Caçadores de Utopia: Identidades entre religião e política no RJ. 2002. Dissertação.

July 27, 2017 | Autor: L. Fernandes de O... | Categoria: Antropología
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

CAÇADORES DE UTOPIA A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E ASSOCIAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E POLÍTICA NO RIO DE JANEIRO Luiz Fernandes de Oliveira

Dissertação apresentada ao curso de mestrado em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ como requesito à obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais.

ORIENTADORA: Prof ª Patrícia Birman.

RIO DE JANEIRO 2002

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Fernandes de Oliveira, Luiz ( 13.05.68 ) Caçadores de Utopia: Construção de Identidades e Associações entre Religião e Política no Rio de Janeiro Rio de Janeiro – UERJ, 2002 Dissertação: Mestrado em Ciências Sociais. UERJ I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro II. Religiosidade e Política – Identidades – Cultura e Política

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Minha homenagem a Exú, o abridor de caminhos, senhor de todas as coisas. Laróyè! Ao meu irmão Ogum, companheiro das lutas mais difíceis Ogum yè, pàtàki orí Òrisà! Ao meu pai Oxóssi, que me ilumina na luta pelo socialismo ode òkè àro! Axé para tod@s.

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Resumo

CAÇADORES DE UTOPIA A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E ASSOCIAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E POLÍTICA NO RIO DE JANEIRO

A dissertação que apresento relata a construção de identidades e associações entre religião e política no Rio de Janeiro. São vistas as trajetórias de quatro militantes do PT que são iniciados no candomblé. Suas histórias de vidas e militâncias no movimento negro e no PT, estão diretamente associadas a religiosidade expressa no candomblé, demarcando num específico contexto histórico, invenções identitárias e culturais.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO----------------------------------------------------------------------- 9 1. RELIGIÃO E POLÍTICA EM PERSPECTIVA --------------------------20 2. OS SUJEITOS INVESTIGADOS E O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO, DO CANDOMBLÉ E DA UTOPIA SOCIALISTA.-------------24

2.1 - Quem são os militantes. -----------------------------------------------------------24 2.2 - O Partido dos Trabalhadores -------------------------------------------------------43 2.3 - O movimento negro ---------------------------------------------------------------46 2.4 - O candomblé ----------------------------------------------------------------------47 2.5 - As (re)interpretações “de dentro” --------------------------------------------------51

3. O CONTEXTO HISTÓRICO DA TENTATIVA DE CONSTRUÇÃO DE UM NOVO MOVIMENTO POLÍTICO.----------------------------------73

3.1 - A invenção-construção de uma nova identidade político-religiosa.-----------------73 3.2 - Os momentos ----------------------------------------------------------------------74 O novo sujeito político na história brasileira: O Partido dos Trabalhadores.-------------74 A fundação do IPELCY, do INARAB, e do CENARAB ---------------------------------78 A discussão sobre os “novos sujeitos na luta de classe” ----------------------------------90

8 A elaboração de uma nova tática de luta anti-racista no MNU denominada Raça e Território. --------------------------------------------------------------------------------92

4. CONSTRUINDO E INVENTANDO NOVAS TRADIÇÕES E IDENTIDADES POLÍTICO-RELIGIOSA ---------------------------------- 104

4.1 - Redefinindo o axé --------------------------------------------------------------- 108 4.2 - Reinterpretando as histórias e os significados dos orixás------------------------- 115 4.3 - O ecologismo -------------------------------------------------------------------- 124 4.4 - O feminismo --------------------------------------------------------------------- 128 4.5 - Crítica à prática das esquerdas --------------------------------------------------- 134 4.6 - A busca das raízes africanas ----------------------------------------------------- 141

CONCLUSÕES-------------------------------------------------------------------- 151

BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------ 155

ANEXOS ---------------------------------------------------------------------------- 160

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Introdução

“Comecei a conhecer melhor o marxismo a partir do momento em que conheci o candomblé”. ( Augusto Tadeu – Militante do PT do Rio de Janeiro )

Esta é uma afirmação de um grande amigo, companheiro de utopia e uma das pessoas que colaboraram para a construção desta dissertação. Citei-o porque quando ouvi esta afirmação, na mesa de um bar no centro da cidade do Rio de Janeiro em 1996, tomando uma cerveja, percebi que ele, nos nossos primeiros contatos, captou profundamente aquilo que me propunha a realizar com este trabalho que apresento no espaço acadêmico, sobre a ação política dos militantes do PT ( Partido dos Trabalhadores ) que são iniciados no candomblé. Ele percebeu que existia uma certa angustia pessoal e uma necessidade estratégica de pensar determinados elementos da cultura brasileira que também influenciam nos conflitos e nos rumos políticos desta sociedade, intimamente ligados a opção religiosa, particularmente o candomblé. Apresento neste trabalho uma análise, de algo que até hoje, na maioria dos escritos sócio-antropológicos brasileiros, não foi discutido e nem levado em consideração, a saber: as afinidades entre uma visão de mundo de origem africana, organizada em comunidades religiosas de terreiro – o candomblé e a utopia socialista defendida no programa e na prática política do PT por alguns militantes, que têm uma história de participação nos conflitos recentes da política brasileira, bastante significativa.

10 Além disto, para melhor compreender estas afinidades, no início dos meus estudos utilizava as reflexões de alguns autores que se autodenominam marxistas como A.Gramsci e M. Löwy. A escolha destes autores não foi casual, fazia parte da história do meu percurso e de minhas reflexões sobre a crise da esquerda a nível mundial, da impotência política e analítica de diversos militantes, neste final de século. Desejo entretanto, antes de entrar na discussão mais teórica da militância política, relatar os motivos pessoais que me levaram a esta temática. A partir de minha trajetória pessoal e política dos últimos anos pretendo constituir os indicadores de contextualização desta pesquisa e explicitação dos seus motivos e objetivos. Começaria destacando a perplexidade de alguns amigos militantes do PT, quando em 1996, informei que pretendia realizar esta pesquisa. Eles me perguntavam a seguinte coisa: Por que você vai fazer está pesquisa, já que sempre foi um companheiro de esquerda, marxista e ateu ? Por que estudar o candomblé já que você não tinha nenhum conhecimento sobre isso ? Para dar esta resposta relatava minha vida a partir de julho de 1993, quando depois de longos oito anos de militância ativa no PT, na CUT ( Central Única dos Trabalhadores ) e nos movimentos populares, eu partia para Roma, para começar meus estudos na faculdade de sociologia. Foi uma decisão difícil e radical, já que passaria no mínimo, quatro anos de vida em outro país, com uma cultura diversa e no decorrer dos estudos aprender uma outra língua. Meu ritmo de vida foi completamente alterado, já não era o militante 24 horas e nem uma pessoa que era identificado somente como um dirigente do PT, da CUT e marxista. Sai do Brasil com a perspectiva de não militar durante um bom tempo e dedicar minhas energias a um projeto de estudo. Somente este fato já era para mim uma mudança radical e, somado a vivência num cotidiano desconhecido acabou por se tornar ainda mais revolucionária para “meu pequeno grande” mundo que aprendi até aquela época. Os primeiros tempos foram difíceis, pois além das saudades do Brasil, deveria me habituar a novos padrões de vida europeus. Quando se vive em outro país e numa

11 perspectiva de integração mínima a ele, se começa logo a perceber as diferenças com o Brasil. O contato com as pessoas na faculdade de Roma, na vizinhança, se dava no sentido que elas começavam a me conhecer querendo saber sobre minha vida no Brasil, querendo saber como era meu país, a cultura, o futebol, as pessoas, a qualidade de vida, etc. Porém por mais que eu falasse do Brasil, na relação com elas, eu sentia-me uma pessoa sem história, ou seja, o contato com essas pessoas não existia um passado, era preciso começar do zero, construir tudo, fazer histórias em patamares jamais feitos por mim, neste novo território desconhecido, com uma língua que não dominava completamente, onde o cheiro era diferente e as intuições incompreensíveis. Mas as pessoas eram sensíveis e compreendiam minhas dificuldades. Contudo, não paravam de perguntar sobre o Brasil, como ele era, qual a sua história, como será seu futuro, etc. Respondia na medida do possível, então comecei a perceber que não sabia responder e passar para as pessoas a história do Brasil e suas culturas. Além de não saber responder sobre certos assuntos, achava complicado explicar determinadas coisas “bem brasileiras” sem vivenciá-las de perto. Era difícil explicar, por exemplo, os vários significados do termo saudade. Só era possível entender este termo, quem conhecia de perto o Brasil. Mas como dizia antes, algumas coisas eu nem sabia responder. Um exemplo disto foi um almoço organizado por mim e alguns colegas da faculdade quando já me encontrava há seis meses na Itália. Neste preparamos uma feijoada, prato “típico brasiliano”. Num certo momento alguém perguntou para mim qual era a origem da feijoada. Por sorte minha, estava presente um outro brasileiro que respondeu imediatamente, sem esperar que eu desse a resposta. Digo sorte, porque até aquele dia eu não sabia a origem da feijoada como prato típico brasileiro. Descobri naquele momento que os senhores de escravos pegavam os restos de carne e osso e jogavam pela janela da casa grande, logo depois os negros escravizados, pegavam esses restos, e na senzala, misturavam com o feijão, nascendo assim a feijoada.

12 Foi um momento de crise para mim. Comecei a me perguntar como que eu, um militante de esquerda, do PT e marxista, não sabia a origem da feijoada. Esses e outros momentos começaram a me fazer questionar se realmente conhecia meu país o suficiente para contribuir num processo de transformação social. Além dessas dificuldades identitárias, comecei a freqüentar, no final de 1993 e início de 1994 as aulas de antropologia. E ali encontrei um professor chamado Massimo Canevacci, cujo olhar sobre o Brasil era muito diferente do meu. O que mais me impressionou nele era a originalidade em ver coisas “estranhas” nas coisas mais naturais para mim da cultura brasileira. Nas aulas de antropologia eu torcia para que ele não me perguntasse nada sobre o Brasil, porque não me sentia seguro nas respostas sobre cultura brasileira. Enfim, percebi que era um ignorante da “minha” cultura. Existia um Brasil que sempre esteve debaixo de meu nariz, mas que eu não o via. Isto me obrigou e me incentivou a conhecer e estudar determinados elementos da cultura tupiniquim. Um outro evento, em 1994, também contribuiu para me despertar para a cultura brasileira. Era o ano de eleições, quando no primeiro semestre, Lula e o PT, estavam, cotados como certos para vencerem as eleições presidenciais, mas a conjuntura mudou, veio o plano real e Fernando Henrique Cardoso venceu logo no primeiro turno, com mais de 50% dos votos. Para mim, junto a toda militância de esquerda no Brasil, foi um momento de paralisia, pois as esperanças de mudanças escaparam de nossas mãos. Não conseguia compreender aquela derrota, até porque estava muito distante do Brasil. Esta derrota eleitoral foi um marco político em minha vida. A angústia de saber porque o imaginário popular muda radicalmente em seis meses me mobilizou ainda mais no sentido de pesquisar a “cultura brasileira”, que não fazia parte das análises da esquerda. Naquele momento comecei a estudar em antropologia a força social dos símbolos, da religião, do sincretismo. Combinados com a necessidade de começar a pensar numa tese de final de curso; comecei a ler tudo sobre Brasil, o que se encontrava ao meu alcance na Itália.

13 Influenciado por professores comecei a me indagar sobre o poder simbólico na cultura brasileira e como ela influenciava as disputas políticas nacionais pelo poder. Indagações essas bem abstratas. Ao contrário da esquerda européia, sob influência da queda do socialismo real, eu não me preocupava em rever o marxismo, ou pelo menos a forma como o interpretava, ou seja, como um dos método de análise da realidade. Estava preocupado enfim, em como seria minha militância quando voltasse ao Brasil. Procurei, então, me aprofundar nas questões que mexiam com minhas utopias: a prática socialista no cotidiano, a complexidade da realidade para lutar por um mundo melhor, a diferença entre as culturas. Iniciei em 1995 os meus estudos sobre sincretismo, religião, poder dos símbolos. Na época não eram claras as indagações, mas sempre me perguntava: como era possível fazer com que as pessoas desejassem um mundo melhor e daí decidissem lutar por ele ? Acreditei que o caráter místico e enigmático me conduzia a refletir sobre a religião, pois a religião era para mim um mistério que dominava a cabeça das pessoas e que por isso tem muitas afinidades com nossos desejos utópicos de transformação social. Combinando isto com minhas leituras sobre Brasil e suas culturas, comecei a ler mais sobre candomblé e umbanda. Foi então, neste processo de auto conhecimento, que em junho de 1995 chegava em minhas mãos um texto intitulado “Candomblé, Exclusão e Luta” de Jorge Carneiro, um militante do PT que conhecia desde 1990. Este texto iluminou as minhas intuições e caiu perfeitamente como um tema que buscava para uma tese de final de curso de graduação na Itália. Neste texto, Jorge afirmava que o candomblé também contribuía para a luta socialista, pois “ Exú era o princípio que assegurava que é na contradição que a ordem era estabelecida” . A primeira vista o texto me colocava diante de grandes perspectivas na temática, mas ao mesmo tempo grandes dúvidas: Como era possível ser do candomblé e ser petista ao mesmo tempo ? Como era possível conciliar magia e revolução ? Entrar em transe e racionalizar um projeto político? Ou seja, de início via mais contradições que elementos comuns entre ser candomblecista e ser de esquerda.

14 Mas logo depois percebi a lógica de meus raciocínios: eu estava de uma certa forma contaminado pelo olhar eurocêntrico. Fui despertado por amigos e professores, percebendo que era uma tolice pensar a partir de categorias frias e percebi que para Jorge, e outros militantes que descobri que existiam no Rio de Janeiro na mesma condição, tinha um sentido profundo ser de esquerda, do PT e pertencer ao candomblé. Percebi também que através deste estudo, num viés antropológico, poderia responder parcialmente minhas indagações e descobrir novas dimensões utópicas na luta política de minha militância. Mas este processo de descoberta de elementos de “minha” cultura não foi somente racional. A nível emocional fiquei muito abalado por estar longe de meus amigos e minha família. A saudade apertou, mas a maior saudade foi de meu pai ( morto em 1980, quando tinha doze anos ). Acompanhando meus estudos sobre cultura brasileira, eu também descobri que sou descendente de negros africanos ( meu pai era negro ). E esta condição emocional e racional me levou a incorporar esta minha ascendência negra. Daí tudo se combinou, levando-me a tomar novos rumos na militância política, profissional, de pesquisa e afetiva. Foi um período doloroso, mas também muito rico em minha vida, assim como o início de minha pesquisa. Minhas primeiras tentativas de elaboração de um estudo mais sistemático foi muito confuso, pensava em comparar os militantes do PT que pertencem ao candomblé como se fossem iguais aos teólogos da libertação. Foi inútil, cai mais uma vez numa visão cristã eurocêntrica. Numa segunda tentativa, depois de me comunicar por carta com Jorge Carneiro, encontrei um ponto de partida: deveria ressaltar a importância política e cultural, no contexto brasileiro, das intervenções de militantes de esquerda que pertencem ao candomblé e, sobretudo, desmistificar um senso comum nas ciências sociais que afirmava que não era possível conciliar crença nas religiões dos orixás e o compromisso político de transformação revolucionária da sociedade brasileira, ou seja que não existia uma contradição entre, como dizia alguns brasileiros na Itália, ser macumbeiro e petista.

15 Porém, além de não ter uma base teórica para fundamentar esta idéia, tudo se baseava nas minhas intuições e numa grande pretensão em escrever algo novo que ninguém nunca escreveu, ou seja, pouca modéstia e muita pretensão acadêmica para quem estava engatinhando na universidade. Na medida em que aprofundava minhas leituras antropológicas, consegui a ajuda do professor Massimo Canevacci, que com boa vontade aceitou ser meu orientador, me ajudando em muito na construção teórica de minha pesquisa. Foi então que comecei a procurar utilizar seus autores favoritos, James Clifford e Antonio Gramsci. Esses me ajudaram muito na formatação de meu trabalho. O terceiro passo que dei em direção a este projeto foi voltando ao Brasil, em outubro de 1996, para fazer finalmente a pesquisa de campo. Esbarrei em outros problemas que se concretizava na minha total falta de experiência no trabalho etnográfico. Comecei a entrevistar muitas pessoas, dialogar com pesquisadores e professores, recolhi muitos dados, muitas conversa de gravador e informais, fiz um diário de campo de quase trezentas páginas, na maioria delas, mais reflexões pessoais do que material de pesquisa. Mas, felizmente, consegui fechar minha pesquisa ( em 1997, na Itália ) e logo em seguida voltei ao Brasil, em março de 1998. Mas aqui começa uma outra história, que desembocaria na continuação dessa pesquisa no programa de pós-graduação da UERJ. Voltando ao Brasil, em março de 1998, meus objetivos eram continuar minha pesquisa e me inscrever num programa qualquer de mestrado. Mas além da pesquisa comecei a militar no movimento negro do Rio de Janeiro. As pessoas, amigos e amigas militantes do PT, estranhavam pois eu não tinha o fenótipo de negro, pareço para eles mais branco do que negro. Minha vida militante caminhava agora não mais em limitar minhas reflexões na política geral, mas também no movimento negro. Esbarrando em todos os tipos de indiferença de amigos e militantes, comecei a freqüentar reuniões, escrever documentos, artigos, que expressassem meus pensamentos e minha nova militância. Conseqüência de todo este esforço, consegui fazer muitos contatos,

16 que me renderam bons frutos, dentre eles ingressei para o mestrado da UERJ para continuar no estudo sobre os militantes do PT que pertencem ao candomblé. Paralelamente conhecia muita gente de terreiro de candomblé, me aprofundando cada vez mais no conhecimento sobre esta religião. Fruto destes contatos e conhecimentos, comecei a levar esta discussão para dentro do PT, ao lado de alguns companheiros que eram “objetos” de minha pesquisa ( como Jorge Carneiro, Paulo Cezar e Lúcia ). Participamos de vários eventos juntos, intervínhamos nas reuniões juntos, escrevíamos alguns textos também juntos, enfim, começamos a tentar criar nosso espaço dentro do PT, através da discussão sobre a religiosidade de matriz africana e elementos da cultura negra. Quando entro para o mestrado conheço uma excelente professora de antropologia, que se interessa pelo meu trabalho e aceita ser minha orientadora para a dissertação: Profª. Dra. Patrícia Birman. Ela começa me ajudando na elaboração da dissertação, me abrindo as portas para a discussão na academia brasileira sobre cultura negra e religiosidade no Brasil. E é a partir daqui que tento construir meus referenciais teóricos de investigação. Ou seja, identidades em construção, em movimento, construção de associações entre dois domínios da realidade social: o religioso e o político. Essas são as referências utilizadas, para o contato com quatro militantes do PT e do Movimento Negro, contemporaneamente iniciados no candomblé. Entretanto, não é apenas a característica de pertencerem a um partido político socialista e serem iniciados no candomblé, que estimulou esta investigação. Mas o fato de, nas suas trajetórias, esses militantes tentarem construir suas identidades nas associações que estabelecem entre suas vivências religiosas e seus ideais utópicos e socialistas, expressos em suas militâncias. Essas associações são analisadas aqui como um conjunto de falas, construções de códigos de linguagem específicos, para representar a interseção que determinados

sujeitos

sociais

realizam,

para

justificar

o

pertencimento,

contemporaneamente aos domínios religioso e político, que é identificado no senso comum – e até pelo discurso acadêmico - como eclético e/ou contraditório. A presente análise parte das invenções culturais, lingüísticas e identitárias singulares como: “é Exú que me faz marxista”, “o candomblé é mais revolucionário que o

17 socialismo”, “ser socialista é reforçar o Axé de minha comunidade”, ou “no candomblé existe um potencial muito grande para contestar a ideologia conformista, racista e capitalista”. Essas invenções, reconstruções de significados, de tradições revelarão um novo contexto histórico cultural, no qual as identidades não podem mais ser classificadas segundo conceitos estáticos e paradigmas totalizantes. O suporte para a leitura das novas identidades desses militantes, se fundamentará nas recentes análises antropológicas sobre as noções de cultura e identidades em Michael Agier, Stuart Hall, M. Sahlins e James Clifford, que rediscutem as implicações teóricas contemporâneas da noção de cultura e identidade. A pesquisa apresenta os militantes investigados: quem são, o que dizem e como vivem suas tentativas de elaboração de novas práticas e discursos nos espaços político e religioso. Além disso, far-se-á uma breve apresentação dos espaços onde atuam, ou seja, o Partido dos Trabalhadores, o Movimento Negro e o candomblé. Será descrito o contexto histórico que produziu esses militantes. Quais foram os movimentos que os influenciaram, que tipo de “constelação de fatores históricos”1 os levou a produzir associações de traços culturais religiosos e políticos entre domínios que se opõem. Por último, serão descritas as construções identitárias propriamente ditas. Vamos analisar como eles operam o conceito de Axé para pensar uma ação política militante; que reinterpretam mitos e histórias de orixás, transformando-os em inspiradores de seus ideais socialistas. O fato da mulher iniciada ser maioria no candomblé e ter um papel social diferenciado da sociedade abrangente, para eles é símbolo de luta feminista. Que as relações dos orixás com a natureza criam uma referência de luta ecológica. Que essas elaborações acima, os incitam

a construir uma “política da diferença” em relação à

esquerda, na qual estão inseridos e que, por fim, levam-os a resgatar a origem dessas elaborações, numa África inventada, através de uma suposta ancestralidade, que também os inspira para a construção de um futuro socialista. Por outro lado, não se poderá deixar de analisar as dificuldades e contradições que esses

militantes

irão

revelar,

pois,

ao

mesmo

tempo

em

que

se

18 tenta construir um movimento político religioso, eles explicitam conflitos e contradições nessas mesmas construções, entre discurso e prática, revelando em alguns momentos, intenções mais pessoais no interior das políticas coletivas. Trata-se, portanto, de uma tarefa acadêmica muito complexa, mas que poderá revelar a ponta de um iceberg, que os estudos sócio-antropológicos estão desafiados a descrever seus sentidos e significados, isto é, a construção de novas identidades, a reinvenção das culturas, as invenções de tradições, suas continuidades e descontinuidades. Não sendo uma tarefa fácil, os métodos utilizados foram desde aqueles clássicos com entrevistas, observação participante e coleta de materiais produzidos pelos sujeitos até os diálogos soltos, os “papos” informais, que na sua espontaneidade revelaram aspectos interessantes da tentativa de construção deste novo movimento político e cultural. A rigor, contudo, foram utilizadas longas horas de entrevistas, longas e cansativas horas de observação e participação em reuniões do Movimento Negro, do PT e dos rituais de candomblé. Nesse último, houve a participação também em momentos não “festivos”, ou seja, momentos do candomblé, quando não há a “presença do orixá”. Na tentativa de uma leitura mais próxima do “real” sobre essas construções de identidades, não foi estabelecida, a priori, uma data limite, pois como se constata, o próprio objeto da investigação encontra-se ainda em construção. Entretanto, para efeito de restituição da investigação para o público acadêmico, ela teve início em março de 1997 e o término, enquanto primeira etapa, em julho de 2000. Inicialmente, a partir de março de 1997, foram feitos os primeiros contatos com vários militantes que eram filiados ao PT e iniciados no candomblé – cerca de doze pessoas. Entretanto, após uma triagem2, foram selecionados somente quatro militantes por se encaixarem nos critérios de investigação, a saber, militantes ativos do partido, iniciados no candomblé e que não só freqüentavam suas casas de santo como tentavam, de formas diversas, construir associações entre dois domínios da realidade social (o político e o religioso), através de elaborações escritas (documentos, textos, panfletos, etc. ), 1 MANNHEIM, K. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. 2 Os outros militantes que encontrei ao longo da pesquisa não se encaixaram em meus critérios porque alguns deles abandonaram a militância, apesar de continuarem filiados ao PT, e outros, que apesar de estarem militando no PT não são

19 intervenções em espaços políticos de suas militâncias e no cotidiano de suas comunidades religiosas. Logo em seguida, realizaram-se as entrevistas e observações participantes partindo dos rituais e reuniões políticas que eles participaram, ao mesmo tempo em que eram coletados seus materiais escritos. Esse período se estendeu de julho de 1997 à julho de 2000. Contudo, como os próprios leitores poderão observar, essa viagem às novas identidades em movimento, não tem um ponto final. Ela levará, espera-se, à busca de novos pressupostos teóricos nas Ciências Sociais, para uma melhor compreensão da realidade. Finalmente, como falávamos anteriormente a construção e motivação desse trabalho se devem ao meu interesse pelas questões relativas ao Movimento Negro. Percebi, como militante desse movimento ao longo dos anos, que os elementos da cultura e religiosidade afro-brasileira sempre, de uma forma explícita ou não, foram inspiradores da militância negra contra o racismo. Mas isto começa a se acentuar a partir da queda do muro de Berlim e do “colapso” do socialismo, provocando uma crise nos paradigmas da esquerda em geral. Esse fato, somando-se aos contatos diários com os militantes investigados, levou a uma reflexão conjunta – minha e dos investigados – sobre a possibilidade do novo papel que o Movimento Negro deveria desempenhar na luta contra o racismo e por uma sociedade mais justa. A crise das esquerdas e a falta de uma referência socialista coloca, para os movimentos sociais, a reflexão e a busca de novos paradigmas que orientem a ação política cotidiana, uma vez que as teorias socialistas já não dão conta das tarefas e da nova realidade sociocultural do mundo contemporâneo. Nessa nova realidade, emergem as demandas do Movimento Negro, que na periferia do capitalismo desenvolvido é constrangido a reelaborar uma política de intervenção – de combate ao racismo – no momento em que as teorias “das lutas de classe” não respondem mais às lutas de sujeitos sociais específicos. frequentadores do candomblé e, outros ainda, afirmam que sua iniciação religiosa é de caráter pessoal não havendo nenhuma relação com sua militância partidária.

20

1. Religião e Política em perspectiva Quando os fundadores do marxismo afirmaram que a religião era o baluarte do obscurantismo e do conservadorismo, eles analisavam uma realidade específica, na qual os dogmas do catolicismo estavam de mãos dadas com o poder das classes dominantes e justificando um mundo onde existia opressão, miséria e alienação, para a maioria dos povos europeus. Para Marx e Engels, assim como para a esquerda revolucionária da Europa, identificada com o “socialismo científico”, a religião era o “ópio do povo”. E hoje? A religião ainda está camuflando uma realidade, como no século XIX? Parece que, em vários contextos, ela ainda cumpre - enquanto instituição - um papel específico na dominação de classes. No entanto, no contexto latino-americano, essas análises marxistas não só devem ser revistas, como se deve procurar “um novo caminho interpretativo”, no que diz respeito ao papel da(as) religião(ões), nas lutas contra a dominação política. A título de exemplo, pode-se apontar a Nicarágua, El Salvador, Haiti, as lutas camponesas no Brasil, etc., ou seja, a existência, nos últimos anos, de um pensamento religioso que utiliza conceitos marxistas e inspira lutas de libertação social: a Teologia da Libertação. Ela usa seus recursos materiais e espirituais para intervir na luta dos trabalhadores por uma nova sociedade, enfim, pelo socialismo. Quem ainda não observou no PT, por exemplo, vários militantes que, a partir da fé cristã, inspirados pela Teologia da Libertação, lutaram e lutam ao lado dos marxistas e ateus, por uma sociedade socialista? E, sem dúvida, uma grande parte dos fundadores do PT se originou das Comunidades Eclesiais de Base ( CEBs ). Ou seja, não é somente o entendimento das condições materiais de existência que pode determinar a luta por uma utopia - a ideologia e a consciência de classe - mas também uma fé, uma esperança religiosa. Assim, essa discussão é reconhecida por unanimidade no interior do PT. Quem duvida que os motivos profundos de um Frei Beto, por exemplo, para lutar pelo socialismo, não sejam uma fé profunda no futuro da humanidade, no Reino de Deus, construído pelas mãos dos homens para serem livres de toda a opressão? A Teologia da Libertação teve suas

21 bases teóricas nas reinterpretações do Evangelho, nas leituras de Gramsci e do filósofo marxista Ernest Bloch. Nisto, a maioria dos marxistas reconhece a sua importância. Mas, esse reconhecimento se esgota quando, dentro do PT-RJ, se pode encontrar militantes que são do Candomblé. Alguns se escandalizam dizendo que não existe relação entre ser do Candomblé e ser do PT ou marxista. Outros, brincando (ironizando de forma preconceituosa), dizem que “bater tambor” e ser de esquerda é muito estranho. E esse estranhamento e reações preconceituosas foram encontradas, na militância petista do Rio de Janeiro, durante os três anos de pesquisa de campo sobre a existência de militantes do PT – e alguns marxistas – que são iniciados no candomblé. Aparentemente, ter como referência “uma crença” na religião dos orixás e ser do PT ou marxista pode parecer contraditório, pois, entrar em transe, a prática de rituais ‘mágicos’ (estranhos à cultura judaico-cristã oficial ) e ser um sujeito crítico que quer transformar a realidade, não alienado etc., pode parecer eclético ou exótico. Contudo, ao se considerar o Candomblé dentro do campo das crenças religiosas ou como “visão de mundo”, elaborada pelos descendentes de africanos na diáspora, deve-se, à primeira vista, por uma questão de honestidade analítica e política, pelo menos, desconfiar de que para esses sujeitos, que são candomblecistas e petistas, existe um sentido profundo. Para eles, significa muito ser filho de Ogum, Yemanjá, Oxóssi, Oxalá ou Xangô e participar ativamente da militância petista. Na verdade, a dificuldade de se compreender essa condição histórica tem raízes na formação eurocêntrica da totalidade da esquerda brasileira. Nega-se (consciente ou inconscientemente) as culturas de matrizes africanas e a própria existência de um continente – no caso o Africano. Pela análise científica, livre de preconceitos (raciais e religiosos) se constata que as religiões afro-brasileiras, e alguns de seus adeptos, também podem aderir a luta pela cidadania, pelos direitos humanos e principalmente, por uma sociedade socialista. Muitos exemplos históricos podem confirmar isto, como afirmam vários militantes do Movimento Negro, pois a história dos africanos escravizados e seus descendentes não tem sido outra senão que a afirmação de sua herança cultural. A luta e a resistência acontecem em função das suas “culturas exiladas” ( como afirmam os militantes

22 investigados ) e da forma de resistir e “agir do negro”3 ou afro-brasileiro. Palmares e diversos Quilombos, revolta dos Malês, Balaiada, foram marcos na luta contra o status quo. Muitas dessas lutas contra a escravidão, segundo alguns pesquisadores foram planejadas dentro de terreiros de candomblé4. O que pode haver em comum entre a prática religiosa do Candomblé com a utopia socialista, defendida por alguns militantes do PT? Uma tradição religiosa aparentemente indiferente à esfera do político, voltada para o sobrenatural e o sagrado, e o socialismo defendido por esses militantes do PT? De que forma é possível também uma apropriação política do candomblé? Parece óbvio que a religiosidade de “origem africana”, com elementos e rituais estranhos à cultura ocidental, não tenha nada a ver com a ideologia dos petistas e dos marxistas no interior do PT. Além disso, existe o fato de que o mundo do Povo de Santo - iniciados no candomblé - é muito particular, voltado para o cotidiano das comunidades, encontrando-se, aparentemente, do lado oposto das pretensões universalistas da utopia petista destes militantes. No entanto, o fato de alguns militantes do PT, no Rio de Janeiro, e entre esses alguns marxistas, participarem das comunidades de candomblé como iniciados, e alguns deles, começarem uma elaboração mais sistemática no sentido de legitimar uma condição histórica (ser candomblecista e petista ), estimulou esse trabalho de dissertação, Essa investigação vai procurar os significados das construções e invenções identitárias destes militantes que, de um lado, se utilizam de uma “tradição” do candomblé, para criar uma diferenciação identitária dentro do PT e do Movimento Negro e, de outro, se utilizam da política partidária para conquistarem mais prestígio no mercado religioso das comunidades de candomblé. Nesse sentido, essa análise leva à refletir sobre o fato de que atualmente vivencia-se um mundo em contínua gestação, no qual existem novos padrões socioculturais a serem desvendados pelas ciências sociais. Assim, observa-se, ao longo desses estudos, militantes que (re)inventam formas políticas de militância e práticas de religiosidade. Para eles, o sentido mítico original (o candomblé de “raízes africanas”) é reelaborado, dentro de um sentido histórico e político conjuntural. 3 Este termo foi resgatado nas linguagens dos militantes investigados. Significa uma forma essencialista de classificar os negros brasileiros como herdeiros naturais de uma raiz sócio-cultural africana.

23 Esses sujeitos constroem identidades, a partir de discursos e práticas reelaboradas, no intuito de legitimar suas condições históricas e sua ação política. Para isto, redefinem o candomblé, seus rituais e princípios de forma singular. E ao recriarem significados e práticas, eles confirmam aquilo que Hobsbawm e Ranger5 afirmam sobre a invenção das tradições. Ou seja, inventam tradições no sentido de um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas6. Essa construção da noção de religiosidade atende aos objetivos de usar ou tomar modelos tidos como tradicionais para novos fins. Isso se expressa, como se vê, detalhadamente mais adiante, na forma como os militantes petistas constroem a associação entre, por exemplo, o papel predominante da mulher nas comunidades de terreiro e a luta feminista inserida no projeto socialista que defendem. Essa dupla pertença ao candomblé e à militância socialista, permite considerar o dinamismo das relações sociais e culturais. Tal postura, remete à necessidade de se reformular o conceito de tradição e de identidades – individuais e grupais – como fragmentos articulados e/ou histórias reconstruídas e reinventadas. Por outro lado, será que a utilização de símbolos e ressignificações religiosas pode instrumentalizar militantes de esquerda, no sentido de intervir de forma mais contundente nas relações sociais, na luta contra as opressões, contra o racismo, etc.? Se a resposta for positiva, pode-se em princípio, afirmar que esses militantes inventam, de um certo modo, suas fontes, suas origens, seus profetas e inspiradores e os reinterpretam em função de suas necessidades.

4 CARNEIRO, E. Os candomblés da Bahia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1947. 5 HOBSBAWM, E. J. e RANGER. T. Invenzione della tradizione. Torino: Einaudi, 1983.

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2. Os sujeitos investigados e o papel do Movimento Negro, do Candomblé e da Utopia socialista. 2.1 – Quem são os militantes. Ao longo da pesquisa, foram encontrados vários militantes, que de uma certa forma, tiveram ou têm algum vínculo iniciático no candomblé. Mas a rigor, como já se afirmou anteriormente, só foi possível identificar alguns, que se encaixavam nos critérios de classificação aqui expostos e definidos, ou seja: militantes do PT e do Movimento Negro e que, em suas práticas política e religiosa, construíssem novas identidades (escrevendo textos, defendendo suas idéias em público e usando uma linguagem religiosa para defender seus ideais políticos nos seus espaços de militância) e inventassem associações entre suas práticas e reinterpretações religiosas e a utopia socialista que defendem. São eles: JORGE CARNEIRO-

41 anos, solteiro e negro. Formado em Economia, pela

Universidade Gama Filho no Rio de Janeiro. Milita no PT, na Secretaria de Combate ao Racismo do Diretório Estadual do PT, exercendo a função de secretário. Foi membro (de 1997 a 1999) da Direção Nacional da corrente interna do PT, denominada Democracia Socialista ( DS )7, atualmente é militante do MNU (Movimento Negro Unificado). Se autodefine marxista-revolucionário. É Yaô e iniciado há oito anos na casa de Iyá Nitinha de Oxum. Tem o cargo de Babalorixá e já começou seus preparativos para a obrigação de sete anos. O seu Orixá é OGUM. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 13 de abril de 1959 e viveu toda sua infância e adolescência na zona norte do município, em Irajá. De família pobre, composta por três irmãs e um irmão, seus pais conseguiram manter seus estudos até à universidade. Segundo seu relato, sempre viveu um conflito, pela sua condição de negro. Não admitia

6 HOBSBAWM, E. J. e RANGER. T. idem, 1983. 7 Tendência interna do Partido dos Trabalhadores fundada em 1980. Ela é constituída por um grupo em nível nacional de militantes que, têm como objetivo, construir um Partido Revolucionário no Brasil através do PT. Defende o socialismo democrático, diferente das sociedades do socialismo real. Na sua trajetória, sempre polemizou, em muitos momentos, com o grupo de Lula.

25 publicamente e sempre procurava se apresentar aos outros como branco. Em suas palavras afirmava quando adolescente: “Quando era jovem, mostrava aos outros que minha cor era branca, fazia isto mostrando as marcas de minha sunga. Me olhava sempre no espelho e queria identificar meus lábios finos.” Acrescenta que não era somente ele, mas a maioria de sua família, também se comportava da mesma maneira. Mesmo vivendo dificuldades econômicas, comuns à população da periferia do Rio de Janeiro, Jorge consegue, em 1979, aos 20 anos de idade, entrar para uma universidade. No início da década de 80, entra em contato com militantes do movimento estudantil e do recém-fundado Partido dos Trabalhadores. E a partir daí, identificado-se com eles, começa a participar do movimento estudantil. Jorge conta que este foi um momento importante de sua vida, pois descobriu que poderia interferir, de alguma maneira, para modificar sua situação de classe. “Foi um período muito bom em minha vida, comecei a tomar consciência de minha condição de explorado pela sociedade” Ao longo dos anos 80, sua história é também a história de muitos militantes do PT, participando de reuniões, greves, manifestações, etc. Logo após sua formatura em 1987, começa a procurar emprego. Mas é somente em 1988 que ele consegue ser empregado numa grande indústria metalúrgica do RJ, a CIFERAL. Ele nos conta que foi seu grande emprego, como gerente de recursos humanos. “Entrei para a CIFERAL num grande momento político de minha vida, quando ocorriam grandes mobilizações do sindicato dos metalúrgicos, greves, campanha do LULA, etc. Eu sempre era reconhecido na fábrica como o Jorge do PT. As pessoas tinham referência em mim para discutir as questões salariais e de

26 reivindicação da categoria. Fui demitido não por questões políticas mas por intrigas pessoais da chefia na época.” Nesse mesmo ano, Jorge militava no núcleo do PT da Leopoldina, zona norte do Rio de Janeiro. Ali ele conheceu os militantes da Democracia Socialista8, e havendo acordos políticos com esta tendência interna do PT, ingressou nela, onde se encontra até hoje. Por outro lado, Jorge conta que a entrada na militância petista o fez “rever a sua condição de negro”. Mesmo não tendo muito contato com o Movimento Negro, no início de sua militância, ele afirma que passou a perceber que era “bobagem” se “passar por branco” e, ao mesmo tempo, percebe que “sempre esteve em contato com a cultura popular negra”. Afirma isso, lembrando de quando descobriu que uma de suas avós era da umbanda, e que quando jovem freqüentava alguns terreiros de umbanda com sua irmã, apesar de toda a sua família se afirmar católica. No ano de 1989, Jorge inicia uma nova fase em sua vida. Atormentado por problemas de saúde9, ele relata que foi um período difícil de sua vida, pois, vários médicos não deram solução para seu problema, que como diz, era muito psicológico. A partir daí, procura diversas soluções espirituais, passando pela umbanda e por diversos terreiros de candomblé. “Para resolver meu problema de cabeça, procurei muita gente, pais de santo, mães de santo, etc. Mas não encontrava ninguém que pudesse me ajudar, parecia que ia morrer ou ficar maluco da cabeça, até encontrar Mãe Nitinha do Engenho Velho.”

8 Jorge relata que, para ele, “a DS é a única tendência que é fiel ao PT, constrói o partido para se tornar um partido revolucionário e que, as outras tendências não assumem o PT inteiramente, estão sempre querendo construir sua própria posição política, sendo sectários e estreitos”. 9 Por motivos pessoais Jorge nos solicitou não revelar o seu problema de saúde.

27 Relata que quando chegou no Engenho Velho, terreiro de Mãe Nitinha de Oxum, em Nova Iguaçu, ela o aconselhou a se iniciar no candomblé, pois, era a única solução para seu problema, já que, segundo ela, Ogum o estava chamando para seu inevitável destino. “Quando eu cheguei aqui no candomblé, estava desesperado, e quando Iyá Nitinha disse que teria que me iniciar, eu fiquei mais preocupado, pois me questionava se era isso mesmo que deveria fazer.” Jorge conta que suas crises existenciais e dúvidas, quanto à proposta de sua futura Mãe de Santo perpassavam várias coisas, inclusive a questão política. “Quando entrei para o movimento, sempre me disseram que a religião era o ópio do povo, inclusive na DS, mas eu precisava tomar uma decisão, e quando não agüentava mais resolvi seguir os conselhos de minha mãe de santo” Mas para Jorge, a iniciação não foi fácil. Por vários dias e meses ele tentou, preparou todos os materiais de iniciação, mas como dizia, “sempre acontecia algo na casa de Mãe Nitinha, que impedia o início de minha obrigação”. Foi somente em abril de 1992, que Jorge realiza sua iniciação no candomblé. Neste intervalo, ele sempre foi interpelado pelos militantes do PT e da DS, se por acaso, não vivia uma contradição entre se afirmar marxista, e ser iniciado no candomblé. “As pessoas do PT, quando souberam que eu estava me iniciando no candomblé, me perguntavam se isso não era uma contradição. Eu respondia que a dificuldade era deles e não minha. Para mim, não existiam problemas, lhes dizia que, pelo contrário, pelos problemas que vivia pessoalmente, achava que minha iniciação poderia

28 melhorar minha militância, poderia me acalmar e me tornar mais sereno.” Jorge conta que no período de iniciação, quando os recém-adeptos do candomblé ficam reclusos por vinte e um dias, ele refletia muito sobre esta condição, que ele chamou de filosófica, entre ser militante e ser iniciado, começar uma nova vida, dedicada aos orixás e em particular ao seu: Ogum. “No roncó eu me perguntava, por que estou aqui, poxa!!!, eu sou militante, da DS, marxista. Será que estou fazendo o certo? Mas ao mesmo tempo estava descobrindo minha história, minhas raízes, meu corpo. Eu era um cara tímido, não dançava, falava pouco. Aquilo tudo que pensava, fazia eu me sentir bem comigo mesmo, me sentia mais forte para enfrentar as dificuldades da vida. Me lembro que meu irmão de santo Zé Flávio, me dizia no roncó, que tudo aquilo que eu estava fazendo me ajudaria na minha militância política. Que eu estava nascendo de novo e construindo um futuro melhor para mim e meus companheiros de luta.” De fato, no contato que fiz com Jorge, junto a outros amigos do PT, eles afirmavam que depois que ele se “iniciou”, passou a se afirmar mais na militância, a falar mais, se assumindo como negro e adepto do candomblé, sem nenhuma vergonha ou recalque. Jorge relata que é a partir daí que ele começa a pensar na sua condição de candomblecista, militante marxista e do PT. Mas não por acaso, como ele próprio afirma, foi uma conjuntura política, ligada a esse período de sua vida, que o fez tentar criar uma associação entre esses dois mundo que vivenciava: “No início da década de 90, eu não tinha mais os problemas pessoais que tinha antes de minha iniciação, mas meus companheiros tinham, pois, depois da derrota do Lula, em 1989, muita gente desbundou,

29 uma crise geral na militância. Eu me sentia mais tranqüilo, com meu orixá Ogum, na cabeça. Por outro lado, por esta minha condição e pela crise geral da esquerda, comecei a perceber que poderíamos construir novos atores na sociedade, que tinham um papel histórico em nossa luta. Meus ancestrais tinham lutado contra o racismo e o capitalismo à maneira deles. Foi aí que identifiquei no candomblé, na sua filosofia, visão de mundo, uma maneira de resistir e lutar contra as opressões.” Ou seja, o que Jorge relata é um momento singular de sua vida, subjetiva e objetiva, que o fez querer construir um novo movimento social. É a partir daí que ele começa a articular encontros, formais e informais, para a discussão sobre o papel do candomblé na luta socialista. Por outro lado, a partir do contato com nossa investigação, começa a dar um rumo mais sistemático na sua militância, priorizando as discussões sobre cultura e religião, no Movimento Negro e no PT. Mas, Jorge não se limita somente ao discurso cultural e religioso na militância, como se verá adiante, ele procura dar uma coerência entre sua prática política e suas elaborações teóricas. Um desses momentos é a aplicação prática de uma elaboração de um de seus textos: “O Samba de Roda e a Militância Socialista”. Neste texto, que adiante será analisado mais detalhadamente, Jorge afirma que a esquerda é muito elitista e centralizadora, ou seja, fala em democracia e participação, mas “não radicaliza” no cotidiano essa mesma democracia e participação. Dá como exemplo, afirmando que nas reuniões da esquerda se “prioriza o personalismo” e a competição entre aqueles que sabem mais teorias revolucionárias do que os outros. Para se contrapor a esse tipo de prática, Jorge, em todas as reuniões de que participa: do seu núcleo do PT, do Movimento Negro, de debates, propõe se formar uma roda, onde todos olhem para todos e todos falem sobre o assunto em discussão. Propõe isso comparando ao samba de roda e ao xirê no candomblé, pois como afirma: “na roda de samba e no xirê todos participam, dão sua contribuição, já no xirê, todos os orixás dançam e se confraternizam, não existindo hierarquia entre eles.”

30 Jorge, nesse aspecto, tenta transpor uma prática culturalmente considerada tradicional entre os negros do candomblé a uma militância de esquerda. Mais adiante, ele elabora outras questões, tentando argumentar sobre a validade de suas associações entre a condição de iniciado no candomblé e a militância partidária. Por outro lado, nas observações feitas, quando da presença de Jorge em sua comunidade de terreiro, ele não mostra o mesmo empenho em construir as associações acima. Jorge é um Yaô, filho de santo de uma casa tradicional do candomblé, onde as hierarquias são extremamente rígidas, entre os mais velhos e mais novos na iniciação. Pelo que se observa, Jorge respeita muito essa hierarquia, não encontrando nenhum espaço na tentativa de uma suposta democratização do seu terreiro. Faz tudo que sua Mãe de santo manda, obedece rigidamente a hierarquia e não questiona as ordens dos mais velhos. Além disso, interpelado por mim, num momento ritual de sua comunidade, a respeito da divisão entre tarefas de homens e mulheres, que reproduziam as tarefas socialmente aceitas pela sociedade em geral, a saber, as mulheres preparavam as comidas, enquanto os homens faziam tarefas que exigiam sua força física, ele afirmou que isso era natural, que não tinha nada a questionar se era uma divisão machista ou não. No próximo ponto, será enfocado como Jorge interpreta essa hierarquia, vivenciada por ele em sua comunidade e as outras questões como feminismo, democracia, etc. MÃE BEATA- 69 anos, separada e negra. Aposentada. Não ocupa atualmente e nunca ocupou um cargo específico no interior do PT, porém sempre apoiou ativamente e ajudou nas campanhas eleitorais de alguns candidatos do partido. Se autodefine socialista. Dentre os militantes investigados é a única mãe de santo. Iniciada há quarenta e seis anos, é Ialorixá. Desde 1985 dirige a comunidade de terreiro ILÊ OMIOJUARO. É filha de santo de uma das Ialorixás mais famosas do Brasil: OLGA DE ALAKETO. Seu orixá é YEMANJÁ. Beatriz Moreira Costa, mãe de Santo, nasceu em 20 de janeiro de 1931, em Cachoeira de Paraguaçú, Recôncavo Baiano, mais conhecida como Mãe Beata de Yemanjá. Mãe Beata se afirma negra, descendente de escravos e neta de portugueses. Sua infância aconteceu nos arredores da cidade onde nasceu e foi marcada pela presença de

31 Mãe Afalá ( senhora idosa respeitada de origem Fon – Jejê ) e de outras velhas africanas. Assim narra seu nascimento: “Minha mãe era uma menina pobre do interior, descendente de escravos. Na semana de me parir, ela teve vontade de comer peixe, mas não tinha dinheiro para comprar e resolveu ir pescar. Apanhou o jererê, que era um saco redondo de barbante, como rede, e foi com uma prima para o rio. Quando passavam pela casa da velha africana que era parteira, ela perguntou: ‘Do Carmo, onde você vai?’ Minha mãe respondeu: ‘vou pescar. Estou com vontade de comer peixe’. E a velha disse: ‘olha que esse menino seu vai nascer’ E minha mãe: ‘menino não. Tenho para mim que é menina’. E foi pescar. Quando estava dentro d’água a bolsa partiu e a água ficou toda vermelha de sangue. A prima dela ficou maluquinha, e saiu correndo. Eu nasci com a cabeça deformada, depois que foi chegando no lugar. Quando minha mãe saiu do rio, a parteira a levou para a casa, pegou umas folhas e fez uma cama de palha para ela descansar. Minha mãe sabia que eu era filha de Yemanjá. Toda minha família era do candomblé e fui aprendendo a viver naquela comunidade.” Toda sua vida foi marcada pela presença dos rituais e cotidiano do candomblé. Em 1939, por exemplo, ficou doente e foi enviada à casa de sua tia Alice de Ogum, no Centro de Cachoeira de Paraguaçú, onde foram feitos rituais para a cura da menina. Em 1944, fez seu primeiro rito de iniciação na mesma cidade com o Babalorixá Anísio. Começou a namorar cedo, já na adolescência, e seis anos depois de sua iniciação casou no religioso, numa igreja católica, e dois anos depois oficializou no civil. Em 1956, depois da morte de seu pai de santo (em 1954), transferiu-se para Salvador, onde encontrou a Yalorixá Olga de Alaketo, passando a integrar seu terreiro e fazendo sua iniciação de fato.

32 Durante seu casamento teve quatro filhos, Ivete, Maria das Dores, Aderbal e Adailton e trabalhou como cabeleireira. Em função de problemas conjugais se separou do marido e, em 1970, transferiu-se para o Rio de Janeiro com seus filhos. No Rio, para sobreviver, trabalhou em diversos locais, até firmar contrato como costureira na TV Globo, no início da década de 70. Isso permitiu que ela superasse suas dificuldades econômicas conseguindo comprar um apartamento em Realengo e um terreno, em 1982, em Miguel Couto, onde hoje é o seu terreiro . Nesse mesmo ano, ela começa a construir o seu futuro terreiro de candomblé. E, depois de algum tempo, ao se aposentar na Rede Globo, em 1985, foi conferida Yalorixá, por Mãe Olga de Alaketo e abriu seu terreiro OMIOJUÀRÓ. Mãe Beata conta que passou muitas dificuldades econômicas e que com muito sacrifício pessoal conseguiu superar. Um desses problemas foi o fato do pai ser alcoólatra e perturbar sua mãe. Além disso, ela tem um problema cardíaco hereditário. Em 1976, os médicos disseram a ela que teria somente três meses de vida e precisava colocar uma ponte de safena, mas como afirma, “Yemanjá está sempre me protegendo”. Já passou por nove operações e já esteve em coma. Em meados da década de 80, já aposentada, começa a se dedicar a religião dos orixás. Funda seu terreiro numa região pobre da Baixada Fluminense, onde se concentra a maioria dos terreiros de candomblé do Rio de Janeiro. Mãe Beata afirma que, por ter enfrentado muitas dificuldades, não abriu seu terreiro simplesmente para se dedicar a sua religião, mas também para ajudar seus “irmãos negros e negras”. A fundação de seu terreiro, como nos relata, acontece no momento em que também conhece membros dos movimentos populares de Nova Iguaçu e do Movimento Negro, mais especificamente os fundadores do Ipelcy e do Inarab (associações negras que abordaremos posteriormente). Mãe Beata parece perceber que esses seus novos amigos poderiam dar um maior prestígio a sua casa de santo. Isso se revelou no crescimento rápido de sua comunidade a partir de 1988, quando alguns de seus filhos de santo, na época cerca de oitenta pessoas, ingressam no candomblé. Mas não só por esses fatores. Mãe Beata começa a fazer trabalhos de assistência social no bairro onde se encontra o terreiro, cursos profissionalizantes, aulas

33 de culinária, etc. Sua notoriedade começou quando, pela primeira vez no Rio de Janeiro, um Rabino, Zalman Schachter visitou sua casa de candomblé. Um rabino que peregrinava pelo Brasil pregando o ecumenismo e a tolerância religiosa entre as seitas e as diversas denominações. A partir daí Mãe Beata percebe que fazer articulações ecumênicas e alianças pontuais com outras figuras religiosas, de outras denominações, era muito interessante para um maior prestígio de sua casa. Por influência do crescimento do trabalho do Partido dos Trabalhadores, quando este elegeu pela primeira vez dois vereadores na cidade, em 1988 ela se filia ao PT de Nova Iguaçu. Isso ocorreu, como resultado de um longo trabalho político de base do PT, no bairro de Miguel Couto, onde Mãe Beata mora. Na época, alguns de seus filhos de santo eram militantes do partido. Aqui se pode ver que Mãe Beata começa a ganhar uma notoriedade em muito pouco tempo, ao contrário dos terreiros já instalados na região há algum tempo. Parece que ser uma tática muita bem pensada por Mãe Beata, que, como se constata, a constituiu como uma das Mães de santo mais expressivas do Estado. Porém, Mãe Beata não explicita esta aliança com o PT e com os movimentos sociais, seu intuito se constituiu em ganhar prestígio para sua casa de candomblé. Ela afirma isso de uma outra forma, como nos relata: “Sou uma cidadã e vivo de luta, desde quando era pequena. Creio que Olorum determinou que a nossa função mais importante se dá quando abraçamos uma causa. Podemos sempre plantar uma sementinha, não importa onde estejamos. A política não deve estar desassociada do nosso dia-a-dia. Quando falamos sobre a saúde da mulher ou quando discutimos o custo de vida no supermercado, estamos fazendo política. A luta de uma mulher ajuda a outra a crescer”. Todo esse trabalho de crescimento de seu terreiro teve a ajuda de seus quatro filhos. Nas observações feitas nessa investigação se percebe que estes são verdadeiros “relações públicas” de Mãe Beata. São eles que “pegam no pesado”, convocando a comunidade para

34 os eventos promovidos pelo terreiro, dando os cursos oferecidos por Mãe Beata e, claro, ajudando-a em todos os rituais da casa. Mãe Beata apesar de um discurso politizado, pregando a igualdade mas mantendo uma hierarquia dentro de sua comunidade parece ter a mesma prática social de Jorge Carneiro em seu terreiro. Ali é ela quem dá as ordens, determina os horários dos rituais, das oferendas aos orixás e etc.. Nesse aspecto, ela não difere muito de outros sacerdotes e sacerdotisas do candomblé. Entretanto, como se vê, ela faz “pregações” de ecumenismo, do socialismo e da luta contra o racismo e pela manutenção de uma identidade negra. Mãe Beata hoje, além dos quatro filhos, tem sete netos, um bisneto e cerca de duzentos filhos de santo. Constatar-se-á que, após a fundação de seu terreiro e a organização de eventos e a participação em outros – inclusive em nível internacional – , ela continua mantendo seu prestígio fora das comunidades de terreiro afro-brasileiras, às vezes, sendo lembrada mais como Mãe de Santo Petista e Progressista do que como uma Sacerdotisa “tradicional” do mundo do candomblé. Certamente, Mãe Beata conseguiu mais prestígio fora do candomblé do que imaginava na época da fundação de seu terreiro. LUCIA BARROS- 39 anos, separada e negra. Professora. Entrou no PT em 1989, ajudou na fundação da secretaria de mulheres do PT de Nova Iguaçu em 1991 e atualmente é membro do diretório municipal do PT desse município, além de ser coordenadora do coletivo de combate ao racismo do PT-NI e também membro da Secretaria Estadual de Combate ao Racismo do PT-RJ. Se autodefine socialista e petista. É iniciada há vinte e quatro anos, porém, somente agora retorna para uma comunidade, pois esteve longos anos afastada das obrigações rituais por problemas pessoais. Realizou sua obrigação de sete anos em agosto de 1998, quando recebeu seu DEKA, ou seja, o cargo de Ialorixá. Seu orixá é OXOSSI. Lúcia Maria Barros é Professora do ensino fundamental no município do Rio de Janeiro. Nasceu no Rio de Janeiro em 1961 e viveu sua infância e adolescência na Baixada Fluminense. Lúcia também é de família pobre. Ela relata que sempre viveu com seus pais em dificuldade econômica e também sofreu a discriminação pelo fato de ser negra. Seus pais sempre pertenceram ao candomblé e em sua adolescência, aos 15 anos, se inicia no

35 candomblé de Angola, em Nova Iguaçu. Ela nos relata que esse foi um importante momento de sua vida, pois aprendeu muitas coisas “do santo” e vivia em paz consigo mesmo. Alguns anos depois (com vinte anos) tem um relacionamento com um rapaz de sua comunidade e fica grávida. Conta que isso modificou completamente sua vida, já que sua filha nasce com deficiência mental, o que a faz viver uma profunda crise pessoal. Abandona o candomblé, se afastando inclusive de seus pais. Dois anos depois se casa, termina seus estudos, se formando como professora do Ensino Fundamental e fica grávida de novo de um menino. Nesta época começa a trabalhar e entra em contato com um grupo religioso de Nova Iguaçu – a Assembléia de Deus. Entra para a Igreja e se estabiliza um pouco em sua vida espiritual – conforme relata. Lúcia expõe ainda, que sempre teve um grande interesse pelas artes, pela música e pelo teatro. Ao mesmo tempo em que ingressa na igreja protestante, conhece um outro grupo de animadores culturais de escolas de Nova Iguaçu. Foi a época da construção dos CIEPs, quando vários animadores culturais e professores foram chamados em concurso pelo governo do Estado. Nesse momento passa no concurso público, e inicia sua carreira como professora de Ensino Fundamental. Ela começa a fazer trabalhos culturais de teatro, com seus novos amigos animadores culturais. Em função disso, começa a viver certos conflitos com sua igreja e com o pastor. Em 1989, este grupo de animadores entra na campanha de LULA para presidente da república, levando Lúcia a conhecer o PT. Os conflitos dela com seu Pastor se agravam, pois este não vê com bons olhos seu envolvimento político, acusando-a de “misturar política com religião”. Ela diz que começa a perceber que em sua igreja não existe solidariedade entre as pessoas e que no PT as pessoas são mais solidárias. Afirmava na época: “Quando comecei minha militância no PT eu ainda era da igreja protestante e me incomodava quando o pastor dizia que eu misturava política com religião. O explicava que freqüentava o PT porque meus amigos do grupo cultural e do PT levavam mais a sério a

36 humanidade, muito mais que as pessoas da igreja, e que as pessoas do PT lutavam por uma sociedade mais justa, assim como Jesus Cristo. Ele não se convenceu disso e mais tarde sai da igreja por isto e outros motivos”. Lúcia se separa de seu companheiro e começa a dar prioridade à militância política em sua vida. Ao mesmo tempo, como relata, começa a repensar sua volta ao candomblé. Pois logo após sua saída da igreja, recomeçou a freqüentar alguns rituais do candomblé, reencontrando alguns amigos de sua adolescência. Afirma que esse período foi muito interessante, pois a militância política a fez mais livre de tabus, com sua sexualidade e sua condição de mulher; como afirma, que sempre foi reprimida na igreja. O período de militância partidária que começava a viver era também um período que o PT discutia muito a questão do feminismo. E ela nos relata que nesse período começou também a ler muito e uma das leituras que mais a impressionou, foram os livros de W. Reich, sobre a condição sexual da humanidade. “Depois que comecei a priorizar a militância política, o meu trabalho cultural e a luta feminista, comecei a viver mais minha sexualidade sem culpa e percebi que, no passado, o candomblé tinha me ajudado na vida”. Lúcia relata que muitas coisas que vivia no candomblé: a sexualidade, a solidariedade entre as pessoas, etc., passou a reviver na militância política no PT. Ao longo de sua trajetória de vida e profissional ela informa que sempre foi uma “criadora de casos”, pois sempre “fomentava” polêmicas em todos os espaços que freqüentava. Isso é perceptível nos seus relatos sobre a polêmica com o pastor e em seu local de trabalho. Na escola onde trabalha, um CIEP - no subúrbio do Rio de Janeiro – ela sempre questionou o fato das crianças negras serem discriminadas. Além disso, depois de seu retorno ao candomblé e sua passagem pela igreja protestante, ela sempre radicalizou seu discurso, contra o que ela chama de “pensamento conformista cristão”:

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“Num diálogo com uma colega lá da escola há alguns anos atrás, ela dizia que mesmo se as coisas vão mal na vida, é preciso sempre dizer que, ao final, somos felizes por que temos Deus conosco. Depois eu a respondia que isto não é verdade, pois se as coisas vão mal, é preciso fazer algo para melhorar nossa vida, e não se conformar com Deus”. Ela relata isso afirmando que a “filosofia do candomblé” lhe dá uma ‘visão de mundo’ diferente daquela cristã que viveu. Por outro lado, na militância do PT, Lúcia sempre foi uma – como afirma – “criadora de caso” também. Diz que sempre esteve vigilante às decisões coletivas do Partido que não são cumpridas, observa atentamente o discurso e a prática das pessoas, para depois cobrar uma coerência. Em função disso, Lúcia sempre esteve em minoria política no PT de Nova Iguaçu. Numa observação feita por mim, durante alguns momentos de sua militância política, se constatou que, de fato, essa sua característica “contestadora” sempre foi muito acentuada. Numa reunião do PT de Nova Iguaçu, em 1998, Lúcia, ao contrário da maioria do partido, foi contra o investimento de todo o dinheiro do PT em apenas uma candidatura a deputado estadual. Ela achava incoerente, que os militantes, que sempre falaram em democracia, não ajudassem aqueles candidatos que não tinham nenhum recurso econômico para suas campanhas políticas. Alguns militantes na época concordavam com Lúcia, porém, não questionavam publicamente – ao contrário de Lúcia - a proposta da maioria. Um outro momento, que ela expõe, foi em 1991, quando o partido fundou o Diretório em Belford Roxo. Naquela época o Partido já tinha definido um candidato a presidente do diretório local, entretanto, numa conversa informal, alguns militantes afirmavam que (de forma brincalhona) caso uma mulher se candidatasse, o partido não iria funcionar. Nessa época, a discussão sobre o feminismo no PT fervilhava e, por conta disso, Lúcia articula junto a outras mulheres do PT local, sua candidatura à presidência do Partido, em contrapartida “ao machismo dos homens do PT”. Contudo, esse “espírito contestador” não se resume somente ao PT. Depois de sua volta ao candomblé, Lúcia sempre criticou “certas posturas” do povo de santo. Ela, de uma

38 forma bem crítica, informa que uma das coisas que mais detesta no candomblé, é o fato das pessoas confundirem hierarquia ritual com humilhação de Sacerdotes sobre seus filhos de santo. Por conta disso, Lúcia até hoje não conseguiu se identificar ou se fixar de forma duradoura em nenhuma casa de santo do Estado. O fato de se evidenciar esse seu chamado “espírito contestador”, se soma ao que se observa na sua vida pessoal e na sua trajetória política no PT, que indica a necessidade de Lúcia ter uma política própria dentro do Partido. Por um lado, a partir do nascimento de sua filha, ela muda radicalmente suas relações sociais, parece que naquele momento ela está á procura de um sentido para sua vida, por outro lado, a nível político parece ocorrer o mesmo, pois o fato de contestar seus parceiros de militância partidária e ser “sempre vigilante”, a coloca no isolamento constante no partido, procurando sempre se afirmar de forma original e singular. Em 1996, Lúcia conhece Jorge Carneiro, numa reunião de negros e negras do PT. Jorge, sabendo que ela também era iniciada no candomblé, lhe propõe uma discussão sobre seus textos e elaborações. Encontrando-se só no Partido em Nova Iguaçu, no que se refere a tentativa de construir associações entre sua religiosidade e a e política, ela percebe que esse movimento de Jorge lhe daria um espaço de atuação novo, de atuação política. É aqui que se identifica o começo das intervenções de Lúcia, no sentido de construir associações entre sua militância política e sua condição de iniciada. O que se vê então, é que Lúcia sempre vivia uma dualidade de presença no candomblé e na militância, entretanto, por estar isolada dentro do partido, não encontrando uma comunidade fixa para a prática de sua religiosidade, ela preenche esse “vazio”, no momento em que encontra outro militante que tenta realizar uma discussão política a respeito de sua religiosidade. A partir daí, Jorge, Lúcia e mais adiante, também Paulo Cezar, tentam construir um novo movimento fora e dentro do PT. Entretanto, Lúcia parece tentar construir associações entre o que ela chama de “visão de mundo” do candomblé e utopia socialista, de forma isolada, tanto no PT, quanto na sua vida religiosa, numa tentativa de se auto-legitimar dentro do partido com uma

39 política diferenciada, para sair do isolamento em que se encontra, buscando uma base mais sólida para sustentação de sua militância política e poder de influência. PAULO CEZAR- 44 anos, casado e negro. Funcionário Público, Agente administrativo da Secretaria de Fazenda do Estado. É coordenador nacional do MNU, foi assessor parlamentar da vereadora Jurema Batista, do PT-RJ. Recentemente ingressou na Secretaria Estadual de Combate ao Racismo do PT. Se autodefine socialista e petista. É Ebomy, fez a sua obrigação de sete anos em 1998, iniciado há oito anos e meio. Freqüenta todos os rituais e eventos de sua comunidade. Seu orixá é Xangô. Paulo Cezar Anastácio Pereira, nasceu na periferia da cidade do Rio de Janeiro em 20 de maio de 1956. É o terceiro filho de uma família de nove irmãos. De família pobre, viveu sob condições semelhantes à de Jorge Carneiro. Viveu sua infância e adolescência no Andaraí (Subúrbio do Rio de Janeiro). Por dificuldades econômicas de sua família termina o segundo grau com 22 anos. Paulo Cezar, mais conhecido como PC, relata que sempre foi discriminado pelo fato de ser negro, quando era jovem começa a despertar sua consciência negra, quando aos 18 anos, vai procurar emprego. “Eu e minha família, sempre fomos discriminados por sermos negros, no bairro, no cotidiano da vida, etc., porém senti isto na pele quando comecei a procurar emprego. Me lembro que na época, encontrei um trabalho muito bom num escritório, mas uma moça do departamento pessoal, depois que me viu pessoalmente, me perguntou se eu falava inglês. Claro que não sabia, e então me rejeitaram. Assim como vários outros trabalhos que não conseguia, pois apesar de saber datilografia e outras habilidades que tinha, fui rejeitado por motivos banais, que hoje vejo que eram simples desculpas, pois o motivo era o fato de ser negro”. PC, diz que não se importava com essa discriminação quando era adolescente, mas quando não conseguia emprego, isso lhe fazia se sentir muito humilhado. Mas, PC

40 conseguiu outros empregos e na primeira oportunidade que teve, em 1979, entrou para Universidade Gama Filho, para fazer economia, com 23 anos. Durante seus estudos, trabalhou como Office Boy, agente de publicidade, no ramo de Hotelaria, etc. Levando uma vida difícil ele consegue terminar a faculdade e inicia uma outra de Engenharia econômica em 1984, terminando-a em 1988. PC tem um longo currículo de cursos de especialização e cursos ligados a área de Marketing e planejamento econômico. Revela que, já cansado de sofrer preconceito racial na universidade e nos empregos que tentava arrumar, decidiu em 1986, junto com amigos, abrir uma agência de propaganda própria. De 1986 à 1988, trabalhou por conta própria e de, 1988 à 1993, além de sua agência conseguiu um trabalho em outra agência de publicidade acumulando, assim, dois trabalhos. Devido a essa história pessoal, onde PC sente “na pele” o racismo, ele conta, que onde morava no Andaraí, conheceu um grupo de militantes do Movimento Negro em 1980, que fundaram o Instituto de Pesquisa da Cultura Negra (IPCN) e eram filiados ao PT. PC, expõe que foi uma grande ocasião em sua vida conhecer aquelas pessoas, porque estava muito revoltado com o racismo que sofria, já que estudava muito, fazia cursos, mas “as pessoas não me admitiam como um trabalhador qualificado”. Sua história a partir daí, foi muito engajada no Movimento Negro. Ele conta que depois que tomou consciência do racismo no Brasil, começou a fazer um trabalho junto aos seus amigos, em algumas favelas do Rio de Janeiro. “Depois que entrei para o IPCN, fundamos um grupo de amigos negros das favelas e periferia. Depois em 1980 me filiei ao PT, por influência dessas pessoas, como Jurema Batista, Marcelo Dias, etc.” Em 1982, esse grupo tenta eleger como vereadora, Jurema Batista, mas não obteve êxito. Tentou novamente em 1988, com o mesmo resultado. Ou seja, durante toda a década de 80, PC dedica sua vida à universidade e à militância do Movimento Negro.

41 PC informa um fato específico de sua vida: sua família sempre viveu entre influências religiosas do kardecismo, umbanda e catolicismo. Segundo ele, isso vem desde sua avó materna, que era rezadeira, fazia curas e ajudava os vizinhos, e também à causa de seu avô paterno que era pai de santo na umbanda. PC diz que, como era muito ligado a seu pai, quando tinha 14 anos, em 1970, se iniciou na umbanda, ficando nela até 1990, quando entra para o candomblé. Sua passagem da umbanda para o candomblé se dá, como informa, não por questões políticas, mas “por questões espirituais”. “Na umbanda eu era de Ogum, fazia todos os rituais para ele e São Jorge. Mas quando jogava búzios, de vez em quando no candomblé, os pais e mães de santo me diziam que eu era de Xangô. Foi então que em 1989 eu fui numa casa de candomblé e “bolei”10, Xangô me pegou. Foi então que me convenci que eu não era de Ogum. Então, pelo fato de xangô ter me chamado eu entrei para o candomblé e me iniciei em 10 de novembro 1990.” PC afirma ainda que foi nesse período, junto às discussões no Movimento Negro, que

percebeu

que

“a

umbanda

significava

historicamente

um

processo

de

embranquecimento das religiões negras no Brasil”. O que segundo ele, faz parte de uma discussão histórica do Movimento Negro acerca do sincretismo e das teorias de embranquecimento da cultura negra. E isso porque para o Movimento Negro, a partir de 1979, com a fundação do MNU, a umbanda é identificada como uma religião sincrética que não representa uma suposta originalidade africana pura. No entanto, essa tese não é consensual no Movimento Negro. Em 1992, depois de duas tentativas, o grupo que historicamente fundou o IPCN, junto com PC, elege Jurema Batista vereadora pelo PT do Rio de Janeiro. A partir daí, esse grupo continua a realizar o trabalho político nas favelas e periferias do Rio, com um mandato parlamentar nas mãos. Na posse de Jurema Batista, PC se integra ao mandato como assessor parlamentar. PC afirma que esse grupo de pessoas que ajudou a eleger

42 Jurema Batista, já no final da década de 80, tinha contatos com o Grupo do INARAB, que fazia trabalhos políticos com as comunidades de candomblé do Rio de Janeiro. Ele ainda diz que chegou a participar de alguns encontros do Inarab e do Cenarab, mas não era sua prioridade de discussão na época. Somente a partir do mandato de Jurema, ele começa a fazer uma discussão mais sistemática acerca da importância política da “cultura africana” – como classifica as religiões afro-brasileiras. Uma vez que durante a campanha eleitoral ele e outros militantes pediram votos a alguns iniciados do candomblé. Em função disto e do compromisso de Jurema com toda a comunidade negra do município, o mandato tinha que discutir políticas públicas para esse setor. Nesta época, PC conhece Jorge Carneiro de quem se torna amigo e “irmão”, como diz, de santo. Começando, então, uma discussão mais sistemática, sobre as possíveis associações entre religiosidade expressa no

candomblé e na utopia socialista. O

interessante nesse encontro – entre PC e Jorge – é que ele não se deu antes, na Universidade Gama Filho, embora tenham iniciado lá, o mesmo curso e no mesmo ano. No mandato de Jurema Batista, PC organiza eventos que envolvem várias comunidades de terreiro e até projetos legislativos referentes aos interesses dessas comunidades, o que se verá mais adiante. Nesse período, PC se casa ,em 1995, e no ano seguinte nasce seu filho, Tarik. PC fica no mandato de Jurema até 1999, quando faz um concurso para a Secretaria de Fazenda do Estado e passa, ingressando como Agente Administrativo. Em 1989, PC se filia ao MNU, como relata: “Aquele grupo que fundou o IPCN não estava satisfeito com uma intervenção política somente a nível estadual, assim, em 1989, nos filiamos ao MNU, para qualificar mais nossa luta contra o racismo no Brasil.”

10 Expressão usada no candomblé quando o Orixá incorpora alguém que não é ainda iniciado.

43 Em 1993, PC entra para a coordenação estadual do MNU e, em 1995, para a coordenação nacional, mantendo-se nela até o momento. Por último, PC no Partido dos Trabalhadores sempre tentou organizar a secretaria estadual de negros e negras do PT, tendo sua militância no Partido se restringido a esse setor. Hoje PC é membro do coletivo estadual de negros e negras do PT- RJ. Na descrição das trajetórias dos quatro militantes, constata-se que as motivações pessoais são variadas, mas que, de uma certa forma, num determinado momento se cruzam, levando-os à tentativa de construir movimentos singulares. Com exceção de Mãe Beata, todos os outros têm uma origem semelhante: enfrentaram em suas vidas a discriminação racial, tiveram dificuldades econômicas e as condições subjetivas que os levaram para uma discussão que realizam hoje, combinadas, é claro – como se verá em detalhes mais adiante – com as conjunturas políticas dos anos 80 e do Movimento Negro. Em todos eles existem motivações pessoais que convergem na tentativa de criar associações entre as vivências no candomblé e na política. Ver-se-á que o problema de “saúde” de Jorge, o interesse de Mãe Beata em ganhar notoriedade como Mãe de Santo, militando no Movimento Negro, a desconforto de Lúcia pelo fato de sua vida ser radicalmente modificada com o nascimento de sua filha portadora de necessidades especiais e, por último, a discriminação racial sofrida por PC quando procurava emprego, se conjugaram com os fatos políticos dos anos 80 e 90, ou seja, a criação do PT e o desenvolvimento das discussões e elaborações do Movimento Negro.

2.2 – O Partido dos Trabalhadores Em dezembro de 1978, realiza-se, em Lins - SP, o Congresso dos Metalúrgicos. Os metalúrgicos de Santo André defendem a tese da formação do Partido dos Trabalhadores: um partido que tenha “independência política em relação aos patrões e ao governo, que rompa com o eleitoralismo, que organize e mobilize os trabalhadores na luta por uma sociedade mais justa, sem explorados e exploradores e que seja um instrumento de luta pela

44 conquista do poder político para todos os trabalhadores”11. A tese de S. André propõe ainda que o congresso lance um manifesto conclamando os trabalhadores à construírem o PT e a eleição de uma comissão para encaminhar a discussão a nível nacional. Após amplas discussões, o PT é fundado em 10 de fevereiro de 1980. Ao longo dos anos 80 e 90 o PT foi o partido, no cenário político brasileiro, que mais cresceu, tanto em número de votos quanto em número de militantes. Definindo-se como socialista desde sua fundação, o PT, em seu último congresso realizado em 1999, ratificou sua concepção de socialismo do seu 1° Congresso de 1991: “Para o PT o socialismo é sinônimo de democracia. Isto quer dizer que a concepção de socialismo do PT é diversa de tudo aquilo que, enquanto concepção, se concretizou nos países do chamado socialismo real. Mais do que uma afirmação retórica, de uma idéia, este compromisso democrático tem a intenção de se concretizar em todas as dimensões do PT: no seu modo de ser e se organizar, nos valores que assume diante da sociedade, na relação que assume com os movimentos sociais, nas propostas presentes no seu programa político, na sua intervenção parlamentar, enfim, em todas as suas ações cotidianas, de cada petista. Afinal, democracia para nós significa meio e fim. Afirmar isto implica em rejeitar toda e qualquer forma de ditadura, incluindo a ditadura do proletariado, que não pode ser a ditadura do partido único sobre a sociedade e sobre os próprios

trabalhadores.

qualitativamente

superior,

Lutamos baseada

por na

uma

sociedade

cooperação

e

na

solidariedade, na qual os conflitos sejam vividos”. democraticamente. Coerente com este pensamento, o PT rejeita a concepção de que o pluralismo seja uma circunstância que se tolera, até que, um dia, desapareçam as classes sociais, estabelecendo-se, então, as bases 11 PT. Resoluções de Encontros e Congressos/Org.: Diretório Nacional/Secretaria de Formação e Fundação Perseu Abramo/projeto memória – São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.

45 para uma homogeneidade de pensamento. O PT entende que a diversidade é humana, razão pela qual a intenção de eliminá-la é claramente um projeto de violência contra a humanidade. Lutamos por uma sociedade efetivamente plural, o que é um motivo a mais para ser anticapitalista, já que este, oprime e aliena o homem, admitindo somente o fato de uma pluralidade restrita a partir de uma desigualdade de condições e oportunidades. Só um potente movimento de reformas políticas e sociais, baseado em um programa democrático e popular centrado na luta contra o latifúndio, o monopólio e o imperialismo, pode levar a uma profunda revolução que o Brasil necessita, se quisermos superar o modelo excludente que o caracteriza há 500 anos. Na visão do PT, a revolução social necessária para superar o capitalismo deve ser operada por milhões de brasileiros, que na luta por reformas estruturais, confronta-se com o status quo vigente, acumulando força para uma transformação revolucionária, radicalmente democrática e socialista”.12 Essa resolução resume e orienta a identificação de seus militantes na luta política. Entretanto, para os militantes investigados, essas referências programáticas não são suficientes como referência para seus movimentos específicos, enquanto negros e portadores de uma determinada identidade religiosa. Tanto Jorge Carneiro como PC e Lúcia encontram dificuldades para se integrarem totalmente nas estruturas do Partido. Já Mãe Beata se encontra mais distante das discussões internas do partido, participando somente em períodos eleitorais. Os três primeiros fazem discussões específicas dentro do PT – a questão racial. Essa não é devidamente tratada como discussão estratégica, pois, muitas vezes, se apresentam mais os debates sindicais ou eleitorais do que outros temas. Sendo assim, os militantes da questão racial não ocupam muito espaço dentro do partido.

46 No entanto, apesar do programa do partido falar em participação e democracia, os militantes investigados tentam complementar, no plano teórico, as posições políticas do PT, a partir de suas discussões específicas. Antes de se discorrer sobre as complementações que esses militantes fazem a essa “identidade petista”, serão analisados mais dois espaços de referências importantes para eles.

2.3 – O Movimento Negro Dentre os militantes investigados, dois são filiados ao MNU (Jorge Carneiro e Paulo César), uma é simpatizante deste (Lúcia) e a outra não é filiada a nenhuma entidade nacional do Movimento Negro (Mãe Beata). O Movimento Negro Unificado ( MNU ), foi fundado em 1978 como fruto da influência da libertação de Angola e Moçambique e da luta pelos direitos civis nos EUA. O marco inicial de sua fundação foi uma manifestação pública ocorrida em São Paulo, um ato de protesto contra a violência policial desferida contra negros, representada pela morte em tortura do operário Robson Silveira Luz, assim como, contra a discriminação racial em relação a quatro garotos negros impedidos de participarem de um time de voleibol no Clube de Regatas Tietê. Foi uma manifestação de duas mil pessoas, em frente ao Teatro Municipal. A partir desse episódio, foram criados vários núcleos em diversos Estados. O objetivo desse movimento era o de desenvolver instrumentos de luta contra a opressão policial, o desemprego e a marginalização da comunidade negra. O MNU, em 1978, passou a organizar-se em diversos bairros e centros urbanos, realizando movimentos nas ruas para enfrentar a ditadura militar. Seu programa básico de ação visa a desmistificação da democracia racial brasileira; a organização política dos “afrodescendentes” para transformá-la em movimento de massas; a busca de alianças com outros grupos voltados para a luta contra o racismo; a organização em partidos políticos e sindicatos, além do apoio à luta internacional contra o racismo.

12 Resolução do 1° congresso do PT. Novembro 1991, pp.12.

47 Entretanto, o MNU não consegue unificar todos os setores negros em suas fileiras. Muitos militantes o criticam por ter uma visão “estreita” ou, ainda, por ser construído a partir de somente uma linha política, o que foi chamado de “petização”. Assim, em 1991, foi realizado o ENEN ( 1º Encontro Nacional de Entidades Negras ), no Ginásio do Pacaembu, em SP, reunindo basicamente os militantes que não se encontravam no MNU, Ongs e associações negras do Brasil inteiro. Seu programa é semelhante ao do MNU, porém, não tem como meta a criação de um “projeto político para o povo negro no Brasil”. O MNU, posteriormente, será analisado de forma mais detalhada, uma vez que alguns dos militantes investigados têm como forte referência em suas identidades, as políticas que são traçadas nessa entidade.

2.4 – O Candomblé Candomblé, casa de santo, Ilê Ayê, terreiro, é como são chamados os locais da prática dos cultos afro-brasileiros, que proliferaram por toda parte e participam como instituição popularmente reconhecida e incorporada no cotidiano da vida brasileira. Foram várias as tentativas, na etnografia brasileira, de definição dos cultos afrobrasileiros, como o candomblé e também a umbanda. O estudo inaugural das religiões afro-brasileiras, consiste numa obra de divulgação médico-científica escrita no final do século XIX. Trata-se de “O animismo feitichista dos negros baianos”, de Nina Rodrigues13. Nesse livro, o autor mostrava as influências sociais exercidas pela raça negra no Brasil, através do estudo de sua mentalidade religiosa, considerada “patológica”, “atrasada” e “incapaz” de manipular as “elevadas abstrações” exigidas pelas religiões monoteístas. Realizando observações no terreiro do Gantois, que considerou como modelo para uma idéia exata do que é um templo feitichista na Bahia, Nina Rodrigues presenciou diversos rituais e pôde obter grande quantidade de informações sobre a liturgia e outros aspectos do culto dos orixás. Sua descrição dos terreiros foi feita basicamente com o objetivo de confirmar suas teses do estado “atrasado” dos grupos negros 13 RODRIGUES, R. N. O animismo feitichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1935.

48 no Brasil que, segundo ele, explicavam o estado incipiente do desenvolvimento da civilização brasileira quando comparado à européia, no qual o elemento negro não exerceu influência. Também médico-legista, Arthur Ramos, posteriormente, dará nova ênfase aos estudos das religiões de influência africana. Diferente de Nina Rodrigues, o autor coloca a discussão da religiosidade dos grupos negros em termos culturais e não mais raciais, reflexo de sua adesão ao pensamento culturalista da antropologia de Lévy-Bruhl14. Além disso, Arthur Ramos alargou o campo de referência dos cultos afro-brasileiros, englobando os candomblés da Bahia e as chamadas “macumbas” do Rio de Janeiro. E nessa ampliação de seus estudos, ele agrupa a origem étnica dos negros introduzidos no Brasil em dois grupos: os Sudaneses e os Bantos, hierarquizando-os com a idéia de superioridade dos Sudaneses (Yorubás e Jêjes) em detrimento dos Bantos (Angolas, Congos e Benguelas). Ramos afirmava que os Bantos (macumba) caracterizavam-se pela sua extrema simplicidade de rituais, contrastando com a complexidade nagô dos candomblés. Entretanto, assim como Nina Rodrigues, ele acreditava que os cultos afro-brasileiros representavam dificuldades para o desenvolvimento do pensamento racional e civilizado na sociedade brasileira. Contudo, como sua explicação para a existência desses cultos é antes de tudo cultural e não racial, portanto adquirida e não inata, ele acreditava que o projeto de racionalização, ou idéia de progresso cultural, é algo possível a partir da herança africana. Nos anos 50, Roger Bastide aparece com uma nova interpretação das religiões afrobrasileiras. Para ele, as religiões africanas sofreram os efeitos das modificações pelas quais passou a sociedade brasileira, no estabelecimento de um regime escravocrata, e na transição deste para uma economia capitalista, baseada no trabalho livre; transformações essas separadas no tempo e de significados estruturais diferentes nos locais onde ocorreram. Defendia, ainda, a idéia de que as religiões africanas puderam se organizar e acomodar no Brasil, porque estavam mergulhadas num mundo ainda permeado por valores tradicionais, comunitários

ou

pré-capitalistas,

aproximados,

portanto,

daqueles

valores

que

predominaram nos locais de origem dessas religiões na África, tendo no entanto, a ordem escravocrata destruído e coibido a formação de famílias iguais à ordem social africana. O

49 surgimento do candomblé espelharia, então, a tentativa de reconstituição dessa ordem. Nesse contexto, os negros africanos e seus descendentes, participavam de dois universos: um “africano”, restrito ao mundo dos candomblés e, estes, formando um casulo enquistado na sociedade abrangente “brasileira”15. Essas interpretações criaram certos paradigmas de análise que, de uma certa forma, se tornaram clássicas nos estudos afro-brasileiros. Entretanto, para além das análises clássicas e posteriores, a respeito dos cultos afro-brasileiros, é necessário ressaltar que o candomblé surge no Brasil como produto de (re)invenções – de adaptações e sínteses – dos vários sistemas de crenças, provenientes do continente africano, durante mais de três séculos do período da escravidão. A (re)invenção de uma África mítica aparece, desde o início, como elemento fundante das diversas identidades religiosas assumidas e atribuídas como raízes ou nações que marcam as fronteiras litúrgicas de cada comunidade (terreiro), que a partir do final do século XIX começaram a adquirir visibilidade e legitimidade social. Primeiramente, no contexto baiano, os grupos de culto a orixás se organizaram e delimitaram suas identidades religiosas erguendo fronteiras a partir do elenco de divindades cultuadas, dos calendários litúrgicos, das linguagens e seqüências rituais adotadas, apresentando uma variabilidade, de acordo com as origens africanas atribuídas. No decorrer dos anos, os terreiros, já legitimados e inseridos no desenvolvimento da sociedade capitalista brasileira, através de seus sacerdotes, começam a utilizar diversos recursos, no sentido de conquistarem mais espaços na sociedade brasileira. Reginaldo Prandi, analisa esse período afirmando: “foi o desprendimento do candomblé de suas amarras étnicas originais que o transformou numa religião para todos, ainda que sendo uma religião aética, permitindo também a oferta de serviços mágicos para uma população fora do grupo de culto, isto é, negociando com outros sistemas de crenças; apropriando-se de complexos simbólicos e ressignificando-os, não exigindo exclusividade religiosa de seus adeptos e de sua clientela, aceitando em suas comunidades indivíduos

14 RAMOS, A. O negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1971. 15 BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil–contribuição a uma sociologia das interpretações das civilizações. São Paulo: Pioneira, 1971.

50 considerados pela sociedade abrangente como marginais ou por ela excluídos, como citado anteriormente”.16 A partir daí, compreende-se como o candomblé pode ser apropriado e utilizado para diferentes estratégias de sobrevivência política, social, cultural e religiosa de indivíduos e/ou grupos negros. Um exemplo clássico dessas estratégias foi muito bem descrito por Beatriz Góes Dantas, em seu livro, “Vovó Nagô e Papai Branco”.17 Aqui ela descreve como a noção de tradição construída pelos terreiros – a pureza nagô – é ideológica e de diferentes significados, fazendo parte de estratégias de sobrevivência diante da sociedade mais abrangente. Estudando os terreiros de Laranjeiras, cidade localizada na zona açucareira de Sergipe, Beatriz Dantas aponta para os africanismos lá encontrados no principal terreiro nagô, tidos como mais puros em contraste com os “toré”, misturados e em maior quantidade, que não se revelam congruentes com aqueles da tradição nagô baiana, tão fortemente associada, na literatura científica, as suas origens africanas. Certos ritos do candomblé nagô baiano, como reclusão da iniciada, a raspagem de cabeça e o derramamento de sangue sobre esta, são considerados, pelo terreiro sergipano, como sinais de mistura, uma vez que, lá, representam práticas dos torés, classificadas como distantes da herança africana. Dantas conclui, a partir de uma visão dinâmica da manipulação dos acervos culturais, que a propaganda da pureza nagô tem sentidos diversos na Bahia e em Sergipe, construindo, portanto, uma retórica estreitamente ligada à estrutura de poder da sociedade, a seus mecanismos de classificação da ordem social e ao papel desempenhado pelos intelectuais e pesquisadores na incorporação dessa retórica em suas formulações científicas. Esse estudo de Beatriz Dantas me orienta para pensar as construções de sentidos, feitas pelos militantes investigados nessa pesquisa, pois o que eles tentam, como se verá mais detalhadamente, é a legitimação de uma certa visão do candomblé, para uma atuação

16 PRANDI, R. Herdeiras do Axé. Sociologia das religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro: PPGCS-IFCS/UFRJ, 1986. Dissertação de Mestrado. pp. 31 17 DANTAS, B.G. Vovó nagô e papai branco; usos e abusos da äfrica no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

51 política partidária. Constroem significados ditos tradicionais com objetivos de nortearem suas atividades enquanto militantes do PT. O candomblé para eles não é somente um lugar de crença aos orixás, mas também um espaço de legitimação de seus pensamentos políticos. Possuem, assim, a visão de um candomblé que pode inspirar e representar um exemplo de democracia participativa para negros e não-negros. Nesse sentido, criam-se novos significados para rituais (exemplos de democracia), histórias de orixás (inspiradores de comportamento ético e moral), associações entre a relação dos cultos afro-brasileiros e a luta ecológica, etc. Encontram-se nesses militantes, uma nova forma de apropriação do candomblé, de certos traços culturais, no sentido de os utilizarem para a ocupação de espaços sócio-políticos, o que confirma o excelente trabalho de Góes Dantas.

2.5 – As (re)interpretações “de dentro” Ao longo dos contatos com os militantes, se evidenciou uma interpretação bem particular desses três espaços de suas práticas identitárias. Eles reinterpretam esses espaços de acordo com seus objetivos políticos mais imediatos e estratégicos. Ou seja, para uma ação política, os militantes operam reelaborações desconcertantes, revitalizações móveis de religiosidade e concepções políticas. Realizando aproximações de universos simbólicos diversos, construindo associações. Vejamos o que afirma Jorge Carneiro, que revelou um momento muito singular de elaboração de sua identidade e de construção de associações, no momento em que foi indagado a respeito de uma crítica vinda de alguns de seus companheiros de partido, sobre a suposta contradição entre a utopia socialista e as relações hierárquicas dentro do Candomblé: “ Eu vejo que nesta discussão não devemos esquecer que o culto dos orixás no Brasil é diverso daquele africano, aqui existe muita influência européia, então este é o problema. Na minha relação com

52 Yiá Nitinha e em outros ritos, não existe esta hierarquia opressiva, existe uma relação de respeito, um precisa do outro e ela sabe disso. Então, quando alguém coloca esta discussão, na minha opinião falta este elemento de compreensão da visão africana. No dia que o Lula veio aqui no terreiro, eu como Yaô novo, não podia fazer certas coisas, porém minha Mãe consentiu, mas isto não significou uma ruptura da hierarquia. É necessário entender que nesta visão africana a hierarquia não significa opressão, desigualdade ou falta de respeito mútuo, existem relações complementares, para fazer crescer o Axé; o problema da hierarquia existe quando um Pai ou Mãe de santo usa a sua sabedoria por vaidade pessoal. Por exemplo, o fato de bater cabeça, para mim enquanto marxista revolucionário não é um problema, não é uma submissão, eu estou simplesmente agradecendo o orixá de Yiá Nitinha por tudo que eu represento, mas também trocando Axé. Eu vejo que quando Yiá Nitinha nos manda fazer certos trabalhos pesados ou dá ‘esporro’ em alguém, o faz porque esse alguém fez coisas erradas da tradição ou, então, para fazer com que este aprenda e se eduque para servir a comunidade, para que esta pessoa passe por uma fase de trabalhos duros, para que depois, quando terá um certo poder não use e abuse do poder. Mas, veja bem, se tu vê as práticas de muitos militantes do

PT, existem muitas

relações e comportamentos que combatemos, eu não vejo sentido quando certos militantes criticam o candomblé só por isso. Penso que quando entrei no candomblé eu me tornei mais militante, me fez bem conhecer esta cosmologia africana, comecei a minha construção melhor, em nível intelectual. Não sou uma pessoa formada, com os livros, as teorias, e isto me assusta, porque na DS muitos companheiros me empurram para que eu me torne uma referência nacional, porém não estou preocupado porque acredito que Ogum está comigo, esta me ajudando a superar os meus limites,

53 me lança em direção a esta responsabilidade militante. Isto quer dizer que no meu cotidiano da militância eu sinto Ogum, num diálogo, numa polêmica quando precisamos resolver certas discussões ou divergências. Estávamos um dia na casa de Márcio e Ricardo18 e comentávamos que no futuro, nosso candomblé será diferente, e é verdade que não teremos práticas que ajudam à folclorização da religião. Vejo hoje que nós estamos ganhado espaço dentro do PT, rompendo com a lógica monopolista dos cristãos”. Logo em seguida, descreveu sobre as disputas de poder dentro do candomblé e do PT: “Em determinados momentos existem disputas dentro do candomblé muito acirradas, mesmo entre Mães de Santo, entre Yaôs, entre Ogâs, etc. Porém, acredito que seja muito por causa da influência da visão ocidental que penetra de qualquer jeito em todos os lugares. Mas quando eu falo do candomblé, falo muito das coisas que penso, que é diferente do que muita gente pensa. A questão do poder no candomblé não é somente do sacerdote sobre seus filhos, mas existem também outros poderes, isto é, da ekede para a Yaô, etc. Mas eu vejo que a disputa do poder é muito permeada pelas vaidades pessoais. A diferença com o PT, é que no candomblé o poder é relativizado, isto é, minha Mãe de santo tem muito poder, porém ela nos dá alguns poderes que faz com que os seus filhos participem da administração do Axé, ela, para fazer crescer o Axé, precisa dos seus filhos, isto é, não existe um extra-poder, a Mãe de santo depende de seus filhos. Acredito que no PT a disputa é diferente, ou seja, o poder é muito permeado pelas vaidades pessoais e também se reproduz muito a

54 hierarquia burguesa ocidental, não se olha para o outro que pensa diferente de você como adversário, mas, às vezes, como inimigo de classe. Existe uma concepção de aniquilar a diversidade e não cultivá-la como valor importante para movimentar o mundo. Já no candomblé é aquilo que te disse, é Exú que nos faz ver que até mesmo o nosso adversário nos ensina muita coisa, é necessário os contrários para entender nós mesmos”. Um momento interessante, que foi presenciado por mim durante a pesquisa, ocorreu no diálogo de Jorge Carneiro com uma militante do PT-RJ, não iniciada no candomblé e com uma visão bastante “clássica”, a respeito das religiões no Brasil. Afirma essa militante, no momento em que toma conhecimento de meu trabalho acadêmico: “Eu não consigo entender o porquê que alguns militantes do PT são do candomblé.. Certo dia fui ao terreiro de Mãe Beata, por curiosidade, e lá encontrei vários militantes do PT, alguns deles são iniciados”. E logo em seguida referindo-se a essa pesquisa afirma: “Acho que este trabalho de tese é uma invenção, porque não vejo nenhuma relação entre a fé nos orixás e as lutas sociais. Me parece uma coisa exótica, acho que não tem sentido”. Ela dialogava com Jorge Carneiro, que em sua resposta foi bem enfático, demonstrando uma clara delimitação identitária: “Olha, esta discussão não é uma invenção. Esta pesquisa está simplesmente revelando um fato e um movimento que estamos 18 Dois iniciados no candomblé, amigos de Jorge Carneiro.

55 construindo há anos. Eu acho que a dificuldade de entender esta pesquisa se dá pelo fato de que a esquerda sempre raciocinou com critérios judaíco-cristãos e eurocêntricos. A discussão é sobre quais são as relações entre religião e luta anticapitalista. Isto quer dizer que o candomblé é uma religião e não superstição”. Observa-se aqui uma visão muito peculiar a respeito de certas noções como hierarquia, divisão de poderes, papel político do candomblé. Na verdade, na construção da noção de hierarquia, Jorge tem um discurso defensivo, diante dos ataques e críticas de parceiros políticos, no que se refere à rígida hierarquia dentro de seu candomblé, pois, nas construções que faz, a noção de hierarquia não é alvo de analogia ou associação com a utopia socialista, mas de constante resposta às indagações dos militantes do PT, sobre os poderes das mães e pais de santo. Seguindo uma linha de raciocínio semelhante, PC se expressa sobre alguns pontos relevantes do candomblé e da política na vida dele: “Eu nunca separei minha religião do meu pensamento político e da minha ideologia. Quando digo isto, digo também que nunca fiz esta discussão em nível partidário, por que a minha iniciação começou, não pelo Movimento Negro mas em nível espiritual. Porém, depois que me iniciei, comecei a pensar mais concretamente a religião também em nível político. Isto aconteceu também porque, aqui no gabinete de Jurema Batista, participam dois companheiros que são do candomblé, mas não são do PT. Quando me iniciei, foi Xangó que me pediu, eu porém, antes era da Umbanda. No início era da umbanda porque minha família tinha uma tradição umbandista, isto era no início dos anos 80. Tudo começou quando eu ia às cerimônias e um caboclo me pedia sempre para me iniciar à religião. Assim me iniciei em 1983, e fiquei até 1989. Eu tinha uma Mãe de santo que misturava umbanda com candomblé. Ela

56 dizia que eu era de Ogum, então eu sempre vivi na umbanda como filho de Ogum. Porém em 1989, conheci um Pai de Santo que, para surpresa minha, no jogo de búzios, viu que não era filho de Ogum mas sim de xangô. E isto foi muito traumático. Foi então que fiquei com muita dúvida na cabeça. Fui a uma outra Mãe de santo do candomblé que me afirmou de novo que eu era de Xangô. Um certo dia, fui, em 1990, na casa de um Pai de Santo e na festa para Xangô eu Bolei, Xangô me pegou. Foi então que, conversando com o Pai de santo, me disse que deveria fazer um Borí e começar o processo de iniciação, porque xangô dizia que estava na hora. Então, tendo a prova de que eu era realmente de xangô, em setembro de 1990 fiz a minha iniciação com este Pai de Santo, e desde então fiquei mais sereno e tranqüilo na minha vida religiosa”. E continua seu relato sobre como desenvolveu essa discussão entre candomblé e a militância política: “Eu já era do PT, porém não conhecia o candomblé, a sua visão do mundo. Quando comecei a conhecê-lo melhor me dei conta junto com o Movimento Negro que a umbanda representa um processo de embranquecimento da visão de mundo africana. Uma outra coisa que creio ter mudado é aquela teoria que a história do povo negro no Brasil foi muito criativa devido a visão de mundo africano e suas heranças. E que o candomblé teve um papel determinante na resistência às tentativas de massacre do povo negro. Descobri que eu tenho uma origem cultural muito significativa, xangô me fez ver a minha identidade mais profunda. O candomblé para mim, hoje, representa um mundo alternativo à sociedade opressora que vivemos. Um exemplo que faço é aquele de que a estrutura do candomblé é mais democrática, a hierarquia que existe não quer dizer opressão,

57 desigualdade, cada um é solidário com os outros, os orixás são presentes dentro do nosso corpo, não são deuses que sempre dizem que coisa devemos fazer. E isto na minha opinião nos leva a conceber o mundo como nosso e não de um outro qualquer. Me lembro que quando era umbandista, esta tinha uma visão muito católica de mundo, cultua a caridade como valor, e isto nos leva a ser conformista. (...) Diversamente da umbanda eu acredito que a primeira coisa que acho importante no candomblé são nossas raízes africanas. Isto é, a concepção dos deuses, os seres supremos são completamente diversos daquele ocidental. Não existe um deus ou deuses que são somente sobre nós homens, mas os nossos deuses são também parte de nós, do nosso corpo. Porém uma coisa que queria enfatizar para você é aquele aspecto que nos faz diferente, isto é, não existe a concepção do bem e do mal, que divide o mundo em pessoas boas ou ruins. Não, no mundo existem as diversas experiências no qual você pode ser feliz ou não. Tudo que acontece na tua vida é conseqüência da tua ação ou faz parte da característica do teu orixá. A religião e o culto são praticados com as danças, com alegria, e não para salvar-nos de alguma coisa, para ter uma esperança de ir para uma outra vida. Nós do candomblé, praticamos o culto da vida, isto é, diverso daquilo que eu chamo culto da morte, que são as religiões que esperam para ter uma vida além da morte. Eis que esta é uma coisa que penso que tenha muitas conseqüências políticas na sociedade. Porque na medida em que você acredita que tua vida pode ser pior ou melhor depois da morte, você não consegue enfrentar bem, com serenidade os problemas desta vida. No candomblé, para mim, a vida é dinâmica, nos ensina a viver, isto é a característica do meu orixá, Xangô, um orixá da vida. Invés a morte para nós é uma conseqüência desta vida, não devemos fazer um drama como fazem outras religiões. A morte

58 vem porque a vida deve se reproduzir, recriar-se e não ficar estática ou eterna. A dinâmica do mundo, entendida neste sentido, nos permite agir no mundo com mais consciência das coisas que fazemos. Eu vejo que esta concepção não é muito entendida pelos iniciados no candomblé. Acredito que seja por isso que tenho algumas opiniões em relação a certas práticas rituais que fazem em nome do candomblé. Mas isto é devido à penetração do capitalismo nas práticas de certos iniciados, principalmente, em muitos Pais e Mães de Santo”. PC sabe que essa sua interpretação é única, contudo, percebe-se que sua militância política é o elemento de base para legitimá-la Outro militante que revela uma curiosa concepção política e religiosa é Lúcia. Vejamos o que afirma nessa longa exposição: “O candomblé é um pequeno quilombo, dentro dele não existe a lógica do mercado, existe uma relação comunitária, de família, de solidariedade entre as pessoas, mesmo não sendo politizadas, é por isso que considero o candomblé como um ponto de referência para uma nova sociedade. Mas isto eu sei que é muito polêmico. Mas existem outras coisas fundamentais no candomblé como: a inexistência da culpa, ou seja, tudo que se faz nesta vida não existe uma culpa que nos leva ao conformismo ou à submissão. A culpa na minha opinião, é um instrumento que, afirmando que tu podes ser salvo para ir ao paraíso, nos conduz ao conformismo. No candomblé é diverso, os Yaôs necessitam simplesmente de estar bem consigo mesmo, com seus orixás e em harmonia com seus irmãos de santo, ou seja, viver as várias possibilidades de relações para fazer crescer o Axé. Existe uma auto-valorização da auto-estima de nós mesmos, não devemos esperar a morte para ser salvo. Isto também é um outro conceito no qual trabalhamos diversamente, esta não é nosso limite, um fim. No

59 candomblé se cultua a vida, então, por conseqüência, na minha opinião não existem pecados, os orixás ao final sabem porque fazemos as coisas neste mundo. Me lembro de um papo com uma colega de trabalho que dizia que mesmo se as coisas da vida vão mal, precisamos sempre dizer que ao final somos felizes porque temos Deus conosco, depois disse a ela que a diferença entre nós, porque que eu sou do candomblé, é que quando as coisas vão mal, é preciso fazer alguma coisa para mudar a realidade que nos faz mal, porém quando as coisas vão bem, há alegria e precisamos dividi-la com os outros. Isto para mim é a diferença entre esta sociedade e o candomblé como visão de mundo. Quando comecei a militância na esquerda eu era ainda da Igreja protestante e me incomodava quando o pastor dizia que eu misturava política com a religião. Eu explicava a ele que freqüentava o PT porque achava que meus amigos do PT levavam mais a sério a humanidade do que muitas pessoas da igreja. Que os amigos do PT lutavam por uma sociedade justa, assim como fez Jesus. Porém ele não se convenceu disto. Ao final sai da igreja por esse e outros motivos.. Foi então que comecei a priorizar a militância, meu trabalho cultural de teatro e também a minha sexualidade na militância feminista. Então, vivendo a minha sexualidade sem culpa, percebi que no passado o candomblé me ajudava na vida. Também este fato me fez voltar ao candomblé como uma filosofia de vida que nos deixa mais livres e que contesta a moral hipócrita da sociedade. O candomblé, na minha opinião, como visão de mundo, filosofia, expressa também em algumas histórias de orixás, uma referência para mim, que contesta a ordem burguesa. No candomblé existem relações mais livres, sem uma moral cínica.

60 Me lembro que no início da minha militância eu lia W. Reich19 e aquilo que dizia, isto é, que o homem que vive sua sexualidade e vida de forma mais livre, é mais satisfeito, inconformista. Depois no PT, tendo contato com a questão ecológica, percebi que também isto existia no candomblé, ou seja, uma visão de mundo que preserva a natureza mais do que outras religiões. É engraçado que enquanto falo agora me dou conta que estas conexões eu sempre fiz, mas não assim claramente como hoje. Eu acredito que por isto devemos trabalhar, como petistas, uma política cultural nestes setores do movimento popular, Pois como disse, no candomblé existe um potencial muito grande para contestar a ideologia conformista, racista e capitalista”. Finalmente, chega-se à Mãe Beata, única Yalorixá dessa investigação. Nos encontros com ela, revelaram-se algumas de suas concepções sobre o candomblé e sua militância política: “Eu acho que uma Yalorixá séria deve ter uma responsabilidade política além da religiosa. Eu não consigo separar as duas coisas, porque numa comunidade temos todos os tipos de pessoas, que têm relações com o mundo, isto é, não somos isolados do mundo. E digo mais, os orixás influenciam o mundo, então por isso não podemos nos isolar do mundo, então eu pergunto: por que não podemos fazer política também ? Acredito que a política seja presente a cada momento. Aqui, por exemplo, quando sentamos para discutir com a comunidade, as tarefas, os compromissos, etc., nós estamos fazendo política. Nunca separei a religião da política, você conhece a história de nosso país, e sabe que os candomblés sempre se envolveram com a grande política deste país. Porém, penso que não devemos fazer 19 REICH, W. A Revoluçao sexual. Rio de Janeiro: Civilizaçao Brasileira, 1988.

61 qualquer política para defender somente os interesses do candomblé, mas também os da população mais explorada deste país, então, como é público e notório eu me considero uma pessoa de esquerda, aliás uma Yalorixá de esquerda. Acho que ser de esquerda é coerente com uma coisa que para mim é fundamental: a honra da palavra. Somente a esquerda tem esta honra de fazer as coisas que diz e que acredita. Enquanto que a direita é mentirosa e faz vergonha a este país”. “Eu penso que nós afro-brasileiros temos certos valores que são de esquerda e não de direita, por exemplo, a solidariedade de grupo, o trabalho comunitário baseado na harmonia do grupo, onde se discute tudo e se decide junto, etc. Porém, isto só é possível na minha opinião se em uma comunidade tiver uma Yalorixá de esquerda, que zela por estes princípios. Ao contrário eu vejo que em muitas casas de santo não existe isto, a vida religiosa de algumas Yalorixás ou Babalorixás se desenvolve para o mercado ou para satisfazer um poder pessoal. O nosso princípio religioso oriundo da África é aquele de cultivar a vida, junto aos orixás, cultuar a comunidade, e isto na minha opinião é muito próximo a política do PT, mesmo porque é o único partido que tem muitos negros, que também são candomblecistas”. E utilizando uma linguagem bem simples, finaliza com sua concepção de socialismo: “Eu penso que o capitalismo nos leva às desgraças, à miséria, às pessoas ruins. Acredito que nós do PT estejamos construindo o socialismo no nosso cotidiano, na nossa prática de cada dia, não sei dizer qual socialismo queremos, isto depende das nossas experiências cotidianas, eu tenho certo só uma coisa, aquele socialismo de elite visto até hoje, não é bom para ninguém. Acredito que o grande exemplo de socialismo na nossa história foram os quilombos dos

62 negros que não queriam ser escravizados pelos portugueses e europeus. Posso dizer também que o candomblé é socialista. Porque o candomblé está de braços abertos a todos que procuram um bem estar coletivo dos homens e dos orixás. Porque na nossa religião o Axé só existe com união, harmonia, amor, solidariedade, é aqui que se constrói o Axé. Eis uma palavra-chave, uma força que melhor se adapta, do que esta do socialismo, porque sem Axé não existe vida. Eu estou no PT também para reforçar o Axé de minha comunidade”. E a partir daí, identifica a importância da religião em sua própria condição de militante: “Penso que depois que entrei no partido acho que a religião ganhou mais um voz para resistir contra o preconceito, a discriminação, o isolamento. Uma coisa é muito clara para mim, depois que virei petista: ou seja, as pessoas me respeitam não somente porque sou uma Yalorixá mas também por que sou do PT, eu digo sempre em todas as manifestações que sou convidada que o meu partido é o PT, o único que defende idéias que acho que seja coerente com a minha prática de vida, acho que não tem sentido ficarmos isolados em um gueto, pois se não resistirmos continuaremos com nossa cultura dilacerada”. Percebe-se, através dessas longas declarações, que os militantes reelaboram concepções oriundas de domínios socioculturais diversos, produzindo associações e ressignificações, nos campos político e religioso brasileiro. Se por um lado, constata-se que os militantes tentam construir um movimento que justifique suas dupla pertença; por outro, eles tentam legitimá-la através da organização e participação, em determinados eventos sócio-políticos, culturais, religiosos e institucionais.

63 Jorge Carneiro narra um momento, que segundo ele, foi relevante na construção dessas elaborações. Em Janeiro de 1991 foi realizada a Conferência estadual da tendência interna do PT – Democracia Socialista. Nessa oportunidade se encontravam dois militantes iniciados no candomblé ( Luiz Carlos Emílio20 e Jorge Carneiro ). Em função disso, uma novidade dentro da tendência, o militante Marildo Menegatti fez a seguinte declaração: "Nós estamos discutindo a estratégia para a revolução socialista no Brasil, porém creio que esta discussão é incompleta porque nós, até hoje sem a presença em nossa corrente de Luís Carlos e Jorge, nunca fizemos uma discussão sobre a cultura e a religião afro-brasileiras. Todos nós aqui, talvez, estejamos de acordo que estas religiões são muito populares no Brasil, então, eu acredito que não podemos nos limitar a discutir que somente a teologia da libertação e os católicos progressistas sejam nossos aliados. Eu, nestes últimos dias, freqüentei alguns terreiros, fazendo a campanha de Marcelo Dias21, e percebi, que este mundo do candomblé tem muitos elementos de filosofia comunitária, que na minha opinião não se encaixa na lógica capitalista de mercado. Então, acho que devemos discutir este tema, que talvez seja importante para pensar uma estratégia na luta de classe. Não elaborei nada, porém é uma questão que talvez possa nos ajudar muito, já que milhões de brasileiros pertencem a esta cultura.” Jorge Carneiro afirma, hoje, que esta foi a primeira declaração pública a respeito das relações entre candomblé e PT. Em Março de 1992 realiza-se uma palestra com Mãe Beata sobre Mulher e meio ambiente no Fórum de mulheres de Niterói.

20 Ex-militante da tendência Democracia Socialista e do PT, amigo de Jorge. 21 Na época o ex-deputato Marcelo Dias pertencia à tendência Democracia Socialista.

64 Em Junho, é lançado o documento do CENARAB “Manifesto das tradições religiosas e culturais afro-brasileiras sobre o Meio Ambiente e Cidadania”, na II conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento – ECO 92 e no FORUM GLOBAL 92 – Fórum internacional de Ongs e Movimentos Sociais. No mesmo evento, Mãe Beata se apresenta como palestrante no Fórum Global sobre: Ética e espiritualidade: mulher e sagrado, fazendo uma palestra sobre Orixás femininos. Em Julho de 1993 é lançado o informativo odoyá – ISER, e Mãe Beata é eleita madrinha do evento. Esse projeto lançava a campanha de prevenção da AIDS, nas comunidades de terreiro do Estado do Rio de Janeiro. No ano seguinte em maio de 1994, Mãe Beata é nomeada conselheira do CEDIM no Palácio Guanabara. Em dezembro de 1995, em comemoração aos 300 anos de Zumbi de Palmares, PC articula e organiza um debate, no mandato da vereadora Jurema Batista, sobre a importância das religiões afro-brasileiras na cultura brasileira. Esse evento ainda fez algumas homenagens a vários sacerdotes e sacerdotisas do Estado do Rio de Janeiro. Em Abril de 1997 realiza-se o lançamento do Livro de Mãe Beata – A sabedoria dos Terreiros22, no Palácio do Catete. Em Junho, Debate sobre Africanidades, organizado pelo PROAFRO da UERJ. Nesse encontro, Mãe Beata falou sobre cidadania e religiões afrobrasileiras. Em 1998, PC, ainda como assessor da vereadora Jurema Batista, articula um projeto que cria, no calendário de atividades oficiais do Município do Rio de Janeiro, a semana da lavagem do Bonfim, a ser realizada na primeira semana do mês de janeiro. Esse projeto foi apresentado por Jurema Batista, aprovado na Câmara de Vereadores e sancionado pelo Prefeito Luiz Paulo Conde. Em outubro do mesmo ano, o MNU de Juiz de Fora, realiza um debate sobre “As religiões de matriz africana”, sendo convidados para participar, os militantes Jorge Caneiro e Lúcia. Nas comemorações do dia Nacional da Consciência Negra, Jorge Carneiro faz uma palestra, no PT de Nova Iguaçu, sobre a religiosidade negra e sua importância política. No mês seguinte, os mesmos Jorge Carneiro e Lúcia, organizam um debate na comunidade de terreiro dela, sobre cidadania e religiões afro-brasileiras. Esse debate marcou o lançamento

65 do Projeto Axé e Cidadania, isto é, um projeto que visava a organização de vários debates e seminários em comunidades de terreiro da Baixada Fluminense, sobre cidadania e exclusão social23. Em fevereiro de 1999, realiza-se a Escola de Formação da Tendência Democracia Socialista ( DS ) do PT no Rio Grande do Sul. Nesse evento, Jorge Carneiro apresenta o documento, “Religiões de Matriz Africana na Luta Socialista” e é palestrante no tema: “Religiosidade Africana no Brasil”. Lúcia encontrava-se presente também. Em março do mesmo ano, comemorando o Dia Internacional de Luta das Mulheres, realiza-se o Debate do PT de Nova Iguaçu: “Os orixás femininos na tradição dos orixás”, tendo Lúcia como palestrante. Em junho, Jorge Carneiro inicia uma série de visitas a escolas para debater a importância da luta pela cidadania e contra o racismo e a discriminação contra as religiões afro-brasileiras. O primeiro evento foi no SENAI, a convite de um militante do PT. Em julho, realiza-se o Seminário Nacional do MNU, na cidade do Rio de Janeiro, onde se discutiu “As Religiões de Matriz Africana” e sua contribuição ao projeto político do povo negro no Brasil. Organizaram o evento, entre outros, Jorge Carneiro e PC. Em outubro, Jorge Carneiro faz palestra na Escola Técnica Estadual República - ETER, em Quintino, para cerca de seiscentos estudantes, onde relatou a história dos negros no Brasil contra o racismo e a discriminação contra as religiões afro-brasileiras. Em fevereiro de 2000, a empreiteira LANSA e o prefeito Luiz Paulo Conde, lançam a proposta de colocar uma escultura de Exú na Linha Amarela. Logo após, as igrejas evangélicas começam uma campanha para impedir a efetivação da proposta e, como conseqüência, conseguiram reverter a posição do Prefeito. Neste sentido, o PT (através da Secretaria Estadual de Combate ao Racismo – da qual PC, Jorge Caneiro e Lúcia são membros), lança um manifesto de apoio à proposta original. Em maio, Lúcia organiza mais um debate sobre religiosidade no PT de Nova Iguaçu. Esse evento fez parte de uma série de debates sobre a questão racial e o PT.

22 BEATA de YEMONJÁ, M. A sabedoria dos terreiros. Rio de Janeiro: Pallas, 1997. 23 Este projeto teve início a partir de uma idéia conjunta de Jorge, PC e Lúcia, em outubro de 1998, contudo, foram realizadas somente duas palestras em terreiros de candomblé na Baixada Fluminense. O projeto não foi a frente por falta de recursos financeiros. Ficando, então, somente no papel e nas boas intenções dos três militantes.

66 Em junho, Jorge Carneiro é palestrante sobre Cultura e Religiosidade no Seminário Eleitoral Estadual de Políticas Públicas para Candidaturas Negras e para militantes de combate ao racismo, promovido pela Secretaria Estadual de Combate ao Racismo, do PT – RS. Nesse evento, Jorge Carneiro escreve um texto: “Xangô vivendo em nós”. Apesar da fragmentação na realização desses eventos, ou seja, cada militante investigado promovendo e participando de eventos sem uma articulação conjunta entre eles, nota-se que começa a existir, de fato, uma discussão pública a respeito das culturas afrobrasileiras dentro do partido e do Movimento Negro. Essa discussão – fruto da insistência dos militantes em criar e participar de eventos – dá início, de forma tímida, as discussões sobre o candomblé, passando a influenciar e nortear alguns debates dentro do PT, apesar de não se constituir ainda como um grupo organizado ou reconhecido. Esses são apenas alguns eventos realizados pelos militantes e com a presença deles, que refletem suas elaborações anteriormente descritas. Mais adiante, se constata com mais detalhes, os significados delas na construção identitária feita por eles. Entretanto, é necessário descrever aqui algumas observações feitas por essa pesquisa e uma análise, em seus espaços religiosos e políticos, pois, ao contrário do que foi constatado, suas elaborações são marcadas por muitas dificuldades e contradições, uma vez que eles não atuam num campo favorável de construção de identidades como desejariam. Nas suas trajetórias de vida eles (com menos intensidade para Mãe Beata) demonstram isso. Utilizando-se das suas condições de iniciados no candomblé, de suas condições raciais e de definirem-se socialistas, tentam construir um comportamento diferente, um discurso diverso e agem socialmente para serem reconhecidos como sujeitos singulares na vida religiosa e nos seus espaços políticos. Mas enfrentam dificuldades e algumas vezes prática e intenções se contradizem. Jorge Caneiro tem um problema. Ele é filho de santo de Yiá Nitinha, a segunda mãe de santo mais velha de iniciação no Brasil, oriunda do terreiro do Engenho Velho da Bahia. Esse fato dificulta sua atuação dentro do terreiro como militante do PT, porque esta Yalorixá não vê com bons olhos o fato de ter um filho de santo, que tem uma preocupação “exagerada”, segundo ela, com a política partidária. Para ela, “Ogunsi”, como se refere a Jorge Carneiro, deveria dedicar toda sua vida para se tornar um pai de santo. Jorge parece

67 saber disso, mas não se importa e afirma que seu futuro terreiro será diferente, já que será mais politizado. Diz ainda, “que manterá as tradições legadas pelos ancestrais do Engenho Velho”, às quais acrescentará também elementos de organização de seu futuro terreiro, que terá uma clara opção ideológica, a nível político. Como veremos, seus espaços privilegiados de elaboração política se restringem a outros espaços que não são os da sua comunidade. Veremos nos escritos dele mais adiante que Jorge Carneiro afirma que “a cosmologia do candomblé” promove o crescimento do Axé de todos, acumula pessoas e não bens e que é nessa dimensão que se encontra a contradição com a sociedade capitalista ou em suas palavras com “o padrão dominante”. Entretanto, na convivência religiosa em seu terreiro ele é o único que pensa dessa forma. Não encontra parceiros que partilham seus ideais e pensamentos. Apesar de, por exemplo, teorizar uma concepção de hierarquia mais “democrática”, ele obedece todas as ordens de sua mãe de santo, mesmo que essas ordens contrariem-no. Por outro lado, ele é parte integrante de um grupo político que não tem nenhuma elaboração e posicionamento sobre o fenômeno da religiosidade, pelo contrário, em várias reuniões em que participa da democracia socialista, vimos que seus parceiros políticos afirmam que – repetindo o chavão da esquerda tradicional – “a religião é o ópio do povo”, e mais, que o fenômeno da religiosidade não é, e nunca foi, elemento organizador de sociabilidade libertária. Para enfrentar essa contradição e justificar sua adesão nos dois espaços onde atua, Jorge inventa de forma criativa, a crítica às esquerdas dogmáticas e racistas. No candomblé, usando sua condição de futuro pai de santo, afirma que o seu terreiro será diferente, pois seu tempo será outro e não aquele de sua Mãe de Santo. Ou seja, parece que aguarda uma certa liberdade da autoridade de sua Mãe de Santo para ganhar autonomia e fazer de seu espaço religioso um espaço também político ideológico. Acredito que Jorge ainda se encontra numa fase de transição, onde as fronteiras entre o religioso e o político estão bem definidas, mas a partir da fundação de seu terreiro, conquistando sua autonomia na hierarquia ritual, estas fronteiras serão bem mais móveis.

68 Paulo Cezar (PC), também revela a mesma contradição, entretanto, por não ter o cargo de Pai de Santo, ele está continuamente limitado nas fronteiras acima citadas. PC, no seu espaço religioso, não discute política com seus parceiros, não organiza eventos, não questiona a hierarquia. O que faz, no que diz respeito à associação entre o domínio religioso e político, se restringe aos espaços de sua militância. Seu espaço privilegiado é o MNU e também quando era assessor parlamentar da vereadora Jurema Batista. Na verdade, PC utilizava o mandato da vereadora para promover eventos, ter o status de assessor e para conseguir prestígio nas comunidades de terreiro. PC por várias vezes, concedeu apoio material para alguns eventos das casas de terreiro ou manifestações públicas da comunidade afro-brasileira do Estado do Rio de Janeiro.24 No MNU, PC se limita somente a nível do discurso e da organização de festas com características afro-brasileiras,25 pois os militantes da entidade não discutem quase nunca qualquer intervenção ou propostas de política pública para as comunidades afro-brasileiras do Estado. Os eventos que PC organizou de forma mais intensa e as elaborações e propostas onde ele tenta construir um movimento com característica político-religioso se restringiu ao PT e as parcerias com Jorge Carneiro e Lúcia.26 Lúcia, por outro lado, enfrenta o problema de isolamento dentro do PT de Nova Iguaçu. Ela participa do coletivo de combate ao racismo, junto a um grupo que, na composição local do Partido, é minoritário. Nesse sentido, sua identidade é construída com poucos parceiros de elaboração. Enfrenta a discriminação por parte de militantes do Partido, já que é negra e candomblecista. Ela muitas vezes assume posturas de aberto confronto com todas as outras pessoas e grupos do Partido. De uma certa forma, isso dificulta a credibilidade de suas elaborações. Por outro lado, nos espaços religiosos ela também enfrenta dificuldades, pois havendo uma interpretação particular dos rituais e do

24 Todos os anos, PC ajuda na organização e coordenação da Lavagem da Igreja do Senhor do Bonfin, no segundo Sábado de janeiro e na entrega do presente de Yemanjá, em 2 de fevereiro, quando milhares de fiéis e simpatizantes de Yemanjá saem do centro da cidade do RJ até a Baia de Guanabara entregar os presentes para Yemanjá. Em anexo alguns ilustrações acerca destes eventos. 25 Já foram realizadas pelo MNU-RJ algumas festas de confraternização no qual o lugar escolhido é paramentado com objetos rituais do candomblé, formando um pseudo barracão. 26 Parceirias que se expressam nos documentos comuns e na militância na Secretaria de negros do PT.

69 candomblé, nos terreiros que visita, ela expressa opiniões que não são muito bem vistas pelo “povo de santo”. Costuma afirmar que os “orixás eu respeito muito, mas a maioria de seus filhos são muito vaidosos e arrogantes”. Esses fatos fazem com que Lúcia se encontre isolada na atuação política em muitos momentos, levando-a um tipo de militância e vivência religiosa muito autocentrada. Raramente freqüenta seu terreiro, na verdade somente em ocasiões festivas. Costuma freqüentar mais outros terreiros e é ali que ela, mais uma vez, tenta se diferenciar, criando concepções próprias e interpretações da prática religiosa de outros. Ela tenta construir sua identidade religiosa através da diferenciação com os outros. Observamos que nos seus espaços políticos ela prioriza o PT. Desde que entrou no partido, em 1989, ela sempre acompanhou as atividades da direção do partido em Nova Iguaçu e, desde 1994, é membro do diretório municipal, atuando, ora na Secretaria de Mulheres, ora no Coletivo de Combate ao Racismo. Em 1996, quando conhece Jorge Carneiro, começa a se utilizar da sua religiosidade para atuar de forma mais diferenciada dentro do partido. Com o apoio de Jorge, ela começa uma nova fase de sua militância, acentuando mais ainda sua “política da diferença” no partido. Isso, de início, lhe dá mais credibilidade, seus companheiros de partido reconhecem que esta discussão é nova, porém ela continua atuando de forma solitária. As acusações agora, em direção aos outros militantes, são aquelas de racismo e preconceito religioso. Mas o reconhecimento da parte dos militantes do partido em relação às discussões que Lúcia tenta promover, não é por acaso. Em 1996, o PT de Nova Iguaçu elege um vereador evangélico, que por sua vez funda um núcleo de evangélicos do PT local. Esse fato dá a Lúcia os motivos mais que necessários para reivindicar uma discussão no âmbito do campo religioso afro-brasileiro. Como se vê, ela manipula sua diferença como iniciada no candomblé, em busca de um espaço próprio de atuação dentro do partido, de forma autônoma, visando um aumento de seu poder de influência sobre alguns militantes. Por último, Mãe Beata apesar de ter construído uma referência política no Estado, ainda mantém muitas características similares encontradas em outros terreiros de candomblé como, por exemplo, a concentração de poderes somente em torno dela, em sua

70 comunidade. Por outro lado, se sente como mãe de todos na comunidade, expressando comportamentos que a faz responsável por tudo e por todos, por ser a proprietária do terreno onde se encontra seu terreiro. Ver-se-á, então, que apesar de seu discurso democrático, socialista, ela não pode abdicar do comando em sua comunidade. Afirma claramente isso quando diz que “somente em uma comunidade de terreiro que tenha uma Mãe de santo de esquerda é possível fazer do candomblé um espaço comunitário e de luta pela cidadania”. Ou seja, é uma clara reafirmação de uma autoridade única, mesmo que essa autoridade seja voltada para a defesa retórica de “idéias socialistas”. À primeira vista, os discursos de Mãe Beata podem revelar um puro utilitarismo de sua parte, ou seja, a utilização de um espaço de atuação política para ganhar notoriedade entre o povo de santo, uma vez que se diz socialista e tem uma prática centralizadora. Entretanto, Mãe Beata, pode ser considerada de esquerda27 porque ela ‘acredita’ que somente o PT poderá transformar a sociedade. Mais adiante, no seu discurso político, ela se define socialista. Em diversas ocasiões, desde a fundação de seu terreiro, ela recebeu vários convites da direita fisiológica da Baixada Fluminense, para ser candidata à vereadora, com todas as despesas de campanha pagas ou para ser cabo eleitoral de partidos como o PFL, PMDB, PL, mas ela sempre recusou, afirmando que o trabalho assistencial que realiza em seu bairro visa a melhoria da qualidade de vida de seu povo e que, somente no PT, identificava uma política próxima ao que ela faz. Quando Mãe Beata chega na Baixada Fluminense para fundar seu terreiro, ela encontra-se num dilema: como ganhar prestígio no mercado religioso, ganhar filhos de santo, público para suas festas, diante de tantos terreiros de candomblé já constituídos na cidade de Nova Iguaçu, alguns deles, como de Yiá Nitinha de Oxum, do Engenho Velho? Disputar prestígio, já que ela é filha de santo de uma das casas mais prestigiadas da Bahia (Olga de Alaketo), seria uma tarefa difícil se ela não se utilizasse de outros recursos fora do âmbito religioso. 27 Este termo foi explicitado por Mãe Beata no sentido de se situar no campo dos partidos que defendem o fim do capitalismo e a proposta de construção de uma sociedade socialista.

71 Quando Mãe Beata se instalou na cidade de Nova Iguaçu, no bairro de Miguel Couto, encontrou, dentro de seu público de simpatizantes do candomblé, alguns militantes do movimento negro e do PT. Um grupo que realizava um trabalho de base na associação de moradores e nas campanhas eleitorais do PT. Alguns, nesse grupo, tinham relações estreitas com as pessoas que fundaram o Instituto de pesquisa língua e cultura Yorubá ( IPELCY ) e o Instituto Nacional de Articulação das Religiões Afro-brasileiras ( INARAB ). Foi então que Mãe Beata percebeu que na agitação política que acontecia no bairro, ela poderia se enveredar e ganhar prestígio nas disputas do mercado religioso local. Mãe Beata então se filia ao PT, entra para a associação de moradores e abre seu terreiro para a realização de eventos assistenciais para a população carente local. Daí em diante Mãe Beata ganha notoriedade, prestígio e a marca de Mãe de Santo Petista e politizada, se instrumentaliza com uma linguagem política e marca uma diferenciação em relação às outras sacerdotisas e sacerdotes locais. Por outro lado, dentre os militantes que eram simpatizantes do candomblé, alguns deles se tornam filhos de santo de Mãe Beata, exportando para o movimento negro, a imagem de uma Yalorixá que, em pouco tempo se torna a única “Mãe de Santo de esquerda do Estado”. Portanto, pode-se concluir de sua história e prática militante que Mãe Beata se coloca no campo da esquerda. Mas, mesmo considerando Mãe Beata uma pessoa de esquerda, ela continua a expressar contradições entre seu discurso socialista e sua prática como autoridade máxima em seu terreiro. Proprietária do terreno onde fica seu candomblé, ela é a única que dirige e dá as ordens, seja no cotidiano da administração do terreiro, seja nos rituais. Ali todos a obedecem, a hierarquia é rigidamente cumprida. Não existe a socialização de poderes como prega o socialismo petista. Seu discurso, se limita em si mesmo, em demarcar uma diferença em nível puramente retórico. Dentre esses quatro militantes somente três

(Jorge Carneiro, Lúcia e PC),

esporadicamente agem como grupo, para tentarem construir e dar corpo coletivo, à discussão que fazem através da Secretaria Estadual de Combate ao Racismo do PT-RJ.

72 Isso porque, além de militarem juntos na secretaria do PT-RJ, nas suas trajetórias pessoais (especificamente Jorge e PC), existe uma certa proximidade.

73

3. O contexto histórico da tentativa de construção de um novo movimento político. 3.1 – A invenção-construção de uma nova identidade políticoreligiosa. Antes de iniciar a descrição e análise teórica da pesquisa, vamos descrever o contexto histórico no qual esses militantes se encontram: os movimentos sociais em geral, o Partido dos Trabalhadores, o Movimento Negro e suas relações com algumas casas de candomblé no Rio de Janeiro que contribuíram decisivamente para o desenvolvimento e amadurecimento de uma prática política por parte de alguns militantes do PT, no que se refere à

construção de identidades e associações entre alguns traços culturais do

Candomblé e o projeto socialista que esses militantes defendem. Essa contextualização será feita privilegiando o período 1980-1999 a partir de uma análise do percurso dos militantes e dos seus próprios testemunhos. Veremos como os militantes colocaram em evidência alguns momentos essenciais para suas vidas, no sentido de os terem levado a construir as associações entre, por exemplo, a concepção de Axé que eles possuem e a utopia socialista por eles defendida. Os momentos identificados, sem uma ordem cronológica pre-estabelecida, estão compreendidos entre os seguintes fatos: 1 – Do momento da fundação do PT até as eleições presidenciais de 1989; 2 – A fundação do Instituto de pesquisa língua e cultura Yorubá ( IPELCY ), Instituto Nacional de Articulação das Religiões Afro-brasileiras ( INARAB ) e do Centro Nacional de Articulação das Religiões Afro-brasileiras ( CENARAB ); 3 - A discussão sobre a “construção dos novos sujeitos na luta de classe” e 4 - A elaboração de uma nova tática de luta anti-racista no MNU denominada Raça e Território.

74 3.2 – Os momentos O

novo sujeito político

na história brasileira:

O Partido dos

Trabalhadores. Observamos no capítulo anterior as concepções políticas dos militantes a respeito do PT; a intenção agora é caracterizar como, diferentemente de outros períodos de atuação da esquerda brasileira, a atuação do PT contribuiu para o desenvolvimento de certos movimentos populares e para uma mudança na relação entre a esquerda e a “questão religiosa”28 em geral. O PT nasceu no contexto bastante específico das grandes greves operárias do ABC paulista, no final da década de 70 e início dos anos 80 do século XX, e da necessidade de diversos setores da vanguarda da classe operária em superar o corporativismo, o seu movimento espontâneo foi um dado característico de auto-organização sindical para obter um instrumento de ação política mais global. Assim o PT conseguiu aglutinar, além de sindicalistas, intelectuais que resistiram à ditadura militar, dezenas de organizações políticas e correntes ideológicas de esquerda. Esses diversos setores da esquerda brasileira não se encontravam organizados como também não estavam identificados nas políticas do PCB e do PC do B. Pode-se afirmar então, que toda a esquerda, que não tinha uma concepção de revolução por etapas29, assumiu a construção do PT. E essas correntes levaram ao PT uma variedade de concepções político ideológicas. O PT nasce também dos principais teólogos da libertação, que no cotidiano religioso cristão organizavam as CEBs, que por sua vez tinham uma ampla base de apoio popular e operária. Essa base popular se expressava nos movimentos de bairros e naqueles movimentos por reivindicações específicas (mulheres, negros, etc.).

28 PORTELES, H. Gramsci e a questão religiosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1978. 29 Por meio desta expressão se afirmava que as revoluções socialistas nos paises em desenvolvimento teria uma primeira etapa, dirigida pela burguesia local e, logo em seguida caberia ao proletariado a tomada do poder.

75 A heterogeneidade na formação do PT, para alguns de seus fundadores, é a sua grande virtude, já que a ninguém foi pedido um “atestado ideológico”. As lutas sociais, o combate contra a ditadura militar, a construção de um partido de “lutas”, eram os elementos que uniam cristãos, socialistas, comunistas, marxistas de várias correntes e uma grande maioria que não apresentava uma definição política-ideológica a priori. O impacto das CEBs forneceu, à igreja católica brasileira, um tecido de base popular, sob o qual foi construída a unidade de base dos principais movimentos sociais e políticos, nas décadas de 70 e 80. Na verdade as CEBs, com seus agentes de pastoral, tinham um sentimento forte de basismo, ou seja, uma preferência pela política local, uma desconfiança grande em relação “a quem era de fora” e aos intelectuais. Esta postura foi criticada pelos principais teólogos da libertação (Frei Betto e Leonardo Boff). Contudo, essa cultura política das CEBs apresentou também um aspecto singular: uma prática democrática de base e uma desconfiança da demagogia das classes dominantes e populistas, assim como das práticas autoritárias e burocráticas de certos grupos de esquerda ( em particular o PCB e o PC do B ). De qualquer modo, os militantes das CEBs, com o apoio dos bispos e teólogos, construíram um movimento popular de massa no final da década de 70. Em seu nascimento, e no decorrer de seu crescimento, o PT adquiriu uma identidade muito presente no conjunto da esquerda, conseguindo aglutinar setores dos movimentos sociais que nunca tinham tido referências políticas de esquerda e de organização partidária. Junto com o PT, os movimentos sociais como o de mulheres, dos negros ( fundação do MNU ), da juventude, sindical e ecológico foram, durante os anos 80, conquistando mais espaços na sociedade brasileira ao ponto de, numa pesquisa feita pelo governo brasileiro, sobre em qual instituição os cidadãos tinham mais confiança demonstrando que: os sindicatos detinham 60% de preferência em relação aos 12% do Estado e 12% da igreja católica. Evidentemente, não se pode afirmar que foi o PT que organizou esses movimentos, mas sua presença colocou em debate, por intermédio destas várias correntes de pensamento, determinados valores nos movimentos sociais como: independência de classe, autoorganização popular, liberdade de organização rejeitando o vínculo com o Estado, crítica

76 radical ao capitalismo enquanto sistema que não resolve os problemas fundamentais do povo, crítica à prática paternalista das organizações políticas tradicionais, crítica ao culto da personalidade dos líderes do movimento popular, prática militante coerente com o projeto utópico, etc. Enfim, a chamada “cultura petista” influenciou em muito o crescimento dos movimentos populares. Definims estes valores como “cultura petista” porque se constatou, pela primeira vez na história da esquerda brasileira, valores e concepções que não provinham, necessariamente, de uma tradição marxista, mas que apareceram, num contexto histórico específico, no qual nascem movimentos políticos e sociais, ligados às lutas singulares como o Movimento Negro, de mulheres, dos bairros pobres e, como se viu, também influenciados pelos católicos progressistas. Um dos momentos culminante disso, foi o fato político inédito, criado no segundo turno das eleições presidenciais de 1989, isto é, na disputa entre Collor de Mello e Lula, quando se evidenciaram, claramente, dois projetos diferentes ou como alguns definem “dois projetos de classe”, ou seja, Collor representava os setores dominantes do país, enquanto Lula “a grande maioria dos explorados”. Nesse sentido, Lula representou, segundo análise de Raul Pont30, um grande “movimento ético” na política brasileira. Além de Pont, Frei Betto definiu claramente esta ética e cultura petista: “em muitos aspectos o PT inaugura uma nova forma de partido político. É a primeira vez na história brasileira, que setores populares criaram o seu próprio instrumento político, conseguindo se afirmar apesar das exigências legais das classes dominantes. Não se trata de um partido para os trabalhadores mas de trabalhadores e por esses construído. Sua proposta não nasce das cabeças iluminadas dos intelectuais de esquerda(...). Disposto a defender o direito à liberdade de organização política dos trabalhadores em todos os níveis, o PT propõe a democracia como valor permanente, mediante participação daqueles que produzem a riqueza, nas decisões políticas e nos

77 benefícios econômicos oriundos de seu trabalho para construir uma sociedade socialista”. Descrevendo as eleições de 1989, Frei Betto ainda fala sobre o significado do PT: “foi a primeira vez na história brasileira que a classe operária apresentou um programa de governo com um candidato próprio. Na campanha eleitoral tinha muitas bandeiras, de todos os tipos, nos comícios de Lula existia um sentimento de que toda a sociedade estava representada ali, como se existisse uma unanimidade social que se dizia ter contra a ditadura militar na época das diretas já(...). Pessoalmente, Lula sempre dizia que não queria ser eleito a qualquer preço, a campanha eleitoral de 89, era para ele, sobretudo, um poderoso instrumento para reforçar a consciência política daqueles já organizados e ajudar a organizar imensos setores da sociedade ainda controlados como bois”.31 Na época, a maioria dos sindicatos, Organizações não governamentais, associações de bairros, Movimento Negro, de mulheres e outros tinham presença marcante na campanha de Lula a presidência e do PT de maneira geral. O que se observa hoje é uma abertura por parte de um setor da esquerda brasileira, no sentido de discutir as íntimas conexões entre religião e política, não caracterizando, como faziam o PCB e o PC do B, a religião como simples “ópio do povo”. E essa discussão é possível, devido ao caráter plural do PT, ou seja, a sua cultura democrática e não dogmática, ao contrário dos partidos já citados. Em toda a história da esquerda no Brasil, como bem afirma V. Chacon: “os comunistas e anarquistas, com sua hostilidade atéia ou agnóstica, sempre reagiram às políticas da igreja católica, mesmo se esta possuía num certo

30 PONT, R. Breve história do PT. Brasília: Centro de documentação–câmara dos Deputados, 1992. 31 BETTO, F. Por que eleger Lula Presidente. São Paulo: Cartilha popular, 1994. pp. 24

78 momento, posições progressistas”32; e, em seguida, pelo fato de que o PT enquanto partido, junto com os teólogos da libertação, criaram um novo tipo de relação entre a esquerda e a questão religiosa. É ainda Frei Betto que nos dá um bom exemplo, na penúltima campanha eleitoral, em 1994: “Já existe na campanha de Lula presidente um comitê religioso, no qual também faço parte. Este comitê tem por objetivo incentivar a mobilização dos fiéis por segmento religioso, incluindo todas as religiões existentes no Brasil. Um comitê religioso pode ser ecumênico(...) no comitê as pessoas se reúnem para trabalhar nas eleições a luz de sua fé e como demonstrar a importância da política segundo as nossas crenças religiosas”33. Frei Betto descreve também o que deve responder um militante do PT quando, na campanha eleitoral, se acusa os religiosos de misturar religião e política: “todos nós, que procuramos seguir o exemplo de Jesus, somos discípulos de um prisioneiro político. Jesus não morreu doente na cama, morreu pelo contrário, assassinado na cruz, preso porque queria o reino de Deus, que servia de espelho para que o povo reconhecesse as opressões do reino de César, que dominava a palestina no século I”34. Aqui fica evidente que esse primeiro momento é aquele marco inicial para se pensar, na atualidade, a construção de identidades e associações entre uma concepção política e uma religiosidade expressa pelo candomblé. Tendo como precedente a teologia da libertação, os militantes se sentiram bem à vontade , num espaço político construído por eles, para afirmarem sua opção religiosa.

A fundação do IPELCY, do INARAB, e do CENARAB Um momento importante que contribuiu para o aparecimento das construções de associações dos militantes investigados foi a criação de algumas associações tanto no Rio de Janeiro e quanto em nível nacional: o IPELCY, o INARAB, e o CENARAB. Dos militantes investigados três deles ( Jorge Carneiro, PC e Mãe Beata ) foram influenciados 32 CHACON, V. História das idéias socialistas no Brasil. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1981. Pp.56 33 BETTO, F. idem, 1994. pp 25 34 BETTO, F. ibidem, 1994. pp 25

79 por estas associações, tanto no que tange a entrada destes (Jorge e PC ) no movimento negro quanto na aquisição de prestígio religioso ( Mãe Beata ). Suas histórias de vida são permeadas pela presença destas associações. No início dos anos 80, um grupo de militantes do Movimento Negro, na cidade do Rio de Janeiro, como Jairo Pereira, Geisa de Oliveira, Ivanir dos Santos, etc conheceram três estudantes nigerianos que se encontravam na cidade. Nesse contato, começaram a discutir sobre a língua yorubá e sua difusão no Brasil, “de forma deturpada”, através dos rituais das religiões afro-brasileiras, especialmente o candomblé. Na época, segundo esses estudantes nigerianos, o yorubá não era falado de forma correta nos rituais, apesar de se ter conhecimento de várias palavras, seus fragmentos e seus significados. Preocupados, então, em recuperar e ensinar o yorubá fluentemente aos iniciados no candomblé, esse grupo de pessoas decidiu organizar um primeiro curso de língua e cultura yorubá. O início do curso, divulgado em toda a Baixada Fluminense, nas comunidades de terreiro, foi ministrado por alguns estudantes universitários, sob a coordenação do IPELCY ( Instituto de Pesquisa de Língua e Cultura Yorubá ). Nesse curso, se encaminhava a discussão acerca de vários aspectos históricos, políticos, sociais e culturais do processo de marginalização das “culturas de origem africana”. Essa discussão levou a uma constatação sobre diversos fatores que determinaram essa mesma marginalização, preconceito e discriminação contra as religiões afro-brasileiras: •

isolamento das comunidades de terreiro e da população negra em geral do processo decisório da sociedade e esse isolamento representa uma herança da escravidão;



a repressão, por parte do Estado, até os anos 30, período no qual, os terreiros eram invadidos pela polícia, objetos eram seqüestrados e os adeptos eram processados e encarcerados;



a continuidade da repressão de forma mais sutil, isto é, depois dos anos 40, a polícia exigia uma espécie de registro civil para o funcionamento das casas de candomblé;



preconceitos, estereótipos e estigmas contra as religiões afro-brasileiras, amplamente disseminadas na sociedade brasileira;



um novo ataque contra essas mesmas religiões, através das igrejas evangélicas e pentecostais, expresso em muitos casos por agressão física e moral.

80 Na avaliação desses elementos, os integrantes do curso ( militantes do Movimento Negro ) se empenharam em realizar discussões para mudar este quadro analisado, tendo como ponto de referência não só os conceitos e a “visão de mundo” que, segundo eles, dão sentido às religiões de “origem africana” no Brasil, como também o rico simbolísmo do orixá Exú, elemento da natureza, “transformador e revolucionário”. Para eles, o conceito de “visão de mundo” significava um “modo particular de estar no mundo” ou “um modo africano de ser”. Num dos documentos produzidos por eles se afirma: “Os negros africanos trazidos para o Brasil tinham uma cultura, uma religiosidade, seu modo de estar no mundo. Diferente do branco europeu, certos aspectos de sua existência negra, como a relação com a natureza, a vida em sociedade, baseado na ancestralidade, é radicalmente oposta daquela européia. Não se prega o individualismo e a intolerância em relação aos diferentes”. Fizeram um documento que dizia: “depois de quase meio milênio ainda existem no Brasil a opressão as expressões culturais e religiosas de origem africana (...) e que, esta violência continua, é uma transgressão à liberdade de expressão e do exercício, portanto, da plena cidadania”.35

Assim, chegam à conclusão de que se faz necessária a

reivindicação de um espaço político dentro da sociedade mais abrangente. Pois, quando falam em “opressão às expressões culturais e religiosas de origem africana”, estão reinventado uma africanidade, uma política da diferença, para construir novos espaços de identidade. A partir daí, nasce um “trabalho de conscientização política”, através da participação de militantes do Movimento Negro da época como: Geisa de Oliveira, Jairo Pereira, Luís Cláudio, Ivanir dos Santos, Marcos Ferreira, etc., com o objetivo de levar “a unidade política de todos os setores das religiões afro-brasileiras, levando-os à compreensão da diferença destes com os aspectos da ideologia dominante que coloca no gueto os adeptos”36. Quando falam em “unidade política”, em “conscientização”, na verdade, estão tentando articular movimentos de resistência dos adeptos do candomblé, aos ataques de 35 Documentos do Inarab, Rio de Janeiro: 1989, mimeo, pp 9.

81 outras denominações religiosas, em especial, os evangélicos pentecostais. A suposta unidade seria concretizada – assim

desejavam – numa grande associação nacional e

regional – como de fato fizeram – para, então, buscar a coesão de forma centralizada, na luta pela liberdade religiosa, que segundo eles, existia nas leis, mas de fato não era cumprida. Essa tentativa de unificar politicamente os adeptos do candomblé, surge quando os pentecostais, ao final dos anos 80, intensificaram seus ataques às comunidades afrobrasileiras. Os espaços de atuação escolhidos pelo grupo foram as comunidades de terreiros de candomblé situados na Baixada Fluminense. O grupo pensava, na época, esses espaços como fundamentais para o desenvolvimento de projetos de natureza política, social e cultural, associados às lutas pela melhoria das condições de vida das populações marginalizadas, à luta ecológica e contra o racismo sofrido pelos negros, sendo, enfim, uma luta contra os ataques discriminatórios por parte das “igrejas eletrônicas”. Os atores desse movimento eram basicamente formados por intelectuais militantes do Movimento Negro do Rio de Janeiro, que se utilizaram desse suposto “resgate da língua Yorubá” para construírem uma entidade – via terreiros de candomblé – que se qualificasse no Movimento Negro mais amplo, tendo como ponto de vista uma “pureza africana”, para combaterem o racismo no Brasil. O IPELCY, que o citamos anteriormente, foi fundado nesse curso. Ao longo dos anos 1984 a 1987 foram organizados diversos eventos, debates e conferências nas escolas públicas de ensino fundamental e médio, junto com a Secretaria de Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro. Nesses eventos foram discutidos temas como “religião e identidade negra”, “os cultos afro-brasileiros” e, mais adiante, foi feito um censo em três mil terreiros existentes na Baixada Fluminense. De outubro de 1987 a setembro de 1988 foram realizados nove encontros regionais das religiões afro-brasileiras ( “a tradição dos orixás” ), em vários terreiros de candomblé, com uma média de trezentas pessoas por encontro. Entre os dias 17 e 20 de novembro de 1988 foi realizado o primeiro encontro das religiões afro-brasileiras na UFF, com cerca de três mil participantes. Nesse encontro, 36 PEREIRA, J. Cosmovisao negra-africana e as religioes afro-brasileiras. São Paulo: Documentos CENARAB 1996. Mimeo, pp. 4

82 estavam presentes também pessoas de outros Estados como Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Fica claro que o IPELCY, ‘inventava’ uma política cultural baseada nos espaços de terreiro mas, o catalisador, o fator determinante para a maioria de seus participantes, foi a resistência e a busca de soluções aos ataques evangélicos, ou seja, invasões de terreiros, exorcismos feitos nos portões dos candomblés, xingamentos nas ruas quando um evangélico identificava um adepto do candomblé e da umbanda, etc. Nesse encontro foi divulgado um dossiê, “A guerra santa fabricada”, elaborado a partir de estudos de autores pentecostais e de artigos da grande imprensa nacional. Este, denunciava a guerra que os evangélicos tinham declarado contra as religiões afro-brasileiras. Nos anos 1989 e 1990 foram promovidas várias atividades de “conscientização política” entre os adeptos do candomblé, que significava, segundo seus integrantes, debates sobre direitos da cidadania nos terreiros da Baixada Fluminense, palestras de professores sobre a história do negro no Brasil, a importância do voto consciente em eleições gerias, etc. Vários documentos foram produzidos, entre os quais um dos mais importantes: “A visão ecológica na cultura negra”37.Em 1989, com o crescimento do movimento, os militantes do Movimento Negro, adeptos do candomblé, fundaram o INARAB ( Instituto de Articulação das Religiões Afro-brasileiras ). O objetivo dessa associação era “consolidar a articulação dos adeptos das religiões afro no Rio de Janeiro para reforçar a unidade política contra o processo de marginalização social, cultural e política dos afro-brasileiros e para garantir os direitos humanos”. Constata-se que, a resistência a que nos referimos acima, para eles, se reveste de um outro nome: direitos humanos. Esse movimento não se restringiu ao Rio de Janeiro, ele se estendeu a outros Estados do país. Assim, em 13 de março de 1992 foi fundado o CENARAB (Centro Nacional de Articulação das Religiões Afro-brasileiras). O INARAB foi, então, extinto no Rio de Janeiro, ficando o movimento articulado com outros movimentos nacionais. O CENARAB, porém, começou a ser articulado por alguns setores do Movimento Negro já em 1991, precisamente em novembro, por ocasião do I Encontro Nacional de Entidades Negras (1° ENEN).

37 Ver em anexo a íntegra do texto

83 A meta do CENARAB era “transformar os vivenciadores das religiões afrobrasileiras em agentes sociais efetivos, tirando-os da condição de agentes passivos do processo de transformação social da nossa sociedade e levar as comunidades de terreiro e seus líderes religiosos a uma interação com a sociedade e suas lutas por melhores condições de vida e com o objetivo de construir uma sociedade verdadeiramente democrática, justa, respeitosa das diversidades étnicas, culturais e religiosas”38. “Tirar da condição de agentes passivos do processo de transformação social da nossa sociedade”, para eles, significava na época, fazer com que os adeptos do candomblé não se reduzissem aos guetos, ou seja, eles avaliavam que com os ataques sofridos pelos evangélicos e pela mídia, o “povo de santo” se restringiria a simples defesa de seus terreiros isoladamente, sem jamais realizar denúncias políticas articuladas contra, segundo eles, o verdadeiro significado destes ataques: o racismo, amplamente denunciado pelo Movimento Negro. No CENARAB participam várias Ialorixás e Babalorixás e os iniciados no candomblé de vários Estados. O CENARAB nos seus estatutos afirma que sua existência tem como finalidade os seguintes pontos: •

“Mobilizar, articular e organizar politicamente a população negra, particularmente, os militantes iniciados ou simpatizantes da cosmologia de matriz africana, para enfrentar o processo de exclusão, levando a população afro-brasileira a uma luta pelos seus direitos de plena cidadania;



Desenvolver estudos e pesquisas sistemáticas sobre a cosmologia e as condições de vida da população afro-brasileira;



Colocar em ação projetos e atividades na área de educação informal, pela cidadania do povo negro, desenvolvendo, especialmente, trabalhos com crianças e adolescentes, com a perspectiva de recuperar a identidade étnico- cultural, a dignidade existencial e a autoestima, negada pelo processo educativo formal e pelas estruturas ideológicas do sistema sociocultural, político e econômico do Estado brasileiro, secularmente excludente;



Incentivar as comunidades de terreiro para desenvolver nos seus territórios, atividades que contribuam para a melhoria da qualidade de vida dos seus iniciados, estabelecendo interações com a comunidade em torno ao terreiro;

38 Estatutos do CENARAB. Aprovado na 3° Assembleia Extraordinaria de 14 à 16 Julho de 1995. Pp. 5

84



Realizar projetos e atividades no âmbito da ecologia e meio ambiente, dentro dos princípios da cosmologia de matriz africana, se construindo como ponto de referência na sociedade brasileira;



Estimular e assessorar as iniciativas políticas e culturais da população afro-brasileira, em qualquer parte do território brasileiro;



CENARAB, não influenciará nos processos rituais das comunidades de terreiro”39 Já em 1995, contudo, o CENARAB perde sua notoriedade como “denunciador” da

intolerância religiosa na época, até porque os evangélicos diminuíram seus ataques públicos para priorizarem seu próprio crescimento. No entanto o CENARAB, com relação a alguns pontos de seus estatutos, em que se destacava de um lado a discussão sobre a exclusão do negro na sociedade brasileira, restrita ao negro adepto do candomblé, para os que reivindicavam cidadania plena baseada no discurso de uma suposta recuperação ou reinvenção de uma identidade cultural; por outro lado, ele se esvaziou, enquanto órgão aglutinador de militantes, na medida em que seu motivo principal deixou de ser também amplamente divulgado na mídia, ou seja, os ataques dos pentecostais, pois o movimento se movia de acordo com a sua divulgação na grande imprensa. Entretanto, para Carlos Nobre40, jornalista e escritor, o movimento expresso pelo IPELCY, INARAB e CENARAB, representou e representa até hoje, “o redescobrimento do Candomblé como elemento que resistiu ao massacre dos negros e de sua rica manifestação cultural.”41 E isso porque esses militantes caracterizavam o candomblé como a instituição que mais resistiu à tentativa, do que eles denominam de eliminação dos “traços culturais negros de origem africana”. Nos encontros e na fundação dessas associações, afirma Nobre, estavam presentes também antropólogos e sociólogos, que apoiavam “a organização dos marginalizados”42. Marginalizados aqui, significa para Nobre, os adeptos do candomblé que sofriam a intolerância religiosa por parte dos pentecostais. Um outro elemento que caracterizou este 39 Estatutos do CENARAB, idem, pp. 8 40 Carlos Nobre, um ex-militante do Movimento negro no Rio de Janeiro foi citado várias vezes por Jorge Carneiro, em nossas entrevistas, como uma das figuras importantes na elaboração de uma interpretação política dos cultos afro-. 41 NOBRE, C. A decoberta da identidade através do candomblé. Documentos CEAP, 1990. Mimeo pp. 3

85 movimento cultural e popular, que se pode evidenciar, ainda segundo Nobre, mas que tem a ver com esses estudos, foi a transformação de comportamento da parte de diversos militantes do Movimento Negro ao longo dos anos 80. “Estes militantes, apesar de serem adeptos das religiões afro-brasileiras, devido ao domínio da linguagem marxista nos discursos do Movimento Negro, tinham ‘vergonha’ de declarar-se aparentemente ao candomblé, já que esta religião era muito estigmatizada. Em outras palavras, eles temiam ser rotulados como ‘alienados ou macumbeiros”43. Carlos Nobre afirma ainda que “um dos responsáveis por esta transformação da parte destes militantes foi Jairo Pereira, fundador do IPELCY, INARAB e CENARAB”44, que permanece como o atual coordenador do CENARAB. Mas, segundo Jairo Pereira, ao culto dos Orixás deve-se incorporar “as lutas pela democratização da sociedade e pela construção de uma cidadania afro sem recalque”.45 Já que, para ele, existe cidadania “somente para os brancos”. Isso significa, para Jairo Pereira, uma redefinição do papel do candomblé, isto é, nos terreiros deve-se reafirmar a cidadania perdida pelos negros na diáspora, devendo-se, ainda, combater o racismo, sendo que as comunidades de candomblé não devem deixar que os coloquem no gueto, mas sim integrar-se às lutas populares concretas nos bairros em torno ao terreiro e na construção de uma ética no candomblé, evitando o crescimento da mercantilização dos cultos imposta pela sociedade capitalista. Enfim, o candomblé deveria ajudar os iniciados a não serem manipulados pelos políticos populistas e burgueses, que contribuem, para manter o povo fora das decisões políticas, e também para a discriminação das religiões afro-brasileiras. É curioso notar que Jairo Pereira utiliza categorias que nunca foram reivindicadas pelo Movimento Negro ou pela população negra no Brasil. Categorias como “cidadania perdida” e “ética no candomblé”, podem ser vistas, aqui ,como construções que tiveram objetivos políticos claros: a tentativa de construir mais uma organização negra, que, contudo, tivesse seu embasamento em construções político-religiosas. 42 NOBRE, C. Idem, mimeo, 1990 pp. 3 43 NOBRE, C. Ibidem, mimeo, 1990 pp. 3 44 NOBRE, C. Ibidem, mimeo, 1990 pp. 3 45 PEREIRA, J. idem. 1996. pp. 3

86 Essas discussões, no entanto, fizeram com que intelectuais negros, iniciados no candomblé, começassem a dizer abertamente que pertenciam àquela religião e que, não viam incompatibilidade com o marxismo empregado como instrumento de transformação nas lutas sociais e não como dogma46. Isso significava, segundo Carlos Nobre, que “ninguém se envergonhava mais de pertencer a religião. O recalcamento deu lugar a uma postura dura em relação aos estereótipos. Por outro lado, muitos militantes, que não conheciam a religião, começavam a tê-la como referência cultural para as lutas sociais de cada dia. Nestes casos, os Orixás, suas histórias, suas personalidades, serviram como modelos ( reinterpretados ) para enfrentar uma realidade baseada em cânones racistas.”47 Os resultados desse movimento se restringiram a uma pequena parcela do Movimento Negro do Rio de Janeiro, não conseguindo unificar os terreiros de candomblé no Estado, para seus objetivos de criação de uma entidade mais ampla. Contudo, para alguns militantes do MNU e de algumas Ongs, ele se cristalizou como referência nas futuras trajetórias pessoais dos militantes investigados. Assim, para Mãe Beata e Jorge Carneiro, esse movimento serviu como referência para as suas construções teóricas e a militância política que realizam hoje. No caso de Mãe Beata, foi o momento de fazer de seu terreiro, um espaço de atuação política. Ela afirma que na época dos encontros do INARAB, conheceu muitos babalorixás e como infere: “passaram a reconhecer meu trabalho político e minha fé nos orixás”. Ou seja, foi o espaço privilegiado de Mãe Beata para se fazer reconhecida como uma importante Mãe de Santo. Mas, é também para Jairo Pereira – amigo de Mãe Beata – que opinou sobre essa Mãe de Santo e sua atuação na construção do INARAB e do CENARAB: “Mãe Beata foi muito importante neste processo todo. Foi ela quem mobilizou algumas sacerdotisas e sacerdotes do candomblé da Baixada para nos reunirmos e deliberarmos sobre as denúncias que deveríamos fazer contra as invasões de terreiros por parte dos 46 Termo que segundo Jairo Pereira significava um conjunto de teorias que explica toda a realidade. 47 NOBRE C. Ibidem. 1990 pp. 3

87 pentecostais. Sabemos que é muito difícil reunir o povo de santo, mas o que nos unia era a defesa de nossa religião. Eu visitei muitos terreiros de candomblé, para levarmos nossa proposta de luta, porém quando visitava junto com Mãe Beata, as pessoas nos recebiam com grandes honras, rituais e presentes. Este trabalho de articulação que tentamos fazer se deveu muito à dedicação de Mãe Beata”. Jorge Carneiro, apesar de não participar na época do INARAB e do CENARAB, foi muito influenciado por esse movimento, uma vez que tomou conhecimento dos textos produzidos nele, além das conversas esporádicas com Jairo Pereira e Mãe Beata, e todo esse contexto no qual ele se inspirou para a realização de seus escritos, como constataremos a posteriori. Jorge relata que um dos momentos em que percebeu a importância desse movimento, foi quando organizou a visita de Lula em seu terreiro em Junho de 1994: “Na campanha de 94, depois de muita polêmica o partido definiu que iria , na caravana da Baixada, visitar um terreiro de candomblé, e eu fiquei como responsável para organizar isto lá na casa de Iyá Nitinha. Mas tinha o problema da convocação das pessoas do santo. Esta convocação não se dá como no Partido, através de boletins, panfletos, etc., é preciso visitar as pessoas. Foi assim, que tive a idéia de chamar Mãe Beata para me ajudar nisso. Assim uma semana antes do evento, eu visitei com Mãe Beata dezenas de terreiros, e percebi que o trabalho que o Jairo Pereira e ela fizeram com o INARAB e o CENARAB permitiram que nosso convite tivesse muita receptividade, pois todos conheciam Mãe Beata e Jairo Pereira que era do PT. Eu achei isto muito interessante e pensei que um futuro trabalho no Movimento Negro eu poderia fazer nestas comunidades que visitei.”

88 Já em relação a PC, podemos verificar que quando ele nos relata sua história de militância, através do MNU e do grupo político que participava anteriormente (o IPCN), já existia um contato com o INARAB e, posteriormente, com o CENARAB. Entretanto, PC nos relata que foi Jorge Carneiro que lhe passou a informação sobre as discussões do CENARAB. Interessado nessa história, PC começa, no mandato da vereadora Jurema Batista, como assessor parlamentar, a promover eventos e incentivar discussões acerca de políticas públicas para a comunidade candomblecista do Rio de Janeiro. Uma outra referência interessante, observada nessa pesquisa, é que PC, quando visita os rituais de candomblé no Estado, em qualquer oportunidade de discussão política com os adeptos, ele os chama para conhecerem o mandato de Jurema Batista e participarem das discussões políticas do PT. É dele o relato do seguinte momento: “Me lembro que em 1995, por ocasião das comemorações dos 300 anos de Zumbi, eu estava numa festa de candomblé, e alguns irmãos de santo meus queriam fazer um grande evento para homenagear as mães de santo do Rio de Janeiro. Foi ai que tive a idéia do mandato de Jurema homenagear essas Mães de Santo com a Medalha Pedro Ernesto. Me lembro que o pessoal gostou muito, e dizia que esta atividade poderia retomar os trabalhos do Cenarab aqui no Rio de Janeiro. Pois o que faltava era ter pessoas no parlamento que incentivassem um trabalho de união entre os terreiros do Rio de Janeiro.” Aqui, o que percebemos é que PC sabia da história do Inarab/Cenarab, mas seu papel era outro, o de tentar, como faz até hoje, uma rearticulação deste trabalho através de um mandato parlamentar do PT. Hoje, nas conversas informais que Jorge e PC realizam com a comunidade de candomblé do RJ, sempre vem à tona, as discussões, reuniões e eventos promovidos pelos fundadores do INARAB/CENARAB junto ao candomblé. Pode-se ver, nesse segundo

89 momento, que se evidencia o desenvolvimento das redefinições de identidade entre alguns militantes, primeiramente no Movimento Negro e depois (como se verá mais adiante ) no PT. Até aqui, contudo, o movimento ainda não alcançou um nível de política partidária, até porque sendo um movimento restrito à questão racial, as definições ideológicas partidárias não eram nítidas. O movimento como se vê, reivindicava uma luta histórica do negro, ou seja, o fim do racismo, o direito de cidadania para os negros, o fim da intolerância religiosa, o fim da repressão aberta e sutil às religiões afro-brasileiras. Entretanto, uma característica singular dava um perfil diferenciado a esse movimento, em relação ao Movimento Negro: a utilização de elementos religiosos extraídos do candomblé para uma ação política anti-racista. A religiosidade, para eles, não se expressava somente no culto ou crença nos orixás, mas, como afirmam, “um modo de ser do negro”. Portanto, a fundação dessas associações significava uma releitura política da religiosidade. O que leva ao entendimento de que a conscientização declarada e praticada por eles, representava não mais que uma forma de utilização dos mitos, reinterpretações rituais para justificar uma nova forma de luta antiracismo. Isso se concretizou, na prática, pela tentativa - a partir de uma motivação externa aos terreiros - de criar fóruns de discussão entre os membros do candomblé. Foi elaborado um Dossiê sobre a “Guerra Santa Fabricada”, em resposta aos ataques dos evangélicos aos terreiros de candomblé. Ou seja, a partir desses ataques, que foram denominados de guerra fabricada, eles também ‘fabricam’ uma resistência, com objetivos políticos explícitos e não simplesmente expressos na boa intenção de “unificar o povo de santo”. Mais uma vez, porém, no momento em que esses ataques ficam menos intensos, o movimento cai em refluxo, pois seu mote principal - para os adeptos do candomblé que participaram das reuniões, eventos e encontros - era a autodefesa de seus terreiros no Rio de Janeiro e não a suposta “unificação política” de iniciados no candomblé. Mas, ao final, esta transparente contradição entre intenção, fatos e resultados, plantou suas pequenas sementes nos militantes investigados. Pois segundo se observa, se tentará de uma forma mais partidária, a retomada das discussões, reelaborações e reivindicações desse movimento.

90 A discussão sobre os “novos sujeitos na luta de classe” O ano de 1989 marcou a história da esquerda mundial e brasileira. No Leste europeu os muros caíram. Para alguns militantes de esquerda era o fim do socialismo, já para outros era o fim do “domínio da burocracia”, que no poder “manchava” a verdadeira luta pelo socialismo. No Brasil, a campanha da Frente Brasil Popular quase venceu as eleições presidenciais, perdendo a oportunidade histórica de, com a esquerda unida, hegemonizar a administração central do governo brasileiro. A conseqüência desses dois eventos históricos, levou o conjunto da esquerda no Brasil, a repensar novos horizontes e métodos para continuar a luta socialista. Alguns setores fariam a revisão de seus programas, outros discutem, até hoje, “novas formas de utopia”. Apesar do 1° congresso do PT, em novembro de 1991, ter reafirmado a luta pelo socialismo e criticado os regimes do Leste europeu, afirmando que “aquilo que existiu na ex-URSS nunca foi uma verdadeira sociedade socialista”, sendo por isso mesmo que “ninguém poderia acusar o PT de defender um projeto que já morreu”48; para alguns de seus militantes não eram claros e suficientes os métodos e os sujeitos agentes dessa luta socialista. Nesse sentido, ao final de 1993, um grupo de militantes do PT-RJ realizou um seminário “sobre a exclusão social”, isto é, se discutiu qual era o papel na luta socialista, de determinados setores, altamente marginalizados pela sociedade capitalista como, por exemplo, os jovens funkeiros, do rap, religiosos afro-brasileiros e evangélicos, mulheres negras e outras formas de expressão cultural e política que não participam das “prioridades” de intervenção política do Partido e nem tampouco do movimento sindical. Um outro objetivo desse grupo era “fazer uma mudança de olhar por parte da esquerda” em relação a grupos que, segundo eles, contribuem para a luta socialista. Até hoje inferem: “a esquerda rotula como setor informal todos aqueles que são marginalizados pelo capitalismo e que

48 Resoluções do 1° Congresso do PT, 1991

91 têm uma história de resistência e de luta, porém esta não é contada na história oficial e nem divulgada na grande imprensa.”49 Esses setores, que ficam fora da tradicional discussão da esquerda, “possuem formas de ser, uma cultura, ideologia, forma de vestir-se que exprimem uma forma de pensamento.”50 Segundo esses militantes, “a esquerda é movida pela tradição eurocêntrica que não vê, por exemplo, na África, nenhuma contribuição à luta socialista”51. Para esses militantes o grande desafio da esquerda e do PT “é pensar estes setores, até porque na crise que vive a esquerda e o movimento social organizado, devemos repensar uma série de coisas e neste repensar está incluído estes setores”.52 A partir desse seminário, foi preparado um texto para discussão sobre o Candomblé que, um ano e meio depois, foi publicado no jornal Em Tempo53 e na revista do PT Teoria e Debate. Esse texto foi elaborado por Jorge Carneiro, a partir de uma discussão com alguns militantes do PT-RJ. Eles denominaram a discussão como: “os novos sujeitos na luta de classe”. Inserindo-a na discussão sobre a luta anti-racista, segundo estes militantes, essa luta do povo negro não pode deixar de levar em consideração as religiões de origem africana, pois, “estas refletem uma concepção de vida, de mundo e de luta por um mundo melhor”54. O impacto dessa discussão e desse texto foi muito significativo no interior do PTRJ. Surgiram muitas discussões informais, fora das estruturas do partido, até porque essa não era uma das prioridades de intervenção do PT. Uma outra conseqüência foi a presença atuante dos petistas que são candomblecistas, isto é, deu-se o início da descoberta de uma série de militantes do PT que eram iniciados no candomblé há vários anos e que, no entanto, tinham receio de se assumirem enquanto tais, pois temiam ser ridicularizados ou chamados de alienados. Não se sabia das suas condições de iniciados, pois eles reconheciam que a maioria da esquerda era preconceituosa em relação às religiões afrobrasileiras. 49 Declaração de Jorge Carneiro no seminário promovido pelo PT, sobre “Exclusão social”, 1993. 50 CARNEIRO, J. Idem. 1993. 51 CARNEIRO, J. Ibidem. 1993. 52 CARNEIRO, J. Ibidem. 1993. 53 Publicaçao da Tendência interna do PT - Democracia Socialista. 54 CARNEIRO, J. Candomblé, luta, cultura e identidade. Revista Teoria e Debate, maio 1995. pp. 2

92 Por último, esse movimento dos militantes do PT-RJ, do qual participaram também Jorge Carneiro e Paulo Cezar, caracteriza um outro momento em que emerge a construção de associações entre uma religiosidade expressa pelo candomblé e a utopia socialista defendida por esses militantes. Esse terceiro momento é um dos mais importantes, ou seja, aqui encontramos militantes que buscam de forma mais elaborada, em consciência de causa construir uma prática militante e uma iniciação religiosa, baseadas numa elaboração identitária que tem uma clara associação entre utopia socialista e crença nos orixás.

A elaboração de uma nova tática de luta anti-racista no MNU denominada Raça e Território. Dizíamos que dos quatro militantes investigados, dois eram filiados ao MNU e uma é simpatizante. Entretanto esta organização não é composta de uma única linha de pensamento de ação política no combate ao racismo. Nas observações feitas percebeu-se que Jorge e PC, como integrantes do candomblé, aliados a Lúcia ( simpatizante do MNU ) tem uma percepção diferenciada do papel da religiosidade na luta anti-racismo. Neste sentido as polêmicas existentes dentro do MNU, no que se refere a ação política concreta e seus significados, são percebidas e apropriadas por Jorge, PC e Lúcia a partir de uma leitura permeada pela prática e interpretação de sua religiosidade. O MNU (Movimento Negro Unificado) foi formado, a partir do final da década de 70, por agrupamentos do Movimento Negro que buscavam a unificação dos grupos negros no combate sistemático à discriminação racial. Nos dias 09 e 10 de setembro de 1978, foi realizada uma assembléia nacional de fundação do MNU, com representantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia, sendo aprovada a carta de princípio, programa de ação e estatutos. Para os fundadores do MNU, a entidade representou uma mudança completa na luta contra o racismo, pois o Movimento Negro “deixou a forma de luta semi-clandestina dos terreiros,

93 dos centros culturais e associações, etc., para uma luta mais pública em várias cidades do país”55. No início de suas ações políticas e lutas, o MNU tinha como base a teoria Raça e Classe, ou seja, “lutar contra a opressão específica sobre o negro combinando a luta contra à opressão geral dos trabalhadores”56. Ao mesmo tempo em que se lutava contra o racismo, se reforçava a luta de classe, a luta dos trabalhadores contra a opressão econômica e social. Ao longo da década de 80 o MNU foi a entidade do Movimento Negro que mais cresceu em número de militantes, chegando ao ponto de estar organizado em quase todos os estados da federação e tendo porta-vozes representativos em vários setores da sociedade. Contudo, na década de 90 alguns militantes do MNU começam a teorizar uma nova tática de luta para o Movimento Negro e o MNU. Até o início dos anos 90, o MNU se baseava teoricamente, como foi dito, na “teoria raça e classe”, que significava em termos concretos da luta anti-racista, a intervenção do Movimento Negro nos movimentos sociais onde o negro e sua militância é maioria e nas entidades do conjunto da esquerda para unificar a luta dos trabalhadores em geral. Isso se expressava na criação de coletivos negros em entidades sindicais, populares e partidos. O MNU como organização política tinha ações e intervenções nesses espaços que unificavam seus militantes. Além disso, a grande tática de luta para se combater o racismo, na teoria Raça e Classe, são as chamadas políticas de ações afirmativas, ou seja, “a necessidade de trabalhar com as políticas afirmativas, compensatórias e reparatórias, expressa também nas políticas de cotas, no sentido destes se constituírem em elementos mobilizadores e de denúncias do racismo no Brasil”57. Essas políticas se resumiriam nos seguintes pontos: •

o racismo no Brasil é estrutural, tem origem histórica na formação do escravismo colonial e este é camuflado por poderosas barreiras que deformam sua natureza e anestesiam seu doloroso impacto. Portanto, ao se radicalizar uma exigência nas políticas afirmativas ( proporcionalidade étnica no mundo do trabalho, nas universidades, publicidade, etc.), como medidas de restruturação social e eliminação

55 Kilombo–Um olhar do povo negro. Tese do XXII Congresso do MNU. Salvador: 1998. mimeo, pp. 4 56 Kilombo. Idem. 1998, pp. 4

94 das desigualdades raciais, haverá uma reação hostil da elite branca, o que ajudará a dissolver barreiras ideológicas que mistificam o racismo brasileiro; •

porque esta tática permitirá mobilizar a grande massa negra brasileira que, muitas vezes, se reúne para eventos comemorativos, celebrativos ou denunciativos e não reivindicativos;



outro aspecto, seria a instrumentalização do braço institucional do Movimento Negro, ou seja, os parlamentares e governos aliados, para implementar as políticas públicas que visem beneficiar o povo negro;



esta tática permitirá também a capacitação de quadros negros para implementação de políticas públicas;



e por fim, ter em mente que esta tática é um momento para a afirmação do nosso projeto socialista, sendo o elemento mobilizador. Concretamente, as políticas afirmativas se definem em: Lei de diversidades nas

empresas; Lei de proporcionalidade étnico-racial no ensino universitário, criação do fundo nacional de políticas afirmativas, criação do Conselho Nacional de promoção da igualdade de oportunidades, democratização dos meios de comunicação social, programa governamental de combate às doenças comuns em afrodescendentes, etc.. Mas, a partir do início dos anos 90 um grupo de militantes do MNU, de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo, começou a questionar esta política da entidade e, no XII Congresso da entidade, realizado em abril de 1998, lançou uma tese chamada Kilombo – Raça e Território58, que ganha adesão da maioria dos delegados do congresso. Nessa tese, esses militantes questionam a política da entidade, afirmando que chegou a hora dos militantes negros romperem com o que eles chamam de política integracionista dos negros brasileiros. A tese se inicia afirmando que “o racismo é a principal contradição do sistema capitalista na periferia”. Mais adiante avalia que “o MNU foi fundamental para implementar a discussão como base à teoria Raça e Classe, ou

57 Raça e Classe. Tese do XXII congresso do MNU. Salvador: 1998, mimeo, pp. 23 58 Jorge Carneiro e PC não assinaram esta tese, mas lançaram um manifesto sobre as religiões afros no mesmo congresso.

95 seja, lutar contra a opressão específica sobre o negro combinando a luta contra a opressão geral dos trabalhadores”59. Segundo essa análise, essa tática deve ser superada pois, “a questão das lutas de classe, do confronto entre opressor e dominado na periferia do sistema, tem dimensões étnicas e raciais que os teóricos marxistas da Europa não tinham capacidade de entender” já que “a questão racial é sempre vista como periférica graças à visão eurocêntrica dos problemas brasileiros”60. Para os defensores da tese, “o movimento social organizado nunca privilegiou uma relação de aliança com o Movimento Negro, mas sempre pediu para que nós integrássemos as lutas gerais dos trabalhadores” e assim, “nos relegando a personagens e agentes sem história e sem projetos próprios”61. Nessa perspectiva, se propõe um rompimento com a política de integração tanto dentro da esquerda como fora, apontando para a construção de “um Projeto político do Povo Negro para o Brasil”. A política de Raça e Classe, segundo essa orientação, colocava a necessidade do negro se organizar em todos os setores da vida nacional, para lutar contra o racismo. Porém, essa política, concluem, não é suficiente. Essa reorientação tática do MNU contribuiu para que alguns militantes negros, (identificados nessa investigação), começassem a pensar os terreiros de candomblé, “enquanto território de matriz africana”, como espaços de elaboração política e organizativa dos negros brasileiros para a luta anti-racista e como reafirmação de uma identidade cultural e religiosa, em oposição à cultura ocidental. É nessa perspectiva política que encontramos e observamos (num certo sentido, dando continuidade ao momento anterior identificado por nós) alguns militantes realizando vários debates e eventos, reafirmando na prática de suas militâncias essa reorientação política do MNU. Exemplos disso foram um encontro do MNU em Juiz de Fora, realizado em 18 de outubro de 1998, onde se discutiu o Papel político estratégico das religiões de Matriz africana; o Debate sobre cidadania e candomblé realizado no terreiro de Lúcia, em 05 de 59 Kilombo. Ibidem. 1998, pp. 5 60 Kilombo. Ibidem. 1988, pp 5

96 dezembro de 1998, no município de Nova Iguaçu, apresentado por Jorge Carneiro, militante do MNU e coordenado por Lúcia Barros, na época, Vice-presidente do PT de Nova Iguaçu; o debate promovido pelo PT-NI, em 16 de novembro de 1998 “Fórum: um olhar sobre a realidade” onde a primeira palestra se intitulava Religiosidade negra; outro debate também no PT-NI, no dia 10 de março de 1999, sobre O Universo feminino na tradição dos orixás; e cumprindo as deliberações do XII congresso nacional do MNU, foi realizado o seminário nacional sobre “As religiões de matriz africana e o projeto político do povo negro no Brasil”, em 10 de julho de 1999, no Rio de Janeiro, no qual o objetivo da discussão era “fortalecer a auto-estima do povo negro, contrapondo-se à visão de mundo eurocêntrica dominante e excludente do povo negro, da sua cultura, e em especial de sua religião”62; por último, em outubro de 1999, um grupo de militantes negros do PT lançou uma tese nacional para o IV encontro nacional de negros e negras do PT, com o nome “Falta Axé na Política Petista”.63 Essa tese, entre outras coisas, afirmava especificamente sobre “as religiões de matriz africana”: “As religiões de matriz africana, ao longo da sua trajetória em nosso país, vem não somente resistindo, como também apresentando a visão de mundo africana numa

perspectiva

de alternativa

à

lógica

dominante branca e racista. Baseando em todo um saber ancestral na construção de uma nova ordem em que as relações com diferentes sejam respeitosas e democráticas. Nesse entendimento de mundo, é fundamental que todas as relações de construções sejam coletivas e solidárias, caminhando no pleno desenvolvimento do ser em todos os seus aspectos.

61 Kilombo. Ibidem. 1988, pp 5 62 Seminário Nacional do MNU sobre As religiões de matriz africana e o projeto político do povo negro no Brasil. Rio de Janeiro: Julho 1999. 64 Essa tese teve uma contribuição de meus estudos e trabalho de pesquisa. Ou seja, os militantes Jorge, PC e Lúcia elaboram o documento a partir de meu artigo “ Falta axé na política Petista”.

97 Os entendimentos judaíco-cristãos sempre trataram a cultura e a religião das negras e dos negros com intolerância, preconceito e desrespeito. Esse confronto ideológico é histórico e assume nos dias atuais, características extremamente preocupantes a partir do momento em que um setor do seguimento judaico-cristã (igrejas evangélicas eletrônicas) de certa forma, desenvolve uma política de confronto e ataca o Candomblé e a Umbanda no sentido do aniquilamento geral dessa matriz religiosa. Podemos nos perguntar por que incomodamos tanto? Podemos responder que as religiões de matriz africana, mantidas espetacularmente em nosso país, contém na sua proposta de construção elementos com conteúdos que nos ajudam em uma perspectiva de transformação radical desta sociedade. Entendemos e concebemos o mundo numa visão integradora natureza-homem como um forte conteúdo de respeito e preservação do meio ambiente. Na nossa visão de mundo a igualdade de princípios (feminino e masculino) é fundamental para o equilíbrio das relações. Com isto, queremos dizer que um princípio não é mais importante que o outro, como também observamos a socialização e democratização de poderes entre os Orixás em que um completa o outro. Com certeza, afirmamos que as comunidades de terreiros constróem e mantêm identidades, acumulando pessoas e não bens, afirmando o pleno desenvolvimento do ser e sua autonomia, no entendimento que não cabe o individualismo. Axé é uma construção coletiva em que todos dão a sua contribuição”.64 Esse último momento é o mais elaborado, uma vez que aqui se observa nitidamente o esforço de alguns militantes de construírem associações entre dois domínios socioculturais diversos. Essas discussões, surgidas a partir de uma reorientação tática de

98 uma entidade negra em nível nacional, nos dão elementos suficientes para afirmar que hoje, a partir de contextos anteriormente descritos, existem militantes que se definem petistas e candomblecistas, e que, estes nos revelam como se dão as redefinições de identidades em contextos históricos específicos. Deve-se tecer ainda algumas considerações acerca desses momentos, enquanto processo, para analisar, mais acuradamente, as construções de sentido e ressignificações simbólicas realizadas, tanto na esfera política quanto na religiosa. Processo complexo, envolvendo três dimensões – a posição da esquerda em relação à religião; o movimento negro e a inserção do candomblé na sociedade brasileira, esse processo remete às variadas discussões. Nos anos 60, a esquerda marxista via a religião como “ópio do povo”, portanto, alienadora e empecilho à transformação social e política. Essa visão, no que diz respeito às religiões afro-brasileiras, pode ser exemplificada pelo filme Barravento de Glauber Rocha, no qual são retratadas as dificuldades de um líder revolucionário em mobilizar uma comunidade de pescadores devotos do candomblé, contra sua exploração por parte de uma companhia de pesca. Mas na virada dos anos 70 para os anos 80, é fundado o PT, que na sua base, encontram-se diversos líderes religiosos católicos, que ao longo das décadas de 70 e 80, realizaram trabalhos de formação política, através das CEBs, que contribuíram para a formação de diversos líderes como Lula, Olívio Dutra, etc. O PT, enquanto partido socialista, na sua origem, demarcou um corte com as concepções de que a religião é o ópio do povo. Michael Löwy65 conta que na década de 60, um grupo de fanáticos religiosos, numa cidade do interior do nordeste, fizeram uma grande concentração de dez mil pessoas para linchar um grupo de cem militantes comunistas, pois esses foram considerados “comunistas filhos do diabo”. Esses, não tendo onde se refugiar, foram para a delegacia de polícia pedir proteção.

64 Tese apresentada no 7º Encontro Nacional de Negras e Negros/PT, São Paulo: Outubro 1999, mimeo. 65 LÖWY, M. A guerra dos Deuses. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

99 Duas décadas depois, no ABC paulista, os líderes metalúrgicos e alguns marxistas, lideram grandes greves operárias contra a ditadura militar. A polícia os persegue, e os sindicalistas não tendo para onde fugir, se refugiam numa Igreja, pedindo proteção ao padre. Duas realidades distintas, mas que nos demonstram as mudanças da esquerda em relação ao papel da religiosidade nas lutas pela cidadania. Esses fatores históricos não deixaram de influenciar o movimento negro, que passa a identificar vários elementos das culturas negras, como símbolos de resistência ao racismo no Brasil. A luta do negro na sociedade brasileira tem ocorrido desde o início da escravidão. Ao longo da história, foram encontradas várias entidades que se propunham a “acabar” com o racismo no Brasil. Porém, em 1978, surge o MNU. Ele nasce com a proposta de luta antiracista mais abrangente, não se restringindo ao combate contra a discriminação racial. A proposta era de lutar “por uma sociedade mais justa e igualitária”66. A partir daí, criam-se novos símbolos de resistência por essa sociedade justa e igualitária desejada: Zumbi, Chico Rei, João Cândido, Revolta dos Malês, as religiões afrobrasileiras, etc. No caso dessa última, o movimento negro passa a tentar cooptar o candomblé como elemento de afirmação da identidade negra, compreendido agora como símbolo de resistência, associado a outros como os quilombos. Num momento posterior, início da década de 90, com a crise do paradigma marxista, cria-se um ambiente propício para que o movimento negro reinvente referências inspiradoras de uma sociedade sem racismo, “justa e igualitária”. Daí a constante referência à chamada “tradição” cultural e comunitária do Candomblé. Por outro lado, o candomblé adquire um status político, e este, ao lado de um suposto “caráter étnico africano”, vem sendo preconizado por vários sacerdotes como forma deles obterem maior prestígio, atribuindo uma identidade africana “pura” ao seu modelo de culto67. Nesse caso, verifica-se uma crescente reafricanização do culto por meio da eliminação das marcas do catolicismo e de outros sistemas religiosos.

66 Estatudos do MNU, São Paulo: 1978. Mimeo. 67 DANTAS, B. G. ibidem. 1988

100 Esses processos, levados adiante por negros envolvidos ou não em movimentos de consciência negra, geralmente restringem-se às disputas por legitimidade, dentro do mercado religioso, e preserva a característica de conversão universal do Candomblé. Assim, o Candomblé parece exibir uma certa vocação de permanecer aberto a novas interpretações, de acordo com os movimentos que grupos sociais lhes imprimem, e a força de, por meio desses movimentos, expressar as desigualdades a que esses grupos estão sujeitos em suas relações de contato cultural e domínio político. Portanto, o momento histórico no qual se insere a construção do IPELCY, INARAB e CENARAB é um contexto de crise da esquerda a nível mundial. O paradigma marxista perde força, enquanto explicação totalizante para uma parcela significativa de militantes e, no caso em discussão, é pouco aplicável para o Movimento Negro. Por outro lado, na presente investigação, percebe-se que para os militantes do CENARAB, a especificidade da condição étnica requer uma elaboração própria, ou seja, não é possível ter como referência dogmas marxistas. Nesse sentido, é fácil perceber quando vários militantes do Movimento Negro constroem novos mitos, novos símbolos de referência, como Zumbi, Chico Rei, Revolta dos Malês, candomblé, etc. Entretanto, existe também uma (re)interpretação particular do marxismo. Esse fato ocorre, por exemplo, no momento em que Jorge Caneiro organiza o seminário sobre “exclusão social”, em 1993, e escreve sobre isto. Esse seminário, promovido também por outros militantes do PT-RJ68, aponta a necessidade deles, como afirmam, de incluir “os novos sujeitos” nas lutas de classe. Ou seja, aqui se mantém um conceito central do marxismo, mas este é requalificado, incorporando os chamados “novos sujeitos”. Esses seriam, jovens negros, mulheres negras e até evangélicos progressistas. Essa discussão, contudo, não é isenta de conflitos, já que os próprios militantes percebem as dificuldades da discussão dentro do PT. Pois o Partido, enquanto instituição, não incorpora essas análises. Vê-se aqui que a resposta à crise das esquerdas é a invenção de novos elementos, “novos sujeitos”, capazes de dar respostas “às lacunas” da esquerda, ou, às possíveis causas de sua crise. É um primeiro momento de elaboração sistemática,

101 mais consciente, porque o contexto da época é a crise das esquerdas e a hegemonia do neoliberalismo no Brasil e no mundo. Com Mãe Beata é outra história. Seu terreiro se encontra numa região, onde existem várias comunidades parecidas, onde o prestígio desta não passa simplesmente pela identificação de seu candomblé em si, mas essencialmente por ser militante do PT e organizadora de eventos. Nos

estudos

antropológicos,

os

candomblés

vêm

sendo

estudados

fundamentalmente “de dentro”, ou, como domínio isolado, documentado exaustivamente em seus rituais, papéis de seus sacerdotes e elementos simbólicos. Constata-se e criam-se verdadeiros nichos fechados através destes estudos, reforçando uma visão idealista das comunidades de terreiro. Criticando estas análises Silverstein afirma: “uma parte importante da mãe de santo vem do fato de que ela é uma mulher criativa, que sabe em maior ou menor medida, utilizar e desenvolver os recursos a que tem acesso, ou mesmo criar as condições, em qualquer nível, para conseguí-los”. E ainda: “vejo a Mãe de santo como uma pessoa política, atuante e ativa no mundo de hoje, e não só como uma figura religiosa cuja única ou principal atividade seja cumprir as funções rituais dentro de um terreiro. Para sobreviver, ela tem de criar uma rede de relações com pessoas que têm acesso privilegiado à sociedade em mudança em volta dela”.69 Dirigente de um terreiro na Baixada Fluminense, Mãe Beata constrói seu prestígio, política e religiosamente, em meio à centenas de terreiros que preservam somente suas manifestações religiosas, seus rituais, etc. É interessante notar que o terreiro de Mãe Beata é fundado contemporaneamente à expansão evangélica na Baixada Fluminense. Esse fato é relevante, pois como afirma Mãe Beata, respondendo aos ataques contra o candomblé vindo desses setores: “precisamos resistir até hoje aos ataques promovidos contra nossa cultura”. Diferentemente de outros terreiros, que se restrigem a organização de cultos, atendimento ritual ao público exterior, etc., Mãe Beata articula eventos, cursos

68 Estes militantes faziam parte da Secretaria de Mulheres/PT e do Diretório Municipal do Rio de Janeiro. 69 SILVERSTEIN, L. M. “Mãe de todo mundo – modos de sobrevivência nas comunidades de candomblé da Bahia”. In: Religião e Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp..25.

102 profissionalizantes, palestras sobre prevenção de doenças, assistência social à comunidade, em seu terreiro, além de militar na associação de moradores de seu bairro. Isto revela os processos de construção de um espaço próprio, já ocupado por outros terreiros próximos mas, além disso, uma forma de resistência e uma política de sobrevivência frente às disputas desiguais no mercado religioso da Baixada Fluminense. Um exemplo disso foi a campanha promovida pelo CENARAB, em 1992, com plena participação de Mãe Beata, contra a chamada “guerra santa fabricada”, promovida pelos evangélicos na época. Outro elemento que pode explicitar o significado da atuação de Mãe Beata é fato que no final da década de 80, alguns terreiros de candomblé incorporam uma proposta assistencial devido a desestruturação do Estado, que passa a investir menos recursos em políticas públicas para a população marginalizada e excluída do desenvolvimento sócioeconômico. Mãe Beata constrói uma “política da diferença” – às vezes, utilizando-se de métodos proselitistas pouco comuns nas religiões afro-brasileiras – não só diante dos evangélicos, mas também diante de dezenas de terreiros de candomblés vizinhos, pois é comum entre os terreiros de candomblé – através de sacerdotes e sacerdotisas – a disputa para ver quem possui mais saberes ancestrais ou mais tradição. O exemplo dessa política da diferença, aqui descritos foi a ECO-92. Além da importância internacional-institucional do evento, ele foi um marco na visibilização dos trabalhos de Mãe Beata. Aproveitando o evento, o CENARAB elaborou um documento70 acerca da “visão ecológica” do candomblé, e Mãe Beata fez várias palestras sobre o tema. Porém, o mote propulsor dessas elaborações foi a excessiva divulgação, na mídia carioca, da suposta poluição que os adeptos das religiões afros provocam nas florestas e rios com seus ébos e oferendas.

70 Cenarab. Manifesto das tradições religiosas e culturais afro-brasileiras sobre meio ambiente e cidadania. Rio de Janeiro: Junho/1992, Forum internacional de Ongs e movimentos sociais-ECO 92, mimeo.

103 Contrapondo-se a essa visão, o CENARAB e Mãe Beata constroem verdadeiras “ontologias” acerca da “visão ecológica candomblecista”, com ampla divulgação na mídia e no fórum Global das Ongs – na ECO 92. A partir daí, Mãe Beata é solicitada para vários eventos, consolidando assim um perfil identitário no Estado do Rio de Janeiro. Hoje, enquanto outros sacerdotes são reconhecidos pela sua contribuição e “manutenção das tradições dos orixás”, restrito às comunidades de terreiro, Mãe Beata vai além, constrói seu prestígio no mercado religioso afro-brasileiro e principalmente nos espaços institucionais do Estado. Mas, para realizar essa tarefa, ela não abandona seus laços religiosos, pelo contrário, constrói associações entre estes e a referência política expressa pelo Movimento Negro e pelo PT. Como ela mesma afirma: “é a expansão do Axé da comunidade”. Assim, na descrição desses momentos, evidencia-se que, por meio dessas análises, se criou uma “constelação de fatores históricos” e que, começa a entrar em cena, uma nova prática política – de alguns militantes – dentro do PT do Rio de Janeiro e uma outra forma de vivência religiosa nas comunidades de terreiro.

104

4.

Construindo

e

inventando

novas

tradições

e

identidades político-religiosa Afirmamos, no capítulo 1 desta pesquisa, que os militantes (re)inventam formas políticas de militância e discursos sobre sua religiosidade. Para eles, o sentido mítico original (o candomblé de “raízes africanas”) é reelaborado dentro de um contexto histórico e político do presente. Logo em seguida, foram descritos os significados das construções identitárias, para esses militantes do candomblé, do Movimento Negro e do PT e o contexto histórico no qual esses militantes se inserem. Esse contexto se evidenciou, a partir de condições históricas concretas; a saber, a formação do PT no início dos anos 80, a construção de associações culturais negras que tentaram elaborar o papel político das comunidades de candomblé, as iniciativas individuais de alguns desses militantes e a elaboração de novas políticas para o Movimento Negro Unificado ( MNU ). Entretanto, para melhor entendimento desses movimentos coletivos e individuais é necessário termos um panorama teórico de como, inserido no atual contexto mundial, esses militantes constroem e inventam suas identidades. Michael Agier no seu artigo Destúrbios identitários em tempos de globalização71 aborda o estado da questão identitária numa das perspectivas antropológicas atuais. O autor afirma que a mundialização coloca em questão as fronteiras territoriais locais, a relação entre lugares e identidades e além disso, a rápida circulação de informações, das imagens e das idéias que promove dissociações entre lugares e culturas. Neste sentido, os sentimentos de perda de identidade são compensados pela criação de novos contextos e retóricas identitárias. Ao longo do artigo ele discorre sobre os diversos enfoques teóricos acerca da noção de identidade cultural afirmando que de uma forma ou de outra, diversos autores abordam “as relações entre globalização e criação de culturas localizadas”72.

72 AGIER, Michael. Disturbios identitários em tempos de globalização. Mana, n.7/2: 7-33, 2001 73 AGIER, M. Idem, 2001. Pp. 20

105 Agier se pergunta: “qual é o processo que fez a cultura em seu contexto, quando esse contexto está praticamente por toda parte, definindo-se enquanto um local globalizado ?”73 Nas suas diversas manifestações, para Agier, “a identidade cultural tornou-se um lugar comum das novas formas do político, fonte de mobilização popular em zonas rurais e urbanas...”74 Nas cidades por exemplo, as identidades se tornam “ um recurso político ou econômico para indivíduos e redes à procura de um lugar na modernidade”75. Neste sentido, no trabalho do antropólogo hoje, “ encontra-se muito mais freqüentemente diante de culturas identitárias em fabricação do que perante identidades culturais totalmente prontas, as quais ele tem apenas que descrever e inventariar”76 . E ainda: “ a cultura declarativa torna-se o argumento da declaração de identidade...” que para Agier é a forma de existência social da identidade hoje, pois com o fim das “grandes narrativas”, o mundo vive uma fase de criatividade intensa formada por múltiplas buscas identitárias, ou múltiplas formas de políticas identitárias. Podemos dizer que Agier nos dá uma base de compreenção daquilo que Stuart Hall afirma, quando fala da “proliferação de novas posições-de-identidade” 77. Hall analisando os efeitos da globalização nas identidades coletivas e individuais afirma que as identidades estão se pluralizando, “produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas, unificadas ou trans-históricas”78 . Pode-se dizer que para Hall e Agier, com o novo contexto da globalização, se estão emergindo identidades “suspensas”, em transição, que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais e que são produtos dos complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. Neste sentido, a associação que os militantes investigados constroem entre a dimensão religiosa e política nos permite vê-los como indivíduos que, inseridos numa 74 AGIER, M. Ibidem, 2001. Pp. 20 75 AGIER, M. Ibidem, 2001. Pp. 21 76 AGIER, M. Ibidem, 2001. Pp. 22 77 AGIER, M. Ibidem, 2001. Pp. 23 77 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. 78 HALL, S. ibidem, 1999. Pp. 87

106 cultura local que tem origens e tradições, são obrigados a negociar suas identidades com a modernidade, sem simplesmente serem assimilados por ela e sem perder completamente seus referenciais identitários tradicionais. E que também, em resposta a experiência de racismo cultural e da exclusão social, os indivíduos constroem uma política da diferença se reindentificando com culturas de origem. Porém não são somente Michel Agier e Stuart Hall que nos conduz a uma certa leitura dessas identidades. M. Sahlins, também num recente artigo79, faz uma reflexão acerca da flexibilidade das culturais locais e globais, tendo como ponto de vista a permanência de culturas tradicionais, com meios modernos, mas também eficientes à causa de uma “apropriação instrumental e local” que a cultura global lhes oferece. Os nativos locais, continua Sahlins, buscam objetivar suas culturas e transformá-las em fonte de reflexão. Birman comenta o texto afirmando, “Seria

pobre

considerar

somente

a

hipótese

de

uma

instrumentalização de um universo cultural sem princípios e fragmentado em suas manifestações. Do mesmo modo como seria inútil negar a presença de modos de existência tradicionais tendo com suporte e também como instrumento a defesa da ‘cultura tradicional’. O recurso político e identitário de apropriação da cultura tradicional não precisa significar um esvaziamento de modos tradicionais de existência, mas pode significar a utilização de aparatos modernos e tradicionais, pouco importa a distinção, para que, em nome da tradição, continuem a persistir movimentos de resistência à homogeneização cultural do mundo”.80

79 SAHLINS, M. “O ‘Pessimismo sentimental’e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um objeto em via de extinção( parte II)”. In: Mana, n. 3/2. 1997. 80 BIRMAN, P. “O Campo da nostalgia e a recusa da saudade: temas e dilemas dos estudos afro-brasileiros”. In: Religião e Sociedade, Vol. 18, n. 2, 1997. Pp. 88

107 Sahlins, fazendo uma crítica àqueles que afirmam ser a modernização global a causa do processo de deculturação a uma solução final, visto que os costumes tradicionais eram considerados um obstáculo ao “desenvolvimento” e ao fim de uma cultura indígena, afirma que “os povos que sobreviveram fisicamente ao assédio colonialista, não estão fugindo à responsabilidade de elaborar culturalmente tudo o que lhes foi infligido. Eles vêm tentando incorporar o sistema mundial a uma ordem ainda abrangente: seu próprio sistema de mundo”81. Sahlins confirma o que se está analisando aqui, quando se refere à cultura Mendi, na Nova Guiné: “os Mendi fazem até jóias a partir do lixo europeu.” jóias que têm funções rituais locais mas feitos com material global. Ele afirma então que “A tradição consiste aqui nos modos distintos como se dá a transformação: a transformação é necessariamente adaptada ao esquema cultural existente”. E finaliza: “tudo que se pode hoje concluir a respeito disso é que não conhecemos a priori, e evidentemente não devemos subestimar, o poder que os povos indígenas têm de integrar culturalmente as forças irresistíveis do sistema mundial”.82 Na mesma linha, prossegue outro autor contemporâneo, James Clifford, analisando os contatos culturais do que ele chama de modernidade etnográfica na antropologia. Por modernidade etnográfica, segundo James Clifford83, se entende o espaço mundial atual no qual as culturas e tradições mais diversas se encontram e se reinventam. Esse encontro cria problemáticas complexas, porque, muito freqüentemente, os sujeitos sociais, dentro destas relações, se encontram em uma relação de domínio uns sobre os outros. Os traços culturais implicados nessa relação formam o conjunto cultural ocidental das culturas, que esse mesmo conjunto cultural ocidental os submeteram e colonizaram e que, ao entrarem em contato, produzem alguma coisa de novo. As suas trocas não são unilaterais, mas as ditas culturas fracas reagem ao contexto contemporâneo, reinventando a própria identidade, no aspecto individual e coletivo. Esse fato remete às discussões dos temas da cultura ocidental, que descrevem esses povos como últimas testemunhas de velhas e puras culturas não contaminadas e essas culturas 81 SAHLINS, M. idem. 1997. Pp. 102 82 SAHLINS, M. ibidem. 1997. Pp. 108

108 dominadas não têm a força de reação ao domínio das culturas fortes, por isso estão destinadas a desaparecer. Qualquer cultura, segundo Clifford, é, pelo contrário, capaz de se reinventar abandonando ou modificando alguns dos próprios traços originais. No último capítulo de The Predicament of Culture,84 Clifford fala da “Identidade em Mashppe”. Uma comunidade indígena, que depois de longas décadas convivendo com a modernidade capitalista, utilizando hábitos e formas de sociabilidade modernas, moveu um processo em 1977, na suprema corte de Boston, reivindicando as terras de seus ancestrais. Em contrapartida, a suprema corte solicitou a comprovação de suas identidades indígenas. Nessa parte do livro, aparece claramente um dos elementos fundamentais do pensamento de Clifford, mas também a crise epistemológica que ocorre atualmente em muitos paradigmas, inclusive aqueles produzidos pela antropologia. O tema central tem a ver com a identidade cultural que é construída e inventada pelos indivíduos, que convivem num conjunto de relações, valores e símbolos, local e historicamente determinados: a história que é narrada é aquela de um grupo de índios que reivindica o direito a uma nova identidade, ao mesmo tempo indígena e moderna. Clifford finaliza afirmando, nesse belo livro, que: “da fragmentação e recomposição das culturas emerge um futuro coletivo muito diferente daquele catastrófico”. É nessa esteira de raciocínio que serão analisadas as identidades construídas pelos militantes “petistas e candomblecistas”.

4.1 – Redefinindo o Axé Quando entramos concretamente na construção das associações feitas entre a religiosidade expressa no candomblé e a utopia socialista operada pelos sujeitos investigados, vemos como nossas leituras não podem se desprender do fato de que toda análise de fenômenos culturais é a análise da dinâmica cultural, ou seja, do processo

83 CLIFFORD, J. The Predicament of Culture. Cambridge: Mass. Harvard University Press, 1984. 84 CLIFFORD, J. idem, 1984.

109 permanente de reorganização, reelaboração e ressignificação das práticas sociais, representações estas, que são paralelamente condição e produto dessa prática. Como bem situa James Clifford, quando discute o significado de “modernidade etnográfica”, “as culturas, e a nossa visão sobre elas são produzidas historicamente”85. Clifford, afirma isso ao analisar que o mundo atual, com a realidade pós-colonial, está em movimento e não é mais possível pretender ocupar um ambiente cultural delimitado e sair à procura de outras culturas puras para analisá-las. “Cada vez mais os modos de vida humanos se influenciam, se retraduzem e subvertem uns aos outros”.86 Na presente investigação, observam-se nitidamente esses elementos, pois à analise de um primeiro elemento de construção de identidades, a redefinição do conceito de Axé, percebe-se que os militantes operam uma clara reinvenção política e cultural. Na declaração abaixo, Mãe Beata realiza uma recriação da significação do Axé, publicamente, em 12 junho de 1997, quando foi realizado um seminário na UERJ sobre Africanidades. Nesse evento, Mãe Beata discursou sobre a importância da cultura africana no Brasil. Depois de falar disso, finalizou com a seguinte declaração política: "Eu sou uma Yalorixá da cultura Yorubá, e nessa a consciência se transmite no quotidiano, que para mim é uma coisa fundamental, porque viver para nós é viver para a comunidade, onde todos são respeitados, são diversos individualmente mas complementares para o bem da comunidade. Na nossa visão de mundo o tempo é o espaço onde o homem pode, sem parar, lutar pelo desenvolvimento de sua energia vital. O poder do homem, para nós descendentes de africanos, se expressa através da palavra que significa força, Axé. Trata-se de uma palavra que significa muita força, que vai da integridade física, ao bem estar social pleno de homens e mulheres. Por isso, acredito que só uma nova sociedade, mais justa, igualitária, será capaz de fazer expandir ainda mais o Axé, fazer ver aos homens 85 CLIFFORD, J. ibidem, 1984. Pp. 84. 86 CLIFFORD, J. ibidem, 1984. Pp. 85.

110 que no Ayê existe espaço para todos e que não há necessidade de conflitos inúteis que faz crescer somente o egoísmo e a vaidade pessoal. Olorum não quer isto, ele quer que os homens se respeitem entre eles." Na ocasião, Mãe Beata falava para um público essencialmente composto de militantes do Movimento Negro do RJ, estudantes da UERJ e pesquisadores das culturas afro-brasileira. Levando-se em consideração que o candomblé surge no Brasil como produto de reinvenções dos vários sistemas de crenças, provenientes do continente africano. Percebese que nessas declarações se apresentam novas reinvenções, que ocorrem em um contexto histórico, no qual se inserem não mais supostas motivações de “resistência”, “continuidades culturais”, como afirmam alguns autores87, mas no intuito de deslocar as (re)definições em direção a uma militância política anti-racista e socialista. Mãe Beata opera essa (re)invenção quando afirma que o axé é sua energia vital e que este, no coletivo, se expande ainda mais. Por conseqüência, ligando esta concepção com sua realidade moderna, ou seja, inserida na militância política, ela reverte a noção de axé em direção “a uma nova sociedade, mais justa, igualitária...”. Mais um momento relevante, nessa investigação, foi revelado em outubro de 1999, quando os militantes Jorge Carneiro, Lúcia e Paulo César, apresentaram e defenderam uma tese para VI Encontro Nacional de Negros e Negras do PT, realizado em Cajamar, São Paulo. Jorge Carneiro, Paulo César e Lúcia assinaram a tese que disputou o encontro: Falta Axé na Política Petista. Num trecho da tese onde eles avaliam a atual fase de construção do PT se afirma: “Em primeiro lugar, quando falamos da crise de identidade do PT, nos referimos à grande crise que abala a militância do partido, fazendo com que, hoje, exista em suas bases um sentimento generalizado de que o PT "não é mais aquele".

111 O partido encontra-se num alto estágio de burocratização, ou seja, as decisões políticas são tomadas pela cúpula de direção do partido, pelos dirigentes que se mantêm por vários anos na direção. Dizem - e se vê - que, entre uma eleição e outra, os candidatos e a militância não priorizam mais o trabalho de base, depositando uma confiança exagerada na capacidade oratória e no discurso coerente do partido. Não se realiza mais um trabalho no qual se procure construir uma interseção entre a cultura popular, o imaginário e a teoria de superação do capitalismo. Por outro lado, a forma de convencimento das massas se realiza cada vez mais por meio de um discurso preocupado com o status e a forma do falar. Ou seja, caracterizando-se através de aspectos semelhantes ao proselitismo das religiões universais. Parte-se da presunção de que os excluídos são alienados, ignorantes, não adquiriram ainda aquela consciência de classe ou política que propicie uma mudança radical do sistema político, econômico e social. Em conseqüência disto, quando os agentes políticos do partido assumem alguma função governamental ou parlamentar, crê-se que os problemas sociais e econômicos possam ser resolvidos a partir de soluções e resoluções propostas somente dentro das instituições às quais esses sujeitos-agentes pertencem. Em segundo lugar, quando falamos na construção do AXÉ nas comunidades de candomblé, referimo-nos ao princípio básico que move toda a cosmologia religiosa das comunidades afro-brasileiras. Ou seja, na definição dos iniciados na religião, “o AXÉ é a força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir. Sem AXÉ, a existência estaria paralisada, desprovida de toda a possibilidade de realização. É o princípio que torna possível o processo vital.” 87 SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1988.

112 Segundo alguns iniciados na religião que são também militantes do PT, a concepção de AXÉ "é uma construção coletiva em que não cabe o individualismo, e a competição é o ponto de contradição com o capitalismo". Neste sentido, a diferença entre a visão política anterior e esta é que, na construção do AXÉ, existe uma divisão de tarefas entre todos os membros da comunidade; todos trabalham em pé de igualdade, para receber e adquirir o AXÉ. A doutrina no mundo do candomblé só é compreendida na medida em que é vivida e dramatizada de modo ativo. Comparando com o segundo aspecto a visão política anterior, na construção do AXÉ, a lógica ou dicotomia “discurso dos esclarecidos aos não-esclarecidos” não existe. A palavra e a vida são sentidas e vividas.

Encontram-se

numa

mesma

dimensão.

Portanto,

o

conhecimento do real, nessa cultura e religiosidade baseada na oralidade, se dá de forma integral e muito presente no corpo e na mente dos indivíduos. Em função disto, sem sermos redundantes - o que seria chamado, na crise de identidade do PT, o convencimento dos indivíduos passando pela priorização do proselitismo - na cosmologia dos afro-brasileiros, a educação de AXÉ é feita permanentemente, desde a iniciação até o retorno ao Orum ( mundo invisível ). Aliás, a educação de AXÉ, no cotidiano, é a base do entendimento do real, do futuro e do passado. Somente a vivência comunitária poderá construir a identidade individual e coletiva, com harmonia, sem desigualdades, sem exploração de uns sobre outros e sem qualquer tipo de opressão ou privilégio.” E a tese finaliza com a seguinte idéia:

113 “Acreditamos que os ensinamentos dos afrodescendentes não caminhem somente em uma direção, ou seja, que o AXÉ cultivado pelos mesmos possa ensinar muito aos petistas; mas também os petistas podem ser ouvidos no interior das comunidades, para que estas conheçam o espírito revolucionário daqueles e levem mais em consideração o potencial sedutor dessa cosmologia, no sentido de resistir à tentativa de massacre e extermínio que as culturas e visões de mundo proselitistas e ocidental tentam impor às culturas milenares dos afrodescendentes.”88 Num outro texto, Jorge Carneiro afirma: “Somos portadores de Axé, essa força dinâmica que garante o processo vital e nos anima sobretudo a prosseguir no objetivo de garantir um mundo melhor.”89 Meses antes, em fevereiro de 1999, no encontro de negros e negras da DS, em Porto Alegre, Jorge e Lúcia expressaram a seguinte idéia: “Somos um povo que temos Axé, e Axé é vida. Logo lutamos pela vida, vida em todos os seus aspectos. Respeitamos as diferenças e o nosso projeto, que é coletivo, só será pleno se essa máxima for sempre observada. Cada um de nós tem a sua contribuição a dar para a manutenção do Axé, da vida, da sociedade, do mundo. Não existe entre nós o princípio da exclusão, não acumulamos bens e sim pessoas, aqui está o conflito com o padrão dominante.”

88 Tese apresentada no 7º Encontro Nacional de Negras e Negros/PT, São Paulo: Outubro 1999. Mimeo. 89 CARNEIRO, J. Candomblé, Exclusão e Luta. São Paulo: Jornal Em Tempo, 1995. Pp. 12

114 Aqui, Jorge, PC e Lúcia não usam a linguagem clássica dos militantes da esquerda, mas resgatam a igualdade, a coletividade, a garantia de um mundo melhor, em nome da expansão do axé. Essas declarações e elaborações desses militantes, a essa altura dos estudos em questão, poderiam falar por si mesmas, porém é sempre bom ressaltar que, se “AXÉ "é uma construção coletiva em que não cabe o individualismo, e, a competição é o ponto de contradição com o capitalismo", ele demonstra que a cultura e as identidades não formam uma bagagem que as sociedades levam consigo e se conserva como um todo, não é algo definitivo, mas algo que se fragmenta de diferentes modos, para afirmar identidades e garantir interesses, sendo permanentemente reinventada e investida de novos significados90. Esses militantes reivindicam elementos de uma “tradição” africana e as negociam, em suas formulações, para uma nova interpretação política e a representação de suas práticas militantes. Ou seja, para se fazer uma crítica à crise política do PT, é necessário afirmar sua “Falta de Axé” e não simplesmente lançar mão dos recursos críticos usualmente utilizados pela esquerda em geral. Entretanto, essas elaborações se restringem ao espaço político desses militantes. Pois não se encontra, em observações nos seus terreiros, que no “Axé não cabe o individualismo”. Pelo contrário, percebe-se que existem disputas, jogos de prestígio, etc. Suas elaborações identitárias se limitam a uma futura construção em seus espaços religiosos (no caso Jorge Carneiro e Lúcia) e, em PC somente nos espaços políticos. Jorge Carneiro em seu terreiro, por exemplo, limita-se ao cumprimento de seus rituais, não promove nenhuma discussão a respeito de suas concepções políticas com sua Mãe de Santo e seus “irmãos de axé”, o mesmo ocorre com PC e Lúcia. A única vez em que Jorge Carneiro teve a oportunidade de “levar” uma discussão política para dentro do terreiro foi em 1994, quando foi realizado um almoço para Lula e Bittar (este, na época, então candidato a governador pelo RJ )91. Nesse episódio, Jorge conta que de uma certa forma, quebrou a hierarquia no terreiro, pois Mãe Nitinha lhe concedeu o direito de enfeitar e arrumar o barracão para recepcionar Lula e a comitiva do PT. Jorge assim explica: 90 COHEN, A. Custom and Politic in Urban africa. London: Routledge and Kegan Paul, 1969. 91 Ver em anexo reportagem da revista Manchete da época.

115

‘foi um momento difícil, pois existiam espaços e objetos que não poderia entrar nem tocar. Mas pela primeira vez minha Mãe permitiu que um filho de santo seu tomasse conta do barracão... ao final, deu tudo certo, fizemos uma recepção ao Lula e ao Bittar, muito boa. Fizemos um seção de falações das personalidades presentes, depois Mãe Nitinha entregou um Oxê de Xangô para Lula, lhe pedindo mais justiça no Brasil e um Abebé de Oxum para Bittar, lhe pedindo para acabar com a violência no Rio de Janeiro. Logo após, entregamos a Lula e Bittar as reivindicações dos adeptos do candomblé, caso eles ganhassem as eleições. Logo em seguida oferecemos o almoço.”92 Esse evento teve a participação de Mãe Beata, que apesar de não ter feito nenhum discurso, foi a pessoa, junto com Jorge Carneiro, que mobilizou várias casas de candomblé a participarem do evento. Ela e Jorge Carneiro, dias antes, percorreram de carro vários terreiros da Baixada Fluminense.

4.2 - Reinterpretando as histórias e os significados dos orixás Lévi Strauss lembra que “O mito enquanto parte de um sistema de representações, possui valor de verdade que reside no fato de que a história que narra, não importa em que tempo ocorra, forma uma estrutura permanente que tematiza e soluciona problemas atuais contemporâneos.”93. No caso dessa investigação, as histórias mitológicas dos orixás divulgadas por Mães de Santo e estudiosos, são reinventadas e reproduzidas pelos militantes no intuito de legitimar a construção de suas identidades como candomblecistas e socialistas. E esse será

92 em anexo o referido documento 93 LEVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. Pp. 186.

116 mais um momento no qual será identificado o processo de construção das associações operadas pelos militantes. Lépine94, num belo estudo sobre os estereótipos construídos nas comunidades de candomblé, informa que os itãs ( histórias dos orixás ), contam a história do povo de santo, são condutores de valores, referências míticas para as convivências em comunidade. Esses itãs são contados e recontados ao longo do tempo e, de acordo com as circunstâncias, se adaptam à realidade da comunidade, mas nunca perdem, segundo os militantes investigados, “o valor referencial-mítico, fundador de um princípio originário africano”. Durante os diálogos estabelecidos com os sujeitos, estes deixaram bem clara uma própria interpretação das histórias dos orixás. Essas interpretações, na verdade, são reinterpretações políticas e sociais, adaptadas às suas convicções políticas. Vejam o que afirma Jorge Carneiro sobre seu orixá, Ogum: “Quando fiz minha iniciação, descobri que era de Ogum, pensava que Ogum fosse violento, passional, guerreiro, etc., então não me identificava porque eu sou muito calmo, de paz, enfim, tudo o contrário. Porém, depois que descobri que Ogum é também paz, serenidade, tranqüilidade, eu descobri isto em mim mesmo, que era escondido, porque o orixá é isso, não somente aqueles estereótipos que dizem por aí. Então na política eu procuro levar a sério esta característica de Ogum, para estar sereno na minha prática política. O exemplo que posso dar é que nesta crise da esquerda eu penso que seja só um momento, sei que muitas pessoas estão desiludidas, saem do PT, da militância, porém, Ogum me leva sempre adiante, porque ele significa vanguarda, Exú é outro que me diz que estamos na crise, mas isto vai passar, haverá outros momentos no qual superaremos a crise, tudo se transforma, nada fica estático, eu trabalho assim. Exú quando vê que as coisas estão andando bem demais ele cria situações 94 LEPINE, C. “Os esteriótipos da personalidade no candomblé Nagô”. In: MOURA, C.E.M. de. Ollorisá: escritos sobre a religião dos orixás. São Paulo: Agora, 1981.

117 para que nós não nos conformemos, para nos colocar em movimento, então é assim que vejo as coisas, o atual momento histórico que vivemos. Eu acredito que sem Exú não existe transformação no mundo, nas coisas.” Massimo Canevacci, em seu livro sobre sincretismos, citando Vasantkumar, um antropólogo indiano, observa que no processo de globalização não acontece somente uma modernização das culturas nativas, mas também uma “indigenização” da modernidade95. Nesse sentido Jorge Carneiro opera uma verdadeira politização do papel de Ogum em sua vida e militância. Constrói, para os adeptos de uma tradicionalidade africana pura, uma heresia. Para Jorge, a identidade de Ogum muda (e ele, como afirma, é parte de Ogum), se torna politizada. Enquanto outros militantes constroem referências pessoais e coletivas como, Che Guevara, Marx, Lênin, Jorge tem Ogum, “o ferreiro, aquele que abre os caminhos e toma a vanguarda”. Outra história interessante é aquela de Lúcia que tem como Orixá, Oxóssi. No entanto, logo no primeiro encontro com essa investigação, expressou a seguinte história, demarcando como relataria suas reinterpretações dos significados dos orixás: "Um dia Oxum pediu aos orixás homens para participar da reunião que eles organizavam, porém estes não a queriam na reunião. Então Oxum se sentiu ofendida e com muita raiva decidiu secar todas as águas do mundo até que ela participasse da reunião. Depois que toda a terra ficou seca, os orixás se desesperaram, porque a vida no Ayê corria o risco de desaparecer. Foi então que os orixás imploraram a Oxum que ela desse a água de volta ao mundo, mas Oxum era intransigente não queria escutar ninguém. Os orixás não tendo resposta de Oxum foram a Olorum, eles perguntaram porque que Oxum estava fazendo aquilo, Olorum respondeu dizendo que enquanto Oxum não participasse da reunião eles estavam correndo o

118 risco de serem responsáveis pelo fim do mundo. Foi então que os orixás decidiram pela participação de Oxum na reunião. Daquele dia em diante a água retornou e a vida no Ayê se desenvolveu tranqüilamente". Logo depois ela deu a seguinte interpretação para essa história: "eu vejo que nesta história Oxum nos dá o exemplo de como nós mulheres temos força para transformar o mundo, para fazer valer nossos direitos e mostrar aos homens como nós somos importantes para a vida. Então não podemos nos deixar explorar, ser discriminada pelo sistema machista. Acredito que Oxum nesta história nos ensina muitas coisas para nossas lutas feministas." Lúcia opera aqui a invenção de uma referência política sob o manto de Oxum. Se o movimento feminista cria seus ícones e heroínas, ela inventa uma Oxum, que na terra, inspira a luta feminista e anti-machista. E não são apenas as histórias dos orixás que são reinterpretadas. Verdadeiras histórias são inventadas para legitimar “a história de todo um povo de raiz africana”, no sentido de referendar uma “nova” concepção política, como é o caso de Mãe Beata no seu livro, Caroço de Dendê: “Durante longos anos inventei histórias e hoje selecionei algumas para publicar. O livro é para adultos e crianças. São histórias simples, que contam a nossa cultura. Decidi escrever porque não gosto que nossa cultura seja deturpada em outros escritos e depois existe uma falta de conhecimento dos afro-brasileiros sobre nossa identidade. Penso que as histórias que conto faz refletir sobre muitas coisas importantes da nossa existência. Te faço um exemplo: 95 CANEVACCI, M. Sincretismi:Una esplorazione sulle ibridazioni culturali. Genova: Costa e Nolan, 1995.

119 Um homem tinha um filho que conhecia muitas coisas. O menino era muito respeitado por todos, mas seu pai dizia: menino, basta!, eu não quero te ver envolvido nestas coisas de adivinhação. Mas o menino adquiria cada vez mais poder, chegava gente de longe para escutar as suas palavras e os seus ensinamentos. Um dia acordou e disse ao seu pai, que era marceneiro: - papai, esta noite sonhei com um velho que me dizia que tinha visto através dos búzios, que hoje o senhor não deve cortar a madeira porque senão acontecerá alguma coisa desagradável. O homem bateu nas costas do menino e foi embora para o bosque trabalhar sem dar muita importância ao aviso do filho. Chegando lá ele começou a cortar uma árvore. Perto dali, mal começou a trabalhar chegou uma figura estranha para espiá-lo fazendo: - ei ! ei ! ei ! o homem escutava toda vez que levantava o machado para cortar a árvore. - mas isso é uma ilusão, estou me confundindo com a invenção do garoto. Vou continuar trabalhando porque não será esta estupidez que vai me dominar. Deu um golpe na árvore com o machado e a cortou. A árvore então caiu sobre sua perna o machucando muito. O filho, que estava em casa, teve um pressentimento porque não viu o pai chegar. Foi no bosque e encontrou seu pai desacordado com a árvore sobre sua perna. Chamou os vizinhos os quais

o levaram para casa. Mas o

marceneiro ficou paralisado. Este é o preço que paga as pessoas, no qual não escutam um conselho e pensam que sabe de tudo. Todos os seres que habitam o mundo têm a própria hora, as árvores também. Elas são responsáveis

120 pelo

desenvolvimento

da

Mãe natureza

e não

devem ser

molestadas.”96 “Veja, eu conto esta história porque ela representa um ponto importante de nossa visão de mundo, ou seja, todos nós temos algo importante para dizer, então devemos escutar todos, mesmo quem diz algo que achamos errado, por que somos diferentes mas somos complementares, devemos sempre preservar o diálogo para construir a harmonia entre nós, por isso que sou socialista.” Utilizando-se de recursos mais acessíveis para ela, Mãe Beata, cria histórias para não somente manter uma tradição oral, mas também para legitimar uma suposta identidade socialista, no caso a sua. No início de 2000, uma grande polêmica se instalou no Rio de Janeiro envolvendo as comunidades afro-brasileiras e os pentecostais: a proposta da Empreiteira Lansa, que construiu a Linha Amarela, de colocar nessa linha uma escultura de Exú. Iniciativa apoiada pelo ex-prefeito da cidade, Luiz Paulo Conde. Os pentecostais reagiram de forma radical, ameaçando inclusive com a realização de uma campanha pública contrária à escultura de Exú na Linha Amarela. Poucas iniciativas conjuntas a favor da proposta foram realizadas, e algumas declarações de sacerdotes e sacerdotisas foram feitas nos jornais, mas, a iniciativas mais contundente foi feita pelo PT, publicando uma nota – no Jornal do PT - a favor da iniciativa, através da Secretaria Estadual de Combate ao Racismo do PT-RJ. Numa nota escrita pelos seus membros, intitulada “A quem incomoda Exú”, (dentre eles, Jorge Carneiro, Lúcia e Paulo César) afirmavam o papel de Exú: “Longe de ser o diabo, Exú é o princípio dinâmico de comunicação, da existência cósmica e humana. Ele possibilita que as coisas venham a tornar plena a sua vida interior, responde pelo movimento da vida, introduzindo o acaso e a sorte no destino dos homens e mulheres,

96 BEATA DE YEMONJA, M. idem. 1997. Pp. 75.

121 rompendo os modelos conformistas do universo e nos levando a possibilidade permanente de mudança. Exú é a negação da negação. Ele nega os preconceituosos que negam o direito à diferença; e as instituições que negam o direito à liberdade de expressão e pensamento; ele nega a sociedade onde o homem é inimigo do homem. Ele é rigoroso e duro sem jamais perder a sua ternura. Exú nos questiona constantemente a nos revelar que o mundo é produzido e que pode ser produzido de maneira diferente: na visão de mundo de origem africana Exú é o mediador entre os deuses e os homens (o mesmo ocorre na cultura grega com o deus Hermes) enfim, nos mostra a fragilidade das nossas tentativas de criar sistemas e estruturas definitivas onde a vida fica limitada e sem horizonte. Por analogia, Cristo também é avesso, como Exú, aos dogmas, preconceitos e autoritarismo que predominam as instituições. Ele parte em busca do seu espírito de liberdade na festa do fogo, de Pentecostes, que como princípio dinâmico continua a animar a vida dos homens e mulheres na liberdade, na ternura e na luta. A polêmica que se instalou com a proposta da Lansa – Empreiteira baiana que construiu a Linha Amarela – de colocar um escultura de Exú na Linha Amarela, significa mais uma expressão do racismo e do preconceito religioso no Brasil. A nossa Constituição, no Título II, Capítulo 1, Art. 5, P. VI, afirma: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da Lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Além disso o Estado e suas instituições são de caráter Laico, isto é, não religioso. Mas a realidade que se impõe é outra. Nas escolas, nos tribunais, nas sedes dos governos, existe somente a imagem de Jesus Cristo

122 Crucificado. Nunca se perguntou a quem não é cristão se concorda com este autoritarismo religioso. Algum tempo atrás até nossas moedas tinham a escritura: “Deus seja louvado”. E se houvesse: “Axé Brasil !” ?” O texto ainda termina com as seguintes colocações: “Portanto, nós, militantes do PT, somos a favor da colocação da escultura de Exú na Linha Amarela. Pois esta dará visibilidade a uma cultura milenar dos povos africanos e seus descendentes no Brasil. Cultura esta muito mais antiga que os povos que deram origem ao cristianismo. A escultura não representa uma agressão às pessoas de outras religiões, mas uma afirmação de que no Brasil existem diferenças culturais e religiosas, um princípio que nos orgulha muito, pois essa diversidade é enriquecedora. Não podemos reviver situações de intolerância, preconceitos e discriminações como existiu na Europa nazista e fascista. Somos um povo que cultua a democracia e a pluralidade cultural. Nós do PT sempre criticamos a intolerância e o racismo, preservamos o que há de mais rico em nosso povo: a democracia e o respeito pelas pessoas que pensam, oram, dançam, cantam e se vestem de forma diversa. Axé Brasil !!! Axé Rio de Janeiro !!! Larôie Exú !!!” Revela-se aqui, o uso político de referências culturais afro-brasileiros, para a apropriação de um espaço político, na luta anti-racista do Partido. Além disso, renova-se a dimensão simbólica dos orixás, ressignificando os sentidos da figura de Exú, ou como

123 afirma M. C. da Cunha “a tradição cultural serve de porão, de reservatório onde se irão buscar, a medida das necessidades do novo meio, traços culturais isolados do todo que servirão essencialmente como sinais diacríticos para uma identificação étnica. A tradição cultural seria assim manipulada para novos fins, e não uma instância determinante.”97 O que se vê acima, na polêmica da escultura de Exú, aponta para, como afirma L. Trindade, “o processo de reinterpretação e manipulação individualizada dos símbolos sagrados. Esse processo de seleção dos conceitos e construção da lógica estrutural do discurso é dirigido pelos interesses sociais em conflito, marcados pelas oposições existentes em um mesmo momento histórico e social”.98 O texto “A quem incomoda Exú”, foi elaborado numa reunião da Secretaria Estadual de Combate ao Racismo do PT-RJ, reunião essa na qual também estavam presentes, Jorge Carneiro, PC e Lúcia. Eles pretendiam radicalizar a polêmica na cidade, identificando o PT com a defesa de uma certa visão (a deles) da figura de Exú. Como se vê, as histórias reinterpretadas ou inventadas são destinadas a facilitar algumas operações práticas bem definidas, no caso, a legitimação de uma visão política diferenciada do conjunto da esquerda tradicional. Um velho modelo de referências – as histórias dos orixás ou seus significados –se adapta às novas condições políticas dos militantes. Mas, para Mãe Beata, parece que existe outro significado, ou seja, aquele de se autopromover religiosa e politicamente. Seu livro, lançado em 1997, reflete isso. Ela rompe com a chamada tradição oral e inaugura uma fase na qual começa a escrever, publicar histórias, numa clara proposta de “preservar uma memória”, incorporando elementos não tradicionais “africanos”, uma vez que seu objetivo é também ganhar respaldo no mundo da literatura afro-brasileira.

97 CUNHA M.C. da. “Religião, comércio e etnicidade: uma interpretação preliminar do catolicismo brasileiro em lagos” In: Religião e Sociedade. n. 1, 1977. Pp. 53. 98 TRINDADE, L. “Exú, reinterpretações individualizadas de um mito”. In: Religião e Sociedade. n. 8, 1982. Pp. 37.

124 4.3 - O ecologismo Outro exemplo de construção de associações que os militantes investigados fazem é a luta ecológica e os princípios de relação com a natureza que o candomblé tem. Contudo as inovações de apropriação do candomblé neste tema não é novidade. Vilson Caetano de Sousa Júnior, num estudo sobre as comidas dos orixás, dá o seguinte testemunho: “Participei, certa ocasião, da festa de Nanã. Ao contrário das comidas tradicionais associadas a este ancestral, havia somente frios, queijos e saladas. E Nanã não deixou de dar a mesma volta ao redor daquelas comidas que daria na mesa de seus mingaus. Parece que o surgimento de alguns pratos, ou ainda, de certas concepções, não significa que os fundamentos foram diluídos no contexto da cidade, mas ao contrário, que permanecem apoiados em suportes que não podem ser ignorados. A suposição de um impacto das novas condições de vida sobre o papel desempenhado pela religião dos Orixás deve ser mais uma pergunta do que um pressuposto. Mais desafiadoras são as teias de comunicação, formas de diálogo desenvolvidas pelos terreiros para marcarem sua presença e colocarem estes produtos à serviço dos próprios Orixás”99. Esse testemunho pode orientar, na leitura de que estes militantes resgatam, uma expressão de religiosidade que tem uma profunda relação com a natureza, mas que não está imune às transformações e reinterpretações, no contato com a civilização industrializada.

99 SOUSA JR, V. C. de - A cozinha, os orixás e os truques: entre a invenção e a recriação onde o tempo não pára..., Trabalho apresentado no seminário temático ST03 "Os afro-brasileiros". VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, São Paulo: 22 a 25 de setembro de 1998. Mimeo, pp. 23.

125 Nesse sentido, quando os militantes resgatam suas “origens” ecológicas eles as redirecionam para uma crítica romântica aos nefastos efeitos catastróficos da civilização industrial, a saber, a destruição do equilíbrio ecológico. De fato, houve uma profunda reinvenção das comidas dos orixás, das folhas utilizadas nos rituais, porém, uma relação de veneração e preservação dos elementos naturais está presente nos candomblés desses militantes,. Essa evidência identifica esse momento relevante de construção das associações feita pelos militantes. M. Löwy, em um de seus recentes artigos100, afirma que a esquerda contemporânea e o marxismo têm como desafio pensar os novos movimentos que surgiram no século XX, dentre eles a luta ecológica. Para Löwy, essa luta não é separada da luta pelo socialismo, pelo contrário, é elemento estratégico para se pensar as transformações necessárias na sociedade capitalista. Dentro do PT, os sujeitos investigados não se abstêm desta discussão. Pois além de se defenderem dos ataques de outras denominações religiosas, eles, em alguns momentos, se deparam com críticas vindas da própria esquerda e do movimento ecológico. Acusandoos de práticas anti-ecológicas como, “matança de animais” e “poluição de florestas através de Ebós”. Por ocasião da Rio-92 O CENARAB, junto com Mãe Beata, realizaram várias conferências e escreveram um documento a respeito da “natureza ecológica do candomblé”101. Vejamos algumas afirmações sobre a construção de associações entre luta ecológica, vinculada à crítica ao sistema capitalista e a “natureza ecológica da visão de mundo do candomblé”: “A estrutura da sociedade brasileira caracteriza-se por sua diversidade cultural, atualmente constituída ao lado do sistema democrático burguês em construção. (...) as religiões afro-brasileiras têm sofrido ataques injustificados de setores voltados para as 100 LÖWY, M. Por um marxismo crítico. Cadernos da Tendência Democracia Socialista do PT, 1999. Mimeo. 101 Cenarab. Idem. Junho/1992.

126 questões atuais sobre preservação do meio ambiente, sendo classificadas como depredadoras, acusação esta motivada pela presença das práticas de sacrifício animal e do depósito de oferendas em áreas verdes. Tais práticas são então encaradas em si mesmas, sem

ligação

com

os

aspectos

culturais-religiosos

que

as

fundamentam. A

tradição

religiosa

afro-brasileira

fundamenta-se

numa

cosmovisão, onde homem e natureza se solidarizam, intermediados pela esfera do sagrado. Isto difere dos atuais discursos ecológicos, que

se

baseiam

numa

perspectiva

ora

utilitarista,

ora

funcionalista.”102 Esse documento escrito pelos coordenadores do CENERAB, entre outros, inspirou as intervenções e participação ativa de Mãe Beata na Rio-92. Mãe Beata participou de eventos, conferências, palestras, nas quais demonstrava “todos os fundamentos cosmológicos do candomblé”103. Afirmava sua natureza ecológica, no sentido de que era inconcebível pensar em essência humana sem natureza. E que os discursos acusadores ao candomblé demonstravam uma má fé, mesmo dos ecologistas, e também um preconceito religioso e racial. Em várias conferências da Rio-92, o CENARAB e Mãe Beata, afirmavam que o que se estava em discussão era a contraposição de duas concepções de ecologismo, diversas de um lado, da proposta burguesa de preservação de “nichos ecológicos”, fragmentados, separados da artificialidade urbana, que para os afro-brasileiros é hipócrita e; de outro lado, “uma visão de mundo de matriz africana que interage com a natureza, onde esta última é elemento sagrado, constitutivo do humano”. Reafirmando esta concepção ecológica, alguns anos mais tarde, em 1994, Jorge Carneiro, escreve um artigo, para a Revista Teoria e Debate do PT:

102 Cenarab. Ibidem. Junho/1992. Pp. 2. 103 Mãe Beata foi a coordenadora dos trabalhos na Tenda “Planeta Fêmea” ECO-92

127 “Apesar dos constantes ataques desferidos pela cultura oficial, afirmamos o caráter extremamente ecológico dessa cosmovisão, e sua contribuição para a conservação da natureza e a conquista da paz. (...) O exercício da fé nos orixás exige uma relação estreita com o meio ambiente, indispensável nas práticas litúrgicas. KOSI EWE, KOSI ORIXÁ, o orixá está onde está a natureza. Esta visão enfatiza o respeito pela natureza, reforçando a necessidade de um equilíbrio entre ação humana e a utilização das fontes naturais.”104 Mais adiante Jorge Carneiro afirma: “Como dizia em seus ensinamentos a saudosa Mãe Aninha: ‘violência à natureza é violência a orixá! Não se tira uma folha seca de uma árvore sem precisar, é o mesmo que matar uma pessoa. Alguém gosta de perder um braço, um olho, um pé? Por que arrancam uma folha e jogam fora? O candomblé é natureza viva, não há culto a orixá sem terra, mato, rio, trovão, raio, mar...tudo isso tem dono.”105 Num seminário do PT, em fevereiro de 1999, Jorge Carneiro, em uma de suas falas afirma: “A nossa perspectiva é uma visão integradora natureza-homem, daí a nossa profunda visão ecológica, em contraposição radical com o capitalismo que, com sua sede de lucros, destrói nosso planeta.” O aspecto interessante desse “resgate ecológico” dos militantes, é que eles redimensionam a relação que as culturas africanas supostamente tinham com a natureza, e a transformam num discurso ecológico moderno, ou seja, tomam elementos pretéritos e os 104 CARNEIRO, J. Idem. 1995. Pp. 4. 105 CARNEIRO, J. Ibidem, 1995. Pp. 4.

128 projetam no futuro, na utopia, entretanto, eles sabem que não é possível, nem desejável, retornar ao passado mítico, mas esse passado por sua vez, se transforma em uma crítica aos processos de modernização, industrialização e desenvolvimento do capitalismo. Enfim, eles apropriam-se de elementos culturais considerados pela literatura como “pré-modernos”, para fazer as mesmas críticas que faz o ecologismo moderno.

4.4 - O feminismo Se o elemento ecológico demonstra um componente de como os militantes constroem suas identidades, a questão do feminismo não é menos relevante. O que se constrói dessa vez é uma aproximação entre o “papel histórico que a mulher negra teve na construção dos candomblés no Brasil”106 e a luta pela emancipação da mulher na sociedade machista e capitalista. Desde o 1º Congresso do PT, em novembro de 1991, quando o partido deliberou a participação de no mínimo 30% de mulheres na direção do partido, a discussão sobre a condição da mulher, na sociedade capitalista, vem sendo amplamente debatida. Atualmente, a discussão sobre a condição de gênero e do feminismo é parte relevante na construção do Partido. Faz parte da sua estratégia política a combinação da luta feminista com o projeto socialista. Evidentemente, os militantes de nossa investigação também não se abstêm desta discussão. E aqui se destacam as elaborações de Jorge Carneiro e principalmente de Lúcia e Mãe Beata, apesar desta última militar menos dentro do partido. Mãe Beata, desde a fundação de seu terreiro em 1985, fez de sua comunidade, um espaço de participação política, articulado com vários movimentos. Pois o objetivo era, em suas palavras, “a conscientização política das mulheres negras”. Com o intuito de levar adiante esse objetivo, participou de vários eventos ligado à questão de gênero e da luta feminista como: em novembro de 1988, 1º encontro nacional de mulheres negras, participando como mentora espiritual; organizou o 2º e 3º encontro de mulheres da periferia 106 CARNEIRO, J. Ibidem, 1995. Pp. 4.

129 em sua comunidade, em maio de 1989 e outubro de 1991 respectivamente; em março de 1992 foi palestrante de um ciclo de debates sobre Mulher Negra e Ecologia na ECO-92; em 1994 foi nomeada conselheira do CEDIM – Conselho Estadual dos Direitos da Mulher –RJ. Segundo Mãe Beata, a participação nesses eventos representava, para ela, a necessidade de divulgar a visão de mundo das negras africanas: “A visão européia é sempre mais divulgada. Na visão do mundo negro africano, a figura feminina tem a mesma importância da masculina: os orixás femininos, por exemplo. Não há submissão, mas um completa o outro”. Ou ainda: “a lógica do discurso feminino europeu nos manda repetir que somos mulher, pobre e negra. Essa é uma discriminação porque a mulher é sempre mulher: não existe isso de ser negro ou pobre. Sou contra tudo que divide, porque discrimina. Todos estamos no mesmo barco”. Para Mãe Beata, ser mulher e Yalorixá é lutar contra todos os tipos de discriminação: “quero deixar claro que a vida de uma Yalorixá não deve se resumir à casa de terreiro. Ela deve realizar trabalhos sociais, culturais, de conscientização da nossa cultura e religião. É isso o que eu procuro fazer.” Um dos pontos que Mãe Beata destaca, nesta discussão sobre a mulher negra, é o processo de esterilização de mulheres que ocorre na Baixada Fluminense. Em 1996 a organização não governamental CRIOLA homenageou Mãe Beata, num encarte sobre a mulher negra: “(...) ela não se contentou em apenas cuidar dos seus quatro filhos, sete netos, um bisneto e dezenas de filhos de santo, e partiu para fazer

130 de sua tarefa divina um compromisso com os excluídos(...) Beatriz, também tem sido uma mulher negra preocupada como outras mulheres negras, contribuindo com a sua organização através da participação em fóruns, seminários e encontros dos movimentos de mulheres negras, feministas, religiosos e negro”107. A peculiaridade de Mãe Beata não reside no fato, simplesmente, de participar e ser engajada politicamente, na luta feminista das mulheres negras do Rio de Janeiro, mas pelo fato de tentar se basear, nessa luta, nos “fundamentos cosmológicos da tradição dos orixás”. Vejamos o que afirmou Mãe Beata quando ouviu a história inventada por Lúcia, sobre o exemplo de Oxum como feminista: “Eu não vejo que só Oxum seja feminista ou que ela seja a mais feminista. Oxum é muito potente porque ela há o segredo dos búzios, teve esse poder de Exú. Porém existem outros orixás que são muito poderosas, como Yansã, Yemanjá, Obá, etc., que para mim demonstra como na vida as mulheres têm importância, não se pode discriminar as mulheres dizendo que somos frágeis. Não, é também por causa das mulheres que a vida se reproduz, se cria Axé”. Como bem afirmou Jorge Carneiro, em um de seus artigos para a revista Teoria e Debate do PT: “A mulher negra teve e tem um papel fundamental na manutenção do Axé, isto é, da tradição de orixá no Brasil. A mulher é representada pela cabaça que contem e é contida, gera filhos, mas que ao mesmo tempo administra energia e força para a comunidade”. “(...) Desde o

107 Cadernos CRIOLA. Encarte especial mulher negra yabá, Rio de Janeiro: Ano 2, n. 4, julho 1996.

131 seu estabelecimento no Brasil, as principais casas de candomblé sempre foram dirigidas por mulheres”108. De fato, a pesquisa sobre a história das mães de santo no Brasil, confirma que muitas delas se destacaram no desempenho de suas funções e, em determinados momentos históricos, foram perseguidas e até presas pela polícia. Como disse Mãe Beata num desses encontros de mulheres negras: “Com toda a colonização, toda opressão, a nossa cultura não acabou. Ela deixou uma Beata de Yemanjá, deixou uma Olga, Dona Senhora, que eu muito admiro, Dona Stella, deixou uma Menininha do Gantois; tudo isso são forças que não se deixaram dominar, e esta cultura esta aí.” Ainda segundo Jorge Carneiro, “As mulheres negras são as principais responsáveis pela preservação e transmissão dos valores culturais negros expressos nas religiões afro-brasileiras e, por isso, o movimento de mulheres e a teoria feminista não podem ser completos se não resgatar todo histórico destas “detentoras de Axé”. Enfim, o exemplo que ele dá é a figura de Iyá Naso Oka, primeira Mãe de Santo do Brasil, que segundo Jorge, teve um papel decisivo na luta dos afrodescendentes. Mas, em relação a uma discussão mais sistemática sobre a construção de associações entre luta feminista e o papel da mulher na “cosmologia candomblecista”, e sua divulgação no PT, foi Lúcia que mais explicitou essa discussão.

108 CARNEIRO, J. Ibidem, 1995, pp 5.

132 Citando um ITÃ109, Lúcia compara Oxum e as iabás, como um exemplo de feministas. Essa história foi reproduzida num texto feito por ela para

o Coletivo de

Combate ao Racismo do PT-NI, com o título “Universo feminino na tradição dos orixás”, e discutida no debate, também no PT-NI, no dia 10 de março de 1999, sobre “O Universo feminino na tradição dos orixás”. Esse debate fazia parte dos eventos do partido, em comemoração ao dia internacional de luta das mulheres – o 8 de março. Vejam o que ela escreveu no texto: “Já de algum tempo, tornaram-se quase freqüentes as discussões no interior do partido, com belíssimas intervenções sobre a questão do papel da mulher na sociedade: o papel ocupado e o papel desejado. As vezes fico me perguntando se não devíamos, de forma profunda, Ter um olhar dirigido com a simplicidade da curiosidade dos que procuram algo além. Dirigir um olhar para as culturas dos candomblés, onde mulher ocupa o espaço de cidadã plena, espaço este que consta dos primórdios de nossa existência de fé, e isto pode ser constatado através de relatos da história dos orixás, quando Obatalá ( força masculina ) e Oduduá ( força feminina ), dividem entre si o ato de criação do mundo. Podemos nos deleitar nas narrativas sobre o poder de Oxum, orixá da beleza, protetora do útero, mas que não resume seu poder à esfera destes dotes, secularmente aliado à figura feminina de mulher frágil. Oxum nos mostra o poder da mulher geradora e participativa(...). (...) se pararmos para observar a atuação das sacerdotisas das religiões afro-brasileiras, encontraremos comunidades de terreiro sendo dirigidas pelas chamadas mães de santo, mulheres que aglutinam em torno de si todo o coletivo religioso e que acumulam não só o papel de zeladora espiritual, mas que também são conselheiras, confidentes, verdadeiras líderes comunitárias, que tem sua voz ouvida e respeitada 109 Aquele citado no ponto 2 deste capítulo

133 influenciando o grupo, sendo que este exercício de poder se dá sem autoritarismo, já que uma casa de santo gira em torno das tradições legadas a nós por nossos ancestrais(...)”. “Precisamos estar atentos à esta parte da cultura do povo negro, pois na simplicidade da tradição oral, nossos ancestrais nos deixaram diversas lições de vida, concretizados nas práticas das comunidades de terreiro, que com certeza, quem leu um pouco sobre humanismo, feminismo ou socialismo, pode entender perfeitamente, e os que não leram, mas convivem em uma casa de Axé, praticam por princípio de fé”. Entretanto, encontram-se por exemplo, no terreiro de Jorge Carneiro e Mãe Beata, divisões de tarefas comuns aos papéis impostos para homens e mulheres. Ou seja, as mulheres em alguns rituais fazem tarefas culinárias, enquanto os homens, outras tarefas que exigem a força física. Apesar das mulheres serem a maioria numericamente, elas ainda se restringem às tarefas domésticas, porém como já foi dito, isso não inibe os militantes de recriarem um suposta igualdade de gênero no candomblé. Na verdade, se existem divisões de tarefas dentro dos terreiros, o que os militantes teorizam é o fato de as mulheres serem maioria e comandarem os principais terreiros existentes. Segundo eles, ser “dirigente de um terreiro não é uma tarefa fácil”, por isso, ocorre a invenção de uma analogia entre feminismo e o papel da mulher no candomblé. Mas, o curioso é que no terreiro de Mãe Beata, apesar dela ser a dirigente, só os homens fazem todas as funções rituais e cotidianas, as quais, na sociedade mais abrangente, as mulheres não fazem. Ou seja, se reproduz o que existe na sociedade machista; os rigorosos papéis de homens e mulheres.

134 4.5 – Crítica à prática das esquerdas Nos pontos anteriores acreditamos ter ficado claro como os militantes operam a reinterpretação de elementos religiosos e as construções de identidade, baseadas em algumas formas de apropriação política, da chamada cultural tradicional. Entretanto, para entender melhor essas reinterpretações, é necessário identificar com quem eles estão dialogando e com quem estão se diferenciando. Stuart Hall, discutindo a noção de identidade na globalização, afirma que: “Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. (...) Esse processo é, as vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade para uma política de diferença”.110 A redefinição do conceito de Axé, a reinterpretação-invenção das histórias dos orixás e a politização do papel da mulher no candomblé, ilustraram a política de identidade, construída pelos militantes, mas além disso, na verdade, esta política dialoga diretamente com a militância petista, na qual eles fazem questão de se diferenciarem. Escrevendo sobre o candomblé, em fevereiro de 1999, Jorge Carneiro afirmava: “Os elementos apontados acima representam um pouco do que o nosso povo é capaz na construção de um projeto alternativo do povo negro. Somos sujeitos participantes legítimos na construção nacional. Em vários momentos podemos identificar essa intenção tais como: Palmares e vários quilombos, Canudos, a Revolta dos Malês, A revolta dos Búzios, as comunidades de terreiro, as escolas de Samba, os Afoxés, a capoeira, etc.

110 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. Pp. 14.

135 A esquerda no Brasil está desafiada a conhecer o seu povo e a sua história, em particular a história e a trajetória dos afrodescendentes no Brasil. A gente só tem capacidade de transformar aquilo que conhece. De certa forma a esquerda brasileira reproduz o preconceito, o estereótipo, a discriminação em relação ao povo negro. Acreditamos que essa relação se dá muito em função de um condicionamento ideológico. Mesmo estando na esquerda e acreditando no socialismo muitos dos nossos companheiros adotam posturas e comportamentos que reproduzem a ideologia racista entre nós. São questões sérias para serem debatidas entre nós, isto é, no conjunto da esquerda. Outra crítica que fazemos a esquerda e o seu condicionamento e de certa forma a sua visão prisioneira em relação ao eurocentrismo. Com isso desqualificando toda e qualquer contribuição na luta pelo fim das opressões. A esquerda nunca deu a devida importância a luta do povo negro em nosso pais e as formas de como essas lutas se processaram. As vezes tem a mesma visão da ideologia dominante achando que somos fundamentalmente um grande elemento folclórico. Não percebem que na nossa perspectiva fazemos a nossa luta cantando, sambando, batendo tambor, fazendo poesia, seduzindo, sobretudo através do corpo. É outra forma de fazer política e acreditar na transformação geral da sociedade. Fica a crítica e o questionamento a esquerda e gostaríamos de refletir essas questões com o conjunto da esquerda até porque também fazemos parte dela e somos revolucionários.”111

111 CARNEIRO, J. Filhos de Zumbi, Filhos de Yia Nasso. 1999. Mimeo. Pp. 2.

136 No III encontro de Negros e negras do PT-RJ, em 21 de junho de 1997, Jorge Carneiro fez a seguinte intervenção: “A esquerda também reproduz muito a ideologia e a visão de mundo do dominador e, quando o vereador Gilberto Palmares112 falou da questão das religiões afros, temos que lembrar que o PT também tratou a relação com a comunidade afro de forma desrespeitosa, preconceituosa e discriminante. Neste sentido, nós do PT, reproduzimos muito o que a burguesia coloca. Por isso nós temos que pensar nesses aspectos (...) (...) precisamos conhecer nossa história, penso que o exemplo das religiões afro, que as mães de santo deram e dão, na construção de identidades, mantendo ainda uma cultura viva no Brasil, deve ser pensada pela esquerda brasileira.” Jorge Carneiro quando fala da pratica discriminadora do PT, cita o evento realizado na campanha presidencial de 1994, quando setores do partido, ligados a Benedita da Silva, não concordaram em realizar um diálogo entre o presidenciável Lula e uma comunidade de terreiro na Baixada Fluminense. Vejam o relato de um dirigente do PT (Augusto Tadeu – amigo de Jorge Carneiro) sobre essa polemica na coordenação de campanha de 1994: “Durante a campanha de Lula e Bittar, minha esposa Leila, participava da coordenação regional da campanha, ali os membros discutiam a agenda de Lula no RJ. Numa destas reuniões, começaram a discutir e programar as visitas que Lula deveria fazer aos bispos e pastores das igrejas. Foi então que Leila fez uma intervenção dizendo que existiam militantes importantes que pertenciam ao candomblé. Propondo assim uma visita também

137 num terreiro. Porém o setor representado por Benedita da Silva argumentou que era danoso para a campanha esta visita, porque poderia tirar voto de outras religiões a Lula. Foi então que explodiu uma grande polêmica: de um lado Leila, eu, Jorge e Ivanir que dizíamos que a campanha não seria prejudicada por este motivo, mas que se usássemos este argumento, seria um claro sinal de preconceito racial e religioso. Do outro lado Benedita da Silva e seus assessores argumentavam, que os pastores retirariam seus apoios a Lula. Ao final de uma grande discussão que se alongou até às 3 da manhã, venceu a proposta de fazer um evento também num terreiro de candomblé." Mas a crítica mais contundente vem de um artigo de Jorge Carneiro, O Samba de Roda e a militância Socialista, escrito em julho de 1998: “ (...) a esquerda, na sua maioria, não considera relevante também a questão negra e étnica, pois afirma que a prioridade é o confronto entre as classes sociais. Sem contar o fato de que a maioria esmagadora dos cursos de formação política, iniciam a “história da esquerda no Brasil” a partir do início do século XX, esquecendo todo o patrimônio de lutas e resistência do povo negro escravizado contra a política colonialista do capitalismo em ascensão . Na verdade, quando se afirma isto ou quando se realizam estes cursos, conclui-se que, com o desaparecimento da opressão de classe, desaparecem consequentemente as outras opressões (de gênero, de raça, de geração e de opção sexual). Isto demonstra a incapacidade da esquerda de entender que a burguesia exercita a sua hegemonia além da dimensão de classe. A esquerda não compreende que a discriminação racial, de opção sexual, de geração e de gênero, 112 Vereador do PT na cidade do Rio de Janeiro.

138 sociológica e antropologicamente, não é causada pela simples dominação econômica de classe.” Esse texto faz referências à cultura negra, à religiosidade, seu potencial transformador e baseado em princípios “radicalmente democráticos”.113 O que está em discussão, nestas declarações, são as formas nas quais se negociam com a adversidade, para obter ganhos políticos, modelando ao mesmo tempo uma identidade. Não é por acaso que Jorge Carneiro afirma que “A esquerda no Brasil está desafiada a conhecer o seu povo e a sua história, em particular a história e a trajetória dos afrodescendentes no Brasil”, pois o que ele coloca é a afirmação de sua diversidade para uma crítica ao “eurocentrismo” do conjunto da esquerda. Ou seja, cria uma política de diferença, afirmando que “bater tambor” é “outra forma de fazer política”. Ao se levar em conta que o Movimento Negro tem como tradição erigir e inventar símbolos de luta anti-racista e de resistência negra no Brasil, aqui se opera uma verdadeira reconstrução de símbolos sobre símbolos, construídos pelos africanos e seus descendentes no Brasil. O contato cultural entre esses militantes e suas condições de iniciados ao candomblé revela aquilo que M. Canevacci afirma: “o contexto do contato cultural deve ser caracterizado pela reinterpretação ativa, pelas recombinações desconcertantes e pelas revitalizações móveis”.114 Enfim, as associações construídas vão no sentido, para esses militantes, de produzir novas elaborações políticas. Resgatando uma tradição para legitimar um perfil de militância socialista, eles entram em contradição com o K. Marx de 18 brumário, quando diz que “a tradição de todas as gerações mortas só oprime o cérebro dos vivos”115. Não deve perder de vista que Marx é também a referência identitária de Jorge Carneiro.

113 CARNEIRO, J. Samba de Roda e a Militância Socialista. Rio de Janeiro: 1999, Mimeo. 114 CANEVACCI, M. ibidem. 1995. Pp. 11. 115 MARX, K. “O 18 Brumário de Luiz Bonaparte”. In: MARX, K. e ENGELS, F. Textos. Vol. 3, São Paulo: Alfaômega, 1975. Pp. 198.

139 Em relação aos outros militantes, eles não fazem a mesma crítica contundente de Jorge, entretanto voltado-se as declarações de PC e Lúcia constata-se que no texto sobre a “Falta de Axé no PT assinado pelos dois, há críticas semelhantes as de Jorge. Na verdade, o que eles realizam é uma tentativa de construir espaços e poder de influência sobre outros petistas, pois não possuem os recursos tradicionais que a esquerda tem (conhecimento teórico do marxismo, leituras permanentes de autores socialistas, linguagem rebuscada e saber acadêmico). Isso se evidencia na trajetória dos três militantes, pois jamais fizeram cursos de formação política no PT, entraram no partido lendo somente as resoluções dos encontros e o estatuto e, eles não têm o hábito de escrever documentos teóricos sobre construção partidária ou conjuntura nacional. Entretanto, a utilização de traços culturais do candomblé, não serve somente por causa dos poucos espaços, que os militantes possuem dentro do PT, mas também das manifestações de racismo que sofrem dentro do partido. No início desse tópico, falou-se da noção de identidade que se transforma de acordo com a forma que o sujeito é interpelado ou representado. Os militantes aqui investigados, constroem uma política de diferença justamente por causa das discriminações que ocorrem sobre eles. Quando Jorge Carneiro, Lúcia e PC afirmam no documento, “Falta Axé na Política Petista”, que o Axé é uma concepção coletiva, que constrói solidariedade de grupo, e, além disso, que no candomblé “não existe o princípio da exclusão, não se acumulam bens e sim pessoas e que, aqui está o conflito com o padrão dominante”, eles estão se contrapondo ao que observamos no dia a dia de suas militâncias: a falta de espaços políticos pelo fato de serem negros(as). Jorge Carneiro reclama por diversas vezes em reuniões do PT, na Secretaria de Combate ao Racismo, que suas discussões sobre negros e negras, em sua tendência, a DS, nunca é discutida. Mostra que em vários documentos para os encontros do PT, não se escreve nenhuma linha sobre a questão racial, que por várias vezes nunca foi chamado para discutir com a DS a questão racial.

140 Com PC ocorrem fatos semelhantes. Ele relata que no mandato de Jurema Batista, só era chamado para discutir a questão racial para escrever um panfleto ou outro de campanha eleitoral, e nunca para discussões de conjuntura política, construção partidária e outros. Ele se sentia usado e não valorizado, enquanto militante do PT. No caso de Lúcia, ocorreram dois fatos singulares. O Primeiro foi quando propôs ao partido investir financeiramente no coletivo municipal do PT de combate ao racismo, de Nova Iguaçu, a direção do Partido negou ajuda, entretanto, alguns meses depois, quando o vereador Carlos Ferreira, do PT-NI, propôs que o partido investisse financeiramente numa festa de lançamento do núcleo de evangélicos do PT, a direção liberou a verba. Lúcia conta que ficou muito indignada. Afirma que esse fato para ela demonstrou a discriminação e o racismo que sofre, tanto ela como seus parceiros, na questão racial. O segundo fato foi mais grave. No ano de 1999 ela foi estuprada quando se encaminhava para uma reunião do PT de Nova Iguaçu. Desesperada se dirigiu a sede do Partido para pedir ajuda mas não obteve nenhum apoio de companheiros que achava que poderiam lhe dar uma assistência. Este fato para ela demonstrou a falta de solidariedade dentro do PT local. Ela caracteriza isto como racismo por que, segundo seu relato, outras mulheres do PT já sofreram agressões de seus maridos e quando essas mesmas mulheres ( Brancas ) denunciaram ao Partido, isto foi motivo de grandes discussões nas reuniões e de conseqüência foi acionada a comissão de ética do partido para investigar os militantes agressores. Portanto, quando se faz a crítica às esquerdas, os militantes tentam, de uma certa forma, reagir com seus próprios recursos culturais, criando uma política de diferença, de acordo com a forma como são interpelados. Os espaços que não possuem dentro do PT provém, num certo sentido, de uma discriminação racial. Ou seja, dos lugares onde dominam recursos simbólicos – seus espaçõs religiosos – eles os utilizam para reverter positivamente, à ocupação de mais espaços políticos dentro do PT e na militância em geral. Nesses, seus companheiros de militância desconhecem a “cosmologia” do candomblé, as “raízes” africanas e “milenares”, enfim o Axé. A partir daqui, acreditam eles, é possível construir um movimento político, antiracista e socialista, que não os exclua.

141

4.6 – A busca das raízes africanas Quando vimos a história de vida de Jorge Carneiro percebemos o desenvolvimento de sua consciência racial. Jorge quando era jovem não se assumia enquanto negro, ao longo de sua trajetória ele se inicia no candomblé e entra para o movimento negro, incorporando um discurso e uma prática política que prioriza o movimento negro e a construção de sua identidade racial. Neste contexto ele cria uma diferenciação que, como vimos, produz uma dura crítica a esquerda no qual participa, dentro e fora do PT. Mas essa crítica, ou produção de uma política da diferença, expressa no seu artigo “Samba de roda e a militância socialista” vem acompanhado de uma auto-afirmação como descendente de africano, herdeiro de uma cultura original negra-africana. Atribuindo isto a sua identidade religiosa ele se identifica com uma das teses expressas no congresso do MNU de 1998. No capítulo três, quando ficaram evidentes aqueles quatro momentos que permitiram contextualizar a construção das identidades dos militantes, afirmou-se que o quarto momento - a elaboração de uma nova tática de luta anti-racista no MNU denominada Raça e Território – era o mais elaborado, no sentido que aqui se observa nitidamente, o esforço de alguns militantes construírem associações entre dois domínios socioculturais diversos. Essas discussões, surgidas a partir de uma reorientação tática de uma entidade negra em nível nacional, proporcionaram elementos relevantes de uma verdadeira construção e reinvenção identitária. Aqui será descrito ainda mais o significado dessas discussões, para a explicitação dessas análises, que não se limita somente no território da investigação – o Rio de Janeiro, mas toma dimensões inclusive nacionais. A tese Raça e Território, lançada no XII congresso do MNU, criou uma profunda polêmica dentro da entidade. Pois, como afirmam os defensores da tese:

142 “Mesmo nos EUA, e apesar das políticas afirmativas, a diferença entre salário – hora de jovens negros e brancos, só vem aumentando em favor dos jovens brancos. Até mesmo as políticas de quotas vem sendo neutralizadas pelos efeitos da reestruturação produtiva no mundo do trabalho”.116 Essa afirmação é uma crítica aberta a teoria Raça e Classe, que defende como tática de luta anti-racista, a defesa das políticas de ação afirmativa. Por que: “Não temos que fazer o mesmo movimento sindical, estudantil, de moradia e outros, como fazem os brancos”... “O MNU hoje, não tem mais como prioridade dar linha para organizar os negros nos partidos, nos movimentos sociais. O MNU tem como prioridade organizar o negro onde vive, construir suas formas organizativas, construir o seu movimento e a partir daí interferir nos partidos, nos movimentos sociais”. “Nós negros-africanos temos que conquistar o nosso território. Onde vivemos, onde criamos, onde trabalhamos, onde moramos, onde produzimos, estudamos, oramos e brincamos. Não nos interessa o poder de direção que um militante exerce num determinado espaço, mas sobre qual projeto ele está centralizado. Qual a sua visão de mundo? Quais são suas prioridades? Quem são seus aliados?” Segundo José Carlos dos Anjos117, angolano e militante do MNU, essa proposta de políticas para MNU, “se baseia em análises históricas da condição dos africanos e descendentes de africanos na diáspora”. 116 Tese apresentada no VI Encontro Nacional de Negras e negros/PT, ibidem, 1999, mimeo. Pp. 7. 117 Doutor em Antropologia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Sul.

143 Pois, quando do início do processo de colonização da África, segundo José Carlos, o “branco europeu interrompeu um processo civilizatório, a existência de comunidades autônomas africanas”118. E, segundo os defensores da tese, a resistência dos “negros na diáspora” demonstrou todo um esforço de reterritorialização de seu ser africano, suas culturas e cosmologias. Eles dão exemplo disso, reafirmando a história dos quilombos, dos candomblés, etc. A política anti-racista, dos defensores dessa tese, os leva a construir, fortalecer e incentivar a criação de espaços e territórios de resistência, dando continuidade ao processo civilizatório interrompido pelos europeus e reafirmando sua autonomia enquanto grupo diferenciado. Essas elaborações influenciaram Jorge Carneiro e Lúcia Barros. Entretanto, vários militantes de outros estados e militantes do MNU, começaram um relacionamento político com esses dois militantes do RJ. Alguns deles, que se encontram em MG, RS, SP e BA, estão divulgando os textos e documentos de Jorge Carneiro, convidando-o para eventos e ajudando a construir uma tese para o próximo congresso do MNU. É nesse movimento que se identifica a construção das associações entre utopia socialista e o candomblé – “que tem matrizes africanas”. Pois, vejamos o que afirmou um militante do PT de SP, que é ogâ de Ogum, amigo de Jorge Carneiro, no encontro de formação política da DS, em fevereiro de 1999: “As comunidades de terreiro são territórios não institucionalizados, espaços fora da lógica dominante capitalista e, portanto, referências de resistência, luta e modelo de uma nova sociedade”. Jorge Carneiro escreveu, na época, uma posição semelhante, que teve a concordância de militantes do RS e MG – que também são iniciados: “A construção do socialismo no Brasil passa também pelo projeto político do povo negro que, sem dúvida alguma leva em consideração 118 Kilombo. Ibidem. 1998, Pp. 7.

144 a importância dos aspectos pluriétnicos e multicultural de nosso povo. A defesa dessas culturas [ citando explicitamente o candomblé ], a valorização de sua visão de mundo, da auto-estima afrodescendente, pode se caracterizar inclusive como um dos pontos principais do programa estratégico da esquerda. Pois estas bandeiras são incompatíveis com a estrutura ideológica, política e social, de exclusão, dominante no Brasil.”119 O que nos chama atenção é o fato de inventarem novas noções no Movimento Negro: “negro na diáspora” ou “negros africanos na diáspora”. Não é novidade o fato de o Movimento Negro reivindicar uma raiz para construir uma “política da diferença”. Não é novidade também em termos de análise da história do candomblé. Dantas, analisando a construção social da pureza nagô, afirma que: “(...) a África conota não apenas a idéia de terra mãe, mas também se constitui num ponto de referência e identidade.” “(...) o mito de africanidade, na medida em que o texto apresentado como um simples discurso sobre o passado termina agindo sobre ele, operando reconstruções, evocando identidades, realizando enfim um trabalho de produção de sentido que visa legitimar ações do presente. Essa legitimação pela África se torna possível na medida em que existe na sociedade mais ampla um espaço em que o africano é valorizado”.120 Porém, mais do que isso, o Movimento Negro reinventa uma África no Brasil, a dita africanização que primeiro foi promovida pelo contato continuado com africanos (principalmente estudantes que, a partir da década de 70, vêm fazer sua formação no Brasil e aqui redescobrem a importância das crenças nas divindades de seus ancestrais) e depois, pelo processo de de-sincretização, promovido por algumas sacerdotisas dos candomblés da Bahia.

119 CARNEIRO, J. idem. 1999. Pp. 3. 120 DANTAS, B.G. ibidem. 1988. Pp. 200.

145 Mas essa busca de uma raiz africana tem características discursivas curiosas. Uma delas é a construção – feita também nos terreiros de candomblé desses militantes, por uma série de iniciados – do conceito de ancestralidade. Esta ressignificação de uma origem, para esses militantes, significa a construção de uma nova cidadania para “o povo negro” e uma associação com a luta pelo socialismo. Pois como afirma Jorge Carneiro: “O medo da cultura negra na verdade representa o medo de uma concepção que prega a autonomia, em que o Orí ( cabeça ) é o mais importante. O candomblé é fundamentalmente um culto à cabeça, voltado para o desenvolvimento pleno da pessoa, é autoconhecimento, e a ideologia dominante não educa nesta perspectiva. O Borí ( alimentar a cabeça ) é um ritual importante que significa o desenvolvimento do Axé, é alimentar as próprias energias. Axé, a força vital que move o mundo. Desenvolver o Axé é sobretudo pensar em coletividade, contrapondo-se à visão capitalista que prega o individualismo, a competição. Os iniciados ao candomblé são extensão da família africana no Brasil. Na iniciação se passa a fazer parte dessa família, que na sua concepção é extensiva, não tem preconceito, propiciando a construção de uma identidade que pode ser partilhada por negros e brancos de qualquer origem e, pelo processo iniciático todos tornamse irmãos, ao introjetarem os mesmos padrões simbólicos. Os terreiros representam espaços de liberdade, territórios não institucionalizados

pela

lógica

sociocultural

dominante.

São

comunidades que tomam a forma simbólica africana, mantendo vários aspectos da cultura

Nagô

com o culto aos Orixás ( forças da

natureza ) e o culto dos Egúns ( antepassados ). No Brasil esta estrutura foi sintetizada e reelaborada”.

146 Ao mesmo tempo em que se reconhece a reelaboração dos cultos africanos no Brasil, se afirma que o “candomblé é a extensão da família africana no Brasil”. Ao mesmo tempo em que se critica os padrões preconceituosos da esquerda para com os negros e “suas culturas” – como vimos no ponto anterior – eles reinventam concepções políticas a partir de uma dimensão religiosa. Ou seja, os militantes empregam velhos esquemas, velhas imagens, que todavia no novo contexto, se revestem de um diverso significado estratégico. Reafirmar a noção de “negros africanos na diáspora” e daí conectá-lo a sua religiosidade, é utilizar “a África como um banco de símbolos, sacados de forma criativa”. 121

Abandonando os discursos ressentidos da “raça negra”, no sentido de lamentação da

condição de oprimido, para afirmar uma identidade autônoma, com outra história, outra origem civilizacional. Tradição aqui significa ao pé da letra, um espaço para irradiação de uma suposta africanidade. A noção de tradicionalismo construída pelos militantes vai ao encontro do que Hobsbawm e Ranger122 afirmam sobre o conceito de tradição, ou seja, elas são reinventadas, tem um caráter fictício, é uma resposta a situações novas que assumem formas, fazendo referência em algum aspecto do passado numa estrutura imóvel e imutável. Aqui se constroem outras significações políticas e religiosas, pois, no tempo, já não existe uma tradição, e no espaço, já não se está na África. Ou seja, uma ressignificação no tempo e no espaço. Modernidade e tradição aqui se interagem em pólos dinâmicos de elaboração e invenção cultural. Das características de cada militante investigado, percebe-se que as invenções identitárias são úteis para a formação de espaços diferenciados de sociabilidade. Ou seja, para enfrentar o preconceito racial, o isolamento político e religioso e a disputa no mercado religioso, eles precisam se afirmar diversos, criar o novo, usar recursos não tradicionais, tanto na esquerda militante quanto no campo religioso afro-brasileiro.

121 SANSONE, L. O local e o global na afro-Bahia contemporânea Trabalho apresentado na XVIII Reunião anual da Anpocs, GT. Relações Raciais e identidade étnica. Caxambu: 23-27 de novembro 1994. 122 HOBSBAWM, E.J. & RANGER, T. ibidem. 1983.

147 Isso se revela, como já foi confirmado, no uso de traços culturais, cuja semelhança com congêneres africanos é apresentada, como prova de legitimidade política na luta contra o racismo, e até na luta pelo socialismo. Em nível ideológico, se apresenta uma africanidade como modelo de culto de resistência, no qual os valores ditos oriundos da África permitem uma forma alternativa de ser, com sinal distintivo de se socializar, de fazer política revolucionária. Por outro lado, a noção de etnia é manipulada pelos militantes que, movidos por interesses pessoais, buscam um espaço próprio e esboça uma resistência e uma nova forma de atuação política e religiosa. Se a noção de etnicidade é relacional, ela assim construída, torna-se operativa em face da presença de outros, nos quais os militantes disputarão fiéis (Mãe Beata) ou outros militantes para suas posições políticas (PC, Jorge Carneiro e Lúcia). Aqui se evidencia um outro elemento, que está por trás das elaborações dos militantes; a necessidade de adquirir mais poder de influência fora da linguagem e das estruturas convencionais da esquerda petista. Aproveitando-se da crise geral de referência das esquerdas, os militantes tentam capitalizar influências, realizando determinados recortes culturais de forma seletiva. Nem tudo é socialista e libertário no candomblé, mas somente alguns elementos. Aproveitam-se do discurso feminista e inventam analogias e associações com o papel da mulher no candomblé; na verdade, não é por esse papel, mas pelo fato de, por serem maioria, realizarem tarefas e funções específicas de homens na sociedade mais abrangente. Aproveitando-se do discurso ecológico eles operam a mesma elaboração. Com relação às histórias de orixás, inventam-se e manipulam-se os mitos como recurso político de referência. Esses recortes não são por acaso, mas obedecem a uma lógica de um contexto histórico, pois se não fosse assim, a hierarquia seria também alvo de invenções de associações e não simplesmente de discurso defensivo quando questionados. Essa lógica se encontra justamente nas atuais debilidades das esquerdas, nos seus atuais pontos fracos: a prática da democracia, a falta de referenciais míticos e a emergência de novos temas no interior da esquerda classista (o feminismo e o ecologismo). Pois, o

148 discurso da classe operária não seria mais abrangente no sentido de explicar todas as formas de opressão existentes. Com esses recortes seletivos, a “cosmologia africana” se transforma em linguagem de autoridade de uma política dentro do PT e do candomblé, para conquistarem mais poder de influência. Por outro lado, nas suas condições de negros, valorizar a África seria uma tentativa de escamotear e combater o preconceito racial, escondendo-se sob o manto da glorificação do africano, tornando esses militantes, sujeitos de sua história. Dantas123, afirma que a exaltação da África foi uma produção intelectual, onde o objetivo era tornar o trabalho intelectual mais popular e os afro-brasileiros mais respeitados pelos poderes constituídos. Para isto, era necessário criar uma certa exaltação do exotismo africano, dando-o maior valor na sociedade, maior autoridade política. No caso dos militantes investigados, de forma semelhante, ou seja, através de uma produção intelectualizada, exaltar a África é propor também uma alternativa à crise das esquerdas e um combate ao racismo e ao capitalismo, conjugados, é claro, com seus interesses pessoais. A religiosidade politizada, através da linguagem, oculta a falta de expressão política que esses militantes têm, a ausência dos recursos ( discursos com citações de teóricos marxistas, formação política, acesso a leituras, etc. ) da esquerda convencional e, no caso de Mãe Beata, se encobre o fato do terreiro dela ser menos antigo nas disputas do mercado religioso do Estado. Jorge, PC e Lúcia deram evidências sobre isso. O primeiro (Jorge) procura, através da sua religiosidade, conquistar um espaço político dentro do PT e de sua tendência. Percebe-se que seus textos são construções de linguagens pouco comuns na esquerda tradicional, daí, podendo resultar, numa credibilidade e conquista de espaço, que somente os intelectuais do PT teriam. Jorge tenta se afirmar como o intelectual desse “novo movimento”, usando inclusive, sua condição de futuro Pai de Santo. O segundo (PC), tendo uma vida marcada pelo preconceito racial, vai seguindo e imitando a trajetória de Jorge, entretanto, sua meta seria muito mais o reconhecimento no MNU e no PT do que ser um intelectual e, além disso, ao contrário do que foi sua vida

149 pessoal, PC tem necessidade de se afirmar pessoalmente perante seus irmãos de santo e perante seus companheiros do MNU. Seu movimento inicial para tal fim, foi quando sai da Umbanda e entra para o Candomblé. A terceira (Lúcia), com uma vida marcada por uma atuação política independente de grupos, tenta conquistar espaços de poder dentro do PT e do Candomblé, tenta influenciar pessoas para suas idéias políticas e concepções religiosas. Seu objetivo é sair do isolamento em que se encontra, tanto em nível pessoal quanto político. Não excluindo aqui o fato de também querer se afirmar como faz PC. Por último Mãe Beata, a qual utilizando-se de seu status de Mãe de Santo, tem por finalidade construir seu nome como “a sacerdotisa de esquerda’, progressista, original, diferente, exótica e que, por isso, consegue arregimentar muitos fiéis nas disputas do mercado religioso afro-brasileiro. Se essas motivações pessoais podem caracterizar aparentemente um movimento político novo, isso é uma questão em aberto. O fato é que pode-se identificar, com o que foi e está sendo realizado até hoje, um embrião em crescimento, um grupo de pessoas (ainda não constituídos enquanto tal) que não obtendo os recursos tradicionais da política de esquerda (capital teórico, leituras acadêmicas, discursos rebuscados, etc.), constroem de fato uma tentativa de construção de novas identidades coletivas, novos meios de combater o racismo, a intolerância religiosa e o capitalismo. Enfim, as associações construídas pelos militantes conduzem à análise de que as noções de identidade não significam a essência de um objeto, dependem ao contrário, das decisões. A identidade é um fato de decisão. E sendo assim, ocorre abandonar a visão essencialista e fixa de identidade. Principalmente, como vimos em M. Agier e S. Hall, no contexto da globalização Nesta ótica, as identidades não existem, mas sim formas diversas de organizar o conceito de identidade. Dito em outros termos, a identidade é sempre de qualquer modo, construída ou inventada. Na visão essencialista, a identidade é garantida na existência preventiva da estrutura e dos confins dos objetos: estruturas e confins estão ali, atrás de

123 DANTAS, B. G. Ibidem. 1988.

150 aparências eventualmente enganáveis e, adotando oportunas formas de pesquisas, podem ser vistas, ilustradas, indicadas. Ao contrário dessa concepção, percebe-se que as identidades, longe de ser um estrato rochoso, ela é construída, em boa parte, com lacunas, buracos, de indeterminações e de potencialidades. Somente assim pode-se entender o processo de construção, associações expostas teoricamente por Agier, Shalins e Clifford. Essas associações demonstram que as identidades não são garantidas a partir de uma base previamente determinada. Um exemplo disso é que na hipótese de se pensar as identidades de forma essencialista, não se compreenderia o porquê de Mãe Beata utilizar a escrita e métodos proselitistas não-tradicionais nas culturas afro-brasileiras. O que ela inaugura, significa o rompimento com uma prática social comum entre os terreiros de candomblé, de manter uma tradição oral. Para Mãe Beata, escrever um livro significa também “fazer expandir o Axé” sem perder de vista as práticas da oralidade. Mãe Beata não pode se fixar nas tradições, pois pode se arriscar à perda de espaço religioso e político, em meio às disputas no mercado religioso de seu território geográfico. Poderia, inclusive, perder a legitimidade enquanto Mãe de Santo. Ela percebe que a tradição precisa se adaptar à modernidade, isso é, às disputas políticas de sobrevivência religiosa.

151

Conclusões No início deste trabalho indaguei a respeito do olhar do conjunto da esquerda – em especial dos militantes do PT – a respeito do fenômeno religioso frente às lutas contra as opressões e pela cidadania. Percebeu-se uma naturalização de opiniões no que diz respeito à Teologia da Libertação e uma resistência em compreender outras matizes religiosas que, através das reelaborações de alguns militantes, tentam se colocar num mesmo patamar de discussão dos teólogos da libertação. Porém, a tarefa de leitura destes militantes socialistas e candomblecistas, que tentam elaborar novas identidades, não é uma tarefa fácil. Aqui se entrelaçam noções e processos históricos muito complexos. Observou-se, nesses militantes, que as práticas identitárias, culturais, religiosas e políticas e seus conteúdos, passam por reelaborações e adaptações frente a um novo contexto histórico de crise da esquerda brasileira. A politização da religiosidade e pertencimento étnico, a ideologização de traços culturais tradicionais se processam no momento em que a globalização tenta moldar todos num mesmo padrão. As identidades viram fluxos contínuos de mudanças, não se encontram paradas no estacionamento da história. O que ocorre é um movimento em construção, portador de conflitos, contradições e lutas pela afirmação do novo. Ou seja, ao mesmo tempo em que se tenta resgatar um tempo mítico, inventando uma associação com um futuro socialista, se percebe que nem todos os parceiros do espaço religioso e político desses militantes, aderem a esse “novo” em construção. A concepção de Axé, por exemplo, nesses militantes é também uma aposta, em que se lança ao possível e não somente o reforço e a manutenção de uma tradição. Isso demonstra que as generalizações realizadas por alguns estudos sócio-antropológicos, de separar os domínios religiosos e políticos, caem por terra, na medida em que alguns militantes afirmam a existência da noção de Axé, como ponto de contradição com o capitalismo.

152 A utopia socialista e os supostos modelos míticos de “origem africana”, são modelos conjugados e afins, que inspiram um discurso e uma prática em direção ao futuro. Como foi dito, os militantes não obtendo todos os recursos que a modernidade oferece para criticá-la, utilizam-se de recursos ditos tradicionais para a crítica da modernidade. Para tal empreendimento, ainda em construção, eles elaboram um terreno comum entre fé religiosa e a política e, por que não dizer, fé utópica. Ou por que não dizer ainda, uma tentativa de reencantar as práticas políticas da esquerda com uma invenção míticoreligiosa. Reapropriação moderna de uma tradição significa aqui o retorno romântico a um tempo que se foi, para construir o que está por vir. Acompanhando o processo histórico, esses militantes abandonam o discurso ressentido da “raça negra” para inventar e abraçar uma identidade étnico-cultural de luta por direitos e de constituição de direitos. Aqui também, o marxismo clássico, os temas socialistas, não servem de forma purificada como inspirador dessas lutas. Mas sim Xangô, Ogum, Oxum, Exú, etc. São eles os inspiradores. A tradição e a África são símbolos norteadores de projetos, de apostas. Mas onde está a tradição desta África? Passados 500 anos, ela já não existe mais na África contemporânea. É evidente que ela se encontra nas reinvenções destes militantes e do movimento negro. O que esses militantes afirmam é que a África, a ancestralidade, não se constitui como um período ultrapassado da vida de um povo, mas uma forma permanente um faz-se, desfaz-se e refaz-se. Ou então, eles mostram que os acontecimentos e histórias “originais” africanas, são reorientados para a ação política que transmitem força e autoridade aos acontecimentos atuais. Aqui, a reinvenção de mitos, tradições e práticas políticas são destinadas a conduzir pensamentos e comportamentos para lidar com realidades modernas. Assim, Oxum torna-se a grande feminista, o Axé portador e condutor de socialismo, a relação do candomblé com a natureza inspiradora de lutas ecológicas, a africanidade uma autoridade equivalente àquela européia e branca, o orixá portador de uma ética correta e, por fim, essas reinvenções se chocam com os pensamentos “dogmáticos” dos parceiros nos espaços políticos do PT. É interessante notar que estas reconstruções de mitos, tradições e práticas tornam-se, para esses militantes, elas mesmas, novos mitos e novas tradições.

153 A partir daí pode-se afirmar que nenhum indivíduo ou sociedade nunca conseguiram construir e manter a própria identidade sob uma forma de esfera compacta e inatacável. “A bem redonda identidade”124 é uma miragem. Se a identidade não é uma esfera compacta e imóvel, se ao invés a identidade é continuamente negociada e, em primeiro lugar com o tempo, isso significa que os contínuos processos de sua formação, formam também processos metabólicos, processos de transformação e de alteração. Se ela é construída, se é uma “ficção”, se impõe a necessidade de colher a lógica de como foi construída. Foi o que se tentou realizar no terceiro capítulo. É naquele contexto, de renovação política da esquerda, representada pelo PT, em relação ao fenômeno da religiosidade, no crescimento do movimento negro e na maior presença das comunidades de candomblé na sociedade brasileira, que permitiram o surgimento dos militantes investigados. Apesar de não se proporem ainda enquanto um coletivo compactamente organizado. Pois, como foi dito, existem reinterpretações diferenciadas dependendo de suas várias modalidades de engajamento, lutas e conflitos com parceiros iniciados ou não no Candomblé. James Clifford, afirma que com a crise do colonialismo e o advento do neocolonialismo, ocorre a emergência de uma pluralidade de sujeitos que querem assumir a própria história e reafirmar a própria diferença em novos modos. Contrariamente às previsões catastróficas projetadas pelos profetas da homologação cultural e daqueles que choram a “destruição dos trópicos”125, o fim da autenticidade das tradições, a perda de identidade e o fim das culturas e da história, a antropologia vê delinear-se um contexto diverso, conflitual, no qual a formação incessante de novas identidades, tradições justapostas e contaminações difusas, apresentam novas possibilidades de existência. Diz Clifford: “uma difusa condição de perda da centralidade num mundo de distintos sistemas de significados”126. Para o Autor, a identidade coletiva hoje – ou seja, a

124 REMOTTI, F. Contro L’identitá. Roma: Laterza, 1996. 125 CANEVACCI, M. idem. 1995 126 CLIFFORD, J. ibidem, 1984. Pp. 198.

154 cultura – é “um processo inventado, híbrido e freqüentemente descontínuo”. “(...) a identidade é conjuntural, não essencial”.127 M. Sahlins também é da mesma opinião, com outras palavras. Falando de um nativo da Nova Guiné, Epeli Hau’ofa, que é também doutor em antropologia pela universidade Nacional da Austrália, relata que os acadêmicos indígenas falam uma língua estrangeira, enquanto as pessoas comuns se esforçam em adaptar seus discursos ancestrais à sua situação corrente: “(...) ao excluir deliberadamente de qualquer discurso sério nossa tradição em transformações, não levamos em conta o fato de que a maior parte das pessoas ainda as usam e as adaptam como instrumentos de sobrevivência”128. Citando Bonnemaison, Sahlins mostra que “hoje a identidade dos povos não emerge como uma ruptura com o passado, mas como continuidade. No entanto não se trata de uma mera repetição do passado; a mobilidade, mesmo circular, ampliou horizontes”.129 E finaliza: “a grande surpresa para os que vêem de fora, sem dúvida, é a capacidade destas sociedades recriar à sua própria imagem a partir de um complexo de diversos padrões conceituais e realidades político-econômicas”.130 Ou seja, para Sahlins, as culturas locais reapropriam de forma moderna as suas tradições, inventando novos significados simbólicos. Essa reapropriação moderna, no caso dos militantes investigados, opera a construção de novos símbolos, mitos, identidades, práticas políticas, associações, etc. Eles representam uma tentativa de construir uma nova prática militante e cultural dentro do PT e do candomblé. Não é certo que poderão ter sucesso, pois os conflitos são variados. Entretanto, eles revelam que as tentativas de compreensão dessas identidades fazem com que os estudos sócio-antropológicos ainda tenham muitos caminhos pela frente. Isso obriga os estudiosos, a se preocuparem sempre com sua atualização, diante dos novos e embaraçantes fenômenos que surgirão no novo século.

127 CLIFFORD, J. ibidem, 1984. Pp. 198. 128 SAHLINS, M. ibidem. 1997. Pp. 198. 129 SAHLINS, M. ibidem. 1997. Pp. 102. 130 SAHLINS, M. ibidem. 1997. Pp. 103.

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160 Anexos

Anexo 1 Manifesto do PT em apoio à colocação da Escultura de Exú na Linha amarela fev/2000 (Escrita pelo coletivo estadual de combate ao racismo do PT-RJ)

A QUEM INCOMODA EXÚ ? Os leigos na religião dos Orixás imersos no simbolismo do mal, construídos pelas igrejas e pelos detentores do poder durante a escravidão, diziam que Exú era princípio demoníaco da feitiçaria, da bruxaria e da maldade. Além disso, a representação simbólica de Exú com chifres talvez possa ter influenciado, pelo ideário caricaturado das igrejas, a sua identificação com o diabo. Esta representação, no entanto, é anterior à construção do Antigo Testamento, cujos livros foram escritos após o Exílio do povo de Israel e que, com certeza, tiveram toda a influência dos símbolos e arquétipos africanos. O chifre tem o sentido originário de elevação e seu simbolismo é o poder: “farei germinar com chifre, um corno para David”(Sl 132.17). Ele simboliza a força de Deus e evoca o prestígio da força vital (Axé), da vida inesgotável e das grandes divindades da fecundidade. Longe de ser o diabo, Exú é o princípio dinâmico de comunicação, da existência cósmica e humana. Ele possibilita que as coisas venham a tornar plena a sua vida interior, responde pelo movimento da vida, introduzindo o acaso e a sorte no destino dos homens e mulheres, rompendo os modelos conformistas do universo e nos levando a possibilidade permanente de mudança. Exú é a negação da negação. Ele nega os preconceituosos que negam o direito à diferença; e as instituições que negam o direito à liberdade de expressão e pensamento; ele nega a sociedade onde o homem é inimigo do homem. Ele é rigoroso e duro sem jamais perder a sua ternura. Exú nos questiona constantemente a nos revelar que o mundo é produzido e que pode ser produzido de maneira diferente: na visão de mundo de origem africana Exú é o mediador entre os deuses e os homens (o mesmo ocorre na cultura grega com o deus Hermes) enfim, nos mostra a fragilidade das nossas tentativas de criar sistemas e estruturas definitivas onde a vida fica limitada e sem horizonte. Por analogia, Cristo também é avesso, como Exú, aos dogmas, preconceitos e autoritarismo que predominam as instituições. Ele parte em busca do seu espírito de liberdade na festa do fogo, de Pentecostes, que como princípio dinâmico continua a animar a vida dos homens e mulheres na liberdade, na ternura e na luta. A polêmica que se instalou com a proposta da Lamsa – Empreiteira baiana que construiu a Linha Amarela – de colocar um escultura de Exú na Linha Amarela, significa mais uma expressão do racismo e do preconceito religioso no Brasil. A nossa Constituição, no Título II, Capítulo 1, Art. 5, P. VI, afirma: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da Lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Além disso o Estado e suas instituições são de caráter Laico, isto é, não religioso. Mas a realidade que se impõe é outra. Nas escolas, nos tribunais, nas sedes dos governos, existe somente a imagem de Jesus Cristo Crucificado. Nunca se perguntou a quem não é cristão se concorda com este autoritarismo religioso. Algum tempo atrás até nossas moedas tinham a escritura: “Deus seja louvado”. E se houvesse: “Axé Brasil !” ? Portanto, quando o reitor da PUC, Padre Jesus Hortal afirma, que “Para mim, Exú não tem qualquer significado religioso. Mas pode ofender as convicções de alguém”; ou quando os plesbiterianos afirmam, através de seu Pastor

161 Guilhermino Cunha, que “É uma agressão as outras crenças”, se esta confirmando que no Brasil ainda existe intolerância, racismo e discriminação para com as pessoas que tem convicções diferentes das religiões dominantes. Até mesmo quando uma leitora de O Dia propõe que cada religião deva doar uma obra de arte que ilustre sua crença para acabar com a polêmica da Linha Amarela, criando assim uma suposta Linha Ecumênica, se está reforçando a mesma intolerância religiosa. Pergunta-se: por que não fazemos então um Corcovado Ecumênico ? A polêmica da Linha Amarela revela a continuidade da tentativa de destruição e desqualificação dos cultos de origem africana. Os cultos dominantes, que destruíram as culturas africanas e indígenas em nome de Jesus Cristo, exterminaram milhões de seres humanos. Portanto, nós, militantes do PT, somos a favor da colocação da escultura de Exú na Linha Amarela. Pois esta dará visibilidade a uma cultura milenar dos povos africanos e seus descendentes no Brasil. Cultura esta muito mais antiga que os povos que deram origem ao cristianismo. A escultura não representa uma agressão às pessoas de outras religiões, mas uma afirmação que no Brasil existem diferenças culturais e religiosas, um princípio que nos orgulha muito, pois essa diversidade é enriquecedora. Não podemos reviver situações de intolerância, preconceitos e discriminações como existiu na Europa nazista e fascista. Somos um povo que cultua a democracia e a pluralidade cultural. Nós do PT sempre criticamos a intolerância e o racismo, preservamos o que há de mais rico em nosso povo: a democracia e o respeito pelas pessoas que pensam, oram, dançam, cantam e se vestem de forma diversa. Axé Brasil !!! Axé Rio de Janeiro !!! Larôie Exú !!! Secretaria Estadual de Combate ao Racismo PT-RJ

Anexo 2 Texto escrito por Jorge Carneiro para a Escola de formação da DS Fev/1999

FILHOS DE ZUMBI, FILHOS DE IYA NASO OKA Em respeito aos nossos ancestrais, nós afrodescendentes, temos a importante tarefa de dar continuidade à luta histórica do povo negro em nosso país. Sabemos que não é uma luta fácil, sobretudo nesta conjuntura em que apontam-se extremas dificuldades, em particular para o povo negro. O neoliberalismo e a globalização acirram os níveis de desigualdades, miséria, extermínio, falta de perspectiva de vida e exclusão de nossa gente. Em um quadro histórico de extrema dificuldade, essa tem sido a condição dos negros nesses quase 500 anos de trajetória no Brasil. Chegamos ao nosso limite, não temos condições de aceitar um modelo político e econômico profundamente injusto, que é o da burguesia brasileira branca e racista, que historicamente nunca garantiu nada ao povo negro neste pais. Muito pelo contrário, sempre procuraram na sutileza ou não ignorar, exterminar, desqualificar os afrodescendentes enquanto sujeito político. A nossa história nunca foi ou será o lamento e o choro. Somos um povo que tem identidade e isso não se arranca de dentro de nós. Acreditamos na vida e por isso na nossa perspectiva sempre ao longo da nossa trajetória no Brasil, apresentamos, através de várias manifestações e formas, um projeto alternativo ao poder vigente. Insistimos na nossa visão de mundo que é a africana ligada a nós pelos nossos antepassados, que procuramos aqui simbolizar na figura de zumbi e Iyá Naso Oka, duas figuras extremamente importantes da nossa história.

162 Sobre Zumbi todos conhecemos todos conhecemos a sua histórica luta em Palmares, mas é sobre o papel dessa grande Mãe-iyá Naso que queremos falar e refletir um pouco, e que na verdade, tem muito haver com uma alternativa ao poder vigente. Quando simbolizamos a figura de Iyá naso Oka, na verdade também estamos falando da mulher negra e na sua decisiva e importante participação na luta dos afrodescendentes. Iya Naso Oka é a fonte do axé no Brasil, fundadora da casa de Candomblé mais antiga em nosso país, e a instituição negra mais duradoura na nossa história, a Casa Branca do Engenho Velho – Salvador. Iya iniciou um processo que se mantém forte e que estamos dando continuidade até hoje e, com certeza, continuaremos a dar prosseguimento. Até hoje temos procurado manter a tradição dos Orixás, tal qual ela nos ensinou e isso nunca foi uma tarefa fácil, pois sempre representou um enfrentamento com a ideologia dominante e o pensamento dogmático, sobretudo judaico cristão. Com humildade mas com determinação procuramos passar para o conjunto da sociedade essa visão de mundo das comunidade de terreiros que representam espaços de resistência e opção ao padrão dominante. O que Iyá Naso e os nossos ancestrais nos ensinaram é que temos condições de construir uma perspectiva diferente dessa dominante que está colocada para nós. Somos um povo que temos axé, e axé é vida. Logo lutamos pela vida, vida em todos os seus aspectos. Respeitamos as diferenças e o nosso projeto, que é coletivo, só será pleno se essa máxima for sempre observada. Cada um de nós tem a sua contribuição a dar para a manutenção do axé, da vida, da sociedade, do mundo. Não existe entre nós o princípio da exclusão, não acumulamos bens e sim pessoas, aqui está o conflito com o padrão dominante. A nossa perspectiva é uma visão integradora natureza-homem, daí a nossa profunda visão ecológica. Acreditamos no pleno desenvolvimento do ser, no auto-conhecimento e na autonomia de cada um. Os elementos apontados acima representam um pouco do que o nosso povo é capaz na construção de um projeto alternativo do povo negro. Somos sujeitos participantes legítimos na construção nacional. Em vários momentos podemos identificar essa intenção tais como: Palmares e vários quilombos, Canudos, a Revolta dos Malês, A revolta dos Búzios, as comunidades de terreiro, as escolas de Samba, os Afoxés, a capoeira, etc. A esquerda no Brasil está desafiada a conhecer o seu povo e a sua história, em particular a história e a trajetória dos afrodescendentes no Brasil. A gente só tem capacidade de transformar aquilo que conhece. De certa forma a esquerda brasileira reproduz o preconceito, o estereótipo, a discriminação em relação ao povo negro. Acreditamos que essa relação se dá muito em função de um condicionamento ideológico. Mesmo estando na esquerda e acreditando no socialismo muitos dos nossos companheiros adotam posturas e comportamentos que reproduzem a ideologia racista entre nós. São questões sérias para serem debatidas entre nós, isto é, no conjunto da esquerda. Outra crítica que fazemos a esquerda e o seu condicionamento e de certa forma a sua visão prisioneira em relação ao eurocentrismo. Com isso desqualificando toda e qualquer contribuição na luta pelo fim das opressões. A esquerda nunca deu a devida importância a luta do povo negro em nosso pais e as formas de como essas lutas se processaram. As vezes tem a mesma visão da ideologia dominante achando que somos fundamentalmente um grande elemento folclórico. Não percebem que na nossa perspectiva fazemos a nossa luta cantando, sambando, batendo tambor, fazendo poesia, seduzindo, sobretudo através do corpo. É outra forma de fazer política e acreditar na transformação geral da sociedade. Fica a crítica e o questionamento a esquerda e gostaríamos de refletir essas questões com o conjunto da esquerda até porque também fazemos parte dela e somos revolucionários. Temos certeza e confiança na contribuição que podemos dar na construção do socialismo e de uma sociedade com oportunidade para todos. Garantir cidadania para todos hoje não deixa de ser uma luta revolucionária, consideramos um avanço na organização do nosso povo. Mojubá Iya Naso Oka Mojubá Zumbi Mojubá à todos nossos ancestrais. Mo dupé Jorge Carneiro de Macedo

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Anexo 3

Relatório do Seminário Eleitoral do PT-RS, no qual Jorge Carneiro faz uma palestra sobre religiosidade Junho/2000 Relatório Final do Seminário Eleitoral para Candidaturas Negras. Com o objetivo de socializar e fomentar Políticas para as candidaturas negras do estado e reconhecer como fórum legitimo de desenvolvimento e participativo para estas candidaturas, foi instalada no sábado dia 03 de Junho de 2000, as 09 horas, o seminário Eleitoral de candidaturas negras e militantes de combate ao Racismo, com participação dos Palestrantes e convidados para este debate. No sentido de achar de vital importância para esta setorial e partido qual as políticas que devemos aplicar em nossas administrações. Estiveram Presente neste evento 38 pessoas que priorizaram o debate e se propuseram, colaborar, com esta discussão mostrando o compromisso de fato com esta setorial, acreditamos que estes companheiros querem desenvolver sim um debate mais aberto e coletivo, avaliando assim quem tem discurso e pratica dentro desta setorial, não adianta termos o discurso de que temos que cobrar do Partido se quem esta inserido neste debate não priorizou este trabalho, que de fato quem contribui para este evento tem sim responsabilidade com a setorial e quer fazer crescer e descentralizar para o interior o debate das lutas dos movimentos que dirigimos, acreditamos que as candidaturas que estiveram presente neste Seminário e ajudaram a construir, são as que tem compromisso de verdade com a questão da Luta de Combate ao Racismo . Apesar dos contra tempos, tendo adiado o ato de abertura para Sábado pela manha, por entender a dificuldade do pessoal do interior, que chegaram pela manha, lembramos que estiveram presente para o ato de abertura na Sexta feira a noite, o Presidente Estadual do Partido dos Trabalhadores Júlio Quadros, o Secretario Nacional de Combate ao Racismo Carlos Porto, a companheira Marlise Fernandes foi avisada pela troca de horário para Sábado do ato de abertura das atividades, mas estava preparada para contribuir com a construção do debate do seminário. Agradecemos a compreensão e dedicação destes Dirigentes pelo incentivo e comparecimento a atividade desta Setorial, é clara a preocupação e vontade de que esta setorial cresça e tenha junto do Partido uma intervenção responsável, junto aos militantes e candidatos que representam a questão racial de fato. Candidato a Prefeito: Edson Portilho - Sapucaia Candidatos a Vereadores que estiveram presentes ao Seminário: Ataides Rodrigues dos Santos - Uruguaiana Isaura Maria Oliveira - São Leopoldo Ivan Braz da Conceição - Sapucaia Juberlei Bacelos - Porto Alegre Luciano da Silva - Encruzilhada. Maria Conceição Lopes Fontoura - Porto Alegre. Noeli T. Souza da Silva - Carazinho. Perci dos Santos - Caxias. Quener Chaves Santos - Canoas. Palestrantes: Adriano Bueno - Coletivo Nacional de Combate ao Racismo Almira Maciel - Coletivo Nacional de Combate ao Racismo Fernando Moreira - Instituto Brasil África. Jorge Luís Carneiro - Secretario Estadual de Combate ao Racismo PT/RJ. Jorge Luís Nascimento - Movimento Negro Unificado. Jorge Senna - Secretario Adjunto de Combate ao Racismo PT/RS. Karla Cristiane Gomes Xavier - Juventude Negra - Mov. HIP HOP Maria Conceição L. Fontoura - Coletivo de Combate ao Racismo PT/RS Sebastião Arcanjo - Vereador da Cidade de Campinas - SP. Stenio Dias Pinto Rodrigues - Assessor Sindical da Sec. Estadual da Saúde.

164 Ubirajara Toledo - Movimento Negro Unificado. Militantes que Participaram: Iara Maria Cidade Mendes - Canoas Luís Felipe de Camargo Gonçalves - Porto Alegre Celso Henriquea - Alvorada Gilson Mendes - Canoas Ricardo Dorneles Lopes - Poro Alegre Nadia Prestes Batista - Caxias Ione Navegantes Cardoso - Caxias Gleidson Renato Martins - Porto Alegre Juliana Pinto Rodrigues - Porto Alegre Lori Machado da Silva - Carazinho Gilmar Pinheiro - Pelotas Andréa Rodrigues da Silva - Porto Alegre Pedro Roberto Trindade - Canoas Wilmar da Silva Francisco - Esteio Religiosidade Palestrante: Jorge Carneiro - Secretario Estadual de Combate ao Racismo PT/RJ Apresentamos como proposta de debate para as candidatura negras e de Combate ao Racismo desenvolver na sua candidaturas, a visão de mundo africano, como forma de organização Política para as comunidades negras. Se desenvolvermos a analise, do projeto político da sociedade socialista, esta visão tem muito a contribuir para a pratica da política que queremos implementar para militantes de combate ao racismo e outras forma de opressão, para trabalharmos um dialogo com a comunidade fora do partido e que militam no movimento negro, acreditamos que a visão de mundo africano na sua forma de se organizar e na sua forma de funcionamento. Uma das organizações que se apresentam como exemplo de coletividade são os terreiros de candomblé ou como falamos no Rio Grande do Sul de terreiros de batuque, se avaliarmos ela como uma organização política Social , esta apresenta sinais de construção de um raciocínio político, na sua forma coletiva de trabalhar, a relação que fazem com o sagrado e com o espaço social. Neste espaço as pessoas se interagem e organizam na forma de buscar a igualdade entre todos. Mas o poder dominante racista sempre apresentou como um movimento folclórico e cultural ou como seita da comunidades negras. Se estudarmos os movimentos que se deram, nos cultos aos orixás, que esta cultura milenar apresenta, e desenvolvermos um raciocínio político, podemos detectar um processo político de formação e consciência de uma comunidade, onde todos são iguais homens e mulheres, quando passamos a estudar o panteon dos orixás, esta se apresenta da mesma forma, onde nenhum orixá se sobrepõe ao outro, cada um tem uma função e significado. A maneira que se expressam e se organizam para sua reuniões, sempre desenvolveram em rodas, onde todos podem ver os movimentos por inteiro e assim fazem suas intervenções e movimento através do histórico de seus orixás. Mas a sociedade Burguesa cristã sempre apresentou sua resistência e seu preconceito ora por ser uma religião primitiva, ou de negros ou de predominância de homossexuais, vulgarizando assim suas praticas, podemos afirmar que nesta religião, através do respeito do direito dos que nela convivem, se desenvolve muita política. Resgatando o histórico das forma de organizativas africanas como elemento de participação popular, até mesmo as organizações de quilombo que até os dias de hoje se expressam nos remanescentes de quilombos, que existem no Brasil, podemos constituir ao afirmar esta formação de concepção, o resgate da cidadania étnica nestes espaços apresentam o respeito entre os sujeitos que nela convivem homens, mulheres e crianças estão sempre presente e gravados no histórico de cada orixá, com esta analise podemos avaliar que cada ser tem sua potencialidade de conter consigo um axé dos orixás basta desenvolver, seja ele branco ou negro ou de outra etnia. Podemos então detectar que neste universo religioso, estão presente os elementos que se trabalha dentro do sistema de opressões, na busca de desconstituir as praticas e preconceitos que existem no meio social, que foram constituído pelo capitalismo durante séculos, tendo como conseqüência racista e preconceituosa a opressão sobre os terreiros de umbanda e candomblés no Brasil, o poder de cada axé desenvolvido pelos escravos assustavam os senhores. Estudando os cultos da umbanda, também localizamos a pratica do internacionalismo da classe trabalhadora, os negros que aqui chegaram seqüestrados do seu território, absorveram aos seus cultos as divindade indígenas, por identificar nos ancestrais indígenas, elementos que contribuíam para uma integração entre etnias que sofriam o mesmo

165 tipo de discriminação ora pela igreja e pelos colonizadores europeus, mas por querer acumular riqueza e expandir o catolicismo, a igreja intervém no processo, degenerando e desqualificando a pratica destes cultos. O movimento negro, com dificuldades de fazer esta leitura, do modelo de organização política, não consegue entender de que a luta dos escravos foi por que esta cultura prevaleceu como forma de resistência, ora por ter na sua formação e educação acadêmica oficial, baseada na estrutura eurocentrica, deixando de lado a visão de mundo africano. Podemos afirmar que o papel do militante negro e de seus parlamentares, é que encontre uma relação destes elementos, na sua plataforma, mas como um meio de política afirmativa dentro da realidade das comunidades negras. Redator: Jorge Senna (Fitas Transcritas dos debatedores).

Anexo 4 Artigo escrito por Jorge Carneiro – Setembro 1999

O Samba de Roda e a Militância Socialista 1ª CENA Maria Aparecida, a Cida, foi criada na favela, tem 28 anos, solteira, mas com 2 filhos. Viveu sempre uma vida difícil, trabalhando desde os 12 anos e não gozando muito dos prazeres da vida e dos divertimentos da comunidade onde mora. Tendo que sustentar os dois filhos sozinha, pois órfã de pai e mãe, Cida é uma mulher negra, tímida, de sorriso difícil de se cativar. Talvez seja porque a vida ascética de trabalho, não a permite, e também é claro, uma preocupação constante com os futuros dos filhos. Os seus dias passam, entre a casa e os bicos que arruma na cidade e na favela. Desde lavadeira, passadeira até costureira, etc. Com muita força de vontade ela segue rumo aos seus únicos objetivos de vida: construir um futuro melhor para seus filhos e evitar as doenças. Cida não pertence a nenhuma religião, nunca foi batizada e nem nunca teve interesse pelas igrejas ou a comunidade de terreiro perto de sua casa. A vida dura a faz muito cética em relação as forças transcendentes que a possam ajudar. Confia nela mesma e toca a bola pra frente. Mas certo dia, encontrou um trabalho interessante na cidade através dos jornais que ela comprava todos os domingos - exclusivamente para ler os classificados. Um restaurante italiano precisava de um cozinheiro, que soubesse fazer comidas populares. Ela resolveu ver o emprego, pois no anuncio dizia que o salário era bom. Porém a coisa que a interessava é que ela como Baiana, herdou de sua mãe, a sabedoria de todos os pratos típicos do nordeste e assim resolveu fazer o teste e disputar a única vaga entre mais de 200 cozinheiros profissionais. Cida sabia que não tinha muita chance, porém resolveu arriscar. Pois sendo negra, favelada e mulher, apesar de sua beleza e corpo de top-model, era difícil entrar em espaços tipicamente europeu e Branco. Assim ela resolveu, no teste que o restaurante pediu, fazer um prato típico da Bahia: o Acaçá ( na verdade sem que Cida soubesse essa é uma comida essencialmente usada nas comunidades de candomblé, como a comida de Oxalá ). Para a surpresa de Cida entre os concorrentes ela tirou o primeiro lugar. Alegria geral entre os seus vizinhos, Cida pela primeira vez, foi reconhecida pelo seu talento culinário. Começando a trabalhar no restaurante, suas comidas começaram a fazer muito sucesso. Na cidade se começa a espalhar a voz de que no Restaurante dos Italianos se fazem as melhores comidas Baianas. Os turistas também espalhavam as vozes, e assim em menos de um ano o restaurante dos Italianos era conhecido em toda a Europa e nos EUA. O proprietário do Local, resolveu ampliar os negócios, além de restaurante queria construir um local de dança, pois sabemos o quanto o Brasil lá para os turistas é famoso pelas suas danças, principalmente o Samba. E este, com o sucesso

166 das comidas de Cida, pediu o seu apoio para organizar o setor de danças populares. Mas ai pintou o primeiro problema: Cida com a vida ascética que sempre viveu, não sabia dançar nada. O que fazer então. Cida não querendo decepcionar seu patrão resolveu procurar os grupos de pagode da favela e os vizinhos para ajuda-la. Com isto, sem que Cida se dê-se conta, ela começava uma vida comunitária que nunca imaginou ter. Os grupos de pagode já a conheciam e os vizinhos aceitaram ajudá-la. Porém os grupos de pagode, além de estarem interessados em trabalhar no restaurante, queriam que Cida aprendesse a dançar. Sabiam que ela era filha de Baiana e como negra não poderia não saber dançar. Cida relutou, era tímida, não conseguia mexer os quadris nem quando caminhava normalmente. Porém os amigos da favela aos poucos conseguiram que ela começasse a freqüentar as festas e as rodas de samba. Indo freqüentemente ao samba de roda, ela aos poucos conseguia aprender a dançar. Mas isto demorou muito. Mas o povo pagodeiro e sambista tinha paciência. O melhor jeito para ensiná-la era desinibí-la com muita naturalidade. E nada mais perfeito que o Samba de Roda, onde todos devem dançar, mesmo aqueles sem ginga, sem rebolado, como Cida. O samba rolava todos os finais de semana na favela, e para ajudar Cida a dançar, todos entravam na dança. Alguns desajeitados, outros exímios bailarinos e Cida, que não sentia vergonha de dançar, na frente de tantos bailarinos, pois a emoção que sentia em participar, sem ser obrigada, era maior que a lembrança de sua vida ascética. Os grandes mestres da dança no morro - muitos deles analfabetos, marginais perseguidos pela policia, pessoas pobres, etc. - seduziam Cida com belíssimos movimentos de seus corpos. No meio da roda, Cida, os bailarinos e outros formavam uma grande alegoria de jubilo intenso, o mais importante era bailar juntos, sem se importar se alguns sabiam ou não dançar como os bailarinos. Estes na verdade encantavam mais do que ensinavam aos outros. E assim em pouco tempo Cida se tornou uma grande dançarina, uma negra que da muito orgulho a sua comunidade. 2ª CENA Tião era um rapaz tímido, 22 anos, toda a sua família era membro de uma comunidade de terreiro - Candomblé - e ele naturalmente freqüentava todos os ritos e festas dos orixás. Mas, apesar de ser muito tímido, Tião tinha uma enorme vontade de entrar na roda, no xirê - como é chamado o primeiro momento de uma festa de candomblé. Um dia um orixá incorporou uma das filhas do terreiro. Era Ogum, o orixá dos ferros, o abridor de caminhos, o guerreiro. Ogum lhe disse que compreendia a sua timidez, mas que ele não deveria temer os olhares de seus irmãos da comunidade, pois todos ali, só aprendem a dançar dançando. Mas Tião não se impressionou com Ogum. Sabia que era muito difícil para ele entrar com os outros no xirê. Porém, certo dia Ogum retornou e no meio do xirê, pegou Tião pelo braço e o levou a roda. Tião constrangido começou a chorar. Não podia fazer esta disfeita ao seu orixá, mas ao mesmo tempo começava a sentir uma emoção muito forte, incontrolável, de prazer, pois estava realizando, apesar de sua timidez, um grande sonho. Depois desta festa de Ogum, e durante os 12 meses sucessivos, os outros orixás que baixaram no terreiro, chamaram Tião para entrar na Roda, todos eles, Oxossi, Yemanjá, Omulu, Yansã, Oxum, Oxumaré, Nanã, Xangô, Oxalá, Ossaim, Obá e Exú. Depois de um ano Tião perde a timidez e em todas as festas ele dança tão bem como seus irmãos e filhos de santo da comunidade. Tião diz que, apesar de ser obrigado a dançar com Ogum na primeira vez, se sentiu mais a vontade com os outros orixás. Diz que o xirê não o faz sentir vergonha e que apesar de não ser iniciado ao candomblé, ele se sente bem junto aos Orixás e seus irmãos. Para ele o xirê o faz um membro da comunidade, o faz membro de uma grande comunhão, pois aprendendo a dançar naturalmente com os Orixás, ele se sente importante para todos, o estimularam a vencer a timidez espontaneamente. Nada mais prazeroso para ele do que aprender as danças do xirê, dançando. Mas a dança não a faz aprendê-la por si só, o que ele aprendeu também foi a cosmologia do mundo afro-brasileiros, se integrou ao grupo comunitário através da expressão de seu corpo. Cida e Tião, duas pessoas simples, humildes, com poucas ambições na vida, mas que conseguem realizar seus sonhos com a força do encantamento dos amigos e parentes. Nestas duas histórias vimos um caso típico na cultura dos afrodescendentes que nos revela, e num certo sentido, se contrapõe a alguns métodos de construção política da esquerda no Brasil e no Mundo. O samba de roda e o xirê são dois aspectos da cultura dos afrodescendentes com um significado muito claro na perspectiva de construção de uma sociedade extremamente participativa e integradora. Na verdade a visão de mundo africana faz esse chamamento participativo e isto é uma constante. O que nos propomos neste artigo é uma analise das contradições entre os propósitos de construção dos objetivos políticos de certos setores da esquerda e a sua prática cotidiana de democracia. Porém, antes de mais nada, queremos afirmar que não se tratará de uma crítica destrutiva, com o intuito de infamar a esquerda e desqualificá-la, como fazem hoje muito bem os neoliberais e a direita. O que nos propomos a fazer, como estudiosos da cultura negra, é identificar os limites e a ineficiência da esquerda quando identificamos discursos

167 contrapostos a práticas. Limites que inconscientemente toma corpo mesmo naqueles setores e indivíduos identificados sem sombra de dúvidas como revolucionários, socialistas e comunistas. A construção de nossa análise passa pela descrição de alguns momentos cotidianos da esquerda brasileira e a identificação de suas contradições internas. Por outro lado identificaremos como as praticas culturais de origem africana, se qualificam enquanto uma possível crítica as práticas políticas viciadas da esquerda brasileira.

A PRAXI INVISÍVEL É comum na esquerda brasileira reuniões nas quais existe um (a) palestrante e uma platéia de militantes. Esta prática é muito comum inclusive na esquerda mundial. Porém o que identificamos como mecanismos invisíveis de contradição entre prática e discurso, é que nas dinâmicas destas reuniões o que ocorre é uma hipervalorização da competência subjetiva diante de uma pretensa platéia não especializada. Ou seja, uma maneira muito sutil de limitar a participação democrática das pessoas. É certo que existem grupos que consentem a livre expressão e organização de divergências, mas na prática que descrevemos se conserva uma dinâmica elitizada, onde o confronto ocorre entre lideranças que “possuem” conhecimentos. Nestas reuniões onde se encontra um dirigente de partido, sindicato, etc., este detém a palavra no inicio e no fim ( a réplica ), a platéia pode até contestar, mas sempre, ao final, a replica prevalece. Sem contar que nestes encontros, somente os mais experientes na militância falam, não estimulando os mais tímidos, pelo contrário inibindo-os com grandes citações teóricas, que são geralmente mulheres, trabalhadores manuais, ou jovens. Enfim o que ocorre freqüentemente são momentos onde poucos falam de maneira até repetitiva e logorréica. A lógica que prevalece é uns que falam muito de democracia mais que ocupam grande parte do tempo das reuniões, não permitindo o desenvolvimento oratório ( e não só ) dos menos experientes. Enfim uma democracia formal mas que nas sutilezas cotidianas fortalecem o militância de elite, ou na linguagem mais comum, os “capa pretas”. Uma outra conseqüência destes tipos de reuniões ( pequenas ou grandes ) é a posição da mesa que dirige os trabalhos. Como numa organização militar ( diferente do Samba de Roda), existe a mesa e a platéia. Pode parecer um elemento organizador de debates muito natural, mas o simbolismo de poder que a mesa confere, nunca foi discutido pelos famosos métodos de construção da militância socialista. A simbologia da verticalidade é que prevalece. A mesa organiza, dirige os trabalhos ( coisa muito natural se pensarmos nas acirradas disputas da esquerda contra o status quo dominante ), porém a centralidade da mesa confere a quem está nela uma capacidade de manobra quase incontrolável. Controle de inscrições, de tempo e até da centralidade do espaço da reunião, ou seja, uma grande oportunidade de cultivar o personalismo. Ao final o discurso, a democracia interna soa de forma brilhante, mas na verdade ela não acontece de fato, não se limitam os faladores para incentivar os mais tímidos e inseguros, não se cultiva o espirito coletivo, mas a dinâmica de disputas entre lideres. Uma outra contradição que existe entre o discurso de esquerda e sua prática, é o fato de delegar poderes de direção sem o devido aprofundamento dos riscos que isto ocorre. Porém antes de analisá-lo queremos ressaltar que não entraremos no mérito se delegar poderes é justo ou não, democrático ou não, enfim, se é necessário ou não. O que nos interessa é constatar que nesta prática comum na esquerda não se percebe e não se discuti as sutilezas da concentração de poderes. O que ocorre muitas vezes é que parlamentares, dirigentes de partidos, representantes de base, se eternizam nos cargos de delegação. O espirito cotidiano é “sou delegado(a)” e não estou delegado(a). Neste sentido se desenvolve um pequeno grupo de direção que obtém muitas informações, contribuindo para sua formação política. Diz o ditado que saber é poder. Sendo assim a distorção na construção da democracia dentro de partidos é muito grande, apesar de todos os mecanismos estatutários ou programáticos. Ao nosso ver o circulo vicioso deste aspecto se constitui da seguinte forma: em um grupo existe obviamente pessoas com formação política diversa, para se resolver isto e chegar a um proposta comum, se discuti democraticamente as questões, logo em seguida se elege um corpo dirigente. A direção será responsável por encaminhar as políticas cotidianas deste grupo ( seja partidos, correntes, etc. ). Mas é aqui que começam as sutilezas. Este corpo de direção obtém, no embate político, muitas informações, acumula experiência, obtém contatos com varias pessoas e situações e assim se legitima diante da base por ter uma visão mais global das “lutas”. O que ocorre geralmente quando chega os sucessivos congressos, encontros, etc. para renovar as direções, é uma direção que acumulou experiências e que diante de sua base se repropõe enquanto direção. Mesmo incorporando pessoas novas ( pouquíssimas ), esta direção acumulará mais autoridade política, e assim começa-se a criar a distorção, ou o abismo entre os que sabem e os que não sabem, os que tem experiência e aqueles que não tem, os que desenvolveram sua capacidade oratória e aqueles que se sentem inseguros ou tímidos diante de “grandes quadros”.

168 Jamais um grupo de esquerda no Brasil, na atualidade, radicalizou na democracia propondo como funcionamento interno a política da rotatividade, seja ela no parlamento, nas direções dos partidos, ou na eleição de delegados para os congressos ou encontros. Veremos mais adiante que esta rotatividade ( organizada ) é uma das características principais da Roda de Samba. Um outro aspecto grave, que identificamos na contradição entre discurso e prática, é a ausência de políticas afirmativas que contribuam para a participação de alguns setores marginalizados pela sociedade. Negros, mulheres e jovens são oprimidos e discriminados em nossa sociedade por vários fatores. Porém na esquerda, apesar dos programas dos partidos, e de seus discursos, estas discriminações são veladamente reproduzidas, de forma explícita ou implícita. Podemos citar alguns exemplos. Muitos jovens entram para a militância de esquerda ou porque se sentem oprimidos pelo adultos (a opressão de geração) ou porque querem descobrir novas possibilidades de convivência (o espírito utópico). Assim, muitos grupo de esquerda realizam simplesmente um trabalho de doutrinação teórica, não levando em consideração os fatores subjetivos que levam jovens entre 15 e 20 anos à militância quase que integral na esquerda. Além disso, um jovem que decide entrar num partido revolucionário ou numa corrente encontra sempre um esquema adulto de se fazer política, carregado de preconceitos paternalistas, desde que a juventude se mostre dócil e haja acordos nas táticas de lutas. Porém, quando os jovens entram em desacordo com os adultos, estes recordam sempre a inexperiência daqueles. Desse modo, muitas vezes se reproduzem na esquerda as relações adulto - jovem de forma semelhante à da micropolítica do poder na família. Por fim, para levantarmos somente alguns exemplos, a esquerda, na sua maioria, não considera relevante também a questão negra e étnica, pois afirma que a prioridade é o confronto entre as classes sociais. Sem contar o fato de que a maioria esmagadora dos cursos de formação política, iniciam a “história da esquerda no Brasil” a partir do início do século XX, esquecendo todo o patrimônio de lutas e resistência do povo negro escravizado contra a política colonialista do capitalismo em ascensão . Na verdade, quando se afirma isto ou quando se realizam estes cursos, conclui-se que, com o desaparecimento da opressão de classe, desaparecem consequentemente as outras opressões (de gênero, de raça, de geração e de opção sexual). Isto demonstra a incapacidade da esquerda de entender que a burguesia exercita a sua hegemonia além da dimensão de classe. A esquerda não compreende que a discriminação racial, de opção sexual, de geração e de gênero, sociológica e antropologicamente, não é causada pela simples dominação econômica de classe. A PRAXI VISÍVEL Todos os esforços que a esquerda realiza no sentido de construir mecanismos de democracia tem o objetivo de edificar, antes da tomada do poder, um modelo de nova sociedade. Entretanto, como vimos, existem mecanismos invisíveis que não permitem uma total assimilação desta proposta democrática de sociedade. Porém, como vimos no início deste artigo, a dinâmica das culturas negras, de origem africana, nos revela uma crítica, ao nosso ver, mais radical que todas as tentativas europocêntricas de superar estas debilidades da esquerda brasileira. O Samba de Roda, o Xirê e as danças africanas, nos permite e exibe um outro método de convivência democrática entre pessoas e grupos. Samba de Roda é um folguedo e uma herança da época da escravidão, constituído de danças, passos muito requebro, umbigada e cantoria. O ritmo é marcado por atabaques, pandeiros, berimbaus e batidas de palmas. No Recôncavo Baiano o samba de roda é uma forma típica de samba, geralmente dançado somente por mulheres, cuja coreografia se desenvolve no círculo de participantes, tendo ao centro uma solista, que executa movimentos ágeis e graciosos, acompanhados de instrumento de percussão e de palma A dança de Umbigada é definida pelo escritor português Alfredo Sarmento da seguinte forma: "num círculo formado pelos dançadores, vai para o meio um negro ou uma pessoa negra que, depois de executar vários passos, escolhe uma pessoa e dá-lhe uma Umbigada, a que chamam de Semba. A pessoa que toma a Umbigada substitui a outra no meio do círculo". A dança de Umbigada possui o mesmo sistema das rodas cariocas de Pernada, nas quais forma-se também um círculo, depois o dançador fica sambando no meio da roda até tirar outro para dançar com um suave toque de perna, se o Samba for leve, ou com uma pernada, se o Samba for pesado. Um dos aspectos mais relevantes do Samba de Roda africano é o erotismo. É uma dança essencialmente lasciva, acentua Alfredo Sarmento, que diz: "Entre o gentio do Congo, o samba de Roda e o Batuque são uma espécie de encenação em que o assunto obrigatório é sempre a história de uma virgem a quem são explicados os prazeres misteriosos que a esperam no casamento". Nestas manifestações culturais, se expressa uma visão de mundo muito peculiar dos afrodescendentes na diáspora. Ou seja, a dança negra é um meio de identificar um consenso comunitário, uma harmonia participativa, onde todas as pessoas devem colocar suas qualidades e potencialidades em beneficio do grupo.

169 Além disso, não podemos esquecer que a dança negra, no contexto da opressão escravista, era também, basicamente, um meio de afirmação pessoal, graças ao qual o descendente de escravo deixava de sentir-se objeto da ação para converter-se em agente do mundo. Para Muniz Sodré, a dança negra faz parte de um elemento da cosmologia africana, é um “sentir, mas de uma experiência radical, de uma comunicação original com o mundo, que se poderia chamar de cósmica, isto é, de um envolvimento emocional dado por uma totalização sagrada de coisas e seres”. O samba de Roda expressa muito bem essa maneira de ser de um povo, que procura se construir na coletividade, não tendo outra alternativa. E a roda respeita cada participante como ele é, e com a contribuição que ele tiver. A cada momento cada um é o centro e nesse momento e por alguns momentos ele ou ela é o dirigente máximo do processo, ou melhor dizendo da roda. No centro da roda cada um faz o que pode e o que sabe, não existe uma exigência. De certa forma é um exercício da plenitude humana e da construção da cidadania, é um movimento alegre e festeiro, como tem que ser a vida nessa visão de mundo, em que, a cada momento, uma pessoa é o centro da roda, é observado por todos, como também de certa forma, ensina a todos. Nesse momento dar-se a plenitude da pessoa. O samba de roda nos ensina a sermos profundamente democráticos e acreditarmos nesse princípio como um valor importante na construção do processo coletivo. Ela também nos ensina a lidar com a alternância de poder. O poder que precisa ser compartilhado, socializado. Ela também nos ensina o respeito a todos, as várias alternativas, posições, expressões, as diferenças. É uma lógica interessante pelo respeito as diferenças. É uma relação profundamente coletiva no envolvimento, na sedução, na participação e no papel de direção. No xirê dos orixás também observamos esse aspecto de participação, expressando-se também numa roda em que se dança no sentido contrário dos ponteiros do relógio. Esse fato não se dá por acaso, pois esse movimento é o movimento do universo e procura-se manter o mesmo. Observamos também nesse aspecto da cultura dos afrodescendentes um forte conteúdo democrático na homenagem a todos os orixás sem um maior peso para um ou para outro. Cada orixá tem a sua importância no seu momento específico, nenhum orixá se sobrepõe a outro. Neste sentido, o que identificamos na história e Cida e Tião é uma capacidade de realização a partir deste elemento cósmico. Alcançaram seus objetivos através de um envolvimento comunitário que por sua vez não se basearam por atitudes puramente racionais. Mas através também de uma concepção sagrada de mundo. Está visão sacra de mundo, nas culturas de origem africana, tem como eixo fundamental o espírito coletivo, ou como diria os iniciados ao candomblé, o fortalecimento do Axé. Assim, a realização dos objetivos de Cida e Tião, só foram possíveis com a participação deste espírito coletivo ( a força do Axé ), desta energia sagrada. Mas obviamente isto representa pouco para explicarmos comparativamente a crítica imbuída aqui à praxi invisível presente na esquerda. A diferença consiste nos meios empregados pelas culturas negras para o alcance de certos objetivos, para a construção do futuro. No samba de roda todas as pessoas são chamadas a dança, mesmo que algumas delas não saibam mexer o corpo, ou seduzir o grupo. Além disto o elemento principal da dança não é a demonstração das habilidades de cada um, da capacidade de dançar, mas a confraternização do grupo, criar a harmonia comunitária através da linguagem corporal, pois o corpo é um dos centros sagrados do mundo. No xirê conta-se as histórias dos orixás, os acontecimentos históricos de um povo, as virtudes, os defeitos de cada um, enfim a vida dos orixás dentro do corpo dos seus filhos. Assim, o que diferencia as culturas negras dos métodos da esquerda é a necessidade de envolvimento total do ser na construção da coletividade. Cada um tem o seu papel, mas na hora da dança todos serão capazes de conduzi-la, pois como sabemos, toda dança implica em participação integral dos sujeitos, mesmo quando ela é espetáculo, não é apenas com os olhos que a acompanhamos, mas com os movimentos esboçados de nosso próprio corpo. A dança enfim, tem o grande poder de mobilização dos corpos e das consciências. No samba de roda a realização de cada um é a realização do grupo, em função da alegria coletiva. É a realização pessoal de cada um dentro do grupo, toda a roda toma parte do bailado. Assim, diferenciando-se das estruturas de organização da esquerda e de seus discursos, o samba de roda se caracteriza como um recurso pedagógico, um meio permanente de iniciação à sabedoria e da sociabilidade do grupo. Identificando mais a fundo, o samba de roda realiza um encontro entre pessoas com suas possibilidades corporais, emotivas e racionais. Ela não discrimina quem não domina a ginga, o bailado “correto”, mas promove uma troca de experiências. Ninguém é posto fora da roda por não saber dançar, por outro lado ninguém é obrigado a ficar nela, pelo contrário, as pessoas são convidadas a dançar para compartilhar a alegria do grupo, seu Axé, para enfim, usufruir dos prazeres do grupo, que por sua vez vêm de cada pessoa presente na roda. Como vimos, a praxi invisível das esquerdas, apesar de propor métodos democráticos, não viabiliza por completo a plena realização do sujeito político. Nas dinâmicas de reuniões da esquerda não se torna presente os corpos e capacidades de cada sujeito, a dinâmica das trocas, mas fica recalcado nas disputas de poder entre conhecedores de teorias revolucionárias.

170 Vejamos o que diz uma velha cantiga do Samba de Roda: Você que é forte Só pensa em pegar peso Quero ver entrar na roda E mostrar que é forte mesmo... O verso pode ser interpretado da seguinte forma: se um indivíduo é especializado numa função, isto não significa necessariamente que possa contribuir na construção de uma harmonia comunitária. De fato, se formos resgatar a proposta originária no manifesto comunista de Marx e Engels, veremos que a idéia de uma nova sociedade requer que o sujeito seja capaz de filosofar, trabalhar, caçar, produzir uma obra de arte, dançar, educar e ser educado. Saber fazer e realizar coisas que hoje, no atual modelo econômico não é possível. Sendo assim, as culturas negras e suas manifestações rituais, nos revela a possibilidade de identificar nelas uma crítica ao modelo vigente de sociedade. Crítica estas, feita também pelas esquerdas mas que, como vimos, ainda não a assimilaram por inteiro, no sentido de se desvencilhar de mecanismos que impedem uma total coerência entre pratica e discurso. O samba de roda desafia os métodos da esquerda e propõe uma outra organização comunitária, baseada na rotatividade de participação, nos momentos crucias de combate e crítica a ordem vigente. Propõe a possibilidade de que todos os indivíduos desenvolvam suas potencialidades subjetivas, evitando mecanismos contraditórios entre intenção e ação. Pois afinal, a dança, assim como as artes, são os caminhos mais curtos de união entre dois homens e como diz Candeia “enquanto se luta se samba também”. Jorge Luiz Carneiro – economista e militante do Movimento Negro Unificado Luiz Fernandes de Oliveira – Sociólogo e Militante do MNU

Anexo 5 Artigo escrito por Jorge Carneiro – Maio 2000

Religiões de matriz africana e luta Anti-racismo O fenômeno da religiosidade de matriz Africana é o lugar onde mais se expressa o racismo no Brasil, entretanto, é também onde a resistência negra demonstrou uma capacidade de afirmação de identidades surpreendente. O candomblé por exemplo, refere-se ao ser humano em sua totalidade existencial, na qual espírito e matéria não se dissociam. É uma cosmovisão, em que tudo interage e tem ligação, onde nada pode ser isolado da vida. O medo a cultura negra na verdade representa o medo de uma concepção que prega a autonomia, em que o Ori ( cabeça ) é o mais importante. O candomblé é fundamentalmente um culto à cabeça, voltado para o desenvolvimento pleno da pessoa, é autoconhecimento, e a ideologia dominante não educa nesta perspectiva. O Borí ( alimentar a cabeça ) é um ritual importante que significa o desenvolvimento do Axé, é alimentar as próprias energias. Axé, a força vital que move o mundo. Desenvolver o Axé é sobretudo pensar em coletividade, contrapondo-se à visão capitalista que prega o individualismo, a competição. Os iniciados ao candomblé é a extensão da família africana no Brasil. Na iniciação se passa a fazer parte dessa família, que na sua concepção é extensiva, não tem preconceito, propiciando a construção de uma identidade que pode ser partilhada por negros e brancos de qualquer origem e, pelo processo iniciático todos tornam-se irmãos, ao introjetarem os mesmos padrões simbólicos. Os terreiros representam espaços de liberdade, territórios não institucionalizados pela lógica sociocultural dominante. São comunidades que tomam a forma simbólica africana, mantendo vários aspectos da cultura Nagô com o culto aos Orixás ( forças da natureza ) e o culto dos Eguns ( antepassados ). No Brasil esta estrutura foi sintetizada e reelaborada.

171 Quando se afirma isto o que se evidencia é que este patrimônio negro brasileiro afirmou-se na diáspora como território político-mitico e religioso para sua transmissão e preservação. Expressou a grande possibilidade de reterritorialização de um patrimônio de identidade africana, consubstanciado nos cultos aos deuses, à institucionalização de festas, dramatizações e formas musicais. É o chamado Egbé, o terreiro que aparece na primeira metade do século dezenove. Nas suas mais variadas formas – Candomblé, xangô, pajelança, catimbó, tambor de mina, Umbanda – permanece ainda hoje o paradigma ( conjunto organizado de representações litúrgicas, de rituais ) nagô, mantido em sua maior parte pela tradição Ketu. Estes espaços africanos, na sua matriz, não surgiu para excluir os parceiros do jogo ( brancos, mestiços, índios, etc. ), nem para rejeitar o território local, mas para permitir a prática de uma visão de mundo exilada. Algumas dessas formas litúrgicas foram definidas como sincréticas, mas para as comunidades negras o objetivo era reelaborar e redefinir as regras de origem com o objetivo de preservar uma matriz fundadora, a Arkhé. O exemplo disto é o caboclo e seu culto. Apesar de toda sua simbologia indígena, é uma reelaboração do culto negro aos ancestrais, pois o índio, para o terreiro é o dono original desta terra. O chamado sincretismo ( na visão branca ) na verdade foi uma transação, um acerto inter-étnico, pois o entrecruzamento das diferenças foi um jogo de contatos, com vistas a preservação de um patrimônio comum de origem e a conquista de um território social mais amplo para os negros. A posição liturgico-existencial do negro foi sempre a de trocar com as diferenças, de entrar num jogo de sedução simbólica, de encantamento, desde que pudesse assegurar alguma identidade e expandir-se. Não vigora, nesta cosmovisão, o princípio do terceiro excluído, a contradição, os contrários se atraem, banto também é nagô, sem deixar de ser banto. Ao contrário de alguns estudiosos, isto não é sincretismo, pois este se define por transformações litúrgicas de parte a parte. O que não houve no Brasil, porque o catolicismo é uma visão de mundo incompatível com a cosmologia negra. Sendo o catolicismo comprometido com uma economia industrialista, vocacionada para a dominação universal do espaço humano ele não se compatibiliza com os cultos nagô que tem motivações patrimonialistas de grupo, ecológicas e não apenas religioso. As associações feitas entre santos e orixás, não sincretizava nada para os negros mas o respeito e a sedução das diferenças, graças a analogia de símbolos e funções. Ou seja, uma estratégia de reterritorialização. Vários exemplos disto pode ser vistos em diversos terreiros espalhados pelo país, como vemos numa comunidade da Baixada Fluminense, onde um quadro com a figura de São Jorge nunca foi cultuada. Mas quando acontece de um santo católico ser cultuado num terreiro – Umbanda por exemplo – ele é na verdade um orixá nagô. Ou seja, o conteúdo pode ser católico, ocidental, religioso, mas a forma litúrgica é negra, africana, mítica. Ao invés de salvação, o culto a São Jorge se articulará em torno do crescimento de Axé. Isto nos demonstra mais uma estratégia negra, ou seja, consolidar uma identidade própria e firmar-se no território brasileiro era uma questão política crucial. E hoje isto se mantém como uma questão essencial para o povo negro. Quando simbolizamos a figura de Iyá Naso Oka, por exemplo, na verdade também estamos falando da mulher negra e na sua decisiva e importante participação na luta dos afrodescendentes. Iyá Naso Oka é a fonte do Axé no Brasil, fundadora da casa de Candomblé mais antiga em nosso país, e a instituição negra mais duradoura na nossa história, a Casa Branca do Engenho Velho – Salvador. Iyá iniciou um processo que se mantém forte e que estamos dando continuidade até hoje e, com certeza, continuaremos a dar prosseguimento. Até hoje temos procurado manter a tradição dos Orixás, tal qual ela nos ensinou e isso nunca foi uma tarefa fácil, pois sempre representou um enfrentamento com a ideologia dominante e o pensamento dogmático, sobretudo judaico cristão. Com humildade mas com determinação procuramos passar para o conjunto da sociedade essa visão de mundo das comunidade de terreiros que representam espaços de resistência e opção ao padrão dominante. O que Iyá Naso e os nossos ancestrais nos ensinaram é que temos condições de construir uma perspectiva diferente dessa dominante que está colocada para nós. Somos um povo que temos Axé, e Axé é vida. Logo lutamos pela vida, vida em todos os seus aspectos. Respeitamos as diferenças e o nosso projeto, que é coletivo, só será pleno se essa máxima for sempre observada. Cada um de nós tem a sua contribuição a dar para a manutenção do Axé, da vida, da sociedade, do mundo. Não existe entre nós o princípio da exclusão, não acumulamos bens e sim pessoas, aqui está o conflito com o padrão dominante. A nossa perspectiva é uma visão integradora natureza-homem, daí a nossa profunda visão ecológica. Acreditamos no pleno desenvolvimento do ser, no auto-conhecimento e na autonomia de cada um. Os elementos apontados acima representam um pouco do que o nosso povo é capaz na construção de um projeto alternativo do povo negro. Somos sujeitos participantes legítimos na construção nacional. Em vários momentos podemos identificar essa intenção tais como: Palmares e vários quilombos, Canudos, a Revolta dos Malês, A revolta dos Búzios, as comunidades de terreiro, as escolas de Samba, os Afoxés, a capoeira, etc.

172 Estes exemplos nos remete ao entendimento que para o negro estes espaços implicam num continum cultural, na permanência de uma forma de relacionamento com o real, mas também resposta, com elementos reformulados e transformados, num impulso de resistência à ideologia dominante, na medida em que a ordem originária, no Brasil reterritorializada, comporta um projeto de ordem humana, alternativo à lógica vigente de poder. Estes territórios rompem limites espaciais, para ocupar lugares imprevistos na trama das relações sociais urbanas da vida brasileira, orquestrada em consciência de causa pelo branco europeu. Xangô vivendo em nós Acreditamos que o movimento negro e todos aqueles que tenham um compromisso de lutar para acabar com o racismo no Brasil e no mundo deveriam compreender melhor o que representou e continua representando nesses 500 anos de luta e resistência dos africanos e seus descendentes no Brasil. A vida do povo brasileiro está permeada pela cultura negra em vários aspectos e de várias formas. Podemos com certeza afirmar que no campo cultural se deu de forma espetacular a melhor forma da nossa luta e resistência contra o opressor e a cultura dominante. Não podemos ser ingênuos. Sambar, tocar, dançar, cantar, sorrir, fazer poesia é saber seduzir, resistir e lutar. Infelizmente muitos irmãos e irmãs de lutas do movimento negro não tem a devida compreensão dessa forma ou método de saber lutar. Na verdade é lutar mostrando Axé, propondo mudanças de comportamentos de entendimentos. É saber relacionar-se com o mundo, com a natureza, com o universo. Essa forma de saber viver na interação homem-natureza-cosmo. É uma filosofia de vida de matriz africana legada a nós pelos nossos antepassados, pelos nossos ancestres. Que está para além de uma plena cidadania. Quando a gente observa cada manifestação cultural dos afrodescendentes, percebemos esse significado. Seja na capoeira, no maracatu, da folia de reis, nas escolas de samba, no jongo, no maculelê, no fank, no hip hop, no samba de roda, no baile charm, etc. Certa vez xangô disse que não queria mais comer no silêncio, um silêncio imposto pela intolerância e repressão ao culto e a tradição dos orixás. O terreiro Axé Opó Afonjá do Rio de Janeiro mudou-se do centro do Rio de Janeiro para a periferia, onde xangô teve a sua vontade atendida e todos puderam louvar esse orixá da forma que não só ele, mas todos os orixás merecem, com muito toque ( batuque ), fogos e muita alegria. Nós homens e mulheres, descendentes de africanos temos isso dentro de nós. A alegria da vida, isso é Ter Axé. Acreditamos que existe uma grande lacuna a ser entendida e preenchida pelo movimento negro e todos os lutadores sociais na busca de um mundo melhor. Que foi e é o papel das religiões de matriz africana cumpriram na luta, na resistência e na afirmação de uma herança africana e identidade dos afrodescendentes. Xangô ensinou o caminho do não conformismo, da insubordinação, da continuidade da luta, da alegria e do Axé. Rio de Janeiro, 31 de maio de 2000 Jorge Carneiro – Secretário Estadual de Combate ao Racismo do PT-RJ e Militante do MNU

173

Anexo 6 Capa do Livro de Mãe Beata

Anexo 7

Manifesto das tradições religiosas e cultura afro-brasileiras sobre meio ambiente e cidadania Anexo 8

Folder de convocação do seminário “300 anos de Zumbi dos Palmares ( Organizado por PC )

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Anexo 9

Folder do Seminário sobre africanidades - UERJ jun/1997 Anexo 10

Programação da Escola de Formação e Ativo Nacional da DS sobre a questão racial Anexo 11

Lei n. 2663 que institui, no calendário das festividades do Município do RJ, a Semana da Lavagem do Bofim.

175

Anexo 12

Reportagen de “O DIA” sobre o Presente de Yemanjá Fev/2000 e Fotos da Lavagem do Bonfim e do Presente de Yemanjá – RJ Anexo 13

Documentos do Debate do PT-NI “O universo feminino na Tradição dos Orixás” Anexo 14

Seminário Nacional do MNU

176

Anexo 15

Artigos de Jorge Carneiro no Jornal Em Tempo e revista Teoria e Debate Anexo 16

Tese Nacional ao 2º Congresso do PT ( Escrito por Jorge Carneiro, PC e Lúcia ) Anexo 17

Adesivos da Chapa apresentada por Jorge Carneiro, PC e Lúcia ao VI Encontro Nacional de negros e negras do PT

177

Anexo 18

Convite e Panfleto de convocação à visita de Lula no Terreiro de Jorge Carneiro Anexo 19

Reportagens de Jornal e revista da Visita de Lula ao terreiro de Jorge Carneiro Anexo 20

Documento entregue a Lula em sua visita ao terreiro de Jorge Carneiro

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Anexo 21

Matérias na Imprensa do RJ, sobre a atuação política de Mãe Beata. Anexo 22

Tese apresentada por Jorge Carneiro e PC ao XII Congresso Nacional do MNU- Abril/1998

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