Cabaré Mineiro: Um período de libertação

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Cabaré Mineiro: Um período de libertação1 Ana Carolina Dias Ribeiro Camila Lopes Cordeiro João Victor de Campos Ruhan Carlos Botelho2

RESUMO: O artigo busca analisar a relevância histórica e política do Cabaré Mineiro no período em que esta esteve em atividade. Tendo como pano de fundo o cenário de redemocratização em que se encontrava Belo Horizonte, procuramos conhecer um pouco mais do público do Cabaré e sua importância para a vida dessas pessoas e da cidade. O artigo vem para responder questões como: como foi essa casa? Quais eram seus agentes principais? Quem frequentava? O que suas ações desencadearam na cidade? Busca-se refletir sobre como políticas culturais eram escassas durante e pós-ditadura e como casas como o Cabaré Mineiro fizeram a diferença ´no período de libertação do país. PALAVRAS-CHAVE: Cabaré Mineiro. Ditadura Militar. Redemocratização. Políticas culturais.

Introdução Isso é que é, na verdade, a Revolução Brasileira. [...] ela ganha carne, densidade, penetra fundo na alma dos homens. O rio que vinha avolumando suas águas e aprofundando seu leito, até março de 1964, desapareceu de nossas vistas. Mas um rio não acaba assim. Ele continua seu curso, subterraneamente, e quem tem bom ouvido pode escutar-lhe o rumor debaixo da terra. (GULLAR. 1967, p. 253).

Para melhor entendermos o cenário político-cultural de Belo Horizonte hoje, precisamos analisar uma crescente variedade de complexidades assim como analisar o passado. Escolhemos estudar uma casa de música, shows e entretenimento, o Cabaré Mineiro, para compreendermos mais sobre atual cenário político-cultural da capital do estado de Minas Gerais. 1

¹Trabalho Interdisciplinar Dirigido IV, jornalismo, vitrine, BH, 2015. ²Graduandos em jornalismo multimídia, Centro Universitário Una, Belo Horizonte, Minas Gerais. TIDIR IV: Orientadora Cândida Emília Borges Lemos, co-orientadores Elisangela Dias Mendes, Geralda Nelma Costa, Júlio César Machado Pinto, Maria Magda de Lima Santiago, Piedra Magnani da Cunha. 2

Uma cultura local sofre influência de elementos externos, sendo modificada por fatores tecnológicos e modismos, segundo Medeiros e Silva (2006). Agora tentemos imaginar: o quanto uma cultura local pode ser afetada por 21 anos de governo ditatorial? Dá para medir os danos emocionais? Dá para registrar as dores do silêncio da sociedade? Improvável. Principalmente com tantos documentos e registros e pessoas apagados da história. Mas valores difundidos e empurrados através de violência da ditadura são reapropriados, resignificados e reapresentados pela sociedade. Então os valores antigos são transformados e em novos. O Cabaré Mineiro pode ser considerado um catalisador desse processo em Belo Horizonte. O artigo vem para responder questões como: como foi essa casa? Quais eram seus agentes principais? Quem frequentava? O que suas ações desencadearam na cidade? O cruzamento de variáveis históricas como o período pós-ditadura e a consolidação do Clube da Esquina, por exemplo, criaram uma conjuntura na qual foi possível o surgimento do Cabaré Mineiro. E essa junção entre política e cultura parece nunca ter sido tão intensa na capital mineira desde então. A junção político-cultural desse período, como de qualquer outro, tem muitas facetas e estende-se por todos os setores e classes da sociedade. Por ser plural e transitar livremente por todas as esferas da sociedade, essa junção pode ser chamada de diferentes modos – mas que seria necessariamente limitadores, pois uma denominação sintética dificilmente seria capaz de dar conta da complexidade e da diversidade de fenômeno tão abrangente. Dessa forma, utilizando como metodologia o estudo de bibliografias sobre o período, obras literárias, artigos publicados em jornais da época, músicas e, especialmente, depoimentos frequentadores daqueles anos em que funcionou o Cabaré Mineiro, trazemos uma discussão sobre as manifestações culturais entre os anos 85 e 92 - período em que o Cabaré funcionou que só o distanciamento temporal poderia permitir, para chegar mais perto de um desfecho para o tema. Nossa pesquisa durou, em média, 4 meses e teve a colaboração de 3 entrevistados e matérias encontradas no acervo da imprensa oficial. A ‘estrutura participativa’ do Cabaré Mineiro aspirava reduzir a distância entre arte, liberdade e os cidadãos que acabaram de sair de pouco mais de duas décadas de ditadura militar. Apesar de ser uma casa de shows cara, o que dificultava a acessibilidade a todos, o papel dela ia além de uma casa de show e pode ser considerada um polo cultural da época, onde funcionava a

escola de Música de Minas Gerais. Essa abordagem participativa e mais acessível deu às pessoas ordinárias a possibilidade de se reinventar depois de tantos anos de censura e a se expressar com maior liberdade. Segundo Marcelo Ridenti (2005), o caráter de se viver em uma experiência viva nem sempre é perceptível para os artistas no momento em que a constituem. Torna-se clara, no entanto, com a passagem do tempo que a consolida. Por isso é importante estudar o Cabaré Mineiro – único em BH, para entender a extensão da influência no cotidiano da sociedade belohorizontina e no comportamento dos indivíduos que frequentaram. Além de a censura ser um tópico que recebeu muita atenção, sobretudo no que se refere a sua influência em autores e obras, o método usual de dividir longos períodos em décadas é predominante, com qualificativos já sedimentados; desde os “dourados” anos 1960, considerados o ponto inicial do processo, passando pelos “anos de chumbo” da década de 70, seguindo pela “década perdida” dos anos 80 e pela do “desencanto” dos anos 90, chega-se ao “século XXI” – prematuramente assumido por vários críticos como corte temporal significativo –, em que se antevê um admirável mundo de novas tecnologias e subjetividades encapsuladas em violência e plasma, refletidas nas produções culturais. Em resumo, um longo período de consequências, cujas causas principais teriam forte relação com o tempo da ditadura militar brasileira. (PELLEGNINI, 2014)

Políticas públicas e indústria cultural O cenário no Brasil era o mais escuro e amedrontador que se pode imaginar. Durante 21 anos, os cidadãos brasileiros viveram dias de repressão, torturas, mortes e ocultação de cadáver. Mesmo após 30 anos do fim da Ditadura Militar, muitos desses corpos, hoje ossadas, não foram encontradas. Segundo a Comissão Nacional da verdade, em relatório oficial publicado em dezembro de 2014, “no Brasil, de 1946 a 1988, período coberto pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), foram registradas 191 mortes por execução sumária e ilegal ou decorrentes de tortura, perpetradas por agentes a serviço do Estado” (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014).

A censura atingia todas as áreas. As pessoas não podiam expressar abertamente suas opiniões. Tudo era dito sussurrado, para que a vidas não fossem tiradas misteriosamente. Quanto à

mídia, aquela que devia levar informação e formar opiniões, não podia publicar críticas negativas sobre aquela forma de governo. Caso isso acontecesse, editoras e jornais seriam fechados. Alguns veículos resistentes, sob pressão de serem fechados e ao se recusarem apoiarem o governo com matérias positivas, expunham em suas páginas receitas de bolo ou poemas de grandes autores. No dia 26 de julho de 1973 o jornal O Estado de São Paulo publicou uma nota intitulada “Censura proíbe ‘L’Express”. Nela o jornal expunha que o governo militar havia proibido o periódico francês “L’Express” de circular no Brasil. Isso aconteceu porque o periódico denunciava a influência de um governo ditador na mídia francesa. A figura abaixo é a página do jornal citado. Percebe-se que esta é a nota antes de ser censurada. Figura 1 – Página do Estadão original

Fonte: O Estado de São Paulo online, edição do dia 26 de julho de 1973, p. 20, grifo meu.

Com a publicação da nota acima, o governo brasileiro exigiu que a editoria do jornal a substituísse por outra informação que não incitasse uma mídia negativa ao governo da época. Dessa maneira, indo contra a exigência de fazer uma publicação pró-governo, o jornal publicou no lugar da nota um soneto de Luis de Camões. Na Figura 2, tem-se a página censurada do jornal O Estado de São Paulo do dia 26 de julho de 1973. Figura 2 – Página do Estadão censurada

Fonte: O Estado de São Paulo online, edição do dia 26/07/1973, p. 20, grifo

meu.

Para ganharem concessões e poderem funcionar, muitas emissoras de televisão e rádio se curvaram diante dos ditadores, aceitando que aquele período perduraria por anos a fio. Quem dançava conforme a “jovem guarda” era aplaudido de pé; quem optasse pela “MPB” era caçado até o fim. Em respostas às declarações de repúdio ao apoio da Fundação Roberto Marinho à Ditadura Militar, o jornal “O Globo” publicou em seu site um texto que dizia que Diante de qualquer reportagem ou editorial que lhes desagrade, é frequente que aqueles que se sintam contrariados lembrem que O GLOBO apoiou editorialmente o golpe militar de 1964. A lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como refutá-la. É História. O GLOBO, de fato, à época, concordou com a intervenção dos militares, ao lado de outros grandes jornais, como “O Estado de S.Paulo”, “Folha de S. Paulo”, “Jornal do Brasil” e o “Correio da Manhã”, para citar apenas alguns. [...] Naqueles instantes, justificavam a intervenção dos militares pelo temor de um outro golpe [...]

E onde entram as casas e espaços culturais da época? Até o ano de 1985, não havia incentivo do governo nas áreas culturais. A criação de espaços voltados para o lazer e entretenimento da população não estava na pauta de nenhum presidente ditador. Em artigo de Lúcia Maciel Barbosa (2009), a autora explica que A cultura e a arte sempre ocuparam um plano secundário no Brasil, o que traz reflexos que se evidenciam ainda hoje. Essa posição trouxe, como corolário, o fato de que uma das características definidora da política cultural no Brasil foi sua total ausência. Em termos mínimos, para que se configure uma política cultural são necessárias intervenções conjuntas e sistemáticas, além de objetivos claros.

Preocupados em manter a ordem pública, criaram divisões como a Delegacia de Ordem Pública e Social (DOPS), criada para controlar os cidadãos e vigiar manifestações durante a ditadura; Destacamento de Operações de informações (DOI), incumbida de investigar, interrogar, prender e averiguar as informações – não necessariamente nessa ordem – de pessoas que organizavam manifestações contra o governo, ou disseminavam ideias comunistas; dentre outros órgãos, não deixando de lado o Ato Institucional (AI), uma série de normas arbitrárias normas arbitrárias editadas no período de 1964 e 1985, que tinham como objetivo manter o controle militar no país. Em suma, apoiar esse tipo de estabelecimento seria ir contra a ordem importa pelos militares.

Em 1961, antes de a Ditadura ser imposta, mas em um período turbulento na política, começou no Rio de Janeiro um movimento sustentado pelas ideias socialistas. Denominados Centro Popular de Cultura (CPC), esses locais logo se espalharam para outras cidades brasileiras e foram criados com o intuito de fortalecer os ideais esquerdistas. Esses centros eram organizados pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e encenavam peças com propagandas do movimento, sátiras ao imperialismo e em favor das lutas de base. O professor universitário Júlio Cesar Machado Pinto era estudante no período ditatorial. Em entrevista, Pinto explicou que havia uma união muito forte do movimento estudantil, que tinha o mesmo objetivo: acabar com a ditadura militar. Além de estudantes, artistas também se manifestavam contra a Ditadura. Nos anos 70 o movimento estudantil era muito forte, realmente de enfrentamento. Eu era estudante da Fafich nesta época e lembro que o prédio foi cercado diversas vezes durante neste período. Era claro que tínhamos um inimigo em comum. Os artistas da época cantavam canções que representavam um tom de protesto e, ao mesmo tempo, uma brasilidade. Assim eles burlavam a censura falando aparentemente de amores perdidos, ou desfile nos sambódromos. (PINTO, 2015)

Logo após a derrubada do presidente João Gourlat, a sede da UNE foi incinerada, todos os CPCs foram fechados e aqueles que eram ligados ao movimento acabaram presos ou exilados. E assim começa o período de declínio cultural vivido em nosso país.

Cabaré Mineiro Rua Gonçalves Dias, número 54, Bairro Funcionários. Este era o endereço um dos espaços de maior efervescência entre 1985 e 1992. Um prédio onde a pluralidade era palavra de ordem, onde a liberdade se apresentava todas as noites. Diariamente, inúmeras pessoas passam em frente de onde existiu a maior casa de show dos anos 90 em Belo Horizonte. Utilizamos uma matéria publicada no jornal Estado de Minas (Figura 3), no dia 3 de agosto de 2013, para conhecer um pouco mais da estrutura do Cabaré e a capacidade de público. Durante a sua construção, o Cabaré recebeu uma atenção maior de seus sócios fundadores. Wagner Tiso e Cláudio Rocha fizeram de um terreno baldio um prédio único. Segundo a matéria, o projeto arquitetônico, inspirado no Teatro Municipal de Sabará, foi criado por Milton Reis. Seu espaço era dividido entre um palco, mezanino, dois andares com mesas, uma grande pista de dança e toda sua totalidade recebia 700 pessoas, sendo 400 delas sentadas.

Figura 3 – Reportagem especial sobre o Cabaré Mineiro

Fonte: Jornal Estado de Minas, edição do dia 03/08/2013, p. 18.

Além dos detalhes estruturais, o Cabaré também recebeu uma atenção redobrada em sua decoração, dialogando com a geração da época e sendo pensadas pelos artistas Marcelo Xavier e Mário Valle. Esses detalhes faziam brilhar os olhos da clientela fiel que, de segunda a segunda, fervilhava o espaço com discussões políticas e shows exclusivos. Este tipo de espaço era único durante o Regime Militar (1964-1985) em Belo Horizonte, período este que conteve todas as manifestações culturais, censurou os shows e excluiu a liberdade, como disse a comunicóloga e doutora em História, Cândida Emilia Borges Lemos. “A minha geração pegou o restinho da ditadura militar. Então queria respirar liberdade, show sem censura, participar de coisas livres”, conta. Inicialmente, o interesse dos fundadores era utilizar o espaço para apresentações dos alunos da Música de Minas Escola Livre, que era um empreendimento de Cláudio Rocha, Milton Nascimento e Wagner Tiso que funcionou entre 1980 a 1986. Com a expansão do público e o anseio por respirar liberdade, o show sem censura ganhou espaço e a escola foi fechada, dando lugar o Cabaré Mineiro. O Cabaré apresentava uma cartela bem diversificada de artistas indo do nacional ao internacional, e do conhecido ao estreante, como Adriana

Calcanhotto, Leila Pinheiro, Nara Leão, Nana Caymmi, Cauby Peixoto, Luiz Melodia, Eduardo Dusek, João Bosco, Cida Moreira, Belchior, Jorge Ben e Banda Zé Pretinho, Jane Duboc, Lúcio Alves, Amelinha, Ednardo, Sivuca, Taiguara, Dominguinhos, Grupo Rumo, Ná Ozzetti, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Eliete Negreiros, Boca Livre, Olívia Byington,Veludo Cotelê,Ouro de Tolo, Paulo Moura, Milton Nascimento, Wagner Tiso, Toninho Horta, Tavinho Moura, Beto Guedes, Lô Borges, Marco Antônio Araújo, Grupo Uakti, Paula Santoro, Titane e Sylvia Klein, Wayne Shorter, Wynton Marsalis e Joe Pass, Vitor Marceli, Toots Thielmans e Al Di Meola. “Lá tinha exposição de artes plásticas, tinha música, teatro, dança, tinha tudo. Era uma sala multi uso, que é fundamental na vida de uma metrópole.” Para Lemos, a multiplicidade do Cabaré Mineiro pode ser considerado o principal fator para que ele seja agraciado pelos seus frequentadores, que encontravam um local onde a sede cultural fosse saciada. O Cabaré não se restringia apenas a uma casa de show, ele era um pólo artístico de constante mutação no qual as explosões criativas eram incentivadas por todos os ângulos. Os fundadores eram reflexos dessas explosões, já que ambos sempre estiveram envoltos no ambiente cultural, fazendo parte do Clube da Esquina”. Quando a casa começou, não era mais um espaço para ouvir uma música e beber algo, e sim para promover novas ações no cenário cultural belo-horizontino, indo desde de leilões de quadros até reuniões de movimentos políticos. Grupos com as mais diversas conversas se formaram durante os sete anos de funcionamento do Cabaré. O projeto “Sempre Um Papo”, que sempre se reunia às segundas, também passou pelas noites do Cabaré. No dia 30 de julho de 1987 recebeu os intelectuais e artistas para um ‘papo’ com o público. Especialmente nessa noite, Osvaldo Saidon lançava seu livro “Analise Institucional do Brasil”. Sempre eram providas novas propostas de discussões que acompanhavam o que acontecia fora das paredes da casa. O plural do Cabaré também se estendia pela idade do público que, segundo Lemos, era diversificado. “Você tinha a oportunidade de conviver com as pessoas. E eu acho que Belo Horizonte nunca mais teve um espaço como o Cabaré Mineiro. Lá frequentavam pessoas desde 18 anos até pessoas de mais de 60 anos”. Essa diversidade entre a idade dos frequentadores funcionava para aumentar o leque das discussões políticas do momento. Segundo os frequentadores entrevistados, nunca mais teve um espaço como o Cabaré Mineiro

porque ele possuía características únicas e diferentes de outros espaços encontrados em Belo Horizonte.

Arte, Cultura e Política Segundo o dicionário Aurélio, cultura pode ser definida como “desenvolvimento intelectual, apuro, esmero, elegância, sistema de ideias, conhecimentos, técnicas e artefatos, de padrões de comportamento e atitudes que caracteriza uma determinada sociedade”. Seguindo a linha da definição, podemos supor que quanto maior o poder aquisitivo, maior o consumo de bens cultuais. Vale ressaltar que o padrão comportamental do período ditatorial exclui por completo a cultura popular, levando em consideração apenas a cultura erudita. Para explicar elite cultural, Chauí (2008) toma como exemplo os bens culturais. [...] há obras “caras” e “raras”, destinadas aos privilegiados que podem pagar por elas, formando uma elite cultural; e há obras “baratas” e “comuns”, destinadas massa. Assim, em vez de garantir o mesmo direito de todos a totalidade da produção cultural, a indústria cultural sobre-determina a divisão social acrescentando-lhe a divisão entre elite “culta” e massa “inculta”. (CHAUÍ, 2008)

Dessa forma, podemos definir “elite cultural” como uma cultura segregada que se vê superior à “cultura de massa”. A cultura elitista tende a reforçar uma ideia de que a cultura tem um padrão único e que a mesma está em um patamar acima da cultura popular por seguir esse padrão. O Cabaré não se excluía da elite cultural. Além de se localizar na região centro-sul de Belo Horizonte e do requinte do espaço, o público precisava pertencer a uma classe social elevada para frequentar a casa de show. Em entrevista o professor do Centro Universitário UNA, Evaldo Fonseca Magalhães, explicou como funcionava essa segregação. Existia essa elite cultural, quase que uma oligarquia, que tem até hoje. Se você pensa em balé, vem na cabeça o Grupo Corpo. Se você pensar em teatro de bonecos, vem o Giramundo. Se eu falo, teatro todo mundo fala Grupo Galpão. Essa cultura mineira eu acho tão nociva porque concentra em uma manifestação que dá certo e as outras ficam à mingua. (MAGALHÃES, 2015)

A elite cultural funciona como sanguessugas de verbas e incentivos culturais que deveriam ser ofertados e contemplados a todos os movimentos e espaços que desejam gerir cultura. Está é

uma daquelas discussões que foi iniciada há um longo tempo e ainda estamos distantes de concluirmos e finalizarmos a discussão diante da Elite Cultural. O direito a cultura não se restringe apenas à elite. Como está garantido no Artigo 215 da Constituição Federal de 1988, “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.” A constituição garante o direito ao pleno exercício dos direitos culturais, porém este acesso é recluso a apenas um grupo que possui maior poder aquisitivo. Durante as entrevistas sobre o Cabaré, encontramos duas visões distintas relacionadas a “Elite Cultural” e a “Cultura de Massa”. Segundo Júlio Pinto, que frequentou a casa, o público em sua maioria era de universitários que não pertenciam à elite cultural e talvez até tivesse pensamentos contrários ao que ela apresenta. O público do Cabaré ou estava na universidade, ou já tinha passado por ela, o que gera um público mais culto e talvez por isso não era um espaço para 'povão'. Mas não por razões socioeconômicas, e sim por questões de enfrentamento que os universitários possuíam. Talvez com exceção dos cursos mais tradicionais como Medicina e Direito, os demais cursos como Jornalismo, Sociologia, Letras, Filosofia, em geral eram de esquerda e se acham mais esclarecidos. Até os que eram formados seguiam esta linha. (PINTO, 2015)

Pinto explica também que os artistas da época falavam por mensagem codificadas dos acontecimentos trágicos do período. Essas canções alcançavam não somente os grupos envolvidos, como também os populares da “Cultura de “Massa”. Essas pessoas encarnavam muito uma espécie de paixão pela música, que era uma representação política. No mesmo período tinha a Jovem Guarda, que era o grupo mais alienado que queria o 'carrão'. Porém, os artistas que iam ao Cabaré Mineiro não eram o Roberto Carlos, e sim os músicos que de alguma forma tiveram papel nesta luta. Muitos deles chegaram a ser exilados, era por isso que íamos assistir, além de gostarmos das músicas deles. (PINTO, 2015)

A busca por cantores que representavam a luta da década de 70 releva um caráter ideológico político, uma vez que esses artistas cantavam sobre as lutas diárias desses militantes. O Cabaré conseguiu unir as pessoas com sede de mudança. Algumas dessas pessoas conseguiram de fato serem agentes da mudança. Muitos desses universitários que lutavam por

uma ideologia hoje se tornaram professores que influenciam seus alunos a serem agentes da mudança também, como os professores Evaldo, Júlio e Cândida.

A casa na mídia O Cabaré Mineiro fez muito sucesso em sua curta existência. Aquilo que começou como um espaço para alunos de música se apresentar se tornou um negócio lucrativo. Segundo uma matéria publicada no jornal Estado de Minas (Figura 4) em 15 de maio de 1990, até a data da publicação o local já havia recebido aproximadamente meio milhão de pessoas.

Figura 4 – Nota sobre o aniversário da casa

Fonte: Jornal Estado de Minas, edição do dia 15/05/1990, p. 3.

A publicação apurou na época que "os maiores públicos são de Eduardo Dusek, Belchior, Nana Caymmi, Nouvelle Couisine, Léo Gandelman, Rosa Maria, sem falar no inesquecível Marco Antônio Araújo. Mas houve também grandes fracassos: Nelson Ned, que nunca havia feito sucesso em Belo Horizonte, continuou sem fazer. Levou 85 pessoas no primeiro dia de show e 95 no segundo, em janeiro de 1988. Jorge Benjor teve 185 e 139 pagantes em seus dois shows na casa, contra uma expectativa de lotação completa - em torno de 700 pessoas". Segundo um dos nossos entrevistados, Evaldo Fonseca, o Cabaré Mineiro tinha uma certa “panelinha”, ou seja, os cantores que faziam sucesso na época estavam sempre presentes no palco do local, principalmente se fossem do círculo de amizade dos donos. A matéria citada acima nos leva a crer que a mídia da época também reforçava a ideia de que apenas esses cantores do círculo eram bons de verdade.

Em entrevista para o jornal Estado de Minas em 3 de agosto de 2013, os fundadores do Cabaré Mineiro contaram um pouco de como foi ter criado um dos maiores ambientes voltados para cultura da capital mineira. "O Cabaré Mineiro marcou época pela sua pluralidade. Não só por causa dos artistas que se apresentavam lá, mas porque ele tinha atividades das mais variadas matrizes artísticas de segunda a segunda", avaliou Claudio Rocha, um dos sócios fundadores do empreendimento. Wagner Tiso, que além de ser fundador da casa se apresentava lá com frequência. Figura 5 – Reportagem especial sobre o Cabaré Mineiro

Fonte: Jornal Estado de Minas, edição do dia 03/08/2013, p. 18.

Fonte: Jornal Estado de Minas, edição

Ao descrever a casa, Tiso se expressa nostalgia do diacom 03/08/2013, p. na 18.voz.

Fonte: Jornal Estado Minas, edição Era um prédio muito bonito. Eledeera especial. O levantamos do chão. Tinha um do dia 03/08/2013, p. 18.

terreno baldio ali, a gente alugou e levantou o Cabaré, foi um negócio muito bonito,

Fonte: Estado de Minas, a gente tinha muitaJornal vontade. [...] Foi um lugaredição extremamente pitoresco, a gente tinha do dia 03/08/2013, p. 18. teatro, cinema, literatura e discussões. Acho uma programação variada com shows, que o Brasil não tem hoje uma casa como o Cabaré. (TISO, 2013)

Mesmo sendo um dos espaços culturais mais badalados da cidade, considerado o primeiro bar-teatro de BH, o Cabaré Mineiro chegou ao fim em março de 1992. Na época o sócio proprietário Ramon Fiuza, concedeu uma entrevista para o jornal Estado de Minas, falando

sobre o principal motivo para o fechamento do Cabaré. Ele culpou principalmente a omissão dos empresários e a fuga dos patrocinadores, que desestimularam a produção cultural. "Mas tudo foi sempre difícil aqui, acho que faltou apoio da comunidade." admitiu Fiuza. Na época os sócios não tiveram o dinheiro necessário para a compra definitiva do local, que era alugado. O terreno era avaliado em 300 milhões de cruzeiros, aproximadamente 110 mil reais. Segundo Ramon Fuiza a transferência da casa de shows para outro local não foi sequer cogitada por causa da queda de público e alto custo das produções. O Cabaré Mineiro marcou época. Após seu fechamento, nunca mais houve um espaço parecido e até hoje os artistas e produtores necessitam de um espaço como esse para exibir sua música. Em 26 de fevereiro de 1998, o jornal Hoje em Dia fez uma matéria especial, chamada "Saudades do Cabaré", que fala sobre a falta da casa de shows no cenário cultural de Belo Horizonte. Nela, diversos artistas falaram da importância do Cabaré. O produtor cultural Bob Tostes disse que "existem muitos lugares, mas há a carência para um determinado tipo de música, que fuja do gênero do momento no mercado. Talvez falte ousadia e disposição das pessoas, mas a época é difícil e arriscada." Para trazer artistas consagrados era preciso um investimento maior que o de quem está no início da carreira. "É incrível você lembrar que a cidade já teve um lugar como o Cabaré Mineiro, que trouxe nomes como Marisa Monte", lembrou Bob. Figura 6 - Matéria de capa sobre os artistas que passaram pelo Cabaré

Fonte: Jornal Hoje em Dia, edição do dia 26/02/1998, p. 1.

Após seu fechamento, as pessoas viram o quanto que a existência de um ambiente como aquele era importante. Em 2012, quando completava 20 anos que o Cabaré Mineiro fechou as portas, o jornal Estado de Minas, fez uma reportagem especial sobre a herança que o Cabaré deixou para cidade e as pessoas que o frequentavam. A publicação enfatizou a importância da casa de shows que existiu na época que o Brasil estava em plena fase de redemocratização. O produtor cultural Afonso Borges, que passou pelo Cabaré no ano de 1987, disse que aquele período "todos queriam discutir o Brasil". E os jovens da época usavam ambientes como o Cabaré, não apenas em busca de boa música, mas discutiam fatos cotidianos e política. "Foi um ano poderoso, fizemos eventos memoráveis na casa", conclui Afonso Borges.

Considerações Finais Não foi tarefa fácil reconstituir a história do local. O Cabaré, fisicamente, não existe mais, e os antigos proprietários não quiseram contribuir para a construção do trabalho. Contudo, através de outros meios e com a ajuda de professores, foi possível resgatar a história de um lugar tão importante para Belo Horizonte. Cumprimos o objetivo de nossa pesquisa, que era resgatar o cenário político-cultural de Belo Horizonte no período de redemocratização do Brasil, através do estudo da casa de show Cabaré Mineiro. O Cabaré Mineiro foi escolhido como foco da pesquisa pelo fato da ideologia do espaço ser uma extensão do que acontecia na sociedade. Inaugurado no mesmo ano que acabara a ditadura militar no Brasil – 1985, ele fomentava em seus frequentadores a discussão do cenário cultural e político da época, fato que ligou diretamente no tema do nosso Trabalho Interdisciplinar, que é o período de redemocratização do Brasil.

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