Caçando passarinhos: O olhar de colecionador nos contos de Dalton Trevisan

June 13, 2017 | Autor: G. Guimarães Gazz... | Categoria: Walter Benjamin, Collecting and Collections, Erotismo, Dalton Trevisan
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Hispania, Volume 98, Number 4, December 2015, pp. 726-736 (Article)

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For additional information about this article http://muse.jhu.edu/journals/hpn/summary/v098/98.4.gazzinelli.html

Access provided by Brown University (21 Jan 2016 19:11 GMT)

Caçando passarinhos: O olhar de colecionador nos contos de Dalton Trevisan

Gabriela Guimarães Gazzinelli Brown University Resumo: Este ensaio propõe ser o impulso colecionador um princípio estruturante da obra de Dalton Trevisan, integrada por coleções de contos, microcontos, haicais e poemas. Segundo Walter Benjamin, “a existência do colecionador é uma tensão dialética entre os pólos da ordem e da desordem”. A fim de ordenar a desordem das histórias acumuladas, Trevisan elege recortes temporal, espacial e temático claros em sua atividade de colecionador. Seus contos se passam, principalmente, em Curitiba, no presente ou no passado recente da narrativa. Nesse cenário, as personagens vão inventariando vícios morais e taras eróticas, sendo a polimorfia sexual e a violência dois temas recorrentes em seu projeto poético. Entre essas personagens figuram diferentes tipos de colecionadores que estabelecem uma relação de posse com o outro ao coligir vidas, prazeres, sentimentos, perversidades. São emblemáticos, nesse sentido, os vampiros de toda natureza: parasitas sentimentais, sanguessugas, predadores sexuais, vigaristas e exploradores. As coleções de Trevisan têm ainda outro elemento de coesão: são enquadradas afetivamente pelo narrador, que concede valor sentimental às estórias nelas reunidas. Palavras chave: Brazilian literature/literatura brasileira, collections/coleções, Dalton Trevisan, erotism/

erotismo, short stories/contos, vampires/vampiros, Walter Benjamin

Toda paixão confina com um caos, mas a de colecionar, com o das lembranças. —Walter Benjamin

1. Introdução

N

este ensaio, propomos uma leitura da obra de Dalton Trevisan à luz do conceito de coleção. Pretendemos mostrar que os princípios ordenadores de uma coleção se manifestam em diferentes planos da poética de Trevisan, desde estruturas formais (é uma obra quase inteiramente ordenada em antologias) até aspectos narrativos (tem, como princípios ordenadores, recortes temporais, espaciais e temáticos). A fim de dar sustentação teórica a essa leitura, lançamos mão de escritos ensaísticos de Walter Benjamin sobre coleções e colecionadores, dentre os quais figuram “Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador” e “Livros infantis antigos e esquecidos”, bem como de alguns textos de cunho sociológico ou histórico sobre o assunto. Ao nosso ver, o impulso colecionador está no cerne mesmo da obra de Trevisan: a relação de posse constitui um móvel importante em seu universo literário. A posse do outro, em especial, é tematizada a cada passo, e resulta, no mais das vezes, em relações eróticas interditas ou clandestinas que não se reduzem a esquemas utilitários. Nesse contexto, as coleções de contos parecem replicar a lógica das collections curieuses do século XVIII, coleções privadas que valorizam o insólito, o exótico, o desconcertante, desveladas na intimidade doméstica, segundo princípios estéticos.

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Nessa paisagem literária em que prevalece a devassidão seriada, o vampiro pode ser tomado como colecionador paradigmático. Vampiros de toda natureza proliferam nos contos daltonianos—sedutores, assassinos, sanguessugas, caçadores, estupradores. Enquanto colecionadores, esses vampiros estabelecem uma relação de posse com suas vítimas, que, em casos extremos, são reduzidas à materialidade de peças colecionadas e, mesmo, aniquiladas. Assim como seus personagens, o próprio escritor tem, no plano metalinguístico, algo de vampiresco: em suas palavras, “bebe de várias fontes”. Sendo assim, enquanto o vampiro sobrevive à custa das vidas que consome, Trevisan é usuário contumaz de textos de toda natureza: desde literatura clássica até folha policial, os quais incorpora programaticamente na sua escrita. Muito embora a ideia de posse pressuponha uma relação material do colecionador com suas peças, é importante destacar também sua dimensão afetiva. Cada peça está contida dentro de um invólucro de memórias e associações emotivas do colecionador. No caso do autor-­ colecionador que é Trevisan, os contos estão emoldurados por um olhar compassivo. Segundo nossa hipótese, o reconhecimento de que as coleções daltonianas estão conotadas afetivamente enseja novos vieses de apreciação das obras, quer no plano das intenções, quer no da recepção. Por um lado, o olhar sobre o compromisso afetivo do autor com suas personagens indica um novo rumo interpretativo quanto às questões de fundo dos contos: nos leva a deixar de lado as leituras correntes da obra de Trevisan como crítica ao mundo curitibano para focar todo um repertório de violências institucionais, infraestruturais, familiares e sociais, que transcende o contexto sociológico das histórias. Por outro, a atenção a aspectos afetivos das narrativas nos permite melhor vislumbrar as motivações que levam o autor a colecionar essas histórias e as possíveis reações dos leitores à coleção. Com efeito, a compaixão e a afeição apontadas nessa leitura sugerem um nível de identificação narrativa que é mais que mera associação local, pois tem algo de universal. Os episódios do submundo curitibano registrados nos contos tocam em questões basilares da natureza humana. Em seu conjunto, constituem uma coleção de desvios e vícios humanos, falam a nossos sentimentos mais recônditos, sejamos curitibanos ou não. Esperamos, portanto, apresentar uma interpretação que valorize a contribuição literária de Trevisan. No que segue, abordaremos a ideia de coleção na obra de Trevisan, detendo-nos nos seguintes aspectos: 1) coleção versus repetição; 2) os recortes temporal e espacial de Curitiba que figuram na coleção daltoniana; 3) o vampirismo como metáfora do colecionador urbano; 4) a polimorfia sexual na temática recorrente do erotismo; 5) o olhar afetivo que perpassa diferentes contos, ressignificando-os quando tomados em conjunto; e, por fim, 6) a transmissibilidade das coleções de contos na era da reprodutibilidade técnica.

2. A cegueira do caçador de passarinhos Em O vampiro de Curitiba, o epigramático Doutor Nelson sentencia “[m]enino caçando passarinho é cego para o que não for passarinho” (89). Quer tranquilizar Olga, que, em vias de se divorciar, recorre a seus serviços. À saída do encontro com o advogado, Olga se assusta com um menino no quintal vizinho, “trepado na ameixeira” (89), que “caçava, atiradeira em punho e olhar perdido” (88). Daí surge a frase que dá título ao conto: “Menino caçando passarinho”. A figura de linguagem, equívoca e elíptica, diz também algo sobre o protagonista. Doutor Nelson, ou Nelsinho, está sempre “caçando”, mirando “passarinho”. Seu olhar revela cegueira comparável à do menino. Dissoluto, Nelsinho fixa Olga e outras presas que segue colecionando ao rumor das páginas. No mesmo conto, um pouco antes, Olga, a morder “um grampo, a observá-lo no espelho”, pergunta se é só mais uma para a coleção do Doutor. Nelson não hesita: Olga “é a única”. Mas o leitor, já na metade do volume, sabe que, na melhor das hipóteses, única naquele instante, Olga e outras mulheres integram uma série de incursões licenciosas que não deixam de compor uma coleção. O impulso colecionador de Nelsinho parece permear toda a poética de Trevisan, em diferentes planos. Primeiramente, revela-se como princípio externo e estruturante. Em termos

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formais, sua obra é integrada por coleções de contos, micro-contos, haicais e outros poemas. Em termos poéticos, em conjunto, há um inventário de espécimens urbanos, uma tipologia humana que remete aos escritos dos flâneurs fisionomistas oitocentistas que vagavam pelas massas anônimas urbanas a fim de observar os tipos sociais. Se bem que a verve classificadora é aqui nuançada: ademais de perfilar tipos que habitam Curitiba, Trevisan coloca em evidência pormenores que individualizam personagens aparentemente tipológicas. Em segundo lugar, a unidade temática e estilística dos contos que integram cada volume remete à ideia de coleção como princípio interno de organização. Mesmo A polaquinha, única obra romanesca de Trevisan, apresenta estrutura episódica que faz pensar nas coleções de contos. Embora linear e cronológico, os sucessivos episódios do romance guardam certa autonomia narrativa. Em terceiro lugar, além de Nelsinho, outras tantas personagens manifestam o impulso colecionador: toda ordem de vampiro sexual “que bebe deliciado mais uma gotinha de sangue” (Essas malditas 76); o caçador durão que acumulou cabeças de onças e animais empalhados (Rita 77); mulheres devassas, “nelsinhos de saia”, que relatam suas peripécias amorosas ou sexuais, como a Maria, personagem reconhecível em vários contos de Essas malditas mulheres (“Pobres meninas”, “O sonho é azul”, “A letra do assobio”, “Modinha chorosa”, “Dialogo entre Sócrates e Alcibíades”) cujas conquistas incluem João, o sargento, o hominho da Bíblia, o homem casado das cicatrizes, o dentista, o viúvo, o doutor pedante, o negrinho, o homem de terno sultão, Fernando, Pedrinho, Jorginho, Tadeu, o moço loiro, o japonês velho, o japonês novo, o turco e tantos outros. Na fortuna crítica de Trevisan, a unidade temática e estilística de seus contos—evidenciada nos nomes, expressões, episódios e gestos reiterados—é, por vezes, compreendida segundo o conceito de “repetição”. No entanto, uma vez que tudo está em constante transformação em meio ao fluxo do tempo, a ideia de repetição parece problemática. Talvez seja mais pertinente pensar sobre uma “estética da quase-repetição” (Kawin 7), segundo a qual a expressão literária ganha força a cada vez que esses elementos recorrentes são repisados. Kierkegaard, em A repetição, afirma de forma mais radical ser impossível experimentar uma repetição estética, tendo em vista que a aparente repetição se dá num contexto inevitavelmente outro, por mais que as circunstâncias sejam reproduzidas minuciosamente. O filósofo sintetiza sua teoria ao afirmar que “a única repetição é a impossibilidade de repetição” (170). Neste ensaio, portanto, serão deixadas de lado as ideias de “repetição” e “quase-repetição” para que nos detenhamos numa leitura de Trevisan fundamentada no conceito de “coleção”. Em “Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador”, Benjamin observa que “a existência do colecionador é uma tensão dialética entre os pólos da ordem e da desordem” (“Desempacotando” 228). Ainda a esse respeito, um pouco mais adiante, pergunta-se “o que é a posse senão uma desordem na qual o hábito se acomodou de tal modo que ela só pode aparecer com se fosse ordem?” (228). A fim de introduzir certa ordem nessa desordem que se acumula, o colecionador elege critérios que orientam sua atividade. À luz dessas observações, na obra de Trevisan, o que à superfície aparenta repetição talvez sinalize a variação infinitesimal de peças incorporadas a uma coleção. Peças essas que favorecem uma compreensão melhor da natureza humana, pois, como aponta Vieira, “[w]ith each new narrative Trevisan approaches with keener observation a corpus of similar acts and situations wherein he slowly unfolds and incisively dissects one more facet or version of a complex and often social and psychological human paradigm” (“João” 45). O ato de colecionar as diferentes facetas da existência resulta numa obra elaborada sobre um fundo de melancolia: a tristeza da condição humana se comunica aos contos. Também o colecionador é intrinsecamente triste; Rella e Jewell (1986) descrevem-no como alguém saturnino, melancólico que acumula resíduos para salvá-los da perda num mundo de impermanência. Esse desejo será necessariamente frustrado, pois, da totalidade das coisas, o colecionador guarda do esquecimento apenas fragmentos (33), fragmentos esses que evocam um sentimento de perda (35). Nesse sentido, segundo Berta Waldman, “em Dalton Trevisan, a fragmentação espelhada

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na forma estilhaçada e reduzida das ministórias resulta sempre a perda da totalidade” (“Mínimo” 143). Em suma, o gesto colecionador imprime à obra de Trevisan uma dimensão afetiva, o mundo nela referenciado está conotado por sentimentos de perda e melancolia.

3. O demimonde curitibano Um recorte espaço-temporal definido afigura na obra de Trevisan. Os contos ocorrem no presente ou num passado recente, reconhecível. Decerto, há alguma variação temporal, em parte por se tratar de uma obra escrita desde os anos 1940 até os dias de hoje. Assim, nos livros mais antigos, ainda não havia eletricidade em algumas casas—“Chovia, não tinham luz elétrica—uma vela estalava no quartinho” (Novelas 13)—e era preciso “partir lenha, puxar água do poço” (31). Com um pé no passado, aspectos rurais se evidenciam mesmo no cenário urbano. Já nos livros mais recentes, a cidade se mostra modernizada, há personagens ladrões de “celular” (Rita 29) ou “às compras no shopping” (125). Em sua maioria, os contos situam-se em Curitiba. Uma Curitiba que se mostra sob ângulos inusitados, pois como observa Nicolatto, o narrador procura “demarcar seus espaços preferidos, revelar estruturas sociais e simbólicas inscritas num inventário pessoal” (126). Privilegia-se, assim, a Curitiba em que vicejam “inferninhos”, “companhias suspeitas” e “os antros mais infames” (A guerra 122). A Curitiba em cujas ruas circulam “pessoas dadas aos prazeres do sexo” (126). À inversão moral no esquema topológico, corresponde semelhante movimento na escolha de personagens da turba urbana. Em suas histórias, ganham vida tipos considerados marginais: prostitutas, “cornos”, adúlteros e, mesmo criminosos, como pedófilos, cafetões e violadores. Certos contos itinerantes descortinam partes menos conhecidas da cidade por força de convoluções amorosas. Em “O senhor meu marido” (A guerra conjugal), João e Maria se veem constrangidos a mudar de bairro em bairro, na medida em que os casos extra-conjugais de Maria complicam-se ou tornam-se conhecimento público. Percorrem Juvevê, Boqueirão, Prado Velho, Capanema, Alto das Mercês, Água-Verde, Birgorrilho, Bacacheri, Batel, Cristo Rei. “Sem conta são os bairros de Curitiba” (A guerra 5), ao leitor cabe imaginar os deslocamentos da família que se sucedem depois de Cristo Rei. Como epifenômeno da série de escândalos, Maria deu à luz quatro Marias: Maria da Luz, Maria das Dores, Maria da Graça e a caçula, uma “outra Maria”. Em “Pensão Nápoles” (Novelas nada exemplares), o itinerário é um pouco mais modesto. De pensão em pensão, João percorre Curitiba: Pensão Primavera, Floriano, Bagdá, Ali Babá, Nápoles. Assim como de pensão, João muda “de emprego, de noiva” (Novelas 36). Muitas das pensões guardam topônimos ou alusões a outras partes do mundo. Quiçá em razão de sua veleidade de viajar, de escapar das margens do rio Belém, presença que, ao fundo, “irrompia, sem aviso, rio de nascente oculta, sob os pés dos amantes distraídos. A prefeitura ignorava-lhe o curso subterrâneo” (36). Ao rio, é atribuída a sequência de enfermidades que acometem o rapaz: tifo preto, pneumonia, possivelmente, tuberculose. Pobre João, “com o tifo, até a noiva perdera, ele que fora sempre noivo!” (36) Além de ser um recorte espacial, Curitiba é perfilada como personagem metonímica. Manifesta-se conotada nas metáforas mais insólitas. Nas mãos frias de um marido que sofre de “má-circulação periférica” (A guerra 157). No alvoroço das “palavras atropeladas uma sobre outra” (162). Nas “pulgas da insônia” que a infestam (159). Nas lágrimas que “rolavam dos olhos iguais a pingos de chuva na vidraça” (Novelas 28). A expressão de afeto e desejo igualmente se presta a comparações urbanas ou procura imprimir seu traço na paisagem urbana. Ao contato com o amigo, um apaixonado estremece “igual folhas de tinhorão sob as gotas pesadas da chuva” e, sob o sol, procede “de maneira que as duas sombras se abrac[em] numa só” (A guerra 119). Pontualmente, encontram-se outros espaços para além dos limites de Curitiba. O cenário rural, no conto “Os meninos” (Novelas 127–29), por exemplo. A Espanha, em “Noites de amor em Granada” (129–32). As cidades do Recife e do Rio de Janeiro, em “Maria, sua criada” (Rita 7). Ou ainda, em “Rita, Ritinha, Ritona”, a praia onde “vinham as pequenas ondas, uma atropelando a

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outra, na ânsia de ser a primeira a beijar em flores de espuma os róseos pezinhos” da personagem curitibana que passa temporadas no litoral (120). Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, tais deslocamentos não ferem o princípio da coleção: em alguns, parte da narrativa se dá em Curitiba; em outros, as personagens são curitibanas. São exemplares fronteiriços, assentam-se no que Benjamin definiu como a “orla prismática” da coleção (“Desempacotando” 234). Nos contos de Trevisan, encontramos, portanto, um contexto espaço-temporal bastante preciso. As personagens estão sempre se apossando de alguém no cenário curitibano, “scabrous demi-monde of perverted but irresistibly intriguing souls”, como Nelson Vieira sintetiza (“Narrative” 139). Ao eleger esse recorte da cidade em sua coleção, Trevisan traz para o âmbito ficcional personagens, espaços e situações que usualmente são objeto do registro mais efêmero das páginas policiais e seções de cotidiano de jornais e tabloides. Nossa hipótese é que, assim como o colecionador salva fragmentos da voragem do tempo, o autor preserva do esquecimento a realidade “marginal” coligida em seus contos, concedendo-lhe a temporalidade mais dilatada da literatura.

4. Vampirismo Nesse submundo urbano, segundo minha hipótese, o vampiro assoma como colecionador emblemático. Transita entre lapsos temporais diversos. Imortal, confronta-se com a transitoriedade das vidas que coleciona no decorrer dos séculos. É um colecionador macabro, cabe precisar: pratica a destruição para sobreviver. Como aponta Waldman, o vampiro daltoniano “camufla ininterruptamente a perpétua fabricação do mundo, embalsama os seus objetos, interrompendo sua transformação, sua fuga para outras formas de existência” (“Dalton” 250). A algumas dessas vítimas escolhe salvá-las da morte; comunica-lhes sua condição de eternidade. E também a sua condição de colecionador. A Curitiba de Trevisan é habitat de vampiros de toda natureza: parasitas sentimentais, sanguessugas, predadores sexuais, vigaristas e exploradores. De um lado, o vampirismo revela-se em detalhes “inocentes”, como nas noivas que têm “canino ectópico” (A guerra 120). De outro, manifesta sua face mais sombria em tipos como os “clientes mequetrefes bandalhos escrotos que não fazem amor, estripam curram vampirizam” (Rita 49). Introduz a iniquidade no âmbito doméstico: “o noivo tão delicado, meu deus, era a medonha besta resfolegante” (A guerra 126). Mesmo na paisagem citadina, topamos com algo de vampiresco. O crepúsculo vem “nas asas de um morcego” (Mistérios 84). “Pulgas da insônia” sugam a alma (A guerra 159). Referências ao imaginário vampírico surgem nas enumerações mais insólitas (O vampiro 13): “Ó morcego, ó andorinha, ó mosca!” Por vezes, a paisagem e os impulsos humanos são intercambiáveis. Em “Boa noite, senhor” (Novelas nada exemplares), por exemplo, a paisagem reverbera nos seres humanos. O predador sexual é elucidado pela aproximação aos morcegos que voejam pela noite: “Perto da igreja ouvimos o guincho aflito dos morcegos. . . . Gritinhos de morcego velho e cego” (Novelas 40). Dessa feita, na obra daltoniana, a insaciedade draculina transparece nos vampiros que dormem “no fundo de cada filho de família” (O vampiro 10), de “cada pai de família” (12). Nelsinho, o vampiro-mor de Curitiba, pode até não matar com seu beijo, mas provoca a petite mort do gozo. A esse respeito, Nelsinho exclama: “Ai, me dá vontade até de morrer” (9). As mulheres também praticam o vampirismo. Viuvinhas, casadinhas, normalistas, putinhas, virgens abrasadas saem “à caça” pelas ruas de Curitiba. Como observa Gordus, os vampiros de Trevisan, mais tangíveis e próximos do leitor, recorrem a meios mundanos de conquista ou sedução, pois carecem de “poderes sobrenaturais” com os quais imobilizar suas vítimas (22). Em “Adeus, Vampiro” (Rita, Ritinha, Ritona), Nelsinho é “transformado numa espécie encantada de vampiro. Uma nova raça, que já não bebe o sangue—apenas mordisca e sopra a nuca das bem-queridas” (Rita 99). Um vampiro “de

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emoções e sentimentos” que coleciona almas solitárias. Um Drácula que “não crava os caninos e as garras—mais chegado a sábios toques e blandícias erógenas” (99). Voa “nas asas brancas da luxúria” esse “Nosferatu de delicadezas e delícias” (100). Em resumo, um vampiro hodierno, “mocinho de família” que espreita a “fila de ônibus” e pedala por ciclovias (101). Concebidos sob medida mais prosaica, os vampiros curitibanos são quase humanos. Para Gordus, a naturalização do vampiro guarda algumas vantagens “operacionais”: It is the naturalness of their occurrence and the readiness by which each of the protagonists preys on those around him. The horrific is thus not what is repressed but what is shown to be not repressed at all, or rather as a part of everyday existence. The violence, coercion and deception are an integral part of this multitude of urban vampires that populate the city. (24)

A esse respeito, ainda segundo Gordus, a adaptação dos vampiros ao ambiente urbano diz algo dos reveses humanos. Indica que o “outro monstruoso” origina-se no seio da sociedade e não fora dela (17). Se bem que, como já vimos, os vampiros curitibanos não são todos monstruosos. Alguns são apenas dissolutos ou ávidos. No prefácio da terceira edição do Vampiro de Curitiba, Trevisan afirma que “um herói literário é a soma de não sei quantas pessoas” (“Prefácio” 9). Nesse sentido, num dos contos, Nelsinho é descrito como um vampiro que se alimenta “de sonhos, confissões, palavras ao vento” (Rita 99). Assim como o seu protagonista, no plano metalinguístico, o próprio escritor se presta a comparações com o vampiro. Se o vampiro é a soma das vidas que consome, o autor é a soma dos textos que consome. Ainda nesse prefácio, Trevisan indica que, para escrever suas histórias, bebe de várias fontes, “notícia policial, frase no ar, linha de remédio, pequeno anúncio, bilhete de suicida, o meu e o teu fantasma no sótão, confidência de amigo, a leitura dos clássicos etc.” (“Prefácio” 9). O consumo de toda ordem de texto evidencia a relação produtiva e inovadora do autor com os meios de comunicação de massas e a indústria cultural. Waldman explicita a importância para Trevisan da linguagem dos meios de comunicação de massas, mas qualifica: “houve um roubo, a apropriação de uma forma esvaziada, por força de repetida, que vai ganhando em sua obra novos planos de significação” (“Dalton” 252).

5. Erotismo polimórfico Em “Livros infantis antigos e esquecidos”, Benjamin se pergunta sobre as motivações secretas dos colecionadores. “Como seriam interessantes as respostas, pelo menos as sinceras! Pois apenas os não-iniciados poderiam crer que não existe aqui algo a esconder ou racionalizar. Arrogância, solidão, amargura—muitas vezes esse é o lado oculto de muitos colecionadores cultos e bem-sucedidos” (235). No já citado “Desempacotando a minha biblioteca: Um discurso sobre o colecionador”, Benjamin dá-nos uma pista sobre os impulsos por trás das coleções. Afirma ser a coleção uma “relação com as coisas que não põe em destaque seu valor utilitário ou funcional” (228). Mais adiante, descreve “a posse” como “a mais íntima relação que se pode ter com as coisas” (235). A relação de posse representa um motor importante na economia da obra de Trevisan. A posse do outro é um dos motivos recorrentes em seu projeto literário. E, no mais das vezes, essa posse se dá por meio de relações eróticas interditas ou clandestinas que fogem a esquemas utilitários ou funcionais. Esse rol de relações eróticas se organiza segundo a lógica das coleções pessoais. Remete, com efeito, às collections curieuses do século XVIII, coleções privadas resultantes de uma estetização do fenômeno da curiosidade (Dietz 46), em que se valorizam objetos exóticos, curiosos ou desconcertantes. Assim como o colecionador de curiosidades, Trevisan elabora e ordena seus contos segundo critérios estéticos: o interesse pelas personagens e estranhas situações que colige é, sobretudo, literário. Não partilha das preocupações científicas

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dos naturalistas ou dos responsáveis pelas exposições panorâmicas dos museus. A sua coleção expõe, ademais, episódios colhidos no âmbito doméstico, que são desvelados na intimidade da leitura, protegida do olhar público, à semelhança das coleções privadas. A sexualidade aflora, portanto, polimórfica nos escritos daltonianos. Encontramos um catálogo de taras e depravações: pedofilia, sadomasoquismo, zoofilia, fetichismo, necrofilia, incesto. À relação de manias ou vícios sexuais, corresponde uma galeria de tipos: prostitutas, cafetões, estupradores, dominatrices, destruidores de lares, exibicionistas, mulheres fatais, voyeurs. Muitas vezes, o sexo se associa à violência. Raramente coincide com sentimentos amorosos. Práticas as mais variadas integram o inventário erótico: troca-troca, jogos eróticos, roçadinha, bolina, exibicionismo. Como desdobramento da obsessão erótica, os cuidados cosméticos constituem preocupações de primeira importância. Cuidados com cabelos, roupas, maquilagem, lingerie. Caindo de joelho, um João entre tantos suplica: “Cuide bem das unhas. Não esqueça: o esmalte carmim” (Essas malditas 108). O vampirismo de algumas dessas personagens é significativo no âmbito sexual. Nelsinho, ao levitar, “suspenso nove centímetros do chão, desferia voo não fosse o lastro da pombinha do amor” (O vampiro 12). O vampiro arquetípico de Curitiba deseja, com efeito, possuir suas vítimas. A ressignificação do vampiro como ser cúpido e “safadinho” imbrica dois temas transversais na obra de Trevisan. Se o vampiro, imortal, é um ser perene em um mundo transitório—o desejo, perenemente transitório, é uma constante no mundo vampirizado. Nos contos, até mesmo a paisagem é erotizada. Ora passiva, “a cidade assist[e]” às volúpias narradas pelas personagens (Essas malditas 91). Ora ativa, participa de trocas eróticas. Em “Rita, Ritinha, Ritona”, elementos da natureza, tanto quanto do domínio artefato se dobram aos desejos inspirados pela personagem que empresta seu nome ao título do conto e do livro: À sua passagem os cãezinhos a passeio presos na coleira davam duplos saltos-mortais de alegria. Nas janelas os vasinhos de violeta batiam palmas para lhe chamar a atenção. As pedras mudavam de lugar na calçada, cada uma disputando o afago do seu pezinho. Os semáforos se acendiam em onda verde, não atrasá-la caminho da escola. Um bando de garças voou lá do Passeio Público para vê-la. (115)

No âmbito linguístico, a descrição da sexualidade oscila entre a elipse e a hipérbole. Em “O sonho é azul”, por exemplo, encontramos o emprego de elipse como maneira de insinuar o que não se pode dizer. Quando João pergunta se houve bolina no carro, Maria responde evasiva: “Ficamos de mãozinha. Me deu um beijinho quando chegou. Dei outro quando saiu” (Essas malditas 37). Em outras tantas passagens, prevalecem descrições hiperbólicas. Personagens entregam-se ao “delírio erótico até ao desmaio” (Novelas 127). Folheiam revistinhas de sacanagem com “incríveis posições mil” (Essas malditas 88). O gozo feminino é descrito, “no abismo de rosas, um turbilhão de beijos loucos” (126). Por seu turno, o falo ganha epítetos como “impávido forte colosso gigante” (A polaquinha 11). Cabe observar que, nesses contos, o prazer aparece, em figuração literária, desvencilhado de qualquer regime de interdições ou discursos moralizantes. Mesmo quando fruto de violência, autor, personagens e narrador abstêm-se de explicitar juízos morais. Isso não significa, porém, que a obra de Trevisan se constitua num interstício de amoralidade. Tampouco procede a uma pura estetização do desejo. Elementos textuais sinalizam sentimentos morais implícitos. Vieira aponta, como contrapartida à escrita minimalista, o “método de implicação” dos leitores, que devem aportar ao texto “seus próprios sentimentos, conhecimentos e experiências” (“Narrative” 145). Nesse contexto, a elipse, além de recurso estilístico, revela-se estratégia narrativa com fins morais (mas não moralizantes). Espera-se que o leitor preencha certas lacunas no texto com suas próprias reações ou sentimentos morais. Como outro recurso literário que favorece a aproximação empática do leitor às personagens, o autor lança mão de mudança de perspectivas

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seja no interior de certos contos, seja em sequências de contos (como “Quarto separado”, “A gargalhada de Lili” e “O pão e o vinho”, em A guerra conjugal, que desnudam as perspectivas dos partícipes num triângulo amoroso).

6. O olhar afetivo É possível observar ainda outro elemento de coesão importante nas coleções de Trevisan: o enquadramento afetivo das suas narrativas. Ao retomar a teoria sobre commodities de Marx, Janell Watson frisa que as relações entre objetos são indissociáveis das relações entre pessoas: “the world of things is a social world, with a social structure, which includes not only class relations and social positioning, but also gender relations, written and unwritten rules of exchange, usages of objects in daily life, and the significance accorded to objects, implicitly or explicitly, consciously or unconsciously” (7). Se as coisas, como regra, têm uma dimensão social, aos objetos de uma coleção agrega-se, ademais, valor sentimental. Com efeito, é próprio do colecionador se apegar às peças que incorpora à sua coleção. Nesse processo, ressignifica cada uma afetivamente e a imbui em memórias e associações emotivas. Enquanto colecionador, Trevisan lança um olhar compassivo sobre a miséria humana perfilada em sua obra. Mesmo em contos macabros, o autor não dispensa às personagens um olhar frio ou distante. Como já se mencionou, sua técnica literária favorece a intimidade do leitor com as personagens e, concomitantemente, provoca reações sentimentais e empáticas. O humor é também conotado afetivamente: o riso que sua obra provoca não é cruel, é antes enternecido ou sofrido. A linguagem é igualmente dotada de dimensão afetiva, seja no uso frequente de diminutivos, seja nas metáforas “fofas”. Numa de suas figurações metalinguísticas, transparece certo carinho mesmo pelas “palavras atropeladas uma sobre outra como bacorinhos gulosos disputando a mesma teta” (A guerra 162). A dimensão afetiva do texto se encontra tematizada de maneira interessante na tensão entre o kitsch e o cute. Em meio a diálogos e descrições salazes, o vampiro ou o narrador “celebra gentilmente as suas fofuras em prosa e verso” (Rita 99). No conto “Arte da solidão”(A guerra 91–94), justapõem-se, de um lado, “o cachorrinho [que] late duas vezes” e “o peixinho dourado [que] conhece os seus passos e de puro exibicionismo entrega-se às mais loucas evoluções” e, de outro, “ a fruteira sobre a mesa (uvas e peras berrantes de cera)” e “o quadro bordado na parede (o medonho galo verde)”. Por sua vez, em “A batalha dos bilhetes”, deitam-se sonhos recheados e cartas amorosas sobre a cristaleira, aos pés do Buda dourado (A guerra 148). Analogamente, em passagens de conotação sexual, comparam-se seres humanos a bichinhos: “Graças a Deus pelas mulheres, tão bem feitas para serem acariciadas—ratinho branco, gato angorá, porquinho da índia” (O vampiro 16); “sou peixinho fora do aquário, estalando o bico de aflição, sem ar para beber, sem água para respirar” (Rita 71). Ainda no contexto das “fofuras”, colorem-se certas passagens com figuras de linguagem emprestadas de contos de fadas ou histórias da carochinha. O gozo é assim descrito: “E os dois explodimos em estrelinhas piscantes no céu, peixinhos dourados no azul do mar, florinhas de todas as cores vagando no ar. Vestidos e recompostos, um tantinho ofegantes” (Rita 76). Ao descrever a menina que testemunha os encontros extraconjugais da mãe, são retomadas referências do imaginário infantil: “A menina bem-comportada na sala. Cansou de balançar a mesma perna gorducha da mãe. Enfim cochila, agarrada na bolsinha nova. Dorme, pobre menina, antes que o bicho papão te pegue” (Essas malditas 94). Mas o olhar afetivo não se traduz em inocência “pura”. Muitas vezes, há um fundo de compaixão ante a fragilidade humana, “sombra de tristeza. Olhinho lá longe” (Essas malditas 46). As descrições da velhice, por exemplo, expressam o afeto compadecido: “Dengosa fez uma boquinha redonda de bailarina. Apesar dos oitenta, ainda um dente aqui, outro ali” (Essas malditas 112). Essa perspectiva em que se imbricam ternura e dó se manifesta em detalhes ínfimos como quando Maria vai junto com Biela ao enterro, de carro com chofer, “comendo

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broinha de fubá mimoso” (Essas malditas 21). Na “Balada das mocinhas do passeio” (Rita, Ritinha Ritona), encontra-se o refinado jogo literário tão característico da escrita de Trevisan, em que se entretecem afeto, humor e compaixão: “botinhas altas de sola furada / algodão doce pipoca/ boquinhas em coração de carmim / antes ventosas de medusas vulgívagas . . . são as mocinhas pra cá e pra lá / na ronda sempiterna do amor . . . as damas peripatéticas do Passeio Público . . . nem tão mocinhas/são trágicas são doentes são tristes” (Rita 46–48). Em vários contos, mesmo quando o fito é crítico, há um saldo afetivo. Contra algumas personagens, por exemplo, alinhavam-se insultos, entre irônicos e carinhosos, cheios de diminutivos e antíteses. É o caso de José, namorado da personagem dileta de “Rita, Ritinha, Ritona” (115–25), que é descrito por uma série de insultos ferinamente gentis: “maniqueísta da saia curta, o discípulo fariseu de Calvino, o diabo de bigodinho” (121); “caniço de pernas tortas” (123); “o abominável fulaninho” (124).

7. A transmissibilidade da coleção Finalmente, gostaria de retomar uma última passagem do ensaio “Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador”, em que Benjamin afirma ser “a transmissibilidade de uma coleção a qualidade que sempre constituirá seu traço mais distintivo” (234). A noção de transmissibilidade parece iluminar duplamente as coleções de contos daltonianas. De uma parte, faz-nos pensar nos emblemáticos vampiros que proliferam em sua obra cuja condição é transmissível. Em O vampiro de Curitiba, Nelsinho menciona a comunicabilidade de sua condição: “culpa minha não é, elas me fizeram o que sou—meu peito é oco de pau podre, onde só floresce aranha, cobra e escorpião” (11). Um pouco adiante, Nelsinho pergunta-se: “ai, Senhor, qual de nós dois é a vítima?” (20). Gordus explicita os paradoxos morais e vitais dessa transmissibilidade: “In terms of its relations to other, the figure of the vampire is a paradoxical one. A predator, the vampire feeds on its victims in order to sustain itself and in so doing, it creates another vampire who in turn feeds upon others. What develops is a situation in which the vampire is both victim and victimizer” (23). De outra parte, a transmissibilidade marca a relação íntima que estabelecemos com a obra de Trevisan. Nessa relação, adquirimos familiaridade com os tipos humanos nela delineados. Essa familiaridade sugere a dimensão afetiva da transmissão nesse caso: são-nos transmitidas histórias bastante recônditas, geralmente segredadas no âmbito doméstico. A esse respeito, Vieira compara sua coleção de contos a um velho álbum de fotografias de família: As fragmented instances of life quickly or unexpectedly snapped by some unknown photo­ grapher these narratives are not unlike the many covers or jackets of a Trevisan publication where old photos or daguerreotypes are used to stimulate our experience of perusing our old family album. In the short stories themselves this close-up, instamatic effect is achieved by the extensive use of dialogue, interspersed with brief interior monologues, and an occasional monologue—all against a very sparse background of omniscient narration. . . . The result is a camera-eye view of life, a Human Comedy of conflicts, sins and passions depicted in short stories that overlap, interconnect, repeat, and reiterate the tribulations of all Johns and Marys. (“João” 146)

A ideia de transmissibilidade ganha novo sentido na era da reprodução técnica das obras de arte. Se as coleções só podem ser transmitidas integralmente a um legatário, as coleções literárias, como as de Trevisan, tecnicamente reproduzíveis, transmitem-se a milhões de leitores. Afora as possibilidades materiais de reprodução, Trevisan explora os efeitos estéticos da reprodutibilidade em seu projeto poético. A esse respeito, Waldman aponta a relação estreita entre sua obra e a pop-art. “Ele liga-se à prática hiper-realista de transferir para o texto linguagens prontas, readymades, clichês que vêm do mundo da experiência cotidiana, onde o automatismo da percepção

Gazzinelli / O olhar de colecionador nos contos de Trevisan 

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as banalizava, para a literatura, onde ganham novo estatuto e sentido diverso” (“Mínimo” 146). Em outro artigo, a comentadora associa o vampirismo com “seriação, repetição e tautologia” (“Dalton” 252), pois trata-se de “um sistema interessado na criação de seriados” (“Dalton” 249).

8. Conclusão Neste ensaio, nossa proposta de interpretação de Dalton Trevisan se dá a partir da discussão teórica sobre o ato de colecionar, na contracorrente das muitas leituras que se apoiam no conceito de repetição ou quase-repetição para explicar nomes, descrições e episódios reiterados nos sucessivos contos. Defendemos que o impulso colecionador se manifesta nos planos formais, estruturais e afetivos da poética daltoniana. Com efeito, assim como o colecionador, Trevisan, ao coligir suas histórias, elege critérios—espaciais, temporais e temáticos—que concedem certa unidade a sua obra. Ademais, tentamos evidenciar que, a exemplo das peças de uma coleção, seus contos estão enquadrados afetivamente; um olhar empático parece iluminar a intimidade devassada em cada narrativa. Multiplicados e distribuídos, os livros de Trevisan passam a ser uma coleção privada e pública, ainda que seu objeto seja a intimidade. A natureza reservada da leitura guarda-lhe a dimensão privada. Mas cada coleção constitui um pequeno volume, fácil de transportar. Passa de mão em mão sem maiores percalços: coleção de bolso que, ademais de transmissível e reproduzível, é portátil. Dalton Trevisan compartilha, assim, com o público maior de seus leitores as narrativas reunidas em suas coleções. As variações, por vezes infinitesimais, de cada conto ou poema que integra o conjunto vão matizando um universo insólito e sombrio, objeto da coleção maior de seu projeto literário.

AGRADECIMENTO Gostaria de agradecer ao Professor Nelson Vieira as indicações bibliográficas e os conselhos que me ajudaram a fazer uma leitura mais crítica de Trevisan, bem como a leitura generosa da primeira versão deste ensaio; e a Eduardo Lourenço de Lima pelas conversas sobre Trevisan e Benjamin que me inspiraram a escrevê-lo.

OBRAS CITADAS Benjamin, Walter. “Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador”. Obras escolhidas II: Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995. 227–35. Impresso. ———. “Livros infantis antigos e esquecidos”. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993. 235–43. Impresso. Dietz, Bettina, e Thomas Nutz. “Collections Curieuses: The Aesthetics of Curiosity and Elite Lifestyle in Eighteenth-Century Paris”. Eighteenth-century Life 29.3 (2005): 44–75. Web. 13 set. 2014. Gordus, Andrew M. “The Vampiric and the Urban Space in Dalton Trevisan’s ‘O vampiro de Curitiba’”. Rocky Mountain Review of Language and Literature 52.1 (1998): 13–26. Web. 27 nov. 2012. Kawin, Bruce F. Telling it Again and Again. Ithaca: Cornell UP, 1972. Impresso. Kierkegaard, Søren. Fear and Trembling/Repetition. Princeton: Princeton UP, 1983. Impresso. Nicolatto, Roberto. “Em busca de Curitiba perdida: Resistencia e memória no inventário de Dalton Trevisan”. Revista letras 64 (2004): 125–41. Web. 19 set. 2014. Rella, Franco, e Jewell, KealeJane. “Melancholy and the Labyrinthine World of Things”. SubStance 16.53: (1987): 29–36. Web. 12 set. 2014. Trevisan, Dalton. Essas malditas mulheres. Rio de Janeiro: Record, 1982. Impresso. ———. A guerra conjugal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. Impresso. ———. Mistérios de Curitiba. Rio de Janeiro: Record, 1979. Impresso. ———. Novelas nada exemplares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. Impresso. ———. A polaquinha. Rio de Janeiro: Record, 1985. Impresso. ———. “Prefácio”. O vampiro de Curitiba. Rio de Janeiro: Record, 1974: 8–10. Impresso.

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———. Rita, Ritinha, Ritona. Rio de Janeiro: Record, 2005. Impresso. ———. O vampiro de Curitiba. Rio de Janeiro: Record, 2009. Impresso. Vieira, Nelson. “João e Maria: Dalton Trevisan’s Eponymous Heroes”. Hispania 69.1 (1986): 45–52. Impresso. ———. “Narrative in Dalton Trevisan”. Uniletras 16 (1994): 139–49. Impresso. Waldman, Berta. “Dalton Trevisan: A linguagem roubada”. Revista Iberoamericana 43.98 (1977): 247–55. Web. 10 set. 2014. ———. “Mínimo múltiplo: Do conto ao haicai em Dalton Trevisan”. Letras: Revista do mestrado em letras da UFSM 14 (1997): 139–49. Impresso. Watson, Janell. Literature and Material Culture from Balzac to Proust: The Collection and Consumption of Curiosities. Cambridge: Cambridge UP, 1999. Impresso.

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