Cabo Verde e o Cais De Pedra ou a obra de Nuno de Miranda

Share Embed


Descrição do Produto

Cabo Verde e o Cais De Pedra ou a obra de Nuno de Miranda

afastar-se do labor dos escritores anteriores. Estes, situados longe da sua terra, em termos de recriação artística, estavam ocupados em aproximar-se e confundir-se com os modelos procedentes da metrópole e, portanto, não achavam espaço para a paisagem local, que em nada respondia àqueles . Neste sentido são claras as palavras de António Aurélio Gonçalves, atento observador e analista do facto literário no arquipélago, que depois de ver a razão porque os pré-cla.ridosos nunca abordaram os temas propostos ou sugeridos pela realidade cabo-verdeana no gosto pela poesia inspirada em motivos parnasianos - de um lirismo romântico principalmente de carácter amoroso - aponta: É que havia o seguinte: consíderava-se que os temas câboverdi anos não ofereciam interesse. Hav ia um complexo de inferioridade naqueles tempos ( .. o certo é que provavelmente devido a este sentimento de inferioridade da paisagem caboverdiana (eu lembro-me perfeitamente send o criança ouvir dizer: «Nós não podemos ter descrições destas») a paisagem caboverdiana era tida como árida e toda a aridez perdia o interesse aos olhos da gente daquele temp02

Cabo Verde e o Cais De Pedra ou a obra de Nuno de Miranda

o

Maria Felisa Rodríguez Prado

Amar um horizonte é insularidade Derek Walcott

o mar! Cercando prendendo as nossas ilhas Jorge Barbosa

Angústia oceamca, africanidade atlântica, cultura marítima e insularidade total são sintagmas que se repetem aplicados a Cabo Verde, à sua cultura e à sua produção literária. Assim, na cultura de carácter popular e, mais concretamente, numa das suas máximas expressões ao mesmo tempo literária e musical, a morna - onde é (re)tratado em crioulo o fatu/11 cabo-verdeano -, não faltou nem falta hoje o tratamento da realidade geográfica, humana e social de uma terra marcada pela insulação e a emigração, castigada pela natureza. Boa prova disso são composições como as que se referem às secas e às fomes sofridas, ou as da hora di bai do emigrante, ou aquelas onde o mar é ora confidente e amigo, ora inimigo e separação, causa de encerro ou distanciamento, ora caminho aberto e positivo para a luta que é preciso experimentar. Este último aspecto, por exemplo, tem sido assinalado na poética (crioula) de Eugênio Tavares (l867-1930( No terreno da chamada literatura culta, porém, para encontrar uma produção susceptível de receber tais etiquetas devemos esperar até aos anos trinta deste século, com a geração da Clarídade a iniciar a modernidade literária cabo-verdiana e a Universidade de Santiago de Compostela - Espanha

266

)

Já na década de 30, pondo de parte os academismos temáticos e estéticos, Cabo Verde soube ver o exemplo dos intelectuais brasileiros que ofereciam o testemunho atento e sensível da sua viva realidade quotidiana, curvando-se sobre os problemas da terra e do homem. Foi assim que a iniciativa que tomou corpo na revista Claridade (1936) se propos retratar e decifrar o quadro geográfico da sua terra, essencialmente rural ou marítimo, e trouxe uma expressão de inspiração ambiental, focando, preferentemente, temas regionais, revestidos, isso sim, de aspectos humanos universais . Com a Claridade produz-se, pois, o verdadeiro mergulho no húmus crioulo, o achamento do homem e do arquipélago cabo-verdeanos na literatura. Manuel Duarte exprimiu-o do seguinte modo: Na realidade, em que consistiu o enraizamento levado a cabo pelos "claristas"? (oo.) tal emaizamento cinge-se à missão de dar uma voz poética à angústia oceânica da nossa gente. Angústia que está longe de esgotar o destino social , a história quotidiana, o complexo cultural das dez ilhas 3 .

Assim, com Jorge Barbosa (1902-1971) produz-se a autêntica descoberta das realidades insulares com vistas ao aproveitamento poético, sendo que na ilha (prisão, lugar de solidão, de exílio, de convite à evasão) se concentra o essencial da sua poesia. Nela o mar omnipresente aparece como elemento hostil para o homem insulado, sinónimo de cativeiro ou de uma barreira desafiadora, obstáculo que não pode ser ultrapassado e que, por isso, conduz ao fatalismo e à resignação ou ao sonho, individual e colectivamente. Manuel Lopes (1907) foca de modo privilegiado a problemática de uma terra agreste em romances onde se projectam as realidades caboverdeanas que mais vivem na ficção do arquipélago - a emigração, as secas, a crise económica - e onde o mar, contraposto à terra, é o caminho para o sonho, a aventura e mesmo a fuga, necessária 267

Maria Felisa RODRÍGUEZ PRADO

ou desejada. Nos seus contos há espaço para o que Russell Hamilt?n denomi~ou literatura litorânea (Hamilton, 1984 : 156), sobre o mar, o porto e a cIdade que VIve ao Iitmo deles, o Mindelo, enquanto na poesia achamos a pintura de quadros estáticos da paisagem e do ambiente e a custosa radicação do homem cabo-verdeano no sonho e no chão natal, face ao constante convite do mar. Na produção nanativa de Baltasar Lopes (1907-1989), onde avulta o romance inaugural da moderna literatura do arquipélago, Ch iquinho, encontramos um mar objecto de elaboração imaginativa : é fonte de nanativas populares, em ocasiões fantásticas , que articulam toda uma mitologia marítima à volta does) trabalho(s) no mar de embarcados e marinheiros (vida e riqueza às vezes, morte outras); não faltam heróis valentes, lutas e perigo de vida, moças-do-mar... Sobre o mar, cami nho líquido rumo à riqueza ou às melhores condições de vida, projectam-se os sonhos e ambições de partida ou fuga, muitas vezes concretizadas. Parece claro que com os autointitulados claridosos - por outros chamados de claristas - o mar ganha o seu espaço literário em português. E fá-lo ligado à tena, com a qual clia a unidade arquipelágica, o todo. É o horizonte físico e (da vida) do dia-a-dia. Mas, sobretudo, surge ligado fundamentalmente à insulalidade, como fronteira que se opõe às extensões ilimitadas e também como aventura e apelo do mundo. É o holizonte do desejo e (da vida) do futuro. Começamos a ver como o oceano abre horizontes geográficos e existenciais incomensuráveis e, simultaneamente, isola e fecha o arquipélago sobre a sua insularídade essencial, quer dizer, sobre a sua miséria económica, cultural e sociar. Ai a ilha! Longe e pequenina no meio do mar. (N uno de Miranda)

o mar e a telTa definindo juntamente Cabo Verde, é por isso que telurismo e talassoricismo aparecem na sua literatura de mãos dadas. Como, de resto, acontece na obra de Nuno de Miranda, escritor pertencente à geração dos jovens estudantes liceais que, em 1944, criaram no Mindelo a revista Certeza, sob influência dos ventos neorealistas e das tendências universalistas em voga na altura. Se no labor ensaístico desenvolvido pelo autor ao longo dos anos são numerosas as reflexões a respeito do mundo do arquipélago e os seus habitantes e nas artes plásticas sabemos da exposição de pintura A Ilha e o Mundo, no telTeno da criação literária achamos, com a única - e lógica - excepção de 40 Poemas Escolhidos (1974), títulos significativos que apontam para a insulalidade - Gente da Ilha (Contos,1961), Cancioneiro da Ilha (Poesia, 1964) -, e até, especifica mas de nenhum modo explicitamente5 , para a realidade insular cabo-verdeana - Cais de Ver Partir (Poesia,1960), Caminho Longe (Romance, 1974), Cais de Pedra (Romance, 1989t

268

Cabo Verde e o Ca is De Pedra ou a obra de Nuno de Miranda

Em certa forma já aqui detectamos elementos que pela sua carga cultural estão ligados à dualidade conflituosa da vida no arquipélago, com o amor e a rejeição ditando a relação do homem com o seu meio e vivendo tanto no partir como no ficar nesta terra de infinita sedução e infinito sofrimento. Ai, corpo de mar e granito fincado sem solução ... (Nuno de Miranda)

Poesia e nanativa mirandiana situam-se no lugar-ilba mesmo quando ambientadas fora dele, porque essa realidade, que é física, não é apenas isso, é também realidade cultural e humana. E como tal, é ponto de vista, lente através da qual se realiza o olhar, seja capt(ur)ando o extelior, seja recuperando a memória dele. A espacial idade e a temporalidade da ilha, circulares, são definidas por uma repetição e por uma lentidão que, além de serem (re)tratadas na escrita de Nuno de Miranda, serão trabalhadas literariamente com vistas à criação de um ambiente susceptível de reflecti-las - Nas Ilhas são estes dias/de nuvem desnorteada /passando breve na duna/feita de espuma do mar (CdVP,p.17); sua terra. Na correnteza das horas a passarem devagarinho, na paz morna e sem conforto do leito debangado nas praias do mar... (CdP,p.19) -, junto com as problemáticas peculiares que delas advêm. Essa circularidade espácio - temporal referida origina para o homem insulano tanto um refúgio aconchegante e familiar, lugar de vida, como uma prisão asfixiante, causa de morte. Quando o olhar procede do exterior, a saudade utiliza o mar - via de partida, antes - como fonte de regresso, aliado à memória, e a percepção do mundo insular, distante no tempo e no espaço, é positiva face ao presente e por contraste Carregadinho do encanto que têm as coisas aborrecidas da vida familiar (Gdl,p.72); l1listério de uma vida transplantada para Lisboa, rompendo sem mais com a intimidade da «sua ílha». Ânsia de gota, da vida que atordoa a impeliu ? (Gdl,p. 15) - . Ao olhar que não é o da distância, mas do aqui e do agora, corresponde mais habitualmente a visão do enclausuramento vital, o sentimento de asfixia e morte no arquipélago - e o existir/é ir aqui morrendo/no vento que nos cinge o fino tronco (Cdl,p.39); numa baía de sombra/salina, feita prisão (CdVP,p.17) - e, consequentemente, a ele se associa um sonho - esperança - desejo de mudança, seja no tempo (futuro), na própria terra - Floresça a espuma da gota/numa promessa de vida. //Gota/tanto tempo esperada da colina/depois fique a esvoaçar/pelo tempo desta terra/e na brisa dos caminhos longamente .. . (CdVP,p.56) -, seja no espaço (Largo, terra-longe), abandonando-a - Ver-me salvo da Ilha com o seu mar de afogados (CL,p.17); o sonho de mar alto em cada olharficado (CdVP,P.45) . Cabo Verde oferece-se, pois , como um espaço vivencial que aprisiona o indivíduo no seu espaço humano, caracterizado pela fatalidade geográfica, e numa forma específica de temporalidade assentada nas suas circunstâncias geográficas

269

Maúa Felisa RODRÍGUEZ PRADO

determinantes (Margarido,1980 : 415) . Do ponto de v.ista de Nuno de Miranda é preciso fal ar-se de um jogo de competição com o meio em qualquer parte onde, para um Cabo-verdíano, haja um «front»; e o cabo-verdeano será, onde quer que se encontre, consignatário de uma experiência colecti va que funde e o homem-do-povoque-rompe-o-absoluto-determinísmo-do-cosmoi. Desenha-se aí o drama que preside uma boa parte da produção literária cabo-verdeana e, nomeadamente, mirandiana : o do homem (insulado, insulano, isolado) que vai viver na eterna tentativa de conseguir (res)soluções, isto é, caminhos. Caminho longe ... Caminho sem nome Cami nh o de mar (Ovídio Martins)

Existindo a prisão ditada pelas limitações geográficas, económicas, humanas de Cabo Verde, achamos em o horizonte impreciso, num azul quase-cinza, ponto final para os olhos em seu sonho e em seu caminho. (CL, P. 19) . É assim que se constrói a tantas vezes chamada cadeia sem grades cabo-verdeana, com uma vida e um mar que não conduzem a nenhum lugar - Tristeza de naufrágio/este morrer devagarinho, /amortalhado nas ondas/que não quizeram levar-mel além/ do litoral ... (CdVP,p.21) . Contudo, esse momento ou horizonte vai ser também questionado e posteriormente ultrapassado na tentativa de melhora - ver que além do horizonte, há horizontes maiores. Devo-lhe, Dina, a vocação de não parar sobre as ondas sagradas. Por isso continuo a procurar os lugares feli zes. Corpo pesa no mesmo lugar da terra. Mãos de um homem têm de estender-se para o sol! (CL,pA9). Na narrativa de Miranda esse horizonte costuma ser quebrado graças a um movimento de impulsão (querer partir) , rumo à realização do indivíduo. Assim, deparamo-nos com umas personagens principais, pertencentes à burguesia urbana acomodada, nas quais vive apenas o querer como impulso de partida, mas também como força de regresso conscientizado, real ou teórico (p.ex. nos jovens que protagonizam CL e CdP, Ricardo e Guilherme, integrados em pequenos grupos activos na diáspora lisboeta e no Mindelo natal, respectivamente). Paralelo a esse movimento que chamámos de impulsão podemos situar um outro, de expulsão (ter que partir), ditado pela terra-madrasta ou terra-mãe-mártir perante a dificuldade ou impossibilidade de sobrevivência, atendendo à ausência de condições naturais. Este foi o mais presente na narrativa dos c1aridosos, onde se retrataram as secas e a crise económica propiciada por elas e pela decadência do Porto Grande, e como responsável de uma emigração de raiz económica, embora não ocupando um lugar central, encontra o seu espaço na obra mirandiana ligado às pequenas histórias de personagens secundárias ou ao viver de muitas das figurinhas que constituem a paisagem humana de fundo. Com a partida ditada pela esperança ou pelo espectro da emigração descobre-se e percorre-se o camínho longe, que fará com que se inaugure para o cabo-verdeano um

270

Cabo Verde e o Ca is De Pedra ou a obra de Nuno de Mira nda

novo mundo - isto é, o mundo-fora da ilha. Essa chamada terra lon ge - ou Largo vai substituir tanto o mundo da realidade própria, que se sentia pequeno e pobre de mais, como o da fantasia e as imaginações do alheio, pintado com cores brilhantes. No novo mundo o espaço físico ganho vai ser recebido contrastando fortemente e de modo negativo com o perdido ou abandonado, pois nele não se acha aconchego nem intimidade nem fraternidade - a cidade enorme a violenta travestída/de boutiques e bars ao estilo americano,la cidade entrecortada de sirenes fumarentas (CdVP,pA7) . Também na vivência do tempo vai existir desfasamento entre a grande cidade continental e a cidadezinha cabo-verdeana, em termos de ritmo - Ficámos pequeninos, por um momento calados, a sentir o aturdiment(f' da cidade grande (CL,pA3); e de repente quando entro na cidade longa/cresce em mim o outro homem/sem poesia/o ilhéu naufragado em mar ao larg% de alma em meio à multidão apressada passando. (CdVP,pA4) Como fruto do choque com o mundo diferente, por um lado, e da distância, que oferece uma nova perspectiva, por outro, produz-se uma recuperação-reabilitação da tena, através do exercício da memória e das lembranças - como se, embora longe, Cabo Verde continuasse fundeado no seu íntimo em perturbadora e obstinada lembrança. (CdP,p.20); O mundo das ilhas-do-meío-do-mar ( ... ) Só a surdina de um pontículo bem profundo na memória, emfulgurante agonia, a ligar-me a muitas molezas de sonho (CL,p.14 )-, e a constante presença da saudade. O indivíduo (re)conhece-se habitante e prisioneiro, esteja onde estiver, de uma espácio-temporalidade ilhoa e cabo-verdeana que descobre, por oposição, definidora da sua identidade. E o mar faz o seu contributo, visto ser através dele que o caboverdeano conserva o que Alfredo Margarido chama de profundas ligações com a placenta maternal do arquipélago. O Illar é aqui uma espécie de ligação umbilical que não deixa o cabo-verdíano esquecer-se desse fundo típico, da sua cabo-verdianidade. ( .. . ) Mas não é, por outro lado, elemento que provoque o divórcio, o afastamento radical 8

Ao lado da leitura do mar que se equaciona no somatório-oposição mar-mãeafaga (esperança) e mar-madrasta-afoga (drama) (Veiga,1994 : 53) - semelhante ao da terra do arquipélago -, outra das possíveis e múltiplas leituras cabo-verdeanas e mirandianas do mar é a estrada ou caminho (de ida, mas também de volta) . Canal ou suporte da imaginação e do sonho, que partem e se inspiram nele - fitavam o mar da sua sofreguidão, o mar brilhante, que os deixava iluminados de fantasia (CdP,pAO) - mas, sobretudo, de novas realidades longe das que prendem - Que apressados que eles cortam o mar,( ... ) a estrada de Cabiuna, moleque esguio que fugiu um dia! ... (GdI,p. 65) -. Neste sentido, mantém um constante movimento centrífugo, de dispersão e distanciamento físico e intelectual dos ilhéus com respeito ao espaço da sua terra. Porém, o afastamento não chega a ser radical porque, cumprido esse movimento, aparece um outro, centrípeto, no qual o mar funciona implicitamente

271

Maria Felisa RODRÍGUEZ PRADO

como reserva da identidade, favorecendo a reintegração' do indivíduo. Porque ainda na sua qualidade de distanciador - ou talvez por isso mesmo - o mar pode ser conscientizador, permitindo o achamento e o regresso à terra, real ou figuradamente. Isto é o que acontece no caso do jovem protagonista de Cais de Pedra, que na distância da Argentina e com o seu crescimento físico e intelectual consegue estruturar a consciência de que no outro lado do mar, estava a parte da sua vida real. (CdP,p.59). Talvez seja um bom exemplo para situar o se ca bado ca ta bírado (se não se partir não se regressa) de E. Tavares longe da simples afirmação evidente. As ilhas por quererem ser navios ficaram naufragadas entre mar e céu (Aguinaldo Fonseca)

o nosso povo gosta muito de imagens, então fala em imagens disse nalgum lugar Manuel Veiga; em imagens que procedem do seu quotidiano, acrescentamos com facilidade. Como para o povo, para os escritores e intelectuais cabo-verdeanos o mar é ponto de referência num bom número de imagens e símbolos telúricos e geográficos a chamar a atenção para as relações existentes entre os indivíduos e a natureza. Motivos relacionados com o mar e a insularidade são elaborados literariamente, submetidos a um tratamento metafórico que faz com que, ao mesmo tempo, sejam e não sejam eles - abrindo uma dimensão que se aproxima do mito, pela sua função simbólica. Não é, portanto, estranho que a embarcação, directamente relacionada com o mar e a vida cabo-verdeana, figure entre aqueles que foram objecto de variado aproveitamento ao longo do tempo e ao largo dos criadores do imaginário do país. Na obra mirandiana abundam os navios, imobilizados ou em movimento, a fazer parte do pano-de-fundo paisagístico, como não poderia deixar de ser numa narrativa e numa poesia maioritariamente ambientadas no clima geográfico e físico insulano, com o mar como horizonte. No entanto, há também outros navios, os que 'apontam o universo cabo verdeano sob o ponto de vista predominantemente sócio-económico e humano. São aqueles que, em movimento e acção no mar face à imobilidade e ao imobilismo da terra, se convertem em convite (d)e fuga, metonímia do outro na paisagem própria - No ventre da bala grande, as sombras dos navios, compondo os mistérios das terras estranhas, eram símbolos dos lugares onde a vida, inundada de brilho, poderia, finalmente, ser vivida! (CL,p .38); e um convite sulca o rasto de uma quílha/que se esfuma no horizonte (CdVP,p.54). São também aqueles que aparecem, em sentido figurado, a representar as vidas das pessoas nas suas opções - Mamãe no comando de embarcação, a qual, depois de tanto singrar, deixou o porto de raiz (CL,p.19) ; escorregar de sítio em sítío, como um autómato, às bolandas, a vogar pela crista das ondas da sua terra. E, para mais, a meter Lulú, como piloto. (CdP,p.93) . Mas é, sobretudo no mais recente dos romances do autor, a embarcação 272

Cabo Verde e o Cais De Pedra ou a obra de Nuno de Miranda

que simboliza Cabo Verde, como acontece na morna Es quê /lha terra Cabo Verdí, onde o arquipélago é um navio di pedra que não encontra o seu caminho na meio di mar, ou no poema de Luis Romano Símbolo de título significativo, que conta com versos como. Navio-berço de menino crioulo/navio-guia que ficou sem ir/ navio idêntico ao navio da /lossa derrota parada. Não é por acaso que num apontamento de Nuno de Miranda a indicar elementos e aspectos que, na sua opinião, caracterizam a especificidade da cultura cabo-verdeana, podemos ler: num chão de dez troços cujo relevo ( ... ) não tem nada que..lhe diferencie as partes, onde há só o mar. A recriar uma nostalgia atlântica, que vem, talvez, da ideia de estarmos a bordo de um barco, sob a impressão de que vamos partir, com um suspiro de pedra. Ou de que vamos ficar, sintonizados com as cagarras, a despedirem-se dos vapores, em remigios saudosos, em torno dos mastros 9

A localização oceânica da tena cabo-verdeana, a vocação marítima do povo, o horizonte do mar em todas as direcções e o partir e o ficar das suas gentes - que é o mesmo que dizer de Cabo Verde - impõem o barco, o navio, a embarcação, como símbolo de Cabo Verde. E na nanativa mirandiana achamo-lo a naufragar ou ancorado, isto é, num movimento, de perda ou numa inacção - Guilherme mergulhava no espanto, por ver tanta gente a bordo da embarcação de Cabo Verde, sem notar uma iniciativa arrojada (. ..) no naufrágio em silêncio, uma boia, que lh es fosse a salvação. (CdP,p.196) ; "E mais nada. Na amurada daqu ela embarcação ou ilha, ali, ancorada no meio do mar. (CdP,p.218) - que funcionam quase de um modo idêntico: como ausência de luta e de vitalidade interior - No pesadelo do beco sem saída, no túmulo desertificado e maléfico da linha das quilhas sem préstimo (CdP,p.42). Afinal, essa embarcação são os homens, ali a viver, no século XX, de cabeça enterrada na areia das ilhas semi-áridas (CdP,P.47). Quando um cais de pedra bruscamente emerge no meio do mar... (Manuel Àlvarez)

Nos dois romances até hoje publicados por Nuno de Miranda, os jovens protagonistas têm uma percepção da vida cabo-verdeana que responde, em tudo, ao mundo quieto-fechado-isolado-morto acima esboçado sentia-se metido num mundo que, efectivamente, estava perdido das realidades do universo. ( ... ) apercebia-se ( ... ) de que a vida de Cabo Verde estava a decorrer, até ao momento, num planeta morto. Como sobrevivente, sentia-se a vogar numa larga praça defunta, (CdP,p.l86). No entanto, eles, que representam a acção e o empenhamento do que o próprio Miranda chama de in te Iig en tsia caboverdeana, navegam-lutam atravessando o mar do tempo e da distância e ancorando nas lembrançasrecordações que por pano-de-fundo tinham o porto-de-mar-dos-deserdados, sob a impressão de que Passado e Presente estariam acasalados definitivamente ( ... ) em todo o Arquipélago (CdP,p.32)-, batendo-se com os mares em fúria das cidades

273

Cabo Verde e o Cais De Pedra ou a obra de Nuno de Miranda

Maria Felisa RODRÍGUEZ PRADO

estranhas ou com a estagnação das calmarias do mundo cabo-verdeano. Perseguem Cabo Verde, fora e dentro dele, alimentando-se das suas realidades, sem fu ga - E mais cheios havemos de ficar! se mitigarmos toda a nossa sede com a água salobra da nossa terra (CdP,p.266) - e apostando, através da acção em forma de pensamento e iniciativas, não no mundo naufragado e submarino mas na sua vinda à superfície Na transposição da luz para os fundos coloridos de limos e algas, como se no meio de caranguejo e lapa, de caramujo e búzio, a alma da cidadezinha do Mindelo e arredores ( ... ) um dia, ao vir ii superfícíe, finalmente, se soltasse de vez. (CdP,P.47). Exactamente aqui, na obra mirandiana, Cabo Verde deixa de ser navio malogrado, ancorado ou sem rumo para (res)surgir das águas e nelas em nova vida, no presente, como cais. Como o Caís de Pedra do seu mais recente romance Quando um cais de pedra bruscamente emerge, no meio do mar, então, é hora de o lodo, a areia e o limo simbolizarem recordações . (Manuel Álvarez - pseudónimo do autor -, paratexto de CdP).

o cais de pedra : a pedra ou rocha, estéril, imutável, o espaço petrificado e próprio, e o cais, o espaço do movimento - em potência ou acto -, ponto de partida e de chegada, porta ou janela do mundo, do desconhecido. O mesmo que Cabo Verde, de terra (pedra e areia) e de água (a mais e a menos), salgado e seco. Cabo Verde, o arquipélago, uno, Ilha, foi resumido por Nuno de Miranda, metonimicamente, ao ponto fronteiriço do encontro para o homem entre o mar e a terra, o lugar de contactos e comunicações, e convertido, metaforicamente, num grande-pequeno CAIS DE PEDRA físico e simbólico donde parte e para onde volta toda a sua produção literária. E Cabo Verde continua a ser o cais de partir ou de ver partir da literatura cabo-verdeana.

Margarido "Partid a e regresso na literatura cabo-verdiana in Estudos sobre Literatu ras das Nações Africallas de Língua Portuguesa, Lisboa, A Regra do Jogo, 1980 (p.406-7). , João , Lopes Filho, "Conversando com Nuno de Miranda ", in PonlO & Virgula 15, Mindelo. Out.- Dez 1985 (p .25). O subHnhado é nosso. M Alfredo

Bibliografia HAMILTON , R. G., 1984, Literatura Africana, Literatura Necessória, (Vol. Il), LisbM', Edições 70. HANRAS , M-C., 1995, Manuel Lopes, Vm Itill erório Inícíátíco, Praia. Instituto Caboverôiaílõ do Livro. MARGARIDO , A. , 1980 , Esllldos sobre Literaturas das Nações Africanas de Lingua Portuguesa, Lisboa, A Regra do Jogo. MARIANO , G. , 1991 , Cultura Caboverdean,. Ensaios , Li sboa , Vega . MIRANDA , N. , 1960, Cais de Iler Partir, Lisboa, Orion. MIRANDA, N. de, 1961 , Gente da Ilha , Lisboa , Agência Geral do Ultramar. MIRANDA , N. de, 1964, Cancioneiro da Ilha , Braga. Ed. Pax. MIRANDA, N. de, 1974, Camillho Lollge, Lisboa , Livraria Portugal. MIRANDA , N. de, 1989, Cais de Pedra, Praia, Instituto Caboverdiano do Livro. VEIGA , M., 1994, A Sementeira, Linda-a-Velha, ALAC.

Notas Gabriel Mariano chama a atenção sobre vários aspectos da insularidade na obra de E. Tavares -e outros- em dois estudos recolhidos em Cultura Caboverdeana. Ensaios. Lisboa. Vega. 199 1 (p.95-140) , A. A. Gonçalves O conteúdo da nova poesia caboverdicma (texto gravado). J Manuel Duarte "Caboverdianidade e africanidade" in Vértice,134. Coimbra. Nov . 1954 (p.643). • P. e G. Chalendar A paisagem na Hteratura cabo-verdeana in África . Literatura, Arte e Cultura 9. Li sboa. Jul.-Set. 1980 (p.496). 5 Por exemplo, a expressão caminho longe, que intitula poemas, canções e livros cabo-verdeanos de autores vários, refere-se à emigração (enqu anto o destino do emigrante do arquipélago é frequentemente designado terra longe). 6 As obras serão referidas , a partir deste momento, através das abreviações correspondentes: CdVP, GdI, CdI, CL e CdP. 7 João Lopes Filho "Conversando com Nuno de Miranda" in Ponto & Vírgula 15, Mindelo. Out.-Dez 1985 (p.26). I

274

275

Vamberto FREITAS

irónico, pois trata-se sem dúvida de um romance, finalmente, de gente que vive viva, intimamente sabedora do que a trouxe até ao presente, até à sua atribulada modernidade. A nanadora protagonista de Erika de Vasconcelos reinventa-se na sua ficção, e, nesse seu percurso, devolve-nos, a todos, Canadá ou cá, memórias e vivências mútu as e incontornáveis.

TABLE DES MATIERES

Agradecimentos

3

Nota Prévia

5

Discours de l' Ambassadeur du Portugal à Bruxelles João da ROCHA-PÁRIS

7

Disc urso do Representante do Instituto Camões Francisco Nuno RAMOS

11

Discours du Président du colloque Jean -Michel MASSA ...... . ... . ...................... . .. . .................. . .

13

I - Conférences Inaugurales

336

Maria-A lzira SEIXO Figures de 1'errance et de la découverte dans l'écriture du voyage et du rêve maritime

15

Fernando CRISTÓVÃO O mar na literatura brasileira

26

Jean-Mich el MASSA La mer dans le monde réel et imaginaire de la lusographie africaine : Essai de typologie . . .... . . ... . . . . . . .. . . .. . .. ... . . . .. . .. . .. .. . . . . .. ..... . .. .....

37

Table des matieres

Table des matieres

II- Communications 1 - Le Portugal Edwige ANDRE La mer dans tous ses états : tempêtes, naufrages, errances dans ....... . ... . .. .. . ... .. .. ... .. ................ ...... . . la littérature portugaise

Maria Madalena TEIXEIRA DA SILVA A Transparência Ambígua : Isotopia do Mar na Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen .. ... ... ..... .. . .... ... .... . ... . .. .. ....

153

Isabel VAZ Mensagem: um outro mar a descobrir

160

51

2 - Le Brésil Maria Ausenda M. Monteiro BABO A (con)figuração do mar na comunicação quotidiana em português

56

Ana Helena Cizotto BELLINE O mar na trajetória poética de Sophia de Mello Breyner Andresen

72

Maria Graciete BESSE A Jangada de Pedra de José Saramago: l'errance et l'utopie

79



Leonor de ABREU D'une rive à l'autre ou l'adieu à la mer océane

169

Maria Alice AGUIAR Cmzando o Atlântico em busca de uma expressão Oliginária : o mito do mar e da ilha no conto Finisterre , de Nélida Pifíon

177

185

192

Ana Maria BINET Loin au-delà des mers ou la Mer Absolue de Fernando Pessoa

88

Benedito ANTUNES "Procurando refinar o tronco deixado numa praia brasileira por uma caravela da descoberta" .................. ...............................

Francesca BLOCKEEL Desde muito jovem: O Mar...

98

Margarida Maia GOUVEIA As insularidades de Cecília Meireles

Marce lino de CASTRO Ilh a de Circe, de Natália Correia: atlantismo e lusofonia

105

Micheletti GUARACIABA Imagens e sons marinhos na poesia de Vinicius de Moraes

Ana Cristina GIL António Lobo Antunes: a anti-épica e a identidade nacional

114

Ana Maria Domingues de OLNEIRA Mar Português, Mar Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..

208

António Machado PIRES Lusofonia, Açorianidade e Universalismo

121

Magde laine RIBEIRO L'océan des mots chez Lúcio Lins

214

René POUPART António Nobre entre "Ulyssisme" et "Tellurisme"

130

Idelette Mu zart Fonseca dos SANTOS Océan et Sertão: territoires narratifs de Ariano Suass una

221

Anne-Marie QUINT De l'océan au pOlt : Images maritimes dans l'reuvre de Frei Heitor Pinto

136

Antonio Carlos SECCHIN Um mar à margem - o motivo marinho na poesia brasileira do Romantismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . ...

228

Francis UTÉZA José Cândido de Carvalho: le colonel, le coq et le serpent de mel'

238

Adrien ROIG La mer dans Mensagem de Fernando Pessoa

144

200

Table des matieres

3 - Afrique Lusophone Marie-Françoise BIDAULT La voie du destin de Kindzu dans Terra Sonâmbula de Mia Couto

245

Ana Mafa lda LEITE Os temas do mar em algumas narrativas africanas de língua portuguesa: insularidades e viagem . . . . . . . . . . . . . . . . . .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . 251



Tania MACÊDO Visões do mar na literatura angolana contemporânea

257

Maria Fe/isa RODRÍGUEZ PRADO Cabo Verde e o Cais De Pedra ou a obra de Nuno de Miranda

266

Francisco SALINAS PORTUGAL A "insularidade" na construção de uma poética Cabo-Verdiana

276

Carmen Lucia TINDÓ RIBEIRO SECCO De Mares, Exílios, Fronteiras ...

288

Maria da Conceição VILHENA O Português de Moçambique

295

4 - Asie et Amérique Horácio ARAÚJO OS mares do Oriente nos relatos portugueses de viagem

301

Françoise MASSA Goa et Malacca, Macao, Nagasaki: images d'une implantation portugaise sur les côtes asiatiques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 311 Ade laide BATISTA Língua / linguagens ou uma ética de sobrevivência em Saudade, de Katherine Vaz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ...

320

Vamberto FREITAS Voz da diáspora para além do Oceano Atlântico

330

AGRADECIMENTOS

EDi Ç ÃO E DI STRIBUi ÇÃ O

lidei - edições técnicas, Ida ESCR ITÓR IO : Rua D. Es te fânia. 183 r/c Dt o. - 1049-057 Li , boa - Te le fs. 2 1 35 1 I~ 4 8 (S. Ve nd as Med ic ina ): 2 1 35 1 14 ~ 3 (Revenda ): 2 1 35 1 14 ~ 6 (Marke ting/Fonnação); 2 1 35 1 1445 (Ma ilingllllte rll e t): 2 1 35 1 1442 (En s. Lín guas/ Ex porta ção): 2 1 35 1 14 47/9 (Linh as de A utores): 2 1 35 1 I~ 41 (Teso urari a/ Peri ódi cos) Fax: 2 1 357 78 27 _ 2 1 352 26 84 LI VRARI AS: LI S BOA : Av. Prai a da Vit óri a. 14 - 1000 -2~ 7 LI S BOA - Te le !". 2 1 35 ~ 14 18 - Fax 2 1 3577827 PORTO : Rua Damião de Gó is. 45 2 - 4050-224 PORTO - Te le f. 225097993/5 - Fa x 22 550 I I 19 COIMBR A: Av. Em ídio Navarro. I 1-2." - 3000- 150 COIMBR A - Te le !". 239 82 2 ~ 86 - Fax 239 82 72 2 1 hIlP: //www. lide l.pt (Lid e i o n-line) e- ma il : lide l.fca @mail.te lepac. pt COPYR IGI-IT © Fevere iro 2000 UN IVER S ITÉ LlBR E DE BR UXE LLES Pré- Im pressão: Rabi scos de Lu z, Leia Impre"iio e acaba me nto: Rolo & Filhos - A n es Grá ficas. Lda - Mafra Depós ito Lega l N." 14 7884/00 IS BN 972-757-133-6

~ S ( C pictogrJI.n 3 merece lima ex pli cação. O se u propósit o é alerta r o leitor para a ameaça qu e rep rese nt a para o 'UllI ro ~I a cscnt ;~. l~ ol1l cnd a l1l c l1l c na área da edi ção téc ni ca c lIni ve rsi t.íria. o dese nvo l vim ento Ill ass i vo da fotocópi a. O Códi go do Di re ito de A UlOr estabe lece que é crim e punido po r lei. a fOlocópi a ~C I11 autorização d o~ pro prie tár ios ci o copyriglll. No Clllanlo. cs l'l pr.í ti ca gencrali zo u·sc so bretudo no ensin o superi or. provoca nd o lIllla qu eda substanc ial na compra de li vros téc ni cos. A ss im . Ilum país cm qu e a literm ura téc ni ca é lào csc

& e;- eéU!

CAMOES

cvzJ..t Je""'f'Lt-' rU$ cJOf,v ( Manuel Lopes, Cabo-Verde

hdW!PVv'Jt-' c& J}..c&.w- wf.cvv do- t~r 'd& Uf.t'u adtV'u e;- at",te-JI I!/ cr Je;-w.v

Université Libre de Bruxelles

1"'W1'tCV rVLilc.aJf,i'w r U$

Jt-'

e~a""tcv 111.tV'u

Manuel Rul,Angolo

ISBN 972-757-1 33-6

La Lusophonie : VoiesNoix Océaniques •

Colloque International de Littérature Université Libre de Bruxelles 16-19 septembre 1998

Textes réunis par Anne Quataert et Maria Fernanda Afonso

lieJel - eeJições técnicas, leJa

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.