implicações. Isso não significa dizer que o aplicativo do momento não possa ter efeitos prejudiciais. A SACRALIZAÇÃO DOS GAMES Devido à popularização dos games e ao recorrente interesse acadêmico pelo assunto, sua relação com os cristãos demonstra alterações significativas. A Game Church, por exemplo, é uma organização sem fins lucrativos que pretende “construir uma ponte entre o evangelho e o jogador”. Além de realizar trabalhos evangelísticos em eventos, ela disponibiliza podcasts e artigos que relacionam o evangelho com os games, e convida seus membros para missões em congressos internacionais. De forma similar, o Men of God International é um grupo de gamers cuja área de atuação se encontra nas “plataformas online”. Pelo fato de constituir-se numa espécie de “tribo”, “família” ou “time” nas plataformas, o grupo facilita a relação entre os jogadores, incentivando o convívio social e o testemunho da fé. Segundo Heidbrink, Knoll e Wysocki, em artigo publicado na revista acadêmica Heidelberg Journal of Religions on the Internet, essas iniciativas correspondem à ocupação de uma demanda improvável de ser atendida pelas igrejas tradicionais, porque essas denominações tendem a ver os games apenas como “entretenimento”, e não como 46

uma cultura que agrega milhões de pessoas a cada ano e que precisa ser entendida como um fenômeno mais amplo. Embora não seja do conhecimento de alguns, aos poucos, essas iniciativas também são incorporadas pelos adventistas, ainda que com cautela e procurando selecionar o conteúdo e dar um uso útil ao game. Nas décadas de 1970 e 1980, a Casa Publicadora Brasileira lançou jogos de tabuleiro e de cartas, ambos com o objetivo de instruir biblicamente

QUESTÃO DE SEGURANÇA Nos Estados Unidos, onde Pokémon Go é febre desde julho, a seguradora adventista publicou um comunidado no site da Adventist Review orientando sobre como lidar com jogadores que “invadem” os prédios da denominação para caçar os bichinhos, evitando assim acidentes e uma reação inadequada por parte da igreja.

1

Mantenha a calma. A maioria desses jogadores não tem más

intenções, apenas está compenetrada no jogo. Portanto, seja gentil com os usuários, especialmente se forem crianças.

2

Caso o templo (ou a escola) esteja sendo usado como ponto

de interação do jogo (PokeStop ou Gym), e isso estiver trazendo transtornos, entre no site do jogo Pokémon Go e peça a remoção dessa propriedade do mapa do game.

3

Se for o caso, sinalize na frente do prédio que não é permitido

jogar naquela propriedade. Avalie se isso não vai soar deselegante na sua comunidade e se o interesse de usuários em entrar no templo/escola não poderia ser canalizado para a evangelização. Esse pode ser um ponto de contato com a vizinhança.

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o público infantojuvenil. De outra forma, em 2013, o aplicativo Heroes foi desenvolvido pela Movinpixel sob a supervisão do pastor Samuel Neves, hoje diretor associado do departamento de Comunicação na sede mundial da igreja. No game, o jogador dispõe de 60 segundos para responder perguntas sobre os “heróis da Bíblia”, como Abraão, Ester e Daniel. Outro exemplo são os 50 jogos bíblicos oferecidos pelo canal NT Kids no YouTube e nas redes sociais, iniciativa da Rede Novo Tempo de Comunicação para alcançar as crianças que utilizam celulares e computadores. Em suma, é evidente que a relação dos cristãos com os games, desde o início, é conflituosa em muitos aspectos; contudo, fica igualmente claro que, em nossos dias, o quadro parece se inverter. Os adventistas passam a compreender que a massiva produção de games e o envolvimento de crianças, jovens e adultos nesse contexto parece inevitável e irreversível; e que, se a iniciativa for bem direcionada, pode ser benéfica. O importante é ter discernimento para diferenciar o que é bom do que é prejudicial. Vale lembrar que os princípios da verdadeira recreação, como o uso moderado de tempo e dinheiro, além dos cuidados com os exageros, vícios e rivalidade, devem nortear as decisões do cristão. Nesse contexto, nos termos de Kevin Shut, os adventistas deveriam abordar os games questionando “o que isso significa?”, em vez de apenas “o que é isso?” A busca por um significado exige reflexão, estudo e oração, a fim de que o melhor proveito possível seja canalizado para o avanço do reino de Deus. Do contrário, uma definição limitante sobre o fenômeno de Pokémon Go poderia eclipsar a mensagem bíblica e dar preferência a discursos sensacionalistas e demonizantes. Parafraseando Paulo em Filipenses 1:15-18, o foco do evangelho é o Salvador. Importa-nos falar de Cristo e não de Satanás, embora sem deixar de perceber as sutis estratégias do inimigo.

Acione a polícia se os usuários

FELIPE CARMO é pastor e mestrando em Línguas e

do jogo estiverem colocando em

Literatura Judaica pela USP; GABRIEL FERREIRA

risco o prédio, os frequentadores

é publicitário e pós-graduado em Comunicação

dele ou os próprios jogadores.

Estratégica pela Universidade da Flórida (EUA). Ambos são professores no Unasp

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