Cachoeira do Tombo da Fumaça - Salto da Divisa/MG. Guia de Bens Tombados IEPHA/MG

July 5, 2017 | Autor: Luis Molinari | Categoria: History, Cultural History, Cultural Heritage, Natural History, Nature, Patrimonio Cultural
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INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS GERAIS

GUIA DE BENS TOMBADOS IEPHA/MG

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SALTO DA DIVISA

Conjunto Paisagístico das Cachoeiras do Tombo da Fumaça Foto: Acervo IEPHA/MG

O tombamento do Conjunto Paisagístico das Cachoeiras do Tombo da Fumaça, localizado no município mineiro de Salto da Divisa, foi aprovado pelo Conselho Curador em 11 de agosto de 1999, sendo então sua inscrição determinada no Livro de Tombo nº. I, do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e no Livro de Tombo nº. III, do Tombo Histórico, das Obras de Arte Históricas e dos Documentos Paleográficos ou Bibliográficos.

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screver sobre o Conjunto Paisagístico das Cachoeiras do Tombo da Fumaça em Salto da Divisa é dizer sobre duas histórias distintas e imbricadas. A primeira diz sobre o que foi o Conjunto: exuberante marco natural, lugar simbólico e referencial cultural, elementos motivadores de seu tombamento. A segunda história diz da situação atual e do processo que resultou na submersão das cachoeiras e no consequente desrespeito ao patrimônio cultural estadual e a toda uma sociedade. A formação geológica que permitiu o aparecimento das cachoeiras do Tombo da Fumaça no rio Jequitinhonha demorou milhares de anos para se constituir no marco natural, histórico e simbólico. Ao longo do tempo, as corredeiras despertaram visões distintas: por um lado a da beleza paisagística e da importância como referência cultural e, por outro, o entrave que essas cachoeiras representavam para a colonização do território. Encravada nos chamados sertões do Leste1, as cachoeiras de Salto da Divisa estavam na região ocupada, até o início do século XX, por uma série de Fig. 1 – Tombo da Fumaça etnias indígenas, do tronco linguístico Macro-Gê, denominadas genericamente de botocudos2. Os movimentos de aproximação e de distanciamentos entre colonos e as populações indígenas foi a tônica da colonização de toda a região leste de Minas Gerais, ao longo do século XIX. A Junta de Civilização3, empreendimento da coroa portuguesa que dividiu o território em sete regiões, tinha por objetivo implementar a política de ocupação, com o controle das populações indígenas, através dos aldeamentos e da Guerra Justa4. Além disso, o objetivo da junta era o de dar segurança aos colonos, com as construções dos quartéis e promover o comércio pelo rio através da troca de mercadorias entre Minas Novas em Minas Gerais e Belmonte, na Bahia. Nesse contexto surge o Quartel do Salto, com o objetivo de dar segurança ao transbordo das cargas que aconteciam no local. Esse foi o início da ocupação e controle da região pela Coroa.

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Os sertões do leste de Minas coincidiram em grande parte com a região leste da Capitania/Província de Minas Gerais, que aproximadamente corresponderia aos vales dos Rios Mucuri, Doce, Jequitinhonha e adjacências. O nome vem dos botoques introduzidos no lábio inferior ou nos lóbulos das orelhas para alongá-los. A Junta de Civilização, Catequese, Comércio e Navegação do Rio Doce dividiu o Rio Doce em regiões lideradas, cada uma, por um Comandante que detinha amplos poderes. O empreendimento da Coroa, como o próprio nome dizia, não separava claramente as ações relacionadas ao comércio com aquelas estritamente de caráter civilizador, aliás, tudo era visto como um só corpo. O problema dessa situação é que os comandantes geralmente privilegiavam o comércio e o beneficio próprio, em detrimento da catequese dos nativos. (Molinari, 2009). 4 A Carta Régia de 13 de maio de 1808 e os documentos subsequentes relativos à catequização e ocupação dos sertões do Leste resgatavam o principio da Guerra Justa e instituíam uma declaração formal de guerra contra os índios Botocudos. 2 3

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CONJUNTO PAISAGÍSTICO DAS CACHOEIRAS DO TOMBO DA FUMAÇA

Foto: Acervo IEPHA/MG

Fig. 2 – Corredeiras do Conjunto Paisagístico

Com o tempo, o comércio tornou-se importante na região e atraiu centenas de pessoas para a rota que ficou bastante conhecida. Como também acontecia em outras regiões da província e do Brasil, muitos estrangeiros andavam pelo território e passaram pelo Salto. Entre eles, o viajante de origem austríaca Johann Baptist Emanuel Pohl. Nos seus relatos das viagens feitas pelo interior do Brasil, entre 1817 a 1821, ele descreve enfaticamente as cataratas de Salto da divisa, que na época eram conhecidas pelo nome de Salto Grande: Nesse canal rochoso se encontram as três principais cataratas do Jequitinhonha, que, merecidamente, têm o nome de Salto Grande, sendo que cada uma delas se divide em várias quedas de água. A primeira cachoeira tem três interrupções, numa extensão de 90 metros de comprimento, caindo da altura de onze metros. As águas precipitam-se aqui com estrondoso ruído, espumando entre massas de rocha, num abismo insondável e a sua espuma verde-amarelada ressalta como uma coluna de pouco mais de dois metros de altura. A violência deste rio estreitado, que antes corria com a largura de 450 metros, esculpiu nos rochedos as formas bizarras que agora admiramos. Mesmo a considerável distância da cachoeira, ainda se nota a violenta erosão do rio que, durante a estação das chuvas, inunda as margens pedregosas deixando as massas de granito ora irregulares, ora arredondadas, e com inúmeras cavidades umbilicadas que a água produz pelo atrito das pedrinhas arrastadas que rodopiam sobre as massas de pedras, formando assim aquelas escavações. A segunda cachoeira, a mais violenta, está a uns 100 metros a leste da anterior. Se já estávamos encantados com a visão das outras quedas de água, muito mais iríamos ficar agora com a contemplação desse majestoso e sublime espetáculo da Natureza, que se pode ver, mas não descrever. Aqui acampamos à margem e ficamos admirando as maravilhas da Natureza que diante de nós se apresentavam em seu máximo esplendor. Cercados por águas, com múltiplos arco-íris difundindo as suas cores, entregamo-nos, mudos e estupefatos, a essa soberba paisagem natural5 Embora Pohl tenha escrito que aquele espetáculo da natureza somente “se pode[ria] ver, mas não descrever”, seu relato dá a dimensão da grandiosidade do que eram aquelas quedas e do impacto que causavam nas pessoas. Outro viajante que percorreu o rio Jequitinhonha e passou pelo Quartel de Salto, nos primeiros anos do século XIX, foi o príncipe de origem alemã Maximilian Von Wied-Neuwied, que contou um pouco sobre as dificuldades de se transpor as cachoeiras e da forma como os carregamentos eram retirados das canoas, transportados por terra e novamente embarcados.

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POHL, Johann Emanuel. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1996. p. 351.

CONJUNTO PAISAGÍSTICO DAS CACHOEIRAS DO TOMBO DA FUMAÇA

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Foto: Acervo IEPHA/MG

Fig. 3 – Tombo da Fumaça

Perto desse posto militar, uma grande cascata torna o Rio todo inavegável, sendo necessário saltar nesse ponto e prosseguir em terra por sobre uma montanha; acima do “Quartel”, embarca– se novamente em outras canoas. Minha Bagagem foi descarregada e transportada para o “destacamento”. O caminho galga uma ribanceira íngreme, onde se construiu um alpendre para os produtos vindos de Minas, aí desembarcados. Em cima, entra–se em um mato alto, onde as bromelias atapetam o solo, formando um balsedo impenetrável 6

Acervo APM

Os anos se passaram e os projetos para o aproveitamento do rio Jequitinhonha se diversificavam. Em meados do século XIX, foi apresentado um “Plano de uma parte do Rio Grande de Belmonte ou Jequitinhonha para servir à sua canalização na Província da Bahia” (fig.4). De acordo com o projeto seriam construídas 23 eclusas que canalizariam o rio e permitiriam a navegação de Belmonte até Salto. Não se sabe bem as razões, provavelmente o alto custo da obra, mas o fato é que o projeto não foi executado. Todavia, a utilização do rio em grandes projetos foi sempre um tema recorrente na história do Jequitinhonha e um desses projetos determinou o destino das cataratas, no final do século XX. A segunda história referente às cachoeiras do Tombo da Fumaça marca a ruptura semântica de apropriação do bem cultural, relegando obrigatoriamente o conjunto paisagístico à categoria da memória. Isto após as cachoeiras terem sido Fig. 4 – “Plano de uma parte do Rio Grande de Belmonte ou Jequitinhonha para servir à sua submersas pela formação do lago da usina hidrelétrica canalização na Província da Bahia” (Tradução nossa)7 de Itapebí, na Bahia. Pode-se dizer que a instalação da usina e as consequentes mudanças na paisagem e nos modos de vida das populações afetas pelo lago constituíram-se num evento de transformação dos modos de vida em virtude do espaço modificado. Antes da usina existir como uma realidade para as populações envolvidas, uma miríade de processos administrativos e jurídicos se desenvolveu.

6 Segundo o príncipe Maximiliano, existiam ao longo do rio, os Quarteis dos Arcos, Estreito, Vigia, S. Miguel e Tucaios de Lorena.(WIED WIED-NEUWIED, Maximiliano Philipp, Príncipe Von. Viagem ao Brasil. São Paulo: Nacional, 1940. p.227.) 7 “PLAN D’UNE PARTIE DE RIO GRANDE DE BELMONTE OU JEQUITINHONHA POUR SERVIR A AS CANALISATION DANS LA PROVINCE DE BAHIA” – Fonte: PRZEWADOWSKI, Andre. Ano 1842. Coleção de documentos Cartográficos do Arquivo Público Mineiro – APM

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CONJUNTO PAISAGÍSTICO DAS CACHOEIRAS DO TOMBO DA FUMAÇA

A partir das primeiras notícias sobre uma eventual instalação de uma hidrelétrica na região, a sociedade civil e política de Salto da Divisa se mobilizou para conhecer detalhes do projeto. As ameaças que decorriam de um projeto desse porte assombravam os moradores do município desde o resultado do Estudo de Impacto Ambiental - EIA8 feito em 1996. No estudo, a empresa assegurava que, embora as cachoeiras do Tombo da Fumaça fossem parcialmente afetadas, as quedas de maior expressão seriam preservadas. O temor quanto aos impactos provenientes da usina aumentaram quando Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)9 concedeu a Licença Prévia ao consórcio representado pela empresa Itapebí Geração de Energia S. A., em 18 de novembro de 1997. Na licença, analisada pelo conselho de Defesa do meio Ambiente do município, verificou-se que o lago do reservatório, ao contrário do que apresentava o Estudo de Impacto Ambiental, atingiria a cota de 110 metros, o que resultaria na submersão das cachoeiras. Na tentativa de preservar as cachoeiras, o município tornou patrimônio paisagístico, em 1998, as Cachoeiras do Tombo da Fumaça e o seu entorno. Tal lei bastaria para a preservação do Conjunto Paisagístico e forçaria o IBAMA a reorientar o processo de licenciamento. Entretanto, a lei foi revogada após os vereadores refletirem, por pouco menos de um ano, sobre todas as implicações do tombamento e dos benefícios do lago gerado pelo represamento do Jequitinhonha. Diante da situação de risco iminente ao patrimônio cultural, o IEPHA/MG, em 1999, fez o tombamento do Conjunto Paisagístico das Cachoeiras do Tombo da Fumaça. Todavia, em 29 de setembro de 1999, pouco mais de um mês após a publicação da ata da reunião do Conselho Curador que definiu o tombamento, o IBAMA, contrariando o conselho, concedeu a Licença de Instalação de usina de Itapebí. No dia seguinte à concessão da Licença as obras de instalação da usina foram iniciadas. Não obstante o início das obras, as tentativas de salvaguarda das cachoeiras ainda se prolongaram por um longo tempo, com ações do município, do executivo estadual e do Ministério Público Estadual. No final do processo, as negociações resultaram em ações mitigadoras e compensatórias como a criação da Reserva Biológica da Mata Escura, em Jequitinhonha/MG e Almenara/MG. As cachoeiras, todavia, foram submersas e a sociedade se viu privada desse bem cultural. Enfim, nessa história sobre as cachoeiras do Tombo da Fumaça, a tônica dominante foi a do aproveitamento dos recursos naturais a serviço de um suposto progresso. Se na primeira parte da história os antagonistas para o chamado progresso foram os nativos brasileiros e as corredeiras, na segunda, os obstáculos eram os habitantes da região e seu modo de vida que o patrimônio cultural tentava preservar. A cooptação e o extermínio foram as armas empregadas contra os primeiros. Sofisticadas e penosas tramas jurídicas foram necessárias para suplantar os segundos. Por fim, o que se viu foi um descaso com a cultura nos seus aspectos tangíveis e intangíveis, com a memória histórica de um povo e com os lugares onde a comunidade estabeleceu vínculos práticos e afetivos. O que resta então é a memória. Nesse sentido, a manutenção do tombamento do bem cumpre seu papel simbólico como um meio de manter na lembrança das futuras gerações a perda de um importante patrimônio cultural. Acervo Luciana Gomes

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS GERAIS. DOSSIÊ DE TOMBAMENTO DO CONJUNTO PAISAGÍSTICO DAS CACHOEIRAS DO TOMBO DA FUMAÇA. MOLINARI, LUIS GUSTAVO. DE JOSÉ JOAQUIM DA ROCHA A FREDERICH WAGNER: CIVILIZAÇÃO, NATIVOS E COLONOS NAS REPRESENTAÇÕES CARTOGRÁFICAS DOS SERTÕES LESTE DE MINAS GERAIS (1778-1855). 2009. 183 F., ENC. : DISSERTAÇÃO (MESTRADO) - UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS. RIBEIRO, Morel Queiroz da. O LICENCIAMENTO AMBIENTAL DE APROVEITAMENTOS HIDRELÉTRICOS: O ESPAÇO DA ADEQUAÇÃO. 2008. DISSERTAÇÃO (MESTRADO) – UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS. 10 ZHOURI, Andréa; OLIVEIRA, Raquel. PAISAGENS INDUSTRIAIS E DESTERRITORIALIZAÇÃO DE Fig. 5 – Pedra do Bode POPULAÇÕES LOCAIS: CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS EM PROJETOS HIDRELÉTRICOS. TEORIA & SOCIEDADE, Belo Horizonte, v.12, n.2, p.10-29, jul.-dez. 2004. Autoria: Leonardo Augusto S. Freitas,

Luís Gustavo Molinari Mundim

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Estudo de Impacto Ambiental (EIA)/ Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) foram feitos pela empresa ENGEVIX. (Ribeiro, 2008). Houve o entendimento da análise de viabilidade do projeto nos órgãos ambientais dos dois Estados envolvidos (MG, BA), com a deliberação final do pedido de licença pelo IBAMA. A “Pedra do Bode” é a parte mais alta da formação rochosa das cachoeiras do Tombo. Tem esse nome porque em uma das grandes enchentes do Rio Jequitinhonha, alguns bodes encontram ali seu refúgio, conforme relato da fotógrafa e ex-moradora do município, Luciana Gomes. 9

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