Cade criminologia no estudo de tortura

June 24, 2017 | Autor: Martha K Huggins | Categoria: Torture
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Tortura: Cadê Criminologia?[1]


Martha K. Huggins




Prevendo a tortura
O que eu aprendi a respeito da tortura no período da ditadura
militar brasileira (1964-1985) derivou de dois projetos de pesquisa:
Political Policing (Duke, 1997; Cortez, 1998), sobre a história do
treinamento da polícia latino-americana nos eua; e Violence Workers
(Califórnia, 2002; UnB, 2003), um estudo baseado em entrevistas com
policiais que foram torturadores e assassinos durante a ditadura
militar brasileira. Esses dois trabalhos, mais a minha experiência como
acadêmica visitante no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade
de São Paulo (1991), formaram uma base sólida para compreender a
dinâmica estrutural e interpessoal da tortura em Guantânamo e Abu
Ghraib. Essa pesquisa de base motivou-me a escrever, em março de 2002,
após os ataques de 11 de setembro às torres do World Trade Center de
Nova York, ao Pentágono e a um campo na Pensilvânia -- dois anos antes
da descoberta de tortura em Abu Ghraib –, um editorial no jornal Albany
Times Union: "Trate os Prisioneiros como Seres Humanos" (Huggins, 26
March, 2002), advertindo que as condições às quais eram submetidos os
prisioneiros em Guantânamo permitiam que os interrogatórios se
transformassem em tortura.


Meu modelo "Tortura 101", não em uma imagem dos tipos de pessoas que
provavelmente torturariam, mas nas condições políticas, sociais e
culturais que facilitariam a promoção, o encorajamento e a justificação
da tortura. Após trinta anos de pesquisa sociológica sobre a violência
do Estado, incluindo extensas entrevistas com policiais torturadores
brasileiros e o estudo das instituições policiais brasileira e
americana, senti-me confiante de que meu modelo "Tortura 101" é capaz
de prever tal violência em cadeias, prisões e em abrigos secretos.

Modelo: 'Tortura 101'
1. Rotulação enganosa. A palavra "tortura" é evitada ou rotulada de forma
enganosa pelos perpetradores e oficiais responsáveis. Os torturadores
brasileiros que entrevistei em 1993 raramente usavam a palavra tortura,
referindo-se a ela como "aquele tipo de conduta", "uma conversa com os
nossos prisioneiros" ou "conduzindo pesquisa [...] e levantando dados".
Eles admitiam ter cometido "excessos menores" como "esbofetear [...] e
socar [um prisioneiro] um pouco" ou "pendurar [um prisioneiro]". Quando a
tortura ia "longe demais", o torturador explicava ter "cometido um erro" ou
"excessos desnecessários" (Huggins et al., 2002).


De modo similar, investigações de "abuso" a prisioneiros iraquianos nos
Estados Unidos revelaram uma relutância em usar a palavra "tortura" em
vários níveis, especialmente de atores associados ao governo norte-
americano descrevendo essa violência como "degradação", "encenação",
"mau trato", "interrogatório duro". Presumivelmente, essas formas
"menores" de violência – além de não ser vistas como tortura – podem
ser congeladas no tempo e não se desenvolver em tortura. Entretanto,
dentro de uma prisão e de salas de interrogatório – especialmente
durante as primeiras sessões de "amaciamento" –, onde como em Abu
Ghraib maus tratos físicos e psicológicos eram parte do processo
interrogatório – as formas "menores" de violência rapidamente se tornam
formas mais sérias, incluindo tortura e morte (Browning, 1992; Haney et
al., 1977). Interações violentas não são estáticas; violência produz
mais violência e usualmente em formas mais sérias (Toch, 1969, 1996).


2. Ideologia. Ideologias de "segurança nacional" abundam. A tortura é
alimentada e justificada por ideologias que criam a categoria crescente
de "outros como inimigos". Onde "boas" nações são ameaçadas por
"pessoas más" e se assume que qualquer um poderia ser um "inimigo", não
pode haver restrições ao interrogatório. . O medo, instigado
deliberadamente ou não – como em ficções sobre "armas de destruição em
massa" –, dá legitimidade à tortura. Quando se diz que uma "ameaça"
opera fora da lei civilizada, a resposta do Estado pode ser
legitimamente imediata. Isso era verdadeiro durante a ditadura militar
brasileira (1964-1985), tal como é para os Estados Unidos hoje.


3. Legalismo ad hoc. Uma cultura permissiva da tortura é encorajada e
justificada por decisões oficiais de nível executivo, que fazem com que
a tortura pareça legítima. Em 2002, a administração Bush declarou
simplesmente que os detidos em Guantânamo não estavam cobertos nem pela
constituição americana nem pela legislação internacional. Sob pressão
do Departamento de Estado, essa determinação foi revista para se
aplicar somente aos "combatentes ilegais" detidos em Guantanamo, um
status simplesmente atribuído a estes detentos pelo governo Bush ao
invés de detentos por "tribunais militares", como exigem as Convenções
de Genebra.


4. Sistêmica. A tortura é parte de um sistema, não o trabalho de umas
poucas "maçãs podres". Alegar que a tortura seja sistêmica implica
dizer que a violência é ampla e persistente, amparada por estruturas
legais e ideológicas incorporadas em uma agência oficial com múltiplas
e interconectadas divisões de trabalho, alimentadas e protegidas pelo
segredo e autorizadas pela ausência de qualquer ação oficial contra
ela.


5. Atores múltiplos. A tortura sistêmica é promovida e perpetuada por
atores e organizações dentro e fora do ambiente local de tortura. Os
perpetradores diretos da tortura em Abu Ghraib – alguns guardas e
interrogadores, do governo e de serviços privados – não poderiam ter
torturado seriamente senão com uma rede de facilitadores que proviam
suporte organizacional, técnico, jurídico e financeiro para a sua
violência. O ambiente imediato de tortura incluía facilitadores como
tradutores, médicos (ver Miles, 2004), enfermeiros, guardas,
treinadores de cães e muitos outros. Os facilitadores superiores do
sistema abrangia chefes de Estado, seus ministros, embaixadores,
advogados e chefes de departamento, para nomear alguns. A Americas
Watch preparou um documento denunciando esses poderosos facilitadores;
o American Civil Liberties Union fez o mesmo.


Perguntar por que uma pessoa torturaria outra aborda somente uma
pequena parte do problema; por exemplo, os fatores que levam os
perpetradores diretos a cometer tortura podem não explicar a atuação
dos facilitadores. Ver a atrocidade sendo incentivada de várias formas
por pessoas em situações sociais diferenciadas aponta para a
complexidade dos sistemas de atrocidade e concentra a atenção analítica
e legal no papel dos facilitadores (e não somente nos perpetradores),
assim como nos climas políticos que os mesmos criam ao promover e
legitimar o controle social violento.


De fato, de acordo com o meu modelo "Tortura 101", os facilitadores
podem ser mais essenciais à estabilidade e à proteção do sistema de
tortura no longo prazo do que os seus mais visíveis e diretos
perpetradores. Claramente, a tortura durante a ditadura militar
brasileira não poderia ter persistido por mais de vinte anos sem a
cumplicidade ativa dos facilitadores. Isso é verdadeiro para os Estados
Unidos hoje como foi para as "guerras sujas" do Brasil ou da Argentina.


6. Divisão do trabalho e difusão da responsabilidade. Nossa pesquisa
com torturadores brasileiros demonstrou uma diferença importante entre
os policiais que se tornaram torturadores e aqueles que não o fizeram:
a filiação à elite e/ou à operações policiais fisicamente separadas ou
insulares, ou unidades de inteligência. Esse importante estrato da
divisão de trabalho mais ampla, em um sistema de tortura – criado pela
alocação de uma pessoa dentro do sistema policial ou militar – foi o
mais importante elemento preditor da tortura. É bastante simples: uma
pessoa não poderia torturar rotineiramente se não estivesse associada a
uma equipe de interrogatório.


A tortura não pode existir, a longo prazo, fora de um amplo sistema que
incluI facilitadores e perpetradores diretos. Uma divisão de trabalho
entre os diferentes níveis da hierarquia, que propositadamente
estabelecem e promovem tanto estruturas quanto ambientes facilitadores
da tortura, e entre os perpetradores que a levam a cabo, em geral
protege os facilitadores da exposição ao deixar o operadores,
consideravelmente menos poderosos mais visíveis serem punidos, como
vimos em Abu Ghraib (Earthtimesorg, 23 abr. 2005; Sevastopulo, 25 abr.
2005).

7. Competição. A aceleração do sistema de inteligência, facilmente
desencadeada provocada por uma guerra preventiva – genericamente clara
definida – contra uma categoria em expansão de "outros" inimigos, cria
competição por informações sigilosas e um clima propício para a
tortura. Como serviços de inteligência civis e militares e seus agentes
rivalizam pela "maior" e "melhor" informação de e sobre "terroristas" –
com cada uma dessas categorias ("melhor", "maior" e "terrorista") mal
definida e sujeita a mudança – a tortura é frequente.


8. Evidência ignorada. Evidências de tortura são ignoradas, escondidas,
negadas e distorcidas. Muitos regimes de tortura aplicam censura à
imprensa, eliminam o Congresso e as eleições populares, e calam o poder
judiciário para evitar que o conhecimento da tortura patrocinada pelo
governo venha a público. Esse certamente era o caso da ditadura militar
brasileira; entretanto, nos Estados Unidos, uma democracia formal,
atores poderosos podem rejeitar, esconder ou, se necessário, mentir a
respeito dos "excessos" de interrogadores.


9. Insularidade e segredo. Depois de dar os passos necessários para
esconder a tortura, por que alguns dos perpetradores de Abu Ghraib
tiraram fotos de pessoas sendo torturadas? Um torturador brasileiro que
entrevistei em 1993 explicou que era "seguro" para ele fotografar um
homem sendo torturado no famigerado "pau de arara" porque "a polícia
nunca fala". Em outras palavras, quando atores se reportam unicamente
uns aos outros e aos superiores imediatos que direta e indiretamente
permitem a tortura, tirar fotos gera um risco muito baixo.


Ainda assim porque tanta tortura ocorre à noite como aparentemente é o
caso em Abu Ghraib? E por que, se o sistema é organizado de forma a
esconder suas práticas mais hediondas, alguns torturadores usam capuzes
ou os colocam em suas vítimas? A resposta sócio-psicológica (Huggins et
al., 2002, Conclusão) é que a escuridão e as máscaras ou capuzes
desumanizam as vítimas e garantem anonimato aos torturadores, o que
facilita a execução da tortura. Pessoas sem olhos e expressões faciais
podem ser maltratadas com mais facilidade (ver Watson, 1973; Zimbardo
et al., 1973, 2007). Ao tornar as vítimas invisíveis, o torturador as
transforma em "material" não humano a ser trabalhado – bem ao estilo
dos pesquisadores japoneses pré-Segunda Guerra Mundial, que chamavam
suas cobaias humanas "pedaços de madeira" (ver Gold, 1996). Um
torturador não precisa ver suas vítimas como seres humanos nem a si
mesmo como alguém que as está brutalizando.


10. Impunidade. A tortura se torna sistêmica quando os envolvidos não
são punidos.


Parte II: Tortura e criminologia


A meu ver, este artigo pode levantar uma questão perturbadora da
perspectiva da criminologia: "Tortura 101" é realmente criminologia ou
jornalismo? Tendo feito essa pergunta a mim mesma inúmeras vezes,
procurei no Google pesquisas e estudos criminológicos sobre tortura;
talvez assim pudesse obter uma resposta a partir do trabalho dos
criminologistas a respeito do assunto. Comecei a minha pesquisa com
termos amplos: "tortura como objeto da criminologia", "criminologia e
tortura" e "estudando a tortura". Minha primeira descoberta foi que a
tortura tem recebido uma atenção menor pela criminologia, informação
corroborada pela pobreza relativa de discussões sobre tortura nos
livros universitários norte-americanos de criminologia6[2]. Uma tese
sobre a tortura7, de fato, confirma "o silêncio relativo da
criminologia ao discutir 'tortura', particularmente em relação a outros
atos de violência." Ainda assim, um dos fundadores da criminologia,
Cesare Beccaria, em seu livro de 1764, Dos Delitos e das Penas,
apresentava dois grupos de argumentos sobre a tortura. A tortura era
inaceitável para Beccaria com base na justiça: ela poderia fazer "um
homem inocente sofrer uma punição imerecida [...] ou tornar uma pessoa
fraca mais sujeita a confessar um crime do que uma pessoa mais forte,
sem consideração pela culpa." Em um argumento "legalista" contra a
tortura, Beccaria afirmou que "confissões [derivadas] pela tortura não
deveriam ser válidas, já que um homem inocente pode confessar somente
para fazer parar a tortura, e a pessoa [que está sendo torturada] pode
implicar cúmplices inocentes" somente para se livrar do suplício. Mas,
a despeito de Beccaria, a criminologia norte-americana tem se mostrado
relativamente omissa sobre a tortura[3].
Nessa mesma linha, uma segunda descoberta da minha pesquisa no
Google foi que grande parte do ensino sobre a tortura, principalmente
após a Segunda Guerra Mundial, ocorre em faculdades de Direito, onde é
tratada como uma "questão jurídica" – "Prevenindo a Tortura: Um Estudo
sobre a Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e Tratamento ou
Punição Desumanos ou Degradantes" (Bernheim, 2001) – ou em termos do
impacto da tortura na legislação e na prática dos direitos humanos[4].
(http://www.pch.gc.ca/progs/pdphrp/docs/cat/2002/nb_e.cfm;
see also http://www.supranationalcriminology.org/framespage.htm). No
mesmo período, a tortura tem sido marginalizada no currículo da
criminologia, abordada no máximo como parte da lista de matérias
aparentemente similares. Por exemplo, a Universidade Rutgers
(Piscatawa, campus de Nova Jersey) oferece uma matéria optativa no
curso de graduação em justiça criminal, "Terrorismo Político", descrita
como uma "análise de diversas organizações que recorrem ao terror,
fome, tortura e assassinato para objetivos políticos". A Universidade
de Montana (Missoula, MT, EUA) oferece um curso intersemestral sobre "A
Resposta dos EUA ao Terrorismo", que examina "a definição de
terrorismo, os estatutos americanos que tratam do terrorismo, a
detenção de testemunhas importantes e combatentes inimigos, tortura e
"entrega extraordinária", tribunais militares, extratos do Patriot Act
[Ato Patriota] [...]"[5]. A Thompson Education International – uma
universidade on-line que se descreve como "a rede mais importante de
ensino a distância [na Ásia]" – oferece dois cursos de graduação em
"Direito e Criminologia". Um destes sobre "Direitos Humanos", inclui
uma unidade sobre "o direito de ser livre de tortura, tratamento ou
punição desumano ou degradante e escravidão". Outro curso, "Crime e
História da Sociedade", inclui uma unidade sobre "Pré-Modernidade:
Perdão, Tortura e Caça às Bruxas" (http://www.thomsonworldclass.com/).
Um curso da Universidade Victoria (Wellington, Nova Zelândia),
oferecido pelo seu Instituto de Criminologia sobre "Liberdades,
Direitos e Justiça", explora a "segurança e terrorismo, escravidão e
desenvolvimento, imigração e asilo, tortura e estupro como armas de
guerra, 'desaparecimentos' e genocídio"
http://www.vuw.ac.nz/sacs/news/docs/IOC30thPubWeb.pdf).
Uma terceira descoberta da minha pesquisa no Google foi que os
estudiosos da tortura – sejam criminologistas ou acadêmicos de outras
disciplinas – usualmente exploram o assunto em outros países que não o
nosso [os eua]. Por exemplo, na minha própria pesquisa para o estudo
Violence Workers: Torturers and Murderes Reconstruct Brazilian
Atrocities (em coautoria com Mika Haritos-Fatouros[6] e Philip
Zimbardo, 2002), entrevistei policiais que tinham sido torturadores
durante a ditadura militar brasileira. Elizabeth Stanley, acadêmica na
Inglaterra, examinou "Tortura e Justiça de Transição no Timor Leste"
(2011), Darius Rejali, um cientista político americano de ascendência
iraniana, acadêmico na Reed College (Portland, OR, eua), examinou a
tortura no Irã em seu livro Torture and Modernity: Self, Society, and
State in Modern Iran (1994)[7]. Fida Mohammad, um sociólogo/criminológo
da Universidade do Estado de Nova York, analisou Tortura, Assassinatos,
Confissões & Hegemonia em um estudo de caso do Paquistão
(http://employees.oneonta.edu/mohammf/CV.html)14[8]. As exceções mais
óbvias a esse padrão são o recente fluxo de notícias[9] e análises
sobre a tortura dos Estados Unidos em Abu Ghraib (ver nota 4 ) e o rico
acervo de estudos sobre o regime nazista. Entretanto, em geral a
tortura apareceu no Google dos eua como algo que "outras pessoas
fazem", particularmente atores fora das democracias formais
consolidadas.
Uma quarta descoberta da minha pesquisa no Google foi que, na
medida em que a "tortura" é tratada como uma matéria acadêmica, é mais
provável encontrá-la dentro da história, ciência política, sociologia,
filosofia ou psicologia. Ainda assim, em muitas dessas disciplinas a
tortura ainda era um tema marginal em relação às principais
disciplinas. Por exemplo, na Universidade de St. Joseph (Filadélfia,
PA, eua), um curso sobre a "Sociologia da Aberração" inclui tópicos
como "o Holocausto, o Estado de terror, a tortura e a doença mental
[...]"16[10]. Muitos cursos de ciência política que tratam do
"terrorismo" classificam a "tortura" como uma das várias submatérias
presumivelmente relacionadas ao
terrorismo17[11](http://academic.reed.edu/poli_sci/faculty/rejali/rejali
/torture.html).
A filosofia relega a tortura a uma posição menor,
frequentemente considerando-a de passagem em cursos de "Filosofia da
Religião", "Ética" e "Pensamento Crítico". Na matéria "Pensamento
Crítico" da Universidade de Oklahoma, os alunos estudam "eutanásia e
aborto, natureza e propósito da educação, ação afirmativa, justiça e
direitos, controle de armas, tortura e pena de morte, a existência de
Deus e outros tópicos de interesse na atualidade"18[12]. Em "Problemas
da Ética Normativa" da Universidade da Califórnia em Davis, os alunos
estudam "debates contemporâneos sobre os limites morais adequados ao
uso da força pelo Estado contra outros Estados e indivíduos"
(philosophy.ucdavis.edu/millstein/phil15syllibus.pdf)[13].
Diferentemente das disciplinas listadas anteriormente, a
psicologia social acadêmica tem uma longa tradição de pesquisa e ensino
sobre "obediência à autoridade", um dos fundamentos teóricos para sua
análise da tortura. Baseada em laboratório e experimentos de campo
relativamente controlados, a pesquisa sobre a "obediência à autoridade"
concentra-se primariamente no micronível dos processos interativos e
nos fatores contextuais imediatos que nutrem a obediência e a
violência. O "Experimento da Prisão de Zimbardo" (www.prisonexp.org),
um dos exemplos mais conhecidos desses trabalhos, tem relevância no
estudo da tortura.
No currículo acadêmico da psicologia social, a "tortura" tem
tido uma posição mais ou menos central, com um foco nos torturadores e
nas suas vítimas. Por exemplo, um curso da Universidade de Webster (St.
Louis, mo, eua) sobre tortura, ética e responsabilidade social examina
"as várias definições de tortura, a legislação internacional e nacional
sobre a tortura, o impacto da tortura nos sobreviventes, a eficácia da
tortura como meio de obtenção de informação [e] o papel de várias
profissões na tortura
[...]"(http://www.webster.edu/~woolflm/torturesyllabus.html).
Uma descoberta final da minha pesquisa no Google é que a pesquisa
e o ensino sobre a tortura tentem a individualizar e "patologizar" a
tortura, alienando-a, assim, da sua ampla estrutura organizacional,
sistêmica e político-econômica. Ao enfocar um aspecto transversal
(somente um de seus elementos) – seus perpetradores – e/ou as
interações que ocorrem dentro das "câmaras de tortura" entre os
torturadores, as vítimas e os facilitadores assistentes, os
pesquisadores só podem chegar a conclusões enraizadas na "patologia" e
na desorganização social. A recente "safra" de livros e artigos que
criticam a tortura dos Estados Unidos em Abu Ghraib e as atividades de
"entrega" da cia representam um desvio bem-vindo dessa abordagem
individualista da tortura. (McCoy, 2006; Zimbardo, 2007; Danner, 2004
Conroy, 2001 e Chandler 2001).




III. Criminologia e tortura


Ausencia. Como podem os criminólogos estudar a tortura quando existem
tão poucos estudos acadêmicos em criminologia a respeito dessa
importante matéria? De fato, por que os criminólogos relegaram o estudo
e teorização da tortura para disciplinas presumivelmente menos
preparadas?


Sem modelos uteis. Um dos obstáculos para o estudo da tortura por
criminológos é a limitação de modelos criminológicos para tal estudo.
Os criminólogos poderiam inserir sua pesquisa nos paradigmas de
"aberração humana" ou "desorganização social". O pressuposto é que os
praticantes da tortura são "excepcionalmente e maus" ou que os sistemas
de tortura e seus atores fazem parte de sistemas ou organizações
"socialmente desorganizados". As explicações da "maçã podre" e da
"falha na cadeia de comando", associadas com muitas das ações legais
nos casos de Abu Ghraib, seriam um exemplo dessas perspectivas sobre a
tortura. Entretanto, como o sociólogo e criminólogo Albert K. Cohen
(1971) ressaltaria, as abordagens embasadas em "o mau causa o mal" têm
aplicabilidade limitada.


Atores associados. A maioria dos argumentos sobre tortura se situam a
explicação para a tortura naqueles que chamo de "perpetradores
diretos". De fato, como vimos, os sistemas de tortura não poderiam
operar sem um conjunto de atores associados: entre eles,
"facilitadores" e "observadores", sendo os perpetradores diretos os
menos ativos numericamente dentro do sistema de tortura. Preceituo
uma abordagem criminológica multicausal para a tortura, usando o que a
criminologia chama de modelo de crime do tipo "organização social",
seguida por teorias que explicam como Estados nacionais democráticos
operam para proteger e explicar seus interesses, convencendo suas
populações a apoiar suas ações, mesmo quando estas não são
democráticas. Minha teoria criminológica da tortura teria atores
teóricos de médio alcance – o governo e/ou as burocracias municipais e
os carreiristas dentro deles que operam normalmente para pressionar em
favor do uso da violência.
Esse modelo multifatorial encararia a tortura como sistêmica e
resultante da operação "normal" de vários tipos de Estados, burocracias
e organizações sociais. Ele também incluiria a desconstrução do
conceito de "profissionalismo", de forma que, contra intuitivamente
para a criminologia e a sociologia, a "profissionalização" seria
postulada para aumentar em vez de diminuir a possibilidade de atores
estatais praticarem a tortura (ver Huggins et al., 1997, 1998; 2002,
2003). Essa é a perspectiva que emergiu indutivamente dos dados
coletados por minha entrevista para o estudo Violence Workers.


Sugestões para um estudo criminológico da tortura.


1. a tortura é um sistema. Não é meramente o ato de uma personalidade
inicialmente sádica ou patológica. Teorias da personalidade são falhas
porque : (a) concentram-se primariamente em um ator dentro de um
sistema de atrocidades – o perpetrador direto – e (b) normalmente em um
único período determinado. Essas teorias de patologia social congeladas
no tempo, por seu turno, (c) personalizam e individualizam o que é (d)
realmente parte de uma dinâmica local, nacional e (frequentemente)
internacional.
2. os atores. Os sistemas de tortura contêm ao menos quatro categorias
de atores: (a) perpetradores22[14]; (b) facilitadores23[15]; (c)
observadores24[16]; e (d) sistemas organizacionais/burocráticos25[17].
3. punição e visibilidade. Ao rotular os perpetradores diretos do
sistema de tortura como "atípicos", "sádicos" ou "maçãs ruins", os
facilitadores são protegidos da punição. Consequentemente, é mais
provável que os perpetradores diretos sejam punidos por seus crimes.
4. Longevidade do sistema. Os perpetradores diretos da tortura são os
elementos menos importantes do sistema. Eles podem ser facilmente
substituídos por aqueles que dirigem o sistema de uma posição
invisível. O sistema continuará sem interrupções sérias se somente os
perpetradores forem punidos.
5. causas da tortura. Ao examinar as "causas" da tortura, os
pesquisadores devem procurar as suas origens no tempo (usando o modelo
sequencial de mudança, por exemplo Becker (1967) e para cada "categoria
de ator" (ver item 2). Por exemplo, os fatores que podem levar uma
pessoa a facilitar a atrocidade/tortura podem não ser os mesmos que
levam a pessoa a perpetrá-la diretamente. Além do mais, as "causas" que
induzem um Estado nacional ou internacional a promover, facilitar e
justificar a tortura podem não ser as mesmas de um ator local que a
perpetra. As causas que levam uma corporação nacional ou internacional
a fornecer materiais de tortura para polícia, militares e contratados
privados podem não ter qualquer relação com o porquê de as
"comunidades observadoras" apoiarem os abusos de poder da polícia.
6. eliminar "o mau causa o mal". A tortura está fundada no que o
sociólogo Émile Durkheim chamava de aspectos "normais" (isto é,
rotineiros) da vida social. Os criminólogos não entenderão a tortura se
presumirem que pessoas "más" fazem coisas ruins. Eles devem transferir
o tema da tortura de teorias de organizações sociais "disfuncionais"
para aquelas que expliquem a operação de uma organização social
"normal" com certas configurações político-econômicas.




Referencias

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[1] An earlier version of this paper was published as, "Tortura em Dez
Lições." Tortura na Era Dos Direitos Humanos, Nancy Cardia and
Roberta Astolfi, (Orgs.). SP: SP EdUsp, 2014 (41-65). Professor
Nancy Cardia translated the previously published version. Any
errors in this paper's current translation are my own.


[2]. Uma rápida pesquisa nos textos universitários norte-americanos sobre
criminologia corrobora essa informação do Google.

7. Lisa White, Senior Lecturer, School of Social and Political
Sciences, University of Lincoln (UK). Email: [email protected]

[3].Temendo repercussões políticas caso colocasse seu nome no livro,
Beccaria, ainda não versado em criminologia naquele tempo, inicialmente
publicou Dos Delitos e das Penas anonimamente. Depois que a obra foi
"recebida e aceita pelo governo", Beccaria o publicou sob o seu nome.
(http://www.criminology.fsu.edu/crimtheory/beccaria.htm)

[4]. http://www.pch.gc.ca/progs/pdphrp/docs/cat/2002/nb_e.cfm; ver também
http://www.supranationalcriminology.org/framespage.htm. Existem inúmeras
ocorrências no Google de relatórios de organizações não governamentais
internacionais de direitos humanos que fornecem narrativas de vítimas de
tortura e estatísticas sobre a tortura em vários países, inclusive mais
recentemente nos (ou pelos) Estados Unidos.

[5]. http://www.umt.edu/ce/deo/winter/CourseDescriptions.htm.

[6].O trabalho revolucionário de Mika Haritos-Fatouros sobre os
torturadores gregos constitui uma importante exceção entre os acadêmicos
que estudaram a tortura na Grécia.

[7]. O último livro de Rejali, Torture and Democracy, Princeton, 2007,
explora técnicas de tortura – a "caixa de ferramentas" do torturador, em
vários ambientes políticos e Estados.

[8]. O excelente website Supranational Criminology [Criminologia
Supranacional], particularmente na sua bibliografia de pesquisa sobre
tópicos de criminologia supranacional, ilustra o padrão de pesquisas sobre
a tortura que estão sendo conduzidos em outros países
(http://www.supranationalcriminology.org/framespage.htm).

[9]. Nos últimos cinquenta anos, os relatos de tortura feitos por
jornalistas americanos que chegaram à mídia nacional foram poucos e
esparsos. De fato, um importante projeto de pesquisa seria estudar quanto e
como a tortura foi coberta pela mídia. Pode ser dito com relativa confiança
que, a esta altura, minha pesquisa superficial de reportagens
jornalísticas sobre a tortura dos anos de 1960 até o presente conclui que a
tortura recebeu relativamente pouca cobertura jornalística nos Estados
Unidos. Na maioria das vezes, aqueles que a praticaram – normalmente atores
não americanos, exceto no caso de alguns policiais – são retratados como
"maçãs podres" em um sistema de outro modo bastante funcional. Com efeito,
a tortura tinha sido pouco mais que um "flash" na mídia americana até o
começo da guerra dos Estados Unidos no Afeganistão (outubro de 2001) e no
Iraque (março de 2003) e os subsequentes quadros "60 Minutes II" da cbs
retratando os abusos em Abu Ghraib, que foram amplamente noticiados
nacional e internacionalmente, bem como a publicação em 20 de abril de
2004, pela revista New Yorker, de um relatório muito bem documentado sobre
Abu Ghraib (por Seymour M. Hersh).,

[10]. Departamento de Sociologia da Universidade de Saint Joseph,
Filadélfia, PA, EUA.

[11]. Divergindo da tendência de colocar a "tortura" em uma posição
subsidiária no currículo, Darius Rejali oferece um curso sobre "Tortura e
Democracia" na Reed College, que "examina o inter-relacionamento entre a
tortura e a democracia, bem como a demanda por tortura e o fornecimento de
técnicas de tortura".

[12] http://www.ou.edu/cas/ouphil/dept/fall96.html.

[13]. É instrutivo notar que a maioria dos cursos que não consideram a
tortura um assunto menor fazem uso de "pacotes de leitura" elaborados por
membros do corpo docente, esclarecendo para o leitor a necessidade de que
criminologistas preencham esse vazio.

[14]. Incluem torturadores, assassinos e agressores.

[15]. Perpetradores incluem governos e seus oficiais, corporações e
negócios, promotores de justiça, juízes, advogados, médicos, psicólogos,
tabeliães, policiais e militares (que não torturam).

[16]. Por exemplo, aqueles que apoiam o abuso de poder da polícia para
livrar a comunidade de "indesejáveis", "criminosos", "quadrilhas" ou que
dão respeitabilidade aos abusos de poder.

[17]. Ver por exemplo Violence Workers, cap. 7; 2002; Robert J. Lifton, The
Nazi Doctors, 1988; Christopher Browning, op. cit., 1992.
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