Caderno de Curadoria #12 - Rescaldo e Ressonância! - Inês Moreira

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CADERNOS DE CURADORIA

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Os Cadernos de Curadoria são jornais de distribuição gratuita e episódica. Os seus conteúdos são dedicados à exploração das práticas, dos princípios e das reflexões curatoriais de um conjunto diverso e alargado de agentes a trabalhar no âmbito do Curators’ Lab / Laboratório de Curadoria e da programação de Arte e Arquitetura de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura.

PRÁTICA

CRÍTICA

RETÓRICA

TEÓRICA

Rescaldo e Ressonância Inês Moreira x x x x x x x

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Cadernos de Curadoria / 12

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Cadernos de Curadoria: Numa entrevista recente, a Inês Moreira assinalava a ideia de curadoria do espaço como noção dominante em toda a sua atividade no cam‑ po da curadoria. Para além de um já longo percurso aca‑ démico centrado nesta área, tem vindo a desenvolver um conjunto amplo e multifacetado de projetos entre os quais se encontram diversas exposições no âmbito da Associação Cultural Plano 21; o projeto petit CABANON; a curadoria de eventos na Bienal de Arte Pública de Bor‑ déus; uma residência curatorial no Museo Extremeño e Iberamericano de Arte Contemporáneo de Badajoz; a co‑ curadoria da exposição Materiality, festival Alternativa, Wyspa Institut of Art, Gdansk; ou, mais recentemente, as exposições Devir Menor e Edifícios & Vestígios, no âmbi‑ to de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. Num quadro tão vasto e diversificado porquê a exposição Res‑ caldo e Ressonância como tema para esta entrevista? Inês Moreira: A exposição Rescaldo e Ressonância sur‑ giu num momento em que a minha investigação académica de doutoramento estava a tomar forma e faz uma ponte com uma série de projetos práticos como o Terminal (Oeiras, 2005) ou o Depósito (Porto, 2007), que aconteceu no mesmo edifício que recebeu o Rescaldo e Ressonância. Portanto, este é um projeto em que pude começar a testar uma certa metodologia de investigação e de relação com o espaço, em que o cruzamento entre a arquitetura e a arte é mais estrei‑ to do que propriamente uma relação temática ou de curiosi‑ dade mútua. Falo de uma análise da arquitetura feita a par‑ tir da arte, mas também a partir de outras disciplinas. No fundo, esta exposição assinala uma viragem na metodolo‑ gia no que respeita à relação com o espaço e com os criado‑ res, cujos frutos foram depois importantes não só para a Materiality como para o Edifícios & Vestígios, que são duas exposições com uma escala muitíssimo maior do que o Res‑ caldo e Ressonância. São exposições com cerca de três mil ou quatro mil metros quadrados cada, enquanto o Rescaldo e Ressonância tinha uma escala física bastante modesta. Acabou por ter também uma metodologia mais “atropela‑ da” do que é habitual no meu trabalho, sendo que tudo se foi descobrindo à medida que o projeto se desenrolou. Foi um projeto bastante longo, algo que é uma das características do meu trabalho: investir muito tempo para criar e desen‑ volver os projetos. Também por isso, não faço muitos proje‑ tos. Mas, voltando à questão, o Rescaldo e Ressonância aca‑ bou por ser um projeto em que pude colaborar e experimentar bastante em diferentes áreas, o que muito contribuiu para que descobrisse e estabelecesse as minhas próprias metodologias.



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Vista do incêndio na Reitoria, 2008 fotografia de Joana Bourgard/JN

Aspecto do edifício da Reitoria após o incêndio. Foto dos Serviços de Obras da Universidade do Porto

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lios, e este edifício como um todo. Na primavera de 2008, houve um incêndio na cobertura que acabou por destruir parte do seu interior. Este incêndio foi simbólico a vários ní‑ veis, um dos quais se traduziu na deslocalização do último dos cursos que ainda ali era lecionado e que transformou aquele edifício definitivamente num espaço meramente ad‑ ministrativo. Deixou de ser um edifício de aulas com labora‑ tórios de investigação, com estudantes, com produção de conhecimento, e passou a ser só um repositório da história, dos atos administrativos e destes acervos que normalmente ninguém quer e que acabam por constituir as coleções dos museus universitários – as máquinas, os instrumentos, as coisas que ficam para trás na obsolescência da investigação. Portanto, a minha relação com o edifício está imbuída de uma certa simpatia que fui desenvolvendo por estas histórias escondidas que ele albergava. Foi nessa altura, então, que o departamento de cultura da Universidade, com o qual já ti‑ nha colaborado anteriormente, me convidou para conceber uma exposição para ocupar temporariamente as salas que tinham ficado queimadas após o incêndio. CC: Em que termos lhe foi dirigido o convite? IM: Inicialmente, a proposta que me fizeram passava por conceber um projeto especificamente para aquelas salas. Portanto, em vez de estar a trabalhar para um white cube ou de ter um espaço expositivo convencional, teria como ponto de partida um espaço com marcas recentes de um violento incêndio. Quando avancei um pouco mais no processo de investigação, foi claro para mim que a exposição se iria cen‑ trar sobre a materialidade do próprio incêndio. Para que o projeto pudesse tomar este rumo, foi importante o apoio da Alexandra Araújo, a produtora da Universidade para a área de cultura, e alguém com muita experiência neste domínio. CC: Portanto, mais do que a arquitetura do espaço, a vio‑ lência que sobre ele se abateu foi importante no desen‑ rolar da exposição. IM: Neste projeto, a presença da arquitetura era muito mais forte do que em grande parte dos outros em que tinha par‑ ticipado. Mesmo assim, quando na Bienal da Maia, por exemplo, ocupámos as fábricas de fiação da FIMAI (2001) para as transformar num espaço para a arte contemporâ‑ nea, aquele era um espaço carregado histórica e material‑ mente de diversas presenças, de usos anteriores. Contudo, a ocupação que ali fizemos inscrevia­‑se, de algum modo, numa linhagem mais ou menos conhecida do que tem sido a ocupação de espaço industriais por projetos artísticos, e que é algo que remonta aos anos 1970 e 1980. O mesmo aconteceu em relação ao Terminal, em que a arquitetura era mais espetacular, mais interessante, mais bonita, mas onde eu estava mais limitada, exercendo sobretudo funções de arquiteta da exposição. Também no Depósito a ocupação do Átrio de Química seria algo mais ou menos expectável en‑ quanto que aqui, no Rescaldo e Ressonância, tivemos de facto a oportunidade de fazer a análise de um incêndio atra‑ vés de um projeto que tinha uma componente artística mas também uma componente de investigação na área da da ar‑ quitetura e da reconstrução. Aliás, um dos patrocinadores acabou por ser uma empresa de construção que viu ali uma oportunidade de promoção, ou mesmo de negócio. Julgo que isto também é um aspeto interessante: quando se come‑ çou a entender quais eram as entidades que se sentiam em diálogo com o nosso projeto, e, ao contrário do que seria de esperar, não eram as galerias ou os habituais parceiros cul‑ turais que estavam interessados em dialogar mas antes um gestor de projectos de construção interessado em contri‑ buir e associar a sua imagem a um processo de revitaliza‑ ção, no caso a empresa Ribeirinho Soares. No fundo, entre as ferramentas da arquitetura, de leitura e de transforma‑ ção do espaço, do potencial das artes visuais, das contribui‑ ções dos artistas convidados e até do envolvimento dos ser‑ viços não culturais da Universidade – que contribuíram com os seus arquivos e documentação – gerou­‑se uma ener‑ gia muito interessante e vocacionada para pensar o que era aquele edifício naquela particular circunstância. É nesse sentido que eu julgo que se pode falar aqui de uma espécie de multidisciplinaridade, por se auscultarem pessoas e não tanto pela vontade de se fazer cruzamento de disciplinas. Essa foi uma metodologia imanente.

CC: Como se materializava essa viragem metodológica? IM: Creio que neste projeto pude descobrir um modo de in‑ vestigação que é bastante singular, um trabalho de campo no espaço (Reitoria incendiada), com acesso a materiais de arquivo, históricos e de proveniencias diversas (fotojorna‑ lismo, fotografias pessoais de funcionários), numa relação muito próxima com os criadores e a equipa de produção, bem como no acompanhamento quase diário da exposição já inaugurada. E, sendo um projeto de pequena escala, foi pessoalmente importante que ele tivesse tido o reconheci‑ mento de alguma originalidade por parte de pessoas cuja opinião valorizo bastante. Foi um projeto que marcou o meu percurso e através do qual reconfigurei o modo como abordo e desenvolvo as minhas atividades curatoriais. CC: Qual era o contexto deste projeto? IM: Rescaldo e Ressonância acontece no sótão do edifício onde está instalada a Reitoria da Universidade do Porto que, anteriormente, foi a Academia Real e que alojou diversas fa‑ culdades e cursos. É um edifício que sempre teve uma grande importância simbólica na cidade do Porto, não só porque é central (Praça dos Leões), mas também porque tem servido com frequência como lugar de manifestações públicas ou de reuniões de estudantes universitários. Em 2007 fiz, com o Paulo Cunha e Silva, a investigação dos diversos museus uni‑ versitários para conceber a exposição Depósito, abrindo pu‑ blicamente este edifício à cidade. Isto significa que eu vinha a desenvolver uma série de trabalhos e de investigações so‑ bre este edifício desde 2006, envolvimento que me permitiu estabelecer uma relação próxima com os conservadores dos museus universitários, e mesmo com os diretores das facul‑ dades, a partir da qual pude construir uma perspetiva apro‑ fundada sobre o que são os depósitos, os acervos, os espó‑

CC: Uma das ideias exploradas nos ensaios introdutó‑ rios do livro que acompanha a exposição é a de que o in‑

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cêndio, enquanto acontecimento, deveria ser tido em conta não só como motivo ou elemento que espoleta uma movimentação cívica e uma intervenção artística, mas também como lugar metafórico para o sentido dos pro‑ jetos então criados. Qual o alcance crítico, político e ar‑ tístico da noção de incêndio neste projeto? IM: Para entender como o projeto se posicionava perante o que é um incêndio fui, nesta altura, fazer a análise dos modos como estavam a ser tratados diversos incêndios em condi‑ ções análogas. Foi quando descobri que o edifício do Rem Koolhaas na China, o CCTV, que é a televisão pública chinesa e que é um edifício incrível, tinha ardido na passagem de ano chinês devido a uma sobrecarga de fogo de artifício que lhe foi colocada na cobertura. O incêndio na altura foi muito es‑ petacular e foi utilizado pelos média como uma forma de crí‑ tica ou até de ironia face à vontade de visibilidade do governo chinês na altura. Em antagonismo com este, mas ainda den‑ tro da mesma categoria, encontrei o incêndio ocorrido du‑ rante a construção da Ópera de Guangzhou, um projeto de Zaha Hadid, e do qual só existia uma única fotografia na in‑ ternet (creio que por censura, pois punha em causa o poder e a imagem do governo chinês e da qualidade do imobiliário na China). Um terceiro exemplo era um incêndio que aconteceu na prestigiada faculdade de arquitetura de Delft, na Holanda, que ardeu devido a um curto­‑circuito numa máquina de ven‑ da de café. Neste caso, o acidente deu origem a um conjunto de situações, entre as quais a abertura de um concurso de ideias para se reconstruir o edifício, a conceção de uma expo‑ sição com essas propostas no NAI, o Centro de Arquitetura da Holanda, em Roterdão, e mesmo a edição de um livro que se fez com as memórias que diferentes pessoas tinham do que havia sido viver e ocupar daquele edifício. Portanto, ha‑ via um registo das memórias das pessoas, novas propostas técnicas para a reconstrução do edifício e uma mostra dos resultados desse concurso. Um quarto caso de relação entre arquitetura e incêndios, que me parecia muito interessante precisamente porque esse lado metafórico do incêndio é in‑ cluído como uma nova constituição do espaço, é a galeria Ra‑ ven Row, em Londres. A Raven Row fica na zona de Spittafiel‑ ds, ali mesmo na City, em Londres, e, para além de vários usos ao longo dos séculos, teve um incêndio em 1972. A sua reconstrução foi feita por um magnata dos supermercados ingleses e pretendeu repor o que o edifício era antes do in‑ cêndio mas preservando também a memória do incêndio, seja em detalhes como os puxadores feitos numa técnica de ferro fundido, seja no pavimento que é mantido em bruto com as lascas e as farpas à vista, seja numa decoração desgas‑ tada e numa série de pormenores percetíveis apenas ao nível da linguagem da arquitetura. Portanto, estas eram quatro formas muito diferentes de relação entre arquitetura e in‑ cêndio. O que nós acabámos por fazer no edifício da Reitoria foi desenvolver uma série de visitas ao espaço e deixar que ele começasse a ganhar protagonismo no processo. O que tínha‑ mos à nossa disposição era um edifício do qual toda a lingua‑ gem estava removida, um edifício seco, cru, vazio, marcado pelo desenho das chamas e da água dos bombeiros. Era um espaço simultaneamente muito marcado pelo incêndio mas no qual já nada de espetacular acontecia. A ideia era, então, e através destas diversas visitas, tentar entender como é que se podia fazer um edifício falar das suas histórias sem atribuir‑ mos uma legendagem que nos contasse uma só história. A solução passou por tentar cruzar técnicas e referências da Antropologia, da Arqueologia, das Ciências Sociais e Huma‑ nas, mas também da Arquitetura e das Artes Visuais, para criar um cruzamento que se quis produtivo. CC: A coordenação desse cruzamento foi feita por si? Sendo que a Inês tinha já uma história anterior com aquele edifício, nomeadamente através do projeto Depósito, foi a Inês que agilizou a passagem de informa‑ ção entre todos os intervenientes e, sobretudo, entre os artistas, ou foi algo que eles próprios tomaram como parte das suas investigações autónomas? IM: Eu apresentei os artistas a algumas das pessoas que tra‑ balhavam no edifício. Alguns deles já vinham de colabora‑ ções anteriores, por isso já conheciam as pessoas e a sua re‑ lação com o edifício. Por exemplo, o André Cepeda tinha colaborado já no Depósito, como artista e como fotógrafo do projeto... Outra questão importante era o facto de eu estar, naquela altura, a dar aulas na Faculdade de Letras, no curso de Museologia, que é um curso absolutamente multidiscipli‑ nar saído da área da cultura material. Portanto, é um curso onde existem arqueólogos, historiadores, antropólogos, profissionais de áreas onde a relação com o objeto é central.

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Na altura, muito do que me parecia importante e interessan‑ te fazer tinha a ver, precisamente, com as histórias imate‑ riais, com esse outro lado escondido que tem de ser contado para passar a existir e que depende de diálogos que vivem e trabalham no lugar. Falo de uma dimensão subjetiva, emoti‑ va e afetiva que eu queria trazer para dentro do processo. CC: Outras duas noções recorrentes no seu ensaio de abertura no livro são as noções de projeto especula‑ tivo e de projeto­‑ensaio. Que perspetivas instauram estas ideias e como é que elas se traduzem na prática curatorial? IM: O vocabulário da curadoria é um vocabulário recente‑ mente inventado, essencialmente porque a curadoria não era uma área científica até há muito pouco tempo atrás. Normalmente, as linhagens mais presentes na terminolo‑ gia curatorial são a linhagem da história de arte e a linha‑ gem da cultura material. Nós o que fizemos foi assumir uma série de outras áreas do conhecimento com o potencial de informar a investigação e o discurso. Por exemplo, eu quan‑ do falo em projeto especulativo ou em projeto­‑ensaio estou a aproximar­‑me também de noções de arquitetura porque em arquitetura o projeto antecipa normalmente a constitui‑ ção de um espaço, antecipa um futuro a concretizar. O que se pretendia com esta exposição era amplificar, como se numa caixa de ressonância, eventos passados que ainda ti‑ nham uma presença física, mas também imaterial no espa‑ ço. Chamávamos­‑lhe projeto especulativo porque esta for‑ ma de agir nos permitia pensar o espaço neste plano onde não só a reconstrução física importa. ↑ Vistas da exposição com instalação de estantes dexion e projeção de slides s/ título (2009), de André Cepeda. Fotografia de Vitor Ferreira

← Vista de s/ título (2009), projeção de slides de André Cepeda. Fotografia de André Cepeda

CC: Falar em projeto especulativo ou projeto­‑ensaio significa, portanto, falar de um substrato absolutamen‑ te intangível que tem a ver com uma construção ou, talvez melhor, como uma organização de um conjunto de eventos que, de alguma maneira... IM: Eu gosto da noção de construção – uma construção de ideias, como se as ideias fossem tijolos que vão encaixando e criam uma espécie de edifício, o que é uma imagem bastante estruturalista [risos]. Um projeto especulativo não perde os limites e os entrega à livre especulação. O que ele prevê é a especulação como uma das formas de constituição do pró‑ prio projeto. Já com a noção de projeto­‑ensaio pretendia si‑ nalizar duas áreas de trabalho distintas: o ensaio académico e o projeto cultural. Eu penso que esta exposição está algures entre o ensaio académico e o projeto cultural. Resumindo, era neste interface entre o que é investigação cultural e o que é investigação académica, entre o que é a linguagem curato‑ rial vinda da História da Arte ou vinda de uma linhagem mais ligada à cultura material, que me situava na altura, e que hoje trabalho com maior certeza. Neste momento até acrescenta‑ ria um outro conceito, que é o de investigação­‑produção, e que sinaliza essa necessidade de não deixar a investigação ficar­‑se pelas ideias e pelos papers, tendo antes de se mate‑ rializar. No âmbito da cultura material, uma ideia pode ser muito depurada, mas o que importa é a sua materialização num objeto (aqui aproxima­‑se da ideia tectónica da arquite‑ tura). Não querendo com isto recusar certas áreas do conhe‑ cimento, há níveis de instanciação que são possíveis confor‑ me se use uma metodologia de investigação ou conforme se use um processo de produção. É aí que eu vejo esse cruza‑ mento de conceitos tornar­‑se operativo. CC: Teve o cuidado de explicitar no texto que não queria que a espetacularidade do incêndio dominasse o proje‑ to. Ao mesmo tempo, investiu algum tempo a tornar cla‑ ra a ideia de que o incêndio é um acontecimento que se consome a si mesmo, que é um espaço que se extingue à medida que vai acontecendo. Essa é uma imagem muito poderosa como ponto de partida para a experiência da própria exposição. Como lidou com a espetacularidade latente do projeto?



IM: Julgo que consigo responder mencionando duas situa‑ ções distintas. Vi em Londres uma exposição que me deixou completamente segura sobre o que eu não queria que esta exposição fosse. Falo de uma exposição que o Museu da Ci‑ dade de Londres levou a cabo sobre o incêndio que varreu a cidade em 1666. Era uma exposição que tirava partido da espetacularidade do incêndio, seja nas pinturas de artistas da época, nas gravuras que contavam a história daquele tempo, ou mesmo em todos os dispositivos técnicos utiliza‑

Fotos de ectoplasma (fluido espectral) a emanar da médium Mary Marshall tiradas por Thomas Glendenning Hamilton (Winnipeg, Canada, 1932) e utilizadas por Jonathan Saldanha para ilustrar a apresentação de Corredor (2009) no catálogo da exposição.

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dos para simular fogo. Face àquela produção e à visualiza‑ ção populista do grande incêndio, soube imediatamente que a exposição no Porto não seria sequer parente próxi‑ ma... A segunda das situações que queria mencionar leva­ ‑me ao livro que editámos com o projeto e a propósito do qual convidei o Pedro Bandeira a escrever um ensaio, que assumiu a forma de provocação à academia, com todas aquelas referências situacionistas que o Bandeira vem ex‑ plorando no trabalho dele já há muito tempo e que serviram aqui, também, para questionar e interpelar politicamente o leitor sobre o que é a universidade como espaço de legitima‑ ção do conhecimento. Numa altura em que a Universidade começa a ser uma máquina de burocratizar o ensino e o co‑ nhecimento, foi muito interessante ver o Bandeira incorpo‑ rar na sua análise o lado romântico e poético que o incêndio também tem – um lado de reinvenção, de depuração, de pai‑ xão. Naquele curto ensaio, o Pedro Bandeira toca este lado mais metafórico do incêndio, fazendo um percurso pelas suas aceções através de referências que vêm da literatura, do cinema, da História, sublinhando que o incêndio, no fundo, não é uma coisa que se apaga, é uma coisa que se ati‑ va, como um posicionamento político. Esta noção é precisa‑ mente o que os situacionistas propunham com a frase “In girum imus nocte et consumimur igni”, o famoso palíndro‑ mo que diz que somos nós que ardemos e que, nesse proces‑ so de arder, reinventamo­‑nos. CC: Sabendo que queria resguardar o projeto dessa questão da espetacularidade, em que termos dirigiu o convite a estes artistas e que critérios orientaram a sua seleção? IM: Embora os meus últimos projetos, dada a sua dimensão, me tenham vindo a permitir convidar mais pessoas do que anteriormente, comecei por trabalhar em projetos relativa‑ mente pequenos, numa escala reduzida em que interessa a profundidade na qual os vários contributos entram, não tanto a quantidade de intervenientes. Também não costu‑ mava convidar pessoas sobre as quais não tivesse referên‑ cias próximas ou com as quais não tivesse já colaborado antes. Neste caso específico, procurei pessoas que já conhe‑ cessem o edifício, cujo trabalho eu conhecesse bem, e que soubesse que iam responder ao desafio com total abertura para se envolverem nas histórias do lugar. Isto significa que procurei mais um perfil do que propriamente um corpo de trabalho. Acho que isto é importante. CC: O facto de serem apenas três pessoas prende­‑se com a dificuldade em encontrar esse perfil, com questões de produção ou com a vontade de estabelecer uma equipa pequena e um processo intimista? IM: Queria que fosse uma equipa pequena e um processo in‑ timista. Interessava­‑me explorar o vazio. Não um vazio onde as peças fossem invisíveis, mas um vazio onde o edifí‑ cio estivesse presente, onde os trabalhos presentes entras‑ sem claramente em diálogo com o lugar. Ao invés de neutra‑ lizar aquela arquitetura incendiada e escura, queria pessoas que tivessem disponibilidade para se envolver num traba‑ lho de investigação com bastante generosidade. Por exem‑ plo, o André Cepeda era um artista que já conhecia o edifí‑ cio e os vários museus da universidade e interessava­‑me que ele participasse no projeto porque conhecia, à partida, o lado escondido daquele lugar. O André tinha um conheci‑ mento da instituição, das pessoas e dos espaços que eu ti‑ nha a certeza que produziria um olhar interessante sobre o espaço. Na prática, o projeto dele partiu de uma premissa que passava pela utilização de película danificada, rolos fo‑ tográficos estragados, fora do prazo ou com erros de reve‑ lação. Essa qualidade matérica dos diapositivos era um dado a priori de um trabalho que se propunha a explorar o erro e o acidente. Para acentuar ainda mais essa tónica na degradação, os diapositivos foram projetados sobre ecrãs pobres, feitos em tecido pobre, montados sobre umas estru‑ turas que eu desenhei com ele e que eram constituídas pelas estantes que tinham sobrado do incêndio. CC: Um pequeno parêntesis a propósito do que acaba de dizer: tendo em conta que estas estruturas tinham um impacto concreto na morfologia da proposta de André Cepeda – elas são, inclusive, descritas no livro como uma instalação –, qual o estatuto daquelas peças na exposição e até que ponto foi levado o seu trabalho autoral?

IM: Eu intervenho na exposição como autora de uma com‑ ponente espacial que não é desenhada pelos artistas visu‑ ais. O André participa na exposição como fotógrafo, o Jona‑ than Saldanha participa na exposição como compositor, como artista sonoro, e o Paulo Mendes participa como ar‑ tista visual, mais especificamente através do seu trabalho com a imagem em movimento. Eu participo como arquiteta. A estrutura referida é uma estrutura de arquitetura eféme‑ ra, feita especificamente para as fotografias do André. Sei que poderia ser um tópico mas aquele não é um trabalho ar‑ tístico. Eu assino normalmente os meus trabalhos como ar‑ quiteta, investigadora e curadora. Por esta ordem. Nunca assinei como artista. Eu sou arquiteta e cheguei à curadoria por intermédio da arquitetura. Não quero esconder esse lado mais físico e material do meu trabalho ao assumir­‑me só como investigadora porque conceber o espaço é uma componente fundamental do próprio projeto. Sou eu quem desenha as cenografias do meu próprio trabalho (e também o faço para outros curadores). É impensável para mim con‑ tratar um arquiteto para desenhar as minhas exposições uma vez que esses projetos surgem como uma experiência imersiva no próprio espaço. CC: Voltando aos trabalhos dos artistas… IM: O trabalho do Jonathan intitulava­‑se Evocação e Resso‑ nância e é talvez o trabalho mais metafórico do conjunto que ali esteve presente. Posto de forma simples, o que aque‑ le trabalho pretendeu foi, através de uma instalação de som, fazer reverberar o edifício, evocando o som do aciden‑ te, ou seja, o som das chamas a percorrerem o edifício. No fundo, o que ali aconteceu foi uma reativação da experiên‑ cia, e do medo, através da manipulação do som. Por exem‑ plo, as frequências graves foram moduladas de forma a te‑ rem um efeito físico quer no espectador quer na estrutura do edifício. Para além de ser a primeira peça do percurso, era um trabalho omnipresente na exposição. CC: O volume de som era, portanto, muito considerável. IM: Sim. E tornava­‑se mais ainda durante os concertos que o Jonathan foi fazendo ao longo da exposição. Tinham lugar sempre ao final da tarde – o que significa que o público esta‑ va na penumbra, uma vez que não havia luz nestas salas da exposição – e essa condição tornava a experiência ainda mais impactante e perturbadora. CC: Algumas das salas estavam efetivamente vazias, o que deveria amplificar ainda mais essa sensação. IM: Exato. Havia várias salas vazias, com marcas claras do acidente, marcas da água a escorrer pelas paredes, um osso de baleia que por lá ficou meio carbonizado, janelas parti‑ das, pombas que entravam por essas mesmas janelas e que iam habitando o espaço e convivendo com as peças e os visi‑ tantes [risos]. Naturalmente, esta convivência implicava uma degradação progressiva das peças mas, ao invés de tentarmos evitar a entrada das pombas, pareceu­‑nos que essa consequência fazia sentido no âmbito da exposição. Em certo sentido, levámos ao extremo a ideia de degrada‑ ção do próprio espaço, pelo que não havia conservação pre‑ ventiva que sobrevivesse a esta exposição de caráter eféme‑ ro e em degradação permanente. CC: E em relação ao trabalho de Paulo Mendes? IM: O projeto do Paulo Mendes era uma dupla projeção ví‑ deo que tinha como base um conjunto de imagens do pro‑ cesso de degradação e transformação do edifício ao longo dos tempos. A estas, o Paulo juntou outras que fazem parte do nosso imaginário coletivo sobre o incêndio enquanto fe‑ nómeno visual e que são imagens que nos chegam sobretu‑ do por intermédio do cinema. A partir da edição conjunta destes materiais, o Paulo construiu uma peça videográfica que foi instalada num ambiente por ele desenhado com al‑ guns materiais e mobiliário degradado vindos das peças para abate nos museus da Universidade. CC: Os materiais que acompanham o projeto são muito cuidadosos na forma como nomeiam os intervenientes do projeto, intitulando­‑os de colaboradores. Enquanto comissária, como acompanhou o desenvolvimento das

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obras que foram produzidas para a exposição e como geriu a interlocução com os artistas?

Rescaldo e Ressonância / Inês Moreira

→ / ↓↓ Fotogramas dos vídeos da instalação Cell Noire (2009), de Paulo Mendes.

IM: Nós fizemos muitas visitas ao espaço. O facto de o edifí‑ cio estar localizado no centro da cidade trazia­‑nos, aliás, essa facilidade de encontro. Sempre que alguém tinha uma ideia ou queria discutir algo, muito facilmente nos deslocá‑ vamos ao espaço para estarmos juntos, para testarmos so‑ luções, para repensar opções.

↓ Vista de Cell Noire (2009), de Paulo Mendes. Fotografia de Vitor Ferreira

CC: Quando diz nós está a referir­‑se ao grupo na sua totalidade? Foi sempre um trabalho partilhado pelos quatro? IM: Sim, foi um espaço muito partilhado. Claro que tive vá‑ rias reuniões separadamente com cada artista mas houve imensos encontros em conjunto. Aliás, é uma das caracte‑ rísticas da minha forma de trabalhar. Não gosto de fazer vi‑ sitas de ateliê. Mais depressa coordeno uma reunião de vin‑ te pessoas para que discuta um dado projeto do que visito um ateliê. O think tank é, sem dúvida, o meu modelo prefe‑ rencial. Tem a vantagem de ser aquele em que há uma efeti‑ va contaminação e influência mútua dos trabalhos em cur‑ so, uma vez que eles são discutidos pública e colectivamente. Algo que um artista menciona numa reunião conjunta pode influenciar o trabalho de outro de uma forma que o isola‑ mento nos ateliês não permite. Torna­‑se um processo bem mais orgânico. Por outro lado, estas abertura e partilha con‑ trariam de forma muito clara a tendência para se estabele‑ cerem hierarquias entre artistas participantes, curadores e restante equipa. Tanto quanto me for possível, trabalho sempre no sentido de eliminar esse tipo de barreiras e esta‑ belecer permeabilidades. Do meu ponto de vista, não estou interessada nos processos hierarquicos de legitimação curatorial. Pelo contrário, estou interessada em perceber como é que o trabalho daqueles artistas pode influenciar a minha pesquisa, confirmá­‑la, desafiá­‑la. Nesse sentido, não me coloco numa posição de árbitro ou de legitimador: sou só mais uma pessoa a participar num processo de debate e reflexão alargados sobre um dado tema ou questão.

iniciando um conjunto de ações que recorriam a espaços di‑ tos não convencionais, fundou mais tarde uma linhagem de reflexão sobre o espaço expositivo que trouxe essas experi‑ ências para um plano bem mais complexo. Se antes os espa‑ ços, mesmo estando longe do pendor higiénico dos white cubes, atuavam essencialmente como contentores, hoje as suas histórias e valências simbólicas contaminam direta‑ mente os projetos que neles se apresentam. Recordo aqui o tal cruzamento da perspectiva da curadoria em história da arte contemporânea, e em cultura material. A forma como essa contaminação se processa, e como interfere na exposi‑ ção, tornou­‑se numa parte significativa da minha investiga‑ ção que posso explicar na conjunção desses dois termos, brown rooms / grey halls. Para dar um exemplo mais con‑ creto, na exposição Edifícios & Vestígios estas noções foram exploradas recorrendo a estratégias diversas que incluíram desde investigações de cariz antropológico e etnográfico, à transformação da arquitetura do espaço, ou mesmo à ence‑ nação cénica e ao desenho de luz.

esse público mais alargado precisa dessa mediação para de‑ cifrar o que está presente, e que também há dimensões da investigação que suportam e informam uma exposição que só se podem transmitir por intermédio de textos ou de visi‑ tas guiadas. Os textos de tabela que estava a mencionar po‑ dem ter entre 300 a 500 palavras, muitas vezes acompanha‑ das por biografias dos artistas que ajudam a contextualizar o espectador com a realidade que fez surgir as peças. Depois essa informação é trabalhada e organizada de formas dife‑ rentes conforme a plataforma em que é apresentada. Por exemplo, nas exposições incluo as biografias, as sinopses e as fichas técnicas; nos sites ou blogs apresento apenas as biografias e as fichas técnicas; nos livros opto pelas sinopses e fichas técnicas sem incluir as biografias. Tudo isto porque fui aprendendo que há camadas de informação que se ace‑ dem a partir do telemóvel e numa leitura rápida, outras que exigem uma leitura mais lenta, etc.

CC: No sentido dessa diversificação, mas já num outro plano, como concebeu e organizou o programa de ativi‑ dades paralelo à exposição?

IM: A exposição teve bastante público. Julgo que, para além da comunidade artística da cidade do Porto, houve uma boa adesão por parte das pessoas ligadas à Universidade e aos seus museus. Do ponto de vista da receção crítica, ela foi inexistente. Não conheço nenhuma recensão ou texto críti‑ co que tenha sido publicado sobre esta exposição. É um fac‑ to que já estou habituada a que assim seja e, felizmente, não dependo da crítica para fazer o meu trabalho. Só lamento que não haja um maior diálogo sobre as propostas e os tra‑ balhos apresentados – julgo que seria vantajoso para todos. Em todo o caso, não só não há jornalistas culturais no Por‑ to, como é um facto que, sendo este um meio bastante pe‑ queno, as pessoas acabam por herdar conflitos e dificulda‑ des alheias e os projetos acabam por sofrer de um apagamento que tem pouco a ver com a sua pertinência ou qualidade e mais com fatores conjunturais.

IM: O programa de atividades paralelo foi talvez a parte mais orgânica do projecto. Efetivamente, o programa foi motivado, em grande parte, pelo interesse e pela disponibi‑ lidade em participar no evento que diversas pessoas foram manifestando ao longo do processo. De certo modo, o pro‑ grama correspondeu a uma grelha organizada de contribu‑ tos externos, situações que confirmaram o envolvimento das pessoas na exposição e que alargaram os seus efeitos. Entre outras atividades, e para além dos concertos do Jona‑ than ao final do dia, tivemos também as Visitas Ficcionais da Filomena Vasconcelos – um evento performativo com uma importante componente literária –, um ciclo de leitu‑ ras com a Sílvia Guerra, conversas pontuais sobre temas relacionados com a exposição, ou workshops com alunos do Mestrado em Museologia. CC: Que apoios financeiros e logísticos encontrou para este projeto?

CC: No final do seu texto no catálogo a Inês introduz a no‑ ção de brown rooms / grey halls como contraponto à abs‑ tração dos white cubes e das black boxes que dominam as opções arquitetónicas para os espaços institucionais e comerciais dedicados à arte moderna e contemporânea. O que caracteriza concretamente esta noção e como é que ela aparece no contexto desta exposição?

IM: Este projeto foi uma encomenda da Universidade do Porto. Nesse sentido, e do volume total de apoios que rece‑ bemos, setenta por cento veio da parte da Universidade e o restante da parte da Ribeirinho Soares – Centro de Projetos de Construção, a empresa de que já falámos anteriormente.

IM: Neste projeto eu percebi claramente que o que estava a explorar era a ligação entre a dimensão semiótica da inter‑ venção artística e a dimensão semiótica do edifício existen‑ te. Há uma linhagem de investigação que suporta ou infor‑ ma a minha própria investigação e que dá pelo nome de “semiótica material” e que, por sua vez, deriva dos estudos da tecnociência, na qual se explora de que forma se cruzam as dimensões cultural e técnica da produção científica. Como é que isto desemboca nas exposições? Em parte, a história de um edifício – que, no caso da Reitoria da Univer‑ sidade, é um exemplo paradigmático de um brown room – pode ser contada tanto pela dimensão material quanto pela dimensão imaterial da sua existência. Se por dimensão ma‑ terial se entende aqui o edifício em si mesmo, as suas carac‑ terísticas arquitetónicas e as marcas da sua transformação ao longo do tempo, por dimensão imaterial entende­‑se a história do lugar, dos seus usos e da sua projeção simbólica na sociedade. Esta exposição é o primeiro projeto em que consigo circunscrever e articular estas ideias de forma cla‑ ra. Se em projetos como o Terminal (Oeiras, 2005) – comis‑ sariado pelo Paulo Mendes e no qual colaborei como arqui‑ teta da exposição – estas questões não estavam ainda nos meus horizontes, levando­‑me a optar por uma construção de espaço que tinha uma relação com a linguagem dos espa‑ ços industriais mas não com a história do lugar em si, já em projetos como o Edifícios & Vestígios, que fiz na Capital Eu‑ ropeia em Guimarães, pude enquadrar esta dimensão vi‑ vencial de forma mais concreta e operativa.

CC: Algum destes apoios previa contrapartidas?

CC: Como avaliou a receção pública da exposição?

Participantes André Cepeda, Paulo Mendes, Jonathan Saldanha e Inês Moreira. Local Edifício da Reitoria da Universidade do Porto. Datas 23 de abril a 31 de agosto de 2009. Mais informações em: http://rescaldoressonanciaproject.blogspot.pt/ http://issuu.com/inesmoreira/docs/rescaldo_ ressonancia___ed_ines_more

IM: Não. Nunca trabalhei em nenhum projeto onde fossem exigidas contrapartidas sobre os apoios. Da mesma forma, também nunca trabalhei em nenhum projeto que não tives‑ se, à partida, financiamento garantido. Entendo que num quadro profissional, todos os envolvidos – artistas, curado‑ res, produtores, etc. – têm de ser pagos. De outro modo não o faria. Isto não quer dizer, contudo, que eu não trabalhe sem receber honorários. Por exemplo, o petit CABANON, um projeto que mantenho desde 2007, é algo em que investi do meu próprio bolso para que pudesse existir, mas é fun‑ damentalmente dialógico. Em todo o caso, não convido al‑ guém para trabalhar num projeto sem lhe fazer uma enco‑ menda muito concreta. CC: Que tipo de instrumentos indutivos usou na condu‑ ção da experiência do espectador?



CC: O que distingue esta noção e que desvios oferece em relação, por exemplo, às práticas place­‑specific?

Tabelas de apresentação dispostas em 4 paredes distintas na exposição Fotografias de Paulo Santos (FCUP), excepto imagem de Jonathan Saldanha, por Inês Moreira

IM: Eu penso que esta noção se aproxima das práticas place­ ‑specific. Queria sublinhar, contudo, que as experiências que os artistas levaram a cabo nas décadas de 1960 e 1970,

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PRÁTICA

IM: Foram vários os instrumentos. Quando o visitante che‑ gava, havia uma brochura com diversas informações sobre a exposição: um texto de apresentação, a listagem dos eventos do programa paralelo e uma imagem que sintetizava o pro‑ grama. Havia também algo que deu lugar a alguma chacota e que era uma folha com instruções de segurança que a Univer‑ sidade nos impôs uma vez que o edifício oferecia alguns pe‑ rigos. As salas que albergavam peças tinham à entrada tabe‑ las A4 com imagens da sala antes do incêndio, uma descrição da peça lá instalada e a sua ficha técnica. Acredito absoluta‑ mente na importância da mediação com os públicos, o que não implica que entenda os projetos como populistas: o meu trabalho é pensado para um público que inclui o denomina‑ do público da arte contemporânea, mas que também o trans‑ cende e procura abranger outras pessoas. Estou convicta que

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PRÁTICA

Rescaldo e Ressonância / Inês Moreira

CRÍTICA

→ Aspecto de passagem e sala mantida vazia. Fotografia de Vitor Ferreira

↓ Imagem do projeto criada por Paulo Mendes numa das salas do edifício. Fotografia de André Cepeda

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RETÓRICA

Why are we at the (necessitated) point – in time of asking such a question – or playing with this equation – in order to form this proposition?

Rescaldo e Ressonância / Inês Moreira

TEÓRICA

CC: Na experiência formativa: arte, discurso ou contingência?

CC: No resultado final: transparência, partilha ou autoria?

IM: Contingência. Da formação em arquitetura à aproximação à cultura contemporânea eu passei pela teoria da arquitetura, pela filosofia contem‑ porânea, pelos estudos culturais, etc. O facto de o meu mestrado ter sido em Teoria da Arquitetura e Cultura Urbana é algo que sinaliza esse meu movimento no sentido de um afastamento da prática do desenho e do projeto de arquitetura mais ortodoxos e de uma aproximação às questões e às manifestações culturais mais abrangentes e híbridas. Concretamente, a minha aproximação às práticas curatoriais foi­‑se fazendo por via do meu trabalho na área da cenografia e da arquitetura de exposições, em cujas colaborações se foi tornando muito claro o modo como a relação com as obras de arte e com os artistas poderia intervir produtivamente nos processos de investigação que eu tenho vindo a levar a cabo em torno da noção de espaço. De forma muita clara, apercebi­‑me que existia uma oferta alargada de trabalhos artísticos que abordavam as questões que me interessavam de uma forma bastante distinta. O trabalho direto com essa realidade era a melhor forma de poder alimentar uma parte importante das minhas investigações. Mais recentemente, estas colaborações têm sido alargadas a um conjunto cada vez mais diversificado de disciplinas – as Artes Visuais, a Engenharia, a Arqueologia, a Antropologia, a Conservação e Restauro, etc. – o que significa que a minha própria investigação se torna também mais rica e complexa.

IM: Julgo que ao longo do tempo fui conseguindo implantar uma singulari‑ dade nos meus projetos que lhes trazem uma autoria inequívoca. Contudo, no que ao processo de trabalho diz respeito, e sabendo que lido quase exclusivamente com obras criadas propositadamente para as exposições que comissario, julgo que tudo se joga no plano da partilha. O processo e a investigação é de tal modo partilhado que uma das poucas certezas que tenho presentes no meu trabalho é de que as exposições acabam sempre por divergir imenso daquilo que havia inicialmente imaginado. Isso é muito positivo e é resultado direto dos encontros com os artistas e das trocas que esses encontros possibilitam. Por fim, vale a pena dizer que não acredito na suposta distância objetiva que possibilitaria que a minha influência numa dada exposição fosse totalmente transparente. Acho a ideia de objetividade neste quadro uma abstração jurídica totalmente inaplicável.

CC: Na conceção expositiva: tema, contexto ou experiência? IM: Normalmente, o ponto de partida é um conceito que quero explorar. Esse conceito formaliza­‑se num título que serve depois como base de trabalho para mim e até para os artistas que vou convidando. Mais do que um tema, encaro o conceito como um conjunto de preocupações. A noção de contexto é também importante para mim na medida em que ela pode sinalizar, embora de forma redutora, o meu interesse pelas características específicas do lugar, da sua memória e da sua vivência, num quadro investigativo a que chamei brown rooms / grey halls. O que procuro e privilegio na fase de conceção expositiva é a interseção destas duas instâncias.

CC: No exercício da função: público, cultura ou mitologia pessoal? IM: Cultura e mitologia pessoal. Se, por um lado, o diálogo e o debate entre pares que enforma essa ideia de cultura me interessam sobremaneira, também é verdade que a minha atividade tem sido sempre alimentada pelos meus interesses eletivos e pelas minhas investigações pessoais. Para mim, a curadoria é uma atividade criativa e embora acredite e procure garantir a relevância cultural do resultado, não posso deixar de assumir a natureza pessoal dos interesses que estão na origem desse mesmo resultado.

CC: Na prática curatorial: método, acaso ou intuição? IM: Método. Desenvolvo os projetos como quem projeta um edifício. Tudo é testado até ter certeza do que quero, do que preciso e do que estou a fazer. Para mim, uma exposição é uma experiência imersiva. O espaço, o modo como nele se circula, a luz, os materiais, os elementos de mediação, tudo isso são instrumentos muito importantes para se apreender e experimentar as propostas e as obras apresentadas. Ser metódica permite­ ‑me saber que quero uma dada obra num dado local, que é possível instalá­‑la nesse local, e que para o efeito preciso de um dado número de parafusos, por exemplo.

Dara Birnbaum, The Next Documenta Should Be Curated by an Artist

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Cadernos de Curadoria

Conceção: Bruno Marchand

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Edição e investigação: Bruno Marchand e Pedro Faro Conceção gráfica: Pedro Nora

Projeto integrado no Curators’ Lab / Laboratório de Curadoria do Programa de Arte e Arquitetura, Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. Curadoria: Gabriela Vaz-Pinheiro Co-curadoria e coordenação de programação: Lígia Afonso

Agradecimentos: a equipa dos Cadernos de Curadoria agradece expressamente aos entrevistados a disponibilidade e o empenho concedidos a este projeto. Um agradecimento ainda a todos os autores que gentilmente cederam conteúdos para este jornal.

Impressão: Tipografia Freitas Artes Gráficas, Lda ISBN: 978-989-98473-6-1 Depósito Legal: 342087/12 Tiragem: 500 ex. Publicado pela Fundação Cidade de Guimarães

Assistência de Programação: Gisela Díaz e Gisela Leal Produção Executiva: João Covita e Pedro Silva

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