Caderno de Notas 5 com capa2.pdf

May 24, 2017 | Autor: Sandra Mara Corazza | Categoria: Education, Didactics, Curriculum, Filosofía, Traducción e interpretación
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Obra publicada pela Universidade Federal de Pelotas Reitor Prof. Dr. Antonio Cesar Gonçalves Borges Vice-Reitor Prof. Dr. Manoel Luiz Brenner de Moraes Pró-Reitor de Extensão e Cultura Prof. Dr. Gilberto de Lima Garcias Pró-Reitora de Graduação Prof. Cláudio Manoel da Cunha Duarte Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Dr. Manoel de Souza Maia Pró-Reitor Administrativo Prof. Luiz Ernani Gonçalves Ávila Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento Eng. Rogério Daltro Knuth Pró-Reitor de Recursos Humanos Admin. Roberta Trierweiler Pró-Reitor de Infra-Estrutura Admin. Renato Brasil Kourrowski Pró-Reitora de Assistência Estudantil Assistente Social Carmen de Fátima de Mattos do Nascimento

Conselho Editorial Profa. Dra. Carla Rodrigues Profa. Dra. Cristina Maria Rosa Profa. Dra. Flavia Fontana Fernandes Profa. Dra. Francisca Ferreira Michelon Profa. Dra. Luciane Prado Kantorski Profa. Dra. Vera Lucia Bobrowsky

Prof. Dr. Carlos Eduardo Wayne Nogueira Prof. Dr. José Estevan Gaya Prof. Dr. Luiz Alberto Brettas Prof. Dr. Vitor Hugo Borba Manzke Prof. Dr. Volmar Geraldo da Silva Nunes Prof. Dr. William Silva Barros

Conselho Editorial Avelino da Rosa Oliveira (UFPel) Betina Schuler (UCS/EMEF Rincão/PM-POA) Dóris Helena de Souza (SMED/POA) Eduardo Pellejero (UFRN) Gláucia Maria Figueiredo (UNIPAMPA) Karen Nodari (UFRGS/Colégio Aplicação) Luciano Bedin da Costa (UFRGS) Ludmila Brandão (UFMT) Maria Amélia Santoro Franco (Universidade Católica de Santos) Nadja Maria Acioly-Régnier (Université Claude Bernard Lyon 1) Vânia Dutra de Azeredo (PUC/Campinas) Comitê Editorial Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel) Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE) Sandra Mara Corazza (UFRGS) Silas Borges Monteiro (UFMT) Capa Leonardo Garbin Editoração Supernova Editora Revisores técnicos Josimara Silva Wikboldt Lucas Vaz Pires Rosiani Teresinha Soares Machado Samuel Molina Schnorr

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C122 Caderno de notas 5 Oficina de escrileituras: arte, educação, filosofia. Oficinas produzidas em 2011 / Organizado por Carla Gonçalves Rodrigues – Pelotas: Editora Universitária/UFPel, 2013. (Coleção Escrileituras) 252 p. ISBN: 978-85-7192-838-1 1. Arte. 2. Educação. 3. Filosofia. 4. Escrileituras. I. Rodrigues, Carla Gonçalves; org. CDD 370 Bibliotecária: Daiane Schramm – CRB-10/1881

SUMÁRIO

PREFÁCIO......................................................................................................... 11 FILOESCRITURAS COM KAFKA: experimentações no ensino fundamental.................................................... 17

Betina Schuler

OFICINA TRAMAS E USOS DO PASSEIO URBANO: por uma estética professoral ........................................................................ 29

Carla Gonçalves Rodrigues Camila Rodrigues de Mesquita Josimara Silva Wikboldt Juliana Vernetti Giusti Samuel Molina Schnorr

BIOGRAFEMANDO A VOZ: o professor e a cena da sala de aula............................................................ 37

Alessandra Christina Arantes Abdala Azevedo Josiane Brolo Rohden Silas Borges Monteiro

ARQUITETURA DO CORPO: cut-up ................................................................. 51

Cristiano Bedin da Costa

NOTAS DO IDIOTISMO: Arthur Bispo do Rosário e Manoel de Barros............................................... 65

Aliziane Bandeira Kersting Daniele Noal Gai Iassanã Martins Olívia de Andrade Soares Wagner Ferraz

UM MÉTODO: (des)Educação Musical .......................................................... 79

Eduardo Guedes Pacheco

TRÊS PERCEPÇÕES SOBRE O TRÁGICO EM NIETZSCHE ............................ 89

Deniz Alcione Nicolay

CORES, SABORES E TEXTURAS. Fantasias do corpo em cena................... 99

Emília Carvalho Leitão Biato

NOMES ............................................................................................................ 109

Ester Maria Dreher Heuser Luciana Alves Pinto Michelle Silvestre Cabral

ESCRIPINTURAS: da imagem à escrita surgem cidades........................................................... 121

Franciane Cardoso

DIÁRIO DE CORDEL......................................................................................... 131

Jaziel Cleiton Rautenberg Ester Maria Dreher Heuser

RELATO DA OFICINA: Escrivida – do tempo morto ao vivo.............................................................. 141

Karen Elisabete Rosa Nodari Simone Vacaro Fogazzi Luciana Paiva Conceição

DA ESPECIFICIDADE DA ESCRITA E LEITURA FILOSÓFICA........................... 153

Leandro Nunes

HORIZONTES DA LEITURA ............................................................................. 161

Ester Maria Dreher Heuser Janete Marcia do Nascimento Luciana Alves Pinto Michelle Silvestre Cabral

ESPIRITOGRAFIAS DE CO-CRIAÇÃO DIALÓGICA............................................ 175

Maria Idalina Krause de Campos

POR UMA FILOSOFIA DA AMIZADE: correlações entre Nietzsche e a arte dos mangás ...................................... 187

Luciano Bedin da Costa Mákellen Gonçalves Dias Oriana Holsbach Hadler

VIDAS MINÚSCULAS: cartografando viveres infantis ....................................................................... 197

Janete Marcia do Nascimento Luciana Alves Pinto

LITERATURA POTENCIAL ................................................................................. 207

Máximo Daniel Lamela Adó

CALCULANDO O VERSO .................................................................................. 217

Sandra Elisete Casola Leandro Nunes

VIDA! Hoje tem espetáculo!............................................................................ 225

Shirlei Bracht

OFICINA DE ARTISTAGEM CURRICULAR........................................................ 233

Sônia Regina da Luz Matos

POSFÁCIO......................................................................................................... 239 AUTORES ..........................................................................................................

2 4 1

PREFÁCIO

A filosofia é criação de conjecturas acerca da relação entre eternidade, perenidade e transformação, o que implica supor que ela depende de uma cosmologia. Além disso, filosofia é atividade do pensamento que hipostasia, problematiza e critica o mundo da cultura. Ela, assim como a arte e a ciência, amplia o mundo na medida em que trata de encontrar o mote relacional entre tudo o que há, a fim de deslocá-lo para que tudo se desajuste e abra espaço a novas criações. Se for verdadeiro que sem cosmologia não há filosofia, é também verdadeiro que o caos ronda o cosmo, assim como a falsidade ronda a verdade, por isso, é na encruzilhada dos caminhos entre um e outro que se engendra a novidade e, com ela, a ampliação da realidade. Em um esforço de pensamento filosófico-cosmológico podemos afirmar que a vida da Terra e a vida na Terra, entre elas a do ser humano, são apenas amostras das infinitas ocorrências acidentais constituintes do cosmo. A especificidade humana é que, distintamente das demais existências, é uma entidade de conhecimento desde antes de seu nascimento até depois de sua morte, uma vez que os rastros culturais permanecem. Ao mesmo tempo, em simetria e assimetria com a existência presente, ela é o resultado contemporâneo de toda a existência distinta e anterior a si. A autoconsciência humana pode ser a dimensão conhecida mais complexa de toda a transformação da natureza. O cosmo, ao se modificar, engendrou as condições para a existência da vida em suas infinitas formas e, dentre elas, da vida inteligente, em um grau crescente de complexidade, assim, toda a existência é natural. A consciência humana é cósmica, assim, consciência de que a própria

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natureza engendrou, com o advento do homem, a consciência de si própria. Os eventos da vida e da inteligência, como quaisquer outros que tenham ocorrido ou que possam ocorrer, são mais coerentemente compreendidos se atentarmos para a extrema importância do conflito sempre existente entre as possibilidades de efetivação de qualquer evento, até que uma ou algumas formas possíveis objetivamente se efetivem. Tudo o que existe provém do conflito ao qual a totalidade está submetida. No mundo da matéria, o conflito é decorrente do descompasso entre a velocidade da luz e o tempo: na velocidade da luz, todos nós, particulares, estaríamos eternizados, entretanto, Cronos nos acolhe e, temporariamente nos conforta – ainda que brevemente nos faz perenes – constituindo nossa vida neste instante cósmico da existência. Finalmente, a luz nos vence, envelhecemos e somos reintegrados ao todo, eis o destino do acidental, entretanto, o todo já é outro, uma vez que nossa inteligência conflita o pensado e o impensado com o eterno e o alcança enquanto criação filosófica. Pensar no começo e na ordem de tudo o que há é possível, mas, conhecê-los de forma segura é da ordem da impossibilidade, como de resto, nada podemos conhecer com segurança. Talvez, isto se deva à nossa recente emergência como parte do cosmo, ou, talvez, a condição de insegurança do nosso conhecimento seja um estado intransponível, tal como suspeitavam os primeiros filósofos: aos deuses a episteme, aos homens a doxa. Podemos pensar que o nosso universo é um evento particular, componente de uma eternidade cíclica de concentração e desconcentração da energia existente no cosmo, mas não podemos reunir razões positivas para crer nisso. Pois, ainda que possamos perceber a fusão entre galáxias, tal evento pode evidenciar, ao menos, duas consequências discordantes, quais sejam: ou o universo continua a se expandir, ou está voltando à concentração. É imprescindível não desconsiderar, contudo, que uma evidência é sempre relativa à conjectura à qual ela é contraposta em um contexto teórico, pois nunca se pode dela inferir a confirmação de uma tese qualquer, daí estarmos sempre no terreno da doxa. É claro que tudo poderia ter sido diferente, que outras possibilidades se efetivassem e que, simplesmente, não ocorresse nossa existência e de tudo o que pensamos conhecer. Sempre houve alta intensidade de destruição acompanhando a definição dos estados das coisas. Em

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nosso lar isso não é diferente, dado que também a Terra foi palco de grandes e violentos eventos, a ponto de uma parte de si, a Lua, estar separada e orbitando. Foi neste ambiente inóspito que houve a transformação desde o átomo inicial até as primeiras células vivas, há três bilhões de anos; depois, há 70 milhões de anos, o aparecimento dos animais superiores e, permeados de inúmeros acidentes, como choques de cometas, asteroides e chuvas de meteoritos, há 15 milhões de anos, nossos ancestrais humanos iniciam sua jornada na Terra. Longe de um simples processo evolutivo, cada instante da existência poderia ser o último para toda a vida, tanto quanto o foi para inúmeros corpos celestes e espécies vivas que, naturalmente, resistiram e naturalmente desapareceram. Ou seja, os eventos efetivamente ocorridos poderiam não ocorrer. O universo é indeterminado, assim como cada evento cósmico ocorreu, outro poderia ter ocorrido e de modo distinto, cujas consequências implicariam um rumo diverso dos acontecimentos. Da mesma forma que ocorre no universo, a atividade dos homens é indeterminada. Assim, somos tanto frutos da ordem como do caos, ou, para parafrasear uma expressão benjaminiana, toda ordem é precisamente uma situação oscilante à beira do precipício. A humanização passou por uma longa transformação da linguagem que ganhou complexidade: de uma linguagem, inicialmente, sinalizadora e expressiva avançou gradativa e não sem dificuldades, para a descrição dos eventos do mundo. Então, para resolver as diferenças entre as descrições, a argumentação ganhou importância e, com ela, novas habilidades se formaram no espírito humano: a criatividade e a crítica. Assim como no mundo dos eventos físicos, também no mundo dos eventos culturais tudo o que houve poderia não ter ocorrido. Somos criadores de eventos únicos e inesperados, que, no entanto, ocorrem e deles decorre nova ordem de acontecimentos. Cada homem é um microcosmo; tanto quanto o todo, também a parte é constituída e polida em conformidade com a intensidade da sua existência e a gravidade da sua disputa. Por isso, o que há é singular, ninguém se constitui da mesma forma e, menos ainda, vive as mesmas experiências. O singular contém um pouco de tudo, como Drummond concluiu seu poema Igual-desigual: “Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar”.

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O homem inventou a filosofia como autoconsciência e passou a pensar sobre sua existência. Por meio da filosofia ele se fez consciente de seu pensamento, da vida e da morte, bem como consciente da sua consciência. Em 570 a.C., Xenófanes propôs que as pessoas criaram os deuses à sua imagem e semelhança, inaugurando, assim, uma tradição criativa responsável por tornar significativamente mais complexo o pensamento. Com a crítica aos mitos, nasce a filosofia: o equivalente teórico do embate material originário, ao que os conhecimentos sempre estiveram submetidos. Heráclito de Éfeso afirmou serem as transformações a principal característica da natureza; Anaxágoras, por sua vez, sustentou que a natureza é composta de infinitas partículas minúsculas que contêm um pouco de tudo. Nesses termos, a constante transformação do existente e o decorrente surgimento de novos componentes do mundo são, concomitantemente, um processo físico, no mundo empírico, e, no mundo teórico, um processo conceitual e linguístico. Logo, nossa subjetividade decorre da relação que estabelecemos com um e com outro desses mundos. Se o que compõe a diversidade do que existe contém um pouco de tudo, somos física e teoricamente o resultado do estado atual de interação, tanto dos elementos físicos, como dos teóricos. A consciência da coemergência do sujeito, do mundo e do conhecimento é a condição para a autoconsciência e, assim, para a consciência da nossa autoconstituição enquanto subjetividade. A especialização é o túmulo do filósofo, seu fim, porque ela molda as expectativas e se fecha para o inesperado, pois, como já afirmara Heráclito, “aquele que não espera pelo inesperado não o perceberá: para ele o inesperado será impossível de ser detectado e inabordável”. A filosofia é multidisciplinar e pode ser compreendida como um sistema aberto de conceitos coerentes, autorganizados, dinâmicos e autocríticos. Pensar em uma filosofia, buscar entender, apreender ou produzir uma filosofia implica estabelecer uma relação teórica entre tudo o que há no universo, incluindo a nós e nossos saberes. Uma filosofia que mereça ser assim chamada deve ter a característica distintiva de ser constituída em uma ou um conjunto de obras que tenha a extraordinária amplitude capaz de abarcar e integrar os conteúdos de interesse de seu tempo e influenciar desde a política à crítica de arte, passando pela antropologia, ética, história da filosofia,

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Estado, direito, mente, linguagem, estética, religião, lógica, teoria do conhecimento e educação. As diferentes dimensões do saber humano devem poder ser conjugadas de forma inter-relacional e constituir uma cosmologia, um sistema teórico aberto, racional, objetivo e falível, mas não contraditório, de saberes. Quando há teorias abrangentes e ricamente constituídas por diversas dimensões da realidade, a disposição dos atores de cada área específica da criação humana, o vigor intelectual e a consequência do pensamento se fazem notar. As propostas constantes neste quinto volume da Coleção Escrileituras pretendem ampliar o mundo daqueles que com elas se envolverem, pois são criações teóricas ímpares e de grande relevância para os habitantes do mundo da filosofia, das artes e das ciências. As oficinas criadas e experienciadas nos quatro núcleos do Projeto, ora publicadas, constituem uma amostra efetiva do grau de elaboração e da ousadia teórica que o Escrileituras alcançou como um modo de ler e escrever em meio à vida. As oficinas que ora convidamos para serem escrilidas ampliam o mundo; filoescrevem a trama de biografemas e da arquitetura dos corpos com pervertido idiotismo e de modo musicalmente trágico; suas cores, sabores e texturas têm o nome de escripintura. São diários de escrividas filosoficamente escritos e lidos, cuja espiritografia e amizade constituem a co-criação de uma nova literatura. Seus potenciais horizontes para o cálculo do verso de uma vida-espetáculo em artistagem se relacionam com todas as dimensões do humano e expressam uma mostra do caosmos.

Remi Schorn

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

FILOESCRITURAS COM KAFKA: experimentações no ensino fundamental Betina Schuler

O Projeto Escrileituras: escrita-inseto O conceito de escrileitura remete a uma leitura-pela-escrita e uma escrita-pela-leitura, em uma outra relação com o vivido para além da lógica da representação. Assim, uma escrileitura que se desdobra em múltiplos sentidos, na transgressão dos territórios acostumados em brechas de experimentação. Para isso, a necessidade de criação de outros conectores que não os das palavras de ordem, da explicação, da comunicação, da generalização, das normais formais, médias e cálculos. A escrileitura, pois, toma a vida como matéria principal, em encontros novidadeiros, provisórios, inventivos com a escrita, a leitura, obras, autores, línguas, na possibilidade de criação de linhas que dobrem os saberes, abrindo circuitos inéditos de pensamento e vida. Com este conceito se operacionaliza o Projeto Escrileituras: um modo de lerescrever em meio à vida, Edital 038/2010, CAPES/INEP, tendo como instituição sede o PPGEDU da UFRGS. Tal projeto é organizado por meio de diferentes núcleos pelo país, desenvolvendo pesquisas por meio de oficinas de escrileituras na Educação Básica e Ensino Superior (CORAZZA, 2011a, 2011b)1. 1

O Projeto Escrileituras tem como Coordenação Geral a Profa. Dra. Sandra Mara Corazza.

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Assim, foi deste encontro com o Projeto, que foram criadas no ano de 2011 três Oficinas de Filoescrituras com Kafka na Escola Municipal de Ensino Fundamental Rincão, em Porto Alegre/RS, com alunos do 3º ciclo, os anos finais do Ensino Fundamental. Com inspiração genealógica2, buscou-se minorar o currículo, a escrita, a vida, no processo da transvaloração dos valores como um modo de enfrentamento ao instinto de rebanho que escorre pelas galerias, que nos escorre e que prima pelas forças reativas, a fim de se criar escrileituras em meio à vida. Brechas no cansaço dessa forma homem, em uma artística distância que lembra que a escrita tem som, musicalidade, arte3. O som do violino na sala captura a atenção de Gregor. A vida esculpida como arte em frestas, em uma escrita-inseto-carcará que pergunta: preciso escrever? Inventar-se para isso. Prestar atenção a isso. Tornar-se um mundo. Algumas lições: a metamorfose, as saídas, o jejum. Artes de si entre fazeção de coisas com escrileituras, alunos, insetos, valores, relatórios que abrem para a pergunta: quais as possibilidades de experimentação com a filosofia e a literatura na invenção de práticas de escrileitura no Ensino Fundamental, tomando a escrita como uma possibilidade de arte de si? Traz-se, pois, pequenos extraídos desse vivido.

Oficinagem das composições Para a composição das oficinas, conceitos foram operados na maquinação com as dobradiças kafkianas, a fim de se criar procedimentos para interferir na linguagem, no esburacamento com forças ativas4. Não se trata de uma relação de correspondência entre ficção e realidade, mas de analisar as condições de possibilidade para os valores valorados em movimentos de multiplicação e variação de diferentes escritas, tomando o texto como provocador de experimentações de arranjos novidadeiros. Então que é posta a urgência: pensar e viver uma escrita para além de um ideal romântico, de uma nova promessa de libertação e revelação pela escrita. Tomar pequenos escapes, como nos alertava Kafka5 e produzir 4 5 2 3

NIETZSCHE, 2006. FOUCAULT, 2003. NIETZSCHE, 2009. NIETZSCHE, 2006. KAFKA, 2011a.

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outras relações entre a escrita e a vida. Um combate à moralidade, em que estão implicados sempre estilos de vida6. O que temos é a ação nessa dissolução do eu, que busca cavucar os elementos de uma língua maior, no deslocamento da essência para que possamos continuar respirando, pensando, escrevendo. Para além da grande revolução na educação, inventar-se junto a composições múltiplas. Aposta micropolítica no diagnóstico dos sintomas do presente, analisando os valores valorados como verdadeiros em seus efeitos de poder e subjetivação, tomando essa sintomatologização na produtividade de invenções literárias. Deste modo, as três oficinas aqui tratadas, tomaram em cada uma delas o estudo de uma obra de Kafka, atravessadas por conceitos das filosofias de Nietzsche e Foucault. Nesta maquinação no atravessamento da filosofia e da literatura, na criação de procedimentos e estratégias de escrileitura com alunos e alunas, buscou-se lidar com conceitos como estratégias de pensamento, na possibilidade de criação de outras brechas de existência. Tais oficinas deram-se por meio de um movimento curricular denominado MIX7. Todavia, se engana quem aqui busca prescrições. Trata-se de traços das experimentações, na análise rítmica das criações dos alunos no ensaio da minoração8 dessa escrita das palavras de ordem. Gregor, o macaco relatoriador e o jejuador9 kafkiano minoram a escrita pedagogizada nos movimentos de transvaloração dos valores, de invenção de saídas e na transgressão do jejum na invenção de uma estética da existência. Para tanto, foram utilizados, tais como ferramentais de análise, os conceitos de transvaloração em Nietzsche, de subjetivação e de estética da existência em Foucault, atravessados na metamorfose, nas saídas e na arte do jejum de Kafka, a fim de produzir práticas de escrileituras. Problematização de uma moral de rebanho, dos valores superiores, do ressentimento, da culpa e da força produzida como má consciência. FOUCAULT, 2004. Experimentação curricular que se dá uma vez por semana na escola, em que os alunos não são organizados pelas disciplinas ou turmas nucleares, mas inscrevem-se em oficinas, misturando-se idades, alunos, professores, ritmos, tempos, espaços em outras possibilidades de relação com o currículo. Escola na qual atuo como professora e desenvolvo a pesquisa do Projeto Escrileituras. 8 DELEUZE; GUATTARI, 2002. 9 Personagens de Kafka (2009b, 2011a, 2011b). 6 7

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Transvaloração10, pois os valores, nessa perspectiva, são da ordem da invenção, datados, localizáveis, que esquecem tal condição de fabricação e passam a funcionar em uma dimensão transcendental. Daí a necessidade de perguntar por suas condições de possibilidade e não de validade, pela urgência de enfrentamentos para além da moral, com as forças ativas que afirmem a diferença e a vida. O que nos remete à necessidade da problematização do conceito de sujeito, que Foucault11 irá deslocar para os modos de subjetivação, argumentando que não há uma forma universal de sujeito, um sujeito soberano, intencional, fixado, racional, mas que nos constituímos em práticas de subjetivação. O que irá interessar, pois, será a constituição desses modos de existência, em suas relações de poder, saber e o si. Tratase da relação de forças com outras forças e não de uma interioridade transcendental que nos habitaria. Por isso a pergunta: como estamos nos constituindo no presente? E na relação de si para consigo por meio da escrita, Kafka e a escrita-inseto do escape, a escrita do que não cabe, do que não está acostumado. Função K na impossibilidade de uma escrita explicativa. Espaço de maquinação desses movimentos capitalísticos, burocráticos, fascistas que invadem e produzem a escrita escolar. Kafka preferiu as saídas às liberdades. Preferiu a metamorfose à metáfora. Preferir. Verbo potente que opera na experimentação de uma agramática em que o preferir vira ponto de exclamação. Exclamar-se com a vida. Vimos vestidos de preferir, para potencializar a escrita, o pensamento, a vida no afastamento de uma axiomática dominante. Para além do significado e do significante, prefere-se a experimentação de uma sonoridade intensa. Prefere-se o som do violino na sala. Várias entradas, múltiplas saídas. Kafka arranca a perspectiva da explicação, da representação, do sentido figurado, da mesmidade, das palavras emboloradas nas galerias úmidas da toca. Não há sujeito do enunciado. Por isso empurra as fronteiras e o inédito. Por que o vivo não comporta ser fixado em uma escrita de ordem, calculada. Precisamos continuar pensando. Os personagens kafkianos esburacam o sujeito intencional, a separação da razão e da loucura, a oposição do verdadeiro e do 10 11

NIETZSCHE, 2006. FOUCAULT, 2004.

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falso12 com o inseto alimentado de violino, com o macaco relatoriadorinventor de saídas, com o artista que ensina o jejum como uma arte, com o animal da toca que deixa por perto sempre um escape13. Daí a produção de experimentações com a escrileitura, na movimentação de conceitos e transvaloração de valores em uma filoescritura, desconfiando das verdades e relações que aprendemos a ter conosco e com o mundo, pedindo que os universais se expliquem ao invés de serem tomados como princípios fundamentais. Operação com conceitos que funcionem como instrumentos de pensamento para lidar com a vida, encarnados nela. Um outro modo de andar pela língua, problematizando as afetações do cotidiano e as possibilidades de aposta em forças mais ativas de vida, no alargamento das possibilidades de leitura e de escrita na escola.

Procedimentos: metamorfoses do corpo-escrita Na criação de um outro funcionamento do corpo-escrita, a necessidade da criação de procedimentos, de dobradiças, com inspiração genealógica, para dobrar a leitura e a escrita e fazer outras coisas com elas. Procedimento como essa intervenção direta sobre a materialidade da escrita, como nos traz Foucault 14, no jogo próprio da linguagem que pede distância de si mesma. Servir-se da linguagem como disparadora de multiplicidades, na problematização das palavras acostumadas, na invenção de outras relações. Nessa manipulação da linguagem como uma máquina, produzir outros cortes que transgridam os manuais de escrita e leitura já disponíveis. Eis, pois, a invenção de procedimentos para as oficinas de Filoescrituras com Kafka na EMEF Rincão, mais adiante desdobrados em estratégias didáticas: – Um rabo: se pega os valores pelo rabo e problematiza-se como estamos nos tornando o que somos no presente, quais valores estamos valorando e de quais modos escrevemos isso. – As antenas: exame de como estamos operando com a memória e o esquecimento por meio dos conceitos de forças ativas e reativas. FOUCAULT, 1996. KAFKA, 2009a, 2009b, 2011a, 2011b. 14 FOUCAULT, 1999. 12 13

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– Um abdômen: uma leitura ruminante das obras de Franz Kafka, que digere e transforma o ingerido em força, que vomita os restos de mesmidade, ressentimento, culpa e má consciência. – Uma língua: mastigação que faz outros cortes de sentido, que dilacera, corta, rasga, racha. E o alimento retorna à boca para ser ruminado. Uma ruminação que encontra várias bocas: com dentes afiados, dentes tolhidos, desdentada, cansada, com mandíbula forte, com firmeza, ora com cortes estreitos, ora com leves mordidas. – Uma casca de Kafka: estranhamento dos universais que teimam em serem explicativos do mundo e totalizadores do humano. – Pernas: que dançam com a filosofia e a literatura menor, estabelecendo novas amarrações entre os eventos vividos e os documentos que entramos em contato, quebrando com a divisão platônica-cristã de modelos e cópias, de ficção e realidade. Pernas genealógicas, dançarinas, ora com passos largos e lentos, ora com corridas e atropelos que buscam as condições de possibilidade para as comidas estragadas em seus efeitos de força e subjetivação, na criação de um outro funcionamento para o corpo. – Um nariz: nariz farejador de sintomas no presente, de brechas de respiro, de escape para a invenção de outras possibilidades de existência, para além do esgotamento que vivemos. Nariz atento aos detalhes da vida ainda não capturados pela normalização. – Alongamento das asas: movimento ético, estético e político da leitura e da escrita, em biografemas15 tomados de empréstimo de Barthes; pequenos recortes dignos de nota, lidos com demora e delicadeza; minúcias, fragmentos, transformandoos em escritas de vida. Tentativa de escape da identidade civil da biografia na pulverização de sentidos. Não se trata de opor a teoria como abstração à vida como prática; hierarquizar os saberes em científicos e não-científicos e entre o que é “sério” e o que é literatura; de operar com uma unidade elementar que escreve sobre. Não há uma perspectiva privilegiada da verdade, de entrada na obra, uma consciência transcendental a ser alcançada, uma generalização, mas experimentação, invenção de mundos e possibilidades de outras existências. – Um olho: para além da escrita como representação, transcriação do real, um olho que espia com a literatura menor, 15

CORAZZA, 2010.

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contra o total, o geral, o dominante, o binário, pela aposta microfísica, construindo possibilidades de saída. – Nenhum braço: um corpo-escrita que escorre sem braços na impossibilidade de não escrever, na impossibilidade de escrever sobre tudo, na impossibilidade de escrever a mesmidade, na impossibilidade de não escrever em uma língua menor como resistência ao que proíbe o inédito na vida. Contra o que apequena a vida e esgota o corpo: uma possibilidade de Filoescritura com Kafka. – Ouvidos delicados: atentos à vida. “Seria ele um animal, se a música o prendia assim tanto? Parecia-lhe ter-se aberto o caminho para o alimento desconhecido e desejado”16. Traça-se, a partir de tais procedimentos, os movimentos realizados em estratégias didáticas, buscando a experimentação de escrileituras em oficinas, relatoriadas ao modo do macaco kafkiano17. As portas, alimentos, mortes, quartos, cabeças, navios, picadeiros, escapes, os sons kafkianos invadiram a existência.

Oficinas de Filoescrituras com Kafka Foram três as oficinas realizadas durante o ano de 2011, com duração de dois a três meses cada uma, composta por alunos dos anos finais do ensino fundamental, de diferentes turmas e idades. Atravessando o estudo de obras de Kafka, com conceitos de Nietzsche e Foucault, buscou-se um alargamento dos limites do escrevível na escola, na criação de outras relações conosco mesmos e o mundo. Assim, aqui se desenham os fluxos de possíveis que se deram como estratégias de pensamento e vida. A primeira oficina levou o título de “Oficina de Transvaloração: Filoescrituras com Kafka”, a qual será mais adiante detalhada, uma vez que se preferiu aqui a exploração mais detalhada da primeira oficina realizada na escola. A segunda, “Filoescrituras com Kafka: entradas e saídas”, operou com a arte das saídas, que, ao modo do macaco imitador do humano em Um Relatório para uma Academia, de 16 17

KAFKA (2009b, p. 69). KAFKA, 2011b.

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Kafka, produz um relatório que não os protocolos escolares para pensarmos os esgotamentos e a urgência de criação de saídas, com os conceitos de forças ativas e reativas em Nietzsche. Criação de aforismos, anagramas, personagens, quadrinhos. A terceira oficina de Filoescrituras com Kafka: uma abecedagem da existência, buscou operar com o jejum como uma arte de si. Com Um artista da fome, de Kafka, remexeu-se em seu prato cinza os conceitos de subjetivação e estética da existência em Foucault, a necessidade de criar outras possibilidades de vida. Para além da pantera tão satisfeita consigo mesma e bem alimentada, uma abecedagem da existência, um abecedário de filoescritura, a partir dos conceitos que jejuavam em Kafka. Traduzida pela literalidade das produções dos alunos, traz-se o funcionamento da Oficina de Transvaloração: Filoescrituras com Kafka, ocorrida no primeiro trimestre de 2011. Uma leitura ruminada da obra A Metamorfose, de Kafka. Conversação. Silêncios. Estranhamento. Desenhos. Nojo. Potência. Da leitura e conversação interesseira, o quadro da transvaloração dos valores. A escolha de cinco conceitos na obra: corpo, fome, metamorfose, estanho e insuportável. Da escolha dos conceitos rastejados com Gregor, a escrita em três colunas no quadro da transvaloração: de como esses conceitos aparecem no senso comum, como aparecem em A Metamorfose e de que modos podemos pensar movimentos ínfimos de transvaloração desses valores. Da escrita quadriculada em tabela, linhas que arrastam o quadro para fora de si mesmo, pois já tomam a moral de rebanho com certo estranhamento. Da terceira coluna da tabela, a da transvaloração, a escolha de cintilações, de rastros que saem da biografia representacional à biografemática de chão. Uma escrita-inseto que nos tira das categorias fixadas e nos atira para um espaço selvagem, com outros movimentos. Personagens kafkianos, nietzschianos e foucaultianos. Um escape, um jejum, uma artistagem. Biografemas, capítulos, livros, ritmo no desaparecimento do eu que escreve. Na análise da produção dos alunos, optou-se pela metamorfose kafkiana18, que, para além da metáfora, dobra a escrita para multiplicar a vida. Assim, não se buscou escrever sobre como o mundo é ou deveria ser, mas justamente pegar o insuportável e produzir escritas 18

DELEUZE; GUATTARI, 2002.

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em brechas, abrindo outras possibilidades de pensamento e modos de existência. Daí operar biografematicamente com fragmentos do cotidiano tirados do lugar moralizado para se pensar outras relações com os valores, com os outros, consigo mesmo. Saídas ao invés da liberdade kantiana. Um esculpir-se na composição mesma das forças, nem antes, nem depois. Metamorfose do corpo-escrita. Exercícios de escrileitura para pensarmos a moral da prescrição e uma estética da existência19, sendo esta última uma das maneiras pelas quais o indivíduo se encontra vinculado a um conjunto de regras e valores. Esse modo é caracterizado pela prática de ter uma existência bela em se tratando da maneira de viver, em que o valor moral não provém da conformidade com os códigos de comportamento, nem com um trabalho de purificação, busca pela salvação ligada a valores superiores e universais. Trata-se de cuidar de si mesmo, de prestar atenção a sua vida, de acompanhar-se atentamente, de construir-se em exercícios de enfrentamento à escravidão de si e do outro. Por isso, estratégias de escrileitura que problematizassem como estamos nos tornando o que somos e como podemos alargar nossas possibilidades de afirmação da vida em regras facultativas postas em funcionamento, implicando sempre critérios de estilo. Há importância nisso! De criar. Criar-se um mundo. Criar mundos. A necessidade de trabalho sobre si mesmo. Escrita-inseto, que vem em sobrevoo, ao modo do grande carcará. Quase um insetocarcará, com olhar de ave de rapina e picada de inseto que abusa. Uma escrita que incita a ocupar-se consigo mesmo. Não confissão, revelação, acesso a uma verdade transcendental, terapia ou biografia. Uma escrita da transvaloração em uma relação outra com a existência, na possibilidade do cuidado de si20, como esse cravar de dentes na existência, constituindo-se como um princípio de agitação, de acompanharse com rigor artista. Coragem de vida. Uma atenção ao que se pensa e o que se passa no pensamento. “Que se passa comigo?”21. Essas cintilações de cuidado perpassam brechas nas produções dos alunos. Não uma totalidade, uma salvação, uma escrita da origem, FOUCAULT, 2004, 2007a, 2007b, 2011. FOUCAULT, 2004, 2007b, 2011. 21 KAFKA, 2009b, p. 21. 19 20

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da identidade, da denúncia, do ressentimento, mas invenção de fissuras. Acompanhar-se. Um implicar-se com o presente. Tornar-se para si um campo de ação. Resistência micropolítica a uma moral de rebanho, que é essa moralidade que produz as escritas escolares, que se pretendem explicáveis e explicadoras do humano, decifradoras da vida, aferidoras de inteligência, grampos fixando-nos a uma suposta interioridade. Um cravar de dentes nessa escrita escolar utilitária, opinativa, do bom senso e da prescrição que opera pela lei da concordância. Filoescrituras e a possibilidade da escrita como arte de si, na criação de brechas que problematizam como estamos nos constituindo, abrindo frestas para outras relações com a linguagem, o pensamento, a escrita; com a vida. Práticas de escrileitura no ensino fundamental. Nada de romance, de final feliz ou totalidades. Não escrever sobre os autores, mas com eles. Uma micropolítica de inseto, que aposta na indignidade de falar pelos outros, de significar o tempo todo o mundo para os outros, que abre a pergunta: como operar com a escrileitura como ato de pensamento, como estratégia de vida em uma instituição como a escola, cravada na carne pela moral de rebanho, pela busca da verdade, pelo bom senso, pela civilidade e mesmidade? Talvez a urgência de se criar certa arte de jejum, para se fazer outros arranjamentos com as coisas do mundo. Jejuar aos assentos morais ocupados, às categorias disponíveis de antemão, sem o lugar do autor. Criação de ínfimas linhas que cortam o poder e o saber para pensarmos, na lidação com a escrileitura, talvez regras mais facultativas na relação consigo mesmo, como enfrentamento aos tantos modos de aprisionamento. Arte de metamorfose. Arte de saída. Arte de jejum. Escrita e si. Arte de si. O modo mais digno de deixar esse texto? Sobrevoo de escritas inseto-carcará artista. “Ontem eu era só eu, hoje sou todos”. “O olhar dele é marcante. E ele enxerga a vida de outro modo, de um modo mais detalhado, ele enxerga detalhes que, às vezes, ninguém vê, só ele compreende o mundo em que vive”.  “[...] isso nos preenche nos tornando o que, às vezes, queremos ser, mas isso vem tão de repente que essa metamorfose nos assusta. Quando percebemos, já não somos mais como pensamos”. “O nosso modo de mudar, transformar naquilo que queremos ser. Modo de nos esconder em formas assustadoras

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ou quietas para que passemos despercebidos”.  “Um corpo pode tudo. Pode se transformar quando quiser, quando puder. E aí fica a pergunta: o que pode um corpo”? “Eram 7h30min e o relógio despertara. Era hora de levantar. Wilmer era um homem. Agora, já não tinha mais tempo para brincar, tinha compromissos, trabalho, namorada, contas para pagar [...]. Já tinha um tempo que ele tinha deixado de ser criança e tinha se transformado em homem”. “Pessoas insuportáveis são aquelas que tentam se encaixar [...]”. “Quando fazia seu café era bombardeado com palavras enquanto chorava sua falta de afeto”. “[...] esse leão tinha uma outra fome além de comer. [...] a fome de escrever, ouvir palavras, comê-las, rasgá-las. [...] esse leão não fala, pois esse leão escreve”. “[...] mas, o que significa ser bom”? “Muita gente se diz que é estranho, o João já foi bastante estranho. Por quê”? “Às vezes o normal só atrapalha a gente”. 22

Referências CORAZZA, Sandra Mara. Introdução ao método biografemático. In: FONSECA, Tania Mara Galli; COSTA, Luciano Bendin da (Orgs.). Vidas do fora: habitantes do silêncio. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010. _____. Projeto de pesquisa: Escrileituras: um modo de “ler-escrever” em meio à vida. Plano de trabalho. OBS da Educação. Edital 038/2010. CAPES/INEP. Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, setembro de 2011a. _____. Caderno de Notas: para pensar as oficinas de transcriação. OBS de Educação. Escrileitura: um modo de ler-escrever em meio à vida. UFRGS, 2011b. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Trad. de Rafael Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. 22

Fragmentos das produções de alunos participantes da Oficina de Transvaloração: filoescritura com Kafka.

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FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996. _____. Raymond Roussel. Trad. de Manuel B. Motta e Vera L. A. Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 10. ed. Trad. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2003. _____. A ética do cuidado de si como prática de liberdade. IN: FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Org. de textos Manoel Barros da Motta. Trad. de Elisa Monteiro, Inês A. D. Barbosa. RJ: Forense Universitária, 2004. (Ditos e Escritos; V). _____. História da Sexualidade, 2: O Uso dos Prazeres. 12. ed. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2007a. _____. História da Sexualidade, 3: O Cuidado de Si. 9. ed. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2007b. _____. A Hermenêutica do Sujeito. Trad. De Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2011. KAFKA, Franz. A Toca. Trad. de Franscisco Agarez. Lisboa: LxXL, 2009a. _____. A Metamorfose. Trad. de Gabriela Fragoso. Lisboa: Ed. Presença, 2009b. _____. Um relatório para uma Academia. In: KAFKA, Franz. Essencial. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Clássics Companhia das Letras, 2011a. _____. Um artista da fome. In: KAFKA, Franz. Essencial. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Clássics Companhia das Letras, 2011b. NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. _____. A Gaia Ciência. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

OFICINA TRAMAS E USOS DO PASSEIO URBANO: por uma estética professoral Carla Gonçalves Rodrigues Camila Rodrigues de Mesquita Josimara Silva Wikboldt Juliana Vernetti Giusti Samuel Molina Schnorr

Um convite: inventar uma oficina de escrileituras para professores em formação inicial ou continuada. Um desafio: potencializar o ato de criação textual. Uma proposta: destituir marcadores de poder da zona de conforto nos modos usuais de tornar-se docente, tais como o uso de textos clássicos, o espaço da sala de aula, a docilidade dos corpos, a constante transmissão de informações. Uma boa surpresa: 13 profissionais interessados em qualificar sua formação. Vindos de diversas áreas de atuação – como Pedagogia, Filosofia, História, Biologia, Matemática, Ciências Sociais, Arquitetura, Engenharia Agrária, Artes, Geografia e Serviço Social –, participaram durante 40h das atividades realizadas em 2011 na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas. Para tal, articulamos o passeio urbano com mídias de uso doméstico da comunicação contemporânea na construção de uma singular estética professoral, sendo registrada cartograficamente em vídeos produzidos com o uso do programa movie maker1. Munidos de câmeras digitais e máquinas 1

Software de edição da Microsoft de fácil utilização. Possibilita que pessoas sem muita experiência em informática possam adicionar, em seus vídeos, efeitos de transição, textos personalizados e áudio.

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fotográficas, os oficineiros coletaram imagens durante as saídas de campo feitas por meio de caminhada, ônibus e barco. Intercalados aos passeios, articulamos a projeção e o estudo de diferentes materiais advindos da arte contemporânea e da filosofia da diferença como catalisadores do ato de ler e escrever. Francis Alÿs, Agnès Varda, Samuel Beckett, Gilles Deleuze e Félix Guattari foram os interlocutores para a experimentação proposta. Neste texto, escolhemos apresentar, em seis movimentos, os variados procedimentos utilizados no desenvolvimento dessa Oficina. É importante salientar que eles não aconteceram em uma ordem linear, conforme a formatação indica. Pelo contrário, foi percurso de deslocamento constante de ida e volta. Construção de um determinado modo movente, fruto de uma longa preparação. Retorno nunca ao mesmo lugar em função da agitação que aí se faz. Na sequência, tentamos conceder mais força à escrita através de alguns aspectos relativos à sucessão de estados ou de mudanças ocorridas.

Procedimentos Primeiro movimento: rizomatizar com fatos, atos e sensações de experimentações anteriormente vividas conectados com o processo de criação da Oficina que está sendo inventada. Menos um resgate de lembranças ou soma de recordações enquadradas em alguma categoria de homogeneidades estrutural. Bem mais a junção daquilo que simplesmente aumenta o grau de potência de uma nova proposição. Segundo movimento: subtrair alguma coisa daquilo que está sendo repetido indiferenciadamente. Seccionar, mutilar, cortar, decepar, alterar o mesmo. Deixar emergir algo que ainda não foi executado. Exercitar a política da atenção no cotidiano. Terceiro movimento: à espreita, ao modo animal, reunir heterogêneos. Agenciar com o inédito, com signos emitidos por corpos e incorpóreos presentes e virtualizados no dia a dia. Minimizar os caminhos antes percorridos. Não negar os resíduos que insistirem em se manter. Pelo menos um pouco, permitir estranhar-se. Ir e vir. Chegar e partir. Em cada percurso, nunca encontrarás a mesma

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terra natal, nem terreno firme. Transversalizar sem permanecer no mesmo lugar. Uma conexão desse tipo jamais está predeterminada. É pouco clara de antemão. Há milhares de caminhos possíveis de serem construídos. Por isso é um ato de criação alimentado por emergências: Tens necessidade de dizer algo a alguém? No que acreditas quando conectas isso com aquilo? Na mão, responderia Deleuze. Uma tarefa de artesão. Quarto movimento: cartografar, registrando, anotando, rabiscando, fotografando e filmando. Escrever daquilo que te afecta e produz outras paisagens em teu pensamento durante o percurso. Tramar o inédito do ato de passear com o cotidiano professoral: continuar cartografando. Investe e insiste! De maneira alguma trata da realização de uma lista dos fatos e atos. Tampouco de interpretar o observado com distanciamento e neutralidade. Ora, o que se pretende é bem mais favorecer a construção de territórios existenciais na passagem daquilo que observas em ti à produção de sentidos singulares para tua vida. Nada de representações. Quinto movimento: construir um plano de consistência para o que aparenta um caos obtido. Terás que te desapegar do todo. Registros serão abortados para impregnar força e firmeza ao que estás a juntar. Quem sabe um que outro material será guardado para outra oportunidade. Nem tudo que foi inicialmente reunido fará parte do conjunto de expressão quando este toma forma. Forma?! Por que pensas em recuar quando te exigem limites exteriores da matéria de que se constitui um corpo? Uma ideia, um acontecimento, uma ação sempre estará se apresentando em modos variáveis. Não se trata de colocar em uma fôrma e, sim em obter uma maneira capaz de dar a ver e ouvir teu modo de expressar um estado e condição permeados pelo tempo e espaço no aqui e agora de uma determinada maneia de ser professor. Sexto e último movimento: desconfiar de todo procedimento, ao modo foucaultiano. Interrogar as tramas e os usos do passeio urbano. Isso funciona para a constituição de uma estética como forma em ação de uma dada professoralidade?

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O que se passou? Tramas e usos do passeio urbano: por uma estética professoral buscou fomentar a arte de passear na perspectiva filosófica, ao estilo socrático, inspirado na personagem Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf2 e nas intervenções artísticas de Francis Alÿs3 na cidade do México. Foi um convite a sair do território habitual que predominantemente mantém a sala de aula como espaço concreto para a formação docente. Nessa perspectiva, pulula a questão: Ao formar professores, por que passear registrando cartograficamente o vivido e o imaginado? Salientando que a matéria principal das Oficinas de Transcriação é a vida4, temos aqui como maior intenção o compromisso com a revitalização do pensamento. Acreditamos que o passeio urbano é um dispositivo potente para favorecer desterritorializações. Encontro com algo inédito acompanhado de algum devir minoritário que põe em ação as escrileituras. Percepções e sensações ínfimas, daí decorrentes, trazem à tona possíveis arranjos com a própria docência. Reunião de imagens capturadas com câmeras digitais e telefones celulares. Ideias para realizar um pequeno vídeo com o auxílio do programa movie maker. Uma tentativa de exercício de transcriação “fílmica”. Desenvolvimento de experimentações na abertura de circuitos desconhecidos pelo pensamento. Mapeamento das estratégias utilizadas pelos docentes, criadoras de territórios professorais na direção dos movimentos de afirmação da vida; delineamento das figuras da subjetividade a partir de transformações da estratégia de desejo. Transformações com os efeitos produzidos na subjetividade professoral, bem como postura de resistência aos regimes de estratificação de princípios identitários. Assim, a cartografia não atende como um modo descritivo de relatar achados; mais do que isso, ela favorece o mapeamento das maneiras como a força da criação opera nas práticas pedagógicas, das invenções de formas de expressividade para as emanações do corpo vibrátil. Tal escolha devese à dimensão micropolítica do estudo, isto é, no interesse pelas questões que envolvem os processos de subjetivação em sua relação com o social WOOLF, 1980. ALŸS, 1997. 4 DALAROSA, 2011. 2 3

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e o cultural, com as quais se configuram os contornos da realidade contemporânea em seu movimento contínuo de criação por intermédio da escrileitura. Esta que é inspiradora e cheia de ideias, produtora da diferença em seu exercício, deixando de lado as reproduções que inibem a capacidade de invenção. Os materiais reunidos àqueles que fizeram parte do planejamento e desenvolvimento da Oficina tornaram-se propulsores para que a escrita fosse acontecendo. Cada um dos participantes registrava os procedimentos utilizados para a confecção de seu vídeo em um bloco de anotações disponibilizado pelo Núcleo. Esse movimento de escrita permitiu fortalecer a ideia de escriler como forma de realização textual singular e livre de exigências relativas às normas que, por vezes, inibem a experimentação de outras formas de expressão. Ao mesmo tempo, de modo complementar à proposta de ativação do olhar sensível realizado em âmbito do cotidiano urbano, entendemos que a educação tem muito que aprender com a arte e a filosofia. Ou seja, aprender a criar novas relações com o mundo, a combater as opiniões correntes, a produzir outras composições. Aprender a produzir um campo de saber que propõe novidades, fabrica diferenças vitais e sociais, isto é, variados sentidos para a vida – experimentar, subverter códigos dominantes e traçar linhas de fuga. Podemos pensar, até então, como um exercício que opera com diversos materiais dispostos pela multiplicidade a fim de destituir o senso comum referente à geração de uma escrita. Sendo assim, o programa teórico utilizado durante a Oficina deteve-se nas seguintes ações: estudos de textos da filosofia da diferença, de obras literárias poéticas, de entrevistas de artistas e cientistas, leituras comentadas, leituras dirigidas e debates; projeções em DVD de documentários, vídeos de artistas e imagens de práticas artísticas contemporâneas; apresentações de imagens bidimensionais5; exercícios ensaísticos de escrita (entre filosofia e literatura) articulados a outros modos de expressão próprios do campo da elaboração de vídeos. As aulas teóricas foram importantes para que cada sujeito 5

Materiais utilizados na oficina: fragmentos do vídeo O abecedário de Gilles Deleuze (1997); obras literárias poéticas de Samuel Beckett; projeções, em DVD, do documentário de Agnès Varda – As praias de Agnès; entrevista com Jorge Larrosa; e projeção de imagens de práticas artísticas contemporâneas de Lígia Clark e Francis Alÿs – Bloco de gelo e Tornado.

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fosse construindo sua compreensão enquanto utilizava o método cartográfico, possibilitando, durante os passeios, um olhar diferenciado, uma experimentação provocada pela abertura ao inesperado, permitindo que conexões se formassem, territórios fossem desconstituídos ou reforçados e sensações pudessem transparecer nos vídeos por meio da escritura realizada. Considerando que a experiência subjetiva está em constante transformação em função daquilo que se passa nas circunstâncias do vivido; que nossos corpos capturam signos emitidos por coisas, animais e pessoas; que um acontecimento dá o que pensar e abala as representações, as organizações, até então utilizadas nos processos de recognição, procuramos, com os diferentes arranjos realizados entre arte e filosofia, mobilizar os campos sensitivo, sensível e perceptivo dos professores participantes da Oficina – não somente os utilizados normalmente – dando lugar àqueles que agem nas formas tidas como essenciais, deixando o sujeito abandonado diante das suas certezas. Um trabalho prioritariamente voltado à reconquista da dimensão animal no humano como um ser que se coloca à espreita, não apenas pelo seu estado consciente ou ideológico, mas pela sensibilidade acionada na experiência vivida. Outros modos de pensar, de viver, de expressar são produzidos. A subjetividade torna-se flexível, por isso menos fixa, criando dispositivos conectivos-disjuntivos que mantenham ou amplifiquem a energia vital do corpo: um movimento rizomático em que novos agenciamentos de intensificação de forças são construídos. Atar, coser, conectar outras formas de ver e dizer, concedentes de sentido ao vivido, fornecendo consistência às sensações acolhidas pelo corpo que se faz morada da diferença. Por fim, destacamos o trabalho desenvolvido como uma tentativa para fazer ler e escrever a partir de conexões de diversas áreas de saberes. Procuramos arejar as formas estratificadas e representacionais do pensamento. Do que compete ao fazer professoral referente à sua formação inicial e continuada, também ao ensino e aprendizagem, em que se possa movimentar a criação de percepções a respeito daquilo que se entende por necessidade e imponha uma ação positiva e intencional no exercício de seu fazer. São atuações possíveis de serem realizadas na educação: suspender velhos hábitos, deixar de lado aquilo que não eleva uma potência de vida, conforme

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indica Spinoza6, e se dispor a capturar materiais distintos que possibilitem multiplicar-se na variação daquilo que é reunido. Para tanto, cabe desenvolver uma postura de professor catador, mantendo-se atento àquilo que lhe põe a pensar como maneira de abrir fendas nos círculos que se abrem e se fecham alcançando o mesmo ponto em prol da variedade de conteúdos existentes, fazendo funcionar uma ação educativa atrelada à atualidade e capaz de compor outras perspectivas de saberes.

Referências ALŸS, Francis. Walks/Paseos (catálogo). Cidade do México: Museu de Arte Moderna, 1997. DALAROSA, Patrícia C. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. In. HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: Ed. UFMT, 2011. WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Trad. Mario Quintana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007.

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SPINOZA, 2007.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

BIOGRAFEMANDO A VOZ: o professor e a cena da sala de aula Alessandra Christina Arantes Abdala Azevedo Josiane Brolo Rohden Silas Borges Monteiro

A cena de uma aula, constantemente desenvolvida em/na sala de aula, pode ser percebida como uma cena teatral. Porque ela se consubstancia em ato, pela conjugação, em dado espaço, de três fatores principais: professor, conteúdo programático e aluno. Mas percebe-se principalmente no corpo do professor, investido do papel que estabelece por si um espaço cênico, cujo protagonismo é exercido pela voz. A ideia de que há uma relação fundamental entre o ensino e a fala está posta. A gênese de todo a forma de ensinar não partiu da retórica? O cenário: a escola. O palco: a sala de aula-vida. É neste contexto que aprendemos, produzimos, sentimos, criamos, pensamos, refletimos: a cena, o gesto, a voz. Cenário da Oficina “Biografemando a voz,” cujos ecos das mais diferentes vozes perambularam os corredores: Silêncio! Atenção! Professor! Crianças! Senta! Recreio! Entenderam? Um cenário onde a vida se faz e refaz a todo instante, deixando impressos gestos, cenas, vozes que escrevem a aula-vida – conexões, encontros, desencontros, rizomas, devires, explosão de sentidos e saberes. Palco de temores, de emoção, incertezas, falação. Às vezes escuro, às vezes colorido – janela quebrada, ventilador barulhento. Cadernos e livros sobre a mesa. A-E-I-O-U nas paredes. Pó de giz pelo ar. Todos atentos

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ao quadro-negro, ouvidos presos à voz do professor – que pulsa, aspira, inspira, canta, grita, cria, ecoa, surge, flui, insinua, fala, entoa, ensina! Ensina por sobre o palco da sala-vida do cenário escolar. Nosso anseio: oficinar a voz do professor. Somos tomadas, de sobressalto, ao tentar biografematizar a voz, por deixar escapar o essencial. Escrita fônica. “Palavra falada: signo plurívoco: também a coisa designada. Grafismo conectado à voz ”1. Barthes2 afirma que o que o interessante na voz é o fato de ser este objeto muito cultural, de certa maneira, um objeto ausente (muito mais do que o corpo, que é representado de mil maneiras pela cultura de massas): raramente se ouve uma voz “em si”, ouvimos o que ela diz; a voz tem o estatuto mesmo da linguagem, que é um objeto que julgamos não poder captar a não ser através do que veicula. A cena da voz que o professor arma para si em sala de aula constrói uma cena que vai para além das suas possibilidades de argumentação teórica, pois não é somente performativa, mas também autobiográfica. Neste contexto, a assinatura da aula passa pela performance biofônica do professor, que será atravessada por uma via de experimentações de leitura-escritas, compreendidas como possibilidades de deslocar a VOZ dessa região central que ocupa na sala de aula. Desterritorializá-la! Descolonizá-la para propiciar o deslocamento em uma nova arquitetura. Com estes substratos, apresentamos os “fios” que compõem nosso desejo de tecer esta escritura: convidamos a voz para um experimento, “vestida de filosofia” – este objeto ausente da discussão, mas que funciona como determinante da presença e do fator primordial da cena que o professor arma para si – dito por uma grande maioria de professores, como ferramenta imprescindível para ‘dar aula’ – no palco da sala, como protagonista deste roteiro! Seguimos Derrida3 quando declara: “nada me interessa mais do que a voz. Uma voz não-discursiva se quiser, mas a voz depois de tudo”, pois o que nos perpassou nesta oficina foi pensar a voz e o seu uso pelo professor como uma forma de atravessar e problematizar os caminhos deste trajeto (ou seria manejo?) pedagógico, através de um deslocamento CORAZZA, 2006, p. 67. BARTHES, 1995, p. 205. 3 DERRIDA, 1999, p. 183. 1 2

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deste lugar, dito por Nietzsche, como marcado por ser do professor, o lugar daquele que fala, cabendo ao aluno ser aquele que escuta.

Rabiscos de um roteiro: da fecundação e do processo de gestação da oficina Criar é livrar-se do sofrimento. Mas o sofrer é necessário para os criativos. Sofrer é se transformar, em cada nascer há um morrer. É preciso ser não apenas a criança, mas também a parturiente: como o fazedor criativo. Nietzsche

Por ser necessário um começo, iniciamos este ensaio com a colaboração do Sr. Nietzsche que, de forma pontual, transformou em palavras nosso processo de gestação para esta oficina: de crianças a parturientes, aprendizes “dente de leite” deste “fazimento-cozimento” criativo proposto pelo “sapato” (ou seria os óculos?) de uma forma de ler e escrever em meio à vida, o projeto Escrileituras. Como dito por “dois” Bedin da Costa (o Cristiano e o Luciano), escrevemos com aquilo que nos aproxima, com pedaços dispersos que arrancamos da infância, dos conceitos das lembranças.

Da sonoplastia: a composição essencial da oficina

Presença onipotente no modo de se “saber fazer” a relação que ocorre na educação e que possibilita (para muitos) a aprendizagem em sala de aula. Começamos deixando fluir impressões afluentes em busca de um rego d’água, uma ideia-nascente capaz de fertilizar nossos anseios por proto-escrituras. Sabemos ser esta uma arena polêmica, pois exige trânsito em zonas de fronteira entre saberes e lógicas diferentes. Partimos da voz para chegar à BIOVOZ. A concepção grega de biovoz (bíos, vida; voz, faculdade da fala) abre as cortinas para o roteiro pretendido neste ensaio, já sabendo e desejando, de antemão, sofrer todos os atravessamentos que um percurso se dispõe. A voz de Guimarães Rosa acompanha o intento:

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Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do que primeiro se pensou4.

A voz do professor “se tece” na trama da sala de aula, nos espaços entendidos como parte do cenarium pedagógico. E é a multiplicidade de relações inerentes a essa esfera que oferecem os fios e furos necessários para a construção de um tecido – ou seria uma rede? – cujo desenho “customizado” parece estar atento às experiências e fenômenos nos quais professores e alunos tomam parte. Deleuze e Guatarri já alertam: “(...) existem muitas paixões em uma paixão, e todos os tipos de voz em uma voz, todo um rumor, glossolalia (...)5. E é assim, sentindo a língua no “céu da boca”, explorando esta “câmara” oral – que, para Freud, se oferece um poço de prazer –, glissando sons e glossofagiando experiências, pretendemos deslocar este conhecimento da voz como algo que se destina – ou se endereça – a um conjunto de transmissão que tem como itinerário, como bem diriam Luciano e Cristiano Bedin da Costa, “a boca de quem fala, para o ouvido de quem escuta”6.

Primeiros ensaios: da glote ao grão da voz Para Barthes7, a voz tem um grão. Para dizer esse grão, descreve imagens como de “um leite vegetal, de uma vibração nacarada, situada no limite – delicado e perigoso – do destimbrado8”. A glote pode ser descrita como uma abertura na laringe, circunscrita no limite das pregas vocais inferiores. Fisicamente, é na glote que está o grão, a voz! Em uma aligeirada consulta em um dicionário9 de Língua Portuguesa, a voz é definida como: som produzido na laringe, especialmente na laringe 6 7 8 9 4 5

ROSA, 1994, p. 37. DELEUZE; GUATARRI, 1995, p. 09. COSTA, 2009. BARTHES, 1995. Idem, p. 206. FERREIRA, 1987.

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humana! Glote. Faculdade; grito; rumor; ordem em voz alta; boato; clamor; queixa; termo; dicção; palavra; frase; direito de falar em algum lugar; sugestão íntima; parte vocal de uma composição de música – nas fugas para piano e órgão. Composição. Composições como a feita a quatro mãos, dois pares de olhos e ouvidos, duas bocas, cujas vozes ecoam em palavras escritas. Nesta composição, Corazza e Silva10 ofereceram as pistas iniciais para a gênese desta oficina. Assim disseram: “Dispersar. Disseminar. Proliferar. Multiplicar. Descentrar. Desestruturar. Desconstruir. O significado. O sentido. O texto. O desejo. O sujeito. A subjetividade. O saber. A cultura. A transmissão. O diálogo. A comunicação. O currículo. A pedagogia.” E atentam para a importância de: suspeitar das ideias do diálogo e da ação comunicativa. Suspeitar, sobretudo, da obrigação do diálogo (...). A ação comunicativa traduz a fantasia de um mundo regido pelo bom senso, pelo consenso e pela convergência. A ideia do diálogo re-instaura a presença da consciência, a presença do significado, a presença das boas intenções (...). A ação comunicativa é um delírio logocêntrico.11

Holofotes que fulguram os tesvarios do logos presentes na cena que acena a aula... Para verter o logocentrismo, é preciso fazer furos, abrir orifícios e deixar vazar as verdades que ficam empossadas em nossa teia hídrica – ou, melhor dizendo, em nossa malha circulatória –, deixar-se dobrar ao sabor de novas modelagens. É preciso, primeiro, mostrar a sua presença, mesmo julgando-se seu distanciamento. Sob a ótica de Derrida, com efeito, a voz é uma questão. Para explicá-la, tenta articular a genealogia dos conceitos de maneira meticulosa, mostrando o que as disposições dos pensamentos dissimularam, induziram, impediram. Enquanto a fala é habitualmente associada à razão (a noção grega de logos) e a voz é percebida como mais próxima da “verdade” interior da consciência individual, a escritura é considerada uma  extensão secundária ou suplemento da voz, uma tecnologia auxiliar empregada 10 11

CORAZZA; SILVA, 2003, p. 09. Idem, p. 12.

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pela razão humana, mas não essencial a ela. A esta subordinação histórica da escritura, Derrida chama de “logocentrismo ”12. O logocentrismo, segundo Thomaz Tadeu13, é o termo utilizado por Jacques Derrida em sua crítica da metafísica da presença para questionar a tendência da filosofia ocidental a privilegiar o logos, isto é, a palavra e, por extensão, o significado fixo e determinado ou o conhecimento certo, racional e absoluto. No glossário de Derrida, Santiago14 explica-nos que o logos é um dos elementos básicos sobre o qual se construiu o pensamento ocidental. A metafísica atribui ao logos a origem da verdade do ser, inseparável da phoné – substância fônica – que se confunde com o ser como presença. Deste modo, o privilégio dado à voz, ao logos como índice da presença a si do sentido, impõe e organiza esta tradição em torno da ideia de verdade. O desejo de verdade comanda o ocidente, desejo da palavra plena que só se manifesta através do discurso falado quando o sentido e a voz, o pensamento e a voz, se dão numa relação supostamente sem resto. Para esta doença, o pharmakon que a Escrileitura prescreve quiçá seria: Do discurso logocêntrico ao discurso por vir Pela disfuncionalização da linguagem O pater é morto junto com a moral da cegonha Com a medicalização da existência Com a butoxalização da aparência Sacrifício dos primogênitos.15

Do roteiro O Projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida é descrito por Dalarosa16 como um disparador de cenários que pensam a Educação com e na vida e que encontra potência no ato de criação textual. Para alcançá-lo, torna-se corpo e produz matéria de pesquisa na prática operatória de suas oficinas. JOHNSON, 2001. SILVA, 2000. 14 SANTIAGO, 1976. 15 CORAZZA, 2008, p. 43. 16 DALAROSA, 2011. 12 13

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E a voz do professor? Como ele a digere, rumina, ressoa? Como prepara o itinerário deste caminho – ponte entre olhos, orelhas, bocas e língua? A voz se serve e o serve como ferramenta de autopoiese, autorreprodução e autorreferência? O tecido da voz em meio às tramas. Com isso, não estamos desenhando a incorporação do ofício da aula magistral. Ao contrário, ao pensarmos um roteiro, buscamos17 a criação de outros modos de pensar o vivido no campo das singularidades; a experimentação de outras formas de expressão, de afecções e de modos de enfrentar e ordenar o que não está materializado no campo da aprendizagem. Um roteiro desprovido de estruturas, mas com fios e linhas de fugas, que tivesse como prioridade o experimentar, o criar em meio à vida.

Do abrir-fechar as cortinas... Derrida. Deleuze, Nietzsche, Artaud e Zunthor: a produção vocal do professor será atravessada por estes vetores e conectores, nos quais a experimentação da leitura e escrita é entendida como possibilidade de exercício do pensamento. Para Derrida18, nosso convidado ilustre, todo texto é encadeamento. Todo texto esconde e revela um sentido sempre dividido – um abrir e fechar das cortinas... O desafio principal que se coloca é uma obra infinita de descolonização do próprio pensamento para não recriar a lógica colonizadora que habita aquele pensamento onde ele se inscreve. Afirma, ainda, que não existe a descolonização, mas movimentos parciais, heterogêneos, diferentes de um lugar para outro. A partir deste movimento que “esconde e revela”, como uma cortina que “se abre e se fecha” – a proposta desta oficina foi criar situações de exploração em que o uso (ou não) da voz possibilitasse o exercício de deslocar este lugar posto ao “professor, lugar daquele que fala” – em arte cênica e vivências. Com Monteiro19, traçamos o nosso roteiro; pautadas em quando diz que a voz cria múltiplos inaudíveis para si e para os outros. Em CORAZZA, 2008. DERRIDA, 1999. 19 MONTEIRO, 2011, p. 103. 17 18

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suas palavras, “a voz, assunto da linguagem, assunto da fisiologia, assunto da física, começa a ser vista por nós como condição de possibilidade da criação de sentido, de autopoiese.” Deste modo, ensinar não passa só pela fonação! Como sugerido por Zordan20, “não passa de um infinitivo deglutir de matérias. Não há começo. No máximo estreias.” Estreias que sob o movimento das cortinas, se abrem e se fecham, escondem e revelam, como que num texto-encadeamento – um sentido-dividido. Estreias que podem se ocupar em desfazer, desmanchar, destruir, desbaratar, resolver, desembaraçar, apoucar, desdenhar, menoscabar, desorganizar, despedaçar, quebrar, dissolver, diluir, anular, invalidar, esclarecer, solucionar, derrotar, alquebrar, livrar, libertar, desgastar, corroer, consumir, separar, dispersar, esparramar; de forma com que a performance do “artista-professor”, cujo papel de “estrear-ensinar” com a sua voz ofereça-se como um grande conector da tessitura – conjunto de sons que melhor convêm a uma voz ou a um texto. Um registro em que foram compostos para a construção de “tecido-texto” escrive-lido e escrive-produzido almejado nesta oficina.

Do cenário da escola ao palco da sala-vida... As oficinas Biografemando a voz: o professor e a cena da sala de aula foram desenvolvidas no Município de Cuiabá, nas escolas estaduais Dom José do Despraiado e Paciana Torres de Santana, parceiras do Projeto Escrileituras, no núcleo Universidade Federal de Mato Grosso. Nessas Escolas, os professores, além de estarem comprometidos com a aprendizagem dos alunos, estão desejosos de ampliar suas ferramentas “com o fazer professoral”, aspecto que motivou a decisão de oficinar e biografematizar este público. A ideia de escrileitura da voz, da produção de fonemas ao registro de grafemas, consistiu em trabalhar com o professor utilizando um dispositivo pedagógico, o tipo “diário de bordo” – aqui entendido como uma narrativa múltipla, de natureza biográfemática, que se situa entre o aprender e o viver, enquanto construção social das suas histórias de 20

ZORDAN, 2009.

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vida, como proposto por Luwisch21, para o registro de textos motivados pela questão: como descrever a cena da aula? E a presença da voz?

Dos artistas Professores! Com suas dores, seus amores, seus caderninhos de inspiração. Professores! Com seus receios, seus desejos, suas maneiras, suas artes de fazer. Professores! Com seus gestos, suas estreias. Com suas vozes! Professores que buscamos provocar com a voz de Nóvoa22. “Dizme como ensinas, dir-te-ei quem és e vice-versa”. Este estudioso da educação afirma ser este um título que faz – sem dúvida – o horror de todos quantos se tem esforçado, ao longo das últimas décadas, por racionalizar o ensino, procurando controlar a priori os fatores aleatórios e imprevisíveis do acto educativo, expurgando o cotidiano pedagógico de todas as práticas, de todos os tempos, que não contribuem para o trabalho escolar propriamente. Levar os professores a experimentar uma dispersão linguística produzida nos espaços intermediários da comunicação. Espaços estes situados entre o dito (nomeado) e o não dito. Brechas por onde a língua se distrai dos modelos representacionais e força a palavra a fazer outros nexos, a dizer o que ela não poderia dizer23. A experimentação neste cenário se apresenta não como um modelo a ser seguido (como numa visão clássica) ou negado (como numa visão romântico-moderna), mas relido, refeito, desfeito, como homenagem, referência e reverência. Afinal, a experimentação que permite a transcriação é também a possibilidade de homenagear a vida, é uma questão de alma, como nos diz Augusto de Campos24. Recriar é uma meta de um tipo especial de tradução: a tradução-arte LUWISCH, 2002. NÓVOA, 1995. 23 DALAROSA, 2011, p. 18. 24 CAMPOS, 1986, p. 17. 21 22

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mas para chegar à  re-criação  é preciso identificar-se  profundamente  com o texto original  [...] é uma questão de forma  mas também  uma questão de alma.

Das performances BIOGRAFEMATIZAR! Interagir com as vozes faladas e escritas dos autores, falar deles, com eles e convidar o professor à produção com o autor lido. O desenho pretendido está destraçado. Só está atento às experiências e fenômenos nos quais o professor toma parte e em seu fazer,sabe, opera, intui, ensaia, imita, se desloca para impossibilidades, diferenças, se joga para o ridículo de tal pretensão de nomeá-la. Biografematizar a voz em-tre-o-meio da cena da aula trata-se do acontecimento! Que pode ser desencadeado pela fala ou escrita, de uma biografia, de uma biofonia, no qual os traços foram inventariados e as experiências arregimentadas.

Das cenas des-construídas Nietzsche25 parece apontar caminhos quando observa: a arte de se “pôr em cena” para si mesmo. Somente assim podemos lidar com alguns vis detalhes em nós! Sem tal arte, seríamos tão só primeiro plano e viveríamos inteiramente sob o encanto da ótica que faz o mais próximo e mais vulgar parecer imensamente grande, a realidade mesma.

Regressando à questão de partida: Como descrever uma cena da aula? E a presença da voz? 25

NIETZSCHE, 2001, § 78.

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Essa pergunta, aparentemente simples, foi a questão que movimentou este texto e a oficina. A cena, constantemente desenvolvida em/ na sala de aula, pode ser percebida como uma cena teatral. Porque ela se consubstancia em ato, pela conjugação, em dado espaço, de três fatores principais: professor, conteúdo programático e aluno. Se reconhece nos diálogos tecidos entre professor e aluno; composições dramáticas, onde, diante de todos os presentes, as ideias, conteúdos e informações se chocam e se confrontam. Mas percebeu-se, principalmente no corpo do professor, investido do papel estabelecido por si, um espaço cênico cujo protagonismo é exercido pela voz. Os diálogos travados entre professor e aluno na escola não se representam de forma abstrata, frente a uma sala vazia. Eles pressupõem – necessariamente – um público a que se dirige e enredam o aluno não como espectador e sim como ouvinte. E isso não é tudo: esse espectador-ouvinte tem, no conjunto da cena, um papel, e um papel muito importante a desempenhar. Porque a sala de aula não é um e os alunos que a assistem não devem comportar-se como “meros” espectadores. Devem colaborar com o professor, compreender as suas intenções, tirar as consequências da ação que se desenrola diante de si; compreender o sentido e imbuirse dele. A ideia de que há uma relação fundamental entre o ensino e a fala está posta. A aula perpassa matérias e produz uma espécie de centro originário onde, a partir dela e com a maquinaria da voz, se tem acesso ao saber. A discussão que se faz é não ver a voz apenas como componente instrumental que permite a informação de conhecimento e da materialidade ao ato de ensinar, mas também como um elemento instrumental da voz que funciona no processo de conhecimento e marca a cena. A voz é um ato singular que deixa marcas. Em sala de aula todos se posicionam ao seu entorno e buscam ficar na direção da voz: o que lhe confere este caráter central. A voz marca a presença! A voz do professor é o centro da aula. E este centro funciona como presença, isto é, representante da essência do fazer da docência. Se a voz é instrumento de referência da presença, com todos os desdobramentos típicos dessa concepção, a voz se torna marca de autoridade e, mais ainda, a prática docente é reduzida à presença da voz, e dela se torna dependente. Com isso, a relação que se estabelece entre professor e estudante deixa de ser cena de criação para se tornar dominação da presença, isto é, a segurança de que a presença da voz garanta a presença da ciência e do conhecimento.

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Assim, voz e comunicação estabelecidas no contexto da sala de aula passam indefinidamente pela alternância entre compreensão e estranhamento, criação e destruição, alegria e sofrimento, sucesso e fracasso. Com isso, não se pode esperar encontrar um lugar de sossego e paz absolutos, pois, como escutamos de Zordan26. Ensinar é esquecer-si de si mesmo, num desdobramento de centenas de corpos que em aulas, palestras, orientações, preleções, lições, atravessam voz e visão. Porque quem ensina sabe que a coisa tem outro sabor quando dividida. Partir, abrir, devir, sozinho não tem a menor graça. Ensinar é buscar companhia para as paixões. Quem ensinou algo sempre está naquilo que quem aprende leva. Isso basta.

Referências BARTHES, Roland. O grão da voz. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. CAMPOS, Augusto de. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.  CORAZZA. Sandra; TADEU, Tomaz. Manifesto por um pensamento da diferença em educação. In: CORAZZA, Sandra; TADEU, Tomaz. Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. _____. Os cantos de fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto Alegre: Sulina, Editora da UFRGS, 2008. COSTA, Cristiano Bedin da; COSTA, Luciano Bedin da. “Bando”. In: AQUINO, Julio Grouppa; CORAZZA, Sandra Mara (Orgs.). Abecedário: Educação da diferença. Campinas: Papirus, 2009. DALAROSA, Patricia Cardinale. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: Ed. UFMT, 2011. DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. v. 2. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. DERRIDA, Jacques. No escribo sin luz artificial. Valladoliz: Ediciones Mauricio Jalón, 1999. ZORDAN, 2009, p. 56.

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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1987. JOHNSON, Christopher. Derrida: a cena da escritura. Trad. Christopher Johnson; Raul Fiker. (Coleção Grandes Filósofos). São Paulo: Editora Unesp, 2001. LUWISCH, Freema Elbaz. O Ensino e a Identidade Narrativa. In: VALENTE, Maria Odete (Dir.). Revista De Educação, v. 11, n. 2, 2002. MONTEIRO, Silas Borges. Notas/Siglas/Sons. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: Ed. UFMT, 2011. NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. NÓVOA, António. Diz-me como ensinas, dir-te-ei quem és e vice-versa. In: FAZENDA, Ivani (Org.). A pesquisa em educação e as transformações do conhecimento. Campinas: Papirus, 1995. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida. Trabalho realizado pelo departamento de Letras da PUC-RJ. Supervisão geral de Silvano Santiago. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. SILVA, Tomaz Tadeu da. Teoria cultural e educação – um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. ZORDAN, Paola. ”Ensinar”. In: AQUINO, Julio Grouppa; CORAZZA, Sandra Mara (Orgs.). Abecedário: Educação da diferença. Campinas: Papirus, 2009. ZUMTHOR, Paul. A Letra e voz: a “literatura” medieval. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

ARQUITETURA DO CORPO: cut-up Cristiano Bedin da Costa

Este texto contém o seguinte sortimento: I. A proposta II. O procedimento III. A confissão N’a proposta apresenta-se o método do cut-up, da forma como foi entregue o procedimento aos participantes da oficina, denominada GETS. No centro, trata-se das construções que se seguiram: temse então o método sendo discutido e operado. Por fim, confessa-se o argumento.

I. A proposta No verão de 1961, “Two cut-ups”, de William Burroughs e Gregory Corso, é publicado no segundo número da revista Locus Solus. O conjunto de textos, escritos com pedaços do poema “À une raison”, de Artur Rimbaud, é uma espécie de apresentação da técnica do cut-up, que seria desenvolvida por Burroughs na trilogia de romances The soft machine (1961), The ticket that exploded (1962) e Nova express (1964).

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Abaixo, seguem alguns recortes de “O método do cut-up” – onde Burroughs explicita e faz a defesa de seu procedimento – e também uma pequena ilustração dos movimentos descritos no início do texto. O método é simples. Aqui está uma maneira de fazê-lo. Pegue uma página. Como esta página. Agora corte do meio para baixo. Você tem quatro seções: 1, 2, 3, 4... Um dois três quatro. Agora rearranje as seções colocando seção quatro com seção um e seção dois com seção três. E você tem uma nova página. Às vezes diz a mesma coisa. Às vezes alguma coisa bem diferente (...). De qualquer modo você vai descobrir que isso diz alguma coisa e alguma coisa bem definida. Pegue qualquer poeta ou escritor que você admira, digamos, ou poemas que você tenha lido muitas vezes. As palavras perderam significado e vida por anos de repetição. Agora pegue o poema e datilografe passagens selecionadas. Encha uma página com excertos. Agora corte a página. Você tem um novo poema. Tantos poemas quanto você queira (...). A poesia é um lugar e é livre para todos cutapear Rimbaud, e você se colocar no lugar de Rimbaud (...). Cut-ups são para todos. Qualquer um pode fazer cut-ups. É experimental no sentido de ser algo a fazer. Right here, write now. Não algo sobre o que falar ou discutir (...). Shakespeare e Rimbaud vivem em suas palavras. Corte as linhas e você vai escutar suas vozes. (...) Toda escrita é de fato cut-ups. A colagem de palavras lidas escutadas superescutadas. O que mais? O uso de tesouras torna o processo explícito e sujeito à extensão e variação (...). Cortar e rearranjar uma página de palavras escritas introduz uma nova dimensão para a escrita, possibilitando ao escritor converter imagens em variação cinemática (...). O método do cut-up traz a escritores a colagem, a qual tem sido usada por pintores por setenta anos. E usada pelas câmeras foto e cinematográficas. De fato todos os cortes de rua do cinema ou de câmeras fotográficas são, pelos imprevisíveis fatores de passantes e justaposição, cut-ups. E fotógrafos vão dizer a você que frequentemente seus melhores instantâneos são acidentes... Escritores vão dizer o mesmo. Os melhores escritos parecem ser aqueles feitos quase por acidente por escritores até que o método do cut-up foi tornado explícito – toda escrita é de fato cut-ups (...). Você não pode decidir a espontaneidade. Mas você pode introduzir o fator imprevisível e espontâneo com uma tesoura.1 1

Texto publicado na página de Burroughs no site da S press, editora alemã de poesia acústica. Disponível em: .

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“Suas próprias palavras”, de fato! E quem é você? William Burroughs

Escritores – é nisso que insiste Burroughs – não têm palavras de sua propriedade. Ao refutar a ideia de uma autoria absoluta, o trabalho da escritura pode ser encarado como um procedimento singular de corte-recorte-montagem com o existente, onde palavra, percepção, imaginação são materiais a serem escolhidos, editados, rearranjados: intertexto, imenso cut-up. Sobre essa sensibilidade operando por conexões, leia agora um trecho de uma entrevista de Burroughs à Conrad Knickerbocker2 e veja como esse procedimento de trabalho com os diversos níveis de informação é descrito: (...) os cut-ups tornam explícito um processo psicosensorial que está acontecendo o tempo todo de qualquer jeito. Alguém está lendo um jornal, seu olho segue a coluna do modo aristotélico apropriado, uma ideia e uma sentença de cada vez. Mas subliminarmente ele está lendo as colunas de ambos os lados e está consciente da presença da pessoa sentada ao seu lado. Isso é um cut-up. Eu estava sentado numa lanchonete em Nova York tomando meu café com roscas. Estava pensando que a gente realmente se sente um pouco encaixotado em Nova York, como que vivendo numa série de caixas. Olhei pela janela e lá estava um grande caminhão de mudanças. Isso é um cut-up – uma justaposição do que está acontecendo fora com o que você está pensando. Faço disso uma prática quando ando pela rua. Digo: 2

Entrevista publicada na Paris Review, nº 35, outono de 1965, e presente no livro Os escritores: as históricas entrevistas da Paris Review.

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Quando cheguei aqui vi aquela placa, eu estava pensando isso, e quando volto para casa datilografo tudo isso. Uma parte desse material eu uso e outra não. Tenho literalmente milhares de páginas com anotações aqui, cruas, e mantenho um diário também. Num certo sentido isso é viajar no tempo. A maioria das pessoas não vê o que está acontecendo à sua volta. Esta é a minha principal mensagem para os escritores: Pelo amor de Deus, mantenham seus olhos abertos. Percebam o que está acontecendo à sua volta.

Abaixo segue a transcrição do parágrafo inicial de “Direto para o oeste”, texto inicial de Almoço nu, de Burroughs3, que servirá como elemento inicial em seu procedimento de cut-up. Destaque-o, recortando e rearranjando o texto conforme a ilustração presente na página anterior.

Direto para o oeste Consigo sentir a tocaia se armando, sentir os movimentos da polícia lá fora mobilizando seus informantes demoníacos, cochichando ao redor da colher e do conta-gotas que jogo longe da estação Washington Square, pulo uma roleta, desço dois lances da escadaria de ferro e pego a linha A direto para a parte alta da cidade... Uma bicha jovem e atraente, de cabelo escovinha e jeito de quem saiu de uma universidade de luxo para trabalhar como executivo de publicidade, segura a porta para mim. Sem dúvida acha que sou uma figura. Sabe como é essa gente: aborda garçons e taxistas falando de ganchos de direita e beisebol, chama o balconista do Nedick pelo nome. Um verdadeiro idiota. E justo nessa hora surge na plataforma um detetive da narcóticos vestido com um impermeável branco (que idéia seguir alguém vestindo um impermeável branco. Deve estar querendo parecer uma bichona). Consigo até imaginá-lo dizendo “acho que você deixou cair um negócio camaradinha”, agarrando minha roupa com a mão esquerda e pousando a direita sobre a arma. Mas o metrô começa a andar.

Após ter feito o rearranjo do parágrafo, cutapeie Burroughs, transcriando o texto com materiais de sua escolha. Mantendo os olhos abertos, tome elementos do ambiente, percepções sensoriais e dados de memória. Experimente combinações entre os sons e as imagens, as BURROUGHS, 2005, p. 9-10.

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letras da página e o seu desejo de escritura. Se preferir, utilize alguns dos recortes presentes na página seguinte, oferecidos como uma espécie de caixa de ferramentas – que você pode ou não abrir. Se optar por utilizála, demarque cada um dos pedaços escolhidos com a inscrição GETS (Good Enough To Steal), tal como fazia Burroughs. Lembre-se, apenas, que você não deve nenhuma fidelidade à organização dos parágrafos, podendo percorrê-los, revirá-los, devorá-los, se for o caso, utilizando-os como simples disparadores de escritura. A única exigência é que todas as palavras dos recortes utilizados sejam mantidas tal como foram escritas. Quanto às palavras de Burroughs, você deve mantê-las em sua totalidade, respeitando a ordem na qual estarão dispostas no novo arranjo. Para isso, além de circular em meio a elas, você deverá ocupar os espaços criados pelo recorte inicial, arquitetando com as colagens as ligações entre as quatro sessões.

Caixa de ferramentas ___________________________________ “Nunca se saberá como se deve contar isso, se na primeira pessoa ou na segunda, usando a terceira do plural ou inventando continuadamente formas que de nada servirão. Se se pudesse dizer: eu viram a Lua subir, ou: dói-me-nos o fundo dos olhos e sobretudo assim: tu a mulher loura eram as nuvens que vão correndo diante dos meus teus seus nossos vossos deles rostos. Que diabo! ” 4 ___________________________________ “A literatura é feita de frases que valem por aquilo que são. A ficção mostra com toda a clareza como é que as frases, ao dizer alguma coisa, fazem alguma coisa. Aí, cada uma remete antes de mais nada para a sua própria possibilidade: um passado singular – experiência, pensamento, língua – inventando, no sentido em que não pode ser apreendido em nenhum outro lugar. E, deste modo, cada uma aparece claramente como um gesto ou um acto: o de reconhecer este passado, fraseando. A literatura põe assim em obra uma teoria da frase. Mas não tem geralmente necessidade alguma de a formular à parte. Pois a literatura forma frases novas, que operam apenas sobre aquilo que elas mesmas dizem e contêm o seu próprio passado. 4

CORTÁZAR, 1984, p. 13.

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Produzir uma frase e produzir a sua origem confundem-se então no facto de dizer. Este gesto único é uma instauração”5. ___________________________________ “Bem, estamos saturados de todas as artes – reproduzidas, vistas e sei lá mais o que por tudo quanto é meio. O ponto de saturação agora bateu tão em cheio que a gente só deseja novas imagens e novas maneiras de criar realidades. Afinal, o homem está louco por inventar, ele não quer ficar reproduzindo o passado sem parar. (...) O que se deseja é o novo. Não um realismo ilustrativo, mas um realismo obtido por meio da invenção real de uma maneira nova de encerrar a realidade numa coisa completamente arbitrária”6. ___________________________________ “É certo que a ideia dum passado da literatura constantemente reutilizável como modelo estético ou como ensinamento moral não é nova: os seus dois principais modos são a imitação e a citação. Toda a literatura anterior a uma obra é então concebida com um vasto depósito de exemplos (e mesmo de exemplo, no sentido retórico do termo), um repertório de acesso livre e público dividido numa série de compartimentos já preparados, mina da qual o escritor só tem de extrair o fragmento susceptível de ilustrar seu próprio enunciado. Mas o termo ‘ilustração’ indica bem o estatuto ancilar da citação. Todo o sistema da citação clássica assenta de facto em duas proibições: a de modificar o fragmento aproveitado; a de inverter a hierarquia que coloca o texto num estatuto de simples auxiliar (estético, didáctico, moral) do texto-suporte. Não há nenhuma relação de intertextos em que apenas entram em jogo os conteúdos e em que a aproximação não provoca nenhuma contaminação. Quanto à imitação, neutraliza qualquer verdadeira relação em proveito duma filiação de sentido único. O segundo texto não reage sobre o primeiro, que fica inacessível e inteiro. Temos, portanto, de cada vez, corte e separação por trás duma aparente aproximação”7.

ALFERI, 1999, p. 19. BACON (apud SYLVESTER, 2007, p. 179). 7 TOPIA, 1979, p. 172. 5 6

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___________________________________ “Com um pouco de sorte, a gente se depara na hora certa com uma música que não é somente ‘grandiosa’, ou ‘interessante’, ou ‘incrível’, ou divertida, mas realmente substanciosa. Por um processo evasivo, mas tangível, certas músicas barram todas as nossas defesas e dão sentido a todos os medos e desejos que evocamos nelas. Dessa maneira, elas expõem tudo o que escondíamos no íntimo e dão um sentido a isso. Apesar de ser uma outra pessoa que fala, a experiência é como uma confissão. Nossas emoções disparam a loucos extremos; nos sentimos ao mesmo tempo enobrecidos e desvalorizados, redimidos e condenados. Escutamos que é disso que se trata a vida, que é para isso que ela serve. Porém, é esse mesmo reconhecimento que nos faz entender que a vida jamais pode ser tão boa, tão inteira. Com uma clareza que a vida nos nega por suas próprias e boas razões, vemos lugares aos quais nunca poderemos chegar ”8.

II. O procedimento Ao corpo: endereçá-lo, elogiá-lo, a ele dedicar-se. Sob os nomes e sob os rostos, por recortes e através dos olhos, entre-vistas, eis o nosso pequeno compromisso de morte: temos, no mínimo, um Eu a ser zerado9.

8 9

MARCUS, 2006, p. 21-22. CORAZZA, 2010, p. 86.

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Os nomes do autor, por certo, mas quais são os seus limites?

Note-se: Durante a oficina, entre pequenas sentenças e construções maiores, os participantes arquitetaram um total de 59 cut-ups. Em razão do espaço limitado, apenas alguns deles serão apresentados neste texto. A escolha foi aleatória. Em todos eles, as palavras destacadas do texto de Burroughs aparecem em itálico. Para além delas, é possível perceber o uso dos materiais presentes na caixa de ferramentas sendo utilizados não só como pontes de ligação entre os termos isolados, mas também, em alguns casos, como guias a partir dos quais o novo escrito buscava encontrar algum sentido.

Cut-up Que diabo, o melhor é ir andando. De modo evasivo, sentir o frio e os movimentos da polícia lá fora, dar de ombros e seguir em frente, encarar o balconista escroto do restaurante Nedick (talvez, com capricho, até chamá-lo pelo nome), olhá-lo no fundo dos olhos e colocar as vistas e sei lá o que por tudo quanto é meio, e deste modo, num verdadeiro ato de confissão, dizer a todos os seus medos e desejos, cochichando ao redor das mesas, mesmo sem saber como se deve contar isso, se segurando a ponta da colher e do cardápio, ou contar da forma de um detetive da narcóticos vestido com um par de tênis Adidas, desses que você pode comprar a preço de banana na Ludigton Square, uma peça que de fato se mantém constantemente reutilizável, e que você até poderá considerar “incrível”, ou divertida, porém demasiadamente saturada para ser usada (afinal, você está louco por inventar, e não quer ficar reproduzindo o passado sem parar).

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O corpus do autor: arquianatomicamente, raspá-lo e operá-lo por conexões, descobrir o corpo afásico e cansado por debaixo de tantos anos de reprodução, o corpo que ainda vive em suas palavras: corte a linha e você ouvirá sua voz (Eu falo: cita-se).

Cut-up Quando comecei a sentir os movimentos da polícia lá fora, entendi que a vida jamais poderia ser tão boa, tão inteira. Devia ter seguido a meu modo, um simples balconista, longe dos lugares aos quais nunca poderia ter nem mesmo tentado chegar. Maldita hora em que resolvi dar ouvidos àquele desgraçado do Nedick. Agora, restam todos esses dias gradeados, onde só o 13.1984, um ladrãozinho medíocre, me chama pelo nome.

Cut-up Vá se levantando e saia já daí! Cansei de sentir pena desses seus discursos, dessa sua falta de interesse e estou cansada de esperar por alguma mudança. Desde sempre, sou eu quem faz todos os esforços pra manter esse negócio em movimento, e já não tenho mais saúde pra aguentar você dando mole enquanto eu tenho de ficar policiando tudo, então saia daqui, seu lugar é lá fora.

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Não há razão para considerar a escrita uma via de mão simples. Pobreza de toda prática em que o autor, de um lado, é aquele que fala, e o leitor, pavlovianamente e em outro extremo, contenta-se em reagir a seus estímulos. Por meio do cut-up, todo movimento é pensado a partir da relação ativa entre o leitor e o autor, por uma prática de escrileitura10 e de entrelaçamento ininterrupto no qual a cada encontro são desfeitos os termos postos em relação. Desse modo, a escritura que nesse espaço é arquitetada deve ser entendida como uma espécie de anatomia palimpséstica: a partitura de um corpo múltiplo, textual e por isso polifônico; ele próprio o testemunho das incontáveis vozes que concorrem para a sua composição.

Cut-up Não consigo, nem mesmo com um pouco de sorte, sentir esperança alguma. O ponto de saturação agora bateu tão forte, todas as paredes já estão tão próximas, a tocaia já está armada. E.N.C.E.R.R.A.D.O.

Sim, existe uma lição: “decompor para reencontrar a força do ver”, “mesclar imagens para olhar e pensar”: olhar que nunca é profundo, mas que “potencializa a profundidade da extensão”11. CORAZZA, 2008. MELLO, 2010, p. 16.

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“O que é, pois, nosso rosto senão uma citação?13”

Télos: por cortes, um texto descarnado, potencialmente descarado. Nenhum elogio ao gênio, nenhuma metafísica do artista: somos todos bricouleurs14, com nossas incontáveis ligações e conexões. Patchwork. O método do cut-up é um constante elogio da multiplicidade, uma modalidade de invenção ao redor do seguinte problema: a transposição da forma à intensidade, da representação à criação, de um registro histórico a um diagrama de forças, verdadeiras condições à inventividade de um corpo mutante, tropo heurístico e analógico. Escrileitura: tomar o autor em seu centro, fixar os dois pés em seu cenário e então deportálo, conduzi-lo a uma trajetória em que suas articulações se afrouxam e permitem um novo jogo pelo qual seja possível des-figurar o pensamento para refigurá-lo de outro modo, longe da restrição articulada das palavras. Procedimento tipicamente baconiano: a escavação do mesmo até o limite, a pesquisa e a descida cada vez mais profunda, até uma zona de indiscernibilidade, até uma lógica sensível15. Fragmento de página do livro de Jacques Penry, How to judge Character from the Face. BARTHES, 2007, p. 122. 14 DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 11. 15 Para além do diagrama, procedimento já amplamente estudado por comentadores, fazse necessário considerar o uso incessante de recortes, fotografias e imagens cotidianas nas pinturas de Francis Bacon. Aqui destacam-se os artigos presentes no livro Francis Bacon: A terrible beaut. (DAWSON e HARRISON, 2009). 12 13

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Cut-up Consigo até imaginá-lo dizendo: “uma vez mais, não haverá de ser de todo mal”. Daria então de ombros, “acho que não, acho que não, pois afinal... bem, você sabe”. O que precisamos é de um pouco mais do novo, e não de novo, por deus. Com um pouco de sorte, do jeito que as coisas vão indo, ainda conseguiremos preencher os espaços, esquecer-se de quem saiu e era isso, sem olhar pra trás uma vez apenas, e haverá de ser mesmo isso: a universidade, o diploma e a luta atrás de emprego, o fracasso, o adeus ao luxo.

Cut-up Sabe como é: esquerda, o recuo, recolhendo outra esquerda e pousando a direita entre o belo par de olhos azuis, em meio à face. Isto é sobre a arte (ao menos para um bom entendedor...).

Citar sempre foi citar-se16, envolver-se com as linhas de uma escrita outra, inscrever e posicionar o corpo em meio à dispersão polifônica do texto. Nesse sentido, o cut-up é sempre a materialização de um processo talvez silencioso, com certeza mais profundo, de fragmentação e conexões contínuas. Falamos de escritura, bem poderíamos falar de uma vida. Não escrevemos sem um corpo que bate, ressoa, abaixa ou levanta a cabeça, assopra os dedos, recorta o cenário e ensaia um novo gesto nas horas dos dias. É sempre em meio ao texto que nos tornamos contemporâneos. E é mesmo por isso, pelo cuidado de nossas dívidas, que se reconhece e se faz a exigência de um corpo futuro.

III. A confissão Tudo isto poderia ser revelado por algum outro tempo. O teriam, quem sabe, e não o foram. O escreveriam, cortariam e eu colaria; o então seria, ao invés do assim foi feito, assim fizeram e deste modo foi. De que importa? Com honestidade, sem preocupação alguma com referências espaciais e temporais, tudo isto poderia ter sido considerado e ainda deve e poderá ser considerado como dito por um personagem de romance, ou antes: aqui ou ali, sertão radicalmente rápido, inventado e realista quanto qualquer descrição dessa ordem. 16

CORTÁZAR, 2008, p. 11.

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Referências ALFERI, Pierre. Procurar uma frase. Trad. de Maria Teresa Cruz. Lisboa: Passagens, 1999. BARTHES, Roland. O império dos signos. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BURROUGHS, William. Almoço nu. Trad. Daniel Pellizzari. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. _____. O método do cut-up. Trad. Ricardo Rosas. Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2011. _____. Os escritores: as históricas entrevistas da Paris Review. Trad. de Alberto Alexandre Martins. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. CORAZZA, Sandra. Os cantos de fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto Alegre: Sulina, Editora da UFRGS, 2008. _____. Introdução ao método biografemático. In COSTA, Luciano Bedin da; FONSECA, Tânia M. Galli (Orgs.). Vidas do fora: habitantes do silêncio. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010. CORTÁZAR, Julio. A volta ao dia em oitenta mundos. Trad. Ari Roitman, Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. _____. Blow-up e outras histórias. Trad. de Maria Manuela Fernandes Ferreira. Mem Martins, Sintra: Publicações Europa-América, 1984. DAWSON, Barbara; HARRISON, Martin (Orgs.). Francis Bacon: A terrible beauty. Dublin: Dublin City Gallery The Hugh Lane, Steidl Publishers, 2009. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Trad. Luiz B.L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010. MARCUS, Greil. “Ao vivo no Roxy”, em A última transmissão. Trad. de Eduardo Simantob. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2006. MELLO, Jamer Guterres de. Insensato – Um experimento em Arte, Ciência e Educação. Porto Alegre, 2010. 113 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. PENRY, Jacques. How to judge Character from the Face. London: Hutchinson, 1952. SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon: David Sylvester. Trad. de Maria Teresa Resende Costa. São Paulo: Cosac Naify, 2007. TOPIA, André. “Contrapontos Joycianos”, em Poétique – revista de teoria e análise literárias/ Intertextualidades. Trad. de Clara Crabbé Rocha. Coimbra: Livraria Almedina, 1979.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

NOTAS DO IDIOTISMO: Arthur Bispo do Rosário e Manoel de Barros Aliziane Bandeira Kersting Daniele Noal Gai Iassanã Martins Olívia de Andrade Soares Wagner Ferraz

::1

:: Como perverter os retratos psicológicos, produzir relatos-rizoma e preidiotizar e prepensar e poscriar e pospensar e posfugir da idiotia na idiotia?2 :: Como perverter a marca da idiotia, produzir relatos em rizoma e potencializar espaços de fuga do déficit no déficit? :: Como, na efêmera contemporaneidade, compor fotocartografias que não emudeçam corpos, pois que mostrem corpos vivos e que se compõem? :: Como, na educação, implodir sensações – na forma de perceptos e afectos – e assumir a fabulação como o prumo da produção de si – pró-Corazza?3 :: Como fotocartografar pensamento, fazendo um convite à escrita, à leitura, à vida disparadora – golpe a Nietzsche?4 :: Como produzir Combinação de pontos que, no Alfabeto Braille, corresponde à letra G. Um convite à idiotia e à procrastinação. 2 Proposições apresentadas aos alunos de graduação em formação em disciplinas ministradas por Daniele Noal Gai – Faculdade de Educação Altamira FAEAtm/UFPA e Faculdade de Educação FACED/UFRGS. 3 CORAZZA, 2011 e 2011a. 4 NIETZSCHE, 2006. 1

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outros conceitos de coisas quaisquer em disciplinas de graduação – como Psicologia da Educação I e II –, em intervenções pedagógicas e necessidades educativas especiais, em jogo e educação, acoplados/junto a alunos de Licenciatura em formação?5 :: Como ser ignorante? :: Como fazer um convite à idiotia? Quer-se a fotocartografia como dispositivo de escrileitura e [im]possível produção de conceitos outros de idiotia!:: :: :: Pró-põe-se6 :: fotocartografar idiotas idiotismos. Olhar e ver. Olhar e olhar. Olhar quem nos vê e olha. Didi-huberman7 subscreve as imagens que veem e olham. Olhar quem captura e olha. Sentir quem nos sente e olha. Odiar quem nos enfrenta e olha. Enfrentar quem nos odeia e olha. Horrorizar quem nos enfrenta e olha. Deleitar com quem encanta e olha. Encantar com o deleite de quem deleita e olha. Apaixonar por quem encanta e olha. Desgostar de quem apaixona e olha. Contaminar quem contagia e olha. Contagiar quem contamina e olha. Seduzir quem desgosta e olha. Inscrever quem olha. Escrever acerca de quem olha. Ser escrito por quem olha. Ler sobre quem olha. Ler aquilo que escreve aquele que olha. Perder e achar e olhar quem se perde para encontrar e olhar. Parar para parar e olhar quem parado, andando olha. Contemplar quem nos desvirtua e olha. Disforme, olha e vê. Riscar sob o olho, sob a mão e sobre o papel, sobre quem olha. Amorfo, risca, pinta, escreve e olha. Atrasado, para e olha. Atrasar ao ritmo de quem olha. Atrasar quem olha. Fascinar quem olha. Fotocartografar. Num elã vital8. Impulso? Granada! Implodir perceptos e afectos :: :: Querem-se outros percursos a fim de providenciar outros conceitos de idiotia (espaços de fuga, brechas de experimentação, modos de pensar o pensamento, vias de produção de si) para aqueles que carregam a remarca da idiotia. Retrato escolar? Álbum escolar? Fotocartografias RODRIGUES, 2011. A[ula]temporal. Aula soco. Aula sopro. Aula lufada. Aula atelier. Aula [in]justa. Blocos de aulas ministradas com alunos de Licenciatura em formação. Sem um tempo, mas que se propôs no passado [logo ali, 2011] e no que se vive [2012]. Escrileituras, fotocartografias, arte de mãos que seguem passos de Transfiguração de Manoel de Barros (2010, p. 251). Idiotismo em dobras. 7 DIDI-HUBERMAN, 1998. 8 BERGSON, 2005: é fluxo de invenção, fluxo de criação, elaboração contínua do absolutamente novo. 5 6

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escolares? Brechas de experimentação? Espaços de fuga da idiotia na idiotia? [Im]possíveis de corpos mexeriqueiros que não param? Pretendem-se experimentações fotocartográficas junto a corpos que se compõem na efemeridade contemporânea. Intuem-se convidar à fotografia sujeitos que experimentam o fora para ir à forra. Colocar para fora aquilo que está fora/dentro. Colocar para dentro aquilo que está dentro/fora. Colocar. Disparar. Delirar. Botar. Pôr. Ovo do ovo. Quem veio antes: o pai, a mãe, o filho, a galinha, o idiota?9 Colocar o fora do dentro/fora. Arrisco dizer: tornar visível aquilo que não é, e pensável o que não é, pró-Deleuze10. Extrair outros tipos de vidas possíveis. Inventar idiomas. Dar a conhecer os [im]possíveis de vidas-vividas. Ir contra. Sair na contramão. Sem rodeios. Sem reviravoltas. Vomitar em léxicos intensos. Escrachar. Verter. Exprimir. Espremer. Tanto em visualidades quanto em linhas de escrita, linhas de fascínio, de delírio. Que se borram, tornando o mundo imensidão. :: @Manoel_debarros: Bernardo já estava uma árvore quando eu o conheci. Passarinhos já construíam casas na palha do seu chapéu. Brisas carregavam borboletas para o seu paletó. E os cachorros usavam fazer de poste as suas pernas. Quando estávamos todos acostumados com aquele bernardo-árvore Ele bateu asas e voou. Virou passarinho. Foi para o meio do cerrado ser um arãquã. Sempre ele dizia que o seu maior sonho era ser um arãquã para compor o amanhecer. Um grilo é mais importante que um navio. (Isso do ponto de vista dos grilos) 9

DELEUZE, 2010. DELEUZE, 2007.

10

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Fotocartografia produzida por: @Lizi_B.Kersting

“Li muitas vezes o texto (...) todas as nossas deslinhas ou descompassos quanto a qualquer coisa que deveria ser uma aula. [...] Escrita sem cabimento, sem ponta, sem começo, mas com um tanto de meio, um tanto de espaço que mexem! (...) é muito inspirador, cheio de pontos de fomentação de algo que não parece certo ou comum... lindo!”

Fotocartografia produzida por: @Iaiá_Martins

“Somos argilas que se moldam, que com o tempo endurecem, até que aparece alguém e nos deixa respingar um pingo de água, oferecendo-nos a possibilidade de modificação, de mutação de ideias e maneiras de agir. O caos, a vontade de mudar, a vontade de chorar, a vontade de brigar, a vontade de provocar, a vontade de poetizar. Bom, nem sei mais!!! A poesia nos permite, sonhar, mas o tempo nos faz apressar...”

:: Corpos informes. Corpos cotolengos. Corpos feios. Corpos estranhos. Corpos disformes. Corpos tortos. Corpos mancos. Corpos deficientes. Corpos esdrúxulos. Corpos mongoloides. Corpos coxos. Corpos leprosos. Corpos esquizofrênicos. Corpos loucos. Corpos idiotas. ªcorpos. Corpos sem corpos no corpo da idiotia, na [in]corporação, [des]corporificação, corporalidade, no agenciamento de uma dita falta de corpos que produzem a idiotização da/na idiotia. “Sem boca. Sem língua. Sem dentes. Sem laringe. Sem esôfago. Sem estômago. Sem ventre. Sem ânus”11 . Toda uma vida não orgânica, pois o organismo não é a vida; ele a aprisiona. :: Provocar sensíveis. Confabular sensíveis. Produzir sensíveis. Contaminar lepra. Contaminar idiotia. Contaminar déficit. Contaminações em rizoma. Sensação de contágio na produção de si (des)idio11

DELEUZE, 2007, p. 52.

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tizado. Um si consigo sensível no corpo da idiotia, no corpo idiotizado. Um corpo de sensação, um devir, um estado de corpo. Um Corpo sem órgãos. CsO: “De todo modo você tem um (ou vários), não porque ele pré-exista, ou seja, dado inteiramente feito – se bem que sob certos aspectos ele pré-exista – mas de todo modo você faz um, não pode desejar sem fazê-lo – e ele espera por você ”12. :: Pensar corpos vivos cintilantes dançantes borbulhantes pulsantes inventivos – que não cessam. Corpos que se esgotam e que se compõem. Devir-criança. Infâncias crianceiras. Instantes juvenis. Adolescências performáticas. Adultez prospectiva. Idiotez. Velhice: cabelos roxos. Idiotia. Doidos. Idiotas. Almas vãs. Enlouquecidos. Gargalhantes. Andantes. Sós. Nós. Escarrentos. Vociferantes. Vidas que se compõem. Vidas, artes. Vibráteis. Reentrantes. Recursivos. Inertes. Vidas-artes. Vida como arte. Corpos vivos compondo artes. Corpos artísticos, agenciadores de vidas. Artisteiros. Idiotísticos. Artistados pelo déficit. Artistados pelo sensível da idiotia. Idiotismo potente/ pensante/sensível? :: E como compor-se-rabo-de-lagartixa em uma sociedade catatônica? E como compor-se-rabo-de-lagartixa em uma educação catatônica? E como compor-se-rabo-de-lagartixa em uma escola catatônica? E como compor-se-rabo-de-lagartixa em uma vida catatônica? E como comporse-rabo-de-lagartixa dentro da remarca da idiotia?13 Com vazamento de corpos? Com espaços de fuga? Avaliando graus de potência em contrapartida a graus de incapacidade e déficit? Com mudança de perspectiva? Com outros dispositivos? Com armas fotográficas? Com almas fotográficas? Com almas armadas? Com complacência? Com furor? Com diligências? Com força poética? Com franqueza? Com rigor? Com uma pedagogia idiotizante? Com uma pedagogia rabode-lagartixa? Com resistência pedagógica? Com mudança política? Com força artístico-filosófica? Com dispositivos de conversação? Com máquinas de guerra? Com outros modos de fotocartografar? 12 13

DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 09. Proposição inventada considerando estudos em Psicologia da Educação, sobremaneira à poesia de Manoel de Barros (estudos de disciplinas de graduação).

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Com outras impressões de vida? Com conceitos amorfos? Como um corpo-rabo-de-lagartixa-idiotizado-pelo-déficit encontra espaços de fuga da idiotia que são, ao mesmo tempo, potência para diferenciar? Corpo-potência enrabado como lagartixa sem rabo... Tem algo mais idiota? Imagens que compõem o déficit no caos da idiotia. Produção de corpos idiopotentes para a vida artistizada. “Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros de infância”14. :: @Manoel_debarros:

Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de um primal deixe um termo erudito. Aplique na aridez intumescências. Encoste um cago ao sublime. E no solene um pênis sujo.15 :: Portanto – e contudo: Como produzir para si um CsO? Em tempo e ao encontro: Como compor-se rabo-de-lagartixa? Porém e assim seja: Como compor-se carrapato, compor-se piolho, desterritorializarse? Sobretudo e não obstante disso: Como produzir para si um corpo mexeriqueiro que se compõe, que vaza e não para? “É um exercício, uma experimentação inevitável, já feita no momento em que você a empreende, não ainda efetuada se você não a começou. Não é tranquilizador, porque você pode falhar. Ou às vezes pode ser aterrorizante, conduzi-lo à morte”16. :: Um corpo de fuga, sem órgãos, sem deficiência da eficiência, sem imagem definida. Um estado, um porvir, um vir a ser; uma atualização que se dá na fuga do que está em vigência. Um deixar de ser, deixar o local, deixar o corpo organizado constantemente para desordenar, desposicionar, desacomodar e atropelar um corpo-forma para atravessar, muitas vezes, os campos de vazamento de potência, potencializando a vida-corpo-desorganizado e que se reorganiza o tempo todo através dos disparos que indicam diferentes estados e modos de vir a ser si BARROS, 2008a, p. XIV. BARROS, 1993, p. 21. 16 DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 09. 14 15

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mesmo, de sentir um corpo em um estado de corpo. “O corpo não tem, portanto, órgãos, mas limites ou níveis. De modo que a sensação não é qualitativa e qualificada, ela possui apenas uma realidade intensiva que não determina mais dados representativos, mas variações alotrópicas. A sensação é vibração ”17. :: Quer-se privilegiar o poético, provocar sensações, na forma de perceptos e afectos, e assumir a fabulação como dispositivo de vida, assumir a fabulação como produção de si. Quer-se, sim, o patético do poético, que empurra para fora! Empurra para fora do buraco. Andar na superfície de tetos requer forças18; patas e orelhas e olhos e bocas e pernas e barrigas e línguas e rabos. Enfim, exige um corpo, um corpo sem órgãos, um corpo sem formas, simplesmente um corpo!? Um corpo de si, um corpo ético-estético, um corpo do fora... Fora do tudo, fora/dentro do idiotismo, em torno do corpo da idiotia, da estética de si, da vida-arte, da dança que produz o CsO na fuga dos engavetamentos que publicam e oficializam os modos de viver, de aprender, de mover... Em fuga, artistam-se como resistência à vida que tentam encapsular. Um corpo em desespero. “‘O corpo é aquele que não aguenta mais.’ É uma definição do corpo. O que é o corpo? É aquele que não aguenta mais. Como assim? O que será que o corpo não aguenta mais? O corpo não aguenta mais tudo aquilo que o coage, por fora e por dentro ”19. :: Tornar visível. Tornar pensável. Sair da contemplação. Não extrair perfil ideal. Privilegiar e elevar perfis no plural, na variação, na multiplicidade. Visualizar as nuances. Dar a ver. Dar a falar. Dar a comentar. Provocar sensações. Evitar mesmidades pedagógicas. Evitar sumidades pedagógicas. Evitar ideais de instruído. Evitar prognósticos. DELEUZE, 2007, p. 51. WIKIPÉDIA, 2011: Os geconídeos podem subir paredes – inclusive de vidro – e até andar na superfície de tetos graças às Forças de Van der Waals estabelecidas pelas cerdas existentes nas suas patas. Em físico-química, uma Força de Van der Waals (ou interação de Van der Waals) é a soma de todas as forças atrativas ou repulsivas, que não sejam forças devidas a ligações covalentes entre moléculas (ou entre partes da mesma molécula) ou forças devido à interação eletrostática de íons. 19 PELBART, 2010, p. 62. 17 18

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Evitar posologias. Evitar prescrições. Dar a ver o fora do dentro. Dar a ver o dentro do dentro. Dar a ver o fora do fora. Trata-se de devires. Trata-se de transmutações. Trata-se de devires e transmutações. Devir outros. Um devir outrem que desconfia, que observa, à espreita, que entra e sai procurando um momento exato para que possa respirar, que provoca aquele que anseia assumir-se em seus devires20. Devires ou deveres? Artistar, resistir... Artistar-resistir... Arte-estar-ree-existir... Desistir? “Por fim, talvez haja algo na extorsão da vida que deve vir à tona para que essa vida possa aparecer diferentemente. Algo deve ser esgotado, como pressentiu Deleuze, [...] para que um outro jogo seja pensável”21. :: Não à filiação, não à imparcialidade, não às amarguras, não ao ressentimento, pois que há insinuação.

Cocemo-nos :: O Que Pode Um Corpo?22 O Que Podem Corpos Que Não Param Vazam e Se Compõem? O Que Pode uma Criança Criançando ?23 O Que Pode Um Pensamento Pensando? Corpos Idiotas em seus Idiotismos, o que Podem? Que Feiúras Gozem Ironias! Que Ironias Gozem Silêncios! Que Visualidades Materializem Sensações. Que Fotografias Gritem Acontecimentos. Que Impressões Vaporizem Odores. Que Efemeridades Sejam Clicadas. Que Gargalhadas Contagiem Quem Vê e Se Olha.



::

24

SOUZA, 2011a. PELBART, 2010. 22 SPINOZA, 2009. 23 KOHAN, 2010. 24 BISPO, 2011. 20 21

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Sugere-se atenção a corpos severos. Sugere-se atenção a corpos com idiotismo severo. Sugere-se olhar a severidade de corpos disformes. Sugere-se pensar espaços escolares para outros corpos, para outras carnes. Sugere-se a descarnação dos corpos, tal qual as obras de Bacon. Descarnar o severo e dar a ver e dar a pensar e dar a remapear e dar a recartografar... A vida... Uma vida...25 :: Que cada um crie seus conceitos. Que cada um crie suas imagens. Que cada um fotografe. Que cada um faça, depois reconfigure ou refaça, mas faça. Que cada um se inscreva. Que cada um se manifeste. Que cada um se componha. Que cada um mostre-se. Que cada um narre-se. Que cada um viva-se. Que cada um seja paradoxal, clandestino. Que cada um deslimite-se sem palavras. Quicadum artiste-se no corpo de fuga que convida a viver o que se apresenta nos instantes de vida. :: @Manoel_debarros:

Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.26 :: O retrato escolar pode remeter a múltiplos contextos, porém o texto produzido sobre ele é que delimitará os primeiros sentidos possíveis? A fotografia pode imprimir corpos? E o fluxo narrativo, a escrileitura, pode implodir sensações em perceptos e afectos? Um convite a estabelecer outras relações com a fotografia, situar-se na narração, além de convidar a participar como tríade tripé tribo trevo encruzilhada? É algo que vai além da simples função de mostrar retratos, produzir fotografias, selecionar imagens? As relações entre imagens e textos não são discursos que se colocam uns sobre os outros? São interconexões que falam de “conversas com”? De conversações? De arte escritura leitura texto? De experimentação artístico-filosófica? Encontros constitutivos?



PELBART, 2010, p. 09: “uma vida, como diz Deleuze, é a vida pensada como gênese, como virtualidade, como diferença, como invenção de formas, como potência impessoal”. 26 BARROS, 1993, p. 11. 25

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O inefável posto em relevo? O que se considera difícil expor em palavras, ali? O que escapa aos olhos, que foge da linguagem inteligível, escriturado? Tal Manoel de Barros e suas insignificâncias poemadas? Sem-vergonhas-inventivas? Sem-vergonhas-investigativas? Fotografias em relevo? Cartografias em relevo? Narrativas em cores colorantes? Fluxos de imagens e textos e escritas e fluxos de sensíveis? Fluxos de lugares, não-lugares, idiotismos? Só fluxos, nada de estada, de sentar pé no chão; é sempre um “qualquer coisa” de andante que quase voa. :: Uma escrita em relevo que tenha relevância para uns ou nada para ninguém. Que releve e revele espaços de forra: tudo o que está fora/dentro e tudo o que está dentro/fora. Escrita que dobre. Dobra de Deleuze. Escritores. Dobradores27. Escrita que molecular reverbere. Fabulação criadora – o Riso, de Bergson?28. Provocar a anestesia da sensação e criar um Arthur Bispo do Rosário para si. Inventar mentiras e suportar muito poucas verdades, tal sugeriria Manoel de Barros. As artes mostram vias. Trazem rarefação. Suporta-se o insuportável. A insuportabilidade do tédio. A insuportabilidade de algumas pedagogias. O insuportável do dito linear, cronologicamente significante. A insuportabilidade de uma vida que não se vive, que se esvai ou se fixa. Uma estética de existir para suportar não possibilidades dadas de fugas, mas criações para resistir ao existir pré-estabelecido. :: Criam-se blocos de sensações. Criam-se blocos de movimentos. Ir ao caos, voltar e sobreviver a ele sendo outra coisa, outra gente, outro idiota vivendo de outra maneira. Um idiota idiotizando. Um idiota em idiotismo. Diferenciar constantemente. Esvaziar-se de toda erudição, encher-se de ignorâncias. Esvaziar-se de excessos, entupir-se de vazio. Capturar forças. Desequilibrar. Resistir e criar novas afectações. Cartografar linhas de fuga via linhas de morte. Buscar a perdição, não a salvação. Escapar pela ignorância. Na desterritorialização, implodir modos de saída dos modos identitários. “Preferir a diferença à identidade. [...] Estimular a invenção em vez da revelação. A criação 27 28

DELEUZE, 2009, p. 11. BERGSON, 2007.

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em vez da descoberta. A fabricação de ‘coisas’ em vez da desrreificação. A ‘arte’ em vez da ‘ciência’. O artifício em vez do genuíno. O artefato em vez do fato”29. :: @Manoel_debarros: No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio.30 :: Nada de elogios. Nenhuma preferência. Sem competição. Nem pensar anteposição. Nem colar uma coisa na outra. Nada de legendas. Sem negação. Um pensamento por oximoros. Oximoros que diagnosticam [im]possíveis. Diagnósticos artísticos. Diagnósticos poéticos. Diagnósticos patéticos! Perceber as grandezas em potencial. O déficit como potência. Déficit em potencial. Abismar loucuras catalogadas. Bem-querer-pró-loucuras-rabo-de-lagartixa. Atençãorabo-de-lagartixa: “Lagartixas piscam para as moscas antes de havêlas” 31 . Uma parca atenção à Obra. Um-sem-atenção ao visto: “Isto não é um cachimbo ”32. “Isto não é um idiota” 33. “No sonho havia uma rampa mole, o túnel e uma lagartixa de rabo cortado”34 . “Fui agraciado de idiota pela maioria das autoridades na entrega do prêmio. Pelo que CORAZZA, 2003, p. 10. BARROS, 1993, p. 15. 31 BARROS, 2010, p. 342. 32 FOUCAULT, 1988. 33 “E estava assinalado pela palavra isto. É preciso, portanto, admitir entre a figura e o texto toda uma série de cruzamentos; ou, antes, de um ao outro, ataques lançados, flechas atiradas contra o alvo adverso, trabalhos que solapam e destroem, golpes de lança e feridas, uma batalha” (FOUCAULT, 1988, p. 29). 34 BARROS, 2010, p. 172. 29 30

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fiquei um tanto soberbo. E a glória entronizou-se para sempre em minha existência ”35. :: [...] produtor e consumidor são dois sistemas essencialmente separados. A obra para um é o termo; para outro, a origem de desenvolvimentos que podem ser tão estranhos entre si quanto quisermos. [...] Podemos considerar apenas a relação da obra com seu produtor, ou a relação da obra com aquele que é modificado por ela, uma vez pronta. A ação do primeiro e a reação do segundo nunca podem ser confundidas. As ideias que ambos fazem da obra são incompatíveis.36 ::

Referências BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005. _____. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BARROS, Manoel de. O livro das ignorãnças. Rio de Janeiro: Record, 1993. _____. Memórias inventadas: segunda infância. São Paulo: editora Planeta do Brasil, 2008a. _____. Memórias inventadas: terceira infância. São Paulo: editora Planeta do Brasil, 2008b. _____. Poesias Completas. São Paulo: Leya, 2010. BISPO, do Rosário. Obras de Arthur Bispo do Rosário. Museu Bispo do Rosário. Rio de Janeiro, 2011. CORAZZA, Sandra. Notas. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de notas 1: projeto, notas e ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. _____. Caóides. In: MONTEIRO, Silas Borges (Org.). Caderno de notas 2: rastros de escrileituras. Canela, RS: UFRGS, 2011a. CORAZZA, Sandra; TADEU, Tomaz. Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007. 35 36

Ibidem, 2010, p. 474. VALÉRY, 1999, p.183.

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DELEUZE, Gilles. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Editora 34, 2010. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. v. 3. São Paulo: Ed. 34, 1996. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. KOHAN, Walter Omar. Apontamentos filosóficos para uma (nova) política e uma (também nova) educação da infância. Disponível em: . Acesso em: jul. 2010. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. PELBART, Peter Pál. Biopolítica. Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2011. RODRIGUES, Carla Gonçalves. O dito e o não-dito da formação de professores nesta contemporaneidade. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de notas 1: projeto, notas e ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. SOUZA, Dóris Helena de. Conversações: um convite ao pensamento. In: MONTEIRO, Silas Borges (Org.). Caderno de notas 2: rastros de escrileituras. Canela: UFRGS, 2011a. SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. VALÉRY, Paul. Primeira aula do curso de poética. In: Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999. WIKIPÉDIA. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2011.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

UM MÉTODO: (des)Educação Musical Eduardo Guedes Pacheco

(Des)Educação Musical é a vontade de colocar em xeque certos desconfortos. Aqueles produzidos por forças que negam a presença da arte dentro do contexto educacional, excluindo o exercício das suas principais forças, entre elas, a criação. É uma crítica ao cenário onde a música é escolhida para compor as propostas curriculares. No entanto, esta crítica não nasce e não se movimenta pela denúncia: não é desejo apresentar culpados. O caminho escolhido é o da criação. Criar um método que, por intermédio de suas escolhas, provoque as situações estabelecidas e questione os lugares estabilizados ao propor a novidade para aquilo que é entendido como tranquilo. E para isso cria. Inventa. E o faz por meio do prazer proporcionado pelo encontro com o inédito e pela paixão do autor que envolve a música e a vontade de compartilhar com outras pessoas seus desejos de tocar, cantar e compor. Contudo, a opção por apresentar um prefixo “des” à frente de uma palavra tão cara às relações sociais nesta contemporaneidade, pode provocar certo desconforto e, por isso mesmo, merecedora de atenção. O termo (des)educação pertence a um conjunto de palavras designadas pelo poeta Manoel de Barros1 como “palavras da fonte”. Têm elas como característica exercer maior simpatia pela desordem das falas infantis do que pelas ordens gramaticais. Diferentes das palavras de tanque, 1

BARROS, 2003.

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que são estagnadas, estanques e acostumadas, as palavras que vêm da fonte possuem a leveza e a agilidade de não se acomodar com sentidos e informações estabelecidas. Buscam sempre novas cores, novas texturas e, como crianças, estão habituadas a inventar sobre a vida. Palavras da fonte também podem ser chamadas de palavras curiosas. Suas presenças não estabelecem uma explicação. Pelo contrário, sua aparição é a provocação para a busca de lugares desconhecidos, é o convite para trilhar caminhos ainda não percorridos e lançar olhares para o inusitado, tendo a atenção como principal guia desta caminhada. Aqui, (des)educar encontra uma fonte para a possibilidade de criação. Busca, neste olhar atento e curioso, o que é da ordem do “desprezível” na música. Por exemplo: numa escala maior, o quinto grau, ou seja, a dominante tem a função de, além de ajudar a definir a tonalidade, servir como um trajeto seguro para que a tônica possa soar novamente. (Des) educar é tirar, por meio da atenção e da curiosidade, de um conjunto de notas suas qualidades primeiras e inventar lugares onde as relações dos sons passam a ser um (des)objeto da música. Ou seja, todas as forças que garantem a sua personalidade possam se esvair para dar espaço a que outras intensidades ali se instalem e que essas sonoridades não possam mais ser identificadas, unicamente, pelo que antes soavam. Também é característica de um (des)objeto estar sujo de todas as coisas que o envolvem. Com um (des)objeto musical não é diferente. Uma sonoridade desobjetada nunca é só uma sonoridade: ela carrega consigo esguichos de toda a vida em que está inserida, não sendo possível que se expresse sem as marcas dessas relações. No caminho inverso acontece o mesmo. Por sua vez, a relação com a vida é alimento e não uma fonte de esvaziamento das relações com a arte. *** Apresento o pensamento de Paul Valéry para compor um método da (Des)Educação Musical: “Método faz pensar em alguma ordem muito bem definida de operações” 2. É bem verdade que, em seguida, o autor expressa seu descontentamento com o sentido que essa palavra carrega. Para a elaboração desse fragmento de texto, atenho-me à 2

VALÉRY, 1998.

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frase aqui expressa, ou seja, a indicação de que a constituição de um método acontece pela organização rígida dos passos a serem seguidos para que um objetivo seja alcançado. Bastante divulgada nos meios educacionais, a concepção de método que permeia a elaboração de trabalhos acadêmicos se caracteriza por um caminho a ser seguido para que se possa alcançar um fim. Com isso, é muito comum que os métodos dedicados a ensinar um instrumento musical compartilhem dessa concepção, ou seja, apresentar uma via organizada através de passos a serem seguidos com a intenção de aprender a tocar ou, ainda, dominar uma técnica. Por exemplo: propostas dedicadas a estudar o contraponto (técnica de composição musical). Esses traços ajudam a definir o Método da (Des)Educação musical. Por outro lado, fazem-no pela distância existente entre essa proposta e os métodos convencionais. Esse método caracteriza-se pela vontade de elaboração de novas relações entre música e educação. Para buscar essas novas relações, sendo mais importante que a meta porque carrega consigo a própria meta. Assim, não é com os olhos voltados para o futuro que realizo esta escritura. A aposta não se dá pela esperança de que as indicações feitas possam garantir o aprendizado de qualquer pessoa que realize as tarefas propostas. A sua realização é a própria empreitada, a busca pela experimentação e criação de diferentes possibilidades de exercitar a produção de pensamento em música – que no contexto educacional não acontece pela busca de um fim. O que se pretende é colocar em ação atos de pensamentos que são a própria criação em movimento. Também não é um método feito nos moldes daqueles elaborados para facilitar o aprendizado das pessoas no que diz respeito a aprender um instrumento musical ou uma técnica de composição. Não estou aqui escrevendo uma maneira de abrandar o encontro com essa expressão artística, tornando mais amena a relação entre quem deseja ensinar e quem deseja aprender música, ou mesmo propondo formas de como a música pode fazer parte do contexto escolar utilizando a aplicação de atividades didáticas pré-organizadas em um caderno ou cartilha de apoio pedagógico. Pelo contrário, entendo que as facilidades3 não contribuem para a produção de pensamento, para 3

BARBOSA, 2007.

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a criação. Geralmente, tais métodos elegem para a sua realização um caminho reto, designando uma via aonde não se quer chegar. O objetivo a ser alcançado age de tal forma a afastar outros lugares no qual o trabalho realizado se coloca a serviço de uma generalidade, de uma moralidade, abdicando-se do que não se conhece de si mesmo e, neste caso, da educação e da música. O Método de (Des)Educação Musical é feito para o músico, aquele que escolheu essa arte para realizar os cortes no caos e estabelecer as suas formas de pensar o mundo. É aquele que busca nos sons, organizados ou desorganizados, possibilidades de invenção e novidade. Que tem na segunda menor o mesmo prazer de realizar um arpejo de terça maior. Que encontra felicidade no descolamento das naturalidades dos ritmos convencionais. Que não consegue perceber a produção artística fora do contexto da vida4. Sua vontade é de afastar a música dos entendimentos que a vestem com as cores da moral, impondo valores e condutas, além de buscar na arte o remédio para os desviados de bons comportamentos. Conduta que prega a ordem, a obediência e a imitação como condição para a formação escolar. Escolha que faz da música um instrumento de formatação e que nega aos que desejam aprender sobre música a possibilidade de reinvenção do(s) seu(s) eu(s), pois tais escolhas pautam suas relações com o fazer musical calcado na ideia que aprender sobre é buscar a revelação de algo que deve ser desvelado. O músico inconformado: com a banalização da arte nos espaços escolares, com as forças que tratam a obra como móveis de decoração, objetos utilizados para enfeitar os espaços e que compõem o dia a dia, simples utensílios de enfeite que têm a intenção de amenizar os traçados rudes dos espaços onde estão localizados. Com os conceitos de música que “a tratam como um simples ornamento que permite preencher as noites vazias com idas a concertos ou óperas... ou quando ficamos em casa, com a ajuda dos aparelhos de som, ou para enriquecer o silêncio criado pela solidão”5. Ou ainda, com aqueles que fazem da música o palanque para seus discursos professorais, explicativos e ordenadores. Que excluem toda 4 5

CAGE, 2006. HARNONCOURT, 1988, p. 14.

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a possibilidade da diferença ao privilegiar respostas às perguntas – facilitação da problematização, acomodação ao bem-estar impulsionador e produtivo do desconforto. Inquieto! Com todos os sons que ouve: o ranger das portas, o barulho dos carros, a voz muda da multidão, o ar em movimento, o gesto produzido pelo silêncio. Com as trilhas sonoras dos hospitais, dos presídios, das secretarias de estado, dos esgotos (casas de outros), das favelas, dos edifícios, das salas de aula, dos currículos, dos planos de aula e ementas da educação musical. Até com as trilhas dos filmes de cinema. Com as músicas do rádio, televisão, internet, salas de concerto, rodas nas esquinas, fitas magnéticas, iPods. Com cantores líricos, repentistas, guitarristas, tocadores de serrote ou de chaleiras. Criador! Que cria por necessidade de pensar, por vontade incontrolável de expressar, de reorganizar cenários, paisagens, quadros, ações realizadas pelo movimento dos sons. Que tem no bloco de sensações6 a sua forma de problematizar a vida ao mesmo em tempo que a alimenta. Instrumentista! Que mantém forte relação com o mundo teclado dos pianos, com a força física e sonora dos contrabaixos, com o apelo sensual dos violoncelos. Que tem desconforto com o autoritarismo dos violinos e simpatia pelo descaso atribuído às violas. Admiração pelas guitarras e respeito por saxofones, clarinetes, flautas, oboés... Mas tem sua paixão, seu maior prazer na vibração das peles dos tambores, nos seus ritmos, nas maneiras de tocar suas histórias, conjuntos, diversidade, geografias, timbres, combinações, religiões. Que escolheu o tambor como instrumento de sua expressão musical; entre seus intercessores, o mais forte, o mais presente. Suas vontades são dominadas pelas forças de querer estar ao lado de outros, pela busca de como viver juntos, tendo como principal desculpa para compartilhar música a vontade de criar um corte no caos. Com quem viver junto? Com todos que desejarem compartilhar suas paixões pela música e pela educação! O que quer? Experimentar ritmos, compor músicas, inventar formas de tocar. (Des)educar salas de aulas, projetos sociais, cursos de formação de professores. Invadir os tratados de didática e metodologias de aprendizado musical com a (Des) Educação Musical. Realizar suas vontades aos tempos proporcionados 6

DELEUZE; GUATTARI, 1992.

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pelas aulas de música nos diversos espaços em que esses encontros são realizados. Como quer realizar suas vontades? Com esse método, o da (Des)Educação Musical. O músico, como um dos personagens que atua na (Des)Educação Musical, aos olhos menos atentos pode ser confundido com o professor de música. Ambos ocupam espaços em comum e algumas situações podem fazer parecer que um é o outro. No entanto, a distância entre esses personagens é grande. O (des)educador não faz da música um instrumento de validação de sua autoridade e tampouco se acomoda à força autoritária que as linguagens podem exercer sobre as pessoas.7 Ele busca formas de burlar as ordens, enquanto o professor dedica sua energia à assimilação dessas ordens. Ainda que o professor tente se esconder atrás de entendimentos como a possibilidade de produzir ecos e ressonâncias no pensamento dos estudantes ao criar provocações que os coloquem em movimento, o personagem da (Des)Educação Musical não limita sua ação a preparar aulas para que os conhecimentos e informações provoquem deslocamentos a quem com ele participe de seus encontros musicais. Ao realizar seu trabalho, o (des)educador tenta não só desestabilizar seus alunos, mas também a si mesmo. O personagem busca se colocar em desconforto, em dissonância com suas próprias convicções. A provocação não se limita à dedicação exclusiva ao (des)educando. A aula da (Des)Educação Musical é criada para que o próprio (des)educador, ao término desse encontro, seja outro, assim como para aqueles que com ele compartilham das situações (des)educadoras. *** A música tem uma presença intensa na vida cotidiana do nosso tempo. É plausível afirmar que tal intensidade influencia as relações entre as pessoas e as obras musicais. Entendo que uma das características dessa situação se refere ao congelamento de sentidos atribuído a uma forma de pensamento: no mundo contemporâneo, temos música para vender, dormir, casar, cantar, protestar, cantar, desfilar, dançar, esperar, ouvir, acordar, fazer fila, marchar, aprender, punir, não ouvir, não ficar 7

DELEUZE; GUATTARI, 1997.

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sozinho... A partir dessa diversidade de situações, algumas perguntas ajudam a elaborar o método: é possível que novos sentidos possam ser criados para a música nas situações do nosso cotidiano? É possível que a busca de novos sentidos para a música se constituam num método? Tais problematizações ajudam a compor mais um traço do que deseja a (Des)Educação Musical: atribuir uma mais-valia aos sentidos já estabelecidos para a música e ampliar essa possibilidade aos espaços que tratam da música pelo viés educacional. Assim, os primeiros passos propostos por esse método se referem a encontrar formas de elaborar outras relações com o fazer musical e, por sua vez, elaborar novas possibilidades com os espaços que escolherem entender a música como principal alimento das situações onde o ensino e a aprendizagem são as principais forças presentes.

E como realizar essa tarefa? 1. Desconfiar das relações com a música pautadas por perguntas como: o que é música? 2. Dedicar atenção à música como obra de arte, manifestação no tempo que, diferente das outras formas de expressão artística, não se faz presente como corpo físico, mas que produz sensações por meio de sua atuação no tempo e no espaço. 3. Estabelecer, com as histórias das diversas músicas, uma relação que dedique atenção às singularidades dos acontecimentos, ao que não é contínuo, aos saltos, os acasos, o disperso que, convencionalmente, a história tradicional joga fora. 4. Desfazer-se dos julgamentos morais que atribuem às músicas valorações hierárquicas, estabelecendo parâmetros a partir de suas complexidades, tempo histórico, geografias e etnias. 5. Ouvir sem a pretensão de julgar: deixar que as obras possam chegar aos ouvidos de uma forma que o corpo inteiro compartilhe das sensações produzidas. 6. Procurar música onde, aparentemente, ela não existe. Produzir uma audição investigadora, inquieta, inconformada. 7. Afastar a passividade da audição: ouvir, fazendo dessa ação um ato criativo.

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8. Ampliar as possibilidades harmônicas para além das relações entre tônicas e dominantes, modos maiores e menores, tensão e repouso. 9. Pesquisar combinações entre texturas, timbres e intensidades mais amplas que a relação dialógica pautada por sons fortes e fracos, rápidos e lentos, longos e curtos. 10. Inventar perguntas: som e silêncio são entidades antagônicas? 11. Inventar problemas: ritmo e melodia são elementos díspares que nas suas singularidades compõem o fazer musical ou eles exercem entre si algum outro tipo de relação? Quais outros tipos de relação pode ser criada entre ritmo e melodia que não aquela que coloca o ritmo como um suporte de sustentação à melodia? 12. Ouvir o silêncio e perceber todos os seus movimentos, seus gestos. Atentar para como ocupa os espaços e que cores atribui aos sons quando com eles compõe as obras musicais. Ouvir as obras musicais do silêncio. 13. Inventar conceitos: ritmo é a capacidade de inventar brincadeiras com o tempo. 14. Inventar formas de tocar um instrumento. 15. Inventar formas de tocar nas coisas que não são instrumentos: bombonas de água mineral. 16. Inventar instrumentos: berimbau de três cordas. 17. Reinventar músicas: Sonata Alegro de Mozart para violão (tocado com arco de contrabaixo), berimbau de três cordas, multitambor de tubos de PVC e flautin. 18. Conhecer, de forma aprofundada, os métodos didáticos da educação musical de primeira e segunda gerações para poder não usá-los. 19. Estudar intensamente o maior número de propostas pedagógicas, didáticas e métodos voltados para o ensino da música para se afastar o máximo possível deles. 20. Ouvir a maior quantidade de música possível, das mais sofisticadas às mais simples, das mais distantes no tempo às últimas invenções, eruditas, populares, regionais, folclóricas, tonais, modais, cantadas, instrumentais, orquestrais, de bandas, duetos, solos, para que, ao final do método, outras músicas, novas músicas possam ser ouvidas sem as fronteiras dos estilos, das regiões, do tempo, das tonalidades e das formas.

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Referências BARBOSA, João Alexandre. A comédia intelectual de Paul Valéry. São Paulo: Iluminuras, 2007. BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. CAGE, John. O futuro da música. In: Escrito de artistas: anos 60/70 seleção e comentários. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix . O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992. _____. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v. 4. Trad. Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons: caminhos para uma nova compreensão musical. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

TRÊS PERCEPÇÕES SOBRE1 O TRÁGICO EM NIETZSCHE Deniz Alcione Nicolay

Para falar do Trágico em Nietzsche é preciso se debruçar sobre as raízes do pensamento pré-socrático sobre o sentido de physis e de zóe. É preciso apreciar os heróis titânicos de Ésquilo, se apiedar dos sofrimentos das personagens de Sófocles, se apaixonar pelas bacantes de Eurípedes. É preciso, ainda, estudar uma obra fundamental na formação do pensamento do jovem Nietzsche: O Mundo como Vontade e Representação, de Schopenhauer (1788-1860). E, é claro, ouvir vertiginosamente a música de Wagner (1813-1883). Porém, se isso ainda não for suficiente, se tudo continuar como antes, é melhor virar a página, ditar outro ritmo para a vida, como o ritmo dos tambores dionisíacos, por exemplo. Trata-se de ouvir com “[...] ouvidos novos para música nova”2; reescrever, com tinta multicor, o curriculum da vida; porém, “escreve com sangue, e aprenderás que o sangue é espírito”3 . Neste sentido, quero dizer que o Trágico, em Nietzsche, incorpora não apenas percepções do universo estético e Relato das oficinas realizadas durante o primeiro e o segundo semestres de 2011, na Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Cerro Largo/RS. As oficinas foram ministradas para acadêmicos das licenciaturas em Letras e Ciências, professores da rede pública municipal e público em geral. A proposta desta oficina segue as diretrizes e as orientações do projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida” (Edital Capes/Inep 038/2010 – Observatório da Educação). 2 NIETZSCHE, 2001, p. 11. 3 NIETZSCHE, 1986, p. 56. 1

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onírico da Arte, mas também uma forma de conceber a vida na sua expansão e/ou retração de potência. O fundamento do Trágico só tem sentido, então, quando “encarnado”, sentido como êxtase ou dor na matéria corpórea. Portanto, neste momento, sintam-se à vontade para interpelar este narrador: a voz é minha e é de todos, como convém ao coro trágico. O propósito desta oficina está em variar as formas de aprendizagem de um texto, estimular o gosto pela multiplicidade da Arte e, além disso, animar a paixão pela poesia dos grandes tragediógrafos gregos. Compreender o pensamento do jovem Nietzsche não é possível num curto espaço de tempo, pois ele não é um filósofo qualquer. Cada vez que o leio, encontro uma nova interpretação sobre algo que havia lido anos atrás. Isso torna sua obra filosófica inesgotável, já que está sempre aberta para um acervo de interpretações. Assim, tendo em vista o tempo disponível para a oficina, concentrar-nos-emos em alguns pontos de seu pensamento. Esta exposição se divide em dois momentos. No primeiro, apresento as linhas que guiam este trabalho, do projeto em evidência – “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida” –, inspiração para a oficina. No segundo, proponho a realização de atividades dinâmicas que enfatizam, sobretudo, a corporalidade presente, ou seja, um corpo que é individual, mas que recebe afecções, vibrações e sensações de uma aura coletiva. Imagino os antigos teatros de Dionísio, na Grécia do século VI a.C., durante a competição trágica que ocorria entre os poetas. O público manifestava seu voto (positivo ou negativo) em relação à apresentação da obra, de maneira muito convincente: urrando, vaiando, aplaudindo, cantarolando. Longe, assim, de um exercício crítico conceitual, porém próximo de uma linguagem fática, corporal. Isso quer dizer que, mesmo que vocês fiquem em silêncio durante esta oficina, os corpos falam por vocês. E, é claro, espero que se alegrem, animem este ambiente tradicionalmente regrado e moral4. Pensar o Trágico em Nietzsche é realizar um movimento de retorno, quiçá do Eterno Retorno do mesmo. Refiro-me ao universo espetacular da Tragédia Grega, seu tempo, seu lugar, pois nunca 4

As oficinas foram realizadas num espaço onde, por anos, funcionou um antigo seminário católico.

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mais o viveremos da mesma forma e sentido. Se a História fosse uma janela aberta para o presente, talvez pudéssemos perceber a atmosfera sofisticada e envolvente que o público grego vivia. No entanto, não temos a chave de tal janela. Temos, apenas, rascunhos clássicos que nos chegaram por obra de helenistas, quase todos expoentes do século XIX (e Nietzsche é um deles). Contudo, muitos detalhes permanecem desconhecidos. Da vasta obra de Sófocles5, por exemplo, nos chegaram apenas sete tragédias. É impossível reconstruir as dimensões de uma obra cuja riqueza transcendia o tablado da encenação, pois essa obra se avolumava na alma dos espectadores. Esse é o meu drama. Sobre a linguagem, então, a distância é maior: “(...) a tragédia grega será uma página escrita numa língua de que não temos dicionário”6. Por isso, o pensamento do jovem filósofo Nietzsche é extemporâneo e, antes de tudo, apaixonado pela ambiência estética do povo grego. O Trágico é o coração da obra desse filósofo. A aproximação de Nietzsche com o pensamento pré-socrático é evidente, tanto para se afastar da dialética socrática quanto para venerar o culto dionisíaco. Neste sentido, quero ilustrar tal afirmação com um fragmento de Heráclito: “A natureza ama ocultar-se” 7. O que há nele de tão interessante, de tão atraente, para esta oficina? Ora, além de possibilitar uma provável interpretação do fragmento, existem relações que podemos estabelecer com a noção de vida em Nietzsche. Por ele, percebemos que a physis agrega as concepções de “natureza” e “ocultamento”. O verbo “amar” é o elo entre o que está ausente e o que está presente no mundo das formas plenas. Contudo, esse mundo está em permanente movimento; não está pronto, nem dado e acabado. Ele exige de seu ator a possibilidade de intervenção, sem a qual não existe mudança. Na dinâmica das forças vitais, aquilo que está oculto também é objeto de afirmação; aliás, a própria vida tem seu lado “oculto”, uma vez que contém traços de autodestruição, de barbárie. Em suma, quero dizer que esse fragmento de Heráclito se aproxima da descrição nietzschiana do elemento dionisíaco, presente na sua obra inaugural O Nascimento da Tragédia. Dionísio é um deus presente Segundo historiadores, Sófocles compôs mais de 123 obras. ORTEGA Y GASSET, apud KERÉNYI, 2002, p. 271. 7 SCHÜLER, 2001, p. 49. 5 6

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ausente, enquanto Apolo é a representação de tudo que brilha. A sintonia me parece clara: é um simbolismo estético que independe da ação racional, pois tal sintonia acontece numa dinâmica própria de expansão e de retração (a physis aparece e não aparece). Neste sentido, é possível afirmar que o pensamento pré-socrático heraclitiano partilha de uma noção de vida cuja forma está presa à physis. Tal noção se mostra atemporal e indestrutível e o termo que expressa essa noção é “zoé ”8. Nas personagens das peças trágicas, sobretudo em Ésquilo, esta vida indestrutível é extremamente presente, basta observarmos o sofrimento do Prometeu Acorrentado. Aliás, é esse antigo tragediógrafo que inspira a noção de vida em Nietzsche. São as forças áureas e titânicas dos imortais da geração olímpica, aliadas às sensações musicais do coro, que inspiram o pensamento trágico do filósofo: “Qual força foi essa que libertou Prometeu de seu abutre e transformou o mito em veículo da sabedoria dionisíaca? A força hercúlea da música [...] ”9 . Essa é a fórmula que supera o sofrimento, que apresenta uma saída para o pessimismo schopenhauriano. Apesar de, na fase inicial de seu pensamento, Nietzsche afirmar que: “A visão trágica do mundo encontra-se apenas em Sófocles”10, ele propõe a existência de um pathos superior por meio dos heróis esquilianos. Assim, é coerente, neste momento, compor a tríade das palavraschave que pautam os trabalhos de nossa oficina: Arte Trágica, vida e pensamento. Antes, porém, é preciso reconhecer a dimensão e a importância de outro grande tragediógrafo: Eurípedes. Embora Nietzsche veja-o como o representante do socratismo na tragédia, é coerente encontrar no Penteu de Eurípedes a figura emblemática da dissolução dionisíaca. Aquele que nega Dionísio: “Não me ponhas a mão! Vai ser Baco”11, também é o corpo mortal que sofre com a manía do deus. Inimigo e vítima de Dionísio, caçado e esquartejado pelas mênades – entre as quais se achava sua própria mãe –, Penteu carrega no nome “o homem das dores ”12 ; é o seu destino de herói. A metáfora do rei feito em pedaços por sua progenitora é emblemática, uma vez KERÉNYI, 2002. NIETZSCHE, 1992, p. 71. 10 NIETZSCHE, 2006, p. 86-87. 11 EURÍPEDES, 1995, p. 67, v. 343. 12 KERÉNYI, 2002, p. 282. 8 9

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que tal acontecimento quebra a supremacia dos homens frente aos deuses. Isso me faz pensar que o tempo dos homens não é o mesmo dos deuses, e que o corpo humano é a matéria original do sofrimento trágico. Dionísio precisa do corpo de Penteu para se provar deus: “Tarde nos soubestes, quando devíeis não víeis”13 . Ele lembra que os velhos deuses não podem ser substituídos pelos novos heróis. A magia de seu culto, envolto em rituais místicos, não pode ser expulsa da esfera pública pelas religiões oficiais do Estado. Por isso faço a seguinte provocação: até que ponto somos fiéis ao nosso corpo, quando se trata das nossas paixões e das nossas vontades? Até que ponto nós vivemos entre Penteu e Dionísio nas esferas do mundo público e privado? Tal provocação pode ser expressa em forma de texto. É a primeira atividade que proponho: um exercício reflexivo sobre os padrões morais da sociedade, o que se mostra e o que se oculta, nas mensagens de texto, que partilhamos todos os dias. Podemos chamar esse exercício de 1ª Percepção Trágica. No entanto, a forma de expressá-la é absolutamente livre: poema, conto, performance, relato de experiência. Partilhem da escrita como uma forma híbrida de expressão, tal como o romance policial, na compreensão de Deleuze e Guattari em Mil Platôs14. Após, teremos um momento de exposição do texto criado à luz do efeito trágico desse instante presente-ausente [...]. O jogo das forças estéticas, contudo, é infinito dentro da atividade criadora. Tal atividade não admite cópia, falsificação de modelos pré-estabelecidos, mas sempre uma nova interpretação. Cabe, então, afirmar que: “[...] a tragédia só interessa na medida em que aponta para uma possibilidade criadora”15 . Tais forças são como fantasmas, de phantasia, elevam a alma ao movimento da percepção e da emoção por meio de imagens, palavras, gestos, provocando a produção do desejo. Nessa concepção, desejar é criar; e as tragédias gregas, para além de artefatos literários do período clássico, constituem expressões paradigmáticas de uma linguagem potencial, artifícios da interrelação do homem com a physis. Existe, portanto, na obra de Nietzsche, uma EURÍPEDES, 1995, p. 123, v. 1345. Trata-se do platô 8: “Três novelas ou ‘O que se passou’?” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 63). 15 CASANOVA, 2003, p. 8. 13 14

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forma de deslocamento da própria estética na Filosofia Moderna16. Isso faz com que fique distante da seguinte concepção: “O que caracteriza o homem é a vontade, e a própria razão nada mais é do que a perene regra do mesmo ” 17 . Talvez, ao invés de “jogo das forças estéticas”, possamos chamar de “jogo de pulsões”, uma vez que o próprio movimento vital não é senão uma forma de manifestação da pulsão originária. O deslocamento a que me refiro está implícito no conceito de Vontade, tal como concebido pela passagem anterior. Enquanto a geração de filósofos trágicos do século XIX na Alemanha enxerga apenas caracteres morais na psicologização da personagem, Nietzsche percebe a necessidade de exteriorizar as pulsões reprimidas, realizar um investimento do interior cuja consciência não é referência de estabilidade. Por isso, Apolo e Dionísio são manifestações estéticas da physis. Apesar de contraditórias, elas se complementam no projeto da metafísica do artista: “(...) pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente ”18 (grifos do autor). Contudo, essa “metafísica” não advém de uma postura imóvel diante do produto da Arte, mas da compreensão de seu elemento dionisíaco propriamente dito. Ora, a atmosfera de embriaguez, o pavor diante da possibilidade de dissolução absoluta, a cesura da consciência ocidental-cristã são instantes das metamorfoses desse elemento que, por hora, chamo de dionisíaco. Tais considerações remetem à possibilidade de realizarmos outra atividade da nossa oficina, ou seja, neste momento, trataremos da 2ª Percepção Trágica: diante de vocês está projetada a obra Transfiguração19, de Rafael Sanzio (1483-1520). Observem a tela e, de maneira intensiva, deixem que o interior pense por vocês e, desse modo, percebam os detalhes que compõem o todo da tela. Depois disso, transfigurem, numa forma de ação dramática, as sensações experimentadas. Mais uma vez, deixem que o corpo fale por vocês. (...) O que vejo na Transfiguração de Sanzio? Ora, vejo, na magnífica obra de Rafael, a “existência justificar-se eternamente”. Vejam toda a Refiro-me, sobretudo, aos conceitos de ‘Belo’ e ‘Sublime’, operados por Kant, Hegel, Schiller. 17 SCHILLER, 1991, p. 49. 18 NIETZSCHE, 1992, p. 47. 19 A data aproximada de criação da tela é entre os anos de 1518-1520. Talvez uma das últimas obras de Rafael. 16

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dor, todo o sofrimento que emana desta obra, mas também observem a “transfiguração” da cena. O princípio de individuação está em ação, demonstrando, de maneira estereotipada, como um corpo vivo se transforma no Belo da Arte. Por meio dessa tela, posso deduzir duas concepções em relação ao conceito de Vontade. Na primeira concepção, o destino da personagem me parece inevitável, uma vez que sua única alternativa é a aceitação de tal condição. Na segunda, vejo o elemento dionisíaco (a Vontade) se aproximando do princípio de individuação apolínea (a Representação). Nessa atividade eles não se refutam: ao contrário, estão em uma permanente doação de sentido. De acordo com essa interpretação, a diferença entre Nietzsche e Schopenhauer me parece evidente. Aliás, quero reforçar essa posição: “Trata-se de considerar sob esta perspectiva20, na existência humana21, o destino que pertence por essência à vontade em si mesma” (grifo do autor). Isso quer dizer que, em relação ao seu antecessor, Nietzsche procura uma alternativa para o niilismo intrínseco ao conceito de Vontade. Ele procura uma forma para “justificar” a vida e o sofrimento e vê na Arte tal possibilidade. Se a encontrou, eu não sei, mas talvez cada um deva encontrar, dentro de si, a raiz de nosso sofrimento. Li, dias atrás, a seguinte passagem, escrita por um filósofo nosso contemporâneo: A origem da tragédia que, sem encontrá-la, Nietzsche procurou, o senhor22 a descobriu; ela jazia, em plena luz, na raiz helênica do próprio termo: τραγoo23 significa, de fato, o “bode”, esse bode expiatório que multidões prontas para a carnificina expulsam, carregando-o com os pecados do mundo, os seus próprios, que é o inverso da imagem do Cordeiro de Deus. 24 SCHOPENHAUER, 2001, p. 325-326. Trata-se de uma passagem de O mundo como Vontade e Representação em que Schopenhauer comenta um desenho de Tischbein (17511828). Nesse desenho, segundo Schopenhauer, existem duas situações próximas: em uma delas, mães estão em desespero pela perda de seus filhos; em outra, ovelhas se ressentem porque tiveram os seus cordeiros roubados. O filósofo compara, então, a dor entre os seres e chega à conclusão de que o “sofrimento é o fundamento de toda vida”. Essa é a ‘perspectiva’ a que ele se refere (cf. supra). 21 SCHOPENHAUER, 2001, p. 326. 22 Refere-se a René Girard e sua obra. A passagem destacada é o discurso de recepção de Michel Serres em homenagem à posse de René Girard na Academia Francesa, em 2005. 23 Tradução: tragédia. 24 SERRES, 2011, p. 46. 20

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O sentido do Trágico, portanto, de acordo com essa passagem, está no “bode”. Acredito que, agora, estamos nos aproximando do grand finale de nossa oficina. Neste instante derradeiro, quero lhes provocar a imaginação, por meio do bode, claro. No entanto, devo lhes avisar: é provável que ele tenha mau cheiro, mas, por obséquio, não torçam o nariz. Proponho, então, outro exercício. Ele se constituirá em nossa 3ª Percepção Trágica: concordo que, depois de tudo que vivemos neste encontro, merecemos uma ópera. E, é claro, só pode ser uma ópera de Wagner, A cavalgada das Valquírias. Essa obra que foi composta em 1851 e orquestrada em meados de 1856, é parte integrante da grande ópera Die Walküre25. Minha proposta é que possamos ouvi-la em toda a sua extensão, de olhos fechados, e que façamos uma reflexão em torno do bode expiatório da Pedagogia e do currículo. O mesmo bode que nos acompanha, todos os dias, no interior das salas de aula e fora delas. Contudo, não entendam, com isso, uma forma de personalização dos sujeitos que nos cercam, na vida profissional ou pessoal. Refiro-me, inclusive, aos mecanismos-bode, ao discurso-bode, ao ambiente-bode, à política do bode expiatório. Até que ponto nós perpetuamos as violências das mobilidades sociais e das formas de sobrevivência? Parem, por um momento. Abram os olhos e olhem pela janela: aquele indigente, deitado na calçada, é um bode ou um Cordeiro de Deus? É disso que se trata. A forma de manifestação, como fizemos nos exercícios anteriores, é livre. A partir da ópera e da cena inusitada do indigente, que possivelmente Nietzsche chamaria de “décadent”, expressem suas sensações (por meio de desenho, pintura, narrativa ou, simplesmente, um comentário). (...) Ora, comecei a abordagem de uma forma e acabo concluindo de outra, quiçá de outra perspectiva em relação ao conceito de Trágico. Quero, no entanto, concluir (para me regenerar com Nietzsche) com uma de suas frases certeiras: “A última coisa que eu prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade” 26 .

Agradeço. 25 26

Tradução do alemão: A Valquíria. NIETZSCHE, 1995, p. 18.

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Referências CASANOVA, Marco Antonio. O instante extraordinário: vida, história e valor na obra de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Trad. Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. EURÍPEDES. Bacas. O mito de Dioniso. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Hucitec, 1995. GIRARD, René; SERRES, Michel. O trágico e a piedade. Trad. Margarita Maria Garcia Lamelo. São Paulo: Realizações editora, 2011. KERÉNYI, Carl. Dioniso. Imagem arquetípica da vida indestrutível. Trad. Ordep Trindade Serra. São Paulo: Odysseus, 2002. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva São Paulo: Círculo do Livro, 1986. ______. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ______. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. ______. O anticristo. Trad. Rubens Eduardo Frias São Paulo: Centauro, 2001. ______. Introdução à Tragédia de Sófocles. Trad. Ernani Chaves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. KERÉNYI, Carl. Dioniso. Imagem arquetípica da vida indestrutível. Trad. Ordep Trindade Serra. São Paulo: Odysseus, 2002. SCHILLER, Friedrich. Teoria da Tragédia. Trad. Anatol Rosenfeld. São Paulo: EPU, 1991. SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Trad. M. F. Sá Correia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

CORES, SABORES E TEXTURAS. Fantasias do corpo em cena Emília Carvalho Leitão Biato

Introdução “Afinal, que gosto o mundo tem?... ela viu a palavra ‘pimenta’ e pensou: ‘deve ter um gosto muito ardido1’ ”. O corpo cria gostos. Recria sabores. Fantasia como ato de criação. Sabemos da dificuldade em manter a posição aristotélica de que as coisas possuem modos, diante da sensibilidade estética hodierna em manter, também, a tábua categorial kantiana. É simplificação, mas parecem ser dois lados, ainda que não da mesma moeda. A conjunção do corpo e do alimento é uma experiência; talvez experimentar o corpo a partir de alimentos: um objetivo para a Oficina de Transcriação Fantasias em cores, sabores e texturas. Ela pôs em cena três campos: saúde, filosofia da diferença e educação. “Desver”2 os postulados da Medicina, sem desprezá-los, porém em busca de outro sentir deste encontro. Pois também se quer que o tema saúde chegue à escola, mas sob outra perspectiva, a de que todo mundo tem um corpo sem órgãos. Melhor, o “improdutivo” que “é produzido no lugar próprio, a seu tempo, na sua síntese conectiva, como a identidade do produzir e do produto”3 Laisy, estudante do quinto ano da Escola Paciana Torres de Santana. Manoel de Barros. 3 DELEUZE; GUATTARI, 1972; 2004. 1 2

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Logo, experiências do corpo são criação em movimento, ao modo de cada um. Em rompimento com os imperativos que permeiam a atenção à saúde individual e coletiva, acolhemos o valor criativo do próprio corpo.

1 Fantasias em cores, sabores e texturas Um corpo não pré-existe: é o que dele é feito. O encontro do alimento com o corpo pode ser acontecimento do que está fora do ordinário, oportunidade de criar um Corpo sem Órgãos (CsO). Para tal, procuramos refutar modelizações medicalizadoras, que se imbuem da tarefa de tratar de todos os movimentos improvisados do corpo, até mesmo do desejo de evitar a doença e de viver a vida. Ainda, rever procedimentos educacionais em saúde, com privilégio à fluidez criadora de cada participante, tomando-a em sua singularidade, numa provocação às invenções de novas formas de lidar com o corpo, movido pela ingestão ou apreensão sensível da alimentação. A saúde do corpo é promovida em ações múltiplas, inclusive educativas. São questionáveis, no entanto, as configurações que elas tomam: com impulsos domesticadores e de caráter ajustador, como sapatinhos de lótus4, discursam e empenham-se de forma moralista e imperativa. Os improvisos do corpo parecem destoantes e rebeldes, num script definidor de estilos de vida fixados e herméticos. A vida profunda que toca o homem e lhe permite artistar é tida como desvio, já que seus saberes valem menos do que o conhecimento científico dominado pelo educador da saúde5. A isso acrescenta-se discussão sobre os necessários rompimentos com o modelo biomédico, burocratizado e amarrado em procedimentos protocolares, sem flexibilidade e alheio aos potenciais de cuidar de si e de criar maneiras de viver6. Bem, claro está que estes meandros educacionais estão encharcados de atribuição de valor: certos e errados que circulam nas recomendações prescritivas e que apertam o corpo em moldes, faltando-lhe permissão para ser “o corpo sem imagem”7 , espaço ao 6 7 4 5

Aqueles que impediam de crescer os pés das meninas chinesas. VALLA, 2008. UCHOA, 2009. DELEUZE; GUATTARI, 1972; 2004.

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desenho, à invenção fantasiosa, às conexões da poética sensorial com sua superfície, em deslizamentos criadores. “Fantasia: o que seria da realidade sem ela? Em tempos escolares conteudistas, nossos alunos carecem de muita”8. Fantasias em cores, sabores e texturas: recusa a qualquer produção do tipo familiar, fuga às palavras de ordem e negação às fixações. Primeiro, com os membros do Núcleo da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), do Observatório da Educação – Projeto Escrileituras: um modo de lerescrever em meio à vida9, auto-oficina. Depois, com os alunos da turma de Comunicação e Educação em Saúde do curso de Nutrição, ao intuito de (des)prepará-los para realizarem atividades educativas em saúde nas escolas. Por fim, em alguns encontros com as turmas de quinto ano da Escola Paciana Torres de Santana. Como estabelecer os engates entre saúde (via alimentação), educação e filosofia da diferença? Tomamos como pano de fundo a possibilidade do corpo estabelecer relações permutáveis, num exercício de lançar fora o “dever-ser” e “dever-comer” (ali incluído) que permeiam as normas para se viver com saúde. Estudar, dizer e escrever do próprio corpo, a partir de fantasias em cores, sabores e texturas. De alimentos, do comer e dos sentidos. Alimentos – e a experiência com eles – como fonte de inspiração e criação de si. Foram ações do tipo comer, provar, ver, pintar, cheirar, criar personagens e estórias, desenhar, dizer, escrever. Práticas de fuga a um centro controlador do corpo, de onde surgem normatizações. Práticas de esquecimento e liberdade10. Alimentos pintados nas obras de arte de Giuseppe Arcimboldo inspiraram os alunos aos cortes e colagens em telas coloridas, enquanto o mistério do sumiço das letras pelo D comilão de Ziraldo11 instigou a invenção de estórias acerca da questão “qual o sabor das letras?” Batimentos cardíacos em imagens; o corpo parado e seus movimentos; cravo e canela; câmara escura; geleias e gelecas; hóstia e sagu; corpos atados e invertidos; dança dos corpos em suas descargas CORAZZA; AQUINO, 2011, p. 55. Entre elaboração, planejamento, execução, apoio, registro... participaram comigo Alessandra, Josiane, Magna, Eliete, Silas, Polyana, Regina, Ângela, Beatriz e Felipe. 10 DELEUZE; GUATTARI, 1980; 1996. 11 ZIRALDO, 1991. 8 9

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elétricas; Barthes e Nietzshe; a questão: “e se eu pensasse com o estômago?” Palpações, odores, cores, apertos, sabores, saberes. Coabitação de sensações e ideias duplas e indecidíveis. Pensamentos torcidos.

2 Cena “(...) ser artista é a melhor coisa da minha vida. E rara ”12.

A vida se coloca na cena do teatro da crueldade. Ao estabelecerse na afirmação de uma terrível e inevitável necessidade de um rumo outro na arte francesa do século XX, este teatro inventado por Antonin Artaud não ocupa um vazio, não faz oposição a coisa nenhuma. Inova e provoca, à medida em que traz, para a cena, a vida mesma13, o que acaba por fazer roçar o que se diz da cena ao que se diz da vida e do corpo. A percepção do “corpo incriado” 14 , incompatível com as vozes de comando, nos incitou a olhar para a sala de aula como cena, numa oficina em que se desejou o “fazer dançar as pálpebras..., as rótulas, os fêmures e os dedos do pé”15 . Coloca-se a vida na cena, porém, não como virtualidade, ou como realidades simbólicas. Quisemos a vida mesma, e não espetáculos fabricados, que referenciam movimentos precisos e permitidos: capazes de paralisar monstros16. A atuação cruel inclui monstros e “possíveis deflagrações explosivas ” 17 , num despregar-se do meio, experiência fluida de sopros e gritos, raios e torções. Cena móvel de intervenção deliberada do corpo-ator que produz em sua anti-produção18, diante da morte do autor da peça. Artaud brada: – Não ao espetáculo-representação!19 Ao corpo deslizante não cabe a convenção teatral do re-presentar. Não há conjunção dele com um presente que existe fora da cena e é anterior a ela, sob o controle de um logos primeiro que o define. O problema se coloca na discussão de Artaud sobre o teatro ocidental: o autor da peça escreve um texto prévio, e qualquer música, movimento, gravura Kevllyn Thalita, estudante do quinto ano da Escola Estadual Paciana Torres de Santana. DERRIDA, 1967; 1989. 14 DELEUZE; GUATTARI, 1972; 2004, p. 21. 15 ARTAUD, 1975; sem ano, p.150. 16 ARTAUD, 1975; sem ano, p.123. 17 Idem. 18 DELEUZE; GUATTARI, 1972; 2004. 19 ARTAUD, 1975; sem ano. 12 13

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servirão, quando muito, para ilustrar as palavras ditas inicialmente e às quais tudo se submete. Escravos do texto, diretor e atores realizam uma performance em que a estética da cena está comprometida. O desejável triunfo da cena, com a derrota da tirania do texto, ocorre em um único gesto: as palavras do texto não são negadas, mas pervertidas20. Insubmissa ao deus-autor. A cena da sala de aula na OsT pareceu-nos ter ganhado força em sua liberdade criadora e instauradora, sem espaço para o voyerismo. Hóstia com sabor, lápis sem cor Sagu que não se engole, geleia doce-apimentada Acho que meu estômago não está raciocinando direito .21

O pensar com o estômago quer se basear num assassinato, típico da crueldade. Ou melhor, num parricídio: a morte do autor como detentor abusivo do logos, o rompimento com a submissão ao poder da palavra e do texto e a libertação para a criação em cena. Manifestação de forças. Em energias fluidas, a cena se avulta e ganha a primazia, de forma semelhante à soberania das imagens no sonho, em detrimento das palavras, conforme considerado por Derrida22. Bem, há dois cuidados ponderados pelo filósofo francês: a figura do sonho aqui não deve ser confundida com as simbolizações, numa hermenêutica psicanalítica. Ainda, a soberania da cena não a lança numa anarquia absoluta. Ao contrário, há um rigor, uma decisão, uma deliberação direcionados à garantia do fluxo criador e da estética do que é posto em cena. É como se pudéssemos acessar a véspera do nascimento: momento precedente às marcas do visto, ouvido, dito, do outro... Por se orientar pela vida, no que esta tem de efêmero, ordinário e ínfimo, o teatro da crueldade atua não só como reflexo, mas especialmente como força. Nele, a poesia produzida de volúpias e dores pode ser encontrada.

3 Corpo Há uma infecção do humano que se caracteriza pelo prazer de contemplar seus atos, se perdendo em considerações sobre suas DERRIDA, 1967; 1989. Caio, membro do projeto Escrileituras. 22 DERRIDA, 1967; 1989. 20 21

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formas sonhadas, ao revés de ser por eles impelidos23. Os impulsos são atados enquanto povoamos o pensamento de considerações sobre nossos atos. A propósito da infecção, Artaud24 descreve o estômago embrulhado, a alteração na coloração da pele, as reações feias e fétidas, sintomas de populações acometidas pela peste. Os corpos sofridos se movimentam em seus desconfortos, num frenesi: as pessoas explodem em suas características mais baixas e terríveis. São inusitados os atos de purificação do libertino, enquanto o herói ateia fogo nas cidades. A infecção contemplativa que segura os impulsos murcha a capacidade inventiva e corrói a magia. Já a peste tem efeitos semelhantes aos do teatro, numa provocação às intensidades da vida. O massacre faz correr o delírio: a desorganização do corpo alimenta instintos e monstros adormecidos para que tomem a palavra. Instiga, clama, acorda, tira do estado latente. No entanto, o barulho do jogo teatral não incita seus participantes de forma igualmente devastadora: os sentidos são todos, as provocações são singulares, os corpos se manifestam em gestos únicos. “Penso com o estômago Estou outro Magro gordo Solavanco estomacal Água, açúcar e sal Abissal ”25.

São acelerações cardíacas, descargas elétricas de alta voltagem num corpo-pilha com descargas reprimidas26, “acessos inflamatórios de imagens em nossas cabeças, bruscamente despertadas” 27. Imagens são despertadas ou, poderíamos dizer, transcriadas28; porém, o corpo encena a vida mesma e não seus fantasmas. “O CsO é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o ARTAUD, 2006, p. 3. Idem. 25 Eliete, membro do projeto Escrileituras. 26 ARTAUD, 1975; sem ano. 27 ARTAUD, 2006, p. 24. 28 CORAZZA, 2011. 23 24

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fantasma... ”29" Não pretendemos codificar os corpos, fazer vir à tona o que está oculto. Nesse sentido, as imagens bruscamente despertadas não são significâncias, lembranças e subjetivações. Com Artaud, queremos nos desfazer “(...) de uma representação virtual sem existência e sem serventia”30 . Não pretendemos aprofundar e buscar memórias, traduzí-las e preservá-las, e sim, provocar a criação do novo, inusitado, hieroglificado, sussurrado, gemido, primitivo, inaugural. Que se retirem os fantasmas e que fique de pé a realidade! “A realidade ainda não está de pé”31 enquanto o corpo ainda não está formado. Mas, de que corpo se trata? Daquele que se movimenta em experimentações; que, em seu conjunto de práticas, expõe a vida na cena. Por ter a característica do exercício em que nos arrastamos, tateamos, lutamos e velamos, ao corpo sem órgãos “nunca se acaba de chegar ”32. O “ainda” de Artaud evoca o vir-a-ser da prática de CsO. É devir. “Com o estômago no comando, O cérebro seria uma alegoria? E a vida corporal Uma eterna disenteria? Não. Uma eterna busca de sensações e emoções”33.

“Um exercício, uma experimentação” 34 , um empreendimento de desfeitura de uma noção gasta acerca de centros controladores e de organismos milimetricamente organizados. Prática de CsO como revogação do EU entidade e comandante. O túmulo do eu35 engata-se, aqui, à critica do corpo povoado por válvulas, vasos comunicantes e comportas que atuam mediante uma voz que o domina pelo chicote36. A inutilidade dos órgãos é latente num corpo onde circulam as intensidades37. DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 12. ARTAUD, 1975/sem ano, p. 122. 31 Idem, p. 149. 32 DELEUZE; GUATTARI, 1980; 1996, p. 9. 33 Ema Marta é membro do projeto Escrileituras. 34 Idem, p. 9. 35 DELEUZE, 1996. 36 DELEUZE; GUATTARI, 1996. 37 Idem, p. 13. 29 30

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Falar, pintar e escrever com intensidades faz crescer as vias fantásticas, em sobrevôos, encontro com o mesmo, produção de si num corpo pleno sem órgãos. A escola parece ter espaço disponível para a construção desse tipo de percurso: “O abacaxi colorido chamou sua melhor amiga (...) E eles fizeram uma grande festa do pijama!”38 ; “Meu rosto... é um limão... é um menino muito triste ”39. É possível olhar para o corpo desprovido de certezas e fixações; oferecer-lhe experimentação mais do que recomendação ou interpretação. “E ele espera por você”40. Convite à transcriação, à (anti) produção singular, numa linha de fuga às normatizações que amputam ou esticam o corpo, a fim de adequá-lo ao Leito de Procusto41.

4 Corpo, cena e transcriação Creio que todas as palavras que vamos pronunciar, todos os movimentos e gestos, concluídos ou somente esboçados, que vamos fazendo, cada um deles e todos juntos, podem ser entendidos como peças soltas de uma autobiografia não intencional que, embora involuntária, ou por isso mesmo, não seria menos sincera e veraz que o mais minucioso dos relatos que uma vida passa à escrita e ao papel.42

As fantasias tomam a forma de oficina, num tema prescritivo, pelo menos a priori. Tarefa nossa de despovoar o discurso legitimado pelo aparato médico científico, que se oferece como logos. Não nos dispusemos a cumprir o texto, representar, nem ilustrar. Ensaiamos o parricídio num teatro cruel, com todo o rigor necessário aos despregamentos e à liberdade criadora na experimentação do próprio corpo. O que pode ser o artistar dos processos educativos em saúde, numa provocação da estilização da vida43, veio como um lampejo. O corpo põe a vida em cena, em gestos únicos, insubstituíveis, imprevisíveis e imprescritíveis. Tomamos o teatro da crueldade como arte da diferença, como gestos sem reservas, sem retornos e representações. Impulso à vida como obra de arte. Pâmela, estudante do quinto ano da Escola Estadual Paciana Torres de Santana. Benevides, estudante do quinto ano da Escola Estadual Paciana Torres de Santana. 40 DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 9. 41 Procusto é um ladrão da mitologia grega que oferecia um leito a seus hóspedes. Caso não coubessem nele, exatamente na medida da cama, eram amputados ou esticados até o ajuste necessário. 42 SARAMAGO, 2009, p. 30-31. 43 FOUCAULT, 1984; 1985. 38 39

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Referências ARTAUD, Anatonin. Para acabar de vez com o juízo de Deus seguido de O teatro da crueldade. Lisboa: Ed. & etc., sem ano. Título original: Pour em finir avec le jugement de Dieu suivi de Le theatre de la cruauté. Paris: Editións Gallimard, 1975. _____. O teatro e seu duplo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Título original: Le théâtre et son double. Paris: Gallimard, 1938. CORAZZA, Sandra Mara; AQUINO, Júlio Groppa. Dicionário das ideias feitas em educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. _____. Notas para pensar as oficinas de transcriação. In: HEUSER, Ester Maria Dreher. Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. DELEUZE, Gilles. O mistério de Ariana. Lisboa: Vega Passagens, 1996. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. Título original: L’anti-Oedipe. Capitalisme et schizophrénie. Paris: Les éditions de minuit, 1972. Trad. Joana Moraes Varela e Manuel Maria Castilho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. _____. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. V. 3. Título original: Mille plateaux – Capitalism et schizophrénie. Paris: Les éditions de minuit, 1980. Trad. Aurélio Guerra Neto et al. São Paulo: Editora 34, 1996. DERRIDA, Jacques. La escritura y la diferencia. Barcelona: Editorial Anthropos. 1989. Título original: L’Écriture et la différence. Paris: Éditions du Seuil, 1967. Tradução de Patricio Peñalver. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Título original: Histoire de la sexualité 3: le souci de soi. Paris: Éditions Gallimard, 1984. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. SARAMAGO, J. O caderno: textos escritos para blog. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. UCHÔA, Alice da Costa. Experiências inovadoras de cuidado no Programa Saúde da Família: potencialidades e limites. Interface: comunicação, saúde e educação. V. 13, N. 29, p. 299-311, 2009. Disponível em: . Acesso em: 04 jun. 2010. VALLA, Victor Vincent. Sobre participação popular: uma questão de perspectiva. Caderno de saúde pública. Rio de Janeiro, 14 (Sup.2), 1998, p. 7-18. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em: 07 abr. 2008. ZIRALDO. A dieta do D. Coleção ABZ. São Paulo: Melhoramentos, 1991.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

NOMES Ester Maria Dreher Heuser Luciana Alves Pinto Michelle Silvestre Cabral

A literatura é a exploração do nome: Proust fez sair todo um mundo desses poucos sons: Guermantes. No fundo, o escritor tem sempre em si a crença de que os signos não são arbitrários e que o nome é uma propriedade natural da coisa: os escritores estão ao lado de Cratilo, não de Hermógenes. Roland Barthes

Desenvolver uma reflexão sobre o conceito de nome é tanto desafiador quanto provocador; sobretudo por se tratar de um tema já plenamente naturalizado, algo já demasiadamente comum e prosaico. Poder-se-ia perguntar: Qual a importância de um questionamento como este em meio a tantos conteúdos previstos pelo currículo do Ensino Fundamental? Talvez o mérito maior esteja justamente em estimular um apetite que parece estar presente na maior parte das crianças: o impulso questionante. No entanto, tal impulso constitui-se, muitas vezes, num inconveniente para a sociedade atual: por que se perguntar sobre uma coisa dada? Coisas comuns, ordinárias, há muito consensualizadas? Quais as razões para que as coisas tenham nome? Essa não é uma pergunta que tenha utilidade ou finalidade para a comunidade escolar ou para a vida nos dias de hoje. Talvez sob a sombra dessa recusa iminente se encontre assaz velado o legado que persiste subjacente ao problema de como conceber

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o ato de educar. O ideal utilitarista e objetivista, erigido na modernidade, ainda causa fortes influências e se imiscui, de modo oculto, nas concepções de sujeito aprendiz e professor mestre que pautam a relação estudante-professor na escola, atualmente. Problematizar tais concepções, desnaturalizar as relações, descortinar os pressupostos implicados nas formulações mais arraigadas, entre outras coisas, constituem-se ocupações propriamente filosóficas. Neste sentido, partir de conceitos aparentemente banais pode ser o início de um caminho profícuo para distender, alargar, desdobrar a atitude crítica diante de um mundo aparentemente já dado. A oficina Nomes1 foi inventada com o objetivo de abrir um caminho de reflexão filosófica a partir da problematização de um conceito retirado do cotidiano das crianças, considerado algo necessário, inquestionável. A discussão em torno dos elementos implicados no conceito de nomes aparece já na Grécia Antiga no diálogo Crátilo de Platão2. Como já tradicionalmente aceito, o diálogo platônico versa sobre a adequação, a justeza dos nomes (orthotês onomatôn), dando origem às posteriores investigações sobre o conceito de proposição e a construção dos discursos. No diálogo, a personagem Sócrates examina as teses divergentes de Hermógenes e Crátilo. De acordo com Hermógenes, os nomes seriam resultado de pura convenção, acordo, ou seja, resultado do costume e da tradição. Contrapondo-se a este, Crátilo3 defende que (...) existe uma denominação exata e justa para cada um dos seres; um nome não é a designação que, segundo um acordo, algumas pessoas dão a um objeto, assinalando-o com uma parte de sua linguagem, senão que naturalmente existe tanto para os gregos como para os bárbaros uma maneira exata de denominar os seres que é idêntica para todos.4

De acordo, portanto, com Crátilo, os nomes espelham a natureza das coisas e, seguindo a tradição heraclitiana de interpretação, esta consiste Esta oficina faz parte do Projeto Escrileituras: um modo de ler e escrever em meio à vida e foi desenvolvida numa turma de 3º ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal André Zênere, localizada na cidade de Toledo-PR. 2 PLATÃO, 1972. 3 Crátilo foi discípulo de Heráclito e mestre de Platão, anteriormente a Sócrates. 4 Idem, p. 508. 1

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em ser um fluxo constante. Tais teses apontam para dois caminhos divergentes: o relativismo de Hermógenes e o ceticismo resultante da doutrina heraclitiana a respeito da mutabilidade das coisas defendido por Crátilo. Diante de tais divergências, Sócrates é convidado a participar do debate e auxiliar a encontrar uma saída adequada para a questão. Sócrates, então, apresenta a tese (supostamente ensejada por Platão) de que os nomes espelham, sim, a natureza das coisas, mas que esta consiste em ser, essencialmente, permanência e não fluxo, como queria Crátilo na esteira de Heráclito. A discussão desdobra-se na questão de determinar o desmembramento ou não da associação entre linguagem e conhecimento, ou seja, em determinar a possibilidade ou não da linguagem dizer as coisas tais como elas são. Se os nomes, pensados como imitações da realidade, abarcam ambiguidade de significados, poderiam tanto significar a imagem de uma realidade que é puro fluxo quanto uma que se constitui como permanência do mesmo. Como resultado, tornarse-ia impossível determinar um critério legítimo capaz de nortear a demarcação da verdade, o que colocaria em risco a própria possibilidade do conhecimento. Do resultado dessa discussão depende toda a dimensão dialógica e pedagógica da filosofia e do conhecimento como um todo, na medida em que este depende do elemento linguístico para se concretizar e garantir sua universalidade e objetividade. No Crátilo, Platão desenvolve a tese de que, para falar bem, é necessário atender às normas que determinam a maneira e os meios que as coisas têm de expressar e de ser expressas por meio da palavra. O ato de falar nomeando é um ato que se refere às coisas, pois nomear um objeto é uma parte da ação de falar. Para tanto, é necessário um nome; por isso um nome é o instrumento apropriado para nomear, permitindo distinguir, separar (diakritikôs) e ensinar (didaskalilkôs) a essência das coisas5. Neste sentido, para que possa cumprir sua função de instruir, o nome deve ser usado de forma apropriada, conveniente, e o dialético é apresentado como aquele que sabe fazê-lo, de modo mais adequado. Assim, os nomes – considerados como instrumentos – são fabricados por um legislador de nomes: o nomoteta. O bom instrutor (dialético) 5

Tal definição parece coincidir com aquela apresentada sobre dialética no Sofista: divisão por gêneros, de modo a não tomar por outra uma forma que é a mesma, nem pela mesma uma forma que é outra (PLATÃO, apud MONTENEGRO, 2007, p. 371).

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utiliza a obra do legislador (nomoteta) servindo-se do nome. Mas nem todo homem pode legislar: o legislador deve ser aquele que sabe impor aos sons e às sílabas o nome apropriado a cada objeto, que sabe o que o é em si mesmo, de modo a poder criar e estabelecer todos os nomes segundo o que é preciso. De acordo com Montenegro, comentando o diálogo de Crátilo, a seção dedicada às etimologias vem justamente ilustrar aquilo que, no plano interno do diálogo, Sócrates acaba de obter de Hermógenes: 1) a renúncia ao convencionalismo em prol da tese segundo a qual os nomes têm uma correção por natureza (tese defendida por Crátilo!); 2) a anuência quanto à idéia de que a atividade de nomear não se estende a todos, estando restrita a alguns (...). Por meio do método de perguntas e respostas, Sócrates – que encarna o papel do filósofo/ dialético –, acaba por subverter os sentidos comumente atribuídos aos nomes, admitindo a supressão ou o acréscimo de letras e sílabas, a fim de obter o sentido filosófico almejado.6

O diálogo chega ao final sem que Sócrates defina uma posição clara em favor das teses apresentadas por Hermógenes – que vê os nomes como o resultado de uma convenção – nem das de Crátilo, que afirma que os nomes são estabelecidos em conformidade com o fluxo essencial das coisas. Para muitos comentadores, isto apenas ilustra o caráter aporético das obras platônicas. Contra essa tese, Montenegro defende que Platão oferece saídas para tais aporias justamente na parte do diálogo dedicada às etimologias. Neste sentido, afirma: Lembremos que um dos últimos termos que Sócrates toma para análise é justamente o termo “conhecimento” (epistêmê), aquilo que se supunha ser tarefa da filosofia viabilizar pela linguagem. Mediante a análise, tem-se que, ao invés de ser o movimento da alma que acompanha o movimento das coisas, o conhecimento consiste naquilo que fixa (histêsin) a nossa alma nas coisas (Crátilo 437a). Logo em seguida, acrescenta que o sentido de “relato”, (historia) e, por conseguinte, algo que compete ao lógos, é o de fixar o fluxo 6

Ibidem.

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(histêsitonrhoun – 437b). Conhecer, portanto, significaria apreender, pelo relato, a natureza das coisas, entendendo natureza como princípio, essência. Desse modo, o conhecimento é o acesso àquilo que permanece como é. Contrariamente ao que parecem apontar as aporias no final do Crátilo, tem-se, a partir do próprio diálogo, sobretudo no exame das etimologias, elementos para se pensar que o acesso ao conhecimento só pode se dar pelo lógos, portanto, pela linguagem .7

Haveria que se levar em conta, segundo Montenegro, uma possível associação entre a concepção platônica de significação e uma ontologia das formas e da alma, presente na referida parte do diálogo Crátilo. Os nomes, sendo os instrumentos para o conhecimento (que possibilitam o separar e o ensinar), serviriam à função última da dialética, que coincide com a tarefa da filosofia. E, compreendendo o conhecimento como aquilo que fixa nossa alma nas coisas, a linguagem representaria a possibilidade mesma de tal fixação8. A viabilização desse procedimento, portanto, implica o contexto de uma relação mestrediscípulo, a qual se caracteriza, de acordo com o pensamento platônico, eminentemente no âmbito da linguagem. De acordo com o propósito desta oficina, contudo, importa destacar uma característica intrínseca ao discurso platônico sobre a linguagem e a atividade pedagógica, qual seja, de que para cada alma, em sentido estrito, deve haver um discurso que melhor lhe convenha. Concordando com Montenegro, “não pode haver conhecimento sem a intervenção da linguagem. Consequentemente, não pode haver linguagem sem a possibilidade da polissemia” 9 . O cenário aporético sob o qual é desenvolvida a reflexão platônica sobre a justeza dos nomes, portanto, talvez constitua um elemento necessário à perspectiva da filosofia como atividade e não meramente transmissão de doutrinas. Neste sentido, o modelo dialético do pensamento platônico serve como ilustração e orientação numa proposta de discussão sobre o conceito de nomes na contemporaneidade. Idem, p. 374. Ibidem. 9 Ibidem, p. 376. 7 8

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1 Meios Num primeiro momento da oficina, a intenção será de instigar os participantes10 a refletirem sobre a relação entre os nomes e os objetos que estes indicam de modo a inserir o questionamento sobre o caráter natural ou convencional dessa relação. Num segundo momento, aprofundando o problema, proporemos algumas dinâmicas11 que estimulem a criação de nomes para diferentes objetos/imagens, problematizando a questão sobre a necessidade ou não de que o nome indique uma característica do objeto nomeado. Em seguida, numa terceira etapa, pretende-se inserir a dimensão da significação como terceiro elemento a complementar a estrutura da linguagem. Nessa fase, as dinâmicas terão como foco a reflexão sobre os diferentes sentidos que um mesmo nome pode assumir de acordo com o contexto. Segue abaixo a exposição dos elementos necessários à realização da oficina, bem como a descrição sintética das dinâmicas. 1.1 Objetivos

• • • • •

Investigar filosoficamente os elementos semânticos e linguísticos implicados num nome; propiciar estratégias de diálogos investigativos que instiguem os participantes a desnaturalizar suas concepções sobre o conceito de nome; oportunizar e incitar disposições criativas e inventivas que possibilitem a reinvenção de nomes já dados e pré-fixados; desenvolver, nos participantes, o pensamento reflexivo, crítico, criativo e cuidadoso; estimular o hábito de apresentar razões para os argumentos por meio de questionamentos bem orientados.

A oficina foi pensada para ser realizada com estudantes do primeiro estágio do Ensino Fundamental (entre 7 e 9 anos de idade), podendo ser adaptada de acordo com os interesses do educador. 11 Todas as dinâmicas foram concebidas com o intuito de possibilitar a agregação entre o rigor da reflexão filosófica e o universo lúdico das crianças, buscando proporcionar um encontro (tradicionalmente negado) entre essas duas dimensões. Acredita-se que tal realização, ao contrário do que em geral se postula, possa gerar um enriquecimento positivo para ambas as partes. 10

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1.2 Procedimentos metodológicos • Leitura, em conjunto, de obras de literatura infanto-juvenil que tratem do tema proposto; • realização de atividades12 que promovam a compreensão de noções como grupo, equipe, união, cooperação, colaboração, segurança, etc.; • desenvolvimento de diálogos reflexivos que proporcionem o aprimoramento do pensamento crítico, criativo e ético. 1.3 Produção • Produção de textos curtos a partir dos diálogos e reflexões sobre os conceitos apresentados; • elaboração de acrósticos, nos quais as letras dos nomes dos participantes são utilizadas para compor nomes de caracterís ticas suas; • texto descritivo, a partir da observação de diferentes objetos de uso cotidiano; • criação de texto coletivo. 1.4 Materiais • Diversos objetos que tenham dois ou mais nomes dentro de uma bolsa (por exemplo, bonecos de algum personagem conhecido, óculos de sol ou colorido, alimentos como berga mota [mexerica, tangerina], mandioca [aipim, macaxeira], cédula de dinheiro, miniaturas de monumentos, etc.); • pompom, bolinha ou qualquer objeto que possa ser utilizado como moderador da discussão, determinando quem está de posse da palavra naquele momento; • lápis de cor, lápis preto, borracha e canetas hidrográficas; • textos de literatura selecionados; • folhas de sulfite e/ou fichas de cartolina (para registro das questões que orientarão os diálogos); • imagens (pessoas famosas, personagens conhecidos, obras artísticas, etc.); 12

Descritas no capítulo seguinte.

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2 Artifícios 2.1 Mais de um nome/Quantos nomes você tem?13 Procedimento Parte 1 • Dispor um recipiente (bolsa ou mochila ou sacola) contendo alguns objetos no centro do círculo no qual os participantes estão dispostos e pedir que retirem algo de dentro do recipiente. Perguntar: “Isto tem nome?”. Registrar, numa folha de sulfite os nomes que forem sugeridos. Repetir o procedimento até que todos os objetos tenham sido nomeados. O intuito é ressaltar o fato de que, com frequência, os objetos têm mais de um nome, embora, em geral, isso não seja notado ou observado, não constituindo, portanto, um movedor do pensamento. • Em seguida, pedir que os participantes escrevam, numa folha, seus nomes completos, bem como seus apelidos. Parte 2 • Proceder à leitura, em conjunto, da história Marcelo, marmelo, martelo, de Ruth Rocha. • Dialogar com os participantes sobre as questões suscitadas pela leitura do livro. Concomitantemente, podem ser distribuídas fichas com questionamentos pré-elaborados diante dos participantes, solicitando que escolham uma. Após respondê-las, devem abrir a discussão para que todos possam participar, concordando ou discordando das posições apresentadas e formulando razões para suas afirmações. Sugestões de questões: 13

Algumas atividades foram inspiradas em sugestões encontradas nos Manuais do Professor que acompanham as novelas lipmanianas (redigidos por Lipman e seus colaboradores), bem como nas valiosas sugestões feitas por Jackson e Oho (1998) no artigo “Preparandose para filosofar”. Como toda apropriação, o processo implicou, necessariamente, re-elaborações, reformulações, re-adaptações, transformações, etc. (CORAZZA, 2011, p. 66-69).

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Você tem mais de um nome? Explique. / Se alguém tem o mesmo nome que você, isso faz com que vocês sejam a mesma pessoa? / Se você tivesse um nome diferente, seria uma pessoa diferente? / Um nome pode indicar como a pessoa é? / Um nome pode ajudar a identificar algo ou alguém? Como? / Você usa seu nome quando conversa consigo mesmo? / Todas as coisas têm nome? / Tudo poderia ter o mesmo nome? / Podemos chamar a cadeira de Maria? / Dá para comprar um novo nome? E para vender seu nome? / Será que os nomes têm histórias?/ O nome pode guardar a história de quem nomeia? Como?

Parte 3 • Pedir, aos participantes, que registrem, numa folha, sua compreensão sobre as questões: “Para que servem os nomes?”; “Como surgem os nomes?”; “Em que consiste o nome?”. 2.2 Acróstico Procedimento • Escrever o nome de cada participante numa folha de sulfite e pedir que eles façam um acróstico, no qual cada letra de seu nome deverá compor o nome de uma característica sua. 2.3 Relacionando características e nomes a animais Procedimento • Entregar, aos participantes, uma lista com nomes de alguns animais e outra com algumas sugestões de nomes para estes (os nomes podem sugerir uma característica de cada um). Pedir que pensem e registrem os critérios para determinar a adequação dos nomes aos animais nomeados. Em seguida, solicitar que recortem e colem o nome escolhido em frente ao nome do animal. Sugestões:

Lista de animais: elefante, tatu, morcego, tamanduá, girafa, castor, cobra, cachorro, cervo, rato, tucano, gato, lesma. Lista de nomes: Lustrosa, Dentão, Cavernoso, Bicudo, Bicuço, Cascão, Latildo, Bichento, Rabicho, Narigão, Pontas, Pescoçuda, Enrolada.

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2.4 Relação entre nome e objeto/pessoa nomeada

Procedimento

Parte 1 • Leitura do livro A velhinha que dava nome às coisas, de Cynthia Rylant. • Propor aos participantes que façam perguntas ao texto, de modo a determinar os aspectos que lhes pareceram mais significativos. Tais questionamentos, após registrados e compartilhados, podem servir de ponto de partida para a problematização filosófica dos temas e ideias suscitados pela leitura, garantindo, assim, que a discussão se constitua de maneira expressiva às experiências singulares de cada um14. O docente, nesse momento, deve assumir o papel de mero orientador para que haja uma participação ampla e repartida de todos os integrantes e para que o foco da discussão seja o exame dos pressupostos, das razões e das implicações contidas nas opiniões expostas. O objetivo não será alcançar uma resposta adequada ou uma solução ideal; ao contrário, consiste unicamente em desenvolver o diálogo cooperativo e exploratório. Parte 2 • Dividir os participantes em grupos e entregar algumas imagens (pessoas famosas, personagens conhecidos, obras artísticas, etc.). • Pedir que sugiram nomes para elas e os registrem. Ao terminar, cada grupo apresenta suas imagens e seus respectivos nomes para os outros participantes, esclarecendo as razões para as escolhas. Conforme nos inspira a pensar Deleuze (1988, p. 259): “Fazem-nos acreditar, ao mesmo tempo, que os problemas são dados já feitos e que eles desaparecem nas respostas ou na solução; (...) seriam apenas quimeras. Fazem-nos acreditar que a atividade de pensar, assim como o verdadeiro e o falso em relação a esta atividade, só começa com a procura de soluções, só concerne às soluções. (...) É um preconceito infantil, segundo o qual o mestre apresenta um problema, sendo nossa a tarefa de resolvê-lo e sendo o resultado desta tarefa qualificado de verdadeiro ou de falso por uma autoridade poderosa. (...) Como se não continuássemos escravos enquanto não dispusermos dos próprios problemas, de uma participação nos problemas, de um direito aos problemas, de uma gestão dos problemas”.

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• Dialogar sobre o significado dos nomes para aquelas pessoas e personagens (relação da imagem com o nome/história de cada um). 2.5 Descrevendo objetos • •





Procedimentos Parte 1 Dividir os participantes em dois grupos (Grupo A e Grupo B), de modo que um não possa ver o outro. Apresentar, para os dois grupos, alguns objetos e permitir que cada participante escolha qual deseja descrever. Pedir que observem atentamente seu objeto e registrem numa folha suas características, descrevendo-o, sem, contudo, dizer seu nome. Ao final, recolher as folhas e os objetos. Reunir os dois grupos e os objetos no mesmo local. Dispor os objetos em lugar que todos possam vê-los. Distribuir as folhas com as descrições realizadas pelo grupo A para o grupo B e assim novamente: as descrições do grupo B para o grupo A. Pedir que cada um faça a leitura da descrição que recebeu, tentando identificar qual objeto esta indica. Caso o participante não consiga identificá-lo, os outros poderão ajudá-lo, de modo que, ao final da atividade, todos os objetos tenham sido relacionados à sua descrição. Dialogar sobre as dificuldades encontradas ao realizar as descrições e solicitar a sugestão de alternativas que poderiam ser adotadas para facilitar a tarefa.

Parte 2 • Leitura do livro Maneco, caneco, chapéu de funil, de Luiz Camargo. • Conversar com os participantes sobre as diferentes maneiras pelas quais pode ser interpretado um mesmo objeto (sua utilidade, uso, finalidade, etc.) e como isso pode refletir no modo de compreensão do mesmo. Assim como um objeto pode ser descrito através de distintos nomes/características, também pode abarcar uma diversidade de usos e significações.

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• Após a discussão, propor a elaboração de um texto coletivo envolvendo os objetos descritos: cada participante apresenta seu objeto e todos colaboram para a criação da história.

Referências BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970. CAMARGO, Luiz. Maneco, caneco, chapéu de funil. São Paulo: Ática, 1980. CORAZZA, Sandra Mara. Notas. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: Ed. UFMT, 2011. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. JACKSON, Tom; OHO, Linda E. Preparando-se para filosofar. In: KOHAN, Walter Omar; WAKSMAN, Vera (Orgs.). Filosofia para crianças: na prática escolar. v. 2. Petrópolis: Vozes, 1998. KOHAN, Walter Omar; WAKSMAN, Vera (Orgs.). Filosofia e infância: possibilidades de um encontro. v. 3. Petrópolis: Vozes, 1999. _____. Filosofia para crianças: a tentativa pioneira de Matthew Lipman. v. 1. Petrópolis: Vozes, 1998. MONTENEGRO, Maria Aparecida de Paiva. Linguagem e conhecimento no Crátilo de Platão. Kriterion, Belo Horizonte, v. 48, n. 116, dez, 2007. Disponível em: . Acesso em: 18 jan. 2012. PLATÃO. Crátilo: Obra Completa. Madrid: Aguilar, 1972. ROCHA, Ruth. Marcelo, marmelo, martelo. Ilustrações de Adalberto Cornacava. 3. ed. Guarulhos: Salamandra, 2007. RYLANT, Cynthia. A velhinha que dava nome às coisas. Ilustrado por Kathryn Brown. Trad. de Gilda de Aquinol. São Paulo: BRINQUE-BOOK, 1997.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

ESCRIPINTURAS: da imagem à escrita surgem cidades Franciane Cardoso

O que conta na imagem não é o conteúdo pobre mas a prodigiosa energia captada, prestes a explodir, fazendo com que as imagens nunca durem muito tempo. Deleuze

Ao necessitar escrever sobre a experiência vivida durante os quatro encontros das oficinas Espiritográficas de Co-criação Dialógica, me deparo, mais uma vez, com a urgência da tradução. Durante a preparação das oficinas, pensei muitas vezes ser essa a palavra norteadora de todas as intenções que surgiam durante o processo de organização do trabalho, pois, nesse processo que se faz entre viver/escrever, se opera continuamente uma tradução. Augusto de Campos escreveu: “nunca me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Só aquilo que minto. Ou que minto que sinto, como diria, ainda uma vez, Pessoa em sua própria persona”1. 1

CAMPOS, 1978, p. 7.

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No princípio da preparação das oficinas que iria oferecer dentro do Projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida2, escolhi criar os exercícios para produção textual calcados em imagens, desejo manifestado com o propósito de usá-las como propulsionadoras de uma escrita que busca na sensação o seu mote. Assim, a imagem não se coloca como um objeto a ser analisado e dissecado, mas como disparo. Paola Zordan concebe o termo da seguinte maneira: Por disparador entende-se a força motriz que dá a potência do desenvolvimento de uma pesquisa. Linha de fuga do pensamento, que se espraia sobre alguma coisa antes não pensada, dando uma nova maneira de olhar aos transcorreres de uma vida. Essa força de disparo mobiliza o desejo, cria a vontade para todo um trabalho.3

As imagens da cidade seriam a fonte dessa força, o espaço/tempo em que ela irrompe, tornando-se um processo de despojamento dos clichês e das coisas já ditas; um texto que escapa da razão passando para os fluxos da sensação. Os exercícios que se sucederam ao longo dos quatro encontros que compunham essas oficinas buscaram aporte para escrita em imagens de naturezas diversas, desde a imagem fotográfica, passando pelas artes visuais, até o cinema. Deleuze, em Francis Bacon: lógica da sensação, não encontra personagens nas figuras presentes em suas pinturas. As imagens que ocupam os quadros não têm história, não contam, explicam ou constituem uma moral. Existem. Em sua presença no quadro, simples ato de colocar-se ali, consta toda sua existência. A partir de um processo de aproximação e fruição, engendrados durante um seminário, ele cria um procedimento para escrever com as pinturas de Bacon, tornandoas força motriz de uma escrita que não fala sobre, mas que movimenta e cria conceitos junto com essas imagens. Baseando-se nessa ideia, Em fevereiro de 2011, passei a integrar o grupo de pesquisa do projeto coordenado pela Professora Doutora Sandra Corazza, constituinte do Programa Observatório da Educação CAPES/INEP, projeto no qual a principal frente de atuação consiste em desenvolver e aplicar oficinas de Escrileitura, amparadas nas mais diversas áreas como Arte, Música, Literatura, Filosofia e Matemática. A oficina em questão intitulou-se Oficinas Espiritográficas de Co-Criação Dialógica e foi ministrada em parceria com Idalina Krause de Campos, também participante do projeto. 3 ZORDAN, 2011, p. 4. 2

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propôs-se um movimento de criação como processo de escrita com as imagens trazidas pelos próprios participantes das oficinas. Ao escrever sobre Bacon, com suas imagens, Deleuze pontua o problema da ilustração. No texto, são apontados procedimentos de isolamento da figura nas obras do pintor. Segundo Deleuze, Bacon busca, por meio desses procedimentos, extirpar o caráter figurativo, narrativo e ilustrativo que a figura tende a ter no contexto do quadro. Esse isolamento é uma das vias encontradas para fugir do caráter representativo da imagem, pois “a pintura não tem nem modelo a representar, nem história a contar”4. Pensando nessa problematização do caráter ilustrativo da imagem é que a trouxe para entremear a escrita, na tentativa de criar, entre ambas, uma vibração, um terceiro texto aberto às leituras de quem o desejar. Foi nos estudos pré-oficina que surgiu o termo escripintura5. Seria essa a escrita produzida quando imagens, não ilustrativas, disparam textos que não buscam narrá-las. A escripintura seria o texto que se encaixa nas imagens; entre ambos há uma troca de forças, uma potencialização do ato da escrita. Surge desse encontro uma maneira outra de enunciar, talvez uma quarta língua que difere das três escritas por Gilles Deleuze, em O Esgotado6: as palavras, as vozes e as imagens, pensadas de maneira distinta, cada qual com forças e restrições. A escripintura se apresenta, talvez, como a possibilidade de acoplamento de todas em uma única. Escripintar se faz no arranjo das três línguas: a) palavras que dão materialidade e suporte à escripintura; b) vozes que ecoam em uníssono numa mistura de autores, experiências, memórias e personagens, trazendo a vida para o texto; c) imagens sonantes, colorantes, que estão abertas às mais diversas combinações e passíveis de inqualificáveis leituras. DELEUZE, 2007, p. 12. Há uma semelhança com o termo scriptor cunhado por Barthes, em 1977, no texto Image/ Music/Text. Entretanto, o tratamento que é dado aqui difere bastante das ideias expostas na ocasião, em que ele defendia a ideia de que o termo autor tornara-se ultrapassado na contemporaneidade devido ao seu hermetismo, pois há, neste termo, a ideia de alguém que cria segundo sua imaginação. Segundo ele, os insigths possibilitados pelo pensamento moderno tornaram o termo inviável. No lugar de autor, o mundo moderno apresenta uma figura que Barthes chama de scriptor, cujo poder é combinar textos pré-existentes em novas formas. Barthes defendia que toda escrita se fundamenta em textos anteriores. 6 DELEUZE, 2010. 4 5

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As imagens que constituem a terceira língua no texto deleuziano são, a todo instante, desfeitas para dar origem a outras, fazendo parte de um movimento. “A imagem não é um objeto, mas um processo” 7, um ritornelo visual. Em torno de cores e formas gravitam infinitas virtualidades que levam e trazem consigo outro mundo a conhecer, que pulsa diante do olhar e que permanece vivo o tempo desse pulsar. Um mundo de pensamentos não concretizados, não homologados. As imagens gritam em silêncio àquilo que trazem consigo. Não se trata de conhecimentos ou informações, mas de sensações, algo que, segundo Valéry, é capaz de “proporcionar emoções sem o tédio da comunicação”8. As imagens que percebemos dos lugares pelos quais passamos são fontes infindáveis de sensação: não cessam jamais de afetar aquele que as olham. Nessa possibilidade inumerável de combinações entre as três línguas enunciadas em O Esgotado9, nasce a escripintura. Surge com certo alívio – e alguma plenitude –, pois consegue, em sua natureza, sanar minimamente uma restrição ou característica das duas primeiras línguas. Não se atormenta com o peso dos significados e não é assombrada pelo fantasma inexorcisável da representação na medida em que produz sentidos diferentes a cada reorganização das palavras, das vozes e das imagens. Segui, durante as oficinas, juntamente com seus participantes, em busca de uma escrita onde o corpo dita as regras e cria métodos, uma escrita que tem na carne sua medida, que encontra na arte e em seu processo disparadores. Para essa escrita pulsante – que não pensa e nem pondera, apenas surge, nasce dolorosamente das faltas e das sobras da tarefa de viver, que tem carne, vísceras, matéria – não existem regras a serem ensinadas. Essa escrita-sensação pode surgir do rumo que se dá a sua matéria principal, às sensações emergentes de qualquer situação vivida e do modo como se articula aquilo que se ganha nos encontros que acontecem nesse processo de criação da escripintura. Escripintar é também fabular com as imagens vistas, permitir-se acessar velhas lembranças que chegam ao texto com outra roupagem, com novas cores e sentidos. A fabulação é toda entrelaçada pela arte e DELEUZE, 2010, p. 81. VALÉRY apud DELEUZE, 2007, p. 43. 9 Ibidem. 7 8

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bebe em sua fonte. Permite um olhar que enxerga além dos contornos definidos da forma e se constitui de séries infinitas de memórias, sensações, palavras, vozes, imagens. Fabular necessita de despojar-se dos medos e dos receios, necessita de um abandono da ânsia e do cuidado que se tem com a verdade. A fabulação é criadora, dançarina, malandra, astuta e corajosa. A fabulação criadora nada tem a ver com uma lembrança mesmo amplificada, nem com um fantasma. Com efeito, o artista, entre eles o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido. E um vidente, alguém que se torna. Como contaria ele o que lhe aconteceu, ou o que imagina, já que é uma sombra? Ele viu na vida algo muito grande, demasiado intolerável também, e a luta da vida com o que a ameaça, de modo que o pedaço de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul, que não tem mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos. 10

E fabulei. Fabulamos. No decorrer dos quatro encontros, muitos foram os espaços/tempo desse jogo de inventar mundos, mas vou me deter no segundo encontro da oficina. Nesse dia foi solicitado que os participantes levassem imagens da cidade, sem especificar mais nada, apenas que fossem imagens de coisas, detalhes ou lugares que lhes fizessem sentido e que tentassem fugir dos clichês de cidade que se conhece. Os lugares pelos quais se passa todos os dias constituem séries infinitas de imagens, diferentes, únicas, captadas com a singularidade que é própria de quem se coloca com olhos de curiosidade diante desse mundo que se renova a cada passagem. As cidades possuem uma gama de modos de se apresentar; a multiplicidade que lhes preenche é possibilidade constante de encontros, de potencialização de forças, de desconstrução dos olhares viciados pelas mesmas paisagens. O exercício da oficina começara no momento da captação dessas imagens, na descoberta de imagens outras, diferentes daquela que o olhar do hábito vê. 10

DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 222.

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A literatura está repleta de fabulações. Pensando nisso e na força dessas fábulas para construção de nossos olhares e verdades, alguns trechos literários foram selecionados previamente e entregues durante o encontro. Entrelaçaram-se com os pensamentos e palavras que pouco a pouco começavam a circular nos corpos dos participantes da oficina. Entre cidades inventadas, invisíveis e fabuladas, cada escripintor criou fragmentos de sua cidade a partir da escrita que rompeu, pouco a pouco, qualquer ligação institucional, formal ou histórica com a cidade da fotografia disparadora para se tornar mais uma fábula, outra cidade inventada, mas que, para seu escritor/escripintor/criador, é palpável, concreta, pois está em suas memórias. (...) Mas uma coisa é certa: não volto a Rimini por livre e espontânea vontade. Devo dizê-lo. É uma espécie de bloqueio. Minha família ainda mora lá, minha mãe, minha irmã, terei medo de alguns sentimentos? O retorno me parece, antes de tudo, uma complacência, como um remoer masoquista da memória, uma operação teatral, literária. É claro que isso pode ter certo fascínio. Um fascínio sonolento, obscuro. Mas não consigo pensar em Rimini como um elemento objetivo. É mais como, ou melhor, é só uma dimensão da memória. De fato, quando estou lá sou sempre agredido por fantasmas já arquivados, mas insistentes. 11

As cidades levadas nas fotografias e na história de cada um são também dimensões da memória, únicas e pessoais, por mais absurda que possa parecer a ideia de uma cidade pessoalizada; a imagem que cada um cria desse lugar é singular. A passagem do tempo, a estratificação das imagens, a preservação das rotinas agem sobre os grupos, os espaços, fazendo deles o lugar do possível. As cidades de cada um se tornam “a” cidade. Passam a existir imagens que a representam, coerentes, aceitas, repetidas. Porém, pouco interessava no espaço das oficinas suas possibilidades. Foi explorado e escrito aquilo que surge, disforme, quando o possível se esgotou; aquilo que não está dado nem pode ser previsto. Interessava lidar não com o que as cidades são – ou foram –, mas com o que a cidade não é nem nunca será, com aquilo que não cabe dentro da conjugação do verbo ser. Com algo que a constitui, mas não 11

FELLINI, 2000, p. 35.

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está contido na linguagem e tampouco nas imagens que já fazem parte de um arquivo desse lugar. Nas escripinturas, buscou-se dar a ver a cidade vivida, mas há tempos esquecida e agora reinventada. Cidade que se constitui em microterritórios, sejam eles geográficos ou corpóreos; uma mistura de espaços e momentos. Ao escrever, mais do que reviver memórias e descrever fatos ou lugares, assume-se o riscode inventar outra cidade. A escrita torna-se, então, o meio pelo qual as sensações transbordam, invadindo os limites entre vida e texto. A fabulação é sempre criadora e implica em uma renúncia às realidades e verdades, embora se utilize das matérias que lhes dão contorno, subvertendo-a, contorcendo-a, virando-a ao avesso, dividindo-a e reagrupando-a. A torna disforme e mutante é uma das vias pela qual tudo o que é demasiadamente forte e intenso para conterse dentro da forma – seja ela humana, material, artística – encontra escoamento e ganha existência. Assim, a cidade a que se recorre para escrever surge nas brechas daquela que é lida em textos históricos e vista em fotografias antigas. “A História não é simplesmente aquele tempo em que ainda não éramos nascidos?”, pergunta Barthes12 ao constatar sua inexistência pela falta de recordações dos vestidos usados por sua mãe nas fotografias antigas. Da mesma maneira se constata a história da cidade em imagens que há tanto a representam, mesmo que não se reconheça a cidade de tais imagens. A cidade escrita nas oficinas surge do esgotamento dessas imagens e dos discursos que pairam sobre elas. Deleuze analisa que, nesse esgotamento, “combina-se o conjunto de variáveis de uma situação, com a condição de renunciar a qualquer ordem de preferência e a qualquer objetivo, a qualquer significação”13. Estar esgotado é não ter mais possibilidades. Sem possibilidades, o impossível se potencializa. As imagens levadas e trocadas entre os participantes fizeramlhes inventar cidades. A imagem não era mais a sua, datada, com uma narrativa, mas de outra pessoa, que trazia em si um trajeto desconhecido, mas que por si só despertava cidades em quem a observava. “A imagem 12 13

BARTHES, 1980, p. 74. DELEUZE, 2010, p. 69.

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é um pequeno ritornelo, visual ou sonoro”14 ; ela cria em quem a observa um mundo inominável, inqualificável. A imagem passa pelos corpos provocando turbilhões, acordando memórias que são revividas, recriadas, reimaginadas. Com a proposta de usar fotografias para escrever a cidade, a principal regra de escrita observada foi a de buscar nas sensações e no corpo as palavras. Brotaram, assim, em poucos minutos, depoimentos que bem poderiam ser pessoais, particulares, não tivessem reverberado pelas memórias e sensações dos ouvintes da sala. Tânia, uma das participantes dos encontros, escreveu Sujidade olhando para a fotografia de uma calçada, sem qualquer referência de lugar, data ou contexto, apenas uma imagem.

Sujidade15 Sujidade é uma cidade de terra e de pedras, de gente bicho e de bicho gente. De qualquer distância, percebem-se seus chãos tomados por marcas de um passado quase presente. É o pitaco aceso, iluminando a lamacenta marca dos tênis, que se tornam um inimigo monstruoso da pata almofadiça de um canino portátil. É uma terra de todos invertidos que, vista de cima, ainda mantém uma fatia de verde ramozo, gramínea partida pela devastação de um tempo escorregadio. Sujidade vive na história de cada um que a habita selva[gente]mente.

Indiferente a teorias a priori, escripintar lança mão de conhecimentos não homologados, do ainda não dito. A escrita passa a ser uma das vias de escoamento de coisas vividas, sentidas. O viver é a principal matéria, é o que dá força e sentido a essa escrita. Sem vida, memórias e sentidos, sem corpos escripintores, o que se escreve são apenas palavras. Escripintar a cidade constitui um processo de tradução; traduz-se coisas sentidas, sensações que dizem ao corpo e transitam livremente por ele em palavras. Cria-se um texto que tem seus sentidos sempre renovados pelos leitores em que passam a habitar. As imagens, cheiros e sons disparadores de sensações encontram no texto escripintado um suporte material. Passam a habitá-lo propagando sensações. E 14 15

Ibidem, p. 81. Texto elaborado por Tânia Marques, participante das oficinas, a partir da fotografia levada por ela, de uma calçada de Porto Alegre.

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as brincadeiras, traquinagens e aventuras da infância são revividas, reinventadas por Dani Noal a partir da imagem de um cemitério, desconhecido, mas que se irmanou à imagem de todos os outros visitados ao longo de uma vida, principalmente aquele da infância. Arroio do Veado está no texto, está no corpo que escreve e nas imagens que a escritora observa.

Arroio do Veado16 ...e líamos o receituário. não o que vem em medicamentos e que são prescritos pelos médicos. aqueles. que as ilustrações salivam os olhos e à boca escorrem. quem sabia ler subia sobre as esculturas mais altas. em algumas encontrávamos anjos, noutras cruz e anjos. quase preferencialmente: cruzes, credos e cristos. liam, então, como quem vocifera. pervertiam as receitas e acrescentavam ingredientes. passavam de feijoadas. iam para descarnes. sangrias. findavam em chás para velórios. as bicicletas passeavam por entre os vãozinhos. disputávamos os túmulos mais sagrados ou consagrados. os sapatinhos vermelhos da prostituta - convocada a santa - serviam-me. 35 era o número do cantoneiro dela. 35 eram nossos calçados, o dela e o meu na época. viagem a fora, à espreita, cruzo via e faço sinal da cruz. batemos mãos e para a vida da morte nossa aliança será gloriar a árvore-guarda-de-bicicletas daquela cidadezinha tão confortável às nossas graças e animadíssimas correrias.

Nas imagens que representam as cidades de cada um, imagens repetidas, vistas e revistas ao longo de uma vida, desbotadas pelo tempo e pela repetição é que essas cidades se esgotam. Fazendo surgir desse esgotamento, cercado de impossível, outras imagens, outras formas de se relacionar com a cidade e com a vida, pois é vivendo e transitando por seus espaços, em pequenos instantes, que surgem imagens diferentes, sempre novas, sempre mágicas. Cabe então à escrita dar corpo a tais imagens. Das cidades inventadas, fabuladas, das cidades da infância e da maturidade surgem escripinturas. “O cansado não pode mais realizar, 16

Texto produzido por Daniele Noal, durante as oficinas, a partir da fotografia de um cemitério levada por Cristina Bischoff.

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mas o esgotado não pode mais possibilitar ”17 . É nessa ausência de possibilidades que fragmentos de memória, de vida se atualizam, dando realidade ao impossível, àquilo que não se enquadra em séries, em jogos de palavras, mas que a cada olhar, em cada passagem, se faz vivo e prova que o possível é uma invenção delimitadora, um arranjo, um jogo e que o impossível é viver, escrever, fabular, escripintar.

Referências BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: Editora 70, 1980. _____. Image/music/text. Trad. de Stephen Heath. New York: Hill and Wang, 1977. CAMPOS, Augusto. Verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva, 1978. DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007. _____. Sobre o teatro. Trad. Fátima Saadi, Ovídio de Abreu e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010. _____; GUATTARI, Félix. Oque é filosofia? Trad. Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz. Ed. 34. Rio de Janeiro, 1992. FELLINI, Frederico. Fazer um filme. Trad. Mônica Braga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ZORDAN, Paola. Disparos e excesso de arquivos. (texto digitalizado). Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2011.

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DELEUZE, 2010, p. 67.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

DIÁRIO DE CORDEL Jaziel Cleiton Rautenberg Ester Maria Dreher Heuser

Súmula Escriler com os trovadores e cordelistas brasileiros, como Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde, José Camelo de Melo Resende, Mestre Azulão, Patativa do Assaré. Usar o humor e a crítica presentes no cordel como uma contra-escrita, frente à forma de escrita habitual exigida nas instituições educacionais, contra a inércia do pensamento docilizado. Utilizar o cordel como diário, no qual se registra a própria história, nascem novos personagens ou são narrados os fatos e notícias do cotidiano.

O Cordel e o texto Herança portuguesa, a literatura de cordel se difundiu principalmente no nordeste brasileiro, recebendo modificações e ganhando as mais variadas formas de estrutura para seus textos, havendo hoje mais de trinta modalidades diferentes desse gênero da poesia popular brasileira. Adotado, sobretudo, pelo povo sertanejo e caririense, pobre, praticamente sem acesso à informação e cultura escrita. Os cordéis constituem-se de diversas temáticas, de romances contados em histórias de heróis e fantasias, até registros da realidade diária do sertanejo,

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retratando suas dificuldades como a seca, o embate com os coronéis ou causos de cangaceiros, mas, além disso, desde seu início – e ainda hoje – também funcionam como jornal do povo, que se espalha para todo canto levando informação: Bem antes do surgimento, da imprensa, do jornal, o Cordel era em geral, a fonte de informação. Os fatos mui relevantes, ou passagens corriqueiras, tinham, de qualquer maneira, no Cordel, divulgação .1

Na forma de repente, no duelo de trovadores com seus violões, ou na forma escrita do poeta de bancada, o cordel possui uma infinidade de estruturas e recursos textuais, sendo seu ingrediente mais particular boas doses de humor, em versos muito bem metrificados e rimas quase sempre perfeitas, o que torna sua leitura bastante agradável. Mas não é apenas de rimas bem metrificadas e humoradas estórias que se faz um cordel. Usado como meio de informação, o cordelista modifica as histórias para adaptar a forma do cordel. Ao fazer isso, geralmente adiciona sua opinião acerca do fato contado nos versos para criticar ou denunciar ações das quais discorda ou considera carecerem de verdade, contando a seu público e mostrando sua posição. Escritos sobre os temas mais variados; tudo vira cordel e o cordelista encontra inúmeros elementos textuais para contar suas histórias, servindo-se da ironia e de exageros, estereotipando personagens, fazendo críticas sociais e políticas sem perder o ritmo jocoso próprio do cordel. Exemplos disso podem ser encontrados em cordéis como A carta do pistoleiro Mainha à sociedade, do poeta Guaipuan Vieira; A chegada do diabo ao bordel do Big Brother, este, mais próximo de nossos dias, escrito por Marcos Haurélio; e em vários cordéis de Patativa do Assaré, como O doutor raiz e Glosas sobre o comunismo, com um trecho a seguir: MOTTA, 2007.

1

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Mote O comunismo fatal não queremos no Brasil Glosas Será muito natural nossa pátria entrar em guerra ao chegar em nossa terra o comunismo fatal; do sertão à capital nosso povo varonil há de pegar no fuzil em defesa da nação: que esta cruel sujeição não queremos no Brasil.2

Outro exemplo do uso do cordel como mecanismo de crítica pode ser percebido nos versos de Leandro Gomes de Barros, no cordel Imposto de honra: O velho mundo vai mal. E o governo danado Cobrando imposto de honra Sem haver ninguém honrado. E como se paga imposto Do que não tem no mercado? Procurar honra hoje em dia É escolher sal na areia Granito de pólvora em brasa Inocência na cadeia Água doce na maré Escuro na lua cheia.3

O recurso a elementos como a ironia, estereótipos e exageros, bem como a utilização de mitos e lendas, somados à ausência de 2 3

SILVA, 2006, p. 106. BARROS, s/d.

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imparcialidade de quem escreve, que se coloca sempre como um vivente-autor, mais a linguagem despreocupada preenchida por regionalismos e o humor que permeiam os versos, facilitam o diálogo do leitor com o texto. Isso permite o surgimento de infinitas linhas de possibilidades que se espalham numa perspectiva rizomática, colocando quem lê em uma atitude de co-autoria do cordel, em posse de múltiplas entradas e saídas, perpassando o texto lido, indo além de seus limites em duelos de versos inesgotáveis. O cordel possui um tempo particular: alterna a velocidade absurda e as paradas preguiçosas de quem lê, vive e ao mesmo tempo escreve a história. Pelo cordel, o escritor é personagem vivo do próprio texto: “A receita também mostra/ O cordel como mensagem,/ O autor vira um ator/ Do seu próprio personagem,/ E assim o poeta faz/ Mais perfeita a sua imagem”4 , sendo levado pela escrileitura a lugarizações e intensidades desconhecidas, únicas, atemporais.

Da proposta Utilizar a literatura de cordel como uma microescritura de açãointervenção entre autor-texto-ambiente junto aos estudantes – que são os personagens menores, porém não menos importantes – dessa instituição Escola. Esta oficina propõe o uso do cordel como uma escritura-menor que se manifesta aos moldes das micropolíticas de escrileituras5, na qual o texto é instrumento de relação dos alunos com o espaço e com personagens da escola, os quais podem tornar-se, também, personagens das narrativas do cordel. Nesse movimento, o cordel vira diário, lugar de registro de viveres, nascimento de personagens, onde histórias são contadas, fantasias e fabulações criadas; onde os alunos descobrem-se como produtores-tradutores de perceptos, afectos, conceitos, significações6. Com isso, o grupo se percebe em uma perspectiva mais ativa no ambiente escolar, fazendo surgir pequenas fissuras, espaços de movimento, denunciando, pelas rimas humoradas, sarcásticas e estereotipadas do cordel, suas impressões, desejos, elogios VALE, 2009. HEUSER, 2011. 6 DALAROSA, 2011. 4 5

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e aflições para com este lugar. O que os fará complexificar a própria capacidade de analisar, variar, criticar, pensar seu dia a dia, entalhando linhas, vislumbrando horizontes e modificando a realidade própria à medida que cada escrileitor se modifica pelo ler-escrever do texto.

Ai! Se sêsse!...7 dos procedimentos 1. Poesia popular da região nordeste do Brasil, a literatura de cordel é pouco conhecida nas outras regiões, menos ainda no Sul. Para situar a todos quanto à temática da oficina, cabe uma breve introdução sobre o que é o cordel, sua origem portuguesa, suas personagens, curiosidades, seus enredos transformados em livros, filmes ou novelas, como é o exemplo da obra literária que inspira o filme de mesmo nome O auto da Compadecida, baseada em três folhetos de cordel: O Testamento do Cachorro – que na verdade é um trecho do cordel intitulado O Dinheiro – e O Cavalo que Defecava Dinheiro, ambos de Leandro Gomes de Barros, considerado o fundador da literatura de cordel brasileira; o terceiro folheto é O castigo da soberba, do poeta Silvino Pirauá. Indicações sobre o cordel e sua história podem ser encontradas em sites como o da Academia Brasileira de Literatura de Cordel8, que também disponibiliza inúmeros folhetos digitalizados; além desse, no site InfoEscola9, com informações e curiosidades. No ano de 2012, tivemos a presença do cordel no enredo de várias escolas de samba dos carnavais paulista e carioca, como da Salgueiro, que desfilou o tema “Cordel branco e encarnado” homenageando a literatura de cordel e da escola Unidos da Tijuca, que homenageou o rei do baião Luiz Gonzaga sob o enredo “O dia em que toda a realeza desembarcou na Avenida para coroar o Rei Luiz do Sertão”. Além disso, o programa Globo Rural, da emissora de TV Rede Globo, fez, em dois de janeiro de 2011, um especial de aniversário dedicado à literatura de cordel, disponível no site do YouTube10. Título “roubado” de um cordel de Severino de Andrade Silva, cuja alcunha entre os poetas é Zé da Luz. 8 9 10 7

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2. Após conhecido um pouco da história e dos personagens da literatura de cordel, o passo seguinte é infiltrar-se no ambiente do cordel, com seus versos e rimas soantes. Neste momento de encontro entre os participantes e o cordel, as imagens podem fortalecer a sonoridade e intensidade dos versos. Assim, a apresentação do curta-metragem Até o sol raiá pode coroar esta desterritorialização, saindo de um ambiente comum para adentrar em um mundo novo proporcionado pelos versos de nossos poetas cordelistas. 3. Exibido o curta, é chegada a hora da ação, de saber, enfim, o que é o cordel. Lança-se um modesto desafio, porém não tão simples quanto possa parecer. Para poder traduzir sentidos, afectos, vidas em cordel, não basta saber teoria, ouvir falar da métrica. É a culminância da oficina de escrileituras pelo cordel, em que se concebe, conforme texto de Patrícia Dalarosa, “a ideia da escrita como um processo de escrileitura, remetido a uma escrita-pela-leitura ou uma leitura-pela-escrita, propõe um texto aberto às interferências do leitor e, portanto, escrevível ou traduzível de várias formas”11. Sendo assim, a leitura do cordel – que é intensificada quando lido em voz alta, entoando o seu ritmo próprio – se faz necessária e, sobretudo, prazerosa, a fim de aprender sua métrica, sentir a simplicidade de seus versos, a elegância de suas rimas. Aqui, supõese que o estudante aprende a escrever cordel enquanto infiltra-se na poesia, furtando os saberes à medida que recita versos, canta trovas e encena duelos. Nesse mesmo tempo, é transformado também em ator da história, tomado de si pelo prazer de ler e, por um momento, pertencendo ao texto. 4. Sem perder o embalo, roubando a métrica e a rima dos cordéis para si, é lançado um segundo desafio: escrever e entoar as próprias rimas, fazer-se, finalmente, escrileitor12. Como a luz que transpassa DALAROSA, 2011 , p. 15. “O Didata-Tradutor (DiTra), isto é, cada participante das OsT, sem exceção, não faz cópia, dublagem ou fingimento; não é um servo, escravo ou ladrão dos autores que traduz; (...). Como um ser de linguagem, DiTra é, simplesmente, um escritor-e-leitor (escrileitor), que transcria e transcultura PAFCs [Perceptos, Afectos, Funções e Conceitos], praticando ‘arte não só de reconhecer analogias, correspondências, diferenças e semelhanças’ entre eles, como também de produzi-las, num ‘universalismo polimorfo e cosmopolista’”. (CORAZZA, 2011, p. 66-67).

11 12

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um prisma, incidindo branca ao adentrar seu corpo, modificandose enquanto passa por ele, emergindo do outro lado em forma de espectro – feixes luminosos de diferentes cores –, em um fenômeno de refração13, assim também ocorre com o escrileitor cordelista. Quando lê um texto, insere-se nele, incidindo sobre ele como a luz em um prisma, tomando o texto pra si e sendo modificado por ele, na medida em que o texto é um meio diferente do seu, emergindo deste em cores, intensidades, intencionalidades diversas, transcendendo-o e voltando a seu meio anterior, sua realidade, agora para atuar sobre ela com novos olhos, traduzindo-a em forma de cordel e dispersando-a14.

Para iniciar o processo de alfabetização, comumente, utiliza-se o nome da criança. Sendo assim, para fazer-se cordelista, neste novo processo de aprendizado, o mesmo caminho pode ser traçado. Servindose do recurso do acróstico, o cordelista faz sua assinatura traçando versos a partir do próprio nome, deixando uma marca contra a adulteração de seu trabalho. Desse modo, sem precisar seguir qualquer ordem, é permitido brincar com as palavras; começa-se a fazer cordel pelo final, a partir da forja de uma assinatura, sem revelar diretamente o nome de quem o escreve. Então, sem que seja percebido, um cordel que ainda há de ser escrito já possui assinatura, assim como a marca inserida por um artista ao findar sua pintura; no entanto, esta assinatura, que normalmente é o final de uma obra, agora se faz começo e, ao começar pelo final, nesses versos que assinam o cordel estão, também, os primeiros traços para um cordel inteiro, que já se fez assinado. Do mesmo modo, o poeta Francisco Sales assina seu cordel Mal assombrada peleja de Francisco Sales com o “Negro Visão”, citado a seguir. A assinatura que o encerra pode, ainda, ser lida ao começo, introduzindo a leitura da obra; logo, um fim começo. “A refração da luz é a mudança na direção de propagação dos raios luminosos quando estes passam de um meio para outro meio diferente, como o ar e a água. A refração acontece devido ao fato de a luz se propagar com velocidades diferentes em meios diferentes.” (VALIO, 2009, p. 307). 14 “Quando um feixe de luz policromática sofre refração, ocorre a separação do feixe único em feixes das várias cores que compõem essa luz. Esse fenômeno de separação de um feixe de luz em diferentes cores é chamado de dispersão” (Idem, p. 318). 13

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Faço ponto, meus amigos Sobre a tremenda porfia A todos peço desculpas Lendo esta poesia Espero de cada um Sua boa garantia .15

Referências ARAÚJO, A. Ana Paula de. Literatura de cordel. 2007. Disponível em: Acesso em: 23 fev. 2012. ARÊDA, Francisco Sales. A mal-assombrada peleja de Francisco Sales com o Negro Visão, 1987. Disponível em: Acesso em: 02 abr. 2012. ATÉ O SOL RAIÁ. Direção e Roteiro: Fernando Jorge e Leandro Amorim. Produção: Amaro Filho; Claudia Moraes e Rafael Coelho. Pernambuco. Fantoche Studio e Página 21, 2007, 11min. Curta-metragem, animação. Disponível em: Acesso em: 14 fev 2012. BARROS, Leandro Gomes de. Imposto de honra. Disponível em: Acesso em: 08 mar. 2012. CORAZZA, Sandra Mara. Notas II – Traduzir. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011, p. 59-80. DALAROSA, Patrícia Cardinale. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: Ed. UFMT, 2011. GLOBO RURAL. Direção: Humberto Pereira. Edição: Helen Martins e Lucas Battaglin. Rede Globo de Comunicações, 2011. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2012. GRILLO, Maria Ângela de Faria. A literatura de cordel e o ensino da história. 2008. Disponível em: . Acesso em: 07 fev. 2012. ARÊDA, 1987.

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HEUSER, Ester Maria Dreher. Linhas para uma (micro)política de escrileituras: ler e escrever em meio à vida e às políticas de Estado. In.: _____ (Org.). Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011, p. 111-120. LINHARES, Francisco; BATISTA, Otacílio. Gêneros de poesia popular. Disponível em: . Acesso em: 29 fev. 2012. MOTTA, Roberto Coutinho. O cordel em cordel: história da literatura do cordel em versos. 2007. Disponível em: Acesso em: 23 fev. 2012. MOURA, Paulo. A origem da nossa literatura de cordel. 2011. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2012. SILVA, Antônio Gonçalves da. Glosas sobre o comunismo. In: CARVALHO, Gilmar de. Cordéis e outros poemas: Patativa do Assaré. 2006, p. 106-111. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2012. SILVA, Marcos Mairton da. A técnica de fazer cordel. 2007. Disponível em: Acesso em: 30 jan. 2012. SILVA, Severino de Andrade. Ai! Se sêsse!.... Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2012. VALE, Mundim. Receita para cordel. 2009. Disponível em: . Acesso em: 27 fev. 2012 VALIO, Adriana Benetti. Ser protagonista: Física 2. São Paulo: Edições SM, 2010.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

RELATO DA OFICINA: Escrivida – do tempo morto ao vivo Karen Elisabete Rosa Nodari Simone Vacaro Fogazzi Luciana Paiva Conceição

Introdução A oficina Escrivida - do tempo morto ao vivo é um desdobramento de um projeto de pesquisa maior: Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, coordenado pela profa. Dra. Sandra Mara Corazza que integra o Observatório da Educação1. Ao trabalhar com a escrita dos alunos, este projeto se insere num cenário que busca alternativas de compreensão e superação dos resultados apontados pelo INEP, principalmente aqueles que sinalizam as dificuldades de linguagem na escola, expressadas pela grande maioria dos alunos da Educação Básica, por meio da avaliação da prova Brasil. Dificuldades apresentadas pelos mais diversos motivos, ligadas ao próprio uso e produção da linguagem, ou seja, relacionadas à associação entre conteúdos escolares e operações mentais envolvendo leitura, interpretação, escrita, variações acerca de um mesmo tema, relações entre fatos, saberes e locais, diferentes usos da linguagem, singularizações, raridades, processos de pensamento e expressão, relações espaciais, temporais 1

Edital 038/2010 (CAPES/INEP).

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e históricas, sensibilidade para as artes como modo de expressão e de invenção de variedades, bem como as habilidades e competências necessárias ao estabelecimento de problemas no campo das Ciências Exatas e Humanas. Cabe salientar que a alfabetização é concebida como prática e como conceito que está para além de uma apropriação do código da escrita, sabidamente necessário para responder de maneira satisfatória às demandas sociais. Entende-se a leitura e a escrita como práticas que acontecem em diferentes suportes, de múltiplos modos; como ações criadoras de sentidos diferentes para cada “leitor-escritor” em seus processos de subjetivação e que, portanto, entram na linguagem em suas variadas formas. Nessa perspectiva, propõe-se a criação de outros modos de pensar o vivido no campo das singularidades, oportunizando, através de oficinas de escritura, a experimentação de outras maneiras de expressão, de afectos e de perceptos, de modos de enfrentar e de ordenar o que ainda não está materializado no campo da aprendizagem. O trabalho com oficinas de escritura implica, necessariamente, o campo do vivido, dos sentidos, das sensações e das invenções. Cada uma das oficinas compreende um convite à escrita e à leitura: escrileituras que se desdobrarão em saberes, histórias, aventuras, problematizações, musicalidade, arte, fantasias e fruições. Trata-se de um projeto que pretende explorar e ampliar as possibilidades do trabalho com diferentes linguagens, provocando outros modos de relação com a escrita, com a leitura e com a vida. A modalidade de ação proposta nas oficinas, nesse sentido, compreende a experimentação como condição da aprendizagem, uma vez que seja possível convocar para a ação do pensamento. Investese, portanto, em processos disparadores da criação textual, na medida em que colocam um problema em cena: a ser lido, falado, sentido, enunciado, perguntado, sentido, transformado e escrito em suas variadas formas. As experimentações textuais propostas neste projeto não buscarão a generalização do particular ou a comprovação de quaisquer tipos de “evidências”, tampouco compreenderão a noção de conhecimento como algo de natureza exclusivamente empírica ou ainda passível de desvelamento. Entretanto, elas tratarão, como encontramos em Nietzsche2, da vida como obra de arte: do desordenamento necessário à 2

NIETZSCHE, 2008.

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criação; da ideia de afetação, de vontade de potência, de transgressão e de abertura ao encontro inesperado com outro corpo, seja ele um texto, uma imagem, uma pergunta, um pensamento, um humano... Trata-se de por em experimentação o que não se conhece, por meio de uma espécie de infância do mundo. E, na extensão de sua estrangeiridade, fazer falar e escrever outra língua na liberação de forças mais potentes e criativas. Tal experimentação é entendida como algo que possa forçar o pensamento, com a potência do esfacelamento necessário daquilo que impede o estabelecimento de outros modos de relações, de outras aprendizagens, além de ser tributária da noção de corpo rizomático – atravessado e composto por uma infinidade de linhas e de fluxos que fogem ao infinito, tais como cheiros, imagens, hormônios, afetos, sensações, ondas sonoras, gravitacionais, dinamizadas... O conceito de escrileitura, portanto, insere esta oficina na dimensão imaginativa de toda a escritura ou texto de fruição. Ou seja, lidará com os modos de produção e de inscrição de sentidos, de histórias, de vidas, de coisas no mundo, etc., que acontecem através das e nas brechas experimentais, situadas entre espaçamentos não pensados, no imenso campo de possibilidades que há entre os objetos brutos para dizer da importância do outrem na criação. A escrileitura, como exercício imaginativo, encontra-se na própria experimentação do pensamento. Ela está na abertura ao necessário desordenamento caótico na medida em que possibilita um encontro do pensamento com o fora, algo com que o retira do mesmo, do senso comum, da cópia e dos modelos. Porém, toda criação necessita de referências, pontos seguros de onde se possa partir e retornar diferente. Por se tratar de um projeto desdobrado em oficinas de escrileitura, operou-se com este conceito a partir das indicações de Corazza3: como texto que reivindica uma postura multivalente do leitor, de co-autoria. Assim, a ideia da escrita como um processo de escrileitura, remetido a uma “escrita-pela-leitura” ou uma “leitura-pelaescrita”, propõe um texto aberto às interferências do leitor e, portanto, sempre escrevível de diferentes maneiras. Trata-se do texto produtivo, ou seja, aquele que ganha existência na medida em que seu leitor é um produtor de significações. 3

CORAZZA, 2010.

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Sob tal perspectiva, a oficina Escrivida pertence a um dos seus eixos, denominado biografema. Este conceito quer dizer escrever os detalhes de uma vida, as raridades que passam despercebidas ou que ainda não foram significadas e partilhadas no plano cognitivo, a fim de transformar detalhes insignificantes (sem significação anterior) em signos de escrita. Utilizar estes signos (aqueles que podem encantar) como disparadores de um texto, ou seja, da escrita de uma vida em experimentação e que, portanto, é produzida na potência da invenção de sentidos. Isso implica na invenção de conectores entre ficção e realidade, entre imaginário e história biográfica, de modo que a escrita ficcional não é menos verdadeira do que aquela que se acredita no terreno da verdade: cada traço um detalhe e cada detalhe uma nova escritura. Isso significa dizer do acontecimento (escrita) de uma biografia, na qual os traços são inventariados.

Escrivida em ato A oficina Escrivida - do tempo morto ao vivo – como o nome já indica – trabalhou com a escrita de uma vida que transcorre no tempo. É sabido que a vida que passa pelo tempo produz marcas, dá origem a linhas. Traçados que podem ser percorridos de duas maneiras: seguindo de um ponto inicial a um final, traçando os fatos marcantes de acordo com uma cronologia, como também se deixando guiar os pontos pelas afecções com estes, ingressando num outro tempo, intensivo, a romper com a cronologia, com o tempo morto, onde não se identifica mais um momento inicial ou final, mas a interconexão daqueles pontos a produzir intensidades, tempo vivo e uma outra vida. Portanto, a oficina se propôs a explorar, justamente, esta zona de passagem, um entre-tempo, quando algo rompe com a circularidade dos ponteiros do relógio. Os conceitos de tempo para os estóicos – Cronos e Aion – e o de identidade platônica foram trabalhados com os alunos da 8ª Série do Ensino Fundamental do Colégio de Aplicação da UFRGS, tendo como matéria a vida. A pesquisa sobre a vida de personalidades – ícones dos alunos das mais variadas áreas: a música, os esportes, o cinema - serviu de disparadores para pensar as suas escolhas vitais. O que naquelas vidas pulsa e vibra com o momento de vida dos alunos? O entrelaçamento dessas vidas como uma produção em aberto, rompendo com as iden-

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tidades originais tanto dos ídolos como a dos alunos, produzindo outras vidas. Os encontros com os 58 alunos das turmas 81 e 82 ocorreram semanalmente, entre os meses de maio a julho de 2011. A fim de atingir os objetivos propostos, as oficineiras planejaram vários procedimentos denominados de descolarmento. Tal procedimento baseou-se em duas grandes referências: o tempo intensivo da própria vida – as reminiscências, as memórias vivas, momentos experimentados que trazem à tona o devir-infantil–, e o tempo cronológico de outras vidas consideradas louváveis, admiráveis – a vida de outra pessoa cujos alunos admiram. No encontro destas duas existências de tempos diferentes, o novo: criação de uma vida outra, intensa, possível, num outro tempo...

O descolarmento Mas, deleuzianamente falando, como eles funcionaram tais procedimentos? Eles implicaram nas seguintes direções: • A operação de descolar das ideias prontas, sejam elas quais forem, não é produto de qualquer coisa ou qualquer método. • Ao se aplicar o procedimento de descolarmento, mesmo que seja numa escola, o objetivo não é o de alcançar uma resposta correta ou verdadeira. • Para proceder a um descolarmento, seja ele qual for, é necessário que a matéria a ser trabalhada tenha uma forma previamente definida. • É somente descolando o que já está colado, ou seja, deformando uma matéria que se cria o novo. • Um escolar pode se descolar sem deixar a sala de aula; ou melhor, descola-se mesmo sem sair do lugar. • Proceder a uma operação de descolamento de uma biografia não significa escrever sobre a vida, mas colocar vida na produção escrita. • Descola-se da referência temporal e identitária de uma vida para se criar algo novo, vivo. O procedimento de descolarmento não deixa de ser uma conduta. Não qualquer uma, ou coisa qualquer. Não se estava lá para isso. Inventou-se um modo de agir para que um escolar decole, para que

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descole... Das quatro paredes da sala, das classes e do quadro verde e, ao se descolar, deixe de ser escolar, descolarize, crie asas, trilhe novos horizontes, ocupe um lugar outro na órbita educacional. Espaço de criação, onde o certo e o errado perdem o sentido. Enquanto o deus Cronos dá passagem a Aion, fatos significativos do passado agem e reagem sobre o momento presente, ganham vida; linhas se produzem e se cruzam, uma outra vida surge, algo da ordem do desconhecido, do novo, a pedir passagem, nem mais a biografia dos ídolos, nem mesmo a dos escolares.

Relato da oficina A maneira criada para que os procedimentos de descolarmento fossem experimentados pelos alunos começou com o entendimento que os mesmos tinham sobre os conceitos de tempo e de vida. Os grupos elegeram palavras relacionadas a estes conceitos que preencheram o quadro verde. A partir daí, as oficineiras apresentaram os conceitos de tempo vivo e tempo morto – Aion e Cronos – que Deleuze4 afirma serem deuses gregos associados à passagem do tempo, dois grandes arquétipos. Cronos é o deus que representa a ideia de um tempo medido, em que o presente contém em si o passado, que o determinou, e o futuro, seu resultado. Aion é o deus que representa o instante, tempo imensurável, que é passado e presente ao mesmo tempo, puro devir, movimento incessante. Cronos é, assim, o tempo ilimitado e finito, enquanto Aion é o tempo limitado e infinito. O primeiro demarca eras, acontecimentos históricos, as horas – efetuação, enquanto que o segundo é o tempo de um afeto intenso, de uma dança, uma música – incorporação. Seguindo com a provocação de um devir-infantil5, foi apresentado um questionário com recortes da letra de duas músicas: “Tempo, tempo, tempo”, de Caetano Veloso, e “Vida, louca vida”, de Cazuza. Iniciou-se com a audição da música do Cazuza, seguida da leitura dos 4 5

Conceitos apresentados por DELEUZE, 2007, p. 170. Conforme DELEUZE (1997, p. 218), o devir não é o ser nem o estar, devir é o vir a ser eterno, nunca localizado, em eterno movimento; o devir evoca as forças das possibilidades. Nos procedimentos de criação o devir participa como matéria da fabulação. Que não é a reminiscência, nem a memória.

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versos de Caetano e do questionário de forma coletiva. Perguntas pertinentes à infância, disparadoras dos afectos6 diversos presentes nos alunos. Um instrumento que não buscava respostas “certas” e nem poderia determinar respostas “erradas”, uma vez que as mesmas eram baseadas nas experiências dos alunos. Trazer para o presente a memória viva das brincadeiras, dos cheiros, coleções, entre tantas outras coisas foi fazer valer a experiência de um tempo vivo. Segundo uma das oficineiras7: Os alunos entusiasmaram-se muito rememorando seus tempos intensivos da infância. As sensações despertadas pelos momentos propostos eram vivas e vividas novamente. As intensidades foram compartilhadas entre colegas; barreiras de grupos se desmancharam, pois naquele momento todos eram crianças novamente. Era tão intensa a sensação que não era possível controlar os corpos sobre as cadeiras ou em um espaço limitado da sala de aula. Alunos circulavam para compartilhar emoções vividas. Troca de lembranças: os desenhos animados, os filmes e seriados assistidos, brincadeiras preferidas, tudo era tão vívido.

A sensação, segundo Deleuze8 é a via capaz de ultrapassar a narração, a representação da infância. E, como a sensação experimentada era muito intensa, as oficineiras estenderam esse tempo pedindo aos alunos que compusessem uma caixa de memórias – montando uma coleção de objetos “vivos”, que despertassem memórias9 de acontecimentos intensos – para que, no momento oportuno do exercício de escritura, fossem retomadas. Apesar de alguns terem realizado a tarefa e querer muito mostrar aos colegas, a maioria demorou a realizá-la, esvaziando lentamente a intensidade da proposta. Nos materiais produzidos, ao final dos encontros, percebeu-se que a não realização destas tarefas comprometeu a produção de um texto vivo. Na continuidade da oficina, já passados sete dias do encontro anterior, a preocupação era em como lidar com as intensidades, de forma Idem, p. 220. Afectos são os “devires não humanos do homem”. Relato oral da oficineira, contado num dos encontros de avaliação da oficina, onde a mesma coloca suas percepções sobre as intensidades presentes no devir-infantil. 8 DELEUZE, 2007. 9 Memória de pontos de vista regidos pela intensidade, portanto deformados. Trazer ao presente o universo intensivo da infância foi intenção do questionário. 6 7

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que a organização da aula, necessária para a produção, não a matasse e desse passagem a um outro tempo, a novas sensações, a fim de que a composição de tudo possibilitasse a escritura, ou seja, a autoria de um texto ao mesmo tempo intenso e ordenado, composto com as sensações de uma vida. Nessa atividade, as oficineiras pediram aos alunos que nominassem pessoas por eles admirados. Quem ou quais personagens da mídia eles conheciam e que fossem seus ícones, tanto na música, na literatura, no cinema ou em outra área. Para que se estabelecesse um entendimento, os nomes citados foram colocados no quadro verde. Cada nome falado disparava outra sugestão. Assim, foram dispostas sugestões e ideias. Em seguida, as oficineiras propuseram aos alunos que escolhessem um nome, podendo ser um dos sugeridos, ou outro qualquer que desejassem. Tendo em vista a construção de uma linha de vida deste personagem, baseada no tempo cronológico, os dados mais marcantes das biografias integrariam tal linha que teve apoio em recursos variados de consulta, tais como internet, livros e revistas. No sentido de auxiliar a organização, foram disponibilizadas folhas estruturadas com “caixas de texto” ligadas a uma “linha”, em que os alunos podiam conectar umas às outras para dar o tamanho da “linha” que precisassem. A atividade estendeu-se por duas aulas e foi realizada em duplas. Por comparação, o tempo cronológico, tarefa destas aulas, não entusiasmou os alunos que a realizaram esperando o que seria feito a partir daí. Optou-se por guardar um pouco de mistério, para aumentar a expectativa. Como as “caixas de memórias” recolhidas ao longo dos encontros não estavam alcançando índices aceitáveis, os rumos da oficina foram alterados. Inseriu-se uma atividade nova: a criação de um memorial com imagens recortadas de revistas que apresentassem seus momentos intensos de lembranças de vida. A intenção inicial era mostrar como uma vida poderia ser contada – e a “caixa de memória” seria uma forma de experimentar a construção de um ponto de vista sobre a paisagem existencial. Outras formas de ver tais paisagens, apresentadas de diferentes maneiras, foram recolhidas de pedaços do filme “O Fabuloso Destino de Amelie Poulain”, do diretor francês Jean-Pierre Jeunet, com Audrey Tautou e Mathieu Kassovitz no elenco, produzido em 2001.

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No encontro seguinte, os recortes foram apresentados e estabeleceu-se uma conversa no intuito de fazer os alunos observarem o que estava sendo mostrado, o que havia de comum entre todos os recortes do filme. Depois de perguntas, “chutes”, observações, o grupo de alunos concluiu que eram histórias de vidas. As oficineiras, então, por meio de perguntas, os fizeram perceber que as maneiras de contar estas histórias eram diversas e intensas. Combinou-se que, na próxima aula, eles criariam uma forma de contar sua história. Fabular é criar. Criação de monumentos que, de acordo com Deleuze10, não comemoram o passado, não são obras da memória. Antes disso: são blocos de sensações escritos em devires, em movimentos de intensidades, que não buscam trazer a memória do vivido, nem a reminiscência do experimentado. Monumentos erguidos com a matéria – neste caso, palavras e frases – trabalhadas de maneira que faça-a vibrar. Fazer vibrar a sensação no texto, no leitor e escritor. Para esta construção, disponibilizou-se materiais como revistas, colas, tesouras e folhas coloridas para a montagem do memorial, que poderia ser um álbum de fotos, um diário, uma caixa de lembranças, etc. Uma questão de forças presentes no processo de escrita, que naquela hora se tornariam visíveis. Solicitou-se apenas que fosse legível, realizada sem pressa, dando passagem às intensidades da vida que se criava a partir daí, provocando outra sensação: ler algo que foi escrito de modo pessoal. Que a página em branco fosse coberta pelos traços em curvas, retas e círculos de acordo com as regras há muito estabelecidas numa caligrafia. Em letras irregulares e coloridas, a escrileitura se instalou como uma experiência criadora, onde há exercício de vida, de escrita, que desconfia das facilidades da existência, que mergulha na sensação, contrariando a ordem e a noção de tempo cronológico. Ao final, uma obra a ser apreciada no todo, com todos os materiais existindo, interagindo. A atividade se mostrou interessante no sentido de abrir um espaço, em uma oficina de escrita, para a expressão das intensidades de uma vida, sem o uso determinado da linguagem, abrindo o experimentado para outras ordens de sentido: da cor, das formas, das imagens. Constituindo-se, dessa forma, blocos de sentidos e blocos de sensações. 10

DELEUZE, 1997.

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Os signos construídos pelos alunos se referenciaram em imagens de mídias impressas, como revistas, jornais, propagandas. Porém, novos sentidos surgiram, outras paisagens se formaram. Um ponto de vista singular de uma vida. Bloco de sensações, frágeis e intensos. Depois desses exercícios, já no sétimo encontro, foi proposto que os alunos escrevessem. Não uma escrita qualquer, mas um dia na vida de um duplo, um personagem que misturasse fatos da sua vida com dados cronológicos da linha de vida do ícone. Verdadeira fabulação de uma vida. Para esta atividade de escritura, foi necessário esquecer a sua própria vida e esquecer a vida do ícone, para haver espaço para a criação de uma nova vida, um remanejamento dos fatos, das intensidades, dos atos para criar uma fábula, de personagens, de acontecimentos, enfim, criar um texto, um monumento. O esquecimento é necessário para a criação, referencia Deleuze11. À fabulação criadora, o esquecer: não se deve confundir a criação de um texto com a descrição do vivido. Fabular é criar a vida ainda por vir, das afecções e percepções do que poderá vir a ser ou não. Esquecimento necessário para apagar a opinião e criar a sensação. O que resultará do encontro entre palavras, objetos e fotos? O que se pode criar com tudo isso? Os alunos foram convidados a imaginar e a descrever um dia desta nova vida. A partir de conversas com eles, entre as classes, propomos que podia ser um encontro entre ele e o personagem inventado. Um possível diálogo... Estando cada aluno de posse de seu questionário da memória, da caixa com suas lembranças ou da forma criada para a expressão das intensidades de sua vida, e da linha de vida, os alunos começaram a atividade. Toda esta matéria deveria ser deformada para fazer surgir uma nova vida. Pediu-se que escrevessem a mão. Que pensassem na letra do personagem, se fosse uma carta ou trecho de diário. Que a escrita manual marcaria um detalhe dele, sua maneira de pressionar o papel, com força, com suavidade, a escolha da cor da caneta ou do lápis. Forças presentes na escritura que, desta forma, tornar-se-iam visíveis. Que daria outra sensação ler algo que foi escrito de modo pessoal. Solicitou-se que fosse legível, que escrevessem sem pressa, que pensassem nas intensidades sentidas por aquela vida que criavam a partir daí. 11

DELEUZE, 1997.

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A escritura desenvolveu-se em tempos diferentes. Alguns terminaram no dia; muitos precisaram de duas aulas e outros de mais tempo. Todos estavam concentrados e um silêncio se estabeleceu. A intensidade da escritura exigiu um recolhimento que não foi solicitado, a não ser aos que terminavam, para que respeitassem o ritmo dos colegas. A atividade continuou no encontro seguinte, no qual alguns alunos faltantes iniciaram a escritura após orientação. Aos que acabavam, era disponibilizado material para a criação de um memorial, semelhante ao seu, para o duplo. As caixas de lembranças, por conterem materiais únicos e preciosos, foram logo devolvidas. Os alunos que as trouxeram estavam muito nervosos com a segurança das mesmas. A maioria dos alunos pediu para terminar ou “passar a limpo” os textos produzidos durante a semana, em casa. Combinamos que os líderes recolheriam e nos entregariam em data combinada.

Uma breve avaliação Nos encontros de análise dos textos e avaliação da oficina, observou-se, de maneira geral, que os alunos que participaram completamente das atividades propostas, conseguiram produzir escrituras mais intensas. Os que haviam realizado apenas parte das atividades – por não estarem presentes ou por não quererem realizálas – conseguiram escrever, porém sem a força observada nos textos do primeiro grupo. Obviamente, não foi pretensão que o resultado fosse unânime e, alguns, mesmo não tendo realizado todas as atividades de forma integral, conseguiram a força textual. Porém, pode-se observar que realizaram pelo menos duas das atividades e tiveram dificuldades de compreender a criação da escrita, o que demandou mais tempo das oficineiras em esclarecer tais dúvidas. Aos que quase não compareceram às aulas, notou-se uma produção textual pequena, pouco intensa. Desse grupo, a maioria não fez a tarefa da escrita. Concluise, preliminarmente, que o procedimento de descolarmento facilita a produção de um texto intenso, porém não consegue atingir a todos. A força do grupo, sendo a totalidade da turma ou grupos menores, influencia a produção das tarefas. As forças sentidas, seja do devirinfantil ou dos materiais sensíveis da forma criada para a expressão das intensidades das suas vidas, foram disparadoras de sensações

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caóticas. E a linha de vida do ícone, estruturada, foi como uma âncora para dirigir a escritura. Um ponto fixo e compreensível em torno do qual puderam “viajar”, mergulhar no caos sem se perder e criar. A falta de um professor único contribuiu para a ambientação de um espaço de criação, pois os alunos demonstraram, em alguns momentos, a preocupação em “agradar” ao professor. Como eram muitos professores dirigindo a oficina, não houve um padrão de texto a seguir. Mesmo com a orientação que não se preocupassem em “agradar” ninguém, a não ser a eles mesmos.

Referências CORAZZA, Sandra Mara. Escrileituras: um modo de “ler-escrever” em meio à vida. Projeto de pesquisa, Observatório da Educação, CAPES/INEP, 2010. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2007. ______. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2007. NIETZSCHE, Friedrich W. A vontade de poder. Trad. Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Apres. Gilvan Fogel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

DA ESPECIFICIDADE DA ESCRITA E LEITURA FILOSÓFICA Leandro Nunes

Súmula A presente oficina foi pensada com a intenção de introduzir os calouros do curso de Filosofia na escrita filosófica. Tal propósito valida-se na necessidade eminente da construção de uma ponte que sirva como intermédio ou passagem para a filosofia acadêmica, que se resume à leitura e à escrita. A introdução que a presente oficina se propõe a fazer comumente é ignorada no meio acadêmico, pois nele exige-se que se escreva constantemente, mas raramente as formas que tal escrita impõe são demonstradas. Quando nos deparamos com um texto – seja ele poético, literário, científico, filosófico, ou de qualquer outro gênero –, de alguma maneira acabamos identificando-o ou classificando-o em uma categoria convencionada. No entanto, raramente paramos para pensar quais os quesitos, ou qual o estatuto que cada forma ou estilo de escrita necessita ter para ser classificado como sendo de um gênero específico e não de outro. Reconhecemos quase que instintivamente que uma poesia não é um texto cientifico, ou vice-versa, mas sabemos realmente o que faz uma poesia ser poesia? Sabemos o que determina que um texto científico seja científico e não literário? Com essas indagações introduzimos a presente oficina, apresentando textos poéticos, literários, científicos

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e filosóficos com a preocupação de tentar identificar o estatuto que classifica o gênero de cada um deles.

Introdução A Filosofia possui uma linguagem própria, um modo de se expressar que lhe é inerente. Acreditamos que um texto de cunho filosófico possui um estatuto que o classifica como sendo filosófico. Escrever é uma arte, o que pressupõe uma técnica, um conhecimento de sua língua e de seus sentidos. Para escrever um texto filosófico é preciso que sejam utilizadas técnicas contidas na prática filosófica, a saber, a escrita. O que chamamos de técnicas contidas na escrita filosófica são os componentes pelos quais todo texto filosófico é construído. Esses componentes são justamente o que definem o texto filosófico. Todo texto filosófico contém – ou deve conter – ao menos quatro elementos que fazem parte do estatuto que define um texto como sendo filosófico, a saber, o problema (que move o escritor a pensar), o conceito (produto da filosofia), as metáforas e o diálogo – rigoroso – com a tradição, com os textos clássicos da Filosofia, “em cada fragmento de texto filosófico se pode encontrar, devidamente doseados, conceitos, metáforas, argumentos. E as operações que os articulam podem, também elas, ser reveladas”1.

Elementos constituintes do texto filosófico O Problema é o que move o escritor a pensar. É a partir do problema proposto que o texto começa a ganhar forma. Todas as resoluções e argumentações contidas no texto filosófico estarão no horizonte do problema central que o filósofo propôs. Em suma, “não é possível ‘entender’ filosofia se não entender o problema abordado por um filósofo”2. Encontrar o problema central da obra filosófica é entender as regras de leitura para tal texto. É exatamente a partir do problema que a leitura – mesmo a escrita – deverá proceder, é o problema que impulsiona o filósofo, é o problema que move e força o pensamento a ser posto no papel. 1 2

COSSUTTA, 1998, p. 13. PORTA, 2002, p. 15.

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O Conceito é o produto da Filosofia, é conceitualmente que a Filosofia se faz entender. Compreende-se que o conceito é o meio pelo qual a leitura ou a escrita se faz, “é precisamente o conceito que constitui o intermediário entre a imagem e a forma, entre o vivido e o abstrato” 3. O conceito é utilizado pela Filosofia de várias maneiras e não há filósofo ou Filosofia que não recorra ao conceito. O conceito é um fator necessariamente constituinte de toda reflexão filosófica. Não há conceito simples. Todo conceito tem componentes, e se define por eles. Tem, portanto, uma cifra. E uma multiplicidade, embora nem toda multiplicidade seja conceitual. Não há conceito de um só componente: mesmo o primeiro conceito, aquele pelo qual uma filosofia “começa”, possui vários componentes, já que não é evidente que a filosofia deva ter um começo e que, se ela determina um, deve acrescentar-lhe um ponto de vista ou uma razão.4

Aceitando que o conceito possui um papel central na Filosofia, devemos atentar para o sentido que cada filósofo dá para um determinado conceito, pois as noções empregadas pelo filósofo em seu texto devem ser tratadas como únicas e de sentido restrito para aquele autor. Analisar pormenorizadamente a argumentação utilizada no texto é o básico para qualquer leitura filosófica. O filósofo (...) opera ao nível da organização dos signos, e não sobre os signos organizados. Traça a arquitetura explícita da relação entre conceitos, constrói uma completa estruturação do significado, de uma forma que não é nem “arbitrária” nem “convencional”, mas que se pretende necessária e capaz de, para além da organização mais ou menos contingente efetuada pela língua, reproduzir o ser no dizer. 5

*** A Metáfora é usada no discurso filosófico como uma ferramenta de elucidação. O discurso filosófico é entendido por muitos como sendo COSSUTTA, 1998, p. 49. DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 25. 5 COSSUTTA, 1998, p. 78. 3 4

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algo de natureza totalmente abstrata. Por isso a Filosofia atua numa dicotomia entre “mundo das abstrações e mundo das realidades”6, sendo a metáfora o elo entre esses dois mundos. De certa maneira, podemos entender o filósofo como uma espécie de artista, um artista que faz um vai e vem entre o mundo real e o mundo abstrato. O artista, quando executa a sua obra, cria o possível e, ao mesmo tempo, o real, é em si mesmo complexo, pois pressupõe que produzir uma obra é criar, mas num duplo sentido: modificar os quadros da representação e da ação, é abrir um campo de possibilidades, é criar o possível.7

Mas o filosofar não é apenas abstração pura, é o “substrato ontológico (...) ‘que’ produz no seu seio efeitos do real que permitem que a filosofia escape ao nível da ficção”8 . E é nessa dicotomia entre mundo das abstrações e mundo das realidades que a metáfora age, sendo utilizada em todos os textos filosóficos como forma ou imagem que possibilita a Filosofia passar ou tocar o real. A operação metafórica é “uma transferência de propriedades pertencentes a um domínio de referência concreto e figurado para a cadeia textual abstrata dominante ” 9. As metáforas não são apenas meros elementos constituintes dos textos filosóficos, elas “estão profundamente inseridas no âmago da doutrina, e com mais forte razão, evidentemente, quando a doutrina procede a uma crítica do conceito”10. As funções da metáfora no texto filosófico são muitas; toda a sistematização da reflexão filosófica pode ser empregada pelo filósofo por meio da metáfora. A importância das metáforas varia de autor para autor, diferenciando-se pelo modo que são utilizadas, “contudo, as metáforas, mesmo quando a função é fraca, têm a particularidade de pertencer à discursividade filosófica” 11. *** 8 9

Idem, p. 85. Ibidem, p. 86. Ibidem, p. 90. Ibidem, p. 115 [itálicos do autor]. 10 Idem, p. 130. 11 Idem, p. 135. 6 7

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Por último, mas não menos importante, temos o diálogo com a tradição, com a História da Filosofia. Para ler e escrever Filosofia, este é um elemento mais do que necessário e é nesse diálogo com a tradição que o texto ganha autoridade filosófica. Esse diálogo com a tradição pode ser feito com textos clássicos da Filosofia, com tradições que se aproximam ao problema abordado ou, ainda, com a não-filosofia, a literatura, as ciências ou as artes.

Passo a passo • Como supracitado esta oficina foi concebida com o objetivo de recepcionar os calouros do curso de Filosofia da Unioeste com o intento de ser o primeiro contato que os estudantes teriam com textos de cunho filosófico. A presente oficina trabalhará com os estudantes uma poesia de Carlos Drummond de Andrade, intitulada “As sem razões do amor ”12 , assim como um texto científico sobre morcegos (autor desconhecido)13 e um texto de cunho literário/ poético de minha autoria, intitulado “Um mundo de espelhos”14. • Feito isso, os participantes das oficinas serão indagados sobre como eles identificam os textos, como eles classificam um texto como sendo poético, outro científico e outro literário/poético. • Logo após esse momento, será comentado que cada texto possui características que o classificam como sendo de um gênero e que com a Filosofia não é diferente. Logo, teremos de nos apossar de um texto filosófico e esmiúça-lo à procura dos componentes que o caracterizam como tal, ou das características que lhe fazem gozar o título de filosófico. Para tal empresa, escolhemos o texto do filósofo alemão Immanuel Kant intitulado “Resposta à pergunta: o que é o iluminismo?”, publicado em 178415. Escolhemos um texto clássico da tradição filosófica, um texto escrito em linguagem clara e, ao nosso entender, adequado para um primeiro contato com a Filosofia. Texto encontrado em . Texto encontrado em . 14 Oficina do projeto Escrileituras publicada no CD da XIV Semana Acadêmica de Filosofia da Unioeste. 15 Texto encontrado em . 12 13

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• A leitura do texto será feita por toda a turma. Dois alunos lerão, alternadamente, em voz alta e de forma corrida um parágrafo do texto. Quando interrompermos a leitura, indagaremos a turma sobre o que apreenderam do texto. Logo, explica-se que a leitura filosófica acontece em um constante vaivém, lê-se com extrema atenção, com precisão cirúrgica, não se deixa escapar nada. Fixando isso, termina-se a leitura do texto e discute-se sobre tal. • O próximo passo da oficina será uma tentativa de fixar quais os componentes que encontramos no texto de Kant que o tornam filosófico. Para isso, será introduzido um texto no qual trato dos quatro pilares supracitados que compõem todo texto filosófico. Não obstante, far-se-á uma leitura com toda a turma acerca deste texto, encerrando a primeira parte da oficina, que terá como foco a leitura filosófica. • A segunda parte da oficina intentará trabalhar a escrita filosófica. Para isso, divide-se a turma em grupos de quatro ou cinco pessoas e entrega-se um texto filosófico para cada grupo. Os textos escolhidos form: A coruja na Gaiola de Alessandro Pinzani; A conversão filosófica de Gerd Bornheim; A Filosofia a Partir de seus Problemas de Mario A. G. Porta; • O último passo se dará quando os alunos serão instigados a escrever um texto filosófico comentando aquele que acabaram de ler, sendo instruídos a utilizar todos os componentes que compõe um texto de cunho filosófico, destacados anteriormente. Quando acabarem esta produção – feita em casa –, os textos serão enviados para a leitura dos oficineiros, sendo devolvidos com anotações. Para encerrar, os participantes da oficina serão instruídos a guardar este que é o primeiro texto que eles produzirão na academia e, no final do ano, o lerão novamente, comparando-o com os outros textos produzidos durante o ano, tentando estabelecer o caminho percorrido.

Leitura/escrita filosófica A Filosofia elabora suas próprias regras de leitura e escrita, possui uma linguagem própria, um âmbito que lhe é singular. Logo, “a leitura de textos filosóficos terá, então, de ser abordada do ponto de vista

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estritamente filosófico”16 . Toda obra filosófica “elabora ou pretende elaborar as condições de sua própria validade, e, portanto, enuncia as próprias regras da leitura que dela se pode fazer”17. Os textos filosóficos possuem uma complexidade que lhes é inerente, por isso faz-se necessário que se leia muito, pois “estamos perante uma disciplina em perpétuo movimento, em que as diferenças entre tipos de método e tipos de objeto de análise escolhido, se fazem e desfazem constantemente”18.

Referências BORNHEIM, Gerd A. Introdução ao filosofar. O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais. São Paulo: Globo, 1998. COSSUTTA, Fréderic. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Trad. portuguesa: Didáctica da Filosofia: como interpretar textos filosóficos? Lisboa: ASA, 1998. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Trad. de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. PORTA, Mario Ariel González. A Filosofia a partir de seus problemas. São Paulo: Loyola, 2002.

COSSUTTA, 1998, p. 11. Ibidem. 18 Ibidem, p. 10. 16 17

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

HORIZONTES DA LEITURA1 Ester Maria Dreher Heuser Janete Marcia do Nascimento Luciana Alves Pinto Michelle Silvestre Cabral

Na medida em que a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, seu papel na nossa vida é salutar. Proust

Leitura O que é ler? Como se lê? De onde se começa uma leitura? Como se escolhe algo a ser lido? Desde quando começamos a ler? Em que momento se pode afirmar que aprendemos a ler? Até quando se pode ler? O que se pode ler? Quais são os horizontes de uma leitura? Como se criam possibilidades e limites de leitura? Manguel2 comenta sobre o que o ensaísta canadense Stan Persky disse-lhe, uma vez: “para os leitores, deve haver um milhão de autobiografias”, pois parece que Oficina a ser desenvolvida com turmas de 1°s e 4°s Anos – Anos Iniciais do Ensino Fundamental na Escola André Zenere, no ano de 2012, pelas professoras-pesquisadoras Janete Marcia do Nascimento, Luciana Alves Pinto e Michelle Silvestre Cabral. 2 MANGUEL, 2002, p. 23. 1

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cada leitor encontra, livro após livro, os traços de sua vida. O referido autor sugere ainda que, segundo Virginia Woolf  3, “anotar as impressões que temos de Hamlet à medida que o lemos, ano após ano, seria praticamente registrar nossa autobiografia, pois quanto mais sabemos da vida, mais Shakespeare faz comentários sobre o que sabemos”. E assim, cada leitura torna-se única para cada sujeito leitor a cada forma de ler. A cada recomeço. Desses horizontes, ocupar-se-ão as páginas seguintes, buscando criar possibilidades de leitura. Intensidades desse ato tão singular. A leitura e seus horizontes.

Das possibilidades de ler – Artifícios I

Leitura alfabética – Decodificação Alfabetizar é somente ensinar a ler? Existem muitas teorias/ métodos sobre como se desenvolve a leitura. Segundo o princípio da síntese, se aprende inicialmente, a ler as letras do alfabeto; depois unimos as letras e formamos as sílabas; juntando estas, aparecem as palavras. Será isso mesmo? Como se dá esse processo? O sistema de escrita alfabético e as convenções para o seu uso fundamentam um conjunto de técnicas inventadas e aprimoradas pela humanidade ao longo da história: desde os desenhos nas cavernas, até a descoberta de que, em vez de desenhar aquilo que se fala, podiam ser representados os sons da fala por sinais gráficos, criando, por meio de tais práticas, o sistema alfabético. Dispositivos/Leituras – Produções: 1. Leitura: Gente tem sobrenome 4 e/ou Marcelo, Marmelo, Martelo 5. Plano de conversação (sugestões)6: De onde provêm os nomes? / Os nomes são inventados ou encontrados pelos homens? /

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WOOLF, apud ibidem. TOQUINHO; ANDREATO, 1987. ROCHA, 2007. O plano de conversação pode servir de apoio e/ou orientação ao diálogo investigativo. Outra opção seria pedir aos próprios participantes que façam perguntas ao texto, as quais serviriam ao mesmo objetivo, mas com a vantagem de proporcionar, mais facilmente, o envolvimento e comprometimento dos mesmos, na medida em que, enquanto autores dos questionamentos, expressariam diretamente seus interesses e disposições para com o tema.

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Poderíamos mudar os nomes das coisas? / Qual a relação entre os nomes e as coisas que eles nomeiam? / Será que sempre existiram os nomes e as palavras? / Será que toda a linguagem foi inventada ou encontrada pelos homens? / Se foram as pessoas que inventaram a linguagem, isso significa que pessoas que não tinham linguagem puderam inventá-la? 1.1 Produção: Anagrama 7 – Inventar palavras e/ou frases utilizando apenas as letras de seu nome, aleatoriamente ordenadas. Esta atividade contém a potencialidade da (re) invenção dos signos, desvelando e instigando forças criativas que podem (ou não) envolver os participantes. 2. Leitura: Aventura da escrita – História do desenho que virou letra8. 2.1 Propor o registro de mensagens/informações através de desenhos individuais (sem palavras). Pode-se utilizar giz de cera escuro e papel craft amassado para simular os desenhos nas paredes das cavernas. Após o registro, os desenhos podem ser apresentados ao grupo, que realizará a interpretação das mensagens. 2.2 Propor a invenção de códigos/símbolos que substituam as letras do alfabeto, os quais podem ser utilizados para transmissão de mensagens aos outros participantes. Em seguida, com o auxílio da legenda, o grupo faz a interpretação das mesmas. Esta atividade pode ampliar/complexificar a dimensão da linguagem, estimulando a criatividade dos participantes. 3. Leitura: Nicolau tinha uma ideia 9. Plano de conversação (sugestões)10: Podemos pensar em alguma coisa para a qual não existe uma palavra? O que, por exemplo? / Podemos inventar uma palavra? Qual? / Se usarmos a palavra que inventamos numa frase, a frase faz sentido? / Qualquer pessoa pode ler A palavra anagrama, do grego ana = voltar ou repetir + grama = graphein = escrever. ZATZ, 1991. 9 ROCHA, 1998. 10 Este plano de conversação foi inspirado na obra de Lipman (1997b, p.153-154). 7 8

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a frase e saber o que ela significa? / O que veio primeiro: o pensamento ou a palavra? / Nós inventamos pensamentos? / Nós inventamos palavras? / Quando pensamos, pensamos com palavras?/ Para criar algo é necessário pensar? 3.1 Propor a utilização de peças/sucatas na criação/transformação de algo novo (objeto, símbolo, utensílio, etc.). Depois de prontos, expor as criações aos participantes que devem escolher o objeto que mais lhe despertou interesse (de preferência, outro que não o seu próprio). Pedir que criem um título/nome para o objeto selecionado e, em seguida, apresentem aos outros as razões que o levaram a tal criação. Pode ser interessante, ainda, propor um diálogo entre o autor do objeto e o autor do título/ nome ressaltando a multiplicidade de relações possíveis de ser instauradas a partir da experiência. II Leitura interpretativa O ato de ler, pensado como atividade que envolve processos à maneira de percepção, memória, inferência e dedução, pode ser instaurado diante de diferentes/múltiplos tipos de objetos, implicando descoberta e produção de significados11. Segundo Barthes12, “Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, não é apenas pedir e mostrar que podemos interpretá-lo livremente; é principalmente, e muito mais radicalmente, levar a reconhecer que não há verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas verdade lúdica”. Neste sentido, ainda, afirma que: Por certo há uma origem da leitura gráfica: é o aprendizado das letras, das palavras escritas; mas, por um lado, há leituras sem aprendizagem (as imagens) - pelo menos sem aprendizagem técnica, senão cultural –, e, por outro, adquirida essa tékhne, não se sabe onde parar a profundeza e a dispersão da leitura: na captação de um sentido? Que sentido? Denotado? Conotado?13 Num contraponto com Corazza (2011) interpretando Deleuze, ler poderia ser entendido aqui como traduzir, no sentido de ato que permite distinguir entre a descoberta de algo já existente e a invenção do novo, pois a interpretação nunca é meramente descoberta do igual, cópia do original, mas a possibilidade mesma da produção da diferença no mesmo. 12 BARTHES, 2004, p. 29. 13 Idem, p. 32. 11

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Para Alves, toda aprendizagem começa com um pedido: Tudo começa quando a criança fica fascinada com as coisas maravilhosas que moram dentro do livro. Não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a estória. A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras: quando alguém lê e a criança escuta com prazer (...) se volta para aqueles sinais misteriosos chamados letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los – porque eles são a chave que abre o mundo das delícias que moram no livro14.

Dispositivos/Leituras – Produções: 1. Leitura: Luas e luas15. Plano de conversação (sugestões): Se conseguimos falar uma palavra que está escrita em outra língua, isso é uma leitura? Mesmo não sabendo o significado da palavra? / Seria correto dizer que ler é tentar encontrar significado no que está escrito, ou seria melhor dizer que ler é criar significado para o que está escrito? / Ler e interpretar são atos diferentes? Por quê? 1.1 Pedir que cada participante represente através de um desenho algum fato ou acontecimento (real ou fictício). Após o desenho feito, entregar para um colega que deverá ler o que o outro desenhou. Estimular o diálogo sobre as possíveis distinções e/ou similitudes de interpretação entre aquele que elaborou o texto e aqueles que o interpretaram. 2. Leituras (livros sem texto): As aventuras de Bambolina16; gibis/ tirinhas diversas; curtra-metragem mudo - sugestão: The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore17. Plano de conversação18 (sugestões): Ao olhar o relógio para descobrir que horas são, realizamos uma leitura do relógio? / Quando o tempo está meio incerto, olhamos para o céu para saber se iremos levar ou não o guarda ALVES, 2001. THURBER, 2006. 16 IACOCCA, 2006 17 MOONBOT STUDIOS, 2011. 18 Este plano de conversação foi inspirado na obra de Wonsovicz (1998, p. 54-58). 14 15

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chuva. Isso é uma leitura do tempo? / Quando olhamos histórias em quadrinhos sem texto, lemos o que acontece com os personagens dos quadrinhos? 2.1 Produção de livro artesanal apenas com imagens/desenhos dos participantes (sem texto). 2.2 Sugerir produções textuais (individuais ou coletivas) a partir de textos de imagens. As produções podem ser apresentadas e lidas em conjunto pelos participantes, permitindo, assim, contrapor as diferentes criações elaboradas. Além do exercício interpretativo que tal atividade proporcionará, servirá, também, de estímulo ao diálogo e reflexão sobre a gênese do significado de um texto. 3. Leitura: Isto não é 19; vídeo A aranha, o grilo e o jacaré 20. 3.1 Propor a investigação sobre os elementos implicados no ato de criação21 como, por exemplo, originalidade, exclusividade, diferença, novidade, entre outros. A atividade se inicia sugerindo aos participantes que tentem representar, por meio de mímica, diferentes maneiras de realizar atos cotidianos. Isto exigirá o exercício da criatividade, podendo servir, ainda, como impulso ao desenvolvimento da investigação. É importante frisar a necessidade de, após cada representação, se apresentar razões que justifiquem o caráter de novidade atribuído ao ato22. • Sugestões de atos a serem representados: Um modo diferente de se sentar. / Um modo diferente de caminhar. / Um modo diferente de cantar. / Um modo diferente de cumprimentar alguém. / Um modo diferente de estudar. / Um modo diferente de escrever. MAGALLANES, 2008. Episódio do Programa Lá vem história da TV Cultura. 21 A proposta desta atividade é ressaltar o vínculo existente entre leitura, interpretação e o conceito de criação. Tal relação fundamenta-se, sobretudo, a partir da concepção de leitura como ato de tradução (apud CORAZZA, 2011). 22 Esta atividade e o plano de conversação foram inspirados na obra de Aspis (2001, p. 40-42). 19 20

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• Plano de conversação (sugestões): Para que uma pessoa crie uma coisa, é necessário imaginar? / Para que uma pessoa crie uma coisa, é necessário planejar? / Para que se crie uma coisa a partir de outra é preciso ler? / O que é necessário para a criação? / Quando alguém cria alguma coisa, essa coisa lhe pertence? / Para que uma coisa que tenhamos criado seja criativa, é necessário que ela seja diferente? 4. Leitura (livro sem texto): A Bruxinha e o Godofredo23. 4.1 Solicitar aos participantes que saiam da sala em que se encontram e façam a leitura do que alguma pessoa esteja fazendo (alguém que se encontre fora da sala: no pátio, rua, saguão, etc.). Ao retornarem, peça que relatem o que leram. 4.2 Pedir que um participante faça a leitura do tempo olhando pela janela. III Leituras artísticas Existem diversas interpretações de uma obra de arte. Existem, ainda, diversas possibilidades de novas leituras dessa obra. Ler não é meramente reproduzir. Num paralelo entre o conceito deleuziano de repetição 24 e os conceitos de tradução 25 e de leitura, propõe-se reverter a associação tradicional entre estes e os conceitos de cópia, equivalência ou semelhança. Ler, deste modo, não se vincula ao ato de imitação do mesmo, mas à criação do novo, a processos de pensamento que permitem o surgimento da novidade, da singularidade. Neste sentido, interpretar aquilo que se vê consistiria em exercitar a criatividade. Ler – ou, poderse-ia dizer, traduzir – é criar algo novo que mantém um elo com a fonte que serviu de inspiração. Conforme Corazza26: “a tradução ‘não consiste na assimilação do outro a si mesmo, mas uma aproximação da distância, uma transposição de uma cultura estrangeira através dos expedientes da FURNARI, 1983. DELEUZE, 1988. 25 Tal conceito remete ao universo semântico das teorias da tradução literária no Brasil, que lidam com a ideia de tradução como um processo criador, conforme apresentado por Corazza (2001, p. 59-62). 26 CORAZZA, 2011, p. 63. 23 24

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escritura que transforma, por assim dizer, a primeira, já que a tradução não é cópia, mas modificação do original”. Dispositivos/Leituras - Produções: 1. Leituras27: Érica e os girassóis, Érica e os impressionistas e Érica e a 28 Monalisa  . Plano de conversação (sugestões): Quem fez um desenho ou uma pintura, expressa sentimentos através de seu desenho? / Quando você observa uma pintura ou ilustração, você a lê? / Você pode ler o rosto de uma pessoa e perceber o que a pessoa está sentindo? / Várias pessoas podem fazer leituras diferentes de uma pintura? E de uma história? E de um filme? 1.1 Pedir aos participantes que desenhem o seu rosto, podendo, para tanto, apenas apalpar a face. 1.2 Providenciar um espelho para cada participante e pedir que cada um desenhe sua imagem baseada no reflexo que observa. 1.3 Solicitar que seja feito o registro, em forma escrita, das sensações, ideias, percepções e interpretações desencadeadas a partir das diferentes atividades. 2. Leituras: Dos pés à cabeça e Cores 29. 2.1. Observação e descrição de objetos, sensações e emoções a partir de imagens, fotografias, expressões faciais, obras de arte, etc. Solicitar o registro escrito das descrições (pode-se variar os estilos: narrativos, dissertativos, poéticos, etc.). 3. Leituras: Para olhar e olhar de novo 30 e Diário das invenções: Leonardo Da Vinci31. Uma opção para os textos sugeridos seria realizar visita virtual no museus através do Art Project desenvolvido pelo Google. Disponível em: . 28 MAYHEW, 2001a, 2001b, 2001c. 29 HOUBLON, 2005a e 2005b. 30 POUGY, 2005. 31 BARK; LAWRENCE, 2009. 27

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3.1 A partir da leitura e observação das imagens e dos textos, propor atividades que estimulem a criação/invenção de novos sentidos e impressões para diferentes imagens. Exemplos: • Leitura de algumas imagens ou invenções apresentadas nos textos a partir das impressões que estas causaram aos observadores. Podem ser realizadas sobre base textual ou artística. Disponibilizar materiais suficientes (tintas, pincéis, papéis, lápis, etc.) para que os participantes possam escolher como expressar suas impressões. •

Técnica de pintura da própria imagem produzida a partir dos seguintes passos: 1 - Fotografar e imprimir a foto do busto (frente ou perfil) de cada participante; 2 - Sobre uma folha de transparência, realizar o contorno da foto (rosto, boca, nariz, orelhas, etc.) com pincel atômico; 3 - Projetar a imagem em cartolina fixada previamente na parede e contornar com lápis grafite; 4 - Realizar a pintura da imagem.

Das formas de aprender a ler Todo o percurso desta oficina leva à constatação da insuficiência de qualquer teorização fixa e acabada sobre a leitura. Mesmo definições em termos de formas ou de objetos possíveis/passíveis de serem lidos, acabam sempre em formulações relativas, incompletas e provisórias. De acordo com Barthes32, no campo da leitura não há pertinência de objetos: (...) leio textos, imagens, cidades, rostos, gestos, cenas, etc. Esses objetos são tão variados que não posso unificá-los sob nenhuma categoria substancial, nem mesmo formal; apenas posso encontrar neles uma unidade intencional: o objeto que eu leio é fundado apenas pela minha intenção de ler; ele é simplesmente: para ler, legendum.

Neste sentido, evidencia-se uma infinidade contextual que circunda a leitura que não é da ordem do acabamento nem da demarcação. 32

BARTHES, 2004, p. 32.

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Conforme ainda Barthes33, embora esta sempre ocorra no interior de uma estrutura (não há leitura “natural”, “selvagem”), sempre a perverte, pois não lhe fica submissa. Afinal, o ato de ler implica um movimento, uma atuação do leitor que não apenas “decodifica, [mas] sobrecodifica; não decifra, produz, amontoa linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente atravessar por elas: ele é essa travessia”34. Assim, pois, como também em Sartre35, “o objeto literário é um estranho pião, que só existe em movimento”, de modo que a potência criadora somente se instaura no momento em que o leitor se debruça sobre a obra. Para Sarte, produzir se diferencia de criar: o escritor apenas produz a obra, enquanto o movimento da criação se concretiza a partir da consciência imaginante do leitor. Somando-se ao que acima foi exposto, propomos como impulso movente ao pensar sobre a leitura alguns questionamentos de Corazza36, “E nós? Criamos quando lemos e escrevemos? Como? De que maneira? Sob quais circunstâncias? Quando? Onde? Por que?” Dispositivos/Leituras - Produções: 1. Leituras: Texto fictício de como Tarzan aprendeu a ler37, O menino que aprendeu a ver 38 e Jonas e as cores 39. 1.1 Produção escrita (texto fictício): como um personagem (a ser escolhido pelo participante) aprendeu a ler. A invenção do texto deve se orientar pelos seguintes questionamentos: Quais as condições possíveis para a leitura? / Em que condições acontece a leitura? / Como e quando surgem os leitores? / Qual a relação do leitor com o escritor? / É possível tornar-se escritor, sem antes experimentar a leitura? Idem, p. 33. Idem, p. 41. 35 SARTRE, 2004, p. 35. Embora Sartre esteja se referindo unicamente à obra literária, parece-nos possível realizar um paralelo entre este tipo de leitura e aquele no qual propomos pensar aqui (leitura como tradução) possível de se realizar em relação a todo e qualquer objeto estético. 36 CORAZZA, 2011, p. 40. 37 MARTINS, 2003. 38 ROCHA, 1998. 39 BERLIN, 2006. 33 34

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2. Leitura: Relato autobiográfico de como Sartre40 aprendeu a ler. 2.1 Produção escrita (texto verídico): como cada participante aprendeu a ler. O texto deve orientar-se pelos seguintes questionamentos: O que está implicado no ato de ler? / Como ler?/ Por que ler? / Quando ler?

Referências A ARANHA, O GRILO E O JACARÉ. Produção: TV Cultura. Programa: Lá vem história. Intérprete: Bia Bedran. São Paulo: TV Cultura, 1995/1996. Disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2012. ASPIS, Renata Pereira Lima. Histórias das ideias do Zé: Livro de orientação para professores. São Paulo: Callis, 2001. ALVES, Rubem. O prazer da leitura. Correio Popular, Campinas, 19/07/2001. Caderno C. BARK, Jaspre; LAWRENCE, David. Diário das Invenções: Leonardo Da Vinci. São Paulo: Ciranda Cultural, 2009. BARTHES, Roland. O rumor da língua. Prefácio de Leyla Perrone-Moisés. (Coleção Roland Barthes). Trad. Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BERLIM, Regina. Jonas e as cores. Ilustrações de Taísa Borges. São Paulo: Peirópolis, 2006. CORAZZA, Sandra Mara. “Notas”. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: Ed. UFMT, 2011. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FURNARI, Eva. A Bruxinha e o Gregório. Ilustrações da autora. São Paulo: Ática, 1983. HOUBLON, Marie. Cores. Coordenação de imagem Maria do Céu Pires Passuello. Trad. Equipe Editorial Companhia Editora Nacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005a. ______. Dos pés à cabeça. Coordenação de imagem Maria do Céu Pires Passuello. Trad. Equipe Editorial Companhia Editora Nacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005b. 40

SARTRE, 1970.

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IACOCCA, Michele. Bambolina: (livro de imagem). São Paulo: Ática, 2006. LIPMAN, Matthew. Issao e Guga: manual do professor “maravilhando-se com o mundo”. (Coleção Filosofia para Crianças). Trad. Ana Luiza Fernandes Falcone e Sylvia J. H. Mandel. 2. ed. São Paulo: Difusão de Educação e Cultura, 1997a. ______. Pimpa: manual do professor “em busca do significado”. Trad. Ana Luiza Fernandes Falcone e Sylvia J. H. Mandel. (Coleção Filosofia para Crianças). 2. ed. São Paulo: Difusão de Educação e Cultura, 1997b. MACHADO, Ana Maria. Esta força estranha: trajetória de uma autora. (Passando a limpo). São Paulo: Atual, 1996. MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. (Coleção Primeiros Passos). São Paulo: Brasiliense, 2003. MAGALLANES, Alejandro. Isto não é. Trad. Heitor Ferraz Mello. São Paulo: Comboio de Corda, 2008. MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. MAYHEW, James. Érica e a Monalisa. Trad. Renata Siqueira Tufano. São Paulo: Moderna, 2001a. ______. Érica e os girassóis. Trad. Renata Siqueira Tufano. São Paulo: Moderna, 2001b. ______. Érica e os impressionistas. Trad. Renata Siqueira Tufano. São Paulo: Moderna, 2001c. POUGY, Eliana. Para olhar e olhar de novo. São Paulo: Moderna, 2005. PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Trad. Carlos Vogt. 2. ed. Campinas: Pontes, 1991. ROCHA, Ruth. Marcelo, marmelo, martelo. Ilustrações de Adalberto Cornacava. 3. ed. Guarulhos: Salamandra, 2007. ______. Nicolau tinha uma idéia. Ilustrações de Mariana Massarini. 3. ed. (Coleção Hora dos Sonhos). São Paulo: Quinteto Editorial, 1998. ______. O menino que aprendeu a ver. Ilustrações de Elisabeth Teixeira. (Coleção Hora dos Sonhos). São Paulo: Quinteto Editorial, 1998. SARTRE, Jean-Paul. As palavras. Trad. J. Guinsburg. 4. ed. São Paulo: Difusão Européias do Livro, 1970. ______. Que é a literatura? Trad. Carlos Felipe Moisés. 3. ed. São Paulo: Ática, 2004.

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TOQUINHO; ANDREATO, Elifas. Gente tem sobrenome. In: Canção de Todas as Crianças. São Paulo: PolyGram (Philips), 1987. THE FANTASTIC FLYING BOOKS OF MR. MORRIS LESSMORE. Direção de William Joyce e Brandon Oldenburg. Los Angeles: Moonbot Studios, 2011. Animação em curta-metragem (15 min.) Mudo. Disponível em: . Acesso em: 06 abr. 2012. THURBER, James. Luas e luas. Ilustrações de Marc Simont. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 8. ed. São Paulo: Ática, 2006. WONSOVICZ, Silvio. O menino e a caboré: material do professor. Ilustrações de Rose Silva Gaiewski. 11. ed. Florianópolis: Sophos, 2009. ZATZ, Lia. Aventura da escrita: História do desenho que virou letra. Capa e ilustrações de Paulo Manzi. São Paulo: Moderna, 1991.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

ESPIRITOGRAFIAS DE CO-CRIAÇÃO DIALÓGICA Maria Idalina Krause de Campos

O movimento experimental para ministrar Oficinas Espiritográficas de co-criação dialógica partiu da seguinte perspectiva: propor movimentos de escrita e leitura, exercícios geradores de uma produção de escritura desejante, dentro do Projeto Escrileituras: um modo de lerescrever em meio à vida1. O foco da oficina encontra-se em ressonância com minha proposta de dissertação, que trata de espiritografia e pesquisa: o que pode um espírito? Um espírito que entre escrita e leitura compõe espiritografias em meio à vida em constante mutação. Atravessa os campos exploratórios da educação, filosofia e literatura. Adentra a noção de espiritografia, confluência de duas vertentes de pensamento – Gilles Deleuze e Paul Valéry – e busca como prática operativa O método de dramatização na comédia do intelecto. Operações experimentais nos labirintos do pensamento, colocadas em movimento na Oficina espiritográfica de co-criação dialógica. 1

Grupo de pesquisa coordenado pela Professora Doutora Sandra Corazza, do Programa Observatório da Educação CAPES/INEP, onde faço parte como bolsista. Dentro das ações do projeto foram oferecidas Oficinas de Transcriações no cotidiano, entre 07 de junho e 25 de agosto de 2011. Com cinco oficinas de oito horas aula, ministradas na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, perfazendo quarenta horas aula no total, tendo em média vinte inscritos em áreas de atuação diversa. Apresentei a oficina – Espiritografias de co-criação dialógica – em ressonância com a proposta de dissertação: Alfabeto espiritográfico em educação.

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E assim, traça circuitos de pensamento, transmutações, que atravessam o vivível entre imaginários pensares e experimentam a vida metamorfoseando-se. Construindo, assim, uma espiritografia pulsante, serpenteada, mesclando elementos dos detalhes, do inusitado para produção de uma escritura oriunda do desejo que transborda misturando cores, produzindo sons e capturando pensamentos. Que fazer, então, se uma espiritografia pressupõe investigação, interseção e busca metódica dos espíritos com que iríamos nos ocupar? Quais paixões e necessidades traziam os inscritos para se debruçarem sobre os fluxos espirituais contidos em vidas, obras e conceitos que seriam apresentados? Via procedimentos espiritográficos – foi a orientação tomada -, abrindo passagens, fendas a um pensamento que espreita ação, práticas operativas corpóreas, atos de um escrileitor que observa a existência e com ela dialoga. Tendo na vida oficineira - entre textos e contextos de cunho filosófico, literário e pedagógico uma travessia possível pelo mar caudaloso do vivível, onde pensa-se, cria-se. Propondo, assim, aos participantes da oficina, um exercício de pensamento que explore a forma “diálogo”, seu conteúdo e expressão, através de textos que tratam do tema. Ciente de que pensar é trabalhar sobre planos, planos filosóficos, em que “o cérebro é o espírito mesmo2”. Dramatizar o conceito “diálogo”, acionando experiências, dispostas a conhecer e a deformar os antigos diálogos apolíneos. Dar vazão à paixão intensa, com força de pensamento, co-criação sem limites, encontros de fabulação criativa, que façam correr nas veias o sangue dionisíaco, onde “a escritura tem por único fim a vida, através das combinações que ela faz”3. Espiritografias postas em ação, de pensar o pensamento enquanto ele se faz, efervescência de espíritos operadores, cuja vontade atrevida vislumbre nova luta que se sobrepõe à moral vigente dos clichês dialógicos. Como Monsieur Teste de Valéry operava o que lhe era proposto “manipulando e mesclando, fazendo variar [...] podendo cortar e desviar, esclarecer, congelar isto, aquecer aquilo, afogar, realizar, nomear o que não tem nome, esquecer o que queria, adormecer ou colorir isso ou aquilo...”4 DELEUZE; GUATTARI, 1992. DELEUZE; PARNET, 1998. 4 VALÉRY, 1997. 2 3

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Aventura exploratória de espíritos escrileitores que encaram ventos de viração que abrem passagens, aberturas de êxtase embriagado pelas tensões paradoxais de uma produção escrita que ciranda por entre diálogos. Pois que necessitamos de toda a arte petulante, flutuante, dançante, trocista, infantil e contente para não perder essa liberdade que nos coloca acima das coisas e que o nosso ideal exige de nós. [...] é preciso que possamos nos sobrepor à moral e não somente que a inquieta rigidez que receia a cada instante dar um passo em falso e cair, mas com a vontade de alguém que pode planar e brincar sobre ela. Como [pois] poderíamos nesse campo dispensar a arte e o louco?5

***

Diário de bordo Tentar traduzir intensidade não é tarefa fácil, pois tudo que se possa tentar dizer sobre o ocorrido nas oficinas já será outra coisa. Porém não estamos atrás do fácil, mas do errante, do inesperado, de uma tentativa de tradução de forças estabelecidas via interseção entre espíritos. Um desafio proposto aqui com diário de bordo, um resumo em quatro atos:

Ato I Definir o que é diálogo não é difícil: é uma conversação estabelecida entre duas ou mais pessoas na busca do entendimento através da palavra. Mas é possível ampliar o campo exploratório mais vasto, um conjunto de “coordenadas múltiplas que correspondem às questões quanto? quem? como? e quando?”6 dialogamos. Esta foi a proposta do primeiro encontro da oficina: um sobrevoo, misto de drama e comédia espiritual que propicia, além de exemplos empíricos, uma abertura para um alcance maior, no qual o já criado - sobre a temática proposta - transcende e afirma uma nova composição. Um devir mutante e letárgico, que pela necessidade imprimida nesses movimentos escrileitores expressos 5 6

NIETZSCHE, 1981. DELEUZE, 2006, p. 136.

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espiritograficamente, permite um encontro compartilhado no próprio exercício da linguagem. Partimos com exemplos de diálogos orientais: o de Rigveda7 e o de XiangSheng8. Voltando o pensamento para o Ocidente, conversamos sobre Sócrates e Platão, o que consolida o diálogo como forma literária procurando reproduzir o ritmo da conversação de forma apolínea, dialética em busca de verdades universais moralizantes em que a razão é um imperativo. Realizamos leituras conjuntas de trechos de diálogos eróticos extraídos de A mulher/os rapazes: História da sexualidade (História da sexualidade v. 3) de Michel Foucault. Falamos de Paul Valéry e sua reinvenção do gênero diálogo filosófico, em que o diálogo vivifica o corpo e torna-se criação, como uma operação do espírito, um mecanismo do pensamento. Elucidamos o conceito de co-criação em Deleuze, em composições de textos com abertura à multiplicidade. Assim, ao final desse encontro inicial, foram oferecidos a cada participante dois quadrinhos impressos, com imagens de figuras em uma determinada cena. Os balões de diálogos deveriam ser criados usando a imaginação. Seguem abaixo duas criações das oficinas:



Figura 1 – Quadrinho de Will Eisner9.

Diálogo com Sr. 1. Senhor, patrão das minhas necessidades, eu lhe imploro um aumento de salário! Pense nos meus filhinhos, na minha mulher que precisa cuidar deles e não pode trabalhar... Disponível em: Disponível em: 9 EISNER, 1989, p. 15. 7 8

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2. Oh! Senhor, patrão da minha vida, vejo uma luz vindo de ti. Será uma migalha? Será uma doação? Será um reconhecimento? O que será, patrão-nosso-de-cada-dia? 3. Nossa! Que coração insensível, patrão-miseravelmente-fascista! Apagou a luz e me deixou sozinho no escuro, de mãos para o alto, esperando um-não-sei-o-que-de-nada. Triste o fim daquele que depende da tua egoísta benevolência!

Aluno/Artista: Ahããã! Fantastiques! Aqui está, professor! Professor: O que é isto?? Veja bem, meu caro. Vou mostrar para você! Umumum... Vejamos... Pronto, está aqui. Esta é a regra, meu rapaz. Você deve segui-la, este é o modelo! Aluno/Artista: Reproduzir?? Professor: Certo, meu caro! Fizemos isto há muito tempo e tem dado certo. Vamos, você consegue. E não me olhe com esta cara, você é capaz ou não é?? Aluno/Artista (baixinho, resmungando): cópia, reprodução, representação. Professor: Estes malucos, sempre complicando, procurando o mais difícil.





Figura 2 – Quadrinho do Quino utilizado no exercício de diálogo10.

Ato II Um escrileitor, em sua maioria, é um devorador de texto que é “mastigado vivo, digerido e incorporado ao organismo como carne e sangue, que por sua vez criam novo espírito e remodelam o mundo”11. 10 11

QUINO, 2003. MILLER, 1974, p. 183.

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Ciente desse fato, foram oferecidos aos participantes quatro exemplos de diálogos extraídos da literatura: O estrangeiro de Charles Baudelaire; trechos de um diálogo de Clarice Lispector do livro Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres; A virtude da própria alma de Platão; e Colóquio dentro de um ser de Paul Valéry. O foco era promover movimentos escrileitores, uma prática operativa de manipular verbos e signos nos laboratórios espirituais dos participantes. Outra obra explorada foi Crítica e Clínica, na qual Deleuze traça relações entre literatura e vida: “A literatura está do lado do informe, ou do inacabamento [...]. Escrever é um estado de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se [...]. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”12. Eis mais um exemplo de produção: Baudelaire (O Estrangeiro) conversa com Lispector (Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres) B: Quem é que mais amas? L: A madrugada, que se abre vacilante, criando uma atmosfera de milagres. B: Tens amigos, pai, mãe, irmãos? L: Não, meu amor! Porque não acredito nem em Deus, e não queira humanizar-me. B: Tens Pátria? L: Porque não me acredito humano, entendo que não. B: O que amas, então? L: Eu não amo, logo penso!

Ato III No terceiro ato desses exercícios do pensamento, tratamos do Eu funcional de Paul Valéry, um espírito operador que compõe uma comédia 12

DELEUZE, 1972;1990.

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do intelecto à medida que se mostra a si mesmo à luz do dia. Valéry tem apreço pela presença da voz ou vozes na escrita literária, volta-se para os mecanismos pensamento-palavra que possibilitam jogos e trocas que quebram os silêncios, abrindo espaço para a criação espiritual e seus ecos poéticos epistemológicos. Com Valéry observamos a arquitetura da forma dos textos, suas composições, em que a ocorrência textual é mais importante do que um fim ou meta. Aqui, os textos de referência foram de Samuel Beckett: Malone Morre e Esperando Godot, além de Gilles Deleuze com o texto Sobre o teatro: Um manifesto de menos; O Esgotado. Após uma breve explanação da biografia beckettiana, assistimos a trechos da peça Esperando Godot. O exercício proposto na oficina consistia em criar um diálogo, um fluxo de escrita sobre a espera e suas vozes. Um exemplo de produção: O Buraco – Ah, este tempo de aguardo, este tempo tão compactado de vazio, que vaza. – Já não sei: este é meu ou é o teu, que se fez meu? – Talvez o meu seja o teu. – Não sei se sinto o meu. – Agora é, meu pé, teu pé e versa e vice. Todos tomados de sangue quente, que gela e colhe formigas gananciosas. – Aqui vendo apenas sombras e confundindo corpos, paro segundos para pensar, neste silêncio, carregado de sons. Aqui é certo que o nada não existe. Estamos nada. – Mas será que há procura? – Se houver ausência. – E se houver ausência, há ou haverá procura? – E se não houve presença suficiente, haverá ausência? – E se... – Tempo que não havia, agora se esparrama como grama, de anseio e de tortura pelo que ficou e medo de não significar. Por que ter que significar para ser presença? – E se for, o que dizem que é? – É? – É! Vazio!

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– O vazio é a espera, o vazio é o que traga a consciência, é o que dilui a crença, é o que despe a certeza, que deixa suada a nuca, o peito pequeno e o sangue gelado. – Se admitirem o vazio, vazio de vazio. E se acostumar com a espera, não há possibilidade de nós presença. – E se preferir as sombras. – E se já estamos vazio, socorro não há. – A luz vem e vai. – Já somos, estamos! – Estamos buraco.

Ato IV Devido à brevidade do tempo para o encontro final, foi proposto um exercício espiritográfico, enviado com antecedência aos participantes, com o seguinte planejamento: Crie uma resenha imaginária de um livro imaginário intitulado: Espiritografias de co-criação dialógica. Um exemplo de produção da oficina: Espiritografias de Co-Criação Dialógica O prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as mesmas ideias, que eu. Roland Barthes1 Dois momentos e não gêmeos, já são paridos, quando acontece um lançamento na literatura da Filosofia da Diferença, como este: de muitas outras edições e a previsão, que em sua primeira o esgotamento relâmpago nas prateleiras, é certo. O livro Espiritografias de CoCriação Dialógica, da Editora Territórios, de Porto Alegre, foi processado cartograficamente, em uma fragmentação deliciosa e provocante, onde cada pedaço, rizomaticamente seduz, captura o leitor, tornando-se um objeto fetiche, como Roland Barthes2 diz: “O texto é um objeto fetiche e esse fetiche me deseja” [...]. O Espiritografias deseja-nos. A delícia do livro anuncia: os autores morreram, desapareceram! Porque o leitor é quem deliciosamente assume a sua posição de

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importância, não de uma luta ferrenha e ganha, mas de um lugar da fruição, do prazer de ler. Assim este livro-coisa-nome, é como para Roland Barthes, em O Prazer de Ler: um potente jato de palavras. Este potente jato de palavras, abre-se em um extenso rizoma de possibilidades de criação, onde escripintado e aflorado, não é tagarela e sim com zonas fantásticas de respiro, de deleite, esfolando o leitor, esparramando imaginação das fendas desta esfoladura. Já no seu primeiro capítulo dialoga e exercita a escritura das imagens, a escrita a partir ou pelo viés do olhar, da sensação, escrevendo as imagens, escrevendo olhares, escrevendo fruições. Segue fabulando, dialogando com as imagens, onde provoca encontros e dispara a punctescrita. O leitor vive e lê a cidade, encontra-se libertamente com o olhar do outro e faz a sua própria composição, seus recortes, seus conceitos, vindos da fuga do studium. São quatro capítulos e imensos processos, que se ramificarão e se esparramarão pelas fendas, ranhuras da vida do leitor. Conversas, muitas e deliciosas conversas onde os autores, organizados pelas excelentes e desafiadoras mestras Franciane Cardoso e Idalina Krause, ambas grandes estimuladoras de deslimites da palavra e experts em espiritografias, fazem do diálogo o exercício máximo neste imenso rizoma da escrileitura. São muitas, todas intensas, todas possíveis ou não. Fica o convite para esta leitura sedutora. Notas ¹ Barthes, Roland. O Prazer do Texto, 4. ed., São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 24. ² Idem, p. 35.

*** O que fica de uma oficina num encontro múltiplo entre espíritos é o que nos faz pensar sobre as produções realizadas. E reencontrar os movimentos de escrita e leitura geradores de uma escritura – um modo de existência intensivo – singular dos participantes, como nos exemplos trazidos de produção de texto. A manipulação de textos das oficinas, o exercício de escrileitura foi intenso em experimentações espirituais, que primaram pelo inusitado no exercício do pensamento. Proporcionando prazeres e deleites que ultrapassaram os territórios identitários.

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Exercitar o pensar desencadeou práticas de composições de signos em proliferação, misturas de saberes filosóficos, literários, pedagógicos, que aos poucos foram sendo transmutados e traduzidos como processo de criação textual. Fluxos espiritográficos na busca do raro, do detalhe, do desejo. Escrileitura vista e vivida como prática operativa que lida com procedimentos, preparação, invenção, manipulando os elementos de escritura, poções de textos que produzem efeitos na natureza humana que tenta criar o novo através de circuitos de pensamento, pois “tudo o que não invento é falso”13.

Referências BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006. BECKETT, Samuel. Malone morre. Trad. Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. ______. Esperando Godot. Trad. Fabio Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2005. CORAZZA, Sandra; TADEU, Tomaz. Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1972-1990. ______. Sobre o teatro: Um manifesto de menos; O esgotado. Trad. Fátima Saadi, Ovídio de Abreu, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2010. ______. PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ed. Escuta, 1998. ______. O método de dramatização. Trad. Luiz B. L. Orlandi. In: ORLANDI, Luiz B. L. (Org.). A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 131- 162. ______; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencia (original): a compreensão e a prática da forma de arte mais popular do mundo. Tradução de Luís Carlos Borges.

13

CORAZZA; TADEU, 2003, p. 104.

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São Paulo: Martins Fontes, 1989. Disponível em: . Acesso em: 02 ago. 2011. FOUCAULT, Michel. A mulher/os rapazes: da História da sexualidade. Trad. Maria Theresa da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MILLER, Henry. Trópico de capricórnio. Trad. Aydano Arruda. São Paulo: IBRASA, 1974. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Trad. Rubens Rodrigues Torres filho. São Paulo: Nova Cultural, 1987. PLATÃO. Diálogos III / A República. Trad. Leonel Vallandro. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. QUINO. Potentes, Prepotentes e Impotentes. Edição especial. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Disponível em: . Acesso em: 02 ago. 2011. VALÉRY, Paul. A alma e a dança e outros diálogos. Trad. Marcelo Coelho. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ______. Monsieur Teste. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Ática, 1997.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

POR UMA FILOSOFIA DA AMIZADE: correlações entre Nietzsche e a arte dos mangás Luciano Bedin da Costa Mákellen Gonçalves Dias Oriana Holsbach Hadler

1

Este ensaio conceitual é fruto de um trabalho realizado em 2011 com um grupo de adolescentes de 12 a 15 anos, alunos de 5ª à 8ª serie de uma escola pública da região noroeste do Rio Grande do Sul. As atividades foram desenvolvidas por um estagiário de psicologia da Sociedade Educacional Três de Maio (SETREM), sob a orientação de um professor da instituição, ambos vinculados ao projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida’’. O mangá (histórias em quadrinhos japonesas) foi escolhido como dispositivo para trabalhar o tema da amizade entre os adolescentes, tendo em vista que a “relação entre os pares’’ era uma das demandas 1

Imagem retirada de SEGAWA, 2011, p. 71.

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levantadas pela escola e verificada no contato com o grupo em questão. Devido ao grande apelo entre o público adolescente, o uso do mangá mostrou-se uma interessante ferramenta pedagógica, suscitando discussões e instigando produções dramáticas, poéticas e de escrita/ leitura. Para provocar o pensamento do grupo, e fazendo uso dos autores que permeiam o projeto “Escrileituras’’, algumas ideias da filosofia de Friedrich Nietzsche foram utilizadas. Ainda que essa relação pareça esquisita e um tanto inusitada, acreditamos que há nos mangás elementos que vão ao encontro do que Nietzsche escreve sobre a amizade, fazendo-nos questionar alguns axiomas que envolvem a ideia comum acerca do tema. Tanto em Nietzsche como nos mangás o amigo é sempre fruto de uma relação especial. Trata-se de um outro tipo de amizade, distante do modelo ideal com o qual estamos acostumados. No senso comum, costumamos pensar a amizade como algo essencialmente confortante; o amigo, nossa “cara metade’’, é o fiel escudeiro que nos protegerá dos ataques de nossos inimigos ou daqueles que não simpatizam com a gente. Ainda que esta imagem de amizade seja para nós bastante tranquilizadora, neste ensaio propomos uma outra leitura, abordando, com a ajuda dos mangás, três pontos fundamentais: a inimizade necessária, o silêncio e as duas solidões (dualidão). Todavia, antes de problematizarmos tais elementos, julgamos ser necessário uma breve apresentação, sobretudo ao leitor mais leigo, acerca do mangá e sua tipologia. Logo após, desenvolveremos algumas relações que nos pareceram interessantes durante o desenvolvimento do trabalho.

Mangás: proveniência e tipologia Os mangás são histórias em quadrinhos japonesas, derivadas de charges produzidas em meados do século XIX, as quais tinham como principal característica a critíca social e política à sociedade japonesa da época. O mangá carrega, igualmente, uma descendência da arte do ukiyo-e, obras que retratavam principalmente o cotidiano dos japoneses. Por tal filiação e proveniência, pode-se perceber duas das principais características que envolvem esta forma de expressão e que se mantém até hoje: a leitura do contexto sócio-político e a abordagem do cotidiano japonês.

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Todavia, ainda que pareça uma unidade, os mangás se distribuem de diferentes formas e com variadas temáticas. A subdivisão das categorias no mercado editorial diz respeito a divisões etárias, sociais e de gênero. O mangá possui uma tipologia específica para cada público-alvo, distribuindo-se: no kodomo mangá (voltado a crianças de 4 a 9 anos), marcado por histórias simples e fantasiosas; no Shoujo mangá (direcionado a meninas de 10 a 18 anos), com enredo voltado ao romance e cotidiano escolar das jovens; no Josei mangá (voltado a mulheres adultas), com temática voltada a relacionamentos amorosos mais profundos e vida profissional; no Seinen mangá (direcionado ao público masculino adulto), com traços mais detalhados e linguagem complexa; no Shounen mangá (destinado a meninos de 10 a 18 anos), com histórias que lidam com superação e fortes laços de amizades dos personagens. Outras características do mangá são de fácil percepção aos leitores mais leigos, tais como: leitura oriental (da direita para esquerda), imagens em preto e branco, traços refinados e personagens com olhos comumente acentuados. Passemos, agora, aos pontos que nos parecem interesssantes para pensarmos a relação entre o que Nietzsche escreve acerca da amizade e os elementos suscitados pela leitura-imagem dos mangás.

A inimizade necessária Sê ao menos meu inimigo! – Assim fala o verdadeiro respeito que não se atreve a solicitar a amizade. Se quisermos ter um amigo, é preciso também lutar por ele. E para lutar é preciso poder ser inimigo. É preciso honrar no amigo o próprio inimigo. Podes aproximar-te e ter amigo sem passar para seu lado? No amigo deve-se vislumbrar o melhor inimigo. Quando lhe resistes, é então que mais te aproximas de seu coração.2

No senso comum, a ideia de amizade surge como um laço fraterno, uma irmandade de apoio mútuo. Todavia, a análise da amizade a partir do mangá e da citação acima apresentados, leva-nos a pensar o laço amical por uma outra perspectiva. Os mangás, neste sentido, 2

NIETZSCHE, 2008a, p. 68.

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se mostram extremamente nietzschianos, situando o amigo como um valioso adversário, uma relação que se constitui pela divergência, um atrito constante que marca, escreve e abre espaço para a escrita de uma nova forma de ser e estar no mundo. A noção comum de amizade fraternal coloca o amigo como aquele que incondicionalmente apoia o outro em situações de vulnerabilidade, exaltando-o nos momentos de glória ou conquista pessoal. Nietzsche contrapõe esta ideia ao delegar ao amigo a função de infligir ao outro, uma força potente o suficiente para desacomodá-lo em suas certezas e virtudes já cristalizadas. O projeto de uma amizade nietzschiana estaria relacionado a um projeto de superação de si, de ultrapassagem de si mesmo, da promoção e aceitação das inevitáveis transformações e metamorfoses que a vida em relação com o outro ofereceria. Esta capacidade, ou melhor, esta disponibilidade, constitui-se a partir de duas vias: a de quem desloca e a de quem é colocado em deslocamento (todavia, estes lugares devem ser permanentemente intercambiados). O amigo deve, pois, suportar estes constantes embates; na relação com seu inimigo-amigo ele mede e exerce sua força. Essa situação pressupõe, então, uma igualdade em termos de capacidade combativa; a amizade baseada no senso comum, marcada pelo apoio incondicional, conduziria à estagnação de ambos. A amizade em Nietzsche possui, assim, um caráter transformacional, pois a ética relacional estabelecida entre os sujeitos conduz à necessidade de repensar o modo de ser e estar no mundo, para que os embates venham constituir um espaço criacional sempre sujeito a novas rupturas, desajustes e deslocamentos. Esta ética é forçada pela criação de um espaço de experimentação, nunca instituído de antemão, sempre disposto a novas configurações e tensionamentos. Temos, então, a figura do amigo a partir de seu próprio reverso; o traço fundamental do inimigo, o de nos colocar em apuros e dificuldade, é assumido pelo amigo numa espécie de inversão de valores. A amizade passa a ser a própria condição de guerra. Outra coisa é a guerra. Sou por natureza guerreiro. Agredir é parte dos meus instintos. Poder ser inimigo, ser inimigo – isso pressupõe talvez uma natureza forte, é em todo caso condição de uma natureza forte. Ela necessita de resistências, portanto busca resistências.3 3

NIETZSCHE, 2008b, p. 29-30.

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O amigo é aquele que nos coloca em guerra com nossos próprios valores, que faz com que coloquemos em suspeita valores em nós naturalizados. Trata-se de amar o inimigo no amigo, fazer do inimigo o amigo, para superação de nós mesmos e do mesmo que há em nós.

O silêncio Dentro do grande silêncio. – Aqui está o mar, aqui podemos esquecer a cidade. (...) Essa mudez enorme, que subitamente nos toma, é bela e aterradora, diante dela o coração se inflama. – Oh, a hipocrisia dessa muda beleza!4

De todas as críticas ao projeto da modernidade, vemos no tema do silêncio apontado por Nietzsche, aquele que mais nos cativa e desassossega. Associado à solidão, a arte de silenciar aparece na obra do filósofo alemão como um aprofundamento à hermenêutica do sujeito, à virtude humana de cuidado de si. O silêncio apresenta-se como ruptura à anulação humana frente à multidão barulhenta moderna, aparecendo como prática voltada para o inaudito, anterior às palavras racionais que preenchem o vazio e assolam a vida com uma hipertrofia da razão. Na linguagem dos mangás, este silêncio é mais do que retratado, ele é afirmado e passa a constituir permanentemente os personagens das tramas, apresentando-se, inclusive, como condição de ser dos protagonistas. Nas páginas em preto e branco, existem espaços para o silêncio. No contrafluxo de uma contemporaneidade tagarela e saturada de sentidos prévios, as relações entre os inimigos-amigos se constituem, nos mangás, por avanços silenciosos. Diferente de uma ausência de significado, ou como representação interpretativa sobre a psique dos sujeitos (como a psicologia faz questão de pontuar), o silêncio dos quadrinhos japoneses remete a “uma sutileza minuciosamente feroz que vai além de qualquer classificação verbal que possa procurar ser exprimida5”. Ele marca movimentos de compreensão e epifanias dos personagens. Um dispositivo de liberdade sobre os comportamentos obcecadamente falados, expostos à razão que tudo explica. 4 5

NIETZSCHE, 2004, p. 221. VASCONCELLOS, 2006, p. 89.

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Na história da sociedade ocidental, o vazio vem sendo preenchido incessantemente: entre a inventividade para ser mais do que se é e a ininterrupta produção para dar conta de suas supostas falhas, os sujeitos vão constituindo-se em um processo de negação de si, composto por barulhos que convocam ao desvio do sofrimento. Não é à toa que, no decorrer dos séculos conjuram-se “patologias do vazio”, atravessando os modos de ser sujeito na contemporaneidade6. Caracterizadas por uma interminável sensação de vácuo, que se alimentam das insaciáveis almas humanas sedentas por sentido, os transtornos do vazio caminham concomitantemente com o processo de medicalização da vida, onde a tristeza e a melancolia não são mais simplesmente sentimentos que perpassam a condição humana, mas passam a ser conjugadas como estados diagnosticáveis, prognósticos determinantes que vem significar os sujeitos em uma tênue linha entre loucos e sãos. Nos mangás, o cultivo da solidão e dos processos contemplativos de si mesmo surgem como possibilidades. Conforme assinala Oliveira7, o silêncio para Nietzsche, o qual encontra visibilidade na linguagem japonesa expressa nesses tipos de quadrinhos, coloca-se como um “pathos de ausência-absolutamente-presente, no qual a presença se radicaliza em ausência e o estar-consigo em abandono”. A compreensão nietzschiana da experiência silenciosa torna o processo de silenciar como capacidade crítica à vida ativa. O silêncio vem conjugar não-verbos para os modos de subjetivação contemporâneos, ele vem provocar um exercício de ruptura com o dualismo que acomete o sujeito. Sem colocar-se entre uma metafísica da linguagem ou entre uma metafísica do silenciar, Nietzsche promove a transmutação entre o ativo e a contemplação, que passam a ser movimentos complementares. O silêncio constitui, assim, um processo de afirmação de si e, simultaneamente, um campo de estranhamento diante dos acontecimentos. O mesmo para o outro, nossa amiga e silenciosa presença. Um olhar para a vida que transcorre entre espaços silenciados e outros.

6 7

BRUM, 2004. OLIVEIRA, 2011, p. 137.

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As duas solidões Estou muito surpreso, completamente encantado! Eu tenho um precursor, e que precursor! Eu quase não conhecia Spinoza: que eu agora me volte a ele se deve a uma ação instintiva (…) em suma: minha solidão que, no cume de altas montanhas, frequentemente, e de forma muito costumeira, corta-me a respiração e faz meu sangue subir à cabeça, é agora ao menos uma dualidão!8

Um ponto em comum entre o conceito vulgar de amizade e o que os mangás e Nietzsche apresentam diz respeito à necessária relação com um outro. De uma outra forma, diríamos que a concepção de amizade envolve um certo grau de intersubjetividade, ainda que se trate, em Nietzsche e nos mangás, de relações intersubjetivas bastante singulares, marcadas pela renúncia e alteridade radicais. A relação com o outro, calcada na guerrilha, silêncio e estranhamento contínuos, coloca em xeque algumas condições outrora tidas como necessárias num trato amical. O amigo não melhora o outro e tampouco o complementa. O que haveria é um entre-dois colocado em suspensão, vivenciado a golpes de pequenos e grandes tensionamentos. Se, para Nietzsche, o eu (enquanto unidade substancial) não passa de uma invenção da gramática, o mesmo se aplica ao outro. Numa relação intersubjetiva, onde os dois sujeitos se constituem a partir de suas próprias ficções, torna-se impossível (ou ao menos desnecessário) aceitarmos a premissa de que ambos se entendem plenamente e de que, em função disto, se complementariam. A relação estabelecida entre dois indivíduos humanos, portanto, não passa pela compreensão das partes, mas por um campo de incompreensibilidade no qual os dois pólos da relação intersubjetiva outorgam uma radicalidade crítica que impede que a amizade seja mais do que uma relação na qual o eu e o outro formam-se na dúvida, na ilusão, no embuste – dado que o conhecimento pleno desses dois pólos é tido como impossível.9

Carta de Nietzsche a Fraz Overbeck, 30 de julho de 1881. In: NIETZSCHE, 1986, p. 192. 9 OLIVEIRA, 2011, p. 316. 8

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Os amigos tornariam-se, pois, iguais, em suas próprias desigualdades. A presença do outro ativaria o incomunicável que há no sujeito e na relação. É na relação entre estes dois incomunicados que o incomunicável se produziria. A intimidade se daria pelo estranhamento, na junção entre aquilo que não pode ser comunicado ou revelado ao outro, na medida em que são inacessíveis a um ego ou racionalidade constitutiva. É no embate entre estas duas solidões (dualidão) que um outro se produziria – a este outro daríamos o nome de amizade. A amizade, ao invés de resolver o impasse da solidão, coloca em evidência o próprio imperativo de uma ontologia que nunca sabe ao certo o que é o ser humano, mas no que ele está em via-de-se-tornar. A dualidão sentida por Nietzsche em relação a Spinoza anuncia um pacto outro entre sujeitos que, ao abrir mão de uma simbologia (do grego sin: unir, juntar, reunir; bolós: movimentar, levar, bailar), opera por aquilo que há de diabólico na relação (do grego dia: longe, distante, fora de). Na solidão amical, compartilhada na medida em que se vê permanentemente cindida, dá-se a dança entre-dois, um bailar no qual ambos se dividem e por vezes se encontram. Se fores para o leste, irei para o oeste: sentir desta forma é elevado signo de humanidade no relacionamento próximo: sem esta sensibilidade, toda amizade, toda relação entre mestre e aluno, mestre e discípulo se torna, em algum momento, hipocrisia.10

À guisa de uma conclusão Ao final deste breve percurso percebemos o quanto um tema tão naturalizado como a amizade, dependendo da perspectiva em que for situado, pode receber abalos, levando-nos a repensá-lo a partir de sua própria reversão. Os mangás e a filosofia de Friedrich Nietzsche nos ajudam a entender, ou melhor, a distender algumas camadas morais e humanizadoras que envolvem a figura do amigo e dos impactos possíveis de uma relação amical. Lidar com o outro enquanto amigo é colocar-se também como um plano movente, situar-se para além das fronteiras estabelecidas, suspendendo algumas premissas que nos parecem necessariamente constitutivas e que, nesta experiência bélica, silenciosa e diabólica com o outro, mostram-se criativamente ficcionais. Num ambiente experimental, ali onde o sujeito pode expor-se sem medir-se, é que se dá a alegria transbordante nietzschiana. Todavia, 10

NIETZSCHE, 2008c, p. 110.

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trata-se uma alegria raspada de todo e qualquer ideal de felicidade, pois alegres são aqueles que não se prendem a pés de chumbo. Os personagens dos mangás, em seus gestos e olhos circunspectos, nos ensinam que a suspensão do sentido prévio pode nos levar à leveza. Mas nada nos garantirá que encontraremos paz ou conforto em nossas melhores amizades. Então, resta-nos perguntar: será nosso amigo o maior de nossos inimigos? No domínio da vida cotidiana talvez não haja sentido em buscarmos desmesuradamente tamanha distinção. Façamos das palavras de Nietzsche as nossas: “Amigos, não há amigos!’’ – disse o sábio moribundo; “Inimigos, não há inimigos!” – digo eu, o tolo vivente.11

Referências BRUM, E.H.M. “Patologias do vazio: um desafio à prática clínica contemporânea”. Psicologia Ciência e Profissão, v. 2, n. 24, p. 48-53, 2004. MOLINÉ, Alfons. O grande livro dos mangás. São Paulo: JBC, 2004. NIETSZCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Trad. Antônio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2008a. _____. Aurora. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2004. _____. Ecce Homo: como se chega a ser o que se é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2008b. _____. Humano, demasiado humano: um livro para Espíritos Livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das letras, 2000. _____. Humano, demasiado humano II: um livro para Espíritos Livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das letras, 2008c. _____. Lettres choisies. Paris: Gallimard, 1986. OLIVEIRA, Jelson. A amizade para Nietzsche: uma arena de mal-entendidos. Philósophos, Goiânia, v. 16(2), p. 315-342, jul-dez, 2011. _____. A profilaxia do silêncio: Nietzsche e a virtude da vida contemplativa. Ethic@ , Porto Alegre, v. 10(2), p. 133-155, 2011. _____. Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. SEGAWA, Hajime. Ga-Rei. São Paulo: JBC, 2011. VASCONCELLOS, P. V. F. Mangá-Dô, os caminhos das histórias em quadrinhos japonesas. Dissertação de Mestrado - Departamento de Artes & Design, Pontifícia Universidade Católica do RJ: Rio de Janeiro, 2006. 11

NIETZSCHE, 2000, p. 218.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

VIDAS MINÚSCULAS: 1 cartografando cartografando viveres viveres infantis infantis1 Janete Marcia do Nascimento Luciana Alves Pinto Janete Marcia do Nascimento Luciana Alves Pinto

Encontrar é achar, é capturar, é roubar, mas não há método para achar, só uma longa preparação. Roubar é o contrário de plagiar, copiar, imitar ou fazer como. A captura é sempre uma dupla-captura, o roubo, um duplo-roubo, e é isto o que faz não algo de mútuo, mas um bloco assimétrico, uma evolução a-paralela, núpcias sempre “fora” e “entre”. Gilles Deleuze e Claire Parnet, Diálogos.

1 Súmula Oficina criada visando tematizar Vida. Objetiva elaborar e desenvolver atividades de leitura e escrita que possibilitem pensar, repensar e expressar a compreensão das crianças sobre Vida. Esse o primeiro desejo. O processo de invenção e criação de múltiplos sentidos de vida, o segundo. A Esta oficina foi desenvolvida com duas turmas de 3º ano, Anos Iniciais do Ensino Fundamental, no ano de 2011, na Escola Municipal André Zenere no município de Toledo, Paraná, pelas autoras acima citadas.

1

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Biografemas

Biografematizar em meio aos corpos que se produzem artistadamente por escritas vívidas. Uma oficina de escritura biografemática, implicada por disparadores do pensamento, o que significa escrever os detalhes de uma vida, raridades que passam despercebidas ou que ainda não foram significadas e partilhadas no plano cognitivo. Transformar detalhes insignificantes (sem significação prévia) em signos de escrita. Utilizar esses signos de escrita. Utilizar esses signos (aqueles que podem encantar) como disparadores de um novo texto, ou seja, da escrita de uma vida em experimentação e que, portanto, é produzida na potência da invenção de sentidos. Tratase da invenção de conectores entre ficção e realidade, entre imaginário e história biográfica. (DALAROSA, 2011, p.22-23).

utilização desses signos como disparadores para a escrita de vida de cada um, o terceiro. Potencializar a escrita do minúsculo, dos detalhes, raridades de uma vida, através de biografemas, o desafio. Conhecer e explorar as histórias de vida das crianças, desejando possíveis encontros na troca de experiências, objetos, vivências cotidianas, na busca do detalhe, do minúsculo, que muitas vezes passa despercebido aos olhos que, mesmo curiosamente atentos, descuidam-se, às vezes, das intensidades cotidianas.

2 Disparadores principais: cartografando vidas minúsculas em meio às oficinas – sentidos de vida De como tudo se passou. Vidas Minúsculas. Fevereiro, 2011, manhã de quartafeira, trinta faces, amedrontadas, assustadas, felizes, amadas, expostas, escondidas, atentas, desconectadas, descuidadas, emocionadas, apáticas, audaciosas, nervosas, tranquilas, tristes, vivas, mortificadas! Uma face. E entre faces, um misto de susto, desafio e esperança. Retrato de uma sala de aula; relatos da vida de professora. Na sala em frente, o mesmo quadro se desenha, repete, insiste, repele, pouco difere. O que há em comum? Escrileitoras numa tentativa desenfreada de conhecer, escrever em meio à vida. Vida que se desenha sob os olhares dos sujeitos. Vazio! Na bagagem, dois textos serviriam como norte: Pistas para o método cartográfico e Estratégias biográficas. Como descobrir o que se esconde por trás de cada rosto, expressão, gesto? “Vidas Minúsculas”, tentativas de

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Metamorfose

Ao fazer parte do grupo de pesquisas “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida” sinto que o que ocorreu na minha vida e na vida das crianças com as quais trabalho foi uma metamorfose. E, como diria Raul Seixas, “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante”. Sair lendo/escrevendo em meio à vida, produzindo e sofrendo metamorfoses, metamorforseando (Diário de Bordo – Professora Luciana Alves Pinto). Entretanto, o gesto nunca é totalmente o que parece estar sendo. Apenas insinua algo do qual seu portador pouco sabe (COSTA, 2011, p. 133). A leitura biografemática faz irromper a figura do leitor, não

biografemas de vidas. Conhecer, reconhecer a vida de cada criança, pesquisar vidas, ler vidas, pois trata-se de escrever os detalhes de uma vida, transformando esses detalhes insignificantes em signos de escrita e esses signos num novo texto possível, produzido na potência da invenção dos sentidos, mediante ficção e realidade. No desejo de reinvenção do eu que escreve. Passou-se, enfim, a habitar um território que até então não existia, com a cautela necessária a quem lida com o desconhecido; Explorá-lo por intermédio dos olhares, das escutas, da sensibilidade, da percepção de cada movimento. E a cada novo dia, novos afetos se constatarem naquilo que a todos afetava. Sofria-se dos mesmos sofrimentos. As descobertas estabelecem elos. Os rizomas foram surgindo das intensidades vividas minusculamente, marcados por sua singularidade, vivendo num pluralismo de fato onde todos os lugares são possíveis, onde as multiplicidades convivem e criam novas dimensões, onde o sujeito deixa de representar a vida e se apresenta. Os mapas de vidas se cartografam infinitamente!

3 Propostas de criação

como curioso empírico, mas como ator de uma escritura que já é ela mesma, a realização de uma vida possível COSTA, 2011, p. 133).

Rizoma

Mundo-rizoma, lido como uma verdadeira maquínica de enosamentos, de linhas duras, flexíveis e de fuga. O rizoma como uma verdadeira comunidade, uma comunidade pura, sem extremos ou polos que sejam fixos por natureza, destituindo-nos da possibilidade de ancorar modos de agir, pensar e sentir em nenhuma espécie de ser ou substância (TRINDADE e FONSECA, 2009, p. 165)

Desejo

• Escrita de palavras. • Escrita de frases. • Escrita de conceitos. • Produção pictórica expressando conceitos de vida. • Escrita de texto, contando sua história de vida. • Escrita de diários.

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O desejo permeia o campo social, tanto em práticas imediatas quanto em projetos muito ambiciosos. Por não querer me atrapalhar com definições complicadas, eu proporia denominar desejo a todas as formas de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas de valores (GUATTARI; ROLNIK,1986, p. 125).

• Escrita de biografemas. • Fazedura de livro.

4 Objetivos atravessantes

Leituras minúsculas

• Desejar, pensar, inventar, criar, interpretar, pesquisar, vivenciar, discutir, elaborar sua compreensão, seus conceitos de vida; • produzir cartazes (pinturas individuais sobre conceitos de vida); • possibilitar leituras coletivas e conversações sobre as relações sociais, papéis sociais, participação social, convivência em grupos distintos, etc.; • transformar detalhes insignificantes (sem significação prévia) em signos de escrita; • tornar a escrita uma necessidade de reinvenção do eu que escreve; produzir livro gigante de textos da turma, vinculando produção pictórica e produção escrita. Primeiro desejo

Conversações • Quando ouvimos a palavra “vida”, do que lembramos? • Que outras palavras poderiam nos remeter à ideia do que seja vida? • Que sentidos perpassam essas palavras? Escritas • Escrever uma palavra que represente o significado da palavra vida para você. • Atribuir sentidos a essa palavra. • Pesquisar o significado dessa palavra no dicionário.

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Ler a escrita no quadro de giz. Ler os trechos dos livros didáticos. Ler as tarefas de casa. Ler a expressão da professora. Ler as regras da escola. Ler os poemas no Dia das Mães. Interpretar. Conviver. Ler obras de arte. Ler os livros da professora. Dar um lar aos livros bonitos, novos, cheirosos, velhos, usados, comprados no sebo, trazidos de casa, das casas. Inventar casas pra eles no armário. Sentir saudades do Alice (no país das maravilhas). Entrar na bolsa amarela. Conhecer o cosmos com o Pequeno Príncipe. Viajar para um castelo do terror. Conhecer monstros horripilantes. Ler o diário das invenções de Leonardo da Vinci. Conhecer o menino marrom e seu amigo cor de rosa. Ler as alegrias das crianças ao ler, ouvir, contar e escrever uma história. Sentir saudades de ler. Ver algumas crianças aprender a ler. Escrever. Desenhar. Pintar. Fazer livros. Refazer histórias. Desenhar as histórias prontas. Mostrar desenhos e contar/escrever/ler as histórias que eles contam. Ler desejos de ler. Emocionar-se com leituras primeiras. Viver as histórias. Ser o minúsculo das vidas que se desenham para mim. Olhar as leituras e gostar delas. Abrir envelopes com livros. Conhecer os livros das crianças. Compartilhar a alegria de quem recebeu livros

• O significado da palavra no dicionário tem o mesmo significado que a palavra expressa para você? No que difere? No que se assemelha? Por quê? • Por meio de um desenho, expressar os sentidos da palavra vida. • Sobre o imaginário e a história biográfica.

pelo correio. Ler vida! Escrita! Leitura! Ler juntos os livros que se tem! Contar que o número de livros tá engordando (como as vontades da Raquel – da Bolsa Amarela). Ver crianças trazererem os livros para ler na hora do recreio! Emoção! (Diário de Bordo, professora Janete Marcia do Nascimento).

Segundo desejo

Conversações • A respeito da vida de cada um. • Em que a palavra escolhida por você e os sentidos atribuídos a ela têm relação com a sua vida? E com outras vidas que não a sua? Escritas • Expressões de vida através do desenho, da pintura, da colagem, da arte. • Reescritas de sentidos pesquisados para a palavra vida. Terceiro desejo

Histórias de vidas!

Como atender a cada ser indivíduo, com sua história de vida, seus bons e maus momentos, seus acertos, suas esperanças e desencantos, e cumprir com todas as obrigações e normas impostas pelo “sistema”? Luta diária? Questionamento diário? Dúvida diária? Busca diária? (Diário de Bordo – Professora Luciana Alves Pinto).

Vívidos e vividos

Conversações • Pesquisar objetos, documentos, arquivos, fotografias para estimular o resgate da memória da história de vida. • Narrativas orais de vida, utilizando os materiais pesquisados. • Buscar detalhes por meio de entrevistas com familiares (um dia, um momento, um acontecimento, um desejo, um cheiro, um sabor, uma dor, algo sem significação prévia).

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Saudades do Alice: Um aluno que ama livros, comentando sobre o livro “Alice no país das maravilhas”, que lemos inteiro, juntos, durante as aulas, duas vezes, de tanto que as crianças gostaram:

– Professora, eu tô com uma saudade do Alice! – Você está com saudades de quem? – Do Alice, aquele seu livro lindo que nós lemos

5 Leituras • Livro “Diário da bruxa Onilda”. • Livro “Diário das invenções de Leonardo da Vinci”. • Biografias de autores conhecidos e admirados pelos alunos. • Textos sobre histórias de vidas criadas pelas crianças.

Escritas das Crianças • Escrita em diários (cenas do cotidiano, segredos, desejos conscientes e inconscientes). • Produção de texto sobre história de vida. • Criação de desenhos que expressem a vida. • Montagem de painel sobre a vida. 6 Desafio Conversações • Sobre o minúsculo, o insignificante, inventário de banalidades. • Sobre os fatos e acontecimentos, detalhes e raridades da trajetória de vida, escritos do diário. 6.1 Leituras • Leitura de fragmentos dos diários dos estudantes. • Leitura de biografias de autores conhecidos e admirados pelos estudantes. • Leitura de textos das histórias de vida dos estudantes.

Conversações • O que há de comum nos textos lidos?

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juntos, lembra? Traz ele de novo, pra morar mais uns tempos no nosso armário? (Diário de Bordo – relato de um aluno sobre a experiência de ler Alice no país das maravilhas). (Diário de Bordo, professora Janete Marcia do Nascimento) A prática biografemática volta-se para aquilo que é mais comum, para o potente que se entranha no ordinário, para as imprecisões do rosto, uma espécie de etnologia do minúsculo, um inventário de banalidades (COSTA, 2011, p. 35). Trata-se do modo como nos apropriamos de uma vida, não somente interpretando-a de maneiras inusitadas, como, sobretudo, reinventando-a a partir daquilo que a esta vida se mostrava até então irrelevante (OLIVEIRA, apud COSTA, 2010, p. 35). O biografema faz daquele que lê e escreve uma vida o próprio dramaturgo desta vida. O que ele registra não é a verdade desta vida, mas a verdade de um encontro com esta vida. (...) Sendo eminentemente um traço de encontro, o biografema envolveria: 1) falar do outro em mim e 2) falar de mim, no outro (COSTA, 2011, p. 13).

Contradições

Acompanhar processos, cartografar, tornar-se parte, respeitar individualidades, criar um coletivo, estar aberto

• O que difere um texto do outro? • Que detalhes, semelhanças ou diferenças se pode observar?

Escrituras • Criação de outras possibilidades de escrita para a sua vida. • Invenção de novos sentidos e vidas. • Escrita de biografema da história de vida de um colega, ou personagem (invenção de conectores entre ficção e realidade, entre o imaginário e história biográfica, fabulação). 7 Considerações das autoras Oficinar sugere, aqui, o desejo de estudar sentidos de vida, de criar possibilidades de pesquisas e de atividades que captar intensidades vivenciadas pelas crianças, da tentativa de compreender processos de criação através de desenhos, pintura, escrita, leitura, da reinvenção de sentidos referentes à vida. Trata-se de um convite, de um desejo, a novas possibilidades de pensamento. Destacam-se fragmentos dos diários de bordo das autoras, diálogos vívido-vividos em sala de aula durante as atividades desenvolvidas nesta oficina. 7.1 Das vidas e seus sentidos O que é vida? Por que elaborar e desenvolver uma oficina com o tema vida? O que move sentimentos, intensidades, curiosidades sobre a mera constatação de que se está vivo em meio a tantas vidas que se entrelaçam todos os dias na escola?

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para novos pontos de vista, novas experiências, habitar o território existencial, ter afeto com o local de trabalho, com os envolvidos, cartografar... Como reagir quando ouvir: –Você está se envolvendo demais com seus alunos, com seu trabalho, isso pode lhe prejudicar! Pense nisso! (Diário de Bordo – Professora Luciana Alves Pinto)

Vidas minúsculas e minuciosas Crianças pequenas. Faixa etária de sete a nove anos. Algumas com onze, doze anos. Vários são os motivos para o atraso na vida escolar: características familiares, mudanças geográficas, morte ou doença dos pais. Abandono de uma das partes. Nova formação familiar. Falta de casa para morar. Irmãos separados pelas separações dos pais. Sofrimento pela ausência dos membros da família. Mães que não aceitam os filhos, a gravidez, a condição em que foram gerados. Imaturidade. Insegurança. Medo. Desconhecimento sobre os cuidados infantis. Filhos e avós! Vida marital precoce. Desemprego. Subemprego. Condições precárias de sobrevivência. Mortes por violência na família. Carências afetivas. Amor pela escola. Admiração pela professora. Necessidade de chamar atenção

Na sala de aula, a cada pedaço de tempo durante uma ou muitas manhãs, os nervos se afloram na tentativa de reconstruir laços afetivos, de convivência, de ânimo e, por vezes, de desânimo pela responsabilidade que se tem como professoras sobre as vidas que se nos entregam, todos os dias. O que dizer sobre a vida escolar de crianças tão pequenas? Como definir, perante as crianças, as muitas vidas das quais todos nós estamos constituídos e repletos de normas de convivência em todos os grupos aos quais pertencemos? Como definir uma vida que adentra a sala de aula e sobre a qual pouco ainda se sabe? O que dizer do brilho nos olhos das crianças ao observar, dia a dia, o nascimento da vida das sementes de vegetais nos experimentos que se fazem nas aulas de ciências? Como compreender a curiosidade das crianças pelas vidas que se conhece juntos, nos diversos livros para os quais criou-se o hábito de adentrar em viagens inusitadas durante o ano inteiro? Muitas são as perguntas. É possível que se pudesse elaborar inúmeras respostas, igualmente questionadoras. Costa (2010)2, ao questionar “e a gente entra numa vida como?” dirá, por meio de Alain Robbe-Grillet em Por um novo romance, ao comentar a obra do escritor Robert Pinget, que: “Trata-se de possíveis que erram pelos cantos – de vidas possíveis, literaturas possíveis”. É possível, pois, que nas inúmeras possibilidades de dar sentido à palavra vida, se possam considerar os encontros que COSTA, 2010, p. 47.

2

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para si. Crianças bonitas. Falantes. Silenciosas. Entusiasmadas. Apáticas. Famintas. Bem cuidadas. Desorganizadas. Limpas. Mal cuidadas. Cansadas. Sonolentas. Vivas!

Vida Quando um bebê nasce começa uma vida! (Luana – aluna do 3° Ano B: 2011).

se dão diariamente por intermédio dos conteúdos, atividades, brincadeiras, olhares e encantamentos que se oferecem a cada dia, por crianças únicas, com olhares ávidos por experimentar outros conceitos de vida. Seguindo e analisando a forma de escrita do citado crítico, esta é compreendida como “breves pedaços de realidade decomposta”, ligadas por um só princípio, que ele chamará de vida – que para Pinget “não estaria no desenrolar das cenas, no seu enredo ou na narrativa de acontecimentos, mas no que acontece desde que o romance inventa para si uma origem”. Entende-se, então, segundo Costa, que “se a vida começa por um ‘eu nasci...’, é porque a partir daí, dessa invenção, tudo se bifurca, toda uma coleção de inícios possíveis que se abre a partir desse primeiro enunciado... vida, numa escritura, seria, ela mesma, um vir a ser. Na oficina Vida pôde-se observar o nascimento de um conjunto de possibilidades. Novos elos que se constituem das intensidades do vívido e do vivido. Talvez aqui seja o lugar e agora seja o momento de escrevermos sobre Vidas que não são nossas, mas que se encontram entrelaçadas às nossas pelas possibilidades dos encontros que ainda nascem das atividades que se compartilha, diariamente. Escrever, portanto, dar-se-á num gesto desconfortavelmente confuso, pelo medo de agonizar. De não dar conta de expressar, no espaço físico dos parágrafos e das páginas que se findam, as intensidades dos sentidos de vida que se construíram durante esta oficina. Observa-se, no entanto, que as atividades desenvolvidas na oficina puderam criar, para as crianças, sentidos de Vida referentes às suas vivências fundamentais como amor, amizade, carinho, as coisas que gostam de fazer, como brincar, ler, aulas de educação física, hora do recreio, enfim. As coisas mais fundamentais que vivenciam no dia a dia, tanto na escola quanto em casa, em suas diversas outras Vidas.

Referências AQUINO, Julio Groppa; CORAZZA, Sandra (Orgs.). Abecedário educação da diferença. Campinas: Papirus, 2009. BARK, Jaspre. Diário das invenções de Leonardo da Vinci. São Paulo: Ciranda Cultural, 2009.

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BOJUNGA, Lygia. A bolsa amarela. 33. ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2003. COSTA, Luciano Bedin da. Estratégias biográficas: biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry Miller. Porto Alegre: Sulina, 2011. _____. O destino não pode esperar ou o que dizer de uma vida. In: FONSECA, Tania Mara Galli; COSTA, Luciano Bedin (Orgs.). Vidas do Fora – habitantes do silêncio. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010. DALAROSA, Patrícia Cardinale. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.) Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. KASTRUP, Virginia. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (Orgs.). Porto Alegre: Sulina, 2009. OLIVEIRA, Marcos da Rocha. Biografemática do homo quotidianus: o senhor educador. Porto Alegre: UFRGS, 2010. Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010. SABUDA, Robert. Alice no país das maravilhas. Lewis Carrol; [adaptação] Roberto Sabuda; Trad. Cynthia Costa. São Paulo: Publifolhinha, 2010. ROLNIK, Suely; GUATTARI, Félix. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. ZIRALDO. O menino marrom. São Paulo: Melhoramentos, 2009.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

LITERATURA POTENCIAL Máximo Daniel Lamela Adó

Súmula Em uma oficina de Literatura Potencial (nesta proposta de oficina), a criação não se separa da compreensão, pois não se distingue teoria e prática. O que conta é o ato da escrita ao modo de um traçado que opera mais para uma geografia do que para uma história. É escrevendo que se escreve, então, provoca-se atuar com um espírito de rigor e diversão, pois se trata de estar atento à ideia de que toda expressão só se expressa ao se expressar, já que inexiste como forma pré-definida ao expressado. Um processo que procura atuar pelas e nas multiplicidades potenciais do narrável, sem a procura de uma estabilidade doada por um sentido unívoco. O objetivo está em dar mais atenção ao processo de criação do que ao resultado em si, o processo é o próprio acontecimento e o acontecimento passa a ser o sentido.

Procedimentos Em 24 de novembro de 1960, em uma das reuniões do Collège du Pathaphysique [Colégio de Patafísica], Raymond Queneau (1903-1976) e Françoise Le Lionnais (1901-1984) fundam o Séminaire de littérature expérimentale [Seminário de Literatura experimental] que, logo na segunda reunião, passa a se chamar Oulipo – Ouvroir de Littérature

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Potentielle, [Ateliê de Literatura Potencial]. Raymond Queneau já vinha fazendo experimentos com a linguagem desde a década de 1930. Procurando observar o poético do cotidiano passou a defender o uso do francês falado acusando a norma culta de impregnar a fala popular, certamente por influência da televisão. Em 1958, publicou Zazi no metrô onde fez valer esse estudo, mas já havia publicado Exercícios de Estilo, em 1947, livro característico da ideia de que o que importa é o processo da experimentação, uma estratégia para a liberação da escrita. Um movimento que procura atuar com finalidade a constranger a norma linguística de seu status quo e liberar a linguagem para o uso de novas combinações. O livro Exercícios de Estilo trata de uma narrativa breve e de um tema bem simples abordado com 99 estilos de escrevê-lo, isto é, de reescrever o tema. O Oulipo – e a prática de seus membros – tem como premissa a realização de experimentações com a linguagem, principalmente a escrita, e para isso recorrem a antigas práticas retóricas e à criação de regras [contraintes] que vão servir de ponto de partida para a criação. Chegam a afirmar que os retóricos dos séculos XV e XVI são plagiadores do Oulipo por antecipação. Ideia que podemos ver desenvolvida em Ficções, de Jorge Luis Borges [seria Borges outro plagiador antecipado do Oulipo?], escrito entre 1941 (primeira parte) e 1944 (segunda parte), especialmente, ou, melhor dito, com maior evidência no conto “Pierre Menard, autor do Quixote”. Italo Calvino, um dos membros do Oulipo, afirma, em Seis propostas para o próximo milênio: “Nasce com Borges uma literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura que é como a extração da raiz quadrada de si mesma: uma ‘literatura potencial’, para usar a terminologia que será aplicada na França [no Oulipo], mas cujos prenúncios podem ser encontrados em Ficciones [...]”1. A literatura potencial se ergue com esse propósito, qual seja: elevar as potencialidades da linguagem ao quadrado, pesquisar e inventar regras que ganhem aplicação na produção literária e na criação de modo geral. Outros já haviam praticado certa economia em seus procedimentos de escritura. A economia das formas breves propugnadas por uma densidade de superfície. “Por um lado o mais profundo é o imediato; por outro, o imediato está na linguagem2”. Assim procede Paul Valéry 1 2

CALVINO, 2000, p. 63. DELEUZE, 2003, p. 9.

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com seus ensaios, o ciclo de escritos que compõem Monsieur Teste, por exemplo, não param de indicar que “Se conhecêssemos, não falaríamos – não pensaríamos, não conversaríamos”3; “O que chamam de homem superior é um homem que se enganou ”4; “Quero emprestar do mundo (visível) apenas forças — não formas, mas material para fazer formas. [...] E os atos e as fases — não os indivíduos e sua memória”5; “Uma lei estreita da literatura diz que não se deve aprofundar nada”6; “Desconfio de todas as palavras, pois a menor meditação torna absurdo que nelas se confie7”. Assim procede Jorge Luis Borges no prólogo da primeira parte de Ficções ao advertir que o que importa é um procedimento de escrita e tal procedimento está em assumir que seria um delírio, laborioso e empobrecedor, o de compor amplos livros; o de explorar em quinhentas páginas uma ideia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos. “Mejor procedimiento es simular que esos libros ya existen y ofrecer un resumen, un comentario8”, [Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário]. Parece que a condição de possibilidade, que não deixa de atuar como uma regra, da escritura borgeana está na invenção de livros e autores imaginários, assim como a invenção de si como autor. A elevação da escrita à extração de sua raiz quadrada, um procedimento potencial na exploração de si e da linguagem, também pode ser atribuída aos escritos, como de uma etnografia de si, de Michel Leiris em A África fantasma (1934) ou A idade viril (1946), já opera com um procedimento parecido com o que George Perec, outro membro do Oulipo, irá denominar de infra-ordinário, “[...] talvez possamos finalmente fundar nossa própria antropologia: a que falará de nós, buscará em nós o que tanto fomos pilhar nos outros. O endótico em vez do exótico” 9. Mas foi o Oulipo que instituiu a prática oferecendo-lhe um nome como lócus investigativo e de atuação. A literatura potencial vê a escrita a partir de sua construção e esta é acompanhada de um planejamento e uma execução. No processo de execução, ela se vale 5 6 7 8 9 3 4

VALÉRY, 1997, p. 68. Ibidem, p. 16. Ibidem, p. 119. Ibidem, p. 84. Ibidem. BORGES, 1985, p. 12. PEREC apud REZENDE, 1995, p. 13.

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de apropriações, ajustes e transformações e a busca de uma expressão necessária, talvez única. Esse foi o nosso procedimento, estar atento à regra e escrever com palavras matéria ao estilo mallarmeano. O procedimento desta oficina/ateliê de Literatura Potencial começou por sugerir que cada participante curve o dorso e faça o traço surgir de um rigor aparentemente delirante, um anagrama do nome próprio. Adélia lê o Nixom da mala m; como exemplo anagramático do nome próprio do ministrante da oficina.

O que se passou? Não sabemos. Temos dados. Vários encontros e sessões de exercícios de escrita vinculados ao projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida” (CAPES/INEP). Quatro deles ocorreram no Curso de Extensão “Transcriações no Cotidiano”, oferecido na Faculdade de Educação da UFRGS; outro nas reuniões semanais do projeto; outro no VII Salão de Extensão da UFRGS e outro, ainda, na Turma U da disciplina “Educação Contemporânea: currículo, didática e planejamento” dos cursos de licenciatura da UFRGS no primeiro semestre de 2011. Aliás, isso pode ser dito com alguma certeza: tudo aconteceu em 2011. Há uma marca espaço-temporal: FACED/UFRGSPoA, 2011, papéis escritos, fichas assinadas, formulários preenchidos, cartazes, notícias em blogues, um cronograma e uma agenda. Apesar disso, não sabemos o que se passou (mas é certo que com esses dados não vamos constituir uma narrativa). Contamos com o fato de que algo acabou de acontecer, um presente, mas há sempre um segredo que permanece impenetrável na ambiência de uma relação com um incognoscível ou um imperceptível. Deleuze e Guattari nos servem de eco: “A rigor, nada aconteceu, mas é justamente esse nada que nos faz dizer: que pode ter acontecido para que eu esquecesse onde coloquei as minhas chaves, para que não saiba mais se enviei aquela carta..., etc.?”10. Temos certo efeito, os dados e os exercícios como resultados das propostas da oficina, que como a notícia de que não sabemos onde colocamos as chaves nos dão a pensar um movimento em segredo. Mas, atenção, o efeito aqui é ao modo spinoziano: “A potência 10

DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 63-81.

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de um efeito é definida pela potência de sua causa”11. Para Spinoza, a causalidade é imanente, ou seja, um efeito não se separa da causa, é a sua expressão. Desse efeito, como expressão de causas, procuramos agir valeryanamante, ou seja, pensar o pensamento desse movimento em segredo que produz efeitos e, ainda, em certa empiria que esse movimento de oficinas nos permite, rascunhar a respeito de jeitos dos corpos e, por que não dizer, jeitos do espírito (intelecto). “[...] adivinhar por quais sobressaltos de pensamento, por quais bizarras introduções dos acontecimentos humanos e das sensações contínuas, depois de quais imensos minutos de languidez são reveladas aos homens as sombras de suas obras futuras, os fantasmas que as precedem”12 . Tais fantasmas, como movimentos em segredo, são os fantasmas das criações e anotálos, ou seja, fazer de palavras a sua matéria é como se insinuar ao modo de promover um método no qual, por intermédio de uma ação imitativa e tradutora do ato descrito, um novo ato promova adaptações possíveis do primeiro, tornando-se outro por meio da necessidade de seu uso e, a cada vez, promovendo uma nova necessidade. O que aconteceu continua em segredo, mas de suas coisas se tomam forças que produzem outras. Não são analogias que explicam o acontecido, são potências em formas, as coisas como Possest. Deleuze13, em um curso ministrado em 09 de novembro de 1980, menciona Nicolau de Cusa como o criador do termo possest. Para Deleuze, o termo funciona como uma palavra-valise, uma corruptela de duas palavras latinas, uma criação verbal criada por Nicolau de Cusa e que é formada pelo infinitivo do verbo poder, isto é, posse e a terceira pessoa do verbo ser no presente, est (ele é). Com isso, o possest será precisamente a identidade da potência e do ato pelo qual defino alguma coisa. Portanto, as coisas não serão definidas por sua essência, ou seja, aquilo que elas são, mas por aquilo que elas podem em ato. E é desse modo que me interessa falar dos exercícios e de suas produções, tratálos como coisas em delação de espaços e tempos, estar preocupado com aquilo que tais exercícios podem em ato. Mais que seus resultados, a atenção está em seus processos produtivos que, neste caso, foram concebidos por procedimentos restritivos. Mesmo assim, é somente SPINOZA, 2009, p. 216. VALÉRY, 1998, p. 19-21. 13 DELEUZE, 2009, p. 83. 11 12

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dos resultados que posso partir para, de certo modo, observar a identidade de suas potências. Uma identidade descontínua e que somente ela é capaz de conservar a sua própria afirmação. Matérias performadas em associações derivadas ou liberadas mediante restrições. Afirmações atuando como expressões de causas e efeitos imanentes. Assim, resultados não são apenas resultados, mas partes constituintes do processo. O que temos são resultados performativos, uma vez que não são os limites de sua própria atuação. Algo se dá a acontecer e a cadeia não se encerra. A primeira delas, dessas coisas produzidas por movimentos suscitados mediantes alguma restrição, está no primeiro exercício solicitado nas oficinas: fazer anagramas do nome próprio completo. Lembremos que a palavra anagrama, do grego anágramma, transposição de letras, funciona como um rearranjo das letras de uma sentença formulando, desse modo, outra palavra ou frase. Um nome próprio formado por uma transposição de letras é chamado de antropônimo, usualmente empregado para cunhar pseudônimos ou encobrir nomes ou, ainda, codificar frases ocultando informações. Por exemplo, o nome Iracema, lembrando o romance de José de Alencar, funciona como um rearranjo ou uma transposição da palavra América; Alcofribas Nasier é um anagrama do nome Françoise Rabelais. Em 1654, Alonso de Alcalá y Herrera publicou o livro Jardim Anagramático de Divinas Flores Lusitanas, Hespanholas e Latinas com 686 anagramas cronológicos. Cada anagrama possuía uma informação a respeito da data (ano) de sua composição. O exercício proposto não solicita que se faça uma antroponímia do nome, mas tampouco restringe que isso aconteça. Dessa liberdade na regra surgem anagramas antropônimos e, também, composições divertidas, liberadas da norma culta da gramática e de idiossincrasias sintáticas. Nomes se tornam frases, slogans, palavras-matéria, signos gráficos e a atenção da escrita se libera de um destino teleológico para aquelas palavras, para dar atenção ao que elas podem em suas restritas aparições. O gesto de composição se torna o próprio acontecimento escrileitor. É preciso dizer que, em todas as oficinas que esse exercício foi sugerido, pôde-se notar, na expressão corporal e evidentemente facial dos participantes, um riso, talvez provocado pela surpresa e o

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inusitado que as letras tão próximas e tão usuais de seus nomes próprios produziram ao serem rearranjadas na ordem de seus espaços. Talvez seja um riso libidinal de um regozijo de si ao ver uma marca identitária tomar formas inusitadas. Não importa o porquê ou ainda o como, há aí, nesse riso, uma imanência de vida, uma força de vida liberada nessa e por essa forma dita humana. Um riso que não se mostra nervoso ou moral, um riso sem história, um riso do inusitado e de uma potência alegre. Desse gesto, destaco estes anagramas de nomes próprios: casar sem cha Nei logo ri; some serca rolai china; rato tece ks forma na NBS; Regine nasce bem doida; Gaspar é azeddo roba rede; Ela cria sub onças; Gel na crista, ao sul, as aves; Ela risca B’s na selva; Hei, crist heart; Retta eh chiris; Crei tretah shi; Saih rei tchert; Nu, Belsch roeu o Rodrigo; Ben chorou o selo de guri; sargento desopressor; Ganisa Nobel vai comer niosioki; O vaso salva o sol; Só o tolo pisa; Só sai o pulo nulo; Sila louva Sólon. Dando continuidade à oficina, evidentemente propomos outros exercícios como o já clássico em oficinas de escrita: “Dez palavras uma história”. Em nossa composição, sugerimos o seguinte: partindo de um anagrama do nome próprio e a partir de elementos do mesmo (letras, sílabas), formar novas palavras que, a sua vez, servem como elemento para a decomposição e formação de outra. Na sequência, formar duas palavras de cinco letras e, colocando-as na horizontal, formar um acróstico de dez palavras. No acróstico deve haver pelo menos três palavras que sejam heterogramas. Das palavras formadas pelo acróstico escreva uma história. Esse exercício permite trabalhar várias noções e maneiras de lidar com a palavra escrita. Anagramas, acrósticos, heterogramas, etc. Acróstico, do grego akrostíkhion; ákros, extremidade, stikhos, verso, designa as composições nas quais certas letras formam uma palavra ou frase, em geral um nome próprio. Heterograma, do grego héteros, outro, diferente, somado a gramma, escrita, designando um enunciado em que nenhuma letra se repete. Deste exercício podemos apresentar o seguinte exemplo, do nome próprio rearranjado no anagrama e partindo de algumas letras e sílabas do mesmo, uma das participantes definiu duas palavras: micos e comas, dessas duas fez o acróstico para definir as dez que utilizaria em seu texto.

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MICOS - COMAS

C - Cordões O - Ouro M - Máquinas A - Aéreo S - Silêncio



M - Mulheres I - Inicio C - Carvalho O - Orvalho S - Suspiro No INICIO, as MULHERES inventaram as MÁQUINAS. Nelas, desenvolviam-se em SILÊNCIO, CORDÕES de OURO e CARVALHO. Enquanto isso, no ORVALHO AÉREO, não se ouvia um só SUSPIRO. O que se passou?

Referências ALENCAR, Ana Maria de; MORAES, Ana Lúcia. O OULIPO e as oficinas de escrita. Terceira Margem: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Rio de Janeiro, ano IX, n. 13, p. 9-28, 2005. BORGES, Jorge Luis. Ficciones. Barcelona: Planeta-Agostine, 1985. CALVINO, Italo. Seis propostas para o novo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CAMPOS, Augusto de. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, 1984. DELEUZE, Gilles. Curso sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Trad. Emmanuel Angelo da Rocha Fragoso et al. Fortaleza: EdUECE, 2009. _____. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas. São Paulo: Perspectiva, 2003. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 8. 1874 – Três Novelas ou “O que se Passou?” Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. In: ______.

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Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. Trad. Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004, v. 3, p. 63-81. LESCURE, Jean. Pequeña historia del Oulipo. Trad. Raúl García. XUL, signo viejo y nuevo. Revista de literatura. Buenos Aires, n. 10, p. 93-96, dezembro 1993. LINS, Osman. Guerra sem testemunhas. São Paulo: Ática, 1974. OULIPO. Atlas de littérature potentielle. Paris: Gallimard, 1988. PEREC, George. As coisas: uma história dos anos sessenta. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ______. El lipograma. Trad. J.S. Perednik. XUL, signo viejo y nuevo. Revista de literatura, Buenos Aires, n. 10, p. 71-72, dez. 1993. ______. Espèces d’espaces. Paris: Galilée, 1974. QUENEAU, Raymond. Exercícios de estilo. Trad. Luiz Rezende. Rio de Janeiro: Imago, 1995. ______. 100.000.000.000.000 de poemas. Instrucciones para el uso. Trad. Florencia Dassen. XUL, signo viejo y nuevo. Revista de literatura, Buenos Aires, n. 10, p. 69, dezembro 1993. REZENDE, Luiz. É escrevendo que se vira escrevedor. In: QUENEAU, Raymond. Exercícios de estilo. Trad. Luiz Rezende. Rio de Janeiro: Imago, 1995. SPINOZA, Baruch. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. Trad. Geraldo Gérson de Souza. São Paulo: Ed. 34, 1998. ______. Monsieur Teste. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Ática, 1997.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

CALCULANDO O VERSO Sandra Elisete Casola Leandro Nunes

Súmula A presente oficina foi pensada com o intento de mesclar operações matemáticas simples com a técnica de escrita parnasiana, tendo como público alvo estudantes do Ensino Fundamental. Pensando em interdisciplinaridade, em vivência de processos de singularização e em transversalidade no horizonte da correlação entre leitura, escrita e pensamento, esta oficina trabalha, de uma só vez, operações lógicas e cálculos matemáticos, ambos atravessados pela escrita.

Introdução O indivíduo, adulto ou criança, pode brincar à sua maneira, tirando proveito dessa experiência toda a aprendizagem para a qual ele está aberto naquele momento. As atividades matemáticas proporcionam um meio real de aprendizagem. Não obstante – e segundo Alves1 –, o lúdico privilegia a criatividade e a imaginação por sua própria ligação com os fundamentos do prazer. Não comporta regras pré-estabelecidas nem 1

ALVES, 1987

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velhos caminhos já trilhados, mas abre novos caminhos, vislumbrando outros possíveis. As crianças ficam mais motivadas para fazer uso da inteligência quando a atividade proposta incentiva o pensar por meio de algo que lhe garanta um prazer. Dessa maneira, podemos inferir que o lúdico possibilita uma relação real da criança com o mundo que lhe é estrangeiro, um mundo novo e desconhecido, sendo o professor o responsável por guiá-la neste caminho. O mundo em que as crianças estão a ser introduzidas, [...] é um mundo velho, quer dizer, um mundo pré-existente, construído pelos vivos e pelos mortos, um mundo que só é novo para aqueles que entraram recentemente pela imigração. [...] Pela educação, os pais assumem por isso uma dupla responsabilidade – pela vida e pelo desenvolvimento da criança, mas também pela continuidade do mundo. [...] esse mundo tem necessidade de uma proteção que o impeça de ser devastado e destruído pela vaga de recém-chegados que, sobre si, se espalha a cada nova geração.2

Matemática A matemática é uma ciência que reflete sobre operações lógicas e abstratas, estando sempre relacionada às atividades humanas. Suas origens perdem-se no tempo. Os mais antigos registros matemáticos de que se tem conhecimento, datam de 2400 a.C. Sendo o matemático grego Euclides, o primeiro a sistematizá-la através da geometria. E na Grécia antiga, o filósofo pré-socrático Pitágoras “foi o primeiro grande pensador a fazer a matemática relacionar-se com a filosofia, uma das ideias mais frutíferas que qualquer ser humano jamais teve”3. A matemática sempre esteve no centro do desenvolvimento das sociedades, sendo que muitos dos grandes filósofos da história eram matemáticos também. A matemática tem se desenvolvido numa relação simbiótica com a filosofia e as ciências, e alguns dos maiores filósofos também foram 2 3

ARNDT, 2000, p. 27 e 29. MAGEE, 1999, p. 15,

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grandes matemáticos: Descartes, por exemplo, inventou não somente o gráfico, mas toda a disciplina da geometria analítica, e Leibniz descobriu o cálculo, para citar apenas dois.4

A filosofia sempre esteve intimamente ligada com a matemática. Em muitos momentos da história, filosofia e matemática foram sinônimos, dois lados de uma mesma moeda. E é neste limiar que fixamos esta oficina.

Parnasianismo O Parnasianismo é uma escola literária poética, excêntrica e única, que cultiva principalmente a forma e a beleza, em que a poesia valida-se em suas palavras minuciosamente postas em cada verso. A poesia parnasiana é preciosista, foca-se no detalhe, na rima perfeita, na beleza; tem um espírito prosaico, pois trata de pessoas, do cotidiano. O parnasianismo é a arte pela arte em devir que enfoca uma métrica rigorosa, sendo os sonetos a forma preferida para os poetas parnasianos. Nesse gênero literário, o número de sílabas deve ser o mesmo em cada verso; a métrica deve ser perfeita. COMO QUISESSE LIVRE SER XXXII Como quisesse livre ser, deixando As paragens natais, espaço em fora, A ave, ao bafejo tépido da aurora, Abriu as asas e partiu cantando. Estranhos climas, longes céus, cortando Nuvens e nuvens, percorreu: e, agora Que morre o sol, suspende o vôo, e chora, E chora, a vida antiga recordando ... E logo, o olhar volvendo compungido Atrás, volta saudosa do carinho, Do calor da primeira habitação... 4

Idem.

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Assim por largo tempo andei perdido: – Ali! que alegria ver de novo o ninho, Ver-te, e beijar-te a pequenina mão!5

A poesia apresenta uma simetria constante como, por exemplo, dez sílabas no primeiro verso, doze no segundo, oito no terceiro, seis no quarto e, assim, sucessivamente. O foco primeiro são os objetos inertes, objetos a serem descritos, o que a torna menos subjetiva. O nome parnasianismo surgiu na França e deriva do termo “Parnaso”, que na mitologia grega era o monte do deus Apolo e das musas da poesia. Na França, os poetas parnasianos que mais se destacaram foram Théophile Gautier, Leconte de Lisle, Théodore de Banville e José Maria de Heredia. PRIMEIRO SORRISO DA PRIMAVERA Enquanto os homens, com suas obras perversas, Ofegantes correm Malgrado os aguaceiros, Março, que ri, prepara em seguida a primavera. Para as alvas e pequenas margaridas, Quando tudo adormecido está, Dissimuladamente ele, mais uma vez, repassa a gola E amarelos ranúnculos, cinzela. No pomar e na vinha Lá se vai, furtivo barbeiro, Com uma borla de cisne A amendoeira, na geada, polvilhar. Descansa, no leito, a natureza. Sobre ele desce um jardim deserto Enlaçando os botões de rosa Em seu espartilho de veludo verde. Tudo são solfejos Que aos melros, à meia noite, silva Nos prados campainhas brancas semeia Nos bosques, violetas. Sobre o agrião da fonte Onde bebe o cervo, a orelha em pé, 5

http://www.revista.agulha.nom.br/bilac1.html#livre.

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Com a mão oculta, do lírio-do-vale Os guizos d’ouro debulha. Sob a erva, pra que a colha, O morango de tom vermelho põe E te trança um chapéu de folhas A proteger-te do sol. Em seguida, concluída a tarefa, Vendo o fim de seu reinado. Ao limiar de Abril, voltando a cabeça Lhe diz: “Podes vir, ó primavera”! 6

No Brasil, o parnasianismo chegou na metade do século XIX, tendo perdurado com força até a Semana da Arte Moderna de 1922. Dentre os poetas parnasianos brasileiros se destacam os nomes de Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, que formavam a chamada “tríade parnasiana” 7. MAL SECRETO Se a cólera que espuma, a dor que mora N’alma, e destrói cada ilusão que nasce, Tudo o que punge, tudo o que devora O coração, no rosto se estampasse; Se se pudesse o espírito que chora, Ver através da máscara da face, Quanta gente, talvez, que inveja agora Nos causa, então piedade nos causasse! Quanta gente que ri, talvez, consigo Guarda um atroz, recôndito inimigo, Como invisível chaga cancerosa! Quanta gente que ri, talvez existe, Cuja ventura única consiste Em parecer aos outros venturosa!8 7 8 6

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Objetivos O jogo que propomos para esta oficina – que intenta mesclar poesia, matemática e lógica – é chamado por nós de Calculadora gigante. Esse jogo nada mais é do que uma adaptação do jogo da amarelinha9, uma brincadeira muito antiga e popular que permeou – e permeia – a infância de muitas crianças. Desenvolve-se esse jogo com a intenção de provocar aprendizagem significativa, estimular a construção de conhecimento novo e, principalmente, despertar o desenvolvimento de uma habilidade operatória. ***

Procedimentos Primeiros • Fazer uma pequena explanação sobre o parnasianismo, falar da métrica e explicar que serão produzidos sonetos durante a oficina. Tal explanação dar-se-á pela leitura de poesias parnasianas. • Mostrar aos alunos o funcionamento de uma calculadora e incentiválos a usá-la em operações de cálculo para que se familiarizem com o modo operacional da máquina. • Desenhar no chão, com giz ou fita adesiva, duas calculadoras, lado a lado, de proporções imensamente maiores que a calculadora manual (adequar ao espaço oferecido). • Pedir que os alunos formem duas equipes e que cada equipe escolha um juiz e um escrivão. • Posicionar-se entre as calculadoras para emitir verbalmente o cálculo a ser realizado. Após esse momento, os respectivos representantes de cada calculadora iniciam o processo do cálculo pulando com um de seus pés nas casas (tecla), desde o iniciar (ligar) e passando pelos números e sinal da operação a ser realizada (seguir os mesmos procedimentos que iria usar se estivesse fazendo uma operação na calculadora habitual). Ao pisar no sinal da igualdade (=), escrever 9



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com o giz que traz na mão o resultado da operação. Todo o processo deverá ser acompanhado visualmente pelo juiz indicado pelo grupo opositor e, se ocorrer de pisar sobre a linha, deverá reiniciar a operação desde a casa (tecla) iniciar (ligar) – o cálculo deverá ser realizado pelo escrivão em uma folha para a conferência.

• Solicitar que anotem o resultado da operação realizada com uma caneta na palma da mão. • Nesse momento, entra-se com a poesia parnasiana. O resultado do cálculo deverá ser divido por um número indicado pelo oficineiro, que terá de cuidar para que o resultado não seja um valor acima de 12, porque o resultado desta divisão (resultado da operação realizada na calculadora, dividido pelo número indicado pelo oficineiro) será o número de sílabas que cada verso irá ter (escrever em forma de soneto). • Cada aluno irá escrever uma poesia – tendo a técnica parnasiana como horizonte – a partir do resultado da divisão final. Por exemplo, se o resultado for 12, cada verso da poesia deverá ter 12 sílabas. • A poesia deverá ser escrita em forma de soneto, ou seja, com duas estrofes de quatro versos (quartetos) e duas de três versos (tercetos). • Marca pontos a equipe que concluir o procedimento corretamente. Em seguida, é dada continuação com outros dois jogadores e assim sucessivamente, até que todos tenham participado e escrito ao menos uma poesia.

Procedimentos Finais • Com as poesias prontas, o último passo acontecerá na forma de um sarau, no qual todos os participantes irão apresentar a poesia criada durante a oficina. A organização do sarau ficará a critério dos oficineiros.

Referências ALVES, Rubem. A gestação do futuro. Campinas: Papirus, 1987.

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CORAZZA, Sandra Mara. “Caóides”. In: Silas Borges Monteiro (Org.). Cadernos de notas 2: rastros de escrileituras. Canela: UFRGS, 2011, p. 13-15. HANNAH, Arendt. A Crise na Educação. Lisboa: Relógio D’Água, 2000. KOHAN, Walter, XAVIER Ingrid Muller (Orgs.). Abecedário de criação filosófica. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. MAGEE, Bryan. História da Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 1999. VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

VIDA! Hoje tem espetáculo! Shirlei Bracht

Não há como proteger-se da sensação ao tomar contato com ela através de signos sensíveis, mas há de se ter sensibilidade aos mesmos. Assim, educar o olhar, os ouvidos, o toque... Educar, aqui, talvez seja inventar condições para que se criem, no encontro, novas marcas-signos no mundo. Dalarosa

Arte – desenho, pintura, música, teatro, dança, cinema, leitura, escrita... “escrita”! Partir deste princípio para promover a produção de autobiografias por meio das linguagens artes visuais e teatro. Utilizando as técnicas do Teatro Imagem e do Teatro Invisível de Augusto Boal, desenvolvendo os jogos dramáticos que possibilitam o improvisar, o faz de conta e tendo como estímulo externo o objeto máscara, sendo disparador do autoconhecimento e do conhecimento do outro, fazendo nascer momentos de registros escritos informais e formais, estudo e produção de obras visuais, culminando na representação de sua história, por intermédio de texto, poesia ou vídeo.

O teatro de Augusto Boal O diretor teatral brasileiro Augusto Boal foi o responsável pela criação do “Teatro do Oprimido”, uma metodologia teatral que tem como proposta “transformar o povo, ‘espectador’, ser passivo no fenômeno

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teatral, em sujeito, em ator, em transformador de ação dramática”1. Ao longo de sua carreira realizou múltiplas experiências com diferentes grupos de pessoas, em países da América Latina. Dessas diferentes propostas, conceituadas por ele como “técnicas”, nasceram em especial duas: o Teatro Invisível e o Teatro Imagem. O Teatro Invisível é uma técnica que consiste em promover momentos de pesquisa teatral de maneira informal quando os atores infiltram-se entre as pessoas em espaços comuns do cotidiano, como praças, terminais rodoviários, supermercados, e promovem a discussão sobre um assunto, tendo falas pré-combinadas, sem o conhecimento dos demais. No Teatro Imagem os espectadores intervêm diretamente, “falando” através de imagens feitas com os corpos dos demais atores ou participantes. Representando situações-problemas do cotidiano em imagens concretas, os atuantes encenam e a plateia faz leitura da linguagem corporal no intuito de compreender a situação. Segundo Boal, “ideias foram feitas para sofrerem, não perseguições, mas o mais amplo, veemente, cadente e caloroso debate”2 . A forma de pensar o teatro pelo autor destaca a importância do teatro como processo-ensaio, valorizando as etapas de construção em que o espectador transforma-se em ator, deixando de ser objeto e convertendose em sujeito.

Procedimentos A oficina foi dividida em vários Atos relatados ao longo do texto3. Foram ordenados na apresentação, sem determinações rígidas de uma sequência a seguir. Procurou-se ter como norte a proposta metodológica prevista para o Ensino da Arte que, de acordo com as Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Estado do Paraná, deve contemplar a produção, a fruição, a contextualização, desenvolvendo a alfabetização estética, pois, conforme Barbosa, BOAL, 1991, p. 138 BOAL, 1991, p. 234. 3 Esta oficina foi desenvolvida com alunos do 9º ano, durante os meses de maio a outubro de 2011, no Colégio Estadual Jardim Europa, município de Toledo, no Paraná. 1 2

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pretende-se não só desenvolver a criatividade através do fazer arte, mas também das leituras e interpretações das obras de arte (...) desconstruir para reconstruir, selecionar, reelaborar, partir do conhecido e modificá-lo de acordo com o contexto e a necessidade são processos criadores, desenvolvidos pelo fazer e ver arte.4

Dessa forma, os momentos descritos contemplam as diferentes linguagens da arte, priorizando o olhar-se, analisar-se, conhecer-se, tornando o processo e o produto igualmente valorosos.

Ato I Produção da máscara – auto-identificação A máscara foi utilizada, inicialmente, como objeto potencializador, objetivando promover o olhar-se. Para produzir a máscara, foi usado o processo de atadura gessada, que consiste em modelar sobre o rosto os pedaços de atadura gessada molhados, fazendoos adquirir as formas, o desenho do rosto. Além do encanto de ver seu rosto modelado na peça de gesso, sobressai-se a curiosidade, a possibilidade de olharem-se. Depois da modelagem feita, além de se identificarem com a modelagem, os alunos foram convidados a inserir nela uma marca, algo que os identificasse, utilizando a técnica de pintura guache sob atadura. Surgiram marcas variadas: desde a inicial do nome, o registro do time, desenhos de objetos que gostam, símbolos de seus gostos pessoais, cantor preferido, filme, música, livro e outras. Importante foi, naquele primeiro momento, prepará-los para romper com uma primeira barreira: tocar o rosto um do outro para a produção da máscara e observá-lo. Posteriormente, estabelecer uma relação com esse objeto, até então desconhecido, persona4

BARBOSA, apud ROSSI, 2003, p.16.

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lizando-o. Em seguida, promoveu-se o estímulo para a criação de uma marca pessoal, inserindo-a na máscara, promovendo uma relação de pertencimento, de auto-identificação.

Ato II Jogos dramáticos – disparador de textos poéticos Foi proposto um primeiro momento de aplicação dos jogos dramáticos, desenvolvendo a expressão corporal, facial, gestual, socialização entre os alunos. Num segundo momento, direcionou-se a produção escrita com base em situações vivenciadas durante os jogos, questionando-os de como se sentiram seguindo a ordens externas, como reagiriam a uma situação como essa no dia a dia, quais seriam suas reações. Seriam pacíficos? Se aceitariam? É importante que esse registro permanecesse com os participantes ao longo do desenvolvimento da técnica. Na prática da escrita surgiu nosso personagem escrileitor. A situação o permitiu que fosse sincero e, em alguns casos, que admitisse sua realidade; noutras, que fabulasse sua história, criando novas cenas para este filme chamado vida. A máscara pode ser utilizada em alguns jogos. Por exemplo, em um jogo onde o aluno deve seguir os comandos de um mestre, mantendo-se com os olhos fixos aos movimentos da palma da mão do colega – adapta-se o jogo. A máscara é colocada na mão do colega, que a movimenta em várias direções, fazendo com que o aluno tenha que submeter o corpo a posições diferentes de acordo com os movimentos da máscara. O uso dos jogos dramáticos no teatro funciona ora como via de acesso ao conteúdo teatral – construção do personagem, noção espacial, postura corporal, gestual, facial –, ora como potencializador de momentos de criação. Esses momentos são oportunizados de maneira

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informal, tendo como referência o Teatro Invisível de Augusto Boal. O jogo dramático, segundo Olga Reverbel, é “improvisação a partir de temas ou situações. O jogo dramático, também denominado jogo teatral, é uma criação e representação coletiva”5.

Ato III Preparação visual – apresentação da imagem Durante o ato III, foram incorporados jogos com imagens (escolhidas pelo professor) para que procurassem identificar-se com as mesmas, expondo de forma oral os motivos de suas escolhas. Sugeriu-se que fossem apresentadas obras de arte – pinturas, cartazes publicitários – fazendo referência a alguns personagens históricos ou artísticos, oportunizando a reflexão sobre os elementos que os identificam, bem como a análise quanto aos elementos formais que compõem a imagem. Posteriormente, solicitou-se que os participantes fizessem escolhas individuais de imagens, objetivando a produção visual da autobiografia. É possível, novamente, propiciar momentos para exposição das produções aos colegas. Auto-identificação com imagens, buscando perceber nelas livres relações consigo, com sua vida, sua postura, a fim de reviverem cenas de vida, ampliando as possibilidades de escrita. Tratando-se da escrita de uma biografia, segundo Barthes, é preciso considerar que: O texto é aquilo que se atravessa na obra e que a coloca em movimento, tudo o que é passível de ser lido e que não está intimamente ligada à obra propriamente dita (uma imagem, uma fotografia, uma pintura, uma anotação...). Entretanto, faz-se necessário reforçar que o movimento produzido pela concepção de Texto biográfico é outra, pois o que avança não é a escrita sistemática de uma vida (com sua cronologia, fases, períodos, etc.), mas as vidas que se engendram e que tornam a biografia sempre aberta, produzindo saídas para as vidas mais aprisionadas.6 5 6

REVERBEL, 2002, p. 17. COSTA, 2010, p. 26.

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Ato IV Produção dos textos poéticos Nos momentos anteriores, o aluno foi convidado a produzir a escrita sobre si, a escrever livremente sobre sua forma de se ver e de ver o mundo, a olhar-se de maneira integral. Assim, foi motivado a produzir e/ou transformar o que escreveu em textos poéticos; o ato de escrever, juntamente com o ato de ler, vem arraigado de muitas ideias de desprazer deixadas por metodologias maçantes do método tradicional. Por isso a importância de ter sido dada ao aluno a oportunidade, nos momentos anteriores à oficina – durante a qual escreveu motivado pelos jogos dramáticos, repensou sua trajetória, reconheceu-se no texto –, de ficar à vontade, podendo brincar com as palavras. Ana Mae Barbosa trata dessa livre-expressão, que é uma metodologia utilizada no ensino da arte na escola nova, na qual defende a não contaminação do aluno pela imagem externa, valorizando mais a subjetividade, e que perdurou por muito tempo na educação como prática da aula de arte: “O professor (...) que, baseado nessa concepção naive7 da arte da criança, pretende preservar sua ingenuidade expressiva, apenas formará personalidades que não são capazes de continuar suas experiências através da imersão visual no objeto artístico”8. Nosso aluno precisa ter a possibilidade de ver, observar, olhar, analisar, produzir e criar. Isso é reduzido quando a ação baseiase em modelos pré-estabelecidos, cópias. Quando se trata do termo livre-expressão, corriqueiramente confunde-se com uma prática livre, sem orientação, do tipo “faça um desenho livre”: o aluno recebe uma folha e desenha. Esse tipo de proposta pode ser válido se acontecer esporadicamente; no entanto, quando esse tipo de prática se torna rotina 7 8

O termo é francês. Deu origem a outro “naif” que significa ingenuidade. BARBOSA, apud ROSSI, 2003, p. 15.

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é vazia, não propicia estímulo ao nosso aluno, não o faz pensar sobre o que faz, o procedimento, a técnica, os elementos formais, a temática, não lhes propiciando condições para que tenha compreensão do que produziu e da produção do outro ao longo da história. Na Escola Nova acreditava-se que o aluno seria contaminado por imagens externas, a criação deveria “vir de dentro” – “a arte deve ser expressa”.

Ato V Organização dos textos em PowerPoint Jogo, corpo, imagens, cores, letras, leituras, escritas... fazem nascer autobiografias... Apresentam-se como slides do programa Power Point. Nossos personagens escrileitores devem, agora, preocupar-se com sua apresentação visual, personalizando as páginas com a escolha das cores, com o posicionamento do texto. O aluno organizou tudo o que produziu, leu, escreveu, desenhou nas páginas de sua autobiografia.

Ato VI Produção dos vídeos Com as autobiografias prontas e salvas, é interessante que se promova um debate sobre a produção, expondo aos colegas as propostas através da análise feita sobre cada uma delas. Proporcionar ao aluno o conhecimento de biografias de outros autores, no formato livro, filme. Propor que se organizem em grupos, escolham uma entre suas biografias para transformar em vídeo (curta-metragem). Apresentar os elementos cinematográficos, estimulá-los a produzir seus roteiros, escolher cenário, organizar as filmagens, preparar os figurinos, maquiagens, brincar de ser cineasta!

O Teatro do Oprimido na prática O ensino da arte tem previsto o ensino das linguagens das artes visuais, dança, música e teatro. No entanto, muitas vezes entre os próprios professores de arte essas linguagens – em especial a dança, a música e o teatro – tem se posto como uma barreira, como um obstáculo

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por dois motivos: a falta de formação específica na área e o tempo. Em uma proposta na qual se pretende “escriler, em especial com adolescentes, ter como pano de fundo as técnicas do teatro do oprimido possibilita maior abertura metodológica, potencializando os momentos do pensar. Em cada ato acima descrito, mesmo estando implícitas, as técnicas do Teatro Imagem e do Teatro Invisível foram propostas através de jogos dramáticos. Utilizar-se delas promove possibilidades de promover professor-oficineiro e aluno a escrileitores de forma mascarada. Nosso espectador-passivo se transformou em ator-sujeito de sua ação.

Referências BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. COSTA, Luciano Bedin da. Biografema como estratégia Biográfica: escrever uma vida com Nietzsche, Deleuze, Barthes e Henry Miller. Porto Alegre: UFRGS, 2010. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010. DALAROSA, Patrícia Cardinale. Pedagogia da Tradução: entre Bio-oficinas de Filosofia. Porto Alegre: UFRGS, 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Secretaria de Estado da Educação do Paraná, 1998. FERRAZ, Maria Heloísa Corrêa de Toledo. Metodologia do ensino de arte. São Paulo: Cortez, 1999. HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuibá: Ed. UFMT, 2011. REVERBEL, Olga Garcia. Jogos Teatrais na Escola – Atividades globais de expressão. São Paulo: Scipione, 2002. ROSSI, Maria Helena Wagner. Imagens que falam: leitura de arte na escola. Porto Alegre: Mediação, 2003.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

OFICINA DE ARTISTAGEM CURRICULAR Sônia Regina da Luz Matos

A investigação deste trabalho é parte do Projeto Observatório da Educação Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, fomentado pelos órgãos Federais Conselho Nacional de Pesquisa (CAPES) e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP). O Projeto funciona junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, na Linha de Pesquisa Filosofias da Diferença e Educação, ocorrendo na montagem de oficinas de escrileituras1. Especificamente para este texto, destaco a experimentação da oficina ocorrida na área de Educação, com foco na formação de professores, junto às alunas do curso de Pedagogia da Universidade de Caxias do Sul. A montagem deste trabalho aconteceu nas fronteiras entre o currículo2 e a literatura3. Esta atua no cenário educativo como intercessor de afecções e de efeitos da produção curricular pela diferença. A oficina denominada Kafka e um artista da fome é parte de um investimento de artistagem curricular. Para isso, necessitei da inspiração do conto Um artista da fome 4 e sua arte de jejuar. Assim, vivemos da arte deste personagem na oficina. E foi como artista da fome que conhecemos o rigor de artistar o currículo; conhecemos a emergência de curricular 3 4 1 2

CORAZZA, 2011. SILVA, 1999, 2001. KAFKA, 1998. Ibidem.

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pela artistagem. Perguntávamos: qual é nossa arte ao curricular? Temos arte? Ao jejuarmos na ética do artista da fome em relação ao currículo escolar, queríamos apenas potencializar a inventividade curricular. Espreitávamos o perigo destas ideias. Temporariamente, houve náuseas: era a intoxicação do currículo clichê, do senso comum e do currículo da normatização. Isso foi um efeito de desterritorialização5 da matéria currículo? Tratamos as questões do currículo da artistagem como micropolítica em Educação e não como forças totalizadoras e universais para as propostas curriculares. Foi assim que compomos alguns tipos de procedimentos de artistagens curriculares.

Experimentações nas oficinas Os encontros foram distribuídos entre os procedimentos jejuadores de escrileituras do conto Um artista da fome. Vivemos os procedimentos demarcando as questões biográficas, conceituais e de linguagem. Organizamos marcações das intensidades, servindo-nos da extração das forças de artistagem do jejuador para produzirmos um currículo em Educação.

Oficina I Leitura sonorizada do conto. Foi solicitado que escolhessem cinco ideias de currículo após viver com o texto Um artista da fome.



Oficina II Foto escrita do artista da fome.



Oficina III Inventando o currículo do artista da fome.



Oficina IV Apresentações performáticas com leitura dramática das produções de escrituras.

5

“O processo de desterritorialização que constitui e estende o próprio território” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 33).

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Nos estudos de currículo, há tipos conceituais que envolvem inúmeras posições curriculares. Porém, este projeto de investigação/ experimentação dedicou-se às questões contemporâneas sobre artistagem curricular6. A arte da artistagem é povoada de afecções, isto é, encontro com a ética do jejuador. Libertação das experiências sensíveis em sua singularidade de arte. Por isso “necessitamos de toda arte exuberante, dançante, zombateira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós”7 . A artistagem tem a dimensão da arte com seus procedimentos inventivos na própria agonia de viver em meio à vida. A vida como arte, a arte na vida é possibilidade de não morrermos com a verdade. A busca da verdade aprisiona a criação de uma vida. A arte como pensamento da diferença é vivida como um estilo, uma estética de existência. A arte, quando pensada em termos de representação da realidade, passa para a objetividade e, assim, se aprisiona na estética da contemplação, na ética da conscientização. Desta forma, a docência artística pode ser deslocada como práticas inimagináveis e talvez nem mesmo sendo possíveis de serem ditas, pois carrega questionamentos dos seus próprios limites pedagógicos e didáticos. É na artística que se [des]prende da certeza e da verdade pedagógica o julgamento moral a ser ensinado. Assim, este tipo de currículo é produzido no pensamento da diferença pela diferença, que toma a arte como força que movimenta a agonia da vida. Agonística que retiramos das forças kafkianas. Afectados pelo jejuador, produzimos escritas nas oficinas remetidas à zona das escrituras. Uma escritura curricular singular, onde a forma de expressão produziu outros efeitos curriculares. E é de se estranhar as propostas curriculares que ali ressonaram. O currículo, singular, tomou a significação de acontecer num movimento de curvatura do infinito, no continuum, assumindo valores, de certa maneira, não definidos – nem definitivos – porque “a singularidade é um conceito existencial”8, não um conceito de interioridade individual. Investir em pontos de singularidades faz acontecer a pluralidade de processos. O pensamento da artistagem curricular opera na singularização por atuar num campo de multicentragem. CORAZZA, 1998. NIETZSCHE, 2001, § p. 107. 8 ROLNIK; GUATTARI, 1986, p. 68. 6 7

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Fastio curricular As propostas curriculares produzidas nas oficinas nos dão uma paragem neste tempo do jejuador quase morto. Num cantinho da jaula, foi quando ele disse: “– Por que eu não pude encontrar o alimento que me agrada? Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo” 9. O artista da fome inspira num currículo que jejua! Um currículo que jejua? Talvez um currículo jejuador produza a dignidade de ter mais força de invenção. Ao jejuar, podemos trabalhar com propostas de currículo como sintoma dos tempos. Estudar por sintomas é muito diferente de curricular para afirmar a verdade. O jejuador funcionou na oficina como um desempanturrador dos jargões curriculares e das opiniões. As potências de composições curriculares inspiradas nas figuras do personagem jejuador afastam, temporariamente, a volúpia de curricular. Jejuar: do contrato pedagógico, da folhinha mimeografada, das datas comemorativas. Dá efeito de fastio curricular. Jejuamos nas oficinas com a força do artista da fome. Depois destes vividos, jejuemos por outras criações.

Referências CORAZZA, Sandra. Planejamento de ensino como estratégia de política cultural. In: MOREIRA, A.F.B. (Org.). Currículo. Questões de aula. Campinas: Papirus, 1998. _____. Notas. In: HEUSER, E.M.D. (Org.). Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: Ed. UFMT, 2011. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Ed. 34. 1997. v. 3. KAFKA, Franz. Um artista da fome. A construção. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. NIETZSCHE, Friedrich W. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. KAFKA, 1998, p. 35.

9

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ROLNIK, Sueli; GUATTARI, Félix. Micropolítica: Cartografia do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade. Uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. _____. Currículo como fetiche. A poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

POSFÁCIO

Ao escrever, a ideia pulsa e pula para as linhas do caderno – ou das teclas para a tela do computador – interferindo (influenciando) na vida dos outros. A escrita, assim, torna-se resultado. A tarefa de reunir textos em um livro – Caderno 5 – está dada. Receber escritas e cuidálas. Zelar por elas. Mimá-las. Porque, ao final de tudo, serão entregues a outros cuidadores: os leitores. Ler, observar, pensar, analisar. Selecionar, ajustar. Delegar. Buscar, achar. Entender, compreender. Decidir. Ir e vir. Pedir. Entre docilidades e exigências, estar atento a tudo que é possível para não deixar passar detalhe algum. Perceber que um livro, ou melhor, este livro se traduz num entrecruzamento daquilo que se passou em muitos e por quase todos. Muitos que trabalham, que exercitam seu direito de estar ali e aqui, neste e naquele momento, fazendo parte de um desejo de educação que opera em meio à vida no ato de ler e escrever. Educação que contempla outro entrelaçamento: o de várias vidas. Então, se fazem pulsações no sentir. Sentir junto. Todos juntos. O rumo percorrido entre esse receber e esse entregar textos implica em um longo trajeto. Prazeroso percurso de ver o livro crescer. Nele, foi possível articular verbos. Vários verbos (ações?!). Entrelaçar, envolver, fazer. Durante a caminhada, inúmeros encontros – e alguns desencontros. Infinitos afetos impulsionaram o chegar. Num caminho extenso, não há facilidades sempre, pois que incorre em grandes responsabilidades. Sendo assim, o melhor é ir junto. Junto com outros também nesse processo de finalização em que é necessário expressar nosso reconhecimento à CAPES, nossa gratidão à professora Sandra

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Corazza, aos amigos do Projeto Escrileituras e às condições oferecidas pela Editora e Gráfica da UFPel. É chegada mais uma tarefa. Pequenos afazeres divididos. E cruzados. E transpassados. Quantas possibilidades! Certo ou errado? Apenas decidir! Troca de ideias. Troca de experiências. Pois bem, tarefa cumprida. Façamos. Está feito! Mas, não está completo. Para completar a escrileitura? O leitor!

Carla, Lucas e Rosiani

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caderno de notas 5 oficinas de escrileituras

AUTORES

A lessandra

abdala – Fonoaudióloga formada na USC-SP; Especialista em Linguagem. Professora no curso de Fonoaudiologia do UNIVAG. Estudante de Mestrado em Educação na Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT. Bolsista da CAPES vinculada ao Programa Observatório Nacional da Educação/INEP/Brasil.

A liziane

bandeira kersting – Acadêmica do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Betina schuler – Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação. Pós-



Doutora em Educação pela Universidade de Lisboa. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul/RS. Graduada em Pedagogia pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Mestre e Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. PósDoutora em Educação pelo Instituto de Educação na Universidade de Lisboa. Professora da Universidade de Caxias do Sul e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCS. Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. Atua com os temas: educação e estudos foucaultianos, didática, currículo escolar, escrita e leitura. Integrante do Observatório de Educação da Universidade de Caxias do Sul na linha de pesquisa Educação

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da Diferença. Pesquisadora no Projeto de Pesquisa Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida (CAPES/UFRGS). Integrante do Grupo de Pesquisa “Cultura, Subjetividade e Políticas de Formação” (CNPq/PUCRS).

Camila

rodrigues de mesquita – Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade Católica de Pelotas. Participou do Grupo de Pesquisa CNPq “Experimenta – Educação e contemporaneidade: experimentações com arte e filosofia” e do Observatório da Educação “Escrileituras: um modo de ‘ler-escrever’ em meio à vida” CAPES/INEP coordenado pela Profª Sandra Mara Corazza, tendo como instituição sede a UFRGS e o núcleo na UFPeL, coordenado pela Profª Carla Rodrigues.

Carla gonçalves rodrigues – Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de Pelotas, líder no CNPq do Grupo de Pesquisa Educação e Contemporaneidade: experimentações com arte e filosofia pela UFPel, coordenadora do Núcleo de pesquisa UFPel – OBEDUC Escrileituras. Tem experiência na área de Educação, com ênfase na Formação de Professores, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofias da diferença, educação matemática, currículo.

Cristiano

bedin da costa – Psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Docente no curso de Pedagogia do Centro Universitário UNIVATES. Sócio-diretor do Mondo Cane, em Porto Alegre-RS.

Daniele

noal gai – Educadora Especial. Mestre em Educação (UFSM e UFRGS). Participa como pesquisadora do Programa Observatório da Educação (CAPES/INEP – FACED/UFRGS). Professora da Universidade Federal do Pará. Atua nas Áreas de Educação Especial e Psicologia da Educação no Departamento de Estudos Básicos da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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D eniz

alcione nicolay – Pedagogo, mestre e doutor em educação pelo PPGEDU/UFRGS. Integra a linha de pesquisa: Filosofia da diferença e educação. Membro do BOP e do DIF. Professor adjunto I da área de Fundamentos da educação na UFFS (campus Cerro Largo/RS). Colaborador do projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida” (núcleo UFRGS).

Eduardo

guedes pacheco – Bel. em Música, instrumento percussão – UFSM. Mestre em Educação – UFSM. Dr em Educação – UFRGS. Professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul. Pesquisador Participante OBEDUC – Escrileituras: um modo de ler escrever em meio à vida. Coordenador Pedagógico da Associação CUICA (cultura, inclusão, cidadania e artes)

Emília

carvalho leitão biato – Professora assistente do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso. Mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Pesquisadora no projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida.”

Ester

maria dreher heuser – Professora na Licenciatura e Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná; Membro do Grupo de Pesquisa: DIF – artistagens, fabulações, variações. Coordenadora do Núcleo Toledo do Projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio a vida”. Licenciada em Filosofia e Mestre em Educação nas Ciências (área Filosofia) pela UNIJUÍ; Doutora em Educação pela UFRGS. Autora do livro Pensar em Deleuze: violência e empirismo no ensino de filosofia, Unijuí, 2010.

Iassanã Martins – Aluna do curso de graduação em Licenciatura

em Teatro pelo Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (DAD/UFRGS). Pesquisadora do projeto PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência pelo DAD/UFRGS).

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Janete

marcia do nascimento – Graduação em Pedagogia (UNIOESTE – Cascavel/PR – 1992-1995). Especialização em Fundamentos da Educação (UNIOESTE – Cascavel/PR – 19971998); Mestrado Em Letras – Linguagem e Sociedade (UIOESTE – Cascavel/PR – 2003-2005). Professora da Educação Básica – Anos Iniciais/Ensino Fundamental. Pedagoga pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Experiência em docência no Ensino Superior e cursos de Especialização – Formação de Professores. Escrileitora iniciante e inquieta. Encantada com a Filosofia da Diferença. Oficineira. Leitora. Tentativas de Escrituras constantes e incansáveis.

Jaziel cleiton rautenberg – Discente de Filosofia (Licenciatura)

da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE; Bolsista (MEC/Capes – Observatório da Educação) do Núcleo Toledo do projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio a vida”.

Josiane

brolo rohden – Pedagoga, formada pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Professora dos cursos de Pós-Graduação Lato Sensu da Faculdade de Sinop (FASIPE). Estudante de Mestrado em Educação na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Bolsista CAPES (DS).

Josimara

silva wikboldt – Pedagoga, integrante do grupo de pesquisa CNPq – Experimenta da UFPel e do Projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida da UFRGS. Professora da Escola Estadual de Ensino Fundamental Dona Gabriela Gastal.

Juliana vernetti giusti – Pedagoga, aluna da Pós-graduação lato sensu em Gestão Educacional na Universidade Federal de Pelotas. Participou do Grupo de Pesquisa CNPq “Experimenta - Educação e contemporaneidade: experimentações com arte e filosofia” e do Observatório da Educação “Escrileituras: um modo de ‘ler-escrever’ em meio à vida” CAPES/INEP.

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Karen

elisabete rosa nodari – Professora do Departamento de Humanidades do Colégio de Aplicação da UFRGS, atua junto ao Núcleo de Orientação e Psicologia Educacional, é Pedagoga, com Doutorado em Educação pela UFRGS. Bolsista do Programa Observatório da Educação CAPES/INEP/UFRGS coordenado pela Profª. Drª. Sandra Corazza, é membro da Comissão de Pesquisa do Colégio de Aplicação, do Conselho de Pesquisa e Extensão da UFRGS e do corpo editorial dos Cadernos do Aplicação.

Leandro

nunes – Graduando Filosofia. Bolsista MEC/Capes – Observatório da Educação. Orientadora Prof. Dra. Ester M. D. Heuser.

Luciana alves pinto – Graduada em Pedagogia (UNIOESTE –

Cascavel/PR – 2003-2006); Especialização em Educação Especial na Educação Inclusiva (UNIPAN – Cascavel/PR – 2006-2007); Professora da Rede Municipal de Ensino de Toledo/Paraná – Anos Iniciais/Ensino Fundamental; Pesquisadora no Projeto de Pesquisa “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida” (CAPES/INEP).

Luciana paiva conceição – Graduada em Pedagogia, especialista em Psicopedagogia, Orientação e Supervisão Educacional. Orientadora no NOPE (Núcleo de orientação e psicologia educacional) do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Luciano

bedin da costa – Doutor em Educação e Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Pesquisador convidado do Observatório da Educação – OBEDUC, atuando no projeto ‘’Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida’’.

Mákellen

gonçalves dias – Acadêmico do nono semestre do Curso de Bacharelado em Psicologia pela Faculdade Três de Maio (SETREM). Bolsista na categoria iniciação cientifíca do Programa

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Observatório da Educação – OBEDUC – CAPES/INEP. FACED/ UFRGS no Projeto ‘‘Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida’’.

Maria

idalina krause de campos – Bacharel e licenciada em Filosofia pela (PUC/RS), com especialização em Filosofia Contemporânea e Brasileira (PUC/RS) e em Filosofia Clínica (Instituto Packter, Porto Alegre). Mestranda em Educação na UFRGS – Membro do DIF artistagens, fabulações, variações sob orientação da Profª Drª Sandra Mara Corazza. Bolsista pesquisadora no Programa Observatório da Educação CAPES/ INEP/UFRGS.

M áximo

daniel lamela adó – Doutorando em Educação na UFRGS (bolsista CAPES), membro do DIF – artistagens, fabulações, variações (UFRGS) e Núcleo ONETTI (UFSC). Licenciado em Ciências Sociais e mestre em Literatura (Teoria Literária) pela UFSC. Pesquisador convidado no Programa Observatório da Educação CAPES/INEP/UFRGS e professor de Sociologia da Cultura no Curso de Especialização em Pedagogia da Arte FACED/UFRGS.

Michelle silvestre cabral – Professora no curso de Licenciatura

em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná; Membro pesquisadora e oficineira do projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida”; Bacharel e mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

Olívia

de andrade soares

– Graduanda em Letras (UFRGS).

Integra o núcleo de pesquisa DIF – Artistagens, Fabulações e Variações e o BOP – Bando de Orientação e Pesquisa, coordenado pela Prof. Dra.Sandra Mara Corazza. Participa como pesquisadora do Programa Observatório da Educação (CAPES/INEP - FACED/ UFRGS) no projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida”.

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O riana

holsbach hadler – Mestre em Psicologia Social pela PUCRS, Psicóloga graduada pela UCPel e pós-graduada na Goldsmiths College – University of London, Inglaterra. Psicodramatista pelo IDH-RS, é docente do Centro Universitário Metodista (IPA) e da Sociedade Educacional Três de Maio (SETREM). Integrante do Núcleo E-politcs - Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação pela UFRGS e colaboradora do grupo de pesquisa Psicologia, Políticas Públicas e Subjetivação pela UCDB.

Simone

vacaro fogazzi – Professora de Artes Visuais do Departamento de Expressão e Movimento, do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora do Programa Arte na Escola – UFRGS. Artista plástica. Especialista em Museologia – Patrimônio Cultural (UFRGS). Mestranda do Programa de pós-graduação da Faculdade de Educação, na linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação, sob orientação da Profª. Paola Zordan. Bolsista no Programa Observatório da Educação CAPES/INEP/UFRGS, coordenado pela Profa. Dra. Sandra Corazza.

S amuel

molina schnorr – Acadêmico da Universidade

Federal de Pelotas do curso de Ciências Biológicas Licenciatura. Bolsista de Graduação do Grupo de Pesquisa CNPq – Educação e contemporaneidade: experimentações com arte e filosofia e do Observatório da Educação ESCRILEITURAS CAPES/ INEP coordenado pela Profª Sandra Mara Corazza, tendo como instituição sede a UFRGS e o núcleo na UFPEL, coordenado pela Profª Carla Rodrigues. Tem experiência na área de Educação e Biologia, atuando em Projetos de Extensão, Pesquisa e Ensino.

Sandra casola – Professora de Matemática. Bolsista MEC/Capes – Observatório da Educação. Orientadora Prof. Dra. Ester M. D. Heuser.

Shirlei

bracht – Professora da Rede Básica Estadual do Paraná, Licenciada em Arte pela UFPel, com Especialização em Meto-

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dologia do Ensino da Arte pelo IBPEX. Bolsista do Projeto: Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida – Núcleo da UNIOESTE – Toledo/Paraná.

Silas borges monteiro – Doutor em Educação pela Universidade

de São Paulo. Professor do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação e da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Coordenador do Núcleo Mato Grosso do projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida”.

Sônia

regina da luz matos – Professora da Universidade de Caxias do Sul. Doutoranda em Educação, em cotutela entre a UFRGS no Pós-Graduação em Educação na Linha de Pesquisa Filosofia da Diferença e Educação e a Université Lumière Lyon 2 na Ècole Doctoral ED 485 EPIC e no Laboratoire Santà © Individu Société - SIS, França.

Wagner ferraz – Graduado em Dança. Especialista em Educação Especial. Especialista em Gestão Cultural. Coordena a Dança do Instituto Estadual de Artes Cênicas na Secretaria de Estado da Cultura (SEDAC/RS). Participa do Programa Observatório da Educação (CAPES/INEP - PGEDU/UFRGS). Professor e Coordenador do Instituto de Desenvolvimento Educacional e Profissional Integrado (INDEPin). Editor do Periódico Eletrônico Informe C3.

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COLEÇÃO ESCRILEITURAS Essa coleção bibliográfica publica os textos produzidos pelos pesquisadores do Projeto, ao longo de seus quatro anos de vigência. • Caderno de Notas 1 – Projeto, Notas & Ressonâncias, organizado pela professor a Ester Maria Dreher Heuser, do Núcleo UNIOESTE, é composto por textos extraídos e trabalhados no I Seminário Integrador Escrileituras realizado na UFRGS, em abril 2011. • Caderno de Notas 2 – Rastros de Escrileituras, organizado pelo professor Silas Borges Monteiro, do Núcleo UFMT, resulta dos trabalhos desenvolvidos durante o I Colóquio Nacional: Pensamento da Diferença e Educação, realizado em Canela, RS, em novembro 2011. • Caderno de Notas 3 – Didaticário de Criação: Aula Cheia, escrito pela professora Sandra Mara Corazza, coordenadora do Projeto Escrileituras, volta-se para a (de)formação de professores e estudantes de Graduação e Pós-Graduação. • Caderno de Notas 4 – Pedagogia da Tradução: entre Bio-Oficinas de Filosofia, resulta da Dissertação de Mestrado da bolsista e pesquisadora do Projeto, Patrícia Cardinale Dalarosa, e trata a tradução como potência criativa em oficinas de Filosofia. Para adquirir os outros cadernos da coleção entre em contato conosco pelo e-mail: [email protected] Estamos na internet UFRGS: www.ufrgs.br/escrileituras UFPEL: http://fae.ufpel.edu.br/escrileituras/ UNIOESTE: www.escolaandrezenere.blogspot.com www.escrileiturasjardiomeuropa.blogspot.com UFMT: http://escrileiturasufmt.blogspot.com.br/ Facebook: www.facebook.com/escrileituras.obeduc

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Editora e Gráfica Universitária R Lobo da Costa, 447 – Pelotas, RS – CEP 96010-150 Fone/fax: (53) 3227 8411 e-mail: [email protected] Diretor da Editora e Gráfica Universitária: Carlos Gilberto Costa da Silva Gerência Operacional: João Henrique Bordin

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