Cadernos de artigos: AUH0240 2014

June 30, 2017 | Autor: Leandro Medrano | Categoria: Urban History, Urban Studies, Urbanism
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Tr a b a l h o s f i n a i s d a d i s c i p l i n a AU H 2 4 0 H i s t ó r i a d o U r b a n i s m o C o n t e m p o r â n e o m i n i s t r a d a n o s e g u n d o s e m e s t r e d e 2 01 4 pelo professor Leandro Medrano no curso de graduação da Fa c u l d a d e d e A r q u i t e t u r a e U r b a n i s m o d a U n i v e r s i d a d e d e S ã o Pa u l o

a b r i l d e 2 01 5

caderno de

ar tigos

FACUL DADE DE ARQ UI TETURA E URBAN I S M O Direto ra: Prof a. Dr a. M ar ia Angela Faggin P e re i r a L e i t e Vic e-Dire tor : Prof . Dr. Ricardo M arques de A z e v e d o Pre siden te d a Com is s ão de G r aduação: P ro f . D r. V i c e n t e G i l F i l h o Pro jeto grá fico e diagr am ação: Luiz a Nad a l u t t i Fo to de c ap a: Luiz a Nadalut t i Impre ssão e encader nação: Labor at ór io d e P ro d u ç ã o G r á f i c a d a F a u u s p Abril de 2 01 5

Esta publicação reúne todos os trabalhos aprovados na disciplina de graduação AUH0240 História do Urbanismo Contemporâneo, oferecida no segundo semestre de 2014 na FAUUSP. Os conteúdos e o cumprimento das nor mativas técnicas e éticas são de inteira responsabilidade dos autores.

A reunião destes textos em um único volume tem como objetivo promover o

debate e a troca de ideias entre alunos e professores da FAUUSP.

sumário

su mári o

11

apresentação Prof. Leandro Medrano

artigos 15

A dificuldade na elaboração de grandes projetos urbanos: um estudo sobre o caso do Arco Tietê Larissa Cristina da Silva

25

A mobilidade de São Paulo como modelo de sociedade da modernidade líquida Ana Cristina Ganzaroli Pinheiro | Maria Luisa Buratto Cardoso

33

A obsolescência do urbanismo rodoviarista: o caso do Elevado Costa e Silva Ibrahim Borba | Leila de Lacerda | Mariana Del Moro

47

A operação urbana Água Branca: os resultados após mais de uma década de implantação Elisa Herkenhoff Bloch

57

A prática da arquitetura à margem da institucionalidade: a contribuição do MTST em São Paulo Mathews Vichr Lopes | Henrique Salva Geddo

71

A premeditada espontaneidade do morar: reflexões sobre a criação de um modo de vida e suas implicações na cidade informal Mariana Caires Souto | Taís Baena Genovez

79

A produção habitacional na cidade de São Paulo e o projeto Cingapura nos anos 1990 Fernanda Bárbaro Martins Peralta | Isabela Belini

89

A utopia do projeto Modernista e a noção de uma arquitetura social X o Brasil dos anos 30 e 40: o caso do IAPI Várzea do Carmo Camila Cioffi | Helenna Luz

sumári o

I5

105

Adaptação das ciclovias em grandes cidades: transformações em Amsterdã Natália Sartini Fonseca

111

Análise comparativa do Programa Renova Centro Marina Gonçalves Marques

119

Análise crítica do “Concurso Nacional de Ensaios Urbanos: desenhos para o zoneamento de São Paulo Ciro Marchi Moreno Dias | Victor de Almeida Presser

129

Comércio, apropriação do espaço público e formação urbana em São Paulo: A proposta e o alcance das feiras Lais Boni Valieris

137

Cota de Solidariedade: comparando políticas entre cidades norte americanas e São Paulo Ana B. P. P. da Costa | Giovanna Albuquerque | Luiz F. Rampazio | Lucas Salazar

151

Dissonâncias morfológicas: a questão do traçado urbano do bairro Jardins em São Paulo Gabriela Pedroso Chimello | Leticia Falasqui Tachinardi Rocha

159

É possível resolver o déficit habitacional em São Paulo. Porque não é conveniente? Luiza Tiritan A. Xavier | Maríllia Paula M. Pimentel

167

Entre valores de uso e de troca: a função social da Vila Itororó na cidade de São Paulo Luiza Nadalutti

177

O paradigma do city marketing e sua aplicação no brasil. Olimpíadas Barcelona – Nova Luz, São Paulo Iván Roguera Sánchez

187

Olimpíadas para quem? Os direitos à moradia e à cidade negados à Vila Autódromo. Beatriz Moura dos Santos | Carolina Rodrigues de Oliveira

6

I sumário

197

Os mutirões autogeridos vistos sob a perspectiva de gênero Iohana Marques

205

Os Shopping Centers e a desertificação das ruas de São Paulo Daniel L. C. Hebling | Luiz H. B. Grecco

213

Políticas públicas e habitação de interesse popular: Conjuntos Jardim Edite e Parque do Gato Luiza Pires Fujiara Guerino | Nathalia Proeti Pardo

225

Reprodução do capital e da sociedade de elite e seus desdobramentos na explosão imobiliária do Brasil entre 2009 e 2012 Pedro Abrantes Andrade

233

Reurbanização e revitalização de centros urbanos: o caso da Orla de Toronto Felipe Kilaris Gallani | Stefano Damiani Fiocca

243

Sistematização do ambiente construído e seus impactos: uma análise da utilização do space syntax nos cursos de arquitetura de universidades brasileiras Seoung Koo Moon | Tainá Sato Sophia

251

Urbanismo e mobilidade em São Paulo: um estudo sobre as possibilidades de aplicação do transporte fluvial para passageiros nos Rios Pinheiros e Tietê Fernanda Ormelezi Pitombo | Leticia Pose Hirata

sumári o

I7

apre s e nta ç ã o Leandro Medrano

ap resen t ação

O século XX acompanhou significativas mudanças nas cidades de todo o mundo, decorrentes de forças internas e externas à suas lógicas urbanas e estruturas sociais. Os acordos engendrados entre a forma urbana e os valores comuns aos cidadãos passaram por sucessivos processos de rupturas, evidenciando os pontos de descontinuidade na lógica natural que ordenava o crescimento e a criação das cidades. A obra maior das vontades coletivas se desfaz, bem como os valores associados à essa lenta e laboriosa construção da sociedade. O que resta é uma cidade em crise, que estende-se e intensifica-se no século XXI. A crise das cidades tem proporções e significados variados, o que torna complexos os instrumentos metodológicos e teóricos elaborados em virtude dos novos problemas da urbe moderna. Destarte, o urbanismo, que desenvolve-se nesse contexto, procura agregar à sua estrutura disciplinar os conteúdos adequados ao entendimento e à atuação no meio urbano, considerando sua dinâmica atual e histórica. Os trabalhos aqui apresentados são decorrentes das discussões ocorridas na disciplina AUH0240, ministrada no segundo semestre de 2014. Dedicada à história do urbanismo dos séculos XX e XXI, a AUH0240 procurou problematizar as práticas urbanas ocorridas nesse período, com ênfase na evolução das teorias e metodologias que contornaram as ações dessa “nova ciência” dirigida à cidade e ao urbano. Assim, temas como as habitações coletivas, as habitações de interesse social, a mobilidade urbana, a densidade, os sistemas econômicos, a morfologia urbana, as políticas públicas, a modernidade, a pós-modernidade, entre outros, foram tratados em conjunto com a análise crítica das principais intervenções urbanas ocorridas no período. Para a realização dos artigos, que deveriam seguir as normativas usuais dos periódicos acadêmicos indexados reconhecidos na área, os alunos poderiam escolher qualquer tema relacionado ao período tratado no curso. Entretanto, a expressiva predominância de temas contemporâneos, sobretudo os relacionados à cidade de São Paulo, revela a premência de nossos impasses urbanos em uma metrópole desajustada – a procura dos acertos e das virtudes que à aproxime dos desejos de seus habitantes.

Prof. Leandro Medrano março de 2015

apresentação

I 11

a r tigos

artigo

A dificuldade na elaboração de grandes projetos urbanos: um estudo sobre o caso do Arco Tietê

Larissa Cristina da Silva

Diversas intervenções urbanas vêm ocorrendo na cidade de São Paulo nos últimos anos. Neste contexto, as transformações esperadas pelo projeto “Arco Tietê” colocam em xeque algo que não se mostra tão evidente em outras operações urbanas menores: a execução de um projeto urbano claro, o qual evidencie desde o início quais mudanças à área interferida necessita e quais são propostas. O presente artigo pretende compreender qual a deficiência deste processo de elaboração de projeto urbano na metrópole paulistana, com destaque para o estudo sobre o projeto do “Arco Tietê”. No atual cenário da cidade de São Paulo, o estudo deste tema mostra-se relevante, pois embora muitas propostas venham sendo elaboradas para diversos pontos deste território, ainda não se apresenta consolidado um interesse por parte dos arquitetos e urbanistas sobre fazer/desenhar a cidade. O desenvolvimento do artigo ocorrerá, primeiramente, a partir da retomada do conceito do urbanismo estratégico, seguida de uma problematização desta estratégica urbana nas OUC (Operações Urbanas Consorciadas). A partir disto, pretende-se analisar o andamento da proposta do projeto para o “Arco Tietê”. Posteriormente, objetiva-se examinar qual a dificuldade em se elaborar propostas para uma área extensa, completamente inserida no tecido urbano e tão carente de uma consolidação que a defina como cidade. Assim, ao fim do artigo, serão apresentados os motivos, por vezes não tão evidentes, que dificultam a elaboração de projetos urbanos completos, evidenciando se a causa deste desinteresse é um problema disciplinar ou é decorrente da complexidade que a escala do projeto urbano demanda. palavras-chave: disciplina urbanismo, urbanismo estratégico, Arco Tietê 15

Urbanismo estratégico Conforme alerta Otília Arantes (ARANTES, 1998), a ideia de intervenções urbanas pontuais no território vem ganhando lugar nas práticas urbanísticas desde o desfalecimento do pensamento urbano defendido pelos modernos, na qual a planificação total da cidade por meio de uma modulação ritmada do território expressava a mais racional forma de organizar as cidades. Desde o sucesso da transformação de parte do território de Barcelona em decorrência das Olimpíadas de 1992, o urbanismo estratégico vem sendo apresentado como um modelo positivo de intervenção urbana que pode ser aplicado em qualquer território. Carlos Vainer explica que a forma de conceber e pensar o planejamento estratégico urbano está estritamente relacionado com conceitos e técnicas provenientes do planejamento estratégico empresarial (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000), o qual a todo instante possui como objetos de extrema importância para sua lógica organizacional o produto e o cliente. Desde modo, é possível compreender o motivo pelo qual o urbanismo estratégico coloca-se como uma forma admissível de intervenção no território das cidades atuais: a antiga ideia que temos de cidade já não se apresenta materializada no território, o que há são mercadorias. Esses produtos para serem vendidos devem atender as exigências do mercado com o qual se pretende comercializar. Assim, as intervenções urbanas são realizadas de modo a instituir no território “produtos” que atendam à exigências do mercado com o qual se anseia estabelecer algum negócio. Tudo isso seria mais simples, se houve apenas uma cidade em todo o mundo que pudesse se oferecer como um produto. Contudo, há muitas cidades no globo, e cada uma delas cobiça por atrair os melhores consumidores, ou seja, conquistar o mercado que detenha o poder de oferecer as melhores ofertas. Assim, é possível prever que, tal como numa lógica de comércio, as cidades passam a transformar-se em espaços de competição, estabelecendo uma espécie de competitividade urbana na qual o vencedor obtém o melhor consumidor, que neste caso é aquele que detém maiores possibilidades econômicas. Partindo-se desta lógica, é possível compreender de modo mais claro em qual ponto Vainer quer chegar quando apresenta a ideia de Cidade-mercadoria, Cidade-empresa e Cidade-pátria (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000). Conforme Vainer, a cidade é uma mercadoria a ser vendida em um mercado extremamente competitivo. Assim, para ser vendida a um público muito específico e qualificado – que Vainer chama de usuários solventes – é necessário que se ofereça algo que este público deseje. Assim, o urbanismo estratégico é realizado tendo em vista o usuário que se pretende para aquele local onde esta intervenção ocorre. Desta ação desenrolam-se inúmeros problemas urbanos relacionados com habitação, mobilidade, empregos, saúde, meio-ambiente, etc. Sendo a cidade uma mercadoria inserida em uma lógica comercial, não é estranho pensar na ideia de uma empresa na gestão dessa produção a qual busca melhorar o produto de modo a chamar a atenção de uma clientela específica. Deste pensamento desdobra-se a Cidade-empresa, a qual decorre da transformação da cidade de uma forma passiva de objeto (mercadoria) para uma forma ativa de sujeito (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000). 16

Desta forma, a Cidade-empresa segue uma lógica produtiva na qual o produto está em si e é ela mesma quem gerencia o que ocorre, configurando-se como uma máquina autônoma e independente. Harvey assinala esse sistema como o empresariamento da gestão urbana (HARVEY, 1996), e Vainer observa: “Assim, ver a cidade como empresa significa, essencialmente, concebê-la e instaurá-la como agente econômico que atua no contexto de um mercado e que encontra neste mercado a regra e o modelo do planejamento e execução de suas ações. Agir estrategicamente, agir empresarialmente significa, antes de mais nada, ter como horizonte o mercado, tomar decisões a partir das informações e expectativas geradas no e pelo mercado.” (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000)

De modo análogo ao que foi pensado para introduzir a ideia de competitividade urbana, também nesta configuração da cidade como uma empresa, tudo seria mais simples se apenas o Estado fosse, ou pretendesse ser, o gestor deste negócio. Sob o discurso da preocupação com a obtenção de resultados, delega-se parte desta gestão para quem realmente está habituado a trabalhar com o assunto: as empresas privadas. Segundo alguns autores, como BORJA, o planejamento estratégico urbano, pautado nessa lógica mercadoria e empresa, configura-se como o modelo mais evoluído daquilo que vem a ser as parcerias público-privadas (BORJA, 1995). Assim, é fundamental ressaltar que o que está em jogo nesta situação não são apenas mudanças físicas no território ou uma lógica administrativa gestora da cidade-mercadoria, mas sim a redefinição do conjunto cidade e poder local. Frente a todo este cenário de ressignificação da cidade e sua gestão, há algo essencial para que todo este processo apresente-se positivo aos olhos da população: o marketing. Tal como foi feito com a introdução da ideia promissora do urbanismo estratégico por meio da propaganda positiva dos resultados obtidos em Barcelona, é vital para a ocorrência deste planejamento estratégico o marketing convincente daquilo que está sendo realizado. Dentro deste contexto, Vainer ressalta a necessidade do consenso, ou seja, as decisões tomadas para intervir na cidade tem que se apresentarem como promissoras de resultados que sejam realmente necessários e positivos para toda a sociedade (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000). Dito isto, é possível retornar as ideias acerca deste planejamento estratégico, o qual se configura a partir do discurso de intervenções urbanas pontuais – que tendem a ser como “metástases benignas” – e revela-se como uma “cenografia gestionária da cidade” (ARANTES, 1998). Segundo este pensamento, as intervenções não seguem uma lógica de melhoria do território e da qualidade de vida de seus habitantes, o que está em jogo nesta maneira de fazer urbanismo, é a melhoria da aparência da cidade de modo que isso possa atrair o consumidor que a Cidade-mercadoria deseja. Em síntese o que ocorre é a condição de uma cidade que não fora inteiramente planejada, mas também não fora inteiramente espontânea uma vez que estas intervenções são pontuais (ARANTES, 1998). Conforme Arantes, o Capital, personificado, produz novos espaços urbanos sem nenhuma preocupação com a história e identidade local (ARANTES, 1998). Isso se torna mais evidente quando estas intervenções envolvem remoções de habitações. Retira-se o existente em vez de incorporá-lo ao novo modelo de cidade demandando por novos tempos, e introduz-se algo diverso, plural. 17

No cenário atual da cidade de São Paulo, o urbanismo estratégico revela-se majoritariamente por meio da realização de Operações Urbanas Consorciadas (OUC). No município de São Paulo, as OUC configuram-se como uma estratégia de transformações estruturais em pontos específicos do território, que ocorrem por meio de um acordo entre a administração pública municipal e o setor privado (Estatuto da cidade e reforma urbana, 2002). Disto, pode-se apontar que as OUC, obedecendo à lógica do urbanismo estratégico já discorrida, realizam-se por meio do estabelecimento de uma parceria público-privada (PPP). A ocorrência deste tipo de parceria, embora se apresente fundamental, segundo a lógica Cidade-mercadoria, Cidade-empresa (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000), em intervenções decorrentes do urbanismo estratégico, não deve ser tomada como algo natural uma vez que há o problema do investimento x lucro e da real melhoria para a cidade. No caso específico da proposta do Projeto do Arco-Tietê, o qual se configura como uma intervenção urbana estratégica, as OUC – estabelecidas por meio das parcerias público-privadas – são pensadas e propostas dentro de um projeto maior com relativa frequência entre os projetos apresentados. Este fato reafirma a lógica do pensamento urbano estratégico no qual a cidade é uma mercadoria que necessita adaptar-se, sendo a gestão desse processo de transformação conferida a empresas privadas, dividindo, assim, a gestão com o poder público sobre o que é realizado na cidade.

Figura 1: Área do Arco Tietê. Fonte: Portal da Prefeitura da Cidade de São Paulo, [s.d.]

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Arco Tietê: o projeto O Arco Tietê configura-se como uma área da cidade de São Paulo que circunda parte da Marginal Tietê e compõe o Programa Arco do Futuro – o qual possui uma área de abrangência maior dentro do território do município. A Prefeitura Municipal de São Paulo elegeu o projeto Arco Tietê como o a etapa inaugural para um processo de grande transformação da cidade na qual se escolhe alguns pontos para ocorrência de intervenções. O espaço urbano interno ao perímetro do Arco Tietê é assinalado pela prefeitura como um território de “relações complexas que articulam escalas urbanas e econômicas de abrangência local e regional” (“Portal da Prefeitura da Cidade de São Paulo”, [s.d.]). Em abril de 2013, foi dado inicio a um processo de chamamento publico para a manifestação de interesse no desenvolvimento de propostas urbanísticas para esta área. Havia pontos fundamentais que deveriam ser abordads pelas equipes participantes deste chamamento. Deste modo, a prefeitura elaborou um guia de diretrizes e temas que apontavam os maiores problemas da região do Arco Tietê, as potencialidades da área, o modelo de gestão que seria utilizado para a execução da proposta escolhida, a relação emprego-habitante-densidade e quais os instrumentos urbanísticos que poderiam ser aplicados no projeto. Uma vez que os temas e diretrizes serão mais evidentes no processo de análise de algumas propostas expostas mais a diante, abaixo há uma síntese do que foi apresentado pela prefeitura: •Drenagem e poluição difusa: medidas estruturais de rentenção – PDMAT/GESP; sistemas de retenção nos parques lineares; sistema de retenção nos lotes; separação da água de primeira chuva; sistemas de descontaminação da água. • Apoio urbano norte: _Transformação urbanística: enterramento da linha de alta tensão; implantação de sistema viário; bulevar de conexão intrabairros; transporte com nova matriz energética; criação de nova centralidade de empregos; proposta de nova frente urbana; canal de retenção dos tributários a norte. _Matriz de viabilidade: concessão comum ou patrocinada; OUC Apoio Norte + bulevar + transporte; projetos imobiliários associados; transporte financiado com recursos OUC. •Apoio urbano sul: _Qualificação + transformação urbanística: complementação do sistema viário; bulevar de conexão intrabairros, transporte com nova matriz energética; adensamento habitacional; canal de retenção dos tributários a sul. _Matriz de viabilidade: obras públicas; concessão comum ou patrocinada; transporte com nova matriz energética; projetos imobiliários associados; transporte financiado com recursos OUC. •Marginal Tietê: _Cenário 1: remanejamento das vias locais; reposicionamento das vias expressas; aproximação da cidade ao rio; criação de jardins urbanos; articulação com o Rodoanel Norte; concessão comum ou patrocinada; OUC Anhembi; projetos imobiliários associados; enterramento financiado com recursos OUC.

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_Cenário 2: rebaixamentos pontuais da marginal; criação de parques sobre lajes; melhoramento das vias expressas; aproximação da cidade ao rio; articulação com o Rodoanel Norte; concessão comum ou patrocinada; OUC Anhembi; projetos imobiliários associados; enterramento financiado com recursos OUC. •Ferrovia: _Cenário 1: adensamento em torno das estações; transposição da linha férrea para pedestres; transformação do uso do solo; concessão patrocinada nas transposições; construção e manutenção de novas estações; projetos imobiliários associados. _Cenário 2: OUC Ferrovia; enterramento da ferrovia com recursos da OUC; implantação de novo bulevar leste-oeste; eixo de transformação do entorno; construção e manutenção de estações; projetos imobiliários associados; criação de terras para a produção de HIS. •Elevado: _Cenário 1: implantação de transporte com nova matriz energética; parque linear; criação de nova frente urbana; concessão comum ou patrocinada; projetos imobiliários associados; reconversão de edifício para habitação. _Cenário 2: demolição com implantação da OUC ferrovia; dependência de implantação de avenida sobre a ferrovia; criação de nova frente urbana; projetos imobiliários associados; reconversão de edifícios para habitação; investimento público; projetos de interesse social; projetos imobiliários associados; •Transporte – Rede de articulação intrabairros: 33km de rede complementar; veículos com nova matriz energética; integração com estacionamento; extensão até o terminal cachoeirinha; extensão até o Centro. •Transposição: implantação de novas transposições associadas a eixos de desenvolvimento; (HIS + Equipamentos + Parque lineares). •Eixos de Desenvolvimento: implantação de eixos de desenvolvimento transversais; ocupação e qualificação dos tributários; articulação com sistemas de transporte de média e alta capacidade; concessão administrativa, concessão patrocinada; contrapartida pública; cessão de direitos de uso; projetos imobiliários associados. •Habitação: 65 a 75 mil unidade habitacionais de interesse social. •Equipamentos: provisão de equipamentos e Projetos-Âncora; gerenciamento territorial + Resíduo Sólidos + Educação + Mercados Municipais. (“Arco Tietê”, [s.d.])

Figura 2: Esquema de enterramento de algum modal de transporte proposto no concurso. Fonte: Portal da Prefeitura da Cidade de São Paulo, [s.d.]

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Com esta relação de temas e diretrizes a serem seguidas fica evidente que, além deste território possuir relações complexas, é uma grande área do território da cidade, adjacente a regiões com ampla importância econômica e cultural e que não apresenta nenhum tema urbano (como mobilidade, habitação ou áreas verdes) consolidado. Em junho de 2013, dos 45 grupos iniciais que demonstraram interesse em participar do concurso, apenas 26 propostas urbanísticas foram entregues. Dentre todas as possibilidades de temas e diretrizes apresentados pela Prefeitura que deveriam ser utilizados, é notável a quantidade de equipes que elegeram como propostas principais a segmentação de projetos da área do Arco Tietê para OUC e a opção do enterramento de algum tipo de modal de transporte (marginal ou ferrovia). A pluralidade de combinações de soluções apresentadas pelas 26 equipes foi significativa, contudo é possível segregar as propostas agrupando-as conforme “intervenções semelhantes”. Como não compõe o objetivo do presente artigo uma minuciosa análise de todas as propostas urbanísticas entregues, será analisada a seguir apenas uma proposta. Esta opção decorre da busca da clareza e linearidade do discurso que se pretende do início a conclusão do texto. Será analisada com mais especificidade o material apresentado pela Lea Struchiner, pois é uma proposta singular que destoa da larga escolha pela segmentação de projetos e enterramento de modais já apontadas. A principal ideia apresentadas por Lea é constituída de uma mobilidade pensada na escala do pedestre com deslocamentos rápidos a partir de distancias caminháveis e cicláveis, ou por meio de transporte público. O que se pretende são mais que deslocamentos rápidos, com a ideia do arco de 10 minutos o que se propõe são deslocamento para o trabalho, áreas verdes, lazer, escola, enfim, descolamentos em atividades diárias em menor tempo. Além dessa grande preocupação com a mobilidade, a proposta entregue por Lea elege pontos importantes de problemas, quais suas necessidades de projeto e quais indicadores se esperam para 2040 tendo em vista a implantação da intervenção apresentada. As questões social, econômica, ambiental, habitacional e de mobilidade e acessibilidade são colocadas com uma problematização que se observa comuns a outros pontos do território do município. Cada uma destas questões, quando são problematizadas de modo a estabelecer diretrizes que melhores seus indicadores, abrem-se em diversos outros subtemas que são relevantes para a total melhoria do problema. A seguir, há uma pequena relação do objetivo geral (diretriz) proposto para cada uma destas questões: •Ambiental: criar uma política de valorização do meio ambientes e práticas sustentáveis; •Habitação: evoluir de uma política setorial de direto à moradia para uma política de direito à cidade; •Mobilidade: priorizar o uso de transporte público e criar uma política de equidade do espaço através da mobilidade e do desenho urbano; •Econômico: gerar benefícios diretos e indiretos para a região a partir da reestruturação urbana; •Social: ampliar a governança e melhorar índices relativos às principais temáticas presentes no território abrangido pelo Arco do Futuro. (“Arco Tietê”, [s.d.]) 21

Figura 3: Parte da síntese da proposta entregue por Lea, apresentada pela Prefeirura. Fonte: Portal da Prefeitura da Cidade de São Paulo, [s.d.]

Análise do concurso e das propostas apresentadas Como já sinalizado acima, o atual modelo de intervenção urbana presente em São Paulo pauta-se na lógica do urbanismo estratégico, o qual transforma a cidade em mercadoria e empresa, além de criar uma teatralização daquilo que não existe. Conforme sugere Arantes, “reinventar as cidades hoje implica revisar por completo o modelo urbano que nos foi legado pela modernização capitalista” (ARANTES, 1998). Deste modo, realizar uma análise do Concurso do Arco Tietê e suas propostas apresentadas requer atenção acerca das possibilidades de modelo urbano que podem ser implementadas na cidade. O Concurso do Arco Tietê como foi idealizado e proposto pela prefeitura, é de se esperar que ele esteja buscando soluções que sejam facilmente combinadas com o que vem sendo realizado nos últimos anos: o urbanismo por partes. Contudo, como o Concurso já parte do pressuposto deste urbanismo estratégico/pontual, é de se esperar que ao menos os profissionais que optaram por participar do Concurso elaborem propostas que não vão de encontro a lógica comercial desse urbanismo, e sim busquem solucionar os problemas mais latentes da cidade. Em virtude da baixa demonstração de interesse e da pequena quantidade de propostas entregues ao Concurso pode-se supor que há um declínio da disciplina do urbanismo o qual pode ser explicado a partir do modelo urbanístico aplicado: urbanismo estratégico. Observa-se uma numerosa quantidade de empreiteiras/construtoras, ou seja, empresas acostumadas a trabalhar com a gestão da intervenção de uma pequena parcela do território. Já escritórios urbanísticos que participaram do concurso, apresentaram-se 22

como uma minoria, no entanto apresentaram propostas interessantes que, em grande parte, não se encontram amarradas com essa lógica comercial da cidade e do que se pretende realizar. Analisando as propostas apresentadas e revisando o conceito do urbanismo estratégico, é possível assimilar que uma possível causa da dificuldade da elaboração de grandes projetos urbanos decorre do modelo urbanístico que está em curso. É provável que as propostas apresentadas sigam – talvez até irracionalmente – a ideia do que a cidade quer para si. O maior problema é que nem sempre o que a cidade quer está atrelado ao que necessita. Conclusão Com a revisão do conceito de urbanismo estratégico, pode-se compreender que esta não é uma mera forma de intervenção no território. O Planejamento Estratégico Urbano é o modo atual de realização de intervenções urbanas, o qual se encontra fortemente associado a ideia do comércio, da lógica do mercado e das parcerias público-privadas. Após uma análise das etapas e dos projetos apresentados no Concurso Arco Tietê pode-se concluir que embora a área de intervenção seja extensa, que as mudanças propostas não tenham ficado tão claras e que alguns projetos não tenham avançado muito perante as inúmeras possibilidades de intervenções existentes, isso pode indicar um problema disciplinar do urbanismo. Uma vez que o modelo de urbanismo estratégico, o qual já foi sugado pela lógica comercial e pelos interesses privados, não foi superado, a mudança do modo de conceber e/ou transformar os território das cidades apenas vai ocorrer quando o urbanismo – enquanto disciplina – reinventar o modo de planejar e intervir nas cidades, deixando para trás um modelo de intervenção urbana comercial, o qual não reflete as reais necessidades de mudanças do espaço. Biliografia ARANTES, O. B. F. Urbanismo em fim de linha: e outros estudos sobre o colapso da modernização arquitetônica. [s.l.] EdUSP, p. 130 -142, 1998. ARANTES, O. B. F.; VAINER, C. B.; MARICATO, E. A Cidade do pensamento único:desmanchando consensos. [s.l.] Editora Vozes, p. 75-101, 2000. Arco Tietê. Disponível em: . Acesso em: 14 jan. 2015. BORJA, J. Un modelo de transformación urbana. Série: Gestión Urbana, v. 4, 1995. Estatuto da cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras. [s.l.] S.A. Fabris Editor, 2002. HARVEY, D. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates, v. 16, n. 39, p. 48–64, 1996. Portal da Prefeitura da Cidade de São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 14 jan. 2015.

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24

artigo

A mobilidade de São Paulo como modelo de sociedade da moder nidade líquida

Ana Cristina Ganzaroli Pinheiro Maria Luisa Buratto Cardoso

O artigo pretende analisar uma possível relação existente entre a mobilidade na cidade de São Paulo e o modelo de sociedade do conceito contemporâneo de modernidade líquida, conceituado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. A individualização do ser caracteriza a atual sociedade, em que as relações se dão a nível superficial e tendem cada vez mais a se fragilizarem, promovendo uma liberdade ilusória. Disso também deriva a capacidade de flexibilização dessa sociedade, que, sem laços mais fixos, pode se adaptar com mais facilidade às exigências que surgirem. Esses dois conceitos – liberdade e fluidez – podem ser percebidos nos modelos da atual e futura morfologia urbana e serão tema de estudo do artigo adiante. Para isso, serão levantados os conceitos de Bauman sobre esse novo cenário contemporâneo e algumas análises de estudiosos a respeito da questão, que ajudarão a entender o processo de transformação do meio urbano para se adaptar à nova sociedade que se constitui. Nesse artigo, serão analisados alguns exemplos de mudanças urbanísticas relativas à mobilidade; tanto as que reforçam como as que refutam o caráter individualista que molda a sociedade atual. Do mesmo modo, será abordada a tendência crescente das cidades serem ocupadas pelos interesses privados em detrimento dos espaços públicos e como a gestão pública vem inferindo no sentido de inverter ou ao menos amenizar essa lógica. A ideia é notar a morfologia urbana como consequência da transformação dessa sociedade, de forma que a mobilidade esteja a seviço da nova necessidade do homem: a fluidez, maleabilidade, flexibilidade. O transporte é o principal fator de percepção dessa adaptabilidade, sobre o qual muitos estudos tem se debruçado para torná-lo eficiente. palavras-chave: mobilidade urbana, São Paulo, modernidade líquida, individualidade, fluidez, liberdade, transformação. 25

Introdução A questão da mobilidade tem sido um dos principais temas de discussão e estudo a respeito do desenvolvimento e da dinâmica do atual espaço urbano e social. A velocidade, a mobilidade e a flexibillidade definem uma sociedade cada vez mais adaptável a constantes modificações em curtos espaços de tempo, de modo que a eficiência do tempo caracteriza essa sociedade moderna. Em 2000, o filósofo polonês Zygmunt Bauman lança seu livro Modernidade Líquida, em que apresenta ideias e conceitos a respeito dessa nova dinâmica social, a partir das quais esse artigo tentará entender a situação da mobilidade urbana em São Paulo e suas implicações. Segundo o autor, antes da chamada modernidade, a sociedade caracterizava-se por um sistema sólido, em que as tradições, direitos e obrigações regiam. Com a chegada do pré-moderno, essa solidez começou a se desintegrar, para atingir a leveza e inconstância na era moderna. A “liquefação dos sólidos” representa um processo histórico gradual – e, no entanto, cada vez mais acelerado – em que procura-se eliminar qualquer suspeita de limitação da liberdade individual de escolher e agir. O conceito de modernidade líquida, portanto, apresenta essa ideia de liberdade, mobilidade e leveza; um momento em que a ordem social não se submete a uma única regra ou diretriz. Devemos entender a metáfora do fluido como aquilo que não possui forma definida, modificada sob qualquer pressão sofrida. Não se atém nem ao tempo nem ao espaço. Assim, o tempo torna-se importante na medida em que a descrição de qualquer forma fluida passa a ser instantânea. Essa característica pode ser notada na morfologia e constituição dessa sociedade atual. A mobilidade, isto é, a fluidez do indivíduo torna-se essencial para a dinâmica do seu cotidiano, buscando sempre a eficiência e a economia de tempo. O uso do transporte individual, principalmente do automóvel, reflete essa necessidade. Em São Paulo, há uma hegemonia do automóvel na organização da cidade, que historicamente preconizou o transporte individual para poucos. Essa preferência evidencia uma série de fatores internos e externos que contribuíram para o fomento do modelo rodoviarista, que vão desde a conjuntura internacional de determinada época até equívocos da gestão pública. Entretanto, a estrutura rodoviarista não é a única responsável pela mobilidade caótica de São Paulo. Mesmo que as diretrizes públicas tenham sido pautadas por interesses individuais, o próprio comportamento de grande parte dos cidadãos de São Paulo reflete um caráter individualista, já que são muitos os que diariamente se deslocam sozinhos em seus carros para chegar o mais rápido e com o máximo de conforto possível ao local desejado. É evidente que há uma série de questões alheias aos individualismo que em parte justificam a opção pelo transporte individual, tais como segurança, distância e deficiências no sistema de transporte público. Ainda assim, o fato é que grande parte da população não tem interesse em se locomover por outros modais, embora isso contribuisse para a melhoria do trânsito e da poluição na capital. Pode-se perceber, com isso, o individualismo refletido nessa “ distinção entre o cidadão que é um indivíduo que busca seu próprio bem através do bem-estar da cidade e o indivíduo que tende a ser morno, cético ou mesmo prudente quanto a causa comum, ao bem comum ou mesmo à sociedade justa.” (BRITO; VIEIRA, 2011) 26

A fragilidade das relações sociais torna-se cada vez mais evidente quando os interesses privados (individuais) se sobrepõem aos públicos, como se nota na Modernidade Líquida, que vem acompanhada pelo neo-liberalismo e pela revolução das comunicações e da ciência. A vida em sociedade caracteriza-se por “uma competitividade mais agressiva, onde o individuo está só e depende somente de si mesmo para fazer suas escolhas, pensamentos e ações ao invés de unificar uma condição humana regida pela cooperação e solidariedade.” (BRITO; VIEIRA, 2011) O transporte individual é uma das maiores evidências desse movimento. 2. A preferência pelo transporte individual São muitos os fatores que levam um indivíduo – que tem a possibilidade de optar pelo transporte público ou privado – eleger o automóvel particular. Em primeiro lugar, a conjuntura internacional no início do século XX apontava para o crescimento da indústria automobilística, especialmente a partir do fordismo. No Brasil, a preferência pelo automóvel tem origem na estruturação da malha viária brasileira que, em resposta ao novo cenário, incentivou a construção de rodovias e o uso do automóvel particular. No processo de modernização econômica, “a indústria automobilística foi o símbolo da expansão do capital internacional no Brasil, influenciando a política de transporte brasileira que centralizou os investimentos no modal rodoviário em detrimento aos outros modais de transportes” (PEREIRA, 2011). O governo do presidente Juscelino Kubitschek (19561961) marcou a implementação efetiva do rodoviarismo no Brasil. Tal iniciativa, somada aos incentivos à indústria automobilística, ditou o futuro da mobilidade urbana pautada no intenso uso do automóvel. Na década de 30, o Plano de Avenidas – projeto de sistema viário estrutural do então prefeito de São Paulo, Prestes Maia – estruturou o crescimento da cidade através da combinação do sistema de avenidas radiais e perimetrais do alemão Stübben, com o conceito de perímetro de irradiação do francês Eugene Hénard. O Plano, que pressupunha a utilização prioritária do transporte sobre rodas, procurava criar um sistema condizente com a rápida expansão horizontal de São Paulo, estabelecendo uma movimentação fácil e ágil entre o centro comercial/administrativo e as áreas residenciais e industriais distribuídas perifericamente. Entretanto, o crescimento exponencial da frota de veículos acabou por saturar as novas avenidas, gerando poluição, enormes congestionamentos, falta de vagas de estacionamento e limitando a acessibilidade. Como resultado dos incentivos ao automóvel e da abertura compulsiva de avenidas, há atualmente no município de São Paulo mais de 5,6 milhões de automóveis, o que equivale a quase um carro para cada dois moradores. O automóvel foi tido na metrópole como um sinônimo de status, poder e, principalmente, de praticidade, sendo considerado o meio mais rápido para alcançar os destinos desejados. Nesse contexto rodoviarista, a gestão pública também deu preferência ao ônibus como principal transporte de massa, pouco investindo no transporte por trilhos. Segundo o que aponta o relatório realizado pela ONU a respeito da mobilidade urbana em grandes cidades, os deslocamento a pé e em bicicleta dificilmente são prioridade no planejamento urbano, tanto devido à falta de interesses políticos quanto à desconsideração existente por pequenos trajetos realizados à pé. (EURE, 2014). No entanto, a realidade de frequentes 27

congestionamentos e a ineficiência e insuficiência do transporte público evidenciam uma acentuada contradição em relação ao anseio pela otimização do tempo associado ao modelo rodoviarista. Em São Paulo, os cidadãos vivem apressados. Esse comportamento bastante recorrente revela que ser pontual e economizar tempo nem sempre é uma necessidade, e sim um hábito que tomou conta da vida urbana na transição para a modernidade líquida. Segundo Bauman, um dos preceitos da modernidade é um esforço contínuo e irrefreável em alcançar o limite da tecnologia e da velocidade. Os avanços tecnológicos permitiram um controle muito maior do tempo e a superação dos obstáculos espaciais: “Na moderna luta entre o tempo e o espaço, o espaço era o lado sólido e impassível, pesado e inerte, capaz apenas de uma guerra defensiva, de trincheiras; um obstáculo nos avanços do tempo. O tempo era o lado dinâmico e ativo da batalha, o lado sempre na ofensiva; a força invasora, conquistadora e colonizadora. A velocidade do movimento e o acesso a meios mais rápidos de mobilidade chegaram, nos tempos modernos, à posição de principal ferramenta de poder e dominação. [...] Em termos práticos, o poder tornou-se verdadeiramente extraterritorial, não mais limitado nem mesmo desacelerado pela resistência do espaço.” (BAUMAN, 2001) No momento em que o tempo passou a significar lucro e ferramenta para superar a resistência do espaço, encurtar as distâncias e ampliar os limites da ambição humana, sua otimização passou a ser fundamental e extremamente valiosa. Desse modo, o princípio operativo da civilização moderna passou a se concentrar na idealização de maneiras para realizar tarefas com maior rapidez, eliminando o tempo improdutivo, inútil, vazio e disperdiçado. Daí um dos maiores fetiches do modelo rodoviarista: o veículo particular seria o meio mais eficiente de atingir os objetivos pessoais, como alcançar o local desejado em um curto espaço de tempo, no momento desejado, com conforto, maior sensação de segurança e, ainda, exaltando o status social. Em relação à segurança, pode-se dizer que um outro aspecto levado em conta na escolha pelo automóvel é o medo da violência urbana. Por ser um veículo privado e fechado, o carro proporciona a seu condutor uma (falsa) sensação de segurança e evita contatos indesejados com desconhecidos – tópico que será melhor discutido em breve. Em Modernidade Líquida, Bauman discute o conceito “política do medo cotidiano” criado pela socióloga norte-americana Sharon Zukin. Segundo ela, os votantes e as elites dos Estados Unidos dos anos 60 e 70 poderiam ter se empenhado na criação de políticas de governo destinadas a eliminar a pobreza e favorecer a integração. Ao invés disso, preferiram comprar proteção, estimulando o crescimento da indústria de segurança privada. Em São Paulo ocorreu exatamente o mesmo processo, com reflexos na construção de condomínios, muros e no uso intensivo do automóvel. 3. A fluidificação das relações pessoais Atualmente, com a velocidade do sinal eletrônico, o tempo reduziu-se à instantaneidade, gerando indivíduos mais apressados, intolerantes e impacientes, especialmente nas grandes cidades. Tais características, somadas ao espírito individualista decorrente da fluidificação das relações pessoais, produzem uma sociedade cada vez mais fragmentada, que prioriza os interesses pessoais em detrimento dos coletivos. 28

A individualidade, amplamente debatida no segundo capítulo de “Modernidade Líquida”, é uma das questões chave para entender a lógica da mobilidade em São Paulo. De acordo com Bauman, o momento da modernidade fluida é caracterizado pelo derretimento dos elos que entrelaçam as escolhas individuais a projetos e ações coletivas, de modo que as políticas de vida conduzidas individualmente se sobrepõe às ações ligadas à comunidade. Assim, a civilidade fica em segundo plano, o que é extremamente problemático do ponto de vista urbanístico na medida em que a vida da cidade depende das interações e preocupações frequentes entre seus cidadãos. Na modernidade líquida, não há interesse ou tempo para iniciar conversas e trocar informações com desconhecidos: “o encontro de estranhos é um evento sem passado. Frequentemente é também um evento sem futuro (o esperado é que não tenha futuro), uma historia para ‘não ser continuada’, uma oportunidade única a ser consumada enquanto dure e no ato, sem adiamento e sem deixar questões acabadas para outra ocasião.” (BAUMAN, 2001). Somado ao medo urbano, esse comportamento influencia muito na decisão de utilizar ou não o transporte público e de frequentar os espaços públicos. 4. A negação dos espaços de convívio e do transporte público O caos viário cotidiano de São Paulo é um reflexo de políticas públicas rodoviaristas que se mostraram insustentáveis, alimentadas pelo perfil do paulistano moderno que prioriza o transporte individual. O pensamento urbano contemporâneo vê essa tendência de preferência ao transporte individual como algo extremamente prejudicial para a vida em sociedade, já que, além de todos os problemas de congestionamento e poluição que provoca, reforça a separação das classes sociais e alimenta ainda mais a ideia da máxima otimização do tempo, que confronta o ideal de vivenciar os espaços da cidade. Segundo a antropóloga Teresa Caldeira; “Um espaço público moderno e democrático promove a interação de pessoas, incorporando um ideal de cidade aberta, tolerante às diferenças sociais e à negociação de encontros anônimos. É um espaço no qual diferentes cidadãos negociam os termos de sua interação e interagem socialmente a despeito de suas desigualdades.” (CALDEIRA, 2015) No entanto, em cidades como a São Paulo contemporânea, cuja relação entre os cidadãos encontra-se cada vez mais fragmentada, configura-se um tipo de espaço público muito distante do ideal urbanístico. No cenário atual, proliferam-se enclaves fortificados com suas fronteiras fixas e seus espaços de acesso restrito e controlado, elimina-se os pedestres e suas interações anônimas, retira-se a rua como elemento central da vida pública, despreza-se o transporte público e cresce, a cada ano, o número de automóveis. Uma vez que os espaços públicos não são mais tão visados pelos cidadãos, as grandes avenidas de trânsito rápido cumprem a função de otimização do tempo com êxito. Assim, pode-se dizer que a atual configuração viária de São Paulo está diretamente ligada ao descrédito da participação em espaços públicos e nas relações que podem vir a se estabelecer com o uso do transporte público, negando a civilidade que se constrói no trato com pessoas diferentes. Diante disso, segundo Caldeira, “faz-se imprescindível o resgate de um espaço público significativo, no qual exista troca, interação. Um espaço onde seja construída uma sociabilidade, um intercâmbio nas calçadas, uma circulação nas ruas e praças, o reconhecimento do outro como peça essencial na articulação e formação democráticas.” (CALDEIRA, 2015) 29

5. Politicas publicas como solução para problemas de mobilidade Na tentativa de solucionar os problemas derivados do sistema rodoviarista, o urbanismo contemporâneo busca políticas públicas alternativas ao tipo de cidade existente. O desenvolvimento do transporte público e o aumento de sua capacidade visam à melhora da fluidez do tráfego, como se vê em grandes cidades como São Paulo, além de contribuir para questões como a diminuição da poluição e cuidado com o meio ambiente, principalmente nas grandes cidades. Na capital paulista, importantes medidas vem sendo adotadas, a fim de diminuir a quantidade de carros nas ruas e incentivar o uso do transporte público. Em 2004 a prefeitura da cidade inseriu o Bilhete Único, que possibilitou o uso do transporte de maneira integrada (ônibus, metrô, trem), diminuindo, assim, o custo de viagens mais longas ou que necessitassem de baldeação. Além disso, a implementação de corredores de ônibus, com o intuito de aumentar a fluidez desses tranportes nas vias, contribui também para a preferência por esse transporte. Nos últimos anos, o uso da internet também passou a contribuir para a questão da mobilidade. A companhia de tráfego SPTrans juntamente com o laboratório MobiLab passaram a desenvolver aplicativos de celulares capazes de indicar soluções de caminhos para aliviar o trânsito em diversos locais na cidade, indicando também opções de transportes públicos que fazem o trajeto desejado. Em entrevista à The City Fix Brasil, o chefe de gabinete da presidência da SPTrans, Ciro Biderman afirma: “Queremos fomentar toda uma nova leva de aplicativos e websites em prol da mobilidade urbana, aproveitando-nos de um modelo de negócio já existente, sem custo para a prefeitura nem para usuários. [...] Temos códigos abertos que podem ser utilizados e melhorados para aprimorar os dados. Inúmeros aplicativos, inclusive, já foram criados a partir dos dados abertos, como o Moovit e o Cadê O Meu Ônibus, por exemplo”. Nota-se que, com o desenvolvimento de grandes cidades, o transporte público surge com o objetivo de diminuir os tempos de viagem no meio intraurbano. O uso do carro não responde mais à essa necessidade – devido aos grandes congestionamentos – e, por isso, a melhor opção torna-se o veículo público. Essa necessidade de redução do tempo surge juntamente com o homem moderno, se mantendo até a contemporaneidade. As situações ocorrem de forma muito mais dinâmica após a liberação do indivíduo e de suas escolhas, geradas com a modernidade leve, em que o poder superior não pode mais ser identificado e as oportunidades se tornam infinitas. E, para que continuem infinitas “[...] nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade para sempre. Melhor que permaneçam líquidas e fluidas e tenham ‘data de validade’ ” (BAUMAN, 2001). Fica claro, portanto, que a necessidade de não fixação pressupõe situações mais dinâmicas e que não exigem muito tempo – o tempo é instantâneo. A morfologia que o meio urbano está tomando, buscando a otimização do tempo dentro do espaço percorrido, surge dessa nova configuração do homem e da sociedade modernos. Paralelamente, Ole Jensen apresenta em seu artigo dois conceitos a respeito do comportamento do indivíduo: o contraposto entre nômades e sedentários. Mais do que referirem-se aos conceitos da origem do homem, o nômade traz consigo a ideia de caminho/trajeto, enquanto o sedentário representa o local/espaço. Segundo o autor, “Accordingo to Cresswell (2006) there is a fundamental division line between theories seeing

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mobility through the lens of place, roots, spatial order and belonging. [...] Opposed to this we find the nomad conception of mobility. In this line of thinking the optics are related to a ‘nomad mataphysics’ focused on flow, flux and dynamism.” (JENSEN, 2014) Mais uma vez, o espaço determinado se desintegra, sendo substituído pelo o trajeto, em que não existe espaço fixo, mas sim, o instante. Jensen cita uma afirmação de Deleuze e Guattari em que “the life of the nomad is the intermezzo” (JENSEN, 2014), isto é, o espaço que está entre dois pontos fixos, o curso do caminho. 6. Conclusão A mobilidade caótica de São Paulo caminha para o colapso, uma vez que a cidade não comporta o crescimento do número de automóveis. Embora a mobilidade esteja sendo uma grande preocupação de urbanistas e do poder público, nota-se que não há uma mudança significativa do sistema viário da metrópole já que há uma proliferação de projetos que visam melhorar a fluidez da cidade, mas nenhuma que proponha mudar a lógica rodoviarista pautada especialmente em veículos particulares. A urgência pela mudança de prioridades que visa melhorar a vida urbana também não está na pauta dos paulistanos. Dotada de comportamento individualista, a população só migrará de fato para o transporte público quando o deslocamento por meio de automóvel tornar-se enviável, ou seja; a transformação se dará no momento em que o transporte público passar a apresentar maior eficiência do que o privado, forçando uma adaptação da sociedade líquida a um novo molde. Apenas uma situação extrema levaria as pessoas que estão acostumadas a utilizar o carro a optar pelo transporte público, abandonando sua comodidade e seus medos em prol da otimização do tempo. Nesse sentido, é possível crer numa tendência de melhora da mobilidade em São Paulo, seja por conta do pensamento urbanístico em voga, das novas políticas públicas ou pela total saturação do sistema viário existente, que exigirá uma mudança drástica. Nesse cenário, a tradição do automóvel não seria forte o suficiente para vencer o ímpeto de transformação da modernidade líquida. Como reflete Bauman; “Vivemos tempos líquidos, nada é para durar.” (BAUMAN, 2001).

Bibliografia Livros BAUMAN, Zygmunt – Modernidade Líquida. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2001. (Capítulos: Introdução, Individualidade, Espaço/Tempo) Resenhas BRITO, Ana Fátima de; VIEIRA, Cláudia Simone. Resenha do livro: Modernidade Líquida. In: Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n.90, julho de 2011. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9917&revista_caderno=23 (acesso em janeiro de 2015) PICCHIONI, Marta Serra Young Picchioni. Resenha: Modernidade líquida. Revista eletônica ISSN, n. 03. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, fevereiro de 2008.

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EURE (Santiago) - MOBILIDADE URBANA FRENTE À COMPLEXIDADE URBANA - vol.40 no.121 Santiago set. 2014 http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0250­ 71612014000300013&lang=pt (acesso em janeiro de 2015) Artigos ANELLI, Renato Luiz Sobral. Redes de mobilidade e urbanismo em São Paulo: das radiais/ perimetrais do Plano de Avenidas à malha direcional PUB. Vitruvius, março de 2007. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.082/259 (acesso em janeiro de 2015) JENSEN, Ole B. Flows of Meaning, Cultures of Movements – Urban Mobility as Meaningful Everyday Life Practice. http://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/17450100802658002 (acesso em dezembro de 2014) CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Enclaves fortificados: a nova segregação urbana. Novos Estudos CEBRAP, n.47, março de 1997. Disponível em: http://www.fau.usp.br/cursos/graduacao/arq_urbanismo/disciplinas/aup0278/2014.1_Bibliografia_Complementar_Geral/Texto_02. pdf (acesso em janeiro de 2015) PEREIRA, Luiz Andrei Gonçalves; LESSA, Simone Narciso. O processo de planejamento e desenvolvimento do transporte rodoviário no Brasil. Revista Caminhos da Geografia, Uberlândia, v.12, n.40, dezembro de 2011. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/caminhosdegeografia/article/view/16414/9175 (acesso em janeiro de 2015) Entrevistas http://thecityfixbrasil.com/2014/09/30/entrevista-como-a-tecnologia-pode-transformar-a-mobilidade-urbana-o-caso-mobilab/

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artigo

A obsolescência do urbanismo rodoviarista: o caso do Elevado Costa e Silva

Ibrahim Borba Leila de Lacerda Mariana Del Moro

A decadência do elevado costa e silva e do seu entorno, associada a uma nova política de planejamento urbano que prioriza o transporte coletivo sobre o individual, levou à proposta, contida no novo plano diretor de são paulo lançado em 2014, de sua desativação como via exclusiva de automóveis. Essa decisão é reflexo da crise do urbanismo rodoviarista e traz à tona a necessidade de análises das causas da decadência de seu uso como solução para a mobilidade urbana. Tendo em vista a atualidade desses questionamentos, o artigo explorará as relações espaciais, sociais e ambientais das propostas levantadas diante da desativação do elevado. Essa exploração será feita pela análise de algumas soluções, de projeto e legislativas, levantadas por projetos apresentados no 2º prêmio prestes maia, por urbanistas e pela prefeitura, procurando entender suas consequências para o elevado e seu entorno. palavras-chave: minhocão, viaduto, urbanismo rodoviarista, decadência do entorno urbano, são paulo, legislação urbana, meio ambiente e cidade. 33

1. Decadência do sistema rodoviarista: a necessidade de novos debates Políticas urbanas regem a economia de uma cidade. Os investimentos urbanos sempre foram símbolos que retratam níveis de desenvolvimento de cada cidade e refletem seus pensamentos contemporâneos, de forma a revelar as questões econômicas de cada cidade, nas suas carências e prioridades. Num mundo globalizado, essas políticas são base de competição entre cidades e de movimento do capital, tornando-se tendências mundiais, como a chamada “New Environmental Politics of Urban Development (NEPUD)” ou, numa tradução livre, Nova Política Ambiental de Desenvolvimento Urbano. Consequência de uma Era em que o planejamento urbano uniu-se ao desenvolvimento de uma economia rodoviarista, a NEPUD surge como necessidade diante das preocupações ambientais e de sustentabilidade, através do controle da emissão do carbono. Tal controle passa a ser usado como medida para o desempenho econômico de uma cidade, criando uma competição interurbana que busca a atração de novos investimentos. Essa nova política promove o desenvolvimento de uma cidade para pedestres em detrimento de um sistema de transporte individual, priorizando áreas verdes e transporte e espaços públicos, repensando os espaços existentes com intenções e projetos. Assim, com a decadência do sistema rodoviarista de planejamento público, as cidades devem se reinventar dentro dos parâmetros que nela já foram consolidados para que possam competir, atrair e movimentar capital (JONAS; GIBBS; WHILE, 2011). Exemplos dessa mudança são os viadutos. Símbolos claros do desenvolvimento rodoviarista, a necessidade de suas inserções nas cidades vem sendo repensada, com projetos que os tornem mais sustentáveis, voltando-se para o pedestre, ou mesmo de demolição. Seoul, na Coréia do Sul, São Francisco e Milwaukee, nos Estados Unidos, são exemplos de cidades nas quais a remoção de viadutos tornou-se realidade. Em Seoul, um riacho presente abaixo do viaduto foi revitalizado, com a inserção de vegetação e via para pedestres e bicicletas (KANG; CERVERO, 2009). Há também o famoso High Line Park, em Nova York, um parque aberto ao público construído sobre uma via elevada de trens que estava abandonada. No Brasil, em São Paulo, uma série de mudanças que seguem a NEPUD está sendo realizada pela atual gestão do município, como a implantação de ciclovias e de faixas exclusivas de ônibus, priorizando o transporte público. No entanto, o alvo do artigo será o viaduto Costa e Silva, que recebeu, em 2014, sua sentença de desativação. O artigo buscará explorar algumas dessas soluções, procurando entender também as consequências de cada uma sobre seu entorno, social e economicamente. 1.1. O elevado O projeto e a implantação do Elevado Costa e Silva se dão em um contexto de popularização do ideal Moderno, que remete ao incentivo da indústria automobilística e adoção do urbanismo rodoviarista como símbolos de progresso e modernização, e imposição do regime militar, no qual há a generalização de medidas autoritárias do Estado sobre a população. Como representação do ideal Moderno, o Elevado constitui uma via pensada com a função de incentivar o uso do carro e de melhor distribuir o tráfego de automóveis da região central de São Paulo criando uma ligação Leste-Oeste que poderia ser feita em alta 34

velocidade por automóveis. Suas origens estão em uma via expressa proposta durante o mandato do prefeito Faria Lima, que recusou a proposta por ser muito dispendiosa e polêmica, já que teria de ser implantado um projeto de desapropriações. A proposta é reapresentada ao prefeito Paulo Maluf e o projeto é aprovado com algumas modificações em seu traçado original e de via expressa se torna via elevada (MARTINS, 1997). O uso exclusivo de automóveis não tem como objetivo o de evitar acidentes entre pedestres e automóveis como as parkways de NY, mas sim uma forma de evitar que a mobilidade do automóvel seja prejudicada por intersecções (SECRETARIA; PRÊMIO, 2008), assim, sua própria concepção de projeto remete à exclusão do pedestre em favor do automóvel. Seu planejamento é feito de maneira funcionalista, ignorando novos problemas que surgiriam com sua construção, sendo que à época já se sabia quais seriam esses problemas, pensando-se exclusivamente no problema que seria solucionado, o da mobilidade.Seu memorial apresenta especulações como justificativas para sua construção: “(...) um sistema de transportes coletivos – Metrô – como o que ora está implantando na cidade de São Paulo, pouco deverá contribuir para o arrefecer e o crescimento do número de veículos (...) o aumento crescente dos níveis de renda, aliados a custos possivelmente mais baixos de produção, são algumas das razões que fazem prever a continuação deste processo”

Assim para que a “solução” fosse implantada, valia-se de qualquer argumento que tendesse a seu favor. Ainda soma-se a seus problemas de projeto o contexto da ditadura militar. Com o objetivo de deixar marcas de sua presença e implantar um ideal de progresso o Estado inicia a construção de um conjunto de obras monumentais. O edital do Elevado fechou as inscrições dos projetos em 1969, procurando empresas com experiência e capital, capazes de realizar obras de grande porte em pouco tempo (MARTINS, 1997). As obras do Elevado duraram 14 meses, sendo inaugurado em janeiro 1971, mesmo com a oposição da mídia, do corpo técnico que não estava diretamente envolvido na obra e principalmente da população que vivia na região. A seguinte manchete da Folha de São Paulo transmite um pouco a situação à época: “Antes de sua construção, os urbanistas e os arquitetos já profetizavam um futuro nebuloso para os imóveis da região. E, para isso alertaram as autoridades municipais da época (fins de 1969), lembrando que, enquanto São Paulo iria construir o maior elevado da América Latina,a Prefeitura de São Francisco, nos Estados Unidos, estava iniciando a demolição de uma obra idêntica, por causar aos moradores os mesmos problemas hoje enfrentados pelos comerciantes e proprietários de imóveis próximos ao minhocão: desvalorização, poluição ambiental e decadência urbana”. (Folha de São Paulo, 18 ago. 1980.)

Assim, percebe-se que o contexto de planejamento do Elevado é de um governo autoritário que, seguindo estritamente uma ideologia funcionalista, foi incapaz de prever e atender as reais necessidades da população, tendo inclusive ignorado as diversas manifestações contrárias, partindo de diferentes setores da população, ao projeto. O resultado desse planejamento foi a degradação da área atravessada pelo Elevado e pela própria obsolescência da construção, tornando-se congestionada no dia da própria inauguração, quando ocorreu um acidente na via (O Estado de São Paulo, 26 jan. 1971.). Desde então se vem lançando uma série de projetos e alterações sobre o 35

Elevado sem nunca ter de fato conseguido recuperar a região da degradação causada por ele. Propostas artísticas e arquitetônicas têm sido algumas das tentativas de minimizar os problemas gerados pelo Elevado ou de alguma forma estimular uma apropriação mais saudável do Minhocão pela cidade. Algumas dessas intervenções artísticas, buscando de alguma forma criar uma maior interação entre o Elevado e a população, são: a série de painéis nos pilares em 1971, projeto de Flávio Motta, ocupações como a “vigília cultural” em frente à estação de Metrô Marechal Deodoro em 2002 (SECRETARIA; PRÊMIO, 2008) e recentemente a piscina olímpica no Minhocão, de Luana Geiger, parte da 10ª Bienal de Arquitetura (Folha de São Paulo, 23 mar. 2014). Também foi cenário e tema de filmes e documentários como Elevado 3.5 de João Sodré, Maíra Buhler e Paulo Pastorelo e Terra estrangeira de Walter Salles. Em 1976 o Elevado passou a ser interditado à noite para evitar acidentes noturnos e o ruído que incomodava os edifícios próximos. Em 1989, durante o governo de Luiza Erundina, foi decretado que o Minhocão ficaria interditado das 21h30 às 6h30 e de domingos e feriados, o que levou a população a se apropriar desses horários em que a estrutura fica vazia para usar como área de passeio e esportes. Em 1993 pela primeira vez é proposta a demolição do Elevado. Em 2006 ocorre o 2º Prêmio Prestes Maia, um concurso lançado pela prefeitura de São Paulo de abrangência nacional para soluções para o Elevado Costa e Silva, com 46 equipes inscritas no concurso (Portal da Prefeitura da Cidade de São Paulo, 05 mai. 2006.). A proposta de demolição voltaria à tona nas gestões de José Serra e Gilberto Kassab (“G1 - Prefeitura de SP estuda demolir o Minhocão - notícias em São Paulo”, [s.d.]) As propostas que vem sendo lançadas até então apresentam soluções pontuais ou exclusivamente técnicas, porém, como é apontado por Luciana Martins: “Em outras palavras, todo o aparato tecnológico que pudéssemos dispensar a uma construção como o Minhocão não alteraria o significado desse projeto, porque não se trata de uma questão apenas técnica, mas sim de gestão da cidade, de avaliação dos interesses em jogo na gestão, e de escolha desses interesses” (Memorial Descritivo Via Elevada, 1969)

Em 2014, com o lançamento do novo plano diretor que guiará a cidade pelos próximos 15 anos, entra em vigor a visão da desativação total do viaduto como via destinada ao transporte individual - mais do que isso, propõe a sua transformação em um parque elevado ou sua demolição. Dessa forma, a promoção de estudos sobre este espaço deve ser realizada e, tendo em vista este contexto, deve-se pensar na produção de conhecimento sobre a área, procurando a melhor solução para a região e para a mobilidade como um todo (SÃO PAULO. Lei 16.050/14, 01 ago. 2014.). 2. Análises de projetos Tendo em vista que diversos projetos foram pensados para o Elevado, porém nenhum foi implantado ou apresentou resultados, decidimos analisar alguns deles para entender o que faltou na sua concepção e o que deveria ser melhorado para as próximas propostas, comparando esses projetos com as opiniões de alguns urbanistas sobre o caso do Elevado. 36

Os projetos escolhidos foram: o primeiro colocado no 2º Premio Prestes Maia, porque supostamente apresentaria a melhor solução que os arquitetos brasileiros conseguiram projetar para o Elevado; a Operação Lapa – Brás que considera a demolição do Minhocão, por ser a iniciativa mais recente que partiu da prefeitura; uma menção honrosa do 2º Prêmio Prestes Maia, porque traz à tona a questão da perda de visibilidade do Minhocão e a participação da população na decisão do que fazer com o Minhocão; e outra menção honrosa que propõe a demolição quase que total do Elevado. 2.1. 2º Prêmio Prestes Maia: primeiro colocado O Prêmio Prestes Maia de Urbanismo 2006: ideias e soluções para o Elevado Costa e Silva, concurso para a proposição de soluções para o elevado, contou com ideias tanto de demolição parcial quanto da permanência do viaduto. Houve uma predominância (80% dos concorrentes) pela consideração de que o custo de uma possível demolição e seus transtornos seriam inviáveis para que fosse realizada, propondo, no lugar, sua permanência e repensando seu uso (SECRETARIA; PRÊMIO, 2008). O projeto vencedor foi o do escritório Frentes Arquitetura, dos arquitetos José Alves e Juliana Corradini. Consiste em manter a estrutura atual do viaduto e a ligação leste-oeste automobilística pelo elevado, propondo, no entanto, a construção de um fechamento lateral, criando um túnel para a passagem dos automóveis no mesmo lugar onde já ocorre (cota +6,80). O túnel teria uma altura de 5,8m e na sua cobertura (cota +12,60) seria construído um parque linear. O projeto prevê o uso de materiais nas paredes do túnel que melhorem o conforto acústico para o entorno do elevado. A iluminação e a ventilação para o túnel também foram pensadas. O projeto carece, no entanto, de uma solução para o baixio do viaduto, que hoje já vive um intenso grau de degradação. O projeto, ao manter a via de ligação leste-oeste por automóveis, não precisa ser indagado quanto às suas intenções sobre qual seria a alternativa ao tráfego existente.

Figura 1 – corte de trecho da proposta para o Minhocão do escritório Frentes Arquitetura Fonte: blog The Urban Earth ¹ 37

Deve, porém, ser questionado quanto o fechamento com 5,8 metros da via já existente. A baixa qualidade de vida dos moradores dos prédios no entorno é uma preocupação que deve ser levada em conta nos projetos. O projeto do Frentes se debruçou sobre a questão de como amenizar o impacto sonoro provocado pela passagem dos carros nos prédios do entorno, o qual, todavia, não é o maior problema para a vizinhança. Hoje, o primeiro e segundo andar dos prédios adjacentes, que chegam a ter uma distância de apenas 5m do elevado, são os mais afetados pela poluição e pela falta de privacidade geradas com a presença do elevado. Elevar a construção em mais 5,8m por todo o viaduto isolaria até, aproximadamente, o terceiro andar dos prédios adjacentes, tornando os três primeiros andares insalubres, sem contato com a rua embaixo nem com o parque em cima – apenas com a parede do vidro que fecha o túnel. O problema de privacidade e poluição não cessaria, apenas passaria a ser mais intenso no quarto (o primeiro a ter contato com o parque) e quinto andares do que nos dois primeiros. O baixio, por fim, pela extensão vertical da construção, provavelmente perderia boa parte do pouco de luz natural que ainda lhe resta, tornando-se ainda mais precário. Outra proposta, a de apenas inserir um parque na via elevada, como defende a Associação Amigos do Parque Minhocão, faria com que a poluição fosse amplamente cessada, restando, contudo, o problema da deterioração existente no baixio do elevado, onde a poluição e a degradação são enormes. Entra em questão também para onde o tráfego seria direcionado, uma vez que as quatro faixas para automóveis, atualmente de extrema importância para a transição dos veículos no trecho, deixariam de existir. Sobre a transformação em parque, o urbanista João Sette Whitaker opina: “Virar parque não resolve o impacto que aquela estrutura monstruosa causa nas ruas que percorre - que viraram uma espécie de subsolo - nem nos prédios em volta. (...) O elevado atravessa bairros residenciais e mistos da cidade, que se degradaram com sua presença.”

2.2. 2º Prêmio Prestes Maia: menção honrosa 1 Dos projetos que conseguimos analisar (três primeiros colocados e menções honrosas) esse é o que mais se aproxima de uma proposta de participação popular. Trazendo à tona as questões do contexto do planejamento do Elevado, a perda de visibilidade dele na paisagem e a falta de relação, na visão da população local, entre os problemas que ela identifica na área com a presença do Minhocão, a equipe faz uma proposta a longo prazo, sendo que, a decisão do que será feito com o Elevado, não partirá da equipe, mas da própria população. Composta por Leandro Rodolfo Schenk, Luciana Bongiovanni Martins Schenk, Daniel Morais Paschoalin, Matheus Rosada e Camila Gomes Sant’anna, escritório Studio Ilex, é proposto um projeto que mais se assemelha a uma intervenção artística do que arquitetônica. Através de um conjunto de dobraduras metálicas e pórticos, criticaram o contexto autoritário e um planejamento que considera a população ignorante e buscaram provocar a comunidade da região ao questionamento sobre a presença do Minhocão.

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Sabe-se que nem toda a população é contrária à sua presença; muitos, inclusive, apoiam a sua existência. Alguns por terem receio da área ser revalorizada e, posteriormente, serem expulsos pela especulação imobiliária, outros por valorizarem seu caráter funcional de ligação Leste-Oeste. Não obstante, ao mesmo tempo eles criticam a degradação do local. O documentário Elevado 3.5, 2010, faz um registro das opiniões de alguns dos moradores da região cujas janelas dão para o Elevado: “Tem que ser conservado. (...) essa rua aqui era a rua mais bacana do pedaço (...) as famílias vinham à noite passear, os casais com os filhos, porque ficava tudo bem iluminado, as vitrines (...) não tinha perigo, não tinha nada.” (Nelson Barroso) “Ma tá maluco, ma não tem condição, esse Minhocão é eterno, nunca vai poder ser mexido, não pode, com esse trânsito de hoje, derrubar o Minhocão? É a mesma coisa que dizer: ‘Bom, vamo acaba com a Avenida Paulista’. (...) domingo era, oito horas o pessoal tava se reunindo aqui, passeava daqui até a Cintra (...) quando era dez horas em cima, a turma começava.” (Renato Domingos Ferrara)

Outra característica do Minhocão atualmente é a sua “invisibilidade” na paisagem, como se misturou com a degradação que causou. A população que vivenciou a implantação do Elevado abandonou a área; os edifícios vazios foram ocupados por uma nova população para os quais o Elevado já fazia parte da paisagem. Por ser uma faixa da população que conseguiu se mudar para a região pela desvalorização, a nova região era melhor se comparada à anterior. Assim, o Elevado, já instalado, não apresentava um problema (MARTINS, 1997).

Figura 2 – proposta do escritório Studio Ilex para o Elevado Costa e Silva Fonte: SECRETARIA, 2008, p. 121

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A equipe busca então orientar essa faixa da população para entender a relação entre o Elevado e a degradação dessa parte do centro, para que, a partir desse entendimento, a comunidade tenha uma opinião própria sobre o que fazer com o Elevado (SECRETARIA; PRÊMIO, 2008). No entanto, apesar do caráter de estimular a comunidade a ter uma visão mais crítica, a equipe já possuía uma opinião formada sobre qual medida deveria ser tomada: a demolição. Nas projeções da equipe, esses debates da comunidade culminariam na demolição do Elevado e das estruturas metálicas implantadas pela equipe, que poderiam ser recicladas, não sendo considerado que a comunidade poderia propor outras soluções. A população também teria que ser instruída sobre quais métodos utilizar para que futuramente, com a possível revalorização do terreno, não fosse expulsa pelo mercado imobiliário. 2.3. Operação urbana consorciada Lapa-Brás Durante a gestão Kassab (2006-2008) é lançada a Operação Urbana Consorciada Lapa-Brás que propõe o rebaixamento das calhas ferroviárias da região da Lapa até a região do Brás por uma faixa de 12km de extensão. Sobre as superfícies liberadas seriam construídas vias expressas, assim seria possível considerar a eliminação de um trecho do Elevado Costa e Silva, já seu tráfego poderia se dispersar pelas novas vias abertas. O objetivo da operação seria eliminar as barreiras entre os bairros que se formam com a presença das linhas ferroviárias, assim, ao se tornarem subterrâneas, permitiriam a integração entre os bairros como Santa Cecília e Bom Retiro. A proposta inicial seria demolir ou desmontar o trecho entre a Praça Roosevelt e o Largo Padre Péricles para recuperar as avenidas Amaral Gurgel e General Olímpio da

Figura 3 – proposta do escritório FGMF para trecho preservado próximo à Praça Marechal Deodoro. Fonte: site Arqbacana²

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Silveira. A abertura dessa área permitiria a aproximação das quadras que o margeiam ao bairro de Higienópolis, além de promover a recuperação urbanística e paisagística do seu entorno. Na opinião de outros urbanistas as consequências da Operação não seriam tão otimistas. Para Raquel Rolnik, esse tipo de ação conforma um lugar sem transporte coletivo, ciclovias ou calçadas adequadas. A construção de uma nova via expressa não solucionará o problema de degradação no centro, gerado justamente pelo conjunto de vias expressas que o atravessam transformando-o em uma área de passagem, inadequada para moradia. O problema da via elevada seria apenas substituído pelo problema da via expressa. Para o urbanista João Whitaker essa proposta também é problemática já que no fundo retomaria os mesmos problemas que o Elevado apresenta hoje: “(...) a proposta feita na gestão passada de, no lugar do Minhocão, afundar a linha de trem que vai para a Barra Funda e construir uma nova via expressa por cima, é simplesmente sucumbir à tentação de continuar, 40 anos depois, fazendo o mesmo. Vias expressas de fundo de vale que, além dos custos fabulosos de enterrar o trem, ressuscitam o carro e matam a cidade.”

2.4. 2º Prêmio Prestes Maia: menção honrosa 2 A segunda menção honrosa que decidimos analisar parte do princípio de que o Minhocão deve ser demolido. A equipe composta por Fernando Forte, Lourenço Gimenes e Rodrigo Marcondes Ferraz, escritório FGMF, não concorda com a transformação do elevado em parque, já que o problema estaria no Minhocão em si, uma estrutura obsoleta cujo custo de manutenção seria maior que o de sua demolição. Porém, o grupo reconhece que a conexão Leste-Oeste não poderia ser suspendida, assim o projeto prevê a demolição do Elevado, mas seu tráfego seria transferido para a nova via expressa que seria aberta com o rebaixamento das linhas da CPTM de acordo com o projeto Operação Urbana Lapa-Brás. Essa demolição, porém, não seria por completo, seriam mantidos quatro pequenos trechos, próximos a largos, praças e entroncamentos. Esses trechos funcionariam ao mesmo tempo como memória do Elevado e como meio para reverter a degradação, desencadeada pelo próprio Elevado, ao articular o entorno e sua antiga estrutura com equipamentos públicos, como cinemas e bibliotecas (SECRETARIA; PRÊMIO, 2008). Por se valer da Operação Urbana Lapa-Brás para realização de seu projeto, essa proposta sofre as mesmas críticas que a Operação. A de, na sua essência, estar cometendo os mesmos erros de planejamento cometidos pelo projeto do Elevado, nesse caso, por mais que se eliminasse o peso do Elevado sobre seu entorno imediato, o problema da exclusão gerada por uma via pensada para carros não seria solucionado, mas transferido da área imediata sob o Minhocão para as áreas sobre as linhas da CPTM enterradas.

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3. Gentrificação Apesar da discussão atual e das diferentes opiniões sobre as soluções apresentadas, o maior receio de alguns urbanistas não é sobre o futuro do viaduto em si, mas como a área será afetada com a provável valorização do local e, por consequência, o que aconteceria com a população que hoje reside no entorno - em sua maioria de baixa renda. A proposta do plano diretor para a desativação do viaduto já teve consequências para o local, com a construção de empreendimentos voltados para uma população de renda média-alta. A título de exemplo, a construtora MAC já montou um estandarte na Av. Amaral Gurgel com a Rua Olimpia de Almeida Prado para promoção de um edifício que abrigará 329 apartamentos, do tipo studio. Para João Sette Whitaker, “A mobilização para a desativação do elevado parte de grupos cívicos de estratos sociais muito variados (o que faz sua riqueza), e ela não pode deixar passar desapercebido o fato de que a causa que defendem pode, ela também, tornar-se um instrumento de valorização imobiliária e expulsão dos mais pobres. Por que? Pois ao retirar o elevado, os preços dos imóveis no seu entorno vão, imediatamente, explodir. (...) Ou seja, imediatamente, todos os moradores de renda média-baixa que por décadas se contaminaram respirando CO2 no café da manhã, receberão como prêmio pela desativação do elevado um convite forçado a retirar-se de lá.”

Preocupação para os urbanistas, deslocamento dos residentes atuais da região, ganho para as construtoras. Com a desativação do elevado, os preços dos apartamentos na região podem crescer 40% (R7, 13 set. 2014), restringindo a possibilidade da população de baixa renda residir no local. No caso de Seoul, na Coreia do Sul, a demolição do viaduto Cheonggyecheon, junto com a revitalização do riacho sobre o qual passava, ampliou consideravelmente o preço da terra em seus arredores. (CERVERO; KANG, 2009; LEE, SOHN). Construído em 1968 e demolido entre 2003-04, durante o seu tempo de existência o viaduto passou por processos semelhantes ao do Elevado Costa e Silva, de degradação e desvalorização do entorno. A valorização da terra no entorno do viaduto Cheonggyecheon foi diretamente afetada pelos períodos de degradação do viaduto e posterior remoção do elevado. Um levantamento feito sobre a valorização da terra no local entre 1990 e 2006, demonstrou que em 1998 a terra desvalorizou-se aproximadamente 15%, o pior índice do período. Oscilando na margem do 0% nos anos seguintes, foi em 2002, com a certeza da demolição e revitalização do local nos anos seguintes, que a terra teve um pico de valorização, alcançando aproximadamente 18%, e retomando o crescimento após a execução do projeto (CERVERO; KANG, 2009). Demonstração clara de como a NEPUD potencia a movimentação de capital no local (JONAS; GIBBS; WHILE, 2011), a demolição do viaduto em Seoul e a consequente valorização do seu entorno deve ser uma referência para o caso paulistano. É fato que atualmente há uma predominância de uma população de baixa renda residindo nos arredores do Elevado Costa e Silva e que a desativação prevista pelo Plano Diretor Estratégico (de 2014) já surtiu efeitos de aumento da valorização da terra no entorno. 42

Para os urbanistas Raquel Rolnik e João Sette Whitaker, a luta é contra a gentrificação: “(...) hoje moradores de menor renda vivem nessa área graças à sua desvalorização. (...) A questão não é, portanto, demolir ou fazer parque, mas sim pensar em uma intervenção na região que recupere a qualidade ambiental e urbanística, melhore a mobilidade na cidade e seja capaz de preservar a presença dos atuais moradores e de atrair novos.” (Raquel Rolnik) “É a mesma coisa de sempre: quando a coisa vira boa, tiram-se os pobres. Senão por políticas oficiais, pela força do dinheiro. Por isso, antes de se falar em destruir o elevado ou transformá-lo em parque, a reivindicação deve ser outra: a apresentação de um plano, por parte da Prefeitura, de regulação de preços e proteção aos moradores de menor renda que lá moram. Essa deve ser a luta no atual momento. Sob o risco, se não o fizermos, de carregar a culpa de ter defendido a criação de algo que pode tornar-se um dos projetos mais gentrificadores que a cidade já teve.” (João Sette Whitaker)

A discussão atual, portanto, não pode se reter às soluções para o viaduto, mas deve focar-se também sobre as consequências para o entorno da região, debruçando-se sobre o futuro dos moradores atuais da região. O Plano Diretor prevê a desativação do elevado nos próximos quinze anos e um planejamento aguçado deve ser realizado até lá, abrangendo as inúmeras questões envolvidas diante deste desligamento. Entretanto, uma vez que a desativação já mostra os primeiros efeitos de valorização da terra, há urgência de um plano para a preservação dos moradores da região. Ao contrário, a gentrificação já iniciada se concretizará antes mesmo da desativação. 4. Conclusões O movimento mundial pela sustentabilidade promoveu a ascensão de uma nova política urbana, chamada NEPUD (New Environmental Politics of Urban Development), a qual orienta o desenvolvimento urbano através do planejamento baseado no controle do carbono. Essa nova política definiu novos parâmetros econômicos para uma cidade, com a adoção de medidas ambientais, associando-se a decadência do urbanismo rodoviarista. As obras construídas com base nesse planejamento que prioriza o automóvel sobre o pedestre tornaram-se obsoletas e atualmente constituem um problema para as cidades na medida em que precisam ser reinseridas em uma nova dinâmica urbana, alinhada com a ascensão dessas políticas ambientais. Viadutos exemplificam claramente esse movimento: presentes em cidades em todo o mundo, elevados estão associados à degradação do seu entorno ao restringirem seu uso como via expressa de automóveis. Com a necessidade de sua presença questionada, seus usos e espaços vêm sendo repensados – em alguns casos, já foram reformulados. Boston, Seattle e Seoul são exemplos de cidades em que a discussão levou à demolição de seus viadutos, com projetos de revitalização das áreas. Em Nova York, a implantação de um parque sobre um elevado abandonado beneficiou a população. Atualmente, os mesmo questionamentos estão sendo lançados sobre o Elevado Costa e Silva, em São Paulo. Além da degradação e dos ruídos causados pelo grande trá43

fego de veículos, existe a questão da possível expulsão da população local no caso da revitalização da área, independente da solução de projeto que seja implantada, e que precisaria de uma revisão nas leis de uso do solo para evitar esse processo de gentrificação. Analisando algumas das propostas feitas até então, percebe-se que elas não conseguiram abranger todos os problemas do Elevado. Pelo contrário, os principais problemas causados pelo Elevado continuariam e/ou seriam criados novos problemas, sem de fato conseguir resolver a degradação de seu entorno. Apesar da discussão existente desde sua inauguração sobre como amenizar ou eliminar seus danos, as propostas lançadas até hoje se mostram pontuais, sem conseguir atingir a essência do planejamento precário dessa obra. Além disso, houve pouca ou nenhuma abordagem quanto à questão da valorização do solo e posterior expulsão da população atual por parte desses projetos. Exemplos de outros viadutos que sofreram algum projeto e a degradação local foi revertida demonstram uma valorização do solo na área. O processo de possível gentrificação no caso paulistano preocupa os urbanistas, que alertam sobre a necessidade de um plano que permita a preservação dos moradores locais mesmo com a revitalização do espaço. A discussão, por fim, não deve cessar. Os projetos devem se unir às políticas urbanas atuais sem que, no entanto, a revitalização da área resulte na expulsão dos moradores atuais pela especulação imobiliária. De fato, há a necessidade da criação de propostas/leis que protejam a estadia dos atuais moradores. Ao contrário, o processo de gentrificação – que já foi iniciado -, não será cessado.

Notas (1) Figura 1. Disponível em: http://theurbanearth.files.wordpress.com/2009/03/projeto-minhocao.jpg. Acesso em jan. 2015 (2) Figura 2. Disponível em: http://www.arqbacana.com.br/internal/arq!projetos/read/12487/ fgmf. Acesso em jan. 2015

Referências JONAS, A. E. G.; GIBBS, D.; WHILE, A. The New Urban Politics as a Politics of Carbon Control. Urban Studies, v. 48, n. 12, p. 2537–2554, 1 set. 2011. KANG, C. D.; CERVERO, R. From Elevated Freeway to Urban Greenway: Land Value Impacts of the CGC Project in Seoul, Korea. Urban Studies, v. 46, n. 13, p. 2771–2794, 1 dez. 2009. LEE, J. SOHN, K. Identifying the Impact on Land Prices of Replacing At-grade or Elevated Railways with Underground Subways in the Seoul Metropolitan Area. Urban Studies, v. 51, n. 1. p. 44-62, 1 jan. 2014. MARTINS, L. B. Elevado Costa e Silva processo de mudança de um lugar. São Paulo: [s.n.]. SECRETARIA, M. DE P.; PRÊMIO, P. M. DE U. Caminhos do Elevado memória e projetos. São Paulo: SEMPLA, 2008.

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WEILER, S. Pioneers and Settlers in Lo-Do Denver: Private Risk and Public Benefits in Urban Redevelopment. Urban Studies, v. 37, n. 1, p. 167–179, 1 jan. 2000. SODRÉ, J.; BÜHLER, M.; PASTORELO, P.; MARIANI, M.. Elevado 3.5. [Filme-vídeo]. Produção de Matias Mariani, direção de João Sodré, Maíra Bühler e Paulo Pastorelo. São Paulo, Primo Filmes, 2010. VALLE, P. A decadência da avenida. Folha de São Paulo, São Paulo, p. 8, 18 ago. 1980. G1 - Prefeitura de SP estuda demolir o Minhocão - notícias em São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 7 jan. 2015. “Minhocão” aberto sem repercussão esperada. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 16, 26 jan. 1971. Piscina de 50 metros é montada em cima do Minhocão - 23/03/2014 - Cotidiano - Folha de S.Paulo. Disponível em: . Acesso em: 6 jan. 2015. Portal da Prefeitura da Cidade de São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 6 jan. 2015. R7 - Com plano de desativação, novos prédios começam a ser construídos à beira do Minhocão. Disponível em: < http://noticias.r7.com/sao-paulo/com-plano-de-desativacao-novos-predios-comecam-a-ser-construidos-a-beira-do-minhocao-14092014>. Acesso em: 7 jan. 2015.

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artigo

A operação urbana Água Branca: os resultados após mais de uma década de implantação

Elisa Herkenhoff Bloch

O Plano Diretor de 1988 delimitou diretrizes para a aplicação das Operações Urbanas na cidade de São Paulo. Na década de 1990 três Operações Urbanas foram implantadas na cidade. Mesmo ainda relativamente recentes, a OU Água Branca, a OU Faria Lima e a OU Anhangabaú (que depois se tornou OU Centro) tornaram-se estudos de caso em âmbito municipal e até nacional. Diversos pontos acerca da parceria público-privada, que é a base das operações, foram levantados e criticados. Questionou-se principalmente se as contrapartidas seriam tão vantajosas para a população quanto seriam para a iniciativa privada. Além disso, as operações foram amplamente criticadas por urbanistas por serem ações pontuais que não faziam parte de um plano urbanístico para a cidade como um todo. Apenas em 2001, com o Estatuto da Cidade, as Operações Urbanas foram regulamentadas e tentou-se sanar a falta de objetivos claros e de acompanhamento do processo. O objetivo desse artigo é discutir o desenvolvimento da Operação Urbana Água Branca, ainda em vigor, desde sua implantação até os dias de hoje. As dúvidas quanto aos efetivos retornos à população da exploração desses perímetros de exceção ainda é um tema de constante discussão e será um dos assuntos abordados aqui. Para a realização desse artigo foram consultadas teses de doutorado de alunos da FAUUSP, artigos de jornal, mapas da região, legislação da Operação Urbana, além da realização de visitas à campo. palavras-chave:operação urbana Água Branca, Barra Funda, parceria público-privada.

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1. Introdução Em São Paulo há, entre finalizadas e em curso, seis Operações Urbanas, tornando-se essencial discutir e entender os objetivos e os interesses que as regem. Por serem subordinadas a diversos interesses políticos, os rumos tomados ao longo de seu desenvolvimento podem levar a resultados muito distantes dos planejados, muitos deles com menos ganhos à população do que era esperado. É nesse sentido que se encaminha a discussão desse artigo sobre o caso específico da Operação Urbana Água Branca: dentre os pontos que se objetivava no seu momento de implantação, quantos deles já foram atingidos quase uma década depois? Quais foram adicionados? Foram priorizados os interesses públicos? Os privados? Ambos? Já faz quase três décadas que o instrumento de “Operações Urbanas” entrou na pauta das discussões urbanísticas no Brasil e, mais especificamente, na cidade de São Paulo. Ganhou tal status ao apresentar uma alternativa ao financiamento tradicional de obras municipais: a parceria público-privada. Em meio ao pagamento de dívidas públicas, a adoção das OUs foi defendida por muitos como um meio para que investimentos em infraestrutura e em habitação fossem possíveis. “A aplicação adequada desse instrumento permitiria ao Estado promover o desenvolvimento ao alcance do poder municipal, transformando áreas urbanas e combatendo a manifestação da exclusão e da desigualdade”. (Alvim, Abascal, Moraes, 2011, p. 219). Uma Operação Urbana, de fato, pode ser muito atraente para as administrações municipais já que é uma forma de obtenção “extra” de recursos por sua captação não estar ligada a nenhum tipo de imposto ou taxação e pode variar segundo a valorização de uma operação. “(..) Pode ser considerado um instrumento que pode valer-se das oportunidades, dos acontecimentos e das diversas forças econômicas e sociais de modo positivo relativamente aos seus objetivos”. (Alvim, Abascal, Moraes, 2011, p.216). Mas para isso é necessário o “(...) envolvimento dos atores locais, da sociedade civil e de diversas esferas governamentais” (Somekh, Campos Neto, 2005, p. 1). As OUs estão pautadas na venda de potencial construtivo adicional dentro do perímetro estabelecido. O ganho dessa transação deve, obrigatoriamente, ser aplicado em obras públicas nessa mesma área. Inicia-se, assim, tal aliança entre o setor privado e o setor público (representando a população como um todo), pressupondo-se que ambos sairão igualmente privilegiados. Essa relação quase simbiótica é o fator mínimo necessário para o sucesso de uma operação, já que se não houver interesse do mercado não haverá geração de renda para obras. É portanto essencial que os parâmetros de venda das outorgas onerosas estejam finamente alinhados aos interesses do setor privado. Desse modo, o Município passa exercer um papel para o mercado imobiliário em certas partes da cidade. Contudo,”(...) o sucesso de uma Operação Urbana não pode ser avaliado apenas pelo lado financeiro - arrecadação de recursos para a prefeitura - mas deve ser pautado no proveito social que ela pode oferecer” . (MACEDO, 2009, p. 239). É importante ressaltar que as Operações Urbanas são uma série de mecanismos jurídicos para a administração pública através de parcerias com o setor privado e envolvem, assim, políticas de diversas naturezas, entre elas fiscais e de solo, elevando o nível

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de complexidade admnistrativa. Por outro lado, em São Paulo, as OUs são consideradas intervenções urbanísticas pontuais já que não fazem parte de um plano municipal conectado e sim de planos limitados a pequenos perímetros. Essa restrição não pode ser vista de maneira simplista, atribuindo sua pequena escala apenas a uma falta de planejamento municipal em maiores dimensões, mas também como o resultado da lógica imobiliária que rege as Operações. Como já foi ressaltado antes, as Operações Urbanas dependem do interesse do mercado imobiliário pela área, o que inclui um pensamento a longo prazo contando com os investimentos e melhorias. As operações, nos moldes paulistanos atuais, só funcionam em locais em que a iniciativa privada enxerga um retorno seguro dos investimentos realizados. Desse modo, os lugares mais atraentes para o mercado são aqueles com fatores que valorizam os imóveis, como estações, ou futuras estações de metrô, um sistema viário melhor estruturado, facilidade de acesso, entre outros. A delimitação dos perímetros das Operações Urbanas segue, portanto, uma lógica facilmente identificável: locais em que um potencial imobiliário é claro e que poderia ser ampliado com a venda do “solo criado”, gerando um capital a ser usado na construção de obras na região. Os resultados das obras também são vantagens diretas para investidor imobiliário ao valorizarem a região e atraem compradores/locatários. Outro ponto que deve ser enfatizado é que todo o processo de implantação e, consequentemente, de planejamento é acompanhado de uma avaliação por parte da prefeitura para analisar as potencialidades e as necessidades de uma determinada região, de modo que a futura ocupação condiga com seu entorno. 2. Características da região A OUAB abrange, a grosso modo, o bairro da Barra Funda. Numa observação mais específica vê-se que, além da Barra Funda, Pompéia e Perdizes fazem parte da Operação. A região apresenta dois elementos que foram extremamente significativos para o desenvolvimento da região, delineando seu uso e ocupação até os dias de hoje. São eles: a ferrovia, hoje linha 8 da CPTM, e o rio Tietê. Inaugurada no final do século XIX como o primeiro trecho da estrada de Ferro Sorocabana, a linha teve grande importância histórica por transportar produtos, principalmente o café, desde o interior e, mais tarde, até o porto de Santos. Desse modo, com as limitações de transportes, a região próxima à linha passou a ser ocupada por fábricas, que tinham fácil acesso à matéria prima. Como consequência, operários estabeleceram-se no entorno das fábricas criando uma ocupação operária na região. O perfil operário da região perdurou por mais de meio século e apenas na década de 1960 a área passou a apresentar significativas mudanças em sua ocupação. Nessa década, com os incentivos dados à indústria automobilística e as melhorias e ampliações de rodovias, há um declínio no uso das ferrovias como meio de transporte de cargas. Consequentemente as indústrias passam a depender cada vez menos das ferrovias e começam a se instalar mais próximas de rodovias, em áreas mais baratas, longe do centro de São Paulo. Foi nesse momento que se iniciou o processo de decadência da região, já que grandes construções ficaram sem uso e até mesmo abandonadas. 49

O rio Tietê, o outro elemento significativo para a construção da paisagem local, foi retificado na década de 1920, pelo engenheiro Saturino de Brito. O rio, antes meândrico, passou a ter um leito retificado, criando, ao mesmo tempo, terrenos livres às suas margens. Tais terrenos passaram a pertencer ao poder público, que os doou, os cedeu ou os transferiu para terceiros. O aumento de terrenos na região não apresentou, porém, um significativo adensamento construtivo, já que as várzeas do Tietê sofriam constantemente com inundações, problema que atingia uma grande faixa, chegando próximo até da ferrovia. Esses dois elementos lineares marcantes da Barra Funda também criavam para o bairro um sério problema de acessibilidade, já que funcionavam como barreiras urbanas, tanto internamente (norte e sul da ferrovia) como externamente, já que uma das fronteiras do bairro era quase intransponível por causa do rio, a norte. Foi a partir da década de 1940 que obras de infraestrutura viária e uma grande obra sanitária começaram a ser implantadas. Notavelmente as pontes sobre o Tietê, os viadutos Antártica e Pompéia sobre a ferrovia, as pistas marginais e os emissários de esgotos foram medidas essenciais para que a região se integrasse melhor a cidade, melhorando também as condições de vida internas a ela.

Figura 1: Mapa demarcando o perímetro da Operação Urbana Água Branca, em cinza-escuro. Em verde estão indicadas as áreas verdes. Nessa imagem é perceptível que em grande parte da área da Operação predominam os grandes lotes (há uma malha viária muito mais espaçada, denotando isso). Fonte: Prefeitura Municipal de São Paulo

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3. A operação urbana Água Branca No final da década de 1980, quando se iniciaram as discussões em relação às Operações Urbanas, a Barra Funda apresentava uma grande quantidade de edifícios desocupados e lotes vazios ou com pequeno uso. É interessante ressaltar que em várias cidades do mundo as áreas mais ‘visadas’ pela requalificação urbana eram aquelas de áreas industriais esvaziadas (Alvim, Abascal, Moraes, 2011, p.216). Lotes industriais normalmente têm grandes dimensões, que dificilmente são adequadas a outros empreendimentos sem que haja uma redivisão dos terrenos. Além disso, a migração das indústrias dos antigos pólos industriais, próximos às matérias primas, por exemplo, para locais mais baratos foi um fenômeno mundial, de modo a iniciar um processo de degradação das antigas áreas industriais. O caso de São Paulo não foi diferente. A Barra Funda passou a ser vista como “(...) área de baixa densidade de ocupação propícia para a expansão de atividades terciárias na região, como extensão do sub-centro Lapa e da Área Central.” (Castro, 2006, p.121). Soma-se a isso o fato da região apresentar uma acessibilidade superior à média da cidade, já que está ao lado da marginal, conectando-se facilmente a outros municípios, próxima ao centro histórico e dentro do centro expandido com importantes avenidas, além de, a partir de 1988 contar não só com a linha da CPTM e do metrô como também com o Terminal intermodal da Barra Funda. A Operação Urbana Água Branca já era mencionada “(...)tanto no plano diretor aprovado ainda na gestão Janio Quadros (1986-1988), quanto na lei orgânica do município, de 05 de abril de 1990, já na gestão de Luiza Erundina (1989 – 1992). As duas referências, entretanto, são bastante simplificadas e não guardam muita correspondência com a proposta desenvolvida em 1985” (Maleronka, 2010, p.93). Foi apenas em 1995 que a Operação entrou em vigor através da L ei 11.774 de 18 de maio de 1995. A EMURB (Empresa Municipal de Urbanização de São Paulo) e a CNLU (comissão normativa de legislação urbanística) tornaram-se responsáveis pela aprovação e gestão dos projetos. No site da Prefeitura Municipal de São Paulo é possível encontrar um resumo dos objetivos da Operação Urbana, descritos a seguir: “a) implantar um conjunto de melhoramentos viários visando ligações de longo percurso e a reestruturação do viário local, hoje fragmentado; b) melhorar os sistemas de macro e microdrenagem para diminuir os problemas de inundação ocasionados pela deficiência das redes e galerias existentes; c) implantar espaços públicos; d) implantar equipamentos de interesse da comunidade.” ¹

Com a leitura dessas diretrizes é possível notar que a construção de habitações de interesse popular não está presente nas metas. Esse aspecto é extremamente significativo pois mostra que dentre as modificações almejadas para a região não se pretende a inclusão da população de mais baixa renda, sendo que é um lugar de grande acessibilidade, ideal para um público que não disfruta de transporte individual motorizado.

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Figura 2: Vista aérea sobre a região da Operação Urbana Água Branca. É possível observar as duas barreiras urbanas da região: em vermelho a ferrovia e em azul o rio Tietê. Essa imagem também captura a diferença entre a área dentro das barreiras (grandes construções) e as fora delas (construções menores). Fonte: Google Earth modificado pela autora

Figura 3: Em primeiro plano vê-se o muro que isola a ferrovia. Ao fundo prédios recentes, sendo que os quatro iguais, no meio, fazem parte do primeiro empreendimento que aderiu à Operação Urbana Água Branca, através da compra de coeficiente de aproveitamento. Fonte: Foto tirada pela autora.

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Outro aspecto que pode ser notado é que dois dos problemas crônicos da região, a fragmentação do sistema viário e a drenagem, são colocados como prioridades, através dos itens a) e b). Nas diretrizes de projetos mais detalhadas a maioria das proposições se enquadra nesses dois temas. Castro, em sua tese, entende que a OUAB foi estruturada a partir do Terminal Barra Funda, de modo a explorar as possibilidades que ele trouxe à região. A OUAB baseou-se e baseia-se na venda de potencial construtivo recebendo em troca contrapartidas para o investimento nessas obras definidas por técnicos da EMURB. As contrapartidas não são fixas e são definidas caso a caso, seguindo alguns critérios. A região foi divida em diversas áreas, a partir de suas características originais, e, para cada uma, foram estabelecidos novas taxas de ocupação e coeficiente de aproveitamento para aqueles projetos que aderissem a OU. A Operação também vê nessa divisão setorial dois tipos de áreas: as que atrairiam investidores e, portanto, seriam áreas “captadoras” de recursos e outras que apresentam um interesse inferior para o mercado imobiliário, de modo que usufruiriam dos recursos investidos, porém não os captaria. Para a administração dos recursos foi criado o Fundo Especial da Operação Urbana Água Branca (FEAB). 4. Resultados Após exatos 20 anos de implantação, os resultados obtidos pela OUAB estão muito aquém dos esperados. A falta de interesse do mercado imobiliário pela compra do potencial de construção é o principal fator para esse insucesso. Até 2006, por exemplo, a arrecadação foi de apenas 11% do total previsto, comprovando que a Operação seguia em um ritmo inferior ao imaginado (Castro, 2006, p. 141). Sem o retorno financeiro esperado, poucas mudanças na infraestrutura podem ser observadas na região. Os grandes galpões e, em algumas ruas que cruzam as grandes avenidas, sobrados residenciais ou de uso misto ainda são característicos na maior parte do perímetro. Algumas torres comerciais e muitos edifícios residenciais de médio e alto padrão surgiram, sem nenhum tipo de integração à rua e repetindo os modelos de condomínios fechados que dominam a cidade, contrastando com o perfil horizontal da região. É extremamente importante ressaltar, porém, que desses grandes empreendimentos construídos, poucos de fato aderiram a OUAB. Ou seja, mesmo sendo construções de grande porte, apenas alguns empreendedores acreditaram que seria vantajoso comprar um maior potencial construtivo. Desse modo revelou-se “que o zoneamento da área é adequado à expectativa do mercado imobiliário na região”(Magalhães Júnior, 2005, p.4). Talvez mais do que isso: revelou-se que os estudos para a implantação da Operação mostraram-se pouco precisos, já que não conseguiram chegar a uma previsão nem ao menos perto da real. Por esse motivo, em 2001 a prefeitura criou um grupo de trabalho para tentar adequar melhor a OU às reais necessidades. Mesmo com mais adesões nos anos seguintes até os dias de hoje não é possível dizer que a OUAB está compassada aos interesses do mercado. Além da análise da área de intervenção cabe à discussão uma observação bastante generalizada dos bairros ao seu redor. A Pompéia e Perdizes são dois bairros de classe

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média alta que já apresentavam um adensamento populacional com a construção de edifícios residenciais. Não por a caso, a porção da OUAB a sul da ferrovia, mais próxima a estes bairros, apresentou um maior desenvolvimento imobiliário do que a parte norte. Desse modo outra questão fica em aberto: será que apenas a Operação seria suficiente para alavancar o crescimento da porção sul ou o projeto urbanístico seria ainda mais fracassado sem a “colaboração” da Pompéia e de Perdizes? 5. Considerações finais A Operação Urbana Água Branca que tinha por objetivo criar uma região inserida na São Paulo cada dia mais densa e populosa e adequada a ela, acabou sendo um fracasso em diversos aspectos. Em primeiro lugar, o descompasso entre o pretendido pelo poder público e os interesses imobiliários fez com que a adesão fosse muito inferior ao previsto. Assim, as infraestruturas almejadas não puderam ser financiadas pelos recursos da própria Operação. Em segundo lugar, se retomarmos o conceito apresentado por Adílson Macedo em seu artigo, “(...) o sucesso de uma Operação Urbana não pode ser avaliado apenas pelo lado financeiro - arrecadação de recursos para a prefeitura - mas deve ser pautado no proveito social que ela pode oferecer”, vemos que além de não ter arrecadado, o proveito social em termos de espaços livres, áreas de lazer, equipamentos públicos foi mínimo (apenas o caso do restauro da “Casa das Caldeiras”). Os edifícios construídos nada trazem de retorno à cidade. O conceito de fachadas ativas (térreo comercial) não foi sequer mencionado fazendo com que a região pouco tenha de “nova”: mostra-se uma repetição do urbanismo construído no resto da cidade. “Nessa OU, ao contrário, o processo em curso sinaliza a prevalência de formas usuais de atuação do setor imobiliário, que se concentram na edificação e abertura de conexões viárias favoráveis ao uso do automóvel, predominando o produto imobiliário isolado no grande lote, construído conforme interesses construtivos particulares, em detrimento da qualificação do ambiente urbano como bem público, um bem da cidade.” (Alvim, Abascal, Moraes, 2011, p. 229).

Notas ¹http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/sp_urbanismo/ operacoes_urbanas/agua_branca/index.php?p=19589. Acesso em 04 jan. 2015

Referências MONTANDON, Daniel Todtmann; SOUZA, Felipe Francisco de. Land Readjustment e Operações Urbanas Consorciadas. p. 108-114. São Paulo: Romano Guerra Editora, 2007. MACEDO, Adilson C.. Operação urbana água branca: desde 1995. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, [S.l.], n. 26, p. 236244, dez. 2009. ISSN 2317-2762. Disponível em: . Acesso em: 05 dez. 2015.

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MAGALHÃES JÚNIOR, José. Operações Urbanas em São Paulo: crítica, plano e projeto. Parte 8 – Operação urbana Água Branca, revisão e proposição. Arquitextos, São Paulo, ano 06, n. 066.03, Vitruvius, nov. 2005. Disponível em: . Acesso 13 de dez. 2014 SOMEKH, Nadia; CAMPOS NETO, Candido Malta. Desenvolvimento local e projetos urbanos. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 059.01, Vitruvius, abr. 2005. Disponível em: . Acesso em: 20 de dez. 2014 ALVIM, Angélica A.T. Benatti ; ABASCAL, E. H. S. ; MORAES, L. G. S. . Projeto Urbano e Operação Consorciada em São Paulo: limites, desafios e perspectivas. Cadernos Metrópole (PUCSP), v. 25, p. 213-234, 2011. Disponível em: . Acesso em: 13 dez. 2014 MALERONKA, Camila. Projeto e gestão na metrópole contemporânea: um estudo sobre as potencialidades do instrumento ‘operação urbana consorciada’ à luz da experiência paulistana. 2010. Tese (Doutorado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: . Acesso em: 08 nov. 2014. CASTRO, Luiz Guilherme Rivera de. Operações urbanas em São Paulo: interesse público ou construção especulativa do lugar. 2006. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universdade de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em: . Acesso em: 08 nov. 2014.

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artigo

A prática da arquitetura à margem da institucionalidade: A contribuição do MTST em São Paulo

Mathews Vichr Lopes Henrique Salva Geddo

Este trabalho investiga a cidade sob sua dimensão social, entendendo a construção de seu espaço como fruto dos constantes embates travados pelos segmentos sociais que a constituem. A questão, evidentemente política, é intensa ao analisarmos a cidade de São Paulo, na qual tais conflitos se materializam não só pelas grandes disparidades socioespaciais, mas também por manifestações de embate direto, destacadas neste estudo pela ação dos movimentos sociais. Tendo como recorte a atualidade, buscamos entender a mudança de conjuntura política após as manifestações populares de junho, que reabre intensamente o horizonte de reinvindicação por direitos no espaço urbano. Dentro deste cenário, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) conquista relevância após populosas manifestações de luta por moradia popular e pela ocupação da Câmara dos Vereadores no contexto de aprovação do Plano Diretor da cidade de São Paulo. Busca-se, a partir do entendimento da atuação do movimento e deste episódio em específico, um ponto de vista da atuação direta de um movimento social sobre o ambiente urbano. A partir disso, problematiza-se como a atuação do arquiteto/ urbanista se insere neste cenário, diante de seu ofício de critica e ação sobre o ambiente urbano. Após discutidas as limitações de atuação da categoria, classificadas em três grupos- o princípio mercadológico, a atuação no poder público, e a ação marginal à institucionalidade-, a análise mostra uma grande abstenção da profissão a este último, que ainda assim exerce seu ofício majoritariamente no âmbito técnico, como as outros grupos. As questões levantadas evidenciam o conflito do exercício da arquitetura técnica e arquitetura política, bem como novos horizontes de atuação profissional, para por fim, entender suas diversas escalas de efetiva atuação crítica sobre a cidade. palavras-chave: movimentos sociais, direito à cidade, prática da arquitetura, MTST. 57

Introdução As relações sociais se dão de forma espacial. Em uma sociedade com ampla desigualdade social, e portanto, envolta em conflitos, a cidade transforma-se em palco de constante disputa pelo território. Como exemplo, os movimentos urbanos de luta por moradia revelam diretamente o problema habitacional das cidades. Tendo como objetivo a construção de uma análise acerca da importância da atuação dos movimentos sociais na produção e modificação da cidade, e como os arquitetos e urbanistas nela se inserem, pretende-se contextualizar a atuação destes no cenário nacional e paulista, dentro de uma época na qual estes embates voltam a ocorrer com grande visibilidade e intensidade. A escolha da abordagem da atuação de arquitetos e urbanistas junto aos movimentos sociais - especificamente aos de luta urbana ou por moradia - se deve ao modo de como esta prática conjunta, potencialmente subversiva, é hoje escassa. Aparentemente, há um isolamento da prática arquitetonica á prática ideológica. A atuação diante dos conflitos sociais tendo como objeto de ação a própria cidade se demonstra reveladora quanto á luta de classes territorializada, e ao levantamento de pautas e reivindicações que abrangem a realidade da maioria dos habitantes da cidade, mesmo os que não organizados em movimentos: a população de baixa renda. Sobretudo, cabe a este artigo a reflexão da atuação informal, ou marginal, na disputa territorial da cidade. Para tanto, serão recapituladas as últimas tentativas de arquitetos na atuação conjunta aos movimentos de luta por moradia, para que seja possível o entendimento da atual conjuntura de difícil assimilação das correlações de forças que na cidade atuam, e a atual possibilidade de inserção e participação nas ações diretas desvinculadas do Estado como mantenedor da Ordem social. É importante ressaltar que este tema se mostra complexo e totalmente dependente da compreensão de termos e conceitos inerentes ao campo de estudo da geografia, o que por vezes poderá sujeitar o artigo a certas imprecisões e falta de compreensão genérica da estrutura social e espacial das cidades. Ainda assim, a principal intenção do texto é situar o arquiteto/ urbanista dentro deste cenário, para que assim possamos repensar perspectivas de atuação da profissão que atuem mais eficientemente no processo de transformação social. Breve recapitulação do surgimento dos movimentos Sociais no Brasil até a década de 80 A dinâmica histórica dos movimentos sociais acompanharam as reconfigurações do contexto político-social nacional, na qual CASTILHO (2010) argumenta a existência de momentos de fluxo, latência, e refluxo, ou seja, de momentos em que a organização popular em movimentos sociais encontraram espaços de difusão mais ou menos propícios a seu desenvolvimento. Buscaremos através da breve recapitulação histórica deste cenário, compreender a situação atual dos movimentos sociais urbanos dentro de um contexto político maior.

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Após o golpe de 64, a habitação de interesse social tornou-se bandeira do regime militar. Construindo complexos habitacionais padronizados por todo o Brasil, muitas vezes afastados da cidade, os militares tinham como intenção acalmar os ânimos da periferia que se constituía. No entanto, apenas um quinto das unidades foram destinadas á classe de baixa renda - menos de cinco salários mínimos - o que gerou um distanciamento lógico entre trabalhadores e o Estado. O pacto social entre governo militar e a classe trabalhadora rompia-se, em um cenário de intensa repressão como política de estado. Consequentemente, aumenta-se o questionamento do Estado como lugar e instrumento privilegiado das mudanças sociais (ARANTES, 2002). Isto porque, como aponta CASTILHO (2010), durante o que se chamou de linha dura da ditadura militar (1967-75), foram proibidas quaisquer formas sociais de organização e mobilização social. Tal fato não significava o silenciamento da sociedade brasileira, que se reuniam em lugares menos rígidos, a exemplo das Comunidades Eclesiais de Base (CEB). No período posterior, a partir de 1975, se viu um crescimento progressivo das manifestações populares, junto ao que viria a ser a fase de transição e abertura política do regime nacional. Os movimentos sociais de luta pela casa e pela terra surgem com maior intensidade em São Paulo no final da década de 1970, quando o cenário de uma sociedade em transição pós-ditadura militar para a democracia - e para uma sociedade eminentemente urbana - fica mais evidente. Com o surgimento do PT, CUT e MST nos anos posteriores, rumos mais radicais para a sociedade pareciam possíveis. Através de ocupações de terra, os movimentos sociais praticam uma ação direta de reivindicação, de forma marginal, pelos seus direitos à moradia digna: através do questionamento da propriedade privada - questão secular ainda não enfrentada no Brasil -, da revelação da desigualdade social e da ineficiência das políticas públicas, os trabalhadores pressionam o Estado, trazendo à luz o problema da reforma urbana. ARANTES (2002) aponta aí, sua dubiedade: este confronto construído espetacularmente propõe como fim a negociação. Lutar como oposição por querer integração. Em uma sociedade capitalista na qual a desigualdade e o desemprego são elementos permanentes em um país emergente, essas reivindicações significam uma subversão do Estado como mantedor da ordem em suas conseqüências, devido à necessidade de uma mudança radical da estrutura de interação Estado-povo. A participação dos arquitetos no fomento à autogestão das lutas em São Paulo As primeiras experiências de produção de casas pelos movimentos de moradia ocorreram no início da década de 80. Não por acaso foi adotada a forma mais tradicional de cooperação popular: o mutirão. A novidade era realizá-lo não mais como forma de autoprovisão com economia própria, mas com terra e financiamento estatais, reivindicando uma parcela do fundo público e a universalização do direito à moradia: “Ao ser politizado pelo movimento social, assessorado por arquitetos independentes e realizado com recursos públicos, o mutirão irá superar sua condição de forma arcaica de cooperação [...]” (ARANTES, 2002)

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Através do contínuo questionamento das políticas públicas de habitação, o “atraso” passa a ser significado pelos “conjuntos modernistas” construídos pelas empreiteiras, esparsos e distantes da cidade. Nesse contexto, o mutirão organizado pelos movimentos sociais se apresentava como solução para escapar das empreiteiras capitalistas e das próprias soluções arquitetônicas fracassadas do Estado. RONCONI (1995) aponta que a participação direta dos arquitetos junto aos movimentos mostrava-se fundamental pois questionaria o discurso produtivista dos técnicos do governo e das construtoras, estabelecendo uma outra prática de base técnica inovadora cujo vislumbre é o empoderamento da população. Tal inversão dos meios de produção que aponta autonomia aos movimentos sociais é considerada indispensável por DOS SANTOS (2012) ao analisar a consistência e o alcance das perspectivas dos mesmos. Assim, os arquitetos se situavam politicamente a favor do desenvolvimento destes movimentos, fomentando-os. Em 1987, foi realizado em São Paulo o primeiro encontro dos arquitetos e técnicos que trabalhavam com os movimentos de moradia, que serviu para criar uma identidade comum entre esses arquitetos. Foi, segundo ARANTES (2002), um momento de avaliação dos problemas até ali enfrentados e da forma de atuação profissional que instituíram nos últimos anos: fazendo frente ao discurso dos técnicos do Estado, participando das negociações, produzindo estudos independentes sobre a viabilidade das obras, discutindo com os mutirantes como seriam as casas e a forma de construção, debatendo as táticas do movimento e de cada associação, ajudando na organização interna (como fazer assembléias, tomar decisões coletivas, etc.). Ao cenário da profissão da arquitetura, esta postura mostrava rompimento de alguns diante a tradicional ligação da categoria com a classe dominante. É importante salientar as atividades exercidas pelo arquiteto descritas no parágrafo acima, a fim de exemplificar sua pouca reprodução nos dias atuais, o que será discorrido posteriormente. Em 1989, na administração municipal do PT (mandato de Luiza Erundina), apesar da consolidação dos mutirões como alternativa na política pública, seus pressupostos poderiam ser considerados anti-estatais ou anarquistas. A relação direta entre arquitetos e

Figura 1- União da Juta, obra da acessoria USINA CTAH. Fonte: http://usinactah.org.br

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o povo em defesa da autogestão e poder popular negavam a mediação do poder público, cuja função era somente o subsídio. Com o tempo, e com novas conquistas do PT na administração pública, muitos desses arquitetos que atuavam diretamente com o povo passam a trabalhar para o Estado na articulação de políticas públicas progressistas, e outros em assessorias técnicas junto aos movimentos de moradia - que se estabilizava como um novo nicho de trabalho formal na arquitetura (RONCONI, 1995). A atuação dos arquitetos não poderia se limitar, contraditoriamente ao termo empregado, à de um técnico de apoio, pois da atuação dos movimentos populares nasceriam as transformações sociais. A necessidade da moderação política dos arquitetos e urbanistas junto aos movimentos de reivindicação isolada ou de bem privado - como os movimentos de moradia - tinha como foco o alcance à mudanças mais profundas, ou estruturais. O papel do arquiteto, então, possuiria múltiplas facetas: restituir o debate político e a consciência de classe, problematizar a vontade de simples integração e reprodução ideológica e subverter a imagem de liderança e superioridade que os técnicos e intelectuais possuiriam. O papel do arquiteto seria atuar questionando idéias preconcebidas e abrindo possibilidades, o que não significa opor-se, antagonizar, uma vez que também é participante na luta pela mesma causa. A respeito do mutirão autogerido como política pública habitacional, OLIVEIRA (2006) apontou que o trabalhador que constrói sua própria habitação está sujeito há um aumento da mais-valia relativa, devido ao sobretrabalho ao qual está sujeito. Ou seja, como se não bastasse a exploração diária representada pela mais-valia obtida de seu salário, virtualmente nele está incluso o custo e o tempo da construção de sua própria casa. No entanto, como próprio ARANTES (2002) afirma, muitas experiências concretas se mostraram muito positivas quanto a qualidade dos edifícios construídos, a gestão coletiva dos espaços, e a formação de uma consciência de comunidade que contribúi para a manutenção de um lar digno. Para muitos moradores de edifícios construidos desta forma, a habitação deixava de ser tratada como mercadoria, e sua concepção, descolada da intenção de lucro das empreiteiras, resultava em uma arquitetura para se viver, de melhor qualidade (figura 1). Apesar do embate teórico acerca da efetividade do mutirão autogerido como política pública, as iniciativas das assessorias técnicas engajadas com a luta política por uma reforma urbana tem sua importância no que se refere à busca da emancipação política dos envolvidos no processo, objetivando o povo como protagonista, que contribui para a inserção destes num debate mais profundo e radical frente ao papel do Estado. Luta por reforma urbana no Brasil “Achamos que a revolução [o golpe] vai necessitar agir vigorosamente junto às massas. Elas estão órfãs e magoadas, de modo que vamos ter que nos esforçar para devolver a elas uma certa alegria. Penso que a solução do problema da moradia, pelo menos nos grandes centros, atuará de forma amenizadora e balsâmica sobre suas feridas cívicas”

Carta de Sandra Cavalcanti, futura presidente do BNH, a Castello Branco, revelando quais as intenções que movem o Estado na criação do programa de habitação popular durante o Regime Militar. (USINA, 2012) 61

Após o fracasso na tentativa de apaziguar a iniciativa combativa da população de baixa renda - as habitações do BNH foram destinadas, majoritariamente, à classe média - e duas décadas de repressão violenta do Regime Militar, os trabalhadores urbanos percebem que num país de capitalismo baseado em baixos salários é importante ampliar o embate político para além da relação salarial, sem, é claro, abandoná-la. É nesse contexto que surge o novo sindicalismo no ABC paulista e o Partido dos Trabalhadores (PT). Como que por consequência da repressão sistemática como política de estado, houve uma desidentificação dos trabalhadores para com o Governo. Esses trabalhadores organizados inauguram o questionamento do Estado como lugar e instrumento privilegiado das mudanças sociais. Por sua vez, os arquitetos que estavam em sindicatos, universidades e na fundação do PT se articulam para retomar a luta pela reforma urbana, ao lado dos movimentos populares. No início dos anos 1980 surgem as primeiras organizações de luta pela moradia e reforma urbana: a Central de Movimentos Populares (CMP), a Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam) e a Articulação Nacional de Solo Urbano (Ansur). A combatividade dos movimentos sociais trouxe à tona a questão da falta de moradia para o resto da população através de manifestações e ocupações. Junto aos arquitetos e urbanistas, foi elaborado em 1988 a Emenda Constitucional de Iniciativa Popular de Reforma Urbana que devido à mobilização dos trabalhadores contou com 160 mil assinaturas de todo o país. Apesar da pressão feita pelos movimentos sociais, os artigos da Constituição Federal dedicados à reforma urbana ficaram 13 anos sem regulamentação. Somente em 2001, após diversas modificações, a Emenda popular foi aprovada como o Estatuto da Cidade (FEDERAL, 2001). Além dos três principais pontos - função social da cidade e da propriedade urbana, direito à cidade e à cidadania e gestão democrática das cidades -, o Estatuto da Cidade abarcava, pela primeira vez, instrumentos urbanisticos como: demarcação de ZEIS (zonas especiais de interesse social); OP (orçamento participativo); IPTU progressivo no tempo para propriedades ociosas; além de uma série de instrumentos de democratização da gestão urbana, contemplando a reivindicação dos movimentos sociais na participação nos processos decisórios sobre o espaço urbano.

Figura 2- Empreendimento tipico do MCMV. Fonte: http://itaberabanoticias.com.br

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Considerada um dos principais marcos da luta pela reforma urbana no Brasil e uma das leis mais progressistas do mundo, a conquista do Estatuto das Cidades somada a recém chegada do Partido dos Trabalhadores à presidência - mandato do Lula -, fez com que o início dos anos 2000 fosse cercado por um clima de otimismo na luta pela reforma urbana. Anos 2000 - governo do PT Em 2002 o PT tem seu primeiro mandato na presidência da república. Após uma série de derrotas acirradas desde o início do voto direto, o Lula anuncia a “Carta aberta ao povo brasileiro”, com o propósito de acalmar o mercado financeiro, ou seja, garantia de governar segundo princípios econômicos frente à crise causada pelo endividamento externo do país, e de que não faria grandes reformas estruturais. Aparentemente, conquistada a parcela que faltava, o PT conseguiu, enfim, ganhar a eleição. Após um primeiro mandato embasado em políticas sociais de distribuição de renda, no segundo mandato do PT é anunciado o programa Minha Casa Minha Vida, objetivando a meta de construção de 3 milhões de moradias por todo o país. No entanto, o programa pouco contemplou a camada da população com renda de 0 a 3 salários mínimos. De fato, seu propósito era o resgate financeiro para o mercado da construção civíl que sofria com a crise global de 2008. Nos anos seguintes o que vimos foi o aumento acelerado dos lucros das grandes construtoras e empreiteiras (figura 2). Dentre as habitações construídas através do MCMV, nota-se que o Estatuto da Cidade foi ignorado, assim como o Ministério das Cidades, que não pode interferir na elaboração do plano. Ou seja, trata-se de um plano econômico, elaborado pelo Ministério da Fazenda e da Casa Civil, de privatização da política habitacional. A relatora das Nações Unidas para o direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik, reportou à Assembléia Geral da ONU em 2012, que a tendência global de privatização da habitação popular subsidiada pelo governo nas mãos de empreendedores motivados mais por incentivos de mercado do que por aspectos sociais da habitação “tem contribuído para uma ampla bolha nos preços dos imóveis e uma diminuição do poder de compra, e tem feito muito pouco para promover o acesso à moradia adequada a preços acessíveis para os mais pobres”. Bairros de grande escala são construídos distantes das cidades, com casas de 35m² segundo o genérico “uso das camadas populares”. De certo, não há espaço para urbanistas e arquitetos no planejamento destes. A pauta da Reforma Urbana, assim como outras reformas estruturais, aparentam não estar nos planos do governo. Muitos dos movimentos sociais que compunham a base aliada do PT, por sua vez, deixaram de ser combativos. Grandes quadros e líderes de movimentos agora possuem cargos na administração pública, fazendo com que as manifestações políticas destes movimentos diminua drasticamente, como no caso do MST e da CUT. Novamente o Estado se demonstra, em sua aparência, oposto aos interesses dos movimentos sociais por reformas radicais, e sim, favorável a manutençãoda ordem social vigente. Atualmente o Brasil vive uma nova dinâmica econômica: obras urbanas de todos os

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tipos, no campo, a expansão do agronegócio. As cidades que estão sendo construídas com aplicações e recursos privados e realizações de obras incongruentes são cada vez mais inviáveis e inabitáveis. Contudo, são estas grandes obras urbanas, cujos canteiros são principais focos de extração de mais-valia, estão mais uma vez na base do novo “milagre econômico” brasileiro. Ao mesmo tempo, as grandes reformas que os movimentos de moradia pautavam, onde a cidade é o palco da luta popular e de sua ação direta, parecem ter sumido. A autogestão territorial pela classe trabalhadora, produzindo cidades melhores e mais justas, tornando o urbano um lugar de vida em vez de mercadoria, fez parte de um momento histórico que parece declinar sem ter cumprido todas as suas promessas. Hoje a autogestão e sua organização em movimentos sociais é rara no imaginário da classe trabalhadora. As possibilidades, em São Paulo, de ação, como arquiteto, contra a ordem social vigente, se tornam cada vez mais difíceis. Para avaliação destas, analisaremos o programa Minha Casa Minha Vida - Entidades e as ações diretas do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) em São Paulo. São Paulo: de 1990 até hoje Após a primeira experiência de construção de habitações por mutirões autogeridos no mandato do PT em 1989, essa prática foi colocada na ilegalidade pelas seguintes prefeituras conservadoras - Maluf (PDS) e Pitta (PPB) -, acarretando na paralisação de obras e na diminuição de Assessorias Técnicas de arquitetos trabalhando junto aos movimentos sociais. Assessorias Técnicas em atividade no início da década de 90 em São Paulo . ABA – Associação Benemétrica e Abrigo . AD – Assessoria em Habitação aos Movimentos Populares - 1989 . AMBIENTE – 1992 . APOIO – Associação Profissional de Apoio ao Movimento . CAAP – Centro de Assessoria e Autogestão Popular – 1990 . CASA – Assessoria Técnica – 1990 . CEPO . CO-OPERA-ATIVA . Espaço de Formação, Assessoria e Documentação . GAHMA – Grupo de Assessoria a Movimentos Populares – 1987 . Núcleo de Arquitetura . Oficina de Habitação – 1990 . PEABIRU – 1993 . SCS – Assessoria a Movimentos Populares . Sociedade Comunitária Habitacional PRÓ-FAVELA

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. TETO – Assessoria a Movimentos Populares – 1989 . UNICAMP – Laboratório de Habitação – 1986 . URBI – Assessoria Habitacional aos Movimentos . USINA – Centro de Trabalho para o Ambiente Habitado - 1990. Hoje, as Assessorias em atividade são: Ambiente, USINA, Peabiru, Fábrica urbana, Integra e Brasil Habitat. Somente no governo de Marta Suplicy (PT), de 2001 a 2005, que as obras em mutirão puderam ser retomadas e concluídas. Atualmente, o trabalho de arquitetos junto aos movimentos sociais se da através do programa federal Minha Casa Minha Vida - Entidades, elaborado em 2009 e em constante modificação. O programa MCMV-Entidades funciona por meio da concessão de financiamentos a beneficiários organizados de forma associativa por uma Entidade Organizadora – EO (Associações, Cooperativas, Sindicatos e outros), com recursos provenientes do Orçamento Geral da União – OGU, aportados ao Fundo de Desenvolvimento Social – FDS. Atualmente, corresponde a 3.65% de todas as construções do programa MCMV (Tabela 1).

Tabela 1- Produção do MCMV até Março/2013, nas regiões Metropolitanas de São Paulo e Campinas- SP

Com este programa habitacional popular, os movimentos de moradia podem optar por construir em regime de mutirão autogerido com assessoria técnica de arquitetos, conceber o projeto com a assessoria e construir contratando uma empreiteira, ou contratar a empreiteira para projetar e executar. Para todas as opções anteriores, o subsidio do governo é satisfatório - paga-se o correspondentes a 10% da renda familiar mensal bruta do beneficiário, ou R$ 50,00, o que for maior. 7. O movimento dos trabalhadores sem-teto Neste capítulo, analisaremos a atuação do Movimento dos Trabalhadores Sem- Teto (MTST) a fim de subsidiar a tese levantada por este artigo. Para tal, nos ateremos principalmente ao contexto paulistano, no qual o movimento ganha nos últimos anos rele-

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vância no cenário político. Ainda assim, estudos de caso levantados por DOS SANTOS (2012), CASTILHO (2010) e DAL’BÓ (2013), de distintas atuações do movimento trazem importantes contribuições quanto a metodologia de atuação do movimento, suas dificuldades e suas perspectivas a atuação do arquiteto. Faz-se necessário, primeiramente, justificar a escolha deste movimento social em específico. O MTST surgiu em 1997, de dentro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que julgou importante a criação de uma frente de luta nas cidades. Não possui uma única bandeira de luta, apenas a do acesso à moradia, e faz “uma crítica mais ampla da sociedade brasileira e dos seus mecanismos políticos e econômicos de reprodução das desigualdades. [tendo como principais alvos:] a especulação imobiliária, o abandono de prédios e terrenos públicos e a falta de políticas habitacionais consistentes” (CASTILHO, 2010). Assim, como aponta DOS SANTOS (2012), é um movimento de pautas imediatas e ao mesmo tempo, estruturais/conjunturais, o que os diferencia de boa parte dos movimentos sociais, e aumenta sua potencialidade transformadora. Ainda, na maioria de seus posicionamentos, como mostrado pelos estudos de caso dos autores, mantém autonomia política em relação ao Estado, não tendo adotado à tendência de filiação às bases governamentais que descrevemos nos itens anteriores. Como afirma DAL’BÓ (2013): “Além de deter a juventude de seu tempo, seu posicionamento e escolha por situar-se fora de conselhos e demais estruturas governamentais de caráter participativo e deliberativo, tão comuns nas recentes políticas públicas nacionais, lhe garantem a não sujeição direta à influência da rotina governamental, prenunciando desta forma uma rotina que se pretende desvinculada do contato direto com a rotina de negociação e gestão dos governos”

Pelo contrário, muitas vezes embate-se com o Estado, interpelando-o como estrutura de poder capitalista, uma vez que age pela manutenção da ordem social, e portanto do próprio sistema capitalista vigente. Tal situação mostra-se clara nas diversas vezes em que o Estado (e o poder Judiciário) toma decisões a favor da propriedade privada nos processos de reintegração de posse e utiliza o aparato policial para tais atos, por mais que contradiga a constituição no que tange à função social da propriedade garantido

Figura 3- Manifestação de Junho de 2013 contra o aumento das passagens. Fonte: http://pco.org.br

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pelo Estatuto da Cidade (FEDERAL, 2001), direito mais essencial que a propriedade privada. É portanto um movimento popular de organização coletiva que age, nas suas ocupações em terrenos ociosos, pela disputa e construção do território da cidade, sendo um dos principais movimentos de luta pelo direito a cidade no país. Goza de autonomia suficiente para agir além dos interesses do mercado e da institucionalidade estatal, campo este pouco explorado pelos diversos segmentos profissionais, dentre os quais a própria arquitetura e principalmente, o planejamento urbano. O atual cenário político da cidade de São Paulo e a atuação do movimento Após declarado o aumento das passagens de ônibus na cidade de São Paulo em junho de 2013, uma série de manifestações tocadas pelo Movimento Passe Livre (MPL) mobilizaram milhares de pessoas às ruas a fim de reivindicar a revogação do aumento, que após numerosas passeatas (figura 3), obteve êxito. A última delas foi expressiva, contabilizando centenas de milhares de pessoas, de grande aceitação da opinião pública e também da mídia. Inegável é que, após tal jornada, o número de manifestações e passeatas populares aumentaram significativamente na cidade de São Paulo. A conquista de uma pauta através da participação política direta abriu novas perspectivas e remodelou o cenário político da cidade. Muito se esperava, porém, ao que estaria por vir no ano seguinte, com a Copa do Mundo da FIFA se realizando em diversas capitais brasileiras, visto que muitas pessoas já expressavam sua indignação para com o evento. O que se viu, no entanto, foi o desproporcional policiamento e uma intensa repressão de qualquer manifestação popular que ousasse ultrapassar os limites de alguns quilômetros dos estádios, sob o argumento da “ordem pública”. O ano de 2014 foi protagonizado pelo MTST no que se refere às lutas urbanas. Diversas e numerosas manifestações se realizaram durante todo o ano, e uma ocupação estrategicamente localizada próximo ao Itaquerão evidenciou-se, chamada Copa do Povo, em um terreno de posse de uma grande construtora. O aumento da visibilidade do movimento expressa-se claramente ao analisarmos a quantidade de matérias veiculadas no jornal Folha de São Paulo (Tabela 2). Após inúmeros debates com o poder público, o movimento conseguiu com que a ocupação fosse regulamentada pelo Plano Diretor Estratégico da cidade, em discussão na época, para a produção habitacional no local. Além de ser um importante instrumento na provisão do direito à cidade, o plano favorecia ainda outras quatro ocupações do movimento, o que fez com que o MTST pressionasse a aprovação do documento, que recebia grande resistência por parte da oposição do governo na câmara. Por fim, com a

Tabela 2- Matérias de jornal na Folha de São Paulo com a palavra “MTST”.

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Figura 4 e 5- Ocupação da câmara pelo MTST. Fonte de ambas as fotos: http://veja.abril.com.br

ocupação da câmara dos vereadores durante a votação de aprovação do plano, ele fora aprovado, resultando uma grande vitória ao movimento (figura 4 e 5). Esse episódio nos mostra um processo de reivindicação popular ao direito à moradia e do direito à cidade, independente do poder público, que obteve êxito. Pelo contrário, como apontamos anteriormente, foi através do embate direto com a institucionalidade que se resultou as conquistas do movimento neste episódio. Na postura do movimento, o Estado não é “inimigo” e muito menos defende-se o seu fim, como aponta PINHEIRO (2008), mas “afirma-se sua necessidade e exige que ele cumpra as funções de sua competência”. Ressaltamos este acontecimento de grande relevância no cenário do planejamento urbano da cidade, e que aparentemente não envolveu a figura de arquitetos urbanistas, que estavam majoritariamente no papel do poder público, por mais que concordassem e legitimassem as reivindicações do movimento, em uma evidente limitação da ação institucional. Além disso, o principal método de atuação do movimento é a ocupação de um terreno para a posterior provisão pública de habitação (no local ou não), o que no período atual se faz basicamente pelo programa MCMV Entidades. O arquiteto, neste processo, atua na maioria das vezes longe da zona de conflito direto, uma vez que a etapa do projeto de loteamento sucede a ocupação e regularização do terreno, na qual muito provavelmente ele não estava inserido. Assim, atua em favor a luta do movimento, bem como se estruturavam as acessorias dos anos 90, dadas suas individualidades. Por fim, o nicho de atuação descrito por DAL’BÓ, (2013), na qual ele mesmo era o profissional junto a uma acessoria, mostra-se uma possibilidade pouco usual, na qual relaciona-se diretamente com a direção do movimento, antes mesmo da ocupação. Por um lado, configura um cargo de extrema confiança ao movimento, e portanto, exige comprometimento assemelhável ao do militante, e por outro, abre possibilidade a diversas atuações do arquiteto, como a escolha do terreno (analisando quais possuem dívida com o poder público), o planejamento da ocupação (importante na construção dos espaços de convivência) e a participação em discussões sobre da ocupação com diversos agentes (proprietário, poder público, Ministério Público, polícias). Configura relação mais intrínseca do profissional com o movimento ao mesmo tempo que o imbui de grande responsabilidade.

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Conclusão Atualmente, percebe-se a alteração na correlação de forças dos movimentos sociais frente a prefeitura de São Paulo. O MTST demonstrou, ao longo dos últimos anos, sua capacidade de influência na tomada de decisões a respeito de questões referentes à políticas de habitação e de planejamento urbano por parte da prefeitura. No entanto, a atuação do arquiteto como assessor, militante ou intelectual orgânico junto aos movimentos de moradia parece ser cada vez menor. Devido a construção histórica da relação de esperança nos partidos progressistas de esquerda, sobretudo o PT, que estes realizariam as grandes reformas como a reforma urbana, muitos dos arquitetos abriram mão da relação direta com a classe trabalhadora. Por certo, pouco se debate hoje, entre arquitetos e urbanistas, em uma possível reforma urbana, mas sim em instrumentos pontuais que possam frear, de algum modo, a produção da cidade pelo mercado imobiliário. Antes, o mutirão e a reforma urbana, como ações dos trabalhadores tomando em suas mãos a transformação da vida e da cidade, eram símbolos do projeto democráticopopular, principalmente em São Paulo. Hoje, a sociedade de mercado e um “capitalismo popular” parecem ser a nova promessa de ascensão social (USINA, 2012). Dessa forma, parecem ser cada vez menores e mesmo residuais os espaços para o aprofundamento de práticas autogestionárias e antimercantis na produção da cidade. As soluções para os conflitos de classe na cidade parecem ser buscadas, pelos arquitetos e urbanistas, somente em políticas públicas. No entanto, não é novidade que o cenário não aparenta melhora: o déficit habitacional pouco se altera em décadas¹ ; a violência urbana aumentou², assim como o número de mortes de moradores de favelas por parte da polícia³; o transporte urbano parece estar a beira de um colapso4; a qualidade da maioria das habitações sociais, assim como os bairros que se criam com a construção em massa destas, não condiz com a dívida que se cria por parte da população, mas sim com o lucro das empreiteiras que as constroem. É preciso reconhecer que estamos diante da necessidade urgente de reinventar as formas de lutas, táticas e estratégias para a construção de uma cidade igualitária. É tarefa de todos nós, arquitetos e urbanistas, que reconhecemos as incongruências desse novo ciclo neo-desenvolvimentista, que promove uma catástrofe urbana, social e ambiental, nos mobilizar tanto para compreender o que mudou e o que permanece no Brasil, e em São Paulo, quanto para descobrir como restituir o sentido da transformação social, em direção a uma sociedade mais justa e solidária. Há aqui um vislumbre de possibilidades de ação junto ao povo que constrói a cidade, a faz funcionar, e dela é vítima. O programa MCMV-Entidades pode não significar um amplo nicho de atuação, nem o mais eficiente, conforme foi descrito. Porém pode re-aproximar os arquitetos e urbanistas ao povo organizado, e retomar assim a luta por autogestão das cidades. Talvez, com a reaproximação, seja possível propor formas de como os arquitetos podem contribuir para que, junto aos movimentos sociais, façam-se reformas estruturais no funcionamento da cidade.

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Notas (1) Pesquisa IPEA 2013 - pequena diminuição no déficit habitacional (visitado em 13/01/2015): http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=20656, (2) http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-07/p-2brasil-viveu-aumento-edisseminacao- da-violencia-segundo-mapa-da-violencia (visitado em 13/01/2015) (3) http://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/violencia-urbana-homicidiosno- brasil-superam-numeros-de-paises-em-guerra.htm (visitado em 13/01/2015) (4) http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/05/sp-bate-recorde-historico-com-344-km-de-viascongestionadas- diz-cet. (visitado em 13/01/2015)

Referências ARANTES, P. F. Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões. [s.l.] Editora 34, 2002. CASTILHO, C. J. Possibilidades de garantia do Direito à Moradia: A experiência da ocupação Josué de Castro- Entre as dificuldades e a esperança da construção de um novo território! Revista de Geografia (Recife), v. 27, n. 1, p. 58–81, 2010. DAL’BÓ, A. Luta social e a produção da cidade. Instituto de Arquitetura e Urbanismo USP, mestrado, São Carlos, 2013. FEDERAL, S. Estatuto da Cidade. Guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília, 2001. OLIVEIRA, F. DE. O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil. Novos estudos-CEBRAP, n. 74, p. 67–85, 2006. PINHEIRO, J. De frente para o Estado. Lutas Sociais, n. 19/20, p. 39–52, 2008. RONCONI, R. Habitações construídas com gerenciamento pelos usuários, com organização da força de trabalho em regime de mutirão: o programa FUNAPS comunitário. Escola de Engenharia de São Carlos USP, mestrado, São Carlos, 1995. SANTOS, O. A. A. DOS. Movimentos Sociais Urbanos e Geografia: algumas notas à compreensão da realidade do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST/PE). Revista Movimentos Sociais e Dinâmicas Espaciais, v. 1, n. 1, p. 32–61, 2012. USINA, C. Reforma urbana e autogestão na produção da cidade: história de um ciclo de lutas e desafios para a renovação da sua teoria e prática. Gestão pública e sociedade: fundamentos e políticas públicas de Economia Solidária. São Paulo: Outras Expressões, v. II, p. 81–119, 2012.

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artigo

A premeditada espontaneidade do morar : reflexões sobre a criação de um modo de vida e suas implicações na cidade infor mal

Mariana Caires Souto Taís Baena Genovez

O presente artigo propõe compreender o significado do termo “interesse social” no que tange a habitação, para assim entender qual é o papel que ela representa na lógica urbana das cidades, especificamente da cidade de São Paulo. Pretende analisar o contexto em que o conceito de habitação de interesse social surgiu na Alemanha de Weimar, conjuntamente com uma nova cultura da habitação e uma resignificação do morar, intenta-se compreender de que maneira este conteúdo foi assimilado por arquitetos e planejadores urbanos que atuaram em São Paulo. Ademais, introduz-se uma discussão acerca da configuração deste modelo moderno proposto, o qual apresentava a habitação como grande articuladora, e de que forma tal modelo, representante do pensamento de uma época, foi conivente e contribuiu com a ocultação da crescente forma e cultura de morar da cidade informal. palavras-chave: habitação de interesse social, modernismo, morar, cidade informal. 71

1. Introdução O artigo que segue é um produto de discussões realizadas durante a disciplina “História do Urbanismo Contemporâneo” ministrada no 6° semestre da FAUUSP, na qual temas como a habitação foram abordados sob a perspectiva da cidade. Através de bibliografia complementar levantada para o propósito de sanar inquietações que surgiram nas aulas e em leituras, chegou-se à lacuna de produções que vinculem a atual situação habitacional da cidade de São Paulo à construção histórica dos termos “habitar” e “habitação social”. Tais termos são explorados e contestados a partir de sua concepção inicial e de sua assimilação atual e engessada no município. Estas discussões tangenciam inevitavelmente, entre outros, temas de inegável importância para o entendimento dos termos mencionados, desde a concepção de uma nova “cultura do morar”, introduzida na República de Weimar até sua apropriação pelos planejadores paulistas e, enfim, sua conseguinte absorção pelos interesses privados e públicos, cá onde se misturam. Adotando os termos “habitar” e “habitação social” como objeto de estudo, busca-se emergi-los do debate virtual e teórico e aproximá-los à realidade. É neste ponto que localizamos um problema-chave: encontrar quando e como o pensamento moderno paulista estava enganado ou ludibriado na “busca idealizadora da unidade e da totalidade do urbano” (MARICATO, 1995, p.10), sendo assim cúmplice do crescimento desenfreado da cidade informal em São Paulo, ao longo da segunda metade do século XX. Enquanto sofisticadas propostas que reformulavam a prática do “morar” e do “habitar” a casa e a cidade eram associadas à ineficazes políticas públicas de combate ao déficit habitacional, a verdadeira revolução habitacional acontecia nas periferias, nem sempre distante, mas impreterivelmente velada, oculta. E assim permaneceu por muito tempo, ilegal. Porém, para dar continuidade a esta discussão e evitar anacronismos, é necessário que nos voltemos às origens das reflexões acerca do “morar”, e é até necessária uma digressão ao início da industrialização de São Paulo para entender como se deu seu processo de urbanização e crescimento demográfico através do território. 2. A reformulação do morar / o surgimento do conceito de habitação social O conceito de habitação de interesse social origina-se em decorrência da expansão e do inchaço demográfico das cidades. Após a Revolução Industrial o êxodo rural atingiu limites nunca antes vistos. Milhares de pessoas migraram do campo para as cidades à procura de emprego, resultando em uma concentração urbana que não acompanhou o número de habitações existentes. As habitações operárias que estavam sendo concebidas reforçavam a lógica do sistema vigente. Foram projetadas buscando a rentabilidade máxima do espaço habitável. Eram unidades insalubres, muitas delas sem ventilação ou iluminação adequadas, compostas por um cômodo e uma cozinha, que chegavam a acomodar até seis pessoas em apenas um ambiente, como relata Anatole Kopp em “Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa”. 72

A condição de vida do proletariado, essa nova classe que surgia com existência das cidades, era degradante e muito frágil. Trabalhadores esses, que enfrentavam jornadas de trabalho de 12 horas e que não encontravam condições dignas de moradia. “Tais condições de vida levaram, desde antes da primeira guerra, a classe operária alemã e uma parte dos empregados e funcionários a se organizarem no plano político e sindical”. (KOPP, 1990) O Partido Social-Democrata se organizou então, de modo a reivindicar não apenas melhores condições de trabalho, mas também melhores condições de vida e habitação. Em todo o país são criadas cooperativas de construção de habitações. “Toda a vida operária é assim enquadrada em um tecido de organizações mutuais e cooperativas que a protegem de certas dificuldades e conflitos da existência, permitindo ainda a cada um de seus membros desenvolver-se profissional, física e intelectualmente; assim, constitui-se no interior da sociedade existente, como que uma contra-sociedade...”(KOPP, 1990) É no pós-guerra, no início dos anos 20, que propostas mais concretas são idealizadas por intelectuais da arquitetura, as vilas operárias denominadas Siedlungs. São construções que conjugaram os ideais dos militantes operários com a dos militantes das artes de vanguarda. Grandes conjuntos habitacionais que propunham a facilidade nas trocas e contatos entre os habitantes, com equipamentos coletivos complexos como ginásios, creches, cozinhas e lavanderias comunitárias. A unidade habitacional erapensada de maneira a facilitar a vida dos moradores. O estudo da ergonomia possibilitou arranjos concisos e funcionais. Além disso, os conjuntos representavam um organismo seguro contra a cidade hostil. Essa nova concepção do morar que emergia, foi discutida no segundo congresso do CIAM em Frankfurt em 1929 com o tema da “habitação mínima”. A questão não se limitava apenas ao campo projetual e econômico, (preço dos alugueis) mas a uma nova maneira de viver, de habitar. Esse novo modo de vida demandava um novo usuário alinhado a essa nova sociedade que se almejava, “organizada e planificada” (KOPP,1990). A preocupação dos arquitetos com os aspectos técnicos e funcionais estava acima das preocupações com o aspecto estético das construções. A forma era resultado do processo racional, expressão das intenções de projeto e do programa de necessidades. Os cinco pontos da arquitetura posteriormente postulados por Le Corbusier não exprimem as reais intenções dos arquitetos alemães, que não partiam da forma e sim das ideologias. Decorre então dessa época, anos vinte e trinta, uma revolução no campo arquitetônico. A escassez de habitação demandou novas soluções de projeto em um contexto completamente novo, o pós Revolução Industrial. Se os falanstérios de Fourier preconizaram o modelo de conjuntos habitacionais horizontais coletivos altamente adensados, foi graças aos avanços tecnológicos e o emprego de novos materiais, que os grandes conjuntos habitacionais verticais modernos puderam ser pensados e concebidos. Proposta que se alinhava perfeitamente a demanda por habitação: conjuntos autossuficientes que reuniam padrões mínimos de qualidade aos moradores com equipamentos institucionais e infraestrutura, inaugurando dessa maneira, um novo morar. Entretanto, esse modelo de habitação que pressupunha um novo usuário desconsiderava as nuances psicológicas intrínsecas a cada individuo e assumia dessa maneira que as pessoas poderiam ser afetadas pelo espaço que elas ocupassem, produzindo comportamentos desejados (SMITH, 1998). O cenário idealizado aos operários, uma 73

vida longe da cidade imunda e fétida, em comunidade, com relação de harmonia com a natureza, não foi bem sucedido, pois consistia na ideia de comunidade como meio de negar a ideia de história, onde a sociedade seria diferente do que esperava ser no passado (SENNETT, 1970). Dessa maneira, a arquitetura acabou reforçando as diferenças sociais, pois separava a classe operária de baixa renda das demais emconjuntos sem relação com as pré-existências, em desconexão com a estrutura urbana consolidada. Espaços físicos desenhados como predecessores dos espaços sociais. A habitação operária, nesse sentido, contribuiu para a construção de um significado ao termo “habitação de interesse social”, amplamente difundido nos dias de hoje, por ter sido a primeira experiência projetual em habitação dos representantes da arquitetura moderna. Discorremos mais adiante acerca da significação que a aplicação do termo “interesse social” implica, porque entendemos que uma compreensão sobre esse significado elucida as ações públicas e privadas no que diz respeito às políticas de atuação no campo da habitação. 3. O contexto da expansão urbana de são paulo: hegemonia da lei do mercado Desde as primeiras décadas do século XX, São Paulo já se apresentava como um importante entremeio de rotas comerciais entre o Porto de Santos e a Província, pelo qual era escoada a produção cafeeira. Por esse motivo, muitos estrangeiros foram atraídos ao local no anseio de trabalhar nas lavouras recentemente desprovidas de sua mão de obra escrava. Muitos deles acabaram ficando na capital, enquanto o fluxo migratório se mantinha ativo até meados das duas primeiras décadas do século XX. Neste período, estabeleceram-se bases para a industrialização da cidade, que atingiu seu auge na década de 30. Precisamente neste momento, mudanças de grande impacto na formação do território urbano se iniciaram. Então, os trabalhadores da metrópole ainda podiam pagar por habitações em bairros como o Bixiga, a Mooca ou Belém. Porém, com uma expressiva redução do salário real no início de 1930, aliada à recente resignificação do solo urbano (que deixa de ter caráter utilitário para se tornar um objeto de ações econômicas muito maiores do que seu valor de uso) e à nova prática da especulação, deu-se início ao crescimento periférico da cidade. Inaugurou-se uma nova forma de produção do território urbano: a expansão periférica gerou vazios e uma baixa taxa de ocupação do solo, ambos promovidos pela especulação, e contribuiu drasticamente para a ineficiência do transporte público, do saneamento e de todos os outros serviços públicos, fator que teve grande impacto na “deterioração do habitat urbano” (BOLAFFI, 1982). A esta altura, as mudanças no padrão de habitação e na paisagem urbana da cidade eram evidentes, na medida em que potentes centralidades financeiras se formavam e os conglomerados de habitações para a baixa renda eram representados por cortiços e favelas na periferia geográfica da cidade. Na década de 50, já com reduzido fluxo de imigrantes, mas em plena etapa de industrialização, São Paulo começou a atrair migrantes de outras regiões do país, processo muito impactante para a efetiva explosão populacional nas periferias. 74

Neste período de intensa industrialização (de 1930 a 1980), podemos dizer que São Paulo se urbanizou pelo “binômio crescimento e pobreza” (MARICATO, 1995, p.5), representado pelo preocupante agravamento da disparidade da distribuição de renda entre ricos e pobres, o que inevitavelmente suscitou um desenvolvimento territorial excludente que estigmatiza a cidade até hoje. A população, as autoridades e os planejadores testemunharam, década a década, o problema se tornar um mal crônico. As primeiras iniciativas de combate ao crescente déficit habitacional aparecem na década de 50 com a produção de habitação popular através dos IAP’s, da CECAP e da Fundação da Casa Popular. No entanto, é durante o regime autoritário que o país concentrou a maior soma de recursos para o “problema da habitação”. Em 1964 é criado o Banco Nacional de Habitação (BNH) e o Sistema Financeiro da Habitação (SFH). Porém, como poderá aferir-se mais a frente, a repentina escalação do “problema de habitação” como uma das prioridades do país, digna de receber imensas somas de recursos do recém-criado Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (o qual continua até hoje a ser a principal fonte de financiamento para políticas habitacionais), não passou de um grande “artifício político formulado para enfrentar um problema econômico conjuntural” (BOLAFFI, 1982). Tal problema econômico conjuntural se tratava das pressões inflacionárias que estavam castigando a população e freando o prometido desenvolvimento do país. O governo, assumindo o compromisso de conter a inflação, precisava de soluções que não agravassem a situação econômica já muito comprometida. A grande saída encontrada uniu interesses do governo e da iniciativa privada. Projetar o “problema da habitação” a uma escala nacional tinha o apelo popular que garantia o apoio das massas, não somente pelo real déficit habitacional da época, mas também pelo grande (e artificial) aquecimento do setor da construção civil, que abarca setores da indústria e de serviços. “(...) Esperava-se estimular a produção mediante um amplo plano governamental de construção de residências populares, que ao mesmo tempo incentivaria indústrias básicas, fornecedoras da construção civil, e daria saída ao problema social representado pela aguda carência de habitação nas cidades...”. (BAER, Werner, A Industrialização e o Desenvolvimento Econômico no Brasil, F.G.V., Rio de Janeiro, 1966. p. 201)

O início da operação do BNH foi marcado por ações que transmitiam suas funções para o setor privado. Novos mecanismos de transferência de encargos foram criados, beneficiando agentes privados intermediários. Esses mecanismos se tornaram tão intrínsecos à lógica habitacional e do planejamento que, até meados da década de 80, os municípios que precisassem elaborar planos urbanos só podiam se candidatar a um empréstimo se a tarefa de elaboração destes fosse transferida a empresas privadas. Como pode ser comprovado pela história, a contribuição do BNH para o planejamento urbano não somente traiu suas diretrizes como inaugurou a hegemonia do setor privado na tomada de decisões sobre a localização e à construção das habitações populares no país. Dessa nova relação de poderes, os frutos são edificações de péssima qualidade, situadas em terrenos mal localizados e que forçavam a expansão desnecessária das cidades. Além disso, muitas unidades habitacionais não encontravam compradores porque tinham valores normalmente superiores aos do mercado. A equação termina com o agravamento dos problemas urbanos, fato ao qual não escapou a cidade de São Paulo.

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Com o fim do regime, veio logo o fim do BNH. Entretanto, isso não significou mudanças drásticas na política de habitação. Os governos que se seguiram tiveram uma forte orientação pró-mercado. Dessa maneira, as empresas poderiam promover livremente projetos de habitação social, o que tornou a habitação social um negócio rentável durante a crise econômica da década de 80. O principal critério não era produzir moradia para a população necessitada, mas prover empréstimos para aqueles que podiam pagar relativamente altas taxas de juros (VALENÇA, BONATES, 2010). A dissociação entre o problema da habitação e a política é uma característica de como o governo lida com essa questão hoje em dia e antigamente. Muito disso é culpa da falta de planejamento associada à utilização dos fundos do governo seguindo uma lógica política e econômica, ao invés de social. Todos os programas são organizados e promovidos por autoridades locais ou interesses locais de todas as naturezas. Assim, o sistema depende de demandas que nem sempre vem dos mais necessitados, mas daqueles mais organizados (incluindo o mercado), apesar de novos canais de participação estarem em voga (VALENÇA, BONATES, 2010). Essa recapitulação histórica serve a este artigo com fins de compreender a construção do conceito de habitação popular como ele é conhecido hoje. Duros reflexos do incentivo à parceria público-privada, que como apontado, se traduzia em uma hegemonia do setor privado nas políticas habitacionais, cooperaram para a perpetuação de falsos significados do conceito de habitação popular. Hoje a reboque do panorama econômico e ao sabor das tendências do setor imobiliário, a produção da habitação popular se apresenta como um negócio absolutamente alheio às reais necessidades e realidades às quais as populações de baixa renda de São Paulo estão há décadas, adaptadas a viver. A existência de favelas em quase todas as cidades de médio e grande porte no Brasil nos faz questionar porque ainda elas ainda são condenadas à extinção. A crença no determinismo físico (SMITH, Janet L., 1999) foi uma das principais justificativas para planos e projetos que acreditavam na organização espacial pela heterogeneidade econômica e social de sua população e pela baixa densidade habitacional. Nesta linha de raciocínio, pessoas em situações de crise (como desempregados, analfabetos e excluídos social e racialmente) que tivessem contato com pessoas em situações melhores seriam estimuladas a melhorar de vida. Ignorar problemas sistêmicos que geram a desigualdade e a exclusão social levou o pensamento e a produção da habitação social ao patamar anômalo ao qual se encontra hoje. Para situar o raciocínio acima na história da habitação paulista, servem-nos como exemplo os conjuntos modernos construídos pelo CECAP, como o Conjunto Zezinho Magalhães, no final da década de 60. Acreditando na forma e no desenho como ferramentas capazes de responder a uma demanda social, os arquitetos modernos paulistas contribuíram para a afirmação do determinismo físico que deslegitima a organização espacial e social de favelas. Basta analisar a baixíssima densidade habitacional dos conjuntos construídos na época, que caíam no problema da replicabilidade em escala, além de outros. A questão da densidade populacional é de grande importância quando se discute a qualidade de um espaço urbanizado. É até hoje consenso por grande parte dos arquite-

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tos e planejadores paulistas que um dos principais fatores da deterioração da qualidade de vida nas favelas é sua densidade elevada. Por outro lado, alguns consideram que um conjunto habitacional planejado com uma densidade inferior seria capaz de trazer de volta a salubridade do espaço. Porém, o que justifica zonas de alta densidade existirem no Plano Diretor Estratégico de São Paulo aliadas à uma enfática política urbana de adensamento em áreas dotadas de boa infraestrutura? Por que a densidade só é considerada insalubre nas favelas? Fica claro nestes questionamentos que, mais uma vez, um falso problema vem norteando as políticas habitacionais. A raiz deste problema não recai sobre a alta densidade, mas sim sobre a precariedade de infraestrutura das favelas. Por isso novas áreas urbanas elencadas para receberem grande investimento em infraestrutura no futuro são consideradas eixos de adensamento no PDE. Elas suportariam tal densidade sem permitir a degradação da qualidade de vida. A reflexão aqui colocada, não se restringe apenas a parâmetros técnicos, como a falta de infraestrutura, mas também a questões mais profundas, que dizem respeito a uma negação do modo de vida e da cultura nas favelas. Durantes anos as políticas habitacionais operam da mesma forma, atribuindo a habitação a solução de todos os problemas. Entretanto, não existe um estudo, ou uma tentativa de aproximação do que já está consolidado. Nota-se em diversos projetos de habitação nas periferias de São Paulo uma tentativa de organização espacial completamente desconexa da a malha urbana e da tipologia existente, onde se deduz uma falta de diálogo com os moradores locais. O que aparece nesses projetos é a tentativa de criação de uma comunidade através do espaço físico, dessa maneira desconsiderando-se o espaço social, existente. Desse modo podemos realizar um paralelo com Henri Lefebvre, no sentido que esse modelo nega sua teoria de produção do espaço, onde o espaço é produzido e não existe por si só. Conclusão Diante de políticas públicas de desenvolvimento sempre orientadas pelos ciclos econômicos e de produção, o Brasil apresenta-se até hoje como um país de organização social muito complexa e problemática. Devido a isso, as atuações públicas no setor habitacional sofreram grandes impactos, dado que também foram orientadas pela economia, com o setor privado direcionando na maioria das vezes segundo seus interesses os rumos da habitação no país. No caso de São Paulo, alia-se a essa problemática a influência do Movimento Moderno na arquitetura brasileira e em consequência nas políticas urbanas. Vimos essa influência como prejudicial, pois ela importa fórmulas, formas e conceitos, sem um devido entendimento do contexto em que eles foram produzimos. A exemplo disso, temos os Planos Diretores, alinhados ao movimento moderno e consequentemente a Carta de Atenas, que organizam a cidade em setores e vetores de expansão em vista dos interesses de desenvolvimento existentes (MEDRANO, SPINELLI, 2014). Dessa maneira, apesar dos avanços conquistados no campo da habitação, nota-se uma abordagem que parece não ter evoluído com o tempo. O conceito de habitação de interesse social se apresenta como um paradigma, pois está comumente associado às soluções realizadas pelos arquitetos modernos. Grandes conjuntos habitacionais que negam a cidade por estarem inseridos em uma lógica edifício-lote e não edifício-cidade. 77

Além disso, essa concepção de habitação gera em São Paulo uma cultura de negação da cidade informal, de modo que não se presta a estabelecer uma relação dialógica com ela. O que vemos são projetos completamente desconexos e anômalos. O que nos parece um consenso é que as favelas precisam ser assumidas como parte integrante da dita cidade formal, e que é necessário a criação de políticas de atuação que visem prove-la de infraestrutura e salubridade e não de espaços públicos, de lazer e de moradias aos moldes do pensamento urbano atual, dado que esses espaços são produzimos socialmente através de uma cultura. Em conjunto a isso, é necessária uma resignificação do termo habitação de interesse social, pois a habitação precisa ser entendida e projetada para as pessoas, todas.

Referências Kopp, A. (1990), Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa. Nobel: Editora da Universidade de São Paulo. Maricato, E. (1982), A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Alfa-Omega Maricato, E. (1995), Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. Medrano, L., & Spinelli, J. (2014), Urban polices and projects for social housing in central áreas. The case of Habitasampa competition (São Paulo, Brazil). Habitat International, 42, 39-47. Schimid, C. (2008), Henri Lefebvre´s theory of the production of space: towards a three-dimensional dialetic. In: Space, Difference, Everyday Life: Reading Henri Lefebvre. Routledge. Smith, J. L., (1998), Cleaning up public housing by sweeping out the poor. Habitat International, 23, 49-62. Valença, M. M., & Bonates, M. F. (2010), The trajectory of social housing policy in Brazil: from the National Bank to the Ministry of the Cities. Habitat International, 34, 165-173.

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artigo

A produção habitacional na cidade de São Paulo e o projeto Cingapura nos anos 1990 Fernanda Bárbaro M. Peralta Isabela Belini

Durante a gestão de Paulo Maluf na prefeitura de São Paulo, entre os anos de 1993 e 1996, foi intensa a produção de moradias populares na forma do Projeto Cingapura. Voltado à urbanização e verticalização de favelas, o projeto foi responsável pela construção de mais de 13.400 unidades habitacionais (até o início dos anos 2000), configuradas em edifícios de apartamentos. O projeto previa a implantação de sistemas de saneamento básico, a instalação de redes de energia elétrica e de iluminação pública, e melhorias numa série de equipamentos públicos. Para que o projeto tivesse início, no entanto, a prefeitura paralisou as experiências de autoconstrução de moradia coletiva, os mutirões, que ganharam força na gestão anterior, de Luiza Erundina. Soma-se a isso o fato de que as análises posteriores do Projeto Cingapura admitem que foi pouca a reflexão em torno do processo de reurbanização e de revitalização das áreas contempladas. Os edifícios habitacionais foram construídos sobre o mesmo terreno em que antes estavam as favelas e os assentamentos irregulares; as condições físicas da área nem sempre eram apropriadas a esse tipo de intervenção, e hoje diversas áreas do projeto sofrem com problemas como contaminação do solo. A imposição do projeto também é uma crítica que pode ser feita, com pouco ou nenhum envolvimento da comunidade contemplada no processo produtivo, atuando de maneira quase contrária à lógica proposta pelos mutirões da gestão anterior. Através de consultas a artigos científicos, a projetos excecutivos e de uma pesquisa histórica e bibliográfica, este artigo pretende traçar um histórico da produção habitacional na cidade de São Paulo, dando atenção especial aos mutirões e ao Projeto Cingapura, elencando de forma mais detalhada os problemas enfrentados por este último e as razões que levam às suas críticas. Por fim, pretende-se fazer uma avaliação crítica do projeto e do que ele se propunha a fazer, no sentido de identificar se os objetivos pretendidos foram de fato alcançados e quais os motivos que levaram a isso. palavras-chave: projeto Cingapura, conjuntos habitacionais, habitação social, produção habitacional, urbanismo em São Paulo.

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1. Precedentes históricos: as políticas habitacionais no Brasil Uma das primeiras iniciativas em relação às habitações de interesse social foi a do político conservador alemão Victor Aimé Huber que, juntamente com o arquiteto C. A. Hoffman, fundou em 1847 a primeira sociedade pública de Berlim para a construção cooperativa de moradias destinadas à classe trabalhadora. Baseada na ideia de resolver o problema habitacional do proletariado industrial através da produção de moradias em larga escala, em forma de conjuntos habitacionais, agrupando unidades familiares em bairros próximos aos centros urbanos equipados com serviços sociais básicos, a iniciativa introduziu um padrão exemplar de projeto habitacional (o Siedlungen), constituído de empreendimentos habitacionais localizados em torno da cidade e ligados aos locais de trabalho por meio de modernos sistemas de transporte. No Brasil, uma das primeiras manifestações públicas em relação à provisão de habitação de interesse social destinada à população de baixa renda foi a criação da Fundação da Casa Popular (FCP), durante o governo do presidente Eurico Gaspar Dutra, em 1946, proposta levada pelo então deputado Juscelino Kubitschek. Seu principal objetivo era “(...) proporcionar a brasileiros, ou estrangeiros com mais de dez anos de residência no país ou com filhos brasileiros, a aquisição ou construção de moradia própria, em zona urbana ou rural” 1 A produção da FCP não atendia aos critérios de localização ou das necessidades específicas de cada região ou cidade, e sim dos interesses políticos obtidos por meio de sua produção. Segundo Azevedo e Gama de Andrade, as atribuições da FCP refletiam a percepção de que não era possível enfrentar o problema de moradias sem atacar os entraves representados pela ausência de infraestrutura física e de saneamento básico. “(...) Era preciso fortalecer o próprio mercado – estimulando a produção de materiais -,modernizar as prefeituras, através de treinamento e qualificação de pessoal, e estudar o processo de “morar” das classes populares, para se tirar partido da prática comunitária de construir, das técnicas e dos materiais utilizados.” 2

Depois de dezoito anos de existência (1946-1964), o fracasso da FCP deveu-se aos escassos recursos financeiros, à fragilidade política da instituição e à oposição dos Institutos de Aposentadorias e Pensões. Atuando de maneira independente em relação ao FCP, os IAPs (Institutos de Aposentadorias e Pensões) construíram, entre 1946 e 1964, 124.025 unidades habitacionais e milhares de apartamentos financiados para a classe média. As unidades habitacionais produzidas se destacam pela qualidade arquitetônica, pois segundo Bonduki, a construção dos conjuntos “(...) adotou a atitude de projeto concebida pelo movimento moderno, buscando compatibilizar ‘economia, prática, técnica e estética’ com o objetivo de viabilizar financeiramente o atendimento de trabalhadores de baixa renda, garantindo dignidade arquitetônica” (AZEVEDO e ANDRADE, 2011, p. 33). Em 1964, idealizado pelo governo militar, é lançado o Plano Nacional de Habitação, associado ao Sistema Financeiro de Habitação, cuja maior inovação é subordinar a questão habitacional do país ao Banco Nacional de Habitação (BNH). O SFH (Sistema Financeiro de Habitação) estruturou uma rede de agentes financeiros privados, permitiu a realização de financiamento à produção e ao consumo, favorecen80

do a ampliação de mercado destinado, inclusive, à população com renda superior a dez salários mínimos. Nesse processo, o Estado deixa de atender grande parte da população que, submetida a baixos salários, somente viabiliza sua habitação nos moldes da autoconstrução, nos horários de folga, com mão-de-obra familiar. Neste mesmo período, surgem os loteamentos clandestinos ou irregulares e as invasões de terras. Em maio de 1965, o BNH passou a atuar, por meio dos Institutos de Orientação a Cooperativas Habitacionais (INOCOOPs) e das Companhias de Habitação Popular (COHABs), nos âmbitos estadual e municipal. O mercado constituído pelas famílias com ingressos mensais entre 3 e 6 salários mínimos seria atendido pelas Cooperativas Habitacionais, e as COHABs atenderiam o mercado popular, definido pela Lei como o das famílias com renda mensal inferior a 3 salários mínimos. A segregação tem sido a regra da organização espacial desde o surgimento das primeiras cidades (CSÉFALVAY, 2011, p. 752). E para grande parte da população excluída da faixa de renda prevista pelo BNH, a alternativa que restou para aqueles sem possibilidades de adquirir um lote, mesmo longe dos centros, carentes de infraestrutura e serviços, foi a invasão de terras e a moradia em favelas. Para a esmagadora maioria da população, o BNH não existia. Independentemente dos programas lançados, da oferta e da capacidade de aquisição, o baixo nível da qualidade dos projetos na área da habitação de interesse social demonstram que apesar da má qualidade das construções ainda é vista como um privilégio a obtenção de uma unidade tipo COHAB. A necessidade construir novas habitações no Município de São Paulo contribui para a aceitação de exigências de espaço substancialmente inferiores às ideais (PEDRO e FILHO, 2012, p. 128). A despeito da sua forma, para a população que disputa a habitação é o grande desejo e o sonho de ser atingido, determinado pela alta carência que joga por terra a qualidade mínima do espaço construído, desprezando inclusive os critérios mínimos de conforto ambiental. Durante sua existência de 22 anos, entre 1964-1986, além dos 4,4 milhões de unidades construídas no país, o BNH executou empreendimentos na área de infraestrutura e saneamento básico. Desde a sua criação, em 1965, e até o início do ano 2000, a COHAB-SP construiu um total de 130.574 unidades habitacionais destinados à faixa de interesse social. Apesar de os conjuntos habitacionais da COHAB-SP terem sido produzidos pelo poder público, sua situação fundiária ainda apresenta problemas. Em 1999, no ano de levantamento, apenas metade dos conjuntos habitacionais produzidos estavam regularizados. 2. As políticas habitacionais na cidade de São Paulo nos anos 1980 No final da década de 1970 e início dos anos 1980, tomavam forma em São Paulo as primeiras experiências de autoconstrução coletiva de moradia. Também chamadas de mutirões, essas construções eram organizadas e geridas pela própria comunidade e deram início a um processo de mudança na lógica da produção habitacional em São Paulo. Um exemplo bem-sucedido de autoconstrução coletiva assistida foi o projeto “Vila Nova Cachoeirinha”, iniciado em 1981, na zona norte de São Paulo. O mentor do projeto, o engenheiro Guilherme Coelho, inspirou-se nas Cooperativas de Ayuda Mutua do Uruguai, uma forma de produção social de moradia autogestionada, com assistência 81

técnica interdisciplinar proporcionada por ONG e assistência financeira do Estado 3 . Os ganhos sociais do projeto Vila Nova Cachoeirinha foram significativos, abrindo espaço para institucionalização dos processos autogestionários de produção de moradia dentro do governo municipal (RODRIGUES, 2006, pp. 37). O projeto tornou-se um novo paradigma em construção habitacional coletiva, tendo como alguns de seus objetivos principais a mobilização de um esforço individual para atingir um objetivo coletivo, estimulando a participação da população em todas as etapas do projeto. Também importante para a compreensão desse quadro de políticas públicas de habitação é a criação do Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal – FUNAPS, em 1979, na gestão de Olavo Setúbal. Sua criação estava intimamente ligada a uma série de fatores socioeconômicos, dentre eles, a crescente demanda por habitação e um aumento significativo da mobilização popular em torno dessa questão. Com a criação desse instrumento jurídico-financeiro, as favelas passaram a ser vistas pelo poder público sob uma lógica diferente, como comunidades formadas por cidadãos trabalhadores e que poderiam permanecer onde estavam. Até então, as favelas eram vistas como um câncer na malha urbana que deveria ser removido. Com o FUNAPS, houve um salto qualitativo na política de atendimento municipal para a população de baixa renda (RODRIGUES, 2006, pp. 38).

3. A gestão Erundina e os mutirões Foi nesse contexto de mudança nas políticas públicas habitacionais que em 1989 a prefeita Luiza Erundina foi eleita. Os recursos públicos foram aplicados majoritariamente na periferia urbana e procurou-se aumentar os gastos com políticas sociais. Sua gestão trouxe uma perspectiva nova para a produção de habitação numa cidade em que a questão da moradia sempre foi um problema. Sua política habitacional foi pautada numa ampla participação social no processo projetual, nas formulações, implementações e decisões dos programas. O envolvimento e a participação de movimentos sociais organizados em torno da questão da habitação foram amplamente estimulados, com a criação da Superintendência de Habitação Popular – HABI. Projetos de urbanização de favelas, com sua regularização jurídica e física e a concessão do direito real de uso do solo; intervenções mais amplas em favelas em situação de risco, com a remoção total ou parcial das famílias; obras de melhorias pontuais e emergenciais nos assentamentos; regularização fundiária de imóveis e a construção de Habitação de Interesse Social (HIS) são alguns dos exemplos de ações feitas na gestão Erundina. Destaca-se o programa FUNAPS Comunitário, responsável pela construção de moradias através dos mutirões. A ideia do programa era fortalecer a participação e a conscientização da comunidade organizada em torno da questão habitacional, estimulando a auto-gestão nos empreendimentos financiados pelo município de São Paulo (RODRIGUES, 2006, pp. 43). Ao mesmo tempo, procurava amenizar o esforço humano e permitir igualdade nas condições de trabalho, desestimulando a autoconstrução individual, característica das zonas periféricas e assentamentos irregulares. No período compreendido entre 1989 e 1992 o FUNAPS Comunitário, que tinha como um de seus programas a Produção por Mutirões, atendeu 25.835 famílias, o correspondente a 6,8% da demanda habitacional de então e trouxe enormes benefícios para a organização social de comunidades faveladas. 82

4. As gestões Maluf e Pitta: o desmonte dos mutirões e o Projeto Cingapura Nos períodos de 1993-1996 e 1997-2000, nas gestões Maluf e Pitta, respectivamente, as ações foram concentradas no Projeto “Cingapura”, propondo a ‘urbanização definitiva das favelas e áreas degradadas, com a construção de prédios e apartamentos, urbanização de lotes a serem preservados e relocação das habitações e lotes remanescentes para atendimento das diretrizes de projeto global de cada área, com eliminação das áreas de risco, transformando as favelas em verdadeiros bairros.’ 4

O projeto era denominado oficialmente como Programa de Urbanização de Favelas com Verticalização (PROVER) e foi lançado em 1994, pela Secretaria de Habitação (SEHAB). A meta anunciada pela gestão Maluf era atender cerca de um milhão de pessoas, mas as fontes consultadas indicam que o alcance da gestão foram muito inferiores, além de caracterizadas pelas denúncias de irregularidades na licitação de obras. Para Bonduki, o Projeto Cingapura foi um exemplo da ausência de política habitacional, uma vez que não desenvolveu projetos de arquitetura e urbanismo, não discutiu a intervenção com os moradores, eliminou as divisões regionais de atendimento habitacional implantadas em 1983, desmontou equipes técnicas competentes e mecanismos de controle e abandonou as obras de urbanização de favelas, iniciadas pela administração Luiza Erundina. Apesar de haver mais de 10.000 unidades de construção por mutirões em fase de viabilização, a gestão Maluf paralisou o programa de mutirões e as obras em andamento da gestão anterior. O FUNAPS foi extinto em 1994, e suas verbas destinadas à habitação foram concentradas no Projeto Cingapura. Em 1994, foram transferidos para a COHAB-SP a finalização e regularização dos conjuntos construídos pela PMSP (Prefeitura do Município de São Paulo), através da SEHAB-HABI (Secretaria de Habitação e Superintendência de Habitação Popular), e

Figura 1: conjuntos habitacionais de interesse social na Região Metropolitana de São Paulo. Fonte: MEYER; GROSTEIN; BIDERMAN, 2004, p. 69. 83

também a regularização dos Projetos “Cingapura”. Na Figura 1, encontram-se os principais empreendimentos de habitação social da COHAB, CDHU e Cingapura. O Projeto “Cingapura” foi inspirado na experiência bem-sucedida da cidade-estado Singapura, no sudeste asiático, em que, durante a década de 1960, grandes projetos de construção habitacional foram feitos para prover moradias de qualidade e acessíveis, com o objetivo de realocar posseiros de terras e remover um sério problema social na cidade. Nos dois primeiros anos de implementação do projeto, no regime de Lim Kim San, no início da década de 1960, 25.000 apartamentos foram construídos. Em menos de uma década, a maioria da população foi abrigada em apartamentos do Housing Development Board, e o projeto foi considerado um sucesso. O Projeto “Cingapura” foi concebido para diminuir o déficit habitacional da capital paulista e com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Caixa Econômica Federal, com o objetivo de transformar as favelas em verdadeiros bairros. Ele procura manter as famílias no mesmo local onde estão instaladas, preservando as relações sociais e de trabalho dos seus moradores. O Projeto se realiza em núcleos favelados, e os critérios para a escolha das favelas a serem atendidas foram: 1. Favelas localizadas em áreas públicas; 2. Favelas com maior nível de adensamento por m2; 3. Locais onde os habitantes já haviam consolidado sua ocupação; 4. Onde havia grande número de barracos em áreas de risco; 5. Possibilidade de integração com a vizinhança; 6. Não constituíam obstáculos para a execução de alguma obra pública; 7. Possibilidade de atendimento da infraestrutura. No entanto, é possível perceber uma tendência acentuada da escolha de terrenos em favelas que estavam próximas às vias de grande circulação da cidade: dos dezessete primeiros projetos executados, doze localizavam-se próximos a grandes avenidas. O processo de implantação não é tranquilo, pois envolve a necessidade de transferência de moradores para outros locais, gerando grandes resistências. Vários escritórios de arquitetura desenvolveram o projeto, e quanto às tipologias adotadas, estabeleceu-se um projeto padrão de cinco pavimentos tipo “H” predominante, que definiu a “cara” do Projeto. Em uma fase posterior, foram realizados edifícios de sete a dez andares. Quanto aos apartamentos, foram utilizadas três tipologias básicas: 1.Apartamentos com 1 dormitório: área de 37,27 m2 2.Apartamentos com 2 dormitórios: área de 43,36 m2 3.Apartamentos com 3 dormitórios: área de 51,37 m2 As tipologias estão ilustradas nas Figuras 2, 3 e 4, a seguir. 84

Figura 2: Tipologia 1 do Projeto “Cingapura” (PROVER). Fonte: XAVIER, 2005, p. 2.24

Figura 3: Tipologia 2 do Projeto “Cingapura” (PROVER). Fonte: XAVIER, 2005, p. 2.25

Figura 4: Tipologia 3 do Projeto “Cingapura” (PROVER). Fonte: XAVIER, 2005, p. 2.26.

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Optou-se pela industrialização leve, utilizando-se alvenaria armada, que apresenta economia, facilidade e rapidez de construção. A implantação dos edifícios obedece à orientação no sentido leste-oeste, para a melhor insolação. O andar do edifícios é composto por quatro unidades habitacionais. A partir de 1995, foram contratados os escritórios de Aflalo & Gasperini e Cambiaghi Arquitetura, para atuar no embelezamento das fachadas. As atuações ocorreram principalmente nos telhados, nos detalhes arquitetônicos, materiais de revestimento e cores. Na cobertura, a opção adotada foi a cobertura com telhas de barro e adoção de beirais, dispensando a impermeabilização da cobertura e minimizando os custos. Em relação aos revestimentos, adotou-se inicialmente aquele em argamassa plastificada pigmentada, aplicada diretamente sobre o bloco de concreto. O processo foi abandonado devido à dificuldade de se manter o mesmo padrão, ao custo e problemas de manutenção. Apesar da atenção especial dada ao acabamento externo, no projeto não há acabamento interno dos edifícios. Segundo Xavier (2005), em relação ao próprio Edifício Cingapura, destacam-se as inúmeras patologias construtivas, relacionadas ao Projeto, Manutenção, Materiais e Execução da Obra, sendo os dois primeiros os maiores responsáveis pelas patologias. Ao primeiro item estão vinculadas às deficiências e inadequações do(s) da(s): especificações técnicas; precariedade do projeto paisagístico; conforto-ambiental (termo-acústico, luminoso e visual); reserva de água potável; adoção de soluções mais baratas; captação de águas pluviais; estudo de estabilidade do solo; segurança contra roubo e incêndio; segurança contra acidentes, dificuldades de implantação devido à insalubridade e topografia acentuada; entre outros. As patologias construtivas originadas pelos Manutenção vinculam-se às deficiências e inadequações do (s) da (s): inexistência de manutenção periódica e sistematizada; carência de recursos financeiros dos moradores; crença por parte dos moradores de que toda a manutenção deve ser feita pelo poder público; abandono por parte do poder público junto a estes conjuntos; falta de mão-de-obra especializada; faltade uma efetiva consciência do poder público na solução do problema de regularização de posse. O programa PROVER foi implantado em fases, desde 1994 até 2003, denominadas FI, FII, FIII e FIV. Essas fases totalizaram um custo de construção de R$ 740.673.446,53 para a construção de 786 edifícios. 5. Análise e discussão do Projeto Cingapura Infelizmente, os programas públicos de HIS têm optado por processos de provisão de moradias pouco ou nada participativos, privilegiando a questão da quantidade, em detrimento da qualidade, com o pretenso propósito de acabar com o déficit habitacional, notadamente sem sucesso. No caso do Projeto Cingapura, não foi diferente: o processo exclui a população de todas as decisões envolvidas. O pouco envolvimento com o conjunto, as mazelas sociais especialmente o baixo grau de consciência e percepção dos indivíduos em relação ao meio em que vivem são algumas das principais consequências desse tipo de postura.

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Apesar do modelo de desenvolvimento e crescimento urbano excludente adotado pelo país, do qual a cidade de São Paulo é paradigmática, práticas de organização coletiva, como as instituídas pelo FUNAPS Comunitário e os mutirões, podem constituir um instrumento importante, se não para reverter o quadro de exclusão, para aprimorar a eficiência social dos programas habitacionais. Deve-se salientar ainda a importância de que cada empreendimento tenha um projeto próprio, uma vez que trabalhar com o contexto físico existente é essencial para um desenvolvimento de sucesso (TINKER, 2013, p. 10). Além disso, as especificidades presentes no cotidiano das pessoas envolvidas pelos programas devem ser levadas em consideração quando da elaboração dos mesmos, pois os ganhos sociais são diretamente proporcionais à percepção de cada indivíduo em relação ao meio em que vive e à sua potencialidade de transformá-lo. Assim, tanto mais eficientes serão os programas, quanto mais apropriados às expectativas e reais necessidades de seu público. Para isso, tais programas precisam estar em constante processo de reformulação, e considerar que para distintas situações físicas e sociais, deve haver distintos processos. Nesse contexto, os órgão públicos devem tomar decisões para minimizar as patologias construtivas dos conjuntos Cingapura, além de melhorar a qualidade de novos projetos, visto que o Projeto é o maior responsável pela origem de patologias construtivas. No que tange à Manutenção, ela deverá merecer toda atenção por parte dos agente produtores de Habitação de Interesse Social, no sentido de minimizar as patologias por meio da elaboração de projeto, execução de obra e materiais, dentro das Normas Técnicas (ABNT), tendo como pano de fundo os itens de desempenho. Por fim, é fundamental que o poder público se dote de recursos humanos, materiais e financeiros, adequando os edifícios dos conjuntos a uma vida útil compatível com edifícios de Habitação de Interesse Social, e promovendo a melhor qualidade de vida e do “morar” da população.

Notas (1) Disponível em . Acesso em 26/11/2014. (2) AZEVEDO, Sérgio; ANDRADE, Luís A. Gama de. Habitação e Poder: da Fundação da Casa Popular ao Banco Nacional de Habitação. Rio de Janeiro: Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. 2011, 10 p. (3) Disponível em . Acesso em 20/11/2014. (4) Disponível em . Acesso em 10/01/2015.

Referências AZEVEDO, Sérgio; ANDRADE, Luís A. Gama de. Habitação e Poder: da Fundação da Casa Popular ao Banco Nacional de Habitação. Rio de Janeiro: Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. 2011.

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artigo

A utopia do projeto Moder nista e a noção de uma arquitetura social X o Brasil dos anos 30 e 40: o caso do IAPI Várzea do Car mo

Camila Cioffi Helenna Luz

Para entender a utopia do projeto Modernista e a noção de uma arquitetura social este artigo aborda inicialmente contextualizações para o tema abordado na Europa e no Brasil. Primeiramente, contextualizando o nascimento do movimento moderno na Europa como um instrumento de reconstrução após a Primeira Guerra Mundial, identificando que, a necessidade de uma transformação social e o desejo de uma vida melhor, assim como influencias da Revolução Russa contribuíram para uma construção ideológica do movimento o qual não ocorreu no Brasil. Aqui, num momento em que a habitação passa ser controlada pelo estado de Vargas, considera-se o os primeiros arquitetos modernos aqueles responsáveis pelo surgimento das primeiras habitações sociais, que apesar de ter sido idealizada por meio de uma causa social de suprir a demanda populacional por moradia, a utopia do movimento no Brasil é neste texto descrita como “distorcida” por interesses capitalistas que visavam impulsionar o desenvolvimento econômico e a nascente indústria do pais. A ultima parte deste trabalho estuda o projeto do Conjunto Habitacional da Várzea do Carmo de autoria do arquiteto Atílio Correia Lima e equipe, desenvolvido em 1942, em São Paulo, para o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários. A pesquisa aponta o projeto como um caso exemplar de como os ideais do movimento moderno foram apropriados no contexto brasileiro e de como as transformações espaciais ocorridas no conjunto, parcialmente construído, retratam a espacialidade urbana contemporânea de valorização do privado em detrimento da qualificação dos espaços públicos. O resultado é um melhor entendimento das relações espaciais do conjunto com o entorno imediato e com o bairro e uma revisão crítica das soluções projetuais, analisando o modo como o conjunto foi transformado pelo uso e é apropriado pelos moradores na atualidade. palavras-chave: utopia e projeto construído, IAPI Várzea do Carmo, utopia modernista, modernismo no Brasil. 89

Introdução A utopia de um projeto arquitetônico e urbanístico e a maneira como esta ocorre na prática é uma comparação e dualidade que motivou o desenvolvimento deste trabalho, o qual possui como objeto de estudo a aplicação destas noções para o caso do Modernismo no Brasil nas décadas de 30 e 40. Entende-se que o distanciamento entre essas duas noções pode ocorrer, ou não, na profissão do arquiteto como um todo. Porém, este estudo direciona-se para o caso particular do Modernismo, especialmente dentro da questão da habitação, de maneira a compreender como a sua utopia inicial se desenvolveu espacialmente no contexto em que se encontrava o país. Ou seja, como o âmbito político, econômico e social do Brasil interferiu para a instalação desse movimento e, além disso, contribuiu para constituir um modernismo “distorcido”, de um modo geral, de suas utopias iniciais desenvolvidas na Europa. A caracterização desse desenvolvimento como “distorcido”, refere-se à forte vinculação do Modernismo com o governo autoritário do período, e como isso pode ter contribuído para que o modernismo se desenvolvesse aqui no Brasil da forma intervencionista e fortemente vinculado somente ao campo político, de modo que o campo social aparecia muito mais como um discurso que encobria e fortalecia o governo populista de Vargas. A utopia modernista, em si, pode ser considerada um tanto impositiva e intervencionista, uma vez que o “moderno” no sentido pleno da palavra, como nos mostra Kopp em seu texto, se desenvolveu nos anos 20 e 30 na Europa em busca de uma transformação social e de uma transformação dos meios de produção que buscava a formação de uma nova sociedade e de uma nova cultura dos modos de vida (Kopp, 1990). Porém, essa ideologia inicial que se desenvolvia na Europa, além de estar inserida em outro contexto, no qual as linhas políticas de esquerda prevaleciam nas concepções arquitetônicas e na formação de uma nova sociedade, o modernismo se desenvolvia como uma causa, uma causa social. Já no Brasil, o desenvolvimento do modernismo durante a Era Vargas, ao menos no campo político e econômico como será mostrado, reflete os objetivos de um país capitalista que visava impulsionar a nascente indústria e de um governo populista, em que o racionalismo moderno pareceu surgir como uma solução para, além do desenvolvimento econômico do país, também para o controle do Estado, quando se refere, principalmente, à questão da provisão habitacional, por exemplo. Será dada uma especial atenção à essa questão da provisão habitacional no Brasil durante o governo de Vargas, pois foi nesse período em que surge a habitação social no país. (Bonduki, 2014). Além disso, a questão da habitação dentro da utopia modernista representava a possibilidade de desenvolvimento das novas relações entre os indivíduos por meio da “nova forma de alojamento que seria ao mesmo tempo uma imagem das novas relações humanas e o molde que contribuiria para criar essas relações” (Kopp, 1990, p. 20). No caso do Brasil, apesar do discurso com uma aparente causa social que encobriam as medidas de controle e interferência do Estado tanto no processo de produção como no mercado de locação habitacional, o país nunca havia presenciado um número tão grande de provisão habitacional. Mais significativo ainda do que a questão quantitativa, é a questão qualitativa para a qual a provisão habitacional nesse período contribuiu. Durante estes anos, essa experiência em habitação contribuiu para a formação de um grupo de profissionais voltados a elaborar programas e projetos ha-

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bitacionais de grande relevância e para impulsionar as indústrias de construção civil e de materiais, além de difundir novas tipologias arquitetônicas. E foi dentro deste aspecto qualitativo que a utopia modernista tomou forma no sentido de promover uma arquitetura social (por mais que houvesse por trás do discurso social do governo, neste período, intenções capitalistas), e de desenvolver projetos de habitação social de maneira racional, econômica, mas ao mesmo tempo com a higiene e qualidade necessárias para se viver. Dessa forma, torna-se fundamental o estudo das realizações dos IAPs, Institutos de Aposentadoria e Pensões, que a partir de 1937 passou a atuar no financiamento e produção habitacional e que além do grande número de produção de IAPIs, grandes conjuntos habitacionais, destacou-se por serem os “primeiros departamentos técnicos públicos efetivamente voltados para os problemas da habitação em massa” (Bruna, 2010, p. 167). Foi escolhido, portanto, o projeto do IAPI Várzea do Carmo como estudo de caso, de modo a verificar a relação entre a utopia modernista, e como esta está presente no projeto, e o que foi de fato construído. A utopia do projeto Modernista e a noção de uma arquitetura social “ A exemplo de Marx, para quem a filosofia que se havia limitado a descrever o mundo iria contribuir para transformá-lo, os criadores artísticos da vanguarda dos anos vinte, entre eles os arquitetos, acreditavam que a arte, a arquitetura e a organização urbana deixariam de ser um reflexo da sociedade existente para se tornarem um dos instrumentos privilegiados de sua reconstrução.” (Kopp, 1990, p. 22)

O trecho acima de Anatole Kopp expõe a noção dentro da utopia modernista que se desenvolvia na Europa no período pós-guerra, da função social da arquitetura e do urbanismo, disciplina esta que passou a ser vista como um instrumento para a constituição de um novo modo de vida e de uma nova sociedade, na qual os trabalhadores e as massas eram seus principais atores. Foi para este novo grupo social que os arquitetos que se moviam em torno da causa modernista, focaram sua produção arquitetônica, que direcionava-se cada vez mais para uma produção que atendesse às necessidades de massa. A noção de reconstrução estava diretamente ligada ao contexto econômico, político e social que se encontrava a Europa. Um contexto de pós-primeira Guerra Mundial no qual muitas cidades europeias haviam sido destruídas e um sentimento e reinvindicação por uma vida melhor aflorava e tornava-se mais evidente. Além disso, a influência da Revolução Russa para o fortalecimento do pensamento socialista, reafirmou as necessidades de uma transformação social. E é em torno desta causa social que os chamados “ arquitetos de vanguarda” se empenharam em desenvolver a disciplina da arquitetura e do urbanismo em prol da formação dessa nova sociedade, mais igualitária e mais justa. “Esses arquitetos não tinham por objetivo a realização de uma obra prima pessoal, mas a edificação em grande escala de tudo aquilo que os habitantes da cidade de pedra sempre estiveram privados”.

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(Kopp, 1990, p. 19) Com “habitantes da cidade de pedra”, Kopp refere-se às habitações operárias de Berlim que eram feitas sem a menor qualidade de vida para aqueles que ali habitariam; ou seja, sem a iluminação natural e ventilação necessários para se obter um mínimo de higiene, por exemplo. Dessa maneira, essa antiga forma de habitação deveria ser substituída por uma nova, que desenvolveria a “neue wohnkultur” (Bruna, 2010)– uma nova cultura de habitação – por meio da qual os arquitetos modernos acreditavam estimular novas relações humanas, e desenvolver essa nova sociedade. Os arquitetos modernos, no sentido pleno da palavra como desenvolve Kopp em seu texto, ou seja, aqueles que possuíam não só preocupações formais e técnicas, mas também social em suas realizações, desenvolviam os projetos de habitações sociais seguindo os princípios que governam a indústria, isto é, rapidez, economia, padronização, produção em massa etc. Dessa forma, previam cada movimento que o usuário daquele projeto faria e consequentemente previam seu estilo de vida, de maneira a projetar tudo que acreditavam ser necessário para o seu cotidiano. Pode parecer um tanto utópico demais essa implantação e prever um novo estilo de vida e uma nova cultura para uma sociedade ainda em formação. “Eles eram espaços construídos para uma sociedade que ainda não existia. [...] projetos situados nesse espaço estreito que às vezes separa a utopia de ontem da realidade de amanhã” (Kopp, 1990, p.22). Porém, como o objetivo deste trabalho é trazer esta discussão para o caso do desenvolvimento do modernismo no Brasil, não convêm entrar neste âmbito geral do movimento. Pode-se adiantar porém, que como o próprio Kopp denominou sua obra: “Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa”, o contexto social, político e econômico no qual o modernismo se desenvolveu na Europa justifica a utopia que então era formada e a sua noção como uma causa social. Por isso, a análise do desenvolvimento do modernismo no Brasil deve ser feita levando em conta o seu contexto diferente, tanto político, econômico e social, além do fato do Brasil ser um país capitalista, o que, como será mostrado a seguir, contribuiu para que o desenvolvimento do modernismo no país estivesse articulado aos objetivos de um governo que visava impulsionar o desenvolvimento econômico e a nascente indústria do país. Isso nos leva a seguinte questão: o desenvolvimento do modernismo no Brasil estava articulado à mesma causa social que marcava o moderno, em seu sentido pleno, no início de sua formação? O Brasil dos anos 30 e 40 e o desenvolvimento da utopia modernista “Seria impossível fazer arquitetura de cunho social num país capitalista como o Brasil.” (Bruna, 2010, p.159)

A frase acima de Paulo Bruna nos remete a mesma questão levantada anteriormente e que procurará ser respondida ao longo deste trabalho. Porém, quando analisamos as medidas adotadas durante o governo Vargas, percebemos que antes de um cunho social, o que movia estas medidas políticas eram as estratégias “de impulsionar a formação e o fortalecimento de uma sociedade de cunho urbano-industrial, capitalista, mediante uma forte intervenção estatal em todos os âmbitos da atividade econômica” (Bonduki, 2014, p.41). Apesar disso, foi justamente nesse período em que surge a ha92

bitação social no país. (Bonduki, 2014) Como já fora mencionado na introdução deste artigo, o país nunca havia presenciado um número tão grande de provisão habitacional, ainda mais uma provisão de habitação destinada às classes menos favorecidas da sociedade. A produção rentista da habitação no país aos poucos foi sendo substituída pela produção de uma habitação social provida pelo Estado, pois a partir da Revolução de 1930, ocorre uma profunda transformação do cenário político e econômico do país, na qual o Estado brasileiro passa a intervir em todos os aspectos da vida econômica do Brasil. A questão da habitação, inclusive, passou a ser controlada pelo Estado, não só com relação à sua produção, mas também as relações entre locadores e inquilinos passaram a ser regulamentadas pelo governo. Um marco dessa interferência do Estado no mercado de locação habitacional foi a Lei do Inquilinato de 1942, através da qual os preços dos alugueis foram congelados. Essa medida foi de forte impacto social, tanto é que o próprio governo a chamava de “defesa da economia popular”, uma vez que os alugueis consumiam uma boa parte do orçamento salarial da maioria dos trabalhadores até então. Porém, a análise da política desenvolvimentista de Vargas revela que essa medida contribuiu para reduzir o custo da reprodução da força de trabalho, além de contribuir para mobilizar capitais internos, que antes seriam direcionados ao investimento em moradias de aluguel, canalizando-os para a empresa industrial. “Como se vê, a Lei do Inquilinato servia excepcionalmente ao projeto de desenvolvimento nacional e ao pacto de classes populista que marcaram o governo Vargas, mas por outro lado, as consequências para o processo de produção da moradia popular e mesmo para os setores médios foram muito fortes e negativas.” (Bonduki, 2014, p. 44)

A frase de Nabil expõe como as medidas do governo neste período, apesar da aparência populista das ações de garantir melhores condições de vida urbana e habitação aos trabalhadores, teve em certa medida, impacto negativo à questão da moradia. Isto é, ironicamente, as medidas adotadas por Vargas que as considerava como uma “defesa da economia popular”, contribuíram para, mesmo que indiretamente, aumentar a carência habitacional por parte da população, pois somando os fatos de que o investimento privado na construção de casas de aluguel reduziu drasticamente, e o crescimento da população urbana aumentou significativamente, principalmente devido ao intenso fluxo migratório, o resultado disso foi uma crise habitacional. Dessa forma, só restava como alternativa àqueles que migravam para as cidades e para aqueles que haviam sido despejados pelos locadores de suas residências, procurar algum terreno na periferia ou ocupar uma parcela de terra, na maioria dos casos, assentamentos precários, e autoconstruir suas casas. Entretanto, retornando ao fato de que foi neste período em que surgiu a habitação social no país e que inúmeros conjuntos habitacionais foram produzidos e/ou financiados pelo Estado, é importante citar um outro marco das medidas do governo, que foi a criação das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria e Pensões – os IAPs – os quais, além de garantir aposentadorias e pensões à previdência social, a partir de 1937 tornaram-se o “primeiro departamento técnico público efetivamente voltado para os problemas de habitação social em massa” (Bruna, 2010, p. 167). Como o próprio Bruna nos revela em seu texto, apesar das vultuosas realizações

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desses institutos, a crítica arquitetônica brasileira pouco focou sua atenção aos grandes conjuntos habitacionais construídos pelos IAPs, que como o autor afirma, formou “um grupo de arquitetos e engenheiros empenhados em pôr em prática o ideário do movimento moderno não de forma ideal e utópica, mas objetiva e concreta.” (Bruna, 2010, p.14) Merece ser retomada, então, a questão apresentada no final do item anterior e no início deste, seria possível fazer arquitetura de cunho social em um país capitalista como o Brasil? E o desenvolvimento do modernismo no Brasil estava articulado à mesma causa social que marcava o moderno, em seu sentido pleno, no início de sua formação? A análise política deste período nos mostrou que os objetivos econômicos e políticos moviam as ações do governo com aparência de cunho social; por isso chamou-se, no início deste trabalho, o modernismo desenvolvido no Brasil como “distorcido”. Entretanto, quando analisamos o grupo de arquitetos que constituíam os pioneiros da habitação social no Brasil, seria um grande erro afirmar que inexistia uma preocupação social nos projetos destes primeiros arquitetos modernos do país. Como Paulo Bruna descreveu, estes contribuíram para desenvolver o ideário modernista no Brasil, mas de uma forma muito mais prática, e como exemplo disto podemos citar o grande desenvolvimento das técnicas da construção civil e dos materiais utilizados por eles em seus projetos. A previsão de espaços destinados às horas de lazer do morador da habitação social é uma característica recorrente da utopia modernista para habitações sociais. Como o próprio Engenheiro Rubens Porto, Assessor técnico do Conselho Nacional do Trabalho, afirmou: “O operário, sem cultura, precisa de qualquer emprego das suas horas de lazer. (...) Precisa, portanto, de vida social, viver em sociedade é uma das melhores maneiras de educá-lo. (...) Os ‘pilotis’ resolvem, portanto, mais este problema, aliás de alta relevância social, de vez que naquela área agradável e amena, em constante em contato com a natureza, os homens podem se reunir à noite e nas suas horas de lazer, organizando diversões, jogos, palestras etc.” (Porto. 1938, p. 46 apud Bruna. 2010, p. 145). Além da utilização de pilotis como forma de promover novas relações sociais e de “educar os operários sem cultura” como afirmou Porto, prover essas unidades habitacionais com equipamentos de uso coletivo e público também era fundamental. Seguindo a mesma linha de raciocínio para os espaços livres e verdes, estes eram projetados de maneira que os moradores, além de estarem em constante contato com a natureza e o verde, levantando dessa forma, a questão da higiene e qualidade de vida, possuiriam extensos espaços de encontro e lazer. Apesar da utopia social que movia a elaboração destes projetos de habitação, o que se pode adiantar com relação a questão da idealização do projeto modernista e como este se da na prática, é que é possível notar que esses espaços públicos eram na maioria dos casos, excessivamente extensos, o que acaba saindo da escala do pedestre e como Otília destaca em sua obra, transformam-se em uma “Agorafobia Moderna” (Arantes. 1993, p. 102). Além desta “agorafobia” citada pela autora, estes espaços acabam, muitas vezes se tornando degradados, pois, infelizmente, a noção de espaço público no Brasil é contraria à noção de que é um espaço de todos e que todos são responsáveis pela sua manutenção. O que em muitos casos, inclusive dentre muitos projetos IAPIs em São Paulo, como será melhor descrito mais adiante, acaba acontecendo é que esses espaços livres previsto, seja os espaços verdes, seja aqueles idealizados por meio de

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pilotis, acabam sendo cercados por muros ou grades pelos próprios moradores, transformando esses espaços em áreas privadas. Isto, infelizmente, é um típico distanciamento que ocorre entre a utopia do projeto original de habitação social e a sua construção ou apropriação pelos próprios moradores na prática. A ousada e utópica implantação das torres modernistas, na qual o edifício é “solto” do lote, de forma que este último torna-se quase ausente, e de modo que as quatro fachadas recebam insolação e ventilação necessárias, assim como os espaços livres entre os edifícios possam ser públicos, parece não funcionar, ao menos no Brasil, pois estes projetos sempre acabam cercados e a idealização e intenção inicial do arquiteto, distorcida na prática. No caso do IAPI Várzea do Carmo isso não foi diferente. Conjunto Habitacional da Várzea do Carmo: do projeto ideal ao conjunto real O trabalho que se segue pretende documentar o projeto do Conjunto Habitacional da Várzea do Carmo e verificar como as especificações dos programas projetados se mantiveram ou se alteraram ao longo do tempo. O objetivo é entender o espaço urbano contemporâneo através de um caso exemplar como o Conjunto Habitacional da Várzea do Carmo, mapeando o modo como o conjunto foi transformado pelo uso e é apropriado pelos moradores na atualidade. O Conjunto Residencial da Várzea do Carmo é um caso emblemático da maneira como os ideais do movimento moderno foram, através do projeto arquitetônico e urbanístico do conjunto, apropriados para o contexto brasileiro. Com a construção parcial do conjunto essas ideias não puderam ser totalmente experimentadas, porém os edifícios construídos mantêm os princípios arquitetônicos e urbanísticos modernos – implantação, forma laminar dos blocos, soluções de planta e sistema construtivo - sendo suficientes para uma avaliação do modelo de habitação social moderna produzida pelos Institutos de Previdência ao longo do tempo. Para o entendimento do projeto de 1942 e das transformações que o conjunto edificado vem sofrendo ao longo do tempo, foi necessário localizar o período da sua elaboração, estudar o conjunto como efetivamente edificado e finalmente verificar as relações espaciais que o conjunto estabelece com a cidade nos dias atuais. Os conjuntos IAPs, apesar de não dar conta do déficit habitacional da época, produziu um número significativo de unidades, porém sua maior contribuição está centrada nas inovações tipológicas, tecnológicas e sociais que os conjuntos apresentavam. Apesar de serem diversificados em sua resposta projetual tinham aspectos recorrentes no que diz respeito à ocupação do espaço urbano, o desenho das unidades e principalmente nas relações entre o espaço público e privado, tendo como estratégia a transferência de atividades do espaço privado para o público, o que era viabilizado pela inserção de equipamentos coletivos. Essas estratégias de projeto e implantação correspondiam às idéias defendidas pelo ideário moderno introduzidas por seus pioneiros como já visto anteriormente. A introdução de um novo modo de morar trazia para a sociedade brasileira outros valores, distantes da ideia da casa isolada no lote e do modo de organização espacial da casa pequeno burguesa, que as primeiras experiências em habitação para o opera95

riado tentavam seguir, vendo neles um meio pelo qual poderia acontecer uma mudança na qualidade de vida dos trabalhadores. A opção da propriedade estatal da moradia era defendida por arquitetos brasileiros alinhados ao movimento moderno e foi adotada pelo governo. Aos trabalhadores vinculados aos institutos caberia a opção do aluguel. Havia uma crença de que o Estado teria condições de manter os conjuntos habitacionais e protegê-los contra vandalismos e o mau uso. As habitações são entendidas pelos seus pensadores como Serviço de Utilidade Pública. Para os conjuntos habitacionais esta condição resultou em soluções formais e conceituais de valorização do espaço público em detrimento do espaço privado, em oposição ao que se presumia no caso da casa isolada no lote. “(...) Modificava-se a relação entre o público e o privado, rompendo–se as fronteiras que os separavam e criando-se a noção de que não se habita apenas a casa e sim um conjunto de equipamentos e serviços coletivos. Arquitetura e Urbanismo tornam-se indissociáveis.” (BONDUKI, 1998, p.148-149)

A racionalização da construção, a industrialização, a verticalização, assim como as novas tipologias como os blocos multifamiliares com “unités d’habitation”, geralmente de forma laminar sobre pilotis, com fachadas sem ornamentação, implantados independentemente da malha viária existente e a criação de equipamentos coletivos como creches, escolas e equipamentos de saúde, fizeram parte das diretrizes de projeto de uma série de conjuntos de habitação social no Brasil, como nos conjuntos estudados por BONDUKI, (1994, 1998) e por BRUNA (1998), e que, quando colocados em comparação com as intervenções propostas pelo CIAM, oferecem pistas sobre essa influencia. Os arquitetos modernos conseguiram introduzir a estética sem ornamentações dos conjuntos habitacionais como símbolo de progresso e desenvolvimento. Nos projetos estavam subentendidos novos modos de vida. Esta transposição entre o que era almejado pelo imaginário da população a respeito da habitação ideal e as propostas realizadas - desvinculadas de qualquer tradicionalismo - estavam no cerne da questão do movimento moderno. Muitas das inovações propostas vinculavam os conjuntos habitacionais à modernidade e ao progresso. Os Institutos contavam com competente corpo técnico e com regulamentação que guiava a atuação das Carteiras Prediais. O arquiteto Rubens Porto desempenhou importante papel na definição dos parâmetros projetuais dos empreendimentos dos Institutos e escreve, em 1938, o livro “O problema das Casas Operárias e os Institutos e Caixas de Pensões” onde defende as seguintes soluções de projeto: - A inserção dos edifícios habitacionais independentes da malha urbana existente e desvinculados do parcelamento do solo. - A estandardização da construção com a adoção de blocos de apartamento com limite de altura de quatro andares para o caso de ser desprovidos de elevadores. - O emprego de pilotis como estratégia para recuperar área construída, proporcionando contato com a natureza e espaço para o lazer.

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Figura 1:Planta da cidade de São Paulo e municípios circunvizinhos. The São Paulo Tranway - light e Power Co. 1943. Em destaque vermelho colagem do Conjunto Habitacional da Várzea do Carmo. Fonte: mapa de 1943 disponível em: http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/mapasedado.php

Figura 2:perspectiva do conjunto como previsto em sua primeira fase de implantação. Fonte: Revista Municipal de Engenharia, PDF, nº 6, nov. 1942.

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- Adoção de apartamentos duplex como sistema que possibilitaria maior economia de espaço e materiais, além de proporcionar a separação dos tipos de uso social e íntimo. - A introdução de processos de construção racionalizados que dessem conta de grandes demandas com conjuntos de 2 mil unidades, por exemplo. - O conceito de unidade de vizinhança, cada conjunto deveria ter autonomia cobrindo todas as necessidades dos trabalhares em serviços, comércio e lazer (exceto o trabalho). - A prioridade para o tráfego de pedestres, uma vez que as vias de comunicação que põem as unidades em ligação com o resto da cidade devem estar na periferia do conjunto. - A articulação dos conjuntos com os planos urbanísticos, pensados estrategicamente quanto sua implantação no plano regional de organização espacial. - A preocupação com o desenho total das unidades até o mobiliário, uma vez que estes deveriam estar integrados racionalmente aos espaços projetados. Essas diretrizes por serem as primeiras a sistematizar a intervenção do Estado na produção habitacional foram de grande impacto para a produção decorrente. Aspectos críticos a estas propostas habitacionais só podem proceder quando vistas à distância e considerando o aspecto de sua atual condição de uso no tempo. O projeto do conjunto habitacional da Várzea do Carmo: “Trata-se de um dos mais significativos conjuntos projetados no período, onde se expressam alguns dos conceitos mais importantes do movimento moderno, articulando de forma integrada a arquitetura e o urbanismo.” (BONDUKI, Nabil, 1998, p.168)

O conjunto do Carmo foi projetado para o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI) em 1942, pelos arquitetos Atílio Corrêa Lima, Hélio Uchôa Cavalcanti, José Theodulo da Silva e pelo engenheiro Alberto de Mello Flôres. O projeto foi publicado na Revista Municipal de Engenharia PDF nas edições nº 6, de novembro de 1942 e nº 4, de outubro de 1943. O conjunto é localizado nas proximidades do centro de São Paulo, nas imediações do Parque D. Pedro II junto à Avenida do Estado e entre as ruas Luiz Gama, Otto de Alencar, Leopoldo Miguez e Praça Nina Rodrigues, entre os bairros da Liberdade e Cambuci. O projeto de grande porte trazia novidades no contexto habitacional, com edifícios multifamiliares em altura, implantação de áreas coletivas e a grande escala do conjunto em relação ao entorno imediato como também em relação à cidade. Ao analisarmos o mapa da cidade de São Paulo de1943 com a colagem do projeto do conjunto este aspecto fica evidente - comparando a escala dos edifícios projetados com a escala da trama de arruamento, nota-se como a escala do conjunto é destacada. Nos textos publicados os autores descrevem o projeto evidenciando a preocupação com a racionalização da construção, através da busca da melhor orientação solar, justificam a “necessidade de agrupamento das células em grandes blocos” garantindo “a justa posição das unidades numa determinada direção” e possibilitando que as unida-

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Figura 3: Croqui sob pilotis - em direção ao Edifício J, animação entre bloco. Fonte: Revista Municipal de Engenharia, PDF, nº6, nov. 1942, p. 324.

Figura 4: Implantação Conjunto residencial da Várzea do Carmo - em destaque Edifícios tipo B em vermelho e Edifícios tipo C em cinza. Fonte: Emplasa – base cadastral de 1975

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des fossem “abertas para o exterior em duas faces opostas, ficando as duas restantes contíguas às unidades vizinhas (PDF,nº6,1942). Destacam as condições locacionais do conjunto, a área de várzea nas imediações do Parque Dom Pedro II junto a Avenida do Estado, como uma região de caráter industrial que devido à proximidade com o Centro da cidade, (entre 5 e 15 minutos do Largo da Sé de bonde), possuía valor elevado da terra para a implantação de “residência estritamente operária” como também não possuía vocação para “bairro residencial de categoria elevada”. A solução adotada pelos arquitetos foi implantar um Conjunto habitacional que propiciasse alta densidade populacional, com apoio de equipamentos coletivos e comércio que dessem ao local características de um bairro com uso misto. O projeto do conjunto era composto de blocos habitacionais laminares de 11 pavimentos apoiados sobre pilotis, blocos de 4 pavimentos apoiados diretamente no solo (estes efetivamente construídos) e equipamentos de uso coletivos. Na implantação do conjunto, os blocos laminares foram dispostos seguindo principalmente a orientação longitudinal Norte–Sul, deixando os cômodos de longa permanência para poente e nascente. A disposição dos edifícios, intercalados e soltos dentro de um parque permitia a formação de praças nos interstícios, garantia de melhores condições de iluminação e ventilação, assim como de animação urbana e desfrute da natureza. A circulação de pedestres pelo conjunto era estruturada pelo arruamento limítrofe existente e por caminhos ziguezagueantes que percorriam o conjunto e davam acesso as edificações. O conjunto foi projetado para uma área total de 185.000m², considerando duas fases de implantação, compreendendo um total de 48 edifícios com 2880 unidades de habitação na primeira fase, e 59 edifícios com 4038 unidades habitacionais na segunda fase, alcançando uma densidade de 1250 habitantes por hectare. As unidades habitacionais foram dimensionadas de acordo com estatísticas a respeito da típica família do industriário, sendo esta composta de 5 pessoas em média podendo oscilar entre 2 e 10 pessoas. A solução adotada foi uma célula média de 2 quartos, tendo áreas variáveis de 45 a 60 metros quadrados, sendo composto de pelo menos 1 sala, 1 quarto, 1 banheiro e cozinha. Para famílias maiores as unidades poderiam ter anexados ainda mais três quartos. O projeto previa seis tipos de blocos habitacionais: Edifícios A, B, C e D, J e K. A diversidade de módulos habitacionais garantia a flexibilidade necessária para o sucesso do empreendimento, que necessitava prover fundos para providência social e obter “um mínimo de percentagem sobre o capital aplicado, sem o qual não é possível ao Instituto o pagamento dos benefícios” (PDF, nov. 1942). Nas áreas mais valorizadas do terreno, junto ao Parque Dom Pedro II e à Avenida do Estado, também era proposta “a implantação do hotel, o que se justificava enquanto investimento por serem cobrados os alugueis a preços mais elevados.” (BRUNA, 1998,p.126) . Equipamentos como escola, creche, clube, restaurante, cinema, hotel, posto de gasolina, estação rodoviária, comércio, e serviços gerais, eram pulverizados pelo conjunto, e se diferenciavam dos edifícios habitacionais pela escala e pelas formas diretamente relacionadas com os programas, com o uso de cascas, prismas. O uso misto também foi um recurso de projeto. Além da diversidade de programa estavam previstos serviços

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de abastecimento de água potável, rede de esgoto e energia elétrica, que proveriam autonomia do conjunto em relação ao entorno. A implantação do conjunto com os edifícios soltos no parque estabeleceria poucas conexões espaciais do conjunto com o entorno imediato, em comparação com edificações implantadas à maneira da cidade tradicional, onde as conexões entre o espaço público e privado são diretas, apenas intermediadas por portões, jardim ou mesmo pela própria fachada da edificação. No caso dos edifícios soltos no parque a passagem do espaço público ao espaço privado, costuma se dar de maneira mais gradual e sequenciada por uma série de eventos espaciais como caminhos, jardins e passagens até a entrada da edificação. A preocupação em qualificar os espaços do parque como um local de estar, convívio e lazer fica evidente nas perspectivas que ilustram a vida entre blocos e sob os pilotis. É evidente que a qualificação do espaço que se pretendia contava com a boa manutenção do conjunto e com o apoio do Estado para garantir segurança assim como um bom nível de vida para seus habitantes, mas o que se configurou ao longo do tempo difere da espacialidade almejada. O Conjunto Habitacional construído- relações espaciais do projeto ideal ao real O conjunto efetivamente construído em 1950 corresponde apenas a 10% do conjunto habitacional projetado. De todo o plano, foram construídas 22 lâminas de 4 andares, “do tipo B” e do “tipo C” totalizando 602 unidades habitacionais. Apesar de ser apenas parte do todo projetado, o conjunto de edifícios laminares construídos são suficientemente representativos para uma avaliação deste modelo de urbanística habitacional ao longo do tempo e em uma avaliação mais panorâmica, exemplar da espacialidade contemporânea, produto de tempos passados e presente, como resultado de camadas sobrepostas pelo tempo. “(...) maior parte das propostas mais originais destes conjuntos estudados foram sendo gradativamente desativadas, desmontadas, destruídas. Ao que tudo indica, os moradores preferiram um padrão mais conservador e voltado para o espaço privado. Os resultados foram blocos cercados, recriando-se lotes onde se pretendia criar parques; tetos-jardins desativados; espaços junto aos pilotis transformados em garagens e depósitos privados; equipamentos coletivos desativados.” (BONDUKI, 1998, p.176)

Pela base cadastral de 1975, pode-se notar que os espaços entre os edifícios B e C ainda eram destinados a espaços abertos não edificados, com marcação de rotas de caminhos que levariam pedestres do passeio publico até as portas de acesso às caixas de escada no miolo dos blocos, porém nos vazios destinados a implantação dos edifícios tipo A, já aparecem, de maneira desorganizada, a marcação de construções. Sabe-se que ocupados por “prédios improvisados de serviço da previdência, destruindo a composição pretendida” (BONDUKI, 1998, p.169). Ficam evidentes alguns fechamentos entre os blocos, com muros e grades, assim como o estado de abandono dos espaços públicos, que mais se assemelham a terrenos baldios. Os espaços internos das habitações também são registrados como retratos da vida privada, em perspectiva a relação homem e espaço.

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Atualmente os espaços entre os blocos laminares que antes eram espaço público se tornaram espaços condominiais, cercados, com controle de acesso e muitas vezes cobertos para estacionamento de automóveis. A trama modernista dos edifícios soltos no parque foi ao longo dos anos sendo incorporada como na cidade tradicional, ou seja, o lote urbano foi redesenhado de maneira espontânea pelos próprios moradores, inserindo os blocos de apartamentos em espaços privados com características de condomínio. Com isso as condições de animação do conjunto previstas em projeto foram totalmente alteradas ao longo do tempo, configurando outras relações espaciais do conjunto com o entorno, distintas do projeto original. Ainda hoje, quando visto em fotos aéreas em escalas mais abertas com tomadas do centro da cidade e tomadas do entorno, o Conjunto Habitacional da Várzea do Carmo impressiona e se destaca pela grande escala e diferente padrão morfológico em relação ao entorno. Porém com uma abordagem voltada o aspecto da permeabilidade da trama urbana hoje, ou seja, as rotas de acesso aos edifícios e percursos possíveis, o que percebe é que apesar da diferente tessitura do conjunto em escala e implantação em relação ao entorno, a espacialidade ali vivenciada é a mesma de uma rua corredor, uma vez que os espaços livres entre os edifícios são murados, cercados e edificados. Um processo paradoxal de valorização do espaço privado - em tendência contrária ao discurso que justificava o projeto. Como em projetos similares, esse processo de valorização do espaço privado retoma valores da cidade tradicional, em seu parcelamento e gradações de acessibilidade. Um processo ironicamente espontâneo de camuflagem da diferença. Do projeto ideal à sua condição atual o conjunto se configura como um espaço urbano contemporâneo, em condição da espacial da valorização do espaço privado, através dos muros, grades e guaritas, ou seja, do fechamento condominial em solo parcelado, em torno de edifícios tipicamente modernos. Considerações finais Através dos textos lidos e ideias expostas acima, tenta-se responder algumas das questões chave abordadas no texto acima. Acredita-se que ouve no Brasil uma arquitetura que de fato se assemelha ao que se idealizava na sua formação inicial, contudo, esta se deu muito mais no campo pratico, com o desenvolvimento das técnicas de construção civil e dos materiais utilizados, do que impulsionando uma transformação social. Percebe-se que a utopia de se promover novas relações sociais por meio da habitação moderna e de se criar uma nova cultura de modo de vida também esteve presente nos projetos dos primeiros arquitetos modernos no Brasil como citado acima por Paula Bruna sobre como os conjuntos sob pilotis, com térreo público, podiam contribuir para uma qualificação da vida social do homem moderno. Contudo, como se viu no estudo de caso do conjunto habitacional Várzea do Carmo, as condições de animação do conjunto previstas em projeto foram totalmente alteradas ao longo do tempo , o ideais de uma transformação social pelo espaço foram se perdendo e a população preferiu privatizar a maioria dos espaços público indo contra a ideologia moderna e se voltando mais pro conservador. A tese central de “Projeto e utopia” de Manfredo Tafuri sustenta que desde

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o Iluminismo a arquitetura tem sido um instrumento ideológico do capitalismo, por isso não há como ela ser “revolucionária” como assim queriam os modernos. Tafuri conclui também que a arquitetura moderna tentou resolver problemas que estavam além do seu alcance enquanto disciplina.. Portanto, apesar de na Europa o ideal utópico moderno também ter falhado, especialmente no que diz respeito ao minucioso programa da arquitetura para o progresso geral da sociedade, percebe-se que no Brasil o movimento como transformador social foi praticamente insignificante e o movimento maior relevância na historia arquitetônica pela estetica, como os projeto de Niemeyer, por exemplo. Talvez tenha faltado que um plano politico de projeto de nação para o País que não um projeto voltado sempre para o futuro moderno; algo que não havia acontecido no Brasil como ocorreu na Europa. Não só aqui, mas em toda a América Latina, e em outras partes do mundo, há exemplos de experiências arquitetônicas modernas realizadas tanto durante governos de esquerda como de direita. Percebe-se que estética modernista sempre agradou aos governos de pretensões desenvolvimentistas por ser considerada como a estética do “novo”. Sendo assim, afirma-se a impossibilidade de se fazer arquitetura de cunho social num país capitalista como o Brasil e que está aqui foi um registro do formalismo integral dessa ideologia: Enquanto morriam as utopias modernistas, na América Latina subsistia a arquitetura moderna que expressava de maneira monumental as premissas revolucionárias da forma.

Bibliografia BRUNA, Paulo. Os primeiros arquitetos modernos – Habitação Social no Brasil – 1930 – 1950. São Paulo, Edusp, 2010. BONDUKI, Nabil. Os pioneiros da habitação social. Vol. 1. São Paulo, Editora Unesp, 2014. KOPP, Anatole. Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa. São Paulo, Nobel, 1990. PORTO, Rubens. O Problema das Casas Operárias e os Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões. Rio de Janeiro, 1938. LIMA, Attilio C. Lima. Conjunto residencial Várzea do Carmo IAPI São Paulo. Rio de Janeiro: Revista Municipal de Engenharia PDF, n. 6, v. IX, nov. 1942. p. 3-12. LIMA, Attilio C. Lima. Conjunto residencial Várzea do Carmo IAPI São Paulo. Rio de Janeiro: Revista Municipal de Engenharia PDF, n. 4, v. X, out.1943. p. 238-249 .ARANTES, Otília Beatriz Fiori. O Lugar da arquitetura depois dos modernos. 3ª edição, São Paulo, Edusp, 2000. TAFURI, Manfredo. Pojecto e utopia. Coleção Dimensões, volume v. 16. Lisboa, Presença, 1985.

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artigo

Adaptação das ciclovias em grandes cidades: transfor mações em Amsterdã

Natália Sartini Fonseca

Recentemente percebeu-se a tendência mundial em grandes cidades a dar grande importância ao planejamento e implantação de projetos de ciclovias em seus territórios. Entretanto, a concretização destes projetos ainda está passando por grandes dificuldades e críticas. Este trabalho procura levantar as principais questões e desafios pelos quais passam as instâncias públicas de cidades de grande porte para a integração da bicicleta em sua malha urbana estruturada e pré-existente. Além disso, questões de cunho social e cultural que ainda são vistas como barreiras a serem transpostas por estas políticas devem ser analisadas para entender de que forma atuam no acolhimento ou recusa desta mudança espacial. Todas estas informações devem ser interpretadas a partir do estudo de como isto se deu de forma satisfatória na cidade de Amsterdã, na Holanda, a partir da análise das transformações espaciais, ideológicas, políticas e o histórico da cidade. palavras-chave: ciclovia, grandes cidades, Amsterdã. 105

Resultados Desde o governo de Getúlio Vargas, o Estado brasileiro sempre priorizou a indústria automobilística. Apesar de inicialmente ter tido grande evolução no ramo ferroviário, a importância econômica da comercialização e uso dos derivados de petróleo impulsionaram fortemente o sistema automobilístico. Este modal de transporte além de ser custoso não comporta uma grande demanda de usuários, privilegiando apenas as classes mais altas e que já possuem o poder aquisitivo para a compra de automóveis. Enquanto que, as classes mais baixas, que sempre dependeram do transporte público, estiveram sempre a mercê da precarização do transporte público, já que com o excessivo número de veículos circulando e os constantes engarrafamentos e congestionamentos presentes nas cidades, a qualidade do transporte público coletivo diminuiu, principalmente quanto à velocidade de deslocamento. Não apenas no Brasil, mas em grande parte do mundo, a priorização do uso do automóvel gerou uma discriminação das outras formas de transporte na organização viária geral nas grandes cidades. Segundo BAROSSI, Tatiana (2006), o uso da bicicleta retoma a humanização da cidade, já que com a velocidade reduzida, relativamente compatível ao tempo de percepção do pedestre, há uma aproximação entre ambos que é de grande importância para a vitalidade das cidades. A migração do transporte individual automotivo para aquele não motorizado ou coletivo propicia a formação de ruas mais ativas que consequentemente melhoram o grau de sociabilidade entre as pessoas. Esta preocupação com o relacionamento social nas cidades também entra em harmonia com a ideia de que as ruas são mais seguras na medida em que mais pessoas transitam por ela (JACOBS, 2011). Assim, o uso das ruas por ciclistas e pedestre proporciona que mais pessoas andem nas ruas, tornando-as mais seguras e com mais vida. Não obstante, o uso da bicicleta proporciona o aprimoramento do olhar dos habitantes sobre a cidade e a sua percepção e compreensão espacial desta que ajudam a aguçar o senso crítico sobre os espaços livres e públicos da cidade. É neste contexto que surge a proposta de rua compartilhada, (BAROSSI,2009) que baseada na consciência plena daqueles que a frequentam e somada a projetos públicos eficientes bastam para um convívio harmônico entre as diferentes modalidades de transporte nas grandes cidades. De acordo com a União Europeia, um ciclista comum pedalando na cidade chega a uma velocidade média de 15 km/h, sendo necessários apenas 20 minutos para cumprir a distância de cinco quilômetros. Um automóvel cumpre a mesma distância com o tempo aproximado. Porém, a bicicleta o faz ocupando um volume muito menor que o do automóvel, evitando engarrafamentos por superlotação de vias. No espaço que um automóvel ocupa ao se deslocar na cidade é possível que seis bicicletas se movimentem. A economia de espaço pela bicicleta não é perceptível apenas quanto ao deslocamento, mas também quando estacionada, já que em uma vaga de estacionamento é possível estacionar até vinte bicicletas. A determinação da bicicleta como sistema de transporte é denominada Gerenciamento da Mobilidade e é descrito como um instrumento urbano que objetiva sobretudo diminuir o volume total do tráfego de veículos motorizados a partir da transferência de fluxo de um modal de transporte para outro, sendo que o objetivo é a escolha espontâ106

nea da população local por esta substituição a partir do incentivo de políticas públicas dos governos em questão. Entretanto, a implantação da bicicleta no contexto urbano requer mudanças em diferentes escalas. Uma de porte menor, com o aumento do tamanho e a qualidade das calçadas para a inserção de ciclovias. E outras de porte maior como a implantação de programas de segurança e educação no trânsito, com enfoque na construção de uma harmonia entre os veículos motorizados, as bicicletas e os pedestres, e como a ampliação da infraestrutura de mobilidade, que deve estar acompanhada de transformações no espaço urbano dos espaços públicos e da integração com outras formas de transporte em massa. Nesse ponto, a intermodalidade é ponto focal para a construção de uma rede ciclo viária eficiente para cidades com densidades demográficas altas. A proximidade da população com a rede de trens e metrô estimula a criação de um sistema integrado. Assim, para BOARETO, Renato (2009), há dois tipos de situação mais recorrentes na cidade. O local de trabalho encontra-se próximo de alguma estação de trem ou metrô, possibilitando ao indivíduo pedalar de casa até a estação, guardá-la em um bicicletário, utilizar o transporte público, e a utilizar novamente para voltar a residência no final da tarde. E a segunda, que é quando tanto a moradia como o trabalho estão distantes dos transportes públicos, tornando necessário o transporte da bicicleta dentro da condução. Com a implantação destas transformações, é possível promover maior segurança para o ciclista, reduzindo os riscos de acidente e desaparecendo com qualquer tipo de conflito entre os modais de transporte. Dessa maneira, deverá ser possível transformar a consolidada cultura rodoviarista com preferência ao uso do carro, que parece hoje ser um dos maiores desafios para a implantação do sistema ciclo viário, de forma a convencer os cidadãos das grandes cidades que a bicicleta não é apenas um transporte alternativo, mas sim a solução para as crises de superlotação do sistema de mobilidade destas. Neste sistema de mobilidade, têm-se a presença das ciclovias, que são faixas de uso exclusivo para o tráfego de bicicletas, segregada de calçadas e vias de automóveis. Apesar de extremamente importantes para a mobilidade urbana cicloviária e da segurança e conforto que proporcionam a seus usuários, a ciclovia isolada não é a solução para o transporte por bicicleta. Elas devem ser planejadas em conjunto com uma rede cicloviária, integrando equipamentos essenciais ao seu funcionamento. A saber, segundo BOARETO, Renato(2009), a integração das ciclovias e ciclorrotas em uma grande cidade deve seguir um plano diretor pautado em 3 programas principais: 1- Programa de Gestão: regulamentação da circulação cicloviária, audiências públicas participativas que questionem as necessidades dos usuários, financiamento da implantação e gestão adequada, programas de incentivo à compra de bicicletas. 2- Programa de intermodalidade: localização dos pólos cicloviários, bicicletários e paraciclos, intermodalidade da bicicleta com outros meios de transporte de massa, modelo de gestão de bicicletas públicas. 3- Programa de educação: estímulo ao uso da bicicleta, orientação comportamental, eventos ciclísticos, plano cicloviário integrado a escolas e auto-escolas.

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Para um correto funcionamento do sistema cicloviário, o item 2 citado anteriormente é de fundamental importância. Isso permite que distâncias maiores sejam percorridas e que imprevistos temporários não impossibilitem a continuidade do trajeto. No entanto, existem alguns obstáculos a serem superados neste processo e que são recorrentes em grandes cidades do mundo. A saber, o conflito espacial com o tráfego motorizado, devido à prevalência do sistema rodoviarista, a falta de estacionamento coberto e seguro, falta de escolas e programas educacionais para a formação de ciclistas conscientes. Porém, os problemas não são apenas de cunho cultural ou social, mas também de cunho natural. A topografia do terreno e condições do tempo e temperatura também possuem grande influência no processo de implantação das ciclovias urbanas. Para analisar estas intervenções a serem colocadas em prática, têm-se o exemplo de Amsterdã. Tida como modelo mundial do uso de transporte por bicicletas (POJANI, 2014), a estrutura de sua cidade era muito pouco voltada a elas antes da década de 1970. As ciclovias eram estreitas e perigosa, sem conexões entre si e pouco usadas devido ao intenso uso do automóvel, principalmente no pós Segunda Guerra Mundial, quando a Holanda passou por uma grande reconstrução. Neste período, o nível de vida de sua população sofreu um grande salto, sendo que até 1970 o piso salarial de sua população chegou a 222% de aumento, estimulando fortemente o uso de automóveis no país. Como as cidades não estavam projetadas para esse grande aumento de volume de carros, muitas ciclovias e edifícios foram destruídos em prol dos carros. Praças e parques começaram a se transformar em grandes estacionamentos e, com isso, o índice de mortalidade por atropelamentos e acidentes de trânsito cresceu demasiadamente. Um grupo chamado Provos sugeriu à prefeitura municipal de Amsterdã que impedisse a entrada de 40 automóveis no centro da cidade e disponibilizasse vinte mil bicicletas para uso pela população, mas a ideia não foi aceita. O grupo então espalhou cerca de 50 bicicletas brancas pelo centro de Amsterdã na tentativa de pressionar o governo a tomar medidas em prol de seu uso. As bicicletas foram recolhidas pela polícia, mas a sociedade exigiu a implementação de medidas de incentivo ao uso da bicicleta. Esta ação foi a primeira tentativa de se implantar um sistema de bicicletas comunitárias. Somado a isso, em 1973 com a grande crise do petróleo surgiram questionamentos sobre o intenso uso dos carros e de veículos movidos ao petróleo nas cidades holandesas. O fator econômico, somado ao descontentamento da população com os índices de acidente, a demolição de monumentos históricos para a abertura de novas vias e a vontade política de um coletivo por mudanças incitaram diversos protestos no país. Diante deste quadro, intensas políticas de incentivo ao uso da bicicleta foram desenvolvidas iniciadas com a proibição do uso do automóvel aos domingos para economizar gasolina, o fechamento permanente do centro da cidade para a circulação dos carros e a alta cobrança de impostos sobre o uso do automóvel. A saber, em 1978 o presidente de Amsterdã estimulou a criação de um planejamento territorial com expansão da rede ciclável e remoção de possíveis barreiras existentes aos ciclistas na cidade. Além disso, criou um grupo de trabalho para supervisionar e estimular os projetos de expansão da rede, todos com abertura para participação pública. Na década de 1990, continuou a política de expansão, mas implementando um sistema de estacionamentos para bicicletas integrados a estações de trem e metrô (LAN108

GENBERG, 2000). Segundo (PUCHER, 2010), a utilização da bicicleta atualmente faz parte da cultura da cidade, que conta com cerca de 20 mil quilômetros de extensão e é utilizada diariamente por cerca de 40% da população. No centro de Amsterdã, as ciclovias se integram ao sistema de transporte coletivo, com grandes estacionamentos de bicicletas na Estação Central, que integra a cidade para o leste, sul e oeste a partir de um sistema de bonde chamados “trams”. Além disso, a cidade também possui um sistema de bicicletas partilhadas que podem ser retiradas em diversos pontos de atração da cidade ou por telefone, já que o serviço está disponível em quinze estações de interface (PUCHER, 2010). Amsterdã adaptou a malha cicloviária ao território e criou um sistema com hierarquização de fluxos e implementação de uma rede secundária que oferece vias mais rápidas para trajetos com distância de aproximadamente 7 km. Além disso, por norma, leis de trânsito com preferência ao ciclista em cruzamentos com semáforos e a sincronização destes com a velocidade dos ciclistas, garantindo uma continuidade no percurso, promovendo maior conforto e agilidade a seus usuários (PUCHER, 2010). A estrutura urbana da cidade também é fator de destaque para o bom funcionamento do sistema. Além da topografia quase totalmente plana, o planejamento urbano desta com uma alta densidade construtiva e uso diversificado do solo, misturando residências, escritórios, comércio e serviços, facilitam a escolha pelo modal da bicicleta. Ainda, a criação de uma política de desestímulo ao uso do carro particular com a redução do número de vagas públicas nas ruas (PUCHER, 2010). Ainda, outra intervenção mostra a preocupação governamental com intervenções públicas, com a criação um programa de combate ao roubo de bicicletas. Após a implantação deste programa, os números de bicicleta roubadas a partir de 2001 foi reduzido em cerca de 37,5%. O programa consiste no registro oficial de bicicletas, que juntamente com as lojas do ramo e com a polícia local fazem controles regulares pelas ruas. Além das diversas políticas de estímulo à bicicleta, os governantes decidiram tornar o automóvel em um modo de transporte caro e inconveniente. No centro da cidade, o uso e estacionamento deste é concebido apenas através de uma série de impostos e taxas, além do que, desde os anos 1970, a cidade reduziu consideravelmente a quantidade destes no centro (LANGENBERG, 2000). A gestão de Amsterdã também criou o programa “Park and Bike”, o qual permite estacionar os carros na entrada da cidade e alugar uma bicicleta com a qual é possível chegar ao centro. Apesar das inúmeras vantagens do crescimento cicloviário na cidade, um grande problema atual está relacionado ao estacionamento das bicicletas. Na Estação Central, anteriormente citada, o estacionamento existente possui 12500 vagas e está superlotado, com uma média de 100 bicicletas sendo retiradas por dia por estarem estacionadas irregularmente (TAGLIABLUE, 2013). Não apenas Amsterdã, mas inúmeras cidades holandesas, a partir da década de 70, propuseram projetos financiados pelo governo federal holandês visando o aumento das ciclovias e a separação física entre elas e o espaço dos carros, resultando em uma mudança de posição dos habitantes das cidades. A saber, após essas mudanças, em Hague, houve um aumento de entre 30 a 60% de ciclistas, também a mortalidade infantil 109

despencou de mais de 400 em 1971 para apenas 14 em 2010. Outro exemplo de cidade holandesa é a cidade de Houten, que foi planejada paa priorizar os deslocamentos a pé ou transportes não motorizados, sendo permitido o uso do carro apenas na via que circunda a cidade. Para isso, as ruas internas foram projetadas de forma sinuosa, sem saída e com rigorosa legislação de velocidade, resultando em 42% da população se locomovendo por bicicletas e 21% a pé (CÉSAR, 2010). Esses índices provaram aos cidadãos que a transformação do espaço público da cidade foi fundamental para a inserção das ciclovias e confirmaram a posição de que retirar o espaço do carro para implantar vias de bicicletas não é uma perda para a cidade, mas sim um avanço nos sistemas de transporte urbanos. Apesar dos avanços na mentalidade holandesa, grande parte da população das grandes cidades ainda está acondicionada a utilizar o carro de forma a não acreditar na possibilidade de integrar totalmente o modal bicicletário. Para que se consiga mudar a mentalidade destas populações, políticas públicas devem ser implementadas com o desestímulo ao uso do automóvel com medidas como pedágio urbano, cobrança de estacionamentos, campanhas educativas e implementação de infraestruturas. As ciclovias devem existir como rede integrante que englobe diversas outras vantagens como ciclofaixas, bicicletário, tráfego compartilhado e integração com outros modais de transporte. Dessa forma, a somatória de infra estrutura bem planejada e conectada com a situação pré-existente com políticas públicas educacionais, os habitantes das grandes cidades entenderão que o uso da bicicleta, em detrimento ao automóvel, é mais sustentável, diminui ruídos e acidentes graves, melhora o trânsito e diminui consideravelmente os tempos de deslocamento, aumentando a qualidade de vida nas grandes cidades e migrarão espontaneamente para a sua utilização. Referências BOARETO, Renato. A bicicleta e as cidades: como inserir a bicicleta na política de mobilidade urbana. São Paulo: Instituto de Energia e Meio Ambiente, 2009. BAROSSI, Tatiana. Ciclovias urbanas: a possibilidade da bicicleta como meio de transporte na cidade. Projeto Piloto: Cidade Universitária e entorno. São Paulo: Fundo de Cultura e Extensão da USP, 2006. CESAR, Yuriê. A garantia do direito à cidade através do incentivo ao uso da bicicleta nos deslocamentos urbanos. Brasília, 2010. Cycling in the Netherlands – Introduction vídeo. Disponível em: < https://www.youtube.com/ user/markenlei>. Acesso em 12 de novembro de 2014. JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. LANGENBERG, Pex. Cycling in Amsterdam. Developments in the city. Amsterdam: Department of Infrastructure, Traffic and Transport, 2000. POJANI, Dorina, Going Dutch? The export of sustainable land-use and transport planning concepts from the Netherlands. Urban Studies, December 2014 PUCHER, J & BUEHLER, R. Making Cycling Irresistible: Lessons from The Netherlands, Denmark and Germany. Amsterdam: Transport Reviews, 2010. TAGLIABUE, John. The Dutch Prize their pedal power, but a Sea of bikes swamps their capital. The New York Times, 2013. 110

artigo

Análise comparativa do Programa Renova Centro

Marina Gonçalves Marques

Este artigo analisa o Programa Renova Centro – implementado pela prefeitura municipal de São Paulo – que readapta edifícios ociosos no centro da cidade para fins habitacionais e destina-os a uma população de baixa renda, na tentativa de solucionar a problemática da falta de moradia e do esvaziamento da área central. Foram elencados os obstáculos encontrados pelo programa e os casos dos edifícios que já estão em funcionamento. Programas de revitalização de conjuntos habitacionais na França e na Espanha também foram analisados para consolidação de uma base comparativa. palavras-chave: São Paulo, Programa Renova Centro, habitação social, programas de habitação social internacionais. 111

Introdução O modelo centro-periferia é um padrão de segregação da população, onde o primeiro concentra a maioria dos serviços urbanos, públicos e privados e a população de alta renda, enquanto o segundo é subequipado, distante e ocupado pela população mais pobre. Tal modelo desenvolveu-se em São Paulo na década de 1970, devido ao padrão de industrialização que foi instaurado, que pagava aos seus trabalhadores um mísero salário que mal podia ser destinado à habitação. Surgiram nessa época inúmeras favelas e o número de cortiços aumentou. Atualmente, os deslocamentos diários da população no eixo centro-periferia, ou trabalho-moradia continuam, mas o centro passou por uma fase de decadência e muitos edifícios estão abandonados, o que faz uma parcela da população mais pobre mobilizar-se em torno de movimentos de luta por moradia, para ter acesso a essa área da cidade que ainda é rica em infraestrutura. Na tentativa de solucionar esses problemas, a prefeitura vem implantando uma série de programas para a revitalização do centro e para a produção de habitação social. Entre eles, o Programa Renova Centro, que será estudado no artigo, que pretende retomar o uso residencial do centro e conter a expansão da mancha urbana da cidade, transformando tais edifícios ociosos em habitação social. A habitação social no centro das grandes metrópoles é uma questão que vem sendo muito discutida atualmente. Em São Paulo, o tema desenvolveu-se com mais força a partir do final da década de 1990, principalmente após a intensificação dos movimentos de luta por moradia no local. Alguns países da Europa também sofreram com déficit habitacional após a Segunda Guerra Mundial, e atualmente já possuem resultados consolidados das medidas que foram tomadas na época para a produção de habitação social. Serão estudados alguns exemplos para fins comparativos com o que está sendo feito atualmente em São Paulo. Reabilitação de conjuntos habitacionais na França O primeiro programa voltado para a reabilitação de conjuntos habitacionais franceses na periferia foi o HVS (Habitat e Vida Social). Suas primeiras operações iniciaram-se em 1977 e o programa consistia em melhoramentos como implantação de equipamentos públicos, recuperação das edificações, requalificação dos espaços exteriores, atividades culturais para dar mais vida ao bairro, enfim, questões muito pontuais. Entretanto, no período a França passou por uma grave crise financeira que abalou muito essas áreas e seus habitantes. O desemprego estava em alta, as escolas não conseguiam suprir as demandas, o número de imigrantes que se assentavam nos conjuntos aumentava cada vez mais, etc. Foram levantados novamente, em 1981, os problemas relacionados aos conjuntos. E são citados: • Segregação social, multiplicada pela concentração de famílias em situação social e econômica difícil, e em especial de famílias de origem estrangeira. 112

Figura 1: Vista das intervenções de no conjunto Franc-Moisin. Fonte: Suely Muniz, 2001.

• Rejeição desses bairros pelo resto da cidade. • Alta porcentagem de jovens e, sobretudo de adolescentes nascidos nesses bairros nos anos sessenta. • Insuficiência e inadequação dos meios de gestão (manutenção, segurança...), o que conduzia a uma degradação acelerada dos equipamentos e dos espaços públicos. Desenvolveu-se então, uma politica publica de desenvolvimento social dos bairros, que se baseava em quatro principios fundamentais: • Atuar tanto sobre as causas da degradação quanto sobre a degradação em si, considerando, além dos problemas de moradia, o conjunto de problemas da vida cotidiana dos habitantes desses bairros, como a educação, inserção social e profissional, emprego, desenvolvimento, cultura, saúde, esporte. • Confiar à administração local a responsabilidade pública do programa, tanto em sua concepção quanto em sua gestão. • Fazer dos habitantes, e a seus representantes através das associações, agentes da mudança, proporcionando-lhes os meios institucionais e materiais para essa participação. No período entre 1984 e 1988, foi elaborado o IX Plan - Viver Melhor na Cidade, uma associação entre o Estado nacional e 18 regiões menores. O “desenvolvimento social dos bairros” foi tomado como prioridade e vários conjuntos habitacionais sofreram intervenções. No conjunto de Clichy-sous-Bois/Montfermeil foram previstas a compra de alguns edificios pela municipalidade para permitir sua reabilitação, aquisição de unidades para permitir o realojamento de moradores de um edificio cuja a demolição estava prevista, a realização de um Concurso de Urbanismo com vistas ao reordenamento urbano do conjunto, a redinamização economica e social, a reabilitação dos edificios e dos espaços exteriores dos conjuntos e o fomento à reabilitação dos edificios privados. (OTERO, 2009) No conjunto La Grande Borne, a reabilitação das moradias; a reorganização da circulação e dos estacionamentos; a melhoria de equipamentos urbanos como ginasio esportivo, piscina, escola e criação de um centro social com biblioteca; a implantação 113

de um zoneamento especial para fomentar a atividade economica com vistas ao incentivo à geração de empregos; investimentos para enfrentar a situação de fracasso escolar dos moradores jovens; reforço à segurança e melhoria nos transportes. (OTERO, 2009) Entre 1994 e 1998, o VI Plan passou a discutir a questão dos conjuntos não isolados em si, mas como parte integrante da cidade. Politicas de ambito regional foram implantadas em relação à melhorias na saúde, na educação, no lazer e no transporte, de acordo com as especificidades de cada bairro. Reabilitação de conjuntos habitacionais na Espanha Na Espanha não houve um programa de reabilitação de conjuntos habitacionais em larga escala, e sim algumas ações pontuais que foram tomadas em casos particulares e são bons exemplos de como se recuperar uma área degradada. Na década de 1950, a produção de conjuntos habitacionais estava pautada em princípios de máxima produção (quantidades) e mínimo custo, o que acabou gerando espaços desqualificados, sem qualquer tipo de infraestrutura e desconectados da malha urbana. Na década seguinte já começaram a surgir problemas referentes à manutenção dos edifícios, que possuíam acabamento de qualidade baixa.

Figura 2: No alto, situação original do conjunto General Ricardos. Abaixo, projeto de remodelação do conjunto proposto pelo PERI- Plan Especial de Reforma Interior. Fonte: BLOS, Dorotea. Op. C. 372 114

A partir da redemocratização, em 1975, as demandas sociais represadas após quase quatro décadas de autoritarismo franquista vieram à tona e, especialmente no campo da habitação, cobraram uma resposta do Estado. O movimento social ganhou força e passou a reivindicar uma série de melhorias nesses bairros, quem podem ser sintetizadas em duas linhas principais: a luta por melhorias nas moradias, equipamentos e infraestrutura; e pela remodelação e o direito de permanência nos bairros. (OTERO, 2009) A partir de 1979, os movimentos sociais deram origem ao programa Remodelacion de Barrios, que atuou em aproximadamente 30 bairros da periferia de Madri, com demolições e reconstruções de edificios habitacionais, comercio e equipamentos públicos. Uma das condições dos movimentos era de que a população não poderia ser remanejada, ou seja, a manutenção da população na área deveria ser garantida, mesmo após a valorização advinda das reformas. No entanto, o programa ficou restrito as melhorias nas condições de habitalidade e não levou em conta as possibilidades de integração desses bairros com o centro. O acesso às unidades habitacionais se dá por meio de aluguel, sendo que após sete anos os moradores podem excercer seu direito de compra ou optar por continuar com o aluguel. Os antigos moradores tiveram o aluguel dos primeiros quatro anos reduzido pela metade por terem deixado suas antigas moradias. Por subsídios, o morador poderia obter, dependendo de sua renda e composição familiar, até 95% de desconto no valor total. Programa Renova Centro em São Paulo O Programa pretende atender aproximadamente 3.000 famílias, que possuam renda mensal de até 10 salários mínimos, e reabilitar cerca de 50 edifícios. E pelo menos 25% das unidades habitacionais de cada edifício deverá ser destinada a aluguel social entre 4 e 6 salários mínimos. Cinco etapas de desenvolvimento foram definidas, sendo: . 2009 - Identificação dos edifícios vazios . 2009 – 2010 - Analise técnica . 2011 – 2012-Viabilidade Financeira/Anteprojeto/Busca por recursos/Desapropriações . 2011 – 2012 - Elaboração de projetos / Editais de Concorrência . 2012 – 2014 - Obras e entregas das unidades Foram levantados as maiores dificuldades na implementação do programa, sendo elas: Os prédios, na maioria das vezes, são de propriedade privada e o contato com os proprietários para autorização de vistorias é muito dificultado. Isso ocorre porque esses esperam por uma revitalização do centro, junto à revalorização do imóvel, e não facilitam as vistorias até que o prédio seja desapropriado. Outra dificuldade é que os prédios antigos não estão de acordo com as especificações da legislação em vigência quanto à segurança contra incêndios e acessibilidade universal, e nem possuem os requisitos de iluminação e ventilação exigidos pelo Código 115

de Obras, então teriam que sofrer várias adaptações, que em alguns casos não são possíveis. Além disso, devido à má conservação dos edifícios, a estrutura pode estar comprometida, gerando um grande risco de segurança para a população. Tem de se fazer uma rigorosa vistoria, que como foi citado anteriormente, não é facilitada pelos proprietários dos edifícios. Um problema recorrente é que, entre a desapropriação e o inicio das obras, o prédio fica um período sem vigilância, podendo estar sujeito a novas invasões, que prejudicariam o andamento do projeto. Inevitavelmente, quando um edifício é revitalizado, ele é também revalorizado. Isso acaba excluindo uma parcela da população que não possui condições de arcar com o aluguel exigido, e o programa falha na provisão de moradia acessível a todos. Existem problemas com a gestão dos edifícios que já foram revitalizados, uma vez que as unidades foram destinadas tanto para a locação social quanto para a venda, o que demonstra a diferença de renda da população que lá reside.

Figura 3: Planta pavimento tipo

Figura 4: Planta pavimento tipo

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Por fim, também existem dificuldades quanto à viabilização de recursos, pois não se consegue estruturar um modelo de financiamento para uso misto e sustentar edifícios de habitação social em uma área central que rapidamente se valoriza. Estima-se um total de R$ 650 000 000 em recursos necessários para o programa, sendo destinados 52% desse valor às desapropriações, 2% para os projetos e 46% com as obras. Exemplos de edificios já revitalizados Edificio Asdrúbal – Localizado na Rua Asdrúbal do Nascimento, 274, o edifício teve obras concluídas em 2009. São aproximadamente 3000 m² de área construída, que resultaram em 40 unidades habitacionais destinadas a famílias de até três salários mínimos. Anteriormente era um prédio comercial e atualmente possui 7 quitinetes, 29 apartamentos de 1 dormitório e 4 apartamentos de 2 dormitórios. Edificio Riachuelo – Localizado na Rua Riachuelo, 275, o edifício teve obras concluídas em 2008. São aproximadamente 8300 m² de área construída, que resultaram em 120 unidades habitacionais destinadas a famílias de até três salários mínimos. Anteriormente era um prédio com salas comerciais e instalações esportivas e seu estado de conservação era muito precário. Edificio Senador Feijó – Localizado na Rua Senador Feijó, 126, o edifício teve obras concluídas em 2009. São aproximadamente 2000 m² de área construída, que resultaram em 45 unidades habitacionais destinadas a famílias de até três salários mínimos. Anteriormente era um prédio com residencial que depois foi transformado em hotel. Conclusão Podemos concluir através da analise dos programas de reabilitação de conjuntos habitacionais estudados que não existe um modelo ideal de habitação a ser implantado com garantia de um resultado positivo. Tem de se fazer um estudo da população, do funcionamento da cidade, das condições econômicas de ambos, entre outros. Características únicas necessitam de projetos específicos. Tanto na França quanto na Espanha, pode-se notar que a reabilitação dos conjuntos ocorreu na própria periferia, não havendo deslocamento da população. Enquanto o primeiro reformava, o segundo demolia e refazia, mas ambos demonstraram a real carência desses conjuntos: a infraestrutura da cidade. Historicamente a habitação social foi construída como uma parcela a parte, uma cidade dependente de outra cidade, e não se pensava em integração, em fazer parte de um todo. No caso de São Paulo, uma qualidade do Programa Renova Centro é justamente essa integração. A população pode ter acesso à infraestrutura já existente, pode ter acesso a uma moradia digna e pode reduzir seu deslocamento diário rumo ao trabalho. Pode fazer parte desse espaço subutilizado.

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Como vimos, existem inúmeras dificuldades, mas também exemplos de edifícios que tiveram bons resultados e atualmente funcionam como habitação social na área central. Esse pode ser o começo para a solução da problemática questão habitacional de São Paulo, que sofre com um grande déficit habitacional, expandindo cada vez mais sua periferia com moradias irregulares.

Bibliografia http://www.habitacao.sp.gov.br/casapaulista/downloads/ppp/apresentacao_programa_renova_centro.pdf http://www.lares.org.br/Anais2013/artigos/785-1110-2-RV.pdf http://ww2.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/secretarias/meio_ambiente/eixo_eco_economia/curso/Riachuelo.pdf OTERO, E. As possibilidades e os limites da reabilitação de conjuntos habitacionais em São Paulo. São Paulo, 2009. TSUKUMO, I. T. L. Habitação social no centro de São Paulo : legislação, produção, discurso. São Paulo, 2007. ABIKO, A. K. Política habitacional na França : locação social e villes nouvelles. Sao Paulo, Epusp, 1993.

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artigo

Análise crítica do “Concurso Nacional de Ensaios Urbanos: desenhos para o zoneamento de São Paulo

Ciro Marchi Moreno Dias Victor de Almeida Presser

O presente trabalho propõe a análise crítica do Concurso Nacional de Ensaios Urbanos, a partir de uma breve leitura do contexto no qual foi feita a apresentação do concurso, do seu edital e dos resultados obtidos nas categorias indicadas. O objetivo deste artigo é diagnosticar os diferentes modos de compreensão da cidade de São Paulo que aparecem dentro das ideias de cada equipe. Para isso, colocam-se como tema da análise os instrumentos para regulamentação do uso do solo propostos à luz dos conceitos e princípios urbanísticos contemporâneos de modo que seja possível identificar o caráter prepositivo que os apontamentos de cada equipe indicam. palavras-chave: concurso Ensaios Urbanos, uso do solo, urbanismo contemporâneo. 119

1. Introdução Durante o fim do ano de 2013 e início de 2014 a cidade de São Paulo estava atravessando um período de singular importância no campo do planejamento urbano e do estabelecimento de um desenho urbano para a cidade. Nestes meses, 56 trabalhos foram elaborados e entregues ao Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) no Departamento de São Paulo, divididos em 2 modalidades diferentes, cada uma com categorias específicas. Apesar do número pouco expressivo de participantes no concurso, quando comparado com outros eventos promovidos para a categoria de arquitetos e urbanistas, este foi de grande relevância. O concurso nomeado “Concurso Nacional de Ensaios Urbanos: Desenhos para o zoneamento de São Paulo foi fundamentado em dar espaços a reflexões entorno de quais as diretrizes que estão sendo colocadas como as mais importantes dentro da lógica do desenvolvimento da cidade atual. Não apenas como resposta a inquietações de desenho, mas também como ação de colaboração com o poder público, o evento se destaca por possibilitar a cooperação entre o setor privado e o público, abrindo as possibilidades de mais concursos que tenham este objetivo em outras cidades brasileiras, assim como na própria cidade de São Paulo. 2. Revisão bibliográfica Como referência básica para a análise do concurso, utilizou-se alguns documentos relacionados diretamente este. Inicialmente, o edital foi utilizado como balizador para o entendimento dos pontos os quais o concurso previa desenvolver, qual era proposta e quais os objetivos estabelecidos. Como segunda etapa, verificaram-se os resultados nomeados pelo júri como vencedores em cada categoria, analisando-se as pranchas correspondentes a cada trabalho e quais os conceitos e propostas relevantes a fim de que fossem declaradas as melhores propostas. Como etapa seguinte, foi utilizada a ata de declaração do júri como documento consultivo a fim de que se confirmassem as preposições elegidas anteriormente. A discussão da revisão do Plano Diretor para São Paulo, a elaboração de novos instrumentos e a revisão e/ou manutenção de outros já estabelecidos foi de grande importância para o desenvolvimento das ideias vistas nas pranchas apresentadas pelas equipes. A cartilha do Novo Plano diretor foi consultada para que as definições, as possibilidades e modos de usos estabelecidos oficialmente fossem comparadas com aquelas propostas pelas equipes. No âmbito internacional, a publicação britânica Urban Design configura-se como uma fonte de informação que traz publicações a respeito do tema do desenvolvimento e planejamento urbano e que apresentou artigos relevantes para a abordagem e elaboração do presente trabalho. No âmbito nacional, as produções desenvolvidas na FAUUSP por João Shette Whitaker , Raquel Rounik e Nabil Bouduki fornecem a dimensão da complexa conjuntura de valores sociais, culturais e econômicos relacionados a ocupação do território urbano que São Paulo detêm. A disciplina ministrada pelo Dr. Professor Leandro Medrano in-

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titulada “História do Urbanismo Contemporâneo” para a qual este artigo foi elaborado trouxe importantes considerações a respeito da análise da dinâmica das cidades atuais, quais as alternativas de desenhos e quais os agentes que se destacaram neste cenário nas últimas décadas do século XX e início do século XXI. Assim, faz-se uso das discussões ocorridas em sala de aula como base para a conformação de algumas observações elaboradas neste trabalho. 3. Desenvolvimento Apresentação do concurso O referido concurso teve como objetivo elaborar propostas formais para o desenho urbano da cidade de São Paulo, reflexões estas que seriam tomadas como uma das bases para a revisão do Plano Diretor Estratégico municipal posteriormente. Pelo termo de referência do concurso: “O objetivo deste concurso é fomentar o desenvolvimento de estudos de parâmetros normativos para a configuração edificada de lotes, quadras e unidades territoriais com vistas a subsidiar os debates públicos relacionados à revisão de normas de p a r c e l a m e n t o , uso e ocupação do solo.”

O mesmo termo de referência do concurso procurou enumerar alguns pontos principais a serem abordados criticamente pelos participantes, sendo estes: • O rodoviarismo promovido pela legislação vigente, que determina um número mínimo de vagas de carros por garagem, permite garagens em sobresolo que fazem a interface do edifício com o pedestre, e o favorecimento do transporte individual motorizado frente aos demais (pedestres, ciclistas e transporte coletivo); busca-se um desenho de cidade para a escala do pedestre, com fachada ativas de edifícios com uso comercial e de serviços, e que promova o transporte público; • A legislação baseada num conjunto de parâmetros para a unidade territorial do lote, onde se perde a referencia ao lote vizinho, à quadra, ao contato com a rua e espaços públicos. Colocou-se a necessidade de criar parâmetros de desenho que definam estas relações, tomando a quadra como unidade de desenho urbano. Não há limite de tamanho dos lotes, nem das faces dos lotes, nem das quadras; permitem-se muros extensos e garagens em sobresolo, que fazem a interface do edifício com a rua; • O modelo de zoneamento vigente, incentivando a tomar outros parâmetros para além do zoneamento como referência, tais como: densidade populacional (versus densidade construtiva), disponibilidade de infraestrutura, configuração do espaço público, eixos de mobilidade, etc; Elaborado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e promovido pela prefeitura de São Paulo, o concurso teve seu edital aberto para participação em XX de XXXXX de 2013 e seu encerramento em XX de XXXXXX de 2014, sendo dividido em duas modalidades. A primeira modalidade apresentava o título “Padrões urbanísticos gerais de configuração urbana”, sendo dividida em cinco categorias que previam a definição de regras gerias de configuração urbana conforme os contextos urbanísticos ou tipologias pré-definidas para cada uma.

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A segunda modalidade era intitulada como “Padrões urbanísticos para unidades territoriais selecionadas” e apresentava apenas uma categoria, onde então os participantes tomariam como estudo de caso uma área da cidade identificada como de especial interesse paisagístico, histórico, social ou cultural, para elaborar uma proposta formal de parâmetros urbanísticos nesta área. Análise dos resultados Segundo a ata do júri, foram 4 os critérios que nortearam a avaliação dos trabalhos nas duas modalidades dos concurso: 1. Experimentação de questões historicamente polêmicas no zoneamento de São Paulo; 2. Experimentação de configurações especiais em diferentes escalas – da quadra, do lote, dos eixos viários, etc. 3. Experimentação e/ou proposição de recortes territoriais e estratégias que extrapolam critérios funcionais e quantitativos e apresentem possibilidades inovadoras. 4. Consistência da argumentação, precisão conceitual e coerência com as diretrizes do Plano Diretor. Para cada categoria de ambas modalidades, o presente trabalho propõe uma análise única de todos os projetos premiados, procurando entender quais foram os parâmetros apresentados enquanto conjunto de propostas. Modalidade 1 – Categoria 1 – “Estudos de configuração de corredores urbanísticos. Considera-se corredor urbanístico o eixo formado pela via em que é operado sistema de ônibus troncal, em via segregada ou não, englobando as calçadas, canteiros centrais, ciclovias, ciclo faixas e a totalidade das quadras lindeiras em relação à via do sistema troncal de ônibus” (Termo de Referência) Foram três projetos premiados nesta categoria, e uma menção honrosa. Em geral, os parâmetros encontrados foram: a) Implantação de ciclovias e corredor de ônibus centrais em faixa segregada: estímulo ao transporte não-motorizado e coletivo de massa; Mudança de paradigmas em relação à priorização do transporte motorizado individual, que moldou a cidade nos parâmetros atuais. Deve-se dar maior atenção à qualidade dos transportes públicos coletivos e ao pedestre, melhorando os passeios, aumentando a quantidade de área públicas e verdes, o conforto ambiental e a paisagem urbana. Para tanto, seria necessário o reordenamento dos eixos viários como um todo; b) Integração de áreas verdes e criação de espaços públicos abertos: apesar da caraterística intrínseca do corredor urbanístico ser a passagem dos seus cidadãos, pretende-se qualificar suas áreas públicas - calçadas, canteiros, pequenas reentrâncias e praças - como espaços de convivência e, se possível, permanência. Infraestrutura verde: áreas de coleta e retenção da água pluvial, pavimentação permeável, adoção de novas tecnologias de energia, ou mesmo, a escolha da nova vegetação objetivando a integração com a vegetação nativa e a criação de habitats e biodiversidade. Isto seria feito por meio do incentivo à abertura de espaços públicos por recuos dos lotes que

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seriam compensados com ganhos extras no coeficiente de aproveitamento de cada lote; c) Em relação à interface com o espaço público, são propostos incentivos para a fachada ativa em toda a área de influência dos corredores, com obrigatoriedade em algumas situações e a proibição de construção de muros em toda a área de influência Modalidade 1 – Categoria 2 – “Estudos de configuração de tipologias edificadas de uso misto no mesmo lote, envolvendo obrigatoriamente o uso residencial” (Termo de Referência) Nesta categoria, apenas um grupo foi premiado. Este critica o modelo de torre isolada no lote, promovido pela legislação atual, com recuos em todas as direções, fachadas onde predominam muros, e lotes isolados entre si dentro de uma mesma quadra. O grupo insiste na troca de uma cidade segregada, constituída de edificações escondidas atrás de muros e de projetos arquitetônicos isolados da vida e da malha urbana para uma cidade mais conectada e mais humana. O limite entre vida pública e privada não é para ser apagado, mas a rua e suas calçadas são para ser retomadas, ampliadas e utilizadas como um lugar de encontro e de diálogo entre os moradores da cidade. O plano prevê que as construções devem participar desse encontro da população, propondo em suas estruturas próprias umas interfaces interativas entre os edifícios e a população, e a população com ela mesma. As construções devem se aproximar da rua, propondo, na escala local, varias interfaces modais, utilizando o conceito de fachada ativa e do uso misto do solo nos lotes desenhados, criando vida nos bairros e pontos atrativos espalhados ao longos das ruas. A finalidade é a criação de espaços gerindo uma mistura social e cultural, permitindo uma convivência dos cidadãos entre eles e com a sua cidade. Para novos edifícios e novas quadras, propõe edifícios sem recuos frontais e laterais, que se relacionem dentro da quadra e que tenham uma fachada ativa com comércio e serviços no térreo. Para edifícios existentes, um incentivo à adaptação da interface com a rua (geralmente muros e grades) para uma fachada ativa com comércio e serviços. Modalidade 1 – Categoria 3 – “Estudos de configuração da frente dos lotes com as vias, com ênfase no tratamento da testada dos lotes e do pavimento térreo de modo a melhorar a fruição do espaço público e a interação do pedestre com o embasamento do edifício” (Termo de Referência) Nesta categoria, foram três projetos premiados e uma menção honrosa. Enquanto parâmetros encontrados, podemos citar: a) Eliminação de barreiras: critica-se o recuo frontal dos edifícios em relação à rua, que resulta numa barreira física - o muro ou a grade - que faz o papel de interface entre o lote e o espaço público. Para melhorar a fruição dos espaços, visando uma cidade que promove a convivência e a sociabilidade de seus habitantes, propõe-se a extinção destas barreiras entre edifícios e o espaço público da rua, repassando a área remanescente do recuo para ser parte do espaço público da rua; outra proposta é aumentar a quantidade de aberturas das fachadas dos edifícios para a rua, de modo melhorar a interação entre ambos, ou ainda criar corredores de pedestres (calçadões) que atravessem quadras inteiras. b) Uso misto e fachada ativa: a presença de fachadas no alinhamento dos passeios

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públicos que permitam usos não residenciais (como comércio e serviços) com acessos livres e aberturas para o logradouro (fachadas ativas), permitem a diversidade espacial na cidade, promovendo a vida urbana nas ruas. c) Melhoria das calçadas: para promover a fruição do espaço público na escala do pedestre, propõe-se uma faixa mínima de serviços nas calçadas (para árvores, água e esgoto, postes de luz, etc.) que sirva para separar o leito carroçável da rua da faixa de circulação de pedestres na calçada, seno que esta também deverá ter um tamanho mínimo. d) Regulação dos estacionamentos: este item, que também já foi abordado em outras categorias na questão da interface do lote com o passeio público, se refere aos acessos aos estacionamentos, que muitas vezes interrompem o fluxo do pedestre. Dessa maneira, propõe-se um limite de tamanho de entradas de estacionamentos por lote, e também que haja um recuo obrigatório no caso de garagens afloradas no nível térreo. Modalidade 1 – Categoria 4 – “Estudos de configuração de lotes em territórios com elevadas declividades, considerando situações com acesso exclusivo por uma via e lotes com duas alternativas de acesso, na frente e no fundo do lote. ” (Termo de Referência). Não houve projeto premiado ou menção honrosa nesta categoria.

Figura 1. Gráfico de do fluxo de uso da terra. Traduzido pelos autores. Fonte: Revista Urban Design issue 130 pág. 130. ISSN 1750 712X. Spring 2014.

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Modalidade 1 – Categoria 5 – “Estudos de configuração de lotes e quadras de grandes dimensões, resultantes ou não do desmembramento e parcelamento de grandes glebas, inseridos ou não em zoneamento predominantemente industrial, devendo ser considerado o uso misto nos novos lotes e a investigação das dimensões máximas de configuração das quadras” (Termo de Referência) Nesta categoria houveram dois projetos premiados. Dentre os parâmetros encontrados, destacam-se: a) A quadra enquanto unidade territorial: para lotes grandes, com mais de 10.000 m², propõe-se que este seja tratado enquanto quadra como unidade de projeto. Enquanto unidade territorial, o projeto de quadra possibilita a articulação entre diversos edifícios e usos diferentes sem estes sejam interrompidos pela presença de limites de lotes com legislações diferentes. Propõe-se para as quadras regras de desmembramento e parcelamento do solo que potencializem a continuidade de áreas de fruição pública e sociabilidade. b) Grandes áreas enfocadas enquanto potenciais de transformação e impacto no contexto urbano em que se inserem: permeabilidade de fluxos, conectividade ao contexto urbano, qualificação da rua e da calçada e diversidade de usos e tipologias, são os eixos condutores para o estudo dos parâmetros. Modalidade 2 – Categoria única – “Padrões urbanísticos específicos para unidades territoriais selecionadas” (Termo de Referência) Foram três os trabalhos que se destacaram nesta modalidade, sendo uma menção honrosa e duas premiações. Aquela utilizou como recorte de estudo a área dos Jardins, enquanto estas trabalharam com um trecho da Operação Urbana Água Branca próximo do Bom Retiro e com a área relacionada à Grota do Bexiga. Notou-se como ponto comum às equipes, o fato de elas trabalharem com locais que apresentam infraestrutura e serviços já consolidados. Os bordos da cidade e as relações travadas com os territórios fronteiriços, tanto legislativamente quanto fisicamente, não foram abordados nos trabalhos. O trabalho de Ferber, Jackson e de Sikorska relaciona-se a como lidar com áreas do leste europeu que estão passando por um processo de transformações econômicas e sociais localizadas em antigas áreas de produção industrial, no caso, da antiga URSS, denominadas bronwfields. Segundo Vasques (2006), este termo é utilizado não apenas para áreas industriais: “[...]Os locais brownfields não são necessariamente antigas indústrias, podem, também ser empresas comerciais desativadas, minas abandonadas, lixões ou de depósito de resíduos, todo tipo de infra-estrutura de transporte como ferrovias, portos e aeroportos; além de barragens, usinas termelétricas, nucleares, e outras. São todos os empreendimentos que um dia foram desativados, sofreram a ação do tempo, e com a consequente degradação natural transformaram-se em zonas mortas.[...]” 1

O contexto de estudo dos brownfields pode ser encontrado também no Brasil, com expressiva representatividade na cidade de São Paulo, com as antigas fábricas no Brás, Mooca e Barra Funda, que já estão fazendo parte do contexto das transformações urbanas organizadas pelo poder público, com as operações urbanas, e pelo privado, com 125

grandes empreendimentos nestes locais. Esta temática contém são exemplos que poderiam constar dentro da modalidade 2, assim como ocorreu no trabalho relacionado à Operação Urbana Água Branca. Além da correlação entre temas, pode-se pontuar que a produção de Ferber, Jackson e Sikorska sintetizou uma ferramenta importante que permite traçar um paralelo entre os sítios abandonados localizados em países do Leste europeu com áreas de São Paulo que apresentem as mesmas etapas de trabalho, tanto no centro quanto nas áreas ainda não consolidadas. Apesar de contextos que diferentes, os gráfico traça estratégias de ação em um dado território e condensa uma leitura rápida da área de estudo (figura 1). 4. Considerações finais O concurso demonstrou-se surpreendente pela pequena quantidade de projetos premiados. Nem mesmo todas as categorias receberam prêmios, ou seja, nem toda a premiação em dinheiro foi entregue por falta de projetos a serem premiados. Enquanto exercício de reflexão acerca de um ideal de metrópole paulistana – talvez o maior mote de um arquiteto-urbanista atuante, redesenhar sua cidade como gostaria que fosse – parece que, primeiro, ou os arquitetos-urbanistas não se interessam por pensar em maneiras de mudar sua própria cidade (que está implodindo dentro de sua estrutura caótica, dominada e desenhada pelo mercado), ou então os arquitetos-urbanistas sequer sabem definir o que é uma cidade ideal, muito menos saberiam como desenhá-la. Gostaríamos da cidade do individualismo pleno, da metrópole de Simmel, onde a dinâmica urbana “emancipa” (ainda que à força) o cidadão perante os paradigmas sócio-culturais? Seria mesmo este indivíduo mesmo livre para se deslocar por qual círculo cultural deseje, ou então estaria ele isolado, reprimido pelas forças dominantes, impedido de ter contato com aquilo que quer? 2 Para que o indivíduo seja livre na metrópole, deve ser, portanto, capaz de acessá-la. O famoso slogan político da ‘cidade para todos’, ou os protestos por ‘direito à cidade’. A metrópole é acumuladora de culturas, mas também destruidora das mesmas. Caso não seja possível para certo grupo atuar dentro da cidade, e não consiga sobreviver nela, é por razão desta estar patologicamente construída para não incluir a todos, mas sim aos que geram mais lucro ao capital, ou que reproduzem sua estrutura de dominância. Na situação atual, o indivíduo vê-se esvaziado de raízes e sentidos pelo isolamento e falta de identidade, se tornando mera marionete manipulada pelas cordas do capital, que lhe retira tudo pela racionalização do cotidiano para impor hábitos de consumo que determinam sua conduta de vida. É o urbanismo em fim de linha de Otília Arantes, onde somos conduzidos pela persuasão (quase barroca) da imagem hiper-real propagandística do capital, e deixamos de ser livres para o sistema nos escravizar (agora uma pausa dramática). As propostas analisadas caminham, felizmente, para uma cidade mais acessível, dando suporte ao pedestre e trabalhando a interface desta consigo, assim como ao transporte público coletivo e à bicicleta. Diminuir barreiras, aumentar a fruição dos espaços públicos. Contudo, a generalidade das propostas (talvez por consequência dos termos do próprio edital) deixa de fora as especificidades culturais de cada local. Parece que um bairro bem dotado de estrutura deve ser, consequentemente, verticalizado

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e adensado, para condensar a metrópole. Sim, seria bom que todos pudessem estrar próximos da infraestrutura urbana necessária, mas e a formação cultural deste lugar? A identidade não seria totalmente destruída pelas transformações impostas? E quem ganha com este adensamento, os indivíduos cidadãos ou o mercado? Não parece que manter a identidade de bairro seja nem de perto importante para o capital imobiliário (a não ser que esta identidade agregue valor financeiro ao produto), mas também foi uma questão um tanto quanto ausente neste concurso. Pode ser que as possíveis saídas para os problemas conjecturais podem estar contidos dentro de soluções encontradas em um nível de detalhamento local, que quando conectadas as outras soluções localizadas, consigam melhorar o todo. O presidente do Projeto para Espaços Públicos de Nova Iorque, Fred Kent 3 , acredita que um olhar possível seria “ao invés de começar pelo desenho, começamos pelo local”. Ele tem como base em seu trabalho o diálogo para com os residentes da área, pois quem vive trabalha e brinca em uma dada área sabe muito sobres quais pontos precisam ser melhorados no local. Quais quadras são inseguras à noite, quais os grupos que frequentam os parques vizinhos, quais ruas tem menos trânsito, os residentes trazem a dimensão local vivenciada em com diversos apontamentos. Este caminho parece ser aquele que necessita menos investimento público e gera diretrizes mais condizentes com as especificidades de cada região da cidade. Este caminho a ser seguido pode ser visto na Prefeitura de São Paulo tem cedido espaço às discussões e debates abertos sobre a Revisão do Plano Diretor. Ainda, há que se discutir como tratar uma metrópole na escala de São Paulo. Qual seriam as unidades territoriais para serem abordadas? Já não se fala de uma cidade formada por bairros, e bairros formados por ruas, mas de conjuntos de bairros e ruas que formam regiões, sendo estas atravessadas por eixos urbanos, nem sempre conectadas umas às outras. O zoneamento é criticado em alguns trabalhos, que trazem outros parâmetros de unidades territoriais, mas nenhum trabalho pareceu tampouco se debruçar tanto em cima desta questão enquanto escala metropolitana. Portanto, ainda há muito que caminhar conceitualmente (e consequentemente formalmente) para chegarmos ao ideal da ‘metrópole tropical’ que queremos para São Paulo.

Notas (1) VASQUES, A. R.. CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTUDOS DE CASO DE BROWNFIELDS: Exemplos no Brasil e no Mundo.2006. (2) SIMMEL, G., . Simmel on Culture: Selected Writings,

(3) http://www.pps.org/reference/poweroften/. Acessado em 12.01.2015 Referências ARANTES, Otília. Urbanismo em fim de linha: E Outros Estudos sobre o Colapso da Modernização Arquitetônica. São Paulo, 1998. FERBER, U.; JACKSON, J. B. , SIKORSKA, Anna S. Circular flow and use management.2011. Publicado em: Urban Design Group Journal. ISSN 1750 712X. Spring 2014.

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KENT, Fred. Starting at local: the only way to make a great place. Publicado em: Urban Design ISSN1750 712X.. Localism. Issue 123. Summer, 2012 SIMMEL, G., . Simmel on Culture: Selected Writings, 1 edition. ed. SAGE Publications Ltd, London; Thousand Oaks, Calif. 1998. VASQUES, A. R. Considerações sobre estudos de caso de brownfields: exemplos no Brasil e no mundo. Universidade de São Paulo/USP. São Paulo, 2006. Artigo publicado em: Biblio 3W . REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES. (Serie documental deGeo Crítica) Universidad de Barcelona . ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 . Vol. XI, nº 648, 30 de abril de 2006. Disponível em: http://www.ub.edu/geocrit/b3w-648.htm. Acessado em 12.01.2014. Documentos referentes ao concurso “Ensaios Urbanos Desenhos para o” Zoneamento de São Paulo”. Ata do Julgamento; Edital; Pranchas das equipes vencedoras. Disponível em: http:// iabsp.org.br/?concursos=concurso-nacional-ensaios-urbanos-desenhos-para-o-zoneamento-de-sao-paulo-2. Acessado em: 05.01.2014.

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artigo

Comércio, apropriação do espaço público e for mação urbana em São Paulo: A proposta e o alcance das feiras

Lais Boni Valieris

O objetivo deste artigo é analisar a dinâmica dos centros comerciais da cidade de São Paulo nas últimas décadas, no que tange a questão da apropriação do espaço público e consequente formação da paisagem urbana. Para tanto, buscou-se explorar a atuação das feiras nessa questão, pois esses lugares, justamente, não se enquadram apenas no âmbito das atividades comerciais, mas abrangem em sua atividade questões de lazer e cultura. O texto analisa os aspectos sociais e urbanísticos das feiras, buscando entender a proposta sociocultural, a lógica econômica e a experiência social e urbana que estas ocupações proporcionam. A relevância do estudo se pauta na importância que as atividades comerciais têm no âmbito dos processos urbanos. Segundo Vargas, para as trocas se realizarem e, consequentemente o comércio, existe sempre a necessidade do encontro, ainda que virtual, promovendo para além da troca de mercadorias, a troca de ideias, palavras, informações, experiências e sensações que serão sempre prerrogativas para a manutenção do fascínio coexistente ao ato do consumo. É este encontro dos fluxos de pessoas e mercadorias, local de facilitação das relações humanas, espaço para o abastecimento das populações não autossuficientes, principalmente as urbanas, o embrião do lugar no mercado, marcando assim a relação entre a atividade econômica do comércio e serviços e o espaço que lhe dá suporte. Além disso, esses pontos de comércio eventual, atrelados à cultura têm ganhado força nos últimos anos nas cidades brasileiras, principalmente em São Paulo, como opção de lazer, e apesar de sua grande importância para a os estudos urbanos, ainda foram pouco explorados. Por meio de uma abordagem teórica, o texto estabelecerá conclusões através de estudos sobre a relação entre comércio e espaço público e teorias urbanas, propondo dessa forma, “clarear” a proposta e o alcance que as feiras têm na atual cidade de São Paulo. Como referência principal, este artigo traz a feiras da Praça Benedito Calixto, no bairro de Pinheiros. palavras-chave: comércio, espaço público, feiras, territorialidade, relações socioespaciais, praça Benedito Calixto.

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Introdução A cidade, com os seus bairros, lugares e traçado de ruas, não se configura apenas como materialidade, mas também como tecido vivo das relações sociais e campo de investimentos simbólicos (CARLOS, 2004). As práticas sociais tecidas no espaço urbano das grandes metrópoles são marcadas por elementos, articulações que constituem formas particulares de produção e apropriação das cidades. As sociabilidades urbanas interferem nas formas de uso e apropriação dos espaços urbanos num fértil processo de construção social dos lugares e demarcação social [...] Conforme afirma Carlos, “o que marca e determina as relações entre pessoas e entre elas e a cidade é o uso, e é por isso que no espaço se lê a continuidade da história.” (VELLOSO, 2006).1 Velloso também ressalta como a nossa compreensão do espaço urbana é algo que se constitui em relação às práticas sociais dos indivíduos que ali se encontram. Bem como a recíproca também é válida, de que a cidade também molda o comportamento social de seus habitantes. Sendo assim, a formação urbana e a formação do indivíduo urbano, estritamente relacionadas. Quando se pontua o papel do comércio dentro desse contexto maior de formação das cidades e formação do indivíduo, deve-se delimitar seu papel e alcance. O comércio viabiliza a vida das e nas cidades. Primeiramente, atendendo a uma das principais características da vida urbana, a de não autosuficiência. Posteriormente, mas possivelmente ainda mais importante do que o sustento, o comércio será responsável pelo estabelecimento das relações sociais no contexto urbano. A coadunação desses fatores, em grande parte, é responsável, por fim, pela produção do espaço. Vargas afirma que a atividade de comércio na sua relação com a cidade, oferece a possibilidade para o melhor entendimento dos processos urbanos. Seu poder de estruturação, produção e consumo do espaço; sua capacidade de orientar e definir as construções; sua intenção de visibilidade na paisagem urbana; sua condição como força motriz do desenvolvimento urbano funcionando como identificador da dinâmica urbana; seu potencial de resiliência capaz de absorver e enfrentar as mudanças transformando-se; reúnem-se para mostrar sua importância para a compreensão, planejamento e intervenção no espaço da cidade. (VARGAS 2013). A formação do espaço urbana leva consequentemente, à ideia de formação de cidade. Essa ideia de cidade, com afirma Rolnik, surge do princípio da igualdade de diferenças. Segundo a autora a cidade se funda na possibilidade de pessoas diferentes poderem viver em conjunto e estabelecer um contrato político entre elas. O milagre cidade se produz quando o homem, além de sua vida privada, de sua existência enquanto ser natural ou parte da natureza cria uma espécie de segunda vida, uma espécie de ‘bios’ político ou ser político que se concretiza vivendo em conjunto com outras pessoas. A vida na cidade constitui-se não só pela convivência de pessoas diferentes, como também por sua participação de um contrato social que tem caráter público (ROLNIK, 2000). Para que esse conceito se estabeleça, fica clara a dependência da existência de espaços comuns de convívio, espaços públicos. Gomes 2 define o conceito de espaço público como antes de tudo, o lugar, praça, rua, shopping, praia, qualquer tipo de espaço onde não haja obstáculos à possibilidade de acesso e participação de qualquer 130

pessoa. Trata-se, portanto, essencialmente de uma área em que se processa a mistura social, reiterando assim a ideia de cidade que Rolnik apresenta. Dessa maneira, o espaço público deve ser visto como um conjunto indissociável das formas assumidas pelas práticas sociais, como sintetiza Sun (SUN, 2008), práticas essas que o comércio promove diariamente na vida urbana. Estabelecer, portanto a ideia de espaço urbano e os agentes que contribuem para a sua formação, destacando como parte importante o comércio, o espaço público e, principalmente as relações sociais como coadunação desses dois elementos, é essencial para enfim compreender o alcance que as feiras têm nesse processo de formação do espaço, em uma cidade como São Paulo. Comércio e espaço público nas cidades Como já mencionado anteriormente, uma das principais características da vida urbana é a de não autossuficiência. Para tanto, torna-se imprescindível o estabelecimento de uma rede de trocas que viabilize a vida nas cidades. Através dessa atividade cambial oferecida pelo comércio, as pessoas conseguem de maneira eficiente suprir as suas necessidades, desde as mais básicas até as mais superficiais. Evidentemente que, em uma vida tão dependente dessa rede de serviços, a atividade do comércio esta cotidianamente na vida do homem urbano. A história do urbanismo já nos provou que, o bom funcionamento das cidades depende, portanto, da proximidade física entre as pessoas e a oferta dessas atividades. Em outras palavras, morar perto da oferta de serviços, pressupondo uma cidade adensada. Não só, como se pode deduzir primeiramente, que essa relação espacial facilitará a vida individual dos habitantes das cidades, mas o Modernismo, por exemplo, com seu projeto urbano através da setorização das atividades, nos provou produzir também grandes problemas coletivos, refletindo no entrave da dinâmica das cidades como um todo e consequentemente, na vida individual. Problemas estruturais como mobilidade urbana estão diretamente relacionadas à produção e ocupação do espaço urbano. Conforme mencionado anteriormente, Carlos na sua afirmação de que o que determina as relações entre as pessoas e entre elas e a cidade é o uso, fica claro que um espaço ocupado pelos diversos usos, principalmente atrelado ao comércio e serviços, promoverá maior número de encontro, prevendo, inevitavelmente maiores experiências sociais. O destaque para a relação de outros usos atrelados ao comércio se dá, pois, o caráter social da atividade de troca está nela implícito, pois para a troca se realizar existe a necessidade do encontro: encontro de pessoas com bens e serviços para serem trocados (VARGAS, 2001). Ainda segundo Vargas, a necessidade de encontro para a realização de troca vai levar a atividade comercial a procurar os lugares mais propícios a esse encontro, os quais coincidem com o cruzamento de fluxos de pessoas ou com os locais onde as demais atividades sociais acontecem pelos mais diversos motivos: religião, política, diversão, cultura. Existindo, portanto, uma relação umbilical entre o comércio e as demais atividades sociais que, raras vezes, foi rompida. (VARGAS, 2001).

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Seguindo esse raciocínio, os lugares mais propícios ao encontro são os espaços comuns a todas as pessoas, os espaços nos quais não existe restrição acesso, ou seja, os espaços públicos. Sun defende que, o espaço público na cidade assume inúmeras formas e tamanhos compreendendo desde uma calçada até a paisagem vista da janela. Ele também abrange lugares designados ou projetados para o uso cotidiano, cujas formas mais conhecidas são as ruas, as praças e os parques. A palavra “público” indica que os locais que concretizam esse espaço são abertos e acessíveis, sem exceção, a todas as pessoas (SUN, 2008). Gomes completa ressaltando que, uma concepção do espaço público que, além da ideia de liberdade e igualdade, tenha como base a separação do privado ou a delimitação jurídica, ou mesma a garantia do acesso livre, é insuficiente para definir o caráter fundamentalmente político de seu significado. Para o autor, “os atributos de um espaço público são aqueles que têm relação com a vida pública [...] e para que esse ‘lugar’ opere uma atividade pública, é necessário que se estabeleça, em primeiro lugar, uma copresença de indivíduos.”. 3 Rolnik atenta, porém, para o fenômeno atual das cidades, na qual o espaço público vai diminuindo ao ser capturado e privatizado, restando apenas e tão somente aquele necessário para a circulação de mercadorias, inclusive de mercadorias humanas; esvazia-se a dimensão coletiva e o uso multifuncional do espaço público, da rua, do lugar de ficar, de encontro, de prazer, de lazer, de festa, de circo, de espetáculo, de venda. Assim, funções que recheavam o espaço público e lhe davam vida migraram para dentro de áreas privadas, tornando-se, em grande parte, um espaço de circulação (ROLNIK, 2000). Grande parte desse fenômeno tem relação direta com a atividade comercial, visto que a partir dos anos 1970 e 80 o movimento era de migração para os grandes complexos comerciais fechados, os quais incluíam em seu programa além do comércio, atividades de lazer e cultura. Movimento que promoveu, conforme confirma Sun, a expansão comercial, associada à mobilidade dos consumidores, fazendo surgir de maneira expressiva fenômenos como franquias e shoppings centers, os quais por sua vez, segundo ele, tem origem na necessidade de oferecer aos consumidores a garantia dos produtos e serviços, e a padronização desenvolve um vinculo de fidelidade à marca (SUN, 2008). Esse novo caminho que o comércio percorreu, tornou menos intenso o uso das ruas, consequentemente enfraqueceu a apropriação do espaço público comum, e enfraqueceu a relação das pessoas com a cidade. Além de, economicamente, inviabilizar em grande parte o trabalhador autônomo e as pequenas convecções (as quais se expressarão novamente nas feiras). Historicamente, como nos constata Vargas, esse movimento se inicia em outra escala a partir do final do século XVIII, respondendo a um contexto socioeconômico, o qual irá promover mudanças no desenvolvimento da atividade comercial e no seu relacionamento com o espaço físico, quer do ponto de vista da inserção urbana quer do ponto de vista do projeto edifício. (VARGAS, 2001). Isso responde a uma demanda da economia industrial frente à necessidade de um ambiente para abrigar sua produção em larga escala. A produção realizada em série não era compatível com o antigo lugar do comércio prevendo, portanto, a necessidade de uma nova escala de ocupação, tornando-se necessária a modificação do espaço físico quanto a ocupação de comercio e industrias nas cidades.4 Segundo Machado, essa questão foi responsável pela ruptura entre as atividades comerciais e as sociais, visto que essas deixaram de acontecer no espaço

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público e passaram a serem exercidas e ambientes particulares, dessa forma, para a autora, o espaço público inicia sua desvalorização (MACHADO, 2008). Essa mudança se reflete fisicamente no surgimento das lojas de departamentos e das galerias comerciais, que em São Paulo ocorrem no século XX, tendo como base a ideia francesa. 3. O comércio, que antes acontecia em locais de domínio público, como ruas e praças, que funcionavam também como lugar da vida social, passou a ocorrer em espaços privados, porém com livre acesso da população (MACHADO, 2008). Dentro desse contexto, as feiras que tradicionalmente tem seu espaço de fixação nas ruas e praças, e na qual os produtos estão, normalmente, fora desse caráter industrial, perdem força. Como bem define Dolzani e Mascarenhas, a feira livre representa uma experiência peculiar de sociabilidade e de uso da rua, uma tradição urbana tornada obsoleta pela expansão do automóvel e do moderno varejo, mas que luta para persistir na paisagem urbana.(DOLZANI; MASCARENHAS, 2008). A feira livre, tradicionalmente estabelecida como comércio eventual, no próprio sentido de evento, se estabeleceu fortemente nas cidades como abastecimento alimentício. Dotadas de extrema importância a qual ainda resiste e supre alguns bairros de grandes cidades como São Paulo, mesmo frente a grandes distribuidores alimentícios, elas têm um caráter muito importante para a urbanidade. Seu papel como provedor de encontro e apropriação do espaço público, se torna ainda mais evidente frente aos serviços comerciais atualmente estabelecidos e anteriormente citados, os quais perderam seu caráter essencial de promotor de experiências sociais. Convergindo conceitualmente, Santos defende o espaço da feira como um suporte essencial, no que diz respeito à manutenção e busca das estratégias de reprodução das relações socioespaciais, do território (...) Sendo, locais apropriados coletivamente, as feiras livres significam o lócus em que é fato as distintas territorialidades que implicam também na (re)produção do espaço urbano, inseridas no circuito inferior da economia urbana, das cidades onde ocorrem. (SANTOS, 2013). Ainda como produto de sua existência, a feira evidencia a reapropriação do espaço público nas cidades, exaltando todo o potencial que os espaços têm de ocupações possíveis além daqueles convencionalmente determinados, como as ruas por exemplo. Assim, o reestabelecimento de identidade com os espaços da cidade mostra-se mais próximo de acontecer. Torna-se possível concordar com a visão Mark Francis, o qual considera como direito das pessoas o controle sobre o uso e deleite dos lugares públicos como um dos ingredientes essenciais para o sucesso dos espaços urbanos.5 Para ele, os espaços públicos são paisagens participativas, e o controle do usuário pode ser compreendido com base nas cinco dimensões propostas por Kevin Lynch para construir “bons” ambientes: presença, uso e ação, apropriação, modificação e disposição.” 6 A proposta e o alcance das feiras em São Paulo: A feira da Praça Benedito Calixto Em 1985, nasceu de um grupo de amigos moradores do bairro de Pinheiros principalmente moradores das adjacências da Praça Benedito Calixto, que buscavam reformas na praça a fim de promover a sua utilização pela comunidade que vive próximo a ela, a ideia de fundar uma Feira após constatar que em Pinheiros e adjacências congregavam inúmeros artistas, artesãos e intelectuais. Viu-se o espaço da Praça como potencial

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para abrigar esses atores através de eventos culturais. A área física da Praça Benedito Calixto, de aproximadamente 4.500 m2, dos quais cerca de 40% são ocupadas por área verde, demonstrava viável a então proposta. Assim, se fundou em um primeiro momento a Associação dos Amigos da Praça Benedito Calixto, cuja finalidade era promover a proteção e preservação das condições ambientais, patrimônio da comunidade, assim como desenvolver atividades culturais, esportiva e de lazer. Para tanto, o espaço de uma feira possibilitava a promoção dessas intenções em um único evento, a qual aconteceu pela primeira vez em 1987.7 É possível situar o período de fundação da feira em um contexto maior, o de redemocratização do Brasil, e como o processo de produção musical articulada a cenários urbanos, operou uma reconfiguração e reapropriação dos espaços públicos das grandes cidades. O golpe militar, com comumente se sabe, passou a coibir o ativismo político e cultural, interferindo drasticamente no cotidiano do país e de suas cidades. A repressão desestimulou os processos sociais e a apropriação do espaço público, gerando um forte esvaziamento desses espaços das cidades. No período de redemocratização, no entanto, extrapolação dos lugares institucionalmente reservados à música, promoveu uma maior interação com a cidade e suas diferentes possibilidades de espaços.8 É nesse contexto maior e de grande importância na vida das cidades que nasce a denominada “Feira de Antigüidades, Artes e Lazer” da Praça Benedito Calixto. O evento que atualmente conta com aproximadamente 300 expositores, entres antiquários, artesãos, artistas, além das barracas gastronômicas e do tradicional chorinho, tornou-se ponto de referencia cultural dentro da cidade, anexando-se, inclusive, a rotas turísticas. A feira da praça tornou-se responsável pelas transformações de seu entorno imediato, visto que verificou-se uma mudança no perfil do comércio das imediações, segundo a Associação Amigos da Praça Benedito Calixto. Diante de seu público variado viu-se a oportunidade de oferta de serviços e produtos além dos tradicionais oferecidos nas barras das feiras, abrindo-se o leque de possibilidades de convivência de diferentes atores sociais. Começaram a surgir, portanto, lojas de decoração, bares e restaurantes, feiras particulares instaladas em estacionamentos e prédios e galpões existentes em seu entorno imediato evidenciando assim o potencial diversificado de ocupação dos espaços, como já mencionado, característica de apropriação dos espaços públicos.9 O encontro semanal promovido pela Feira expande as intenções comerciais, se assimilando às dinâmicas espaciais e socioculturais, valorizando dessa forma um espaço público da cidade de São Paulo. A Praça tem conseguido promover um espaço diversificado culturalmente, socialmente, economicamente e mesmo fisicamente, demonstrando para as pessoas que a frequentam e para os moradores da cidade, toda gama de possibilidades a serem exploradas em um espaço, e o quão agregador essa experiência pode ser, tanto pessoalmente como urbanisticamente. Conclusão Como demonstrado no texto, a relação comércio e espaço público esteve diretamente associada. Entretanto, com o movimento de privatização dos espaços e o refugio do comércio em grandes centros de compras rompeu essa relação, trazendo como produ-

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tos, consequências para a urbanidade das cidades. Os espaços públicos, o uso das ruas e a interação social nas cidades fora desestimulada. Como fruto desse processo está por fim a limitação na exploração de uso dos espaços e consequentemente a falta do encontro do caráter de identidade nos espaços da cidade, o que leva inevitavelmente o abandono destes. As feiras culturais, inserida em um contexto histórico mais amplo de redemocratização brasileira, demonstraram ser possível o movimento contrário às tendência comerciais existentes. Englobando diversos usos, distintas experiências sociais e demonstrando alternativas de múltiplos usos para um espaço público, ela potencializa e estimulando a apropriação de espaços nas cidades. No caso da Feira da Praça Benedito Calixto, abordada no texto, nascida de uma demanda populacional, ficou claro o papel que ela desempenhou não só no campo das relações sociais, mas fisicamente em seu entorno, estimulando o aparecimento de diversos serviços que se conglomeram aos oferecidos pela própria feira. E como bem define a própria Associação Amigos da Praça Benedito Calixto, é um reflexo do que existe de belo nesta cidade de tantas questões e cores. A Feira de Arte, Cultura e Lazer da Praça Benedito Calixto é um local importante de encontros, onde o homem urbano pode alimentar-se do simbólico de que ele tanto necessita para poder nutrir-se como ser criativo, através das obras de arte, das antiguidades expostas, bem como das manifestações culturais que lá ocorrem. Assim, a comunidade pode atender de maneira participativa e satisfatória sua necessidade de ver, ouvir, tocar, se encontrar com outros iguais e diferentes de si, com os quais possa compartilhar suas impressões sociais, sejam éticas ou estéticas. um espaço importante onde, sem dúvida, as trocas essenciais ao homem superam as trocas mercantis.

Notas (1) VELLOSO, Mônica. Pimenta. Falas da cidade: conflitos e negociações em torno da identidade cultural no Rio de Janeiro. ArtCultura (UFU), v. 7, p. 160-172, 2006. In: Música e culturas urbanas em tempos de redemocratização: práticas sociais e representações do universo urbano nas cenas de São Paulo. ANPUH – XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza, 2009. (2) GOMES, Paulo César. A condição urbana: Ensaios de geopolítica da cidade In: SUN, Alex. Projeto da Praça: convívio e exclusão no espaço público. São Paulo: Senac, 2008. (3) GOMES, Paulo César. A condição urbana: Ensaios de geopolítica da cidade cit,. P160. In: SUN, Alex. Projeto da Praça: convívio e exclusão no espaço público. São Paulo: Senac, 2008. (4) MACHADO, Joana Sarue. O lugar das galerias no Centro de São Paulo – Relações entre espaço público e privado. Tese Mestrado: Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2008. (5) SUN, Alex. Projeto da Praça: convívio e exclusão no espaço público. São Paulo: Senac, 2008. (6) LYNCH, Kevin R. Good city form. Estados Unidos: MIT PRESS, 1984. (7) Informações obtidas através da Associação Amigos da Praça Benedito Calixto.

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(8) SILVA, Regina Helena Alves. Música e culturas urbanas em tempos de redemocratização: práticas sociais e representações do universo urbano nas cenas de São Paulo. ANPUH – XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza, 2009. (9) Informações obtidas através da Associação Amigos da Praça Benedito Calixto.

Referências bibliográficas ANDRADE, Júlio Maia de. Feiras livres e o espaço urbano. São Paulo: FAUUSP, 1974. CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004. p.354. In: Música e culturas urbanas em tempos de redemocratização: práticas sociais e representações do universo urbano nas cenas de São Paulo. ANPUH – XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza DOLZANI, Miriam C. S; MASCARENHAS, Gilmar. Feira livre. Territorialidade popular e cultura na metrópole contemporânea. Ateliê Geográfico, v.2, n.2 p.72-87, agosto.2008. MACHADO, Joana Sarue. O lugar das galerias no Centro de São Paulo – Relações entre espaço público e privado. Tese Mestrado: Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2008. ROLNIK, Raquel. O lazer humaniza o espaço urbano. In: LAZER numa sociedade globalizada: Leisure in aglobalized society p. 179-184.São Paulo: SESC/WLRA, 2000. SANTOS, José Erimar dos. Feiras livres: (re)apropriação do território na/da cidade, neste período técnico-científico-informacional. Geografia Ensino & Pesquisa, v. 17, n.2 p. 39-56, mai./ago. 2013 SILVA, Regina Helena Alves. Música e culturas urbanas em tempos de redemocratização: práticas sociais e representações do universo urbano nas cenas de São Paulo. ANPUH – XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza, 2009. SUN, Alex. Projeto da Praça: convívio e exclusão no espaço público. São Paulo: Senac, 2008 .VARGAS, Heliana Comin. Comércio e cidade: uma relação de origem. São Paulo: Edições SESC SP, Museu da pessoa, 2012. VARGAS, Heliana Comin. Espaço terciário: o lugar, a arquitetura e a imagem do comércio. São Paulo: Senac, 2001.

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artigo

Cota de Solidariedade: comparando políticas entre cidades nor te americanas e São Paulo

Ana B. P. P. da Costa Giovanna Albuquerque Lucas Salazar Luiz F. Rampazio

O seguinte artigo expõe como se deu a implementação da política de cota de solidariedade tanto nas cidades dos Estados Unidos da América quanto em São Paulo. Por meio deste artigo procura-se demonstrar as diferenças e similaridades entre os programas de cota de solidariedade americanos, vigentes desde a década de 1970, e o recente programa de cota de solidariedade de São Paulo, implementado por meio do Plano Diretor da cidade aprovado em Julho de 2014. Buscou-se também entender os sucessos e falhas das estratégias, e as características que tornaram alguns programas mais bem-sucedidos que outros. Para tanto foram feitas analises do histórico americano de enfrentamento da questão, estudos sobre determinados planos de algumas cidades americanas, sobre a lei paulistana e também compreensão de textos críticos sobre o assunto. palavras-chave: cota de solidariedade, habitação social, plano diretor. 137

Introdução Para o urbanismo contemporâneo, a construção de habitação para as camadas mais pobres em regiões periféricas e desprovidas de infraestrutura tem papel central na criação e intensificação dos problemas urbanos e da desigualdade social. No Brasil, programas de produção habitacional de baixa renda adotados até hoje não representaram mudanças efetivas do ponto de vista da inclusão social, por relegarem essas moradias às áreas pobres e periféricas. Ao mesmo tempo, a produção do mercado imobiliário é crescente, sem apresentar oportunidades de compra para camadas mais pobres devido ao seu alto custo. Adotada em muitas cidades, principalmente nos EUA, a Cota de Solidariedade é um instrumento urbanístico que busca unir a produção de habitação de mercado à produção de habitação social, apresentando-se como uma ferramenta de diversificação social e criando vizinhanças mais plurais. O programa cria a possibilidade ou demanda que construtoras de empreendimentos residenciais separem uma determinada quantidade de unidades habitacionais para construção de habitação social, a serem vendidas para famílias de baixa renda. Além de aumentar a oferta de habitação de baixo custo, esse instrumento permite a criação de residências acessíveis em regiões de crescimento imobiliário. A cota solidária auxilia as administrações públicas a melhorar o acesso de moradores e trabalhadores de baixa renda às regiões mais estruturadas. Entre outros benefícios, essa medida facilita a contratação e manutenção de empregados em escritórios e empresas, pela maior proximidade ao local de trabalho e facilidade de acesso à rede de transporte local; evita o surgimento de bairros homogêneos e fechados; permite o acesso às infraestruturas urbanas aos mais pobres e gera diversidade social, aumentando a segurança e a qualidade de vida dos moradores. Esse instrumento se apresenta vantajoso por ser passível de aplicação em diferentes condições de mercado. Em comunidades sofrendo gentrificação a cota solidária é capaz de diminuir a saída de moradores de baixa renda e sua consequentemente mudança para áreas periféricas; já em novos bairros ou áreas em crescimento populacional ou construtivo as unidades de cota solidária criam residências de baixo custo e previnem a criação de comunidades homogêneas, fechadas, ou excluídas. A criação de uma política de cota solidária engloba muitas variáveis. Não há um modelo pronto desse instrumento urbanístico, e sim uma grande quantidade de opções a serem vistas separadamente e então avaliadas em conjunto para entender seus impactos sobre o adensamento, o mercado imobiliário e a inclusão social na cidade. O primeiro passo é identificar e entender os problemas e necessidades da cidade. Os aspectos mais importantes são o déficit habitacional no território, o número de indivíduos a serem beneficiados pelo programa e análise dos aspectos urbanos da região, considerando a situação atual e as prováveis mudanças provenientes da aplicação de uma medida como essa. Identificados esses aspectos, devem ser traçados objetivos para o programa, para assim traçar os parâmetros específicos da legislação. Os objetivos costumam ser diretrizes abrangentes, baseadas nos problemas levantados ao estudar os parâmetros urbanos da cidade e traçam a finalidade da adoção do instrumento.

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Algumas cidades estabelecem a aplicação desse instrumento para empreendimentos a partir de um determinado tamanho ou número de unidades. Projetos que atingem ou excedem as dimensões definidas na legislação devem incluir unidades de baixo custo em seu projeto. A determinação da aplicação tanto a partir do tamanho em área construída quanto em unidades habitacionais visa atingir todos os tipos de edifícios residenciais, por exemplo, edifícios de alto padrão e baixa densidade, onde as unidades possuem grandes áreas, são submetidos pela metragem construída; já condomínios com apartamento menores e muitas unidades são submetidos pelo número de habitações que comportam. Essa medida não se resume necessariamente a novos empreendimentos, podendo ser aplicada também em projetos de reabilitação de edifícios ou construção de anexos; intervenções como essas podem vir a alcançar o tamanho ou número de unidades definido para a aplicação da cota solidária. A quantidade de unidades de cota solidária por empreendimento costuma ser dada em porcentagens, e varia conforme a necessidade de prover habitação social. Essa porcentagem pode ser dividida entre as classes sociais a serem atendidas pelo programa, definidos valores maiores ou menores de acordo com a quantidade de famílias necessitadas em cada faixa de renda . A diferenciação nas fachadas e elementos visuais de empreendimentos de baixa renda, uma das características responsáveis por distanciar imóveis de mercado e habitação social e gerar maior discriminação e segregação, é abordada em muitos programas desse instrumento. A exigência é de que as unidades habitacionais de baixa renda sejam visualmente compatíveis com empreendimentos de mercado, sem distinção entre as fachadas das mesmas. Para tornar possível a diminuição do custo de produção da habitação, com o objetivo de não gerar prejuízos para quem executa a obra, é permitido utilizar materiais de menor custo no interior das unidades, desde que estes não causem desconforto ou diminuam a eficiência energética ; diminuições na área total das unidades também são permitidas, desde que estejam iguais ou acima da metragem mínima exigida pela administração local (Burlington, EUA. Sec. 9.1.15, Art. 9, 2014). Para evitar o não cumprimento da construção das unidades de habitação social, muitos programas exigem que a construção das unidades de mercados e da porcentagem acessível seja realizada ao mesmo tempo, apresentando à administração local um cronograma contendo o planejamento das construções e provando sua simultaneidade. Apesar de parecer um programa rígido, a grande maioria das legislações de cota solidária permitem uma alternativa à construção das unidades habitacionais no mesmo edifício ou empreendimento (SCHUETZ; METZER; BEEN, 2008). As exigências ou opções variam conforme a flexibilidade dos programas e a necessidade de construir habitação social. As alternativas costumam incluir o pagamento de taxas, construção em outro terreno, doação de terras, ou a execução de outra obra de infraestrutura que possa trazer benefícios para a comunidade. Programas mais rígidos permitem recorrer a essas alternativas caso seja provado que a opção escolhida poderá ser mais benéfica ou que a construção de unidades dentro do empreendimento poderá resultar em complicações ou prejuízos que a tornam pouco interessante do ponto de vista da inclusão social e urbana.

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As alternativas costumam ter suas próprias especificações e exigências, como ter um valor correspondente a certa porcentagem do preço do terreno ou permitir a construção de um número maior de unidades de habitação social. Apesar do controle proposto nos programas, em muitos casos o pagamento de taxas acaba por ser muito menos custoso do que a produção das unidades (SCHUETZ; METZER; BEEN, 2008), o que apesar de contribuir em parte com a produção de habitação - pois o dinheiro recebido é direcionado para a produção de moradias de baixa renda em outro tipo de programa - pode acabar por falhar com as missões principais do instrumento, o direito à cidade e o equilíbrio social e econômico em comunidades urbanas. Uma vez que uma parte dos apartamentos vendidos passa a proporcionar menor retorno de capital por ser vendido a baixo custo, caso não houvesse uma compensação para essa perda de lucro a política se tornaria desinteressante ou desvantajosa para os empreendedores . Tendo em vista o ponto negativo desse instrumento para os agentes do mercado, os programas oferecem maneiras de minimizar as perdas sofridas (CALAVITA; GRIMES; MALLACH, 1997) , isentando-os de certas obrigações como obras de infraestrutura, estacionamentos e exigências quanto aos materiais usados na construção. Outra maneira de realizar essa compensação é oferecendo um bônus de densidade, ou seja, dando aos empreendedores o direito de construir maior área do que permite o zoneamento local, podendo assim construir mais unidades de mercado para serem vendidas. Para garantir a manutenção do baixo custo das habitações, torna-se necessário estabelecer limites para as vendas mesmo após o primeiro comprador. O aumento no preço das unidades se resume ao ajuste devido ao aumento da inflação no período transcorrido desde a compra anterior e em alguns casos, aos gastos e às melhorias feitas na unidade, este último critério sendo dotado de restrições para não extrapolar a faixa de preço acessível às famílias de baixa renda. A Cota de Solidariedade é um instrumento flexível, formado pela junção de muitas variáveis que determinam sua abrangência, maleabilidade, e influências sobre a construção no território urbano. Para que essa política seja efetiva, é preciso levar em consideração todos os aspectos e consequências de cada uma das definições adotadas. A aplicação em cidades americanas Concebidos na década de 1960, os programas de cota solidária passam a ser implementados a partir da década de 1970 pelos governos estaduais dos Estados Unidos. Sua criação e adoção deveu-se a dois importantes fatores: os altos custos da habitação, em estados como a Califórnia, e também como resposta às práticas excludentes, entrando em consonância com movimentos pelos direitos civis. Na época, governos como o de Nova Jersey utilizavam-se do zoneamento para excluir minorias e classes mais pobres das áreas privilegiadas das cidades. Sua implementação nas cidades norte-americanas buscou tratar de novas formas o problema da habitação. Essas formas lutavam contra o modelo de exclusão vigente em diversas municipalidades do país, de maneira a promover maior integração socioeconômica das comunidades.

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Algumas medidas políticas foram importantes para impulsionar o desenvolvimento dos programas de cota de solidariedade, começando pela criação do Departament of Housing and Urban Developement – HUD (Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano), em 1965, e em 1968 a aprovação pelo Congresso norte-americano do Housing Act, que destinava recursos federais para a construção de habitação para a população de baixa renda. Nesse mesmo ano foi aprovado o Civil Rights Act (Declaração dos Direitos Civis), coibindo qualquer agente do mercado imobiliário de agir de forma discriminatória, baseado em cor, crença ou nacionalidade. O Housing and Community Developement Act (Lei de Habitação e Desenvolvimento Comunitário) de 1974 endossa a lei anterior de 1968, incluindo a integração socioeconômica na política federal dos Estados Unidos (Calavita, 2, 2006). Apesar das implementação das leis e dos esforços comunitários, estes não foram muito bem sucedidos, mas acabaram abrindo caminho para um novo pensamento sobre a inclusão e habitação no país. Nesse mesmo período, a questão ambiental esboçou-se como uma nova preocupação, passando a ficar em voga, começando a questionar a máxima de que o crescimento das cidades é bom e inevitável. Alguns anos mais tarde, no início da década de 1980, durante o mandato do presidente Ronald Regan (1981-1989), o governo norte-americano passou por um período de desregulamentação, fazendo com que as verbas federais destinadas à criação habitação fossem cortadas, delegando essa função ao Estado. Assim, as medidas para criação de habitação social através de programas de cota de solidariedade tomaram força. Esse breve resumo busca traçar uma linha do tempo de como se deu a construção em âmbito nacional de políticas que levaram a implementação dos programas de cota de solidariedade, para assim iniciar-se a análise de alguns casos implementados e seus desdobramentos. Um dos primeiros programas a ser desenvolvido e implantado foi o Moderately Priced Dwelling Unit Program em Montgomery County, no estado de Maryland. A partir de 1973, foi um dos mais importantes e duradores programas do país tendo produzido mais de 10000 mil unidades de habitação social num período de 25 anos (Calavita,2, 2006). Vale ressaltar, entretanto, que este programa teve alcance local, não fazendo parte de uma política articulada do estado de Maryland. No âmbito de poder estadual, dois outros estados irão se destacar por seus programas de cota solidária: Califórnia e Nova Jersey. No que diz respeito ao estado da Califórnia, deve-se entender que o abrangente uso dos programas de cota de solidariedade surge como uma resposta à crise da construção de habitações, a partir da década de 1970, que irá se estender pelas décadas seguintes. Esses programas são mais intensamente usados a partir da década de de 1990, até o início dos anos 2000, sendo que entre 1994 a 2003, o número de cidades que adotam a cota solidária no estado passou de 64 para 107. Vale pontuar, que ao longo de 30 anos, cerca de 34000 unidades de habitação acessíveis foram produzidas na Califórnia. Segundo Rosen, um estudo em cidades com e sem a aplicação da cota solidária, chegou a conclusão que a cota solidária “is not associated with a negative effect on housing production. In fact, in most jurisdictions as diverse as San Diego, Carlsbad and Sacramento, the reverse is true. Housing production increased, sometimes dramatically, after passage of inclusionary housing ordinances” (apud. Calavita, 6, 2006).

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Em Nova Jersey, a implementação dos programas tem início em 1975, quando a Suprema Corte do Estado declara que a lei de zoneamento, até então, havia sido utilizada de maneira inconstitucional, de maneira excludente. A partir de então, todos os municípios do estado deveriam promover a partilha de terras de forma justa garantindo o acesso de população de baixa renda à habitação. Em novo decreto de 1985, o New Jersey Fair Share Act, o poder de controle do zoneamento dos municípios deixava de ser atribuição do poder judiciário passando para uma agência administrativa, o Council on Affordable Housing (COAH). Tais políticas não se restringiram a esses dois estados, mas foram nesses, que, de maneira muito semelhante, os governos estaduais tiveram grande influência nas decisões dos municípios quanto acessibilidade à habitação. Outros também implantaram medidas nesse sentido, mas não em todos estas conseguiram ser plenamente implementadas ou podem ser entendidas apenas como aplicações mais locais. A exemplo, no estado de Massachusetts, segundo Ziegler, a lei de zoneamento de 1975 foi bem sucedida no sentido de aumentar a construção de habitação social, mas efetivamente não garantiu a criação de áreas com integração socioeconômica (apud. Calavita, 4, 2006), como proposta pelos programas de cota solidária. Debruçando-se novamente sobre aplicações mais locais, de forma a entender a aplicação dos instrumentos e a construção de seus programas, tem-se o exemplo da cidade de Boulder, no Colorado onde o programa de Cota Solidária foi utilizado como uma das formas de atingir a meta de produção de habitação social contida no Plano Diretor. Um dos objetivos tidos como mais importante era a produção de habitação cuja faixa de preço seria tangível pela população que constituía a força de trabalho na região; dessa forma seria dada a essas pessoas a oportunidade de viver e trabalhar em locais próximos. O programa proposto também ressaltava a heterogenização e equilíbrio nas comunidades, provendo habitação para diferentes classes sociais. Um ponto a ser ressaltado nesses objetivos era assegurar que as unidades de cota solidária continuassem acessíveis às pessoas de muito baixa e baixa renda, pessoas com necessidades especiais e trabalhadores da cidade mesmo após terem sido compradas pela primeira vez. Já a cidade de Sacramento, Califórnia, definiu como objetivo público alcançar uma população diversificada e equilibrada, com ofertas de moradias para todas as classes sociais. A convivência de indivíduos em condições econômicas diferenciadas abre espaço para uma ocupação social e ambiental nos bairros mais saudável, segura e com maior qualidade de vida. Segundo os dados levantados em seus estudos, a cidade passava por uma diminuição na oferta de casas com preços acessíveis para famílias de baixa renda, pois os novos empreendimentos não apresentavam oportunidades para esses indivíduos devido ao alto custo das unidades e pelo mercado imobiliário inflacionado. As famílias de baixa renda eram, consequentemente, excluídas de muitos bairros, criando locais de estratificação econômica e social, privando as camadas mais pobres do acesso direto ao sistema público de saúde, segurança, lazer e etc. Como solução para esses problemas encontrados, ao implantar o Plano Direto da cidade, foi implementada a medida salientando a necessidade de aliar a criação de novos empreendimentos residenciais

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nas áreas em crescimento às habitações de interesse social. Nesse Plano ficou estabelecido também que caberia a cidade manter um quadro econômico regulado para essas moradias e incentivar o desenvolvimento dos empreendimentos, com o objetivo de futuramente criar vizinhanças mistas e atender as necessidades das classes mais baixas. A quantidade de programas de Cota de Solidariedade criados e aplicados nos EUA é ampla e apresenta diferenças em cada local. A política pode ser obrigatória ou voluntária, define tamanhos variados de empreendimentos para aplicação do instrumentos, diferentes porcentagens de unidades a serem destinadas à habitação social e pode ser mais ou menos controladora em relação às medidas alternativas à construção de habitação d baixo custo. É possível ter uma noção mais detalhada dos programas de cada cidade ao analisar a política de zoneamento de cada uma delas. A Cota Solidária em São Paulo No Brasil, a ideia de se aplicar o “Inclusionary zoning” foi primeiramente abordada de forma concreta na elaboração do Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo (Projeto de lei nº688/13). As primeiras redações da seção do PDE que tratam da Cota de Solidariedade, como foi chamado o “Inclusionary zoning” possuem uma redação simples e que não abre outras possibilidades para o seu cumprimento. Os seus principais aspectos eram a obrigatóriedade da cota de solidariedade de 10% para empreendimentos maiores que 20.000 m² para famílias com renda de até 6 salários mínimos. O site oficial do PDE (http://planodiretor.camara.sp.gov.br/wp/) disponibiliza algumas das revisões do texto do PDE realizadas, por meio delas é possivel analisar as mudanças entre um texto e outro até que se chegasse na versão final aprovada em 31 de Julho. Em ordem cronológica, a primeira versão disponível é o “Substitutivo da CPUMMA” aprovado em 1ª votação” de 23/04/2014. Nessa versão os apectos gerais explicitados no paragráfos acima se mantém, ao produtor existem duas alternativas, além da produção no próprio terreno, a primeira seria a produção de empreendimento de HIS de área minima equivalente aos 10% em outro terreno ou a doação de um terreno de área equivalente. As duas altervativas deveriam estar localizadas dentro da mesma macroárea do empreendimento original. A proxima versão é o “1º Substutivo Apresentado em Plenário” de 17/06/2014. Esta versão em muito difere da apresentada acima. Enquanto os aspectos gerais se mantém, as alternativas apresentadas nessa versão diferem, sendo as diferenças mais significativas a retirada da possibilidade de doação de terrenos, o aparecimento da possibilidade de depósito financeiro em valor equivalente ao valor de 10% dos metros quadrados do empreendimento original, outra modificação é a mudança da exigência para que o HIS produzido fora do empreendimento fosse dentro da Macroárea para dentro da Macrozona de Estruturação e Qualificação. Nesta versão também aparece o uma nova condição a ser atendida: “§ 5º A obrigação estabelecida no caput se estende aos empreendimentos com área construída computável inferior a 20.000 m² (vinte mil metros quadrados), quando: a) originários de desmembramentos aprovados após a publicação desta lei, com área computável equivalente superior a 20.000 m²” (Substitutivo nº 02 ao Projeto de Lei 688/2013, Câmara Municipal de São Paulo).

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O “2º Substitutivo apresentado em Plenário” e o “3º Substitutivo apresentado em Plenário” foram apresentados na mesma data e, no que diz respeito à cota de solidariedade, apresentam redação igual à do Substitutivo da CPUMMA. Embora a redação dos últimos Substitutivos se assemelhassem mais ao primeiro texto, a versão final da lei possui uma redação muito próxima com a do 1º Substitutivo. A versão oficial da legislação sobre a Cota de Solidariedade (Lei nº 16.05 de 31 de Julho de 2014, Art.113), apresentada no PDE, a estabelece como exigência para a obtenção do certificado de conclusão de empreendimentos de grande porte, de planos e de projetos urbanístico. Segunda a legislação, existem quatro maneiras de se cumprir essa exigência. A primeira seria por meio de produção de Habitação de Interesse Social pelo produtor do empreendimento no próprio lote; a segunda seria por meio de doação de terrenos para a produção de HIS; a terceira seria a produção de Habitação de Interesse Social em outro terreno; e a quarta seria a doação de recursos ao Município por meio de uma conta destinada à produção de Habitação de Interesse Social ou equipamentos públicos complementares à moradia. São considerados empreendimentos de grande porte aqueles que possuem área construída computável acima de 20.000m². A produção de Habitação pela cota destina-se à famílias com renda de até seis salários mínimos. A área estabelecida por lei que deve ser destinada à Cota de Solidariedade é de 10% e estes devem ser adicionais à possíveis áreas existentes na gleba já marcadas como HIS. Esses 10% valem para os três casos: no caso da transferência de recursos, transfere-se 10% do valor da área transferida computável. Outro aspecto importante da legislação vigente é que os 10% destinados à Cota de Solidariedade entram como um adicional ao coeficiente de aproveitamento estabelecido para aquela região. Ou seja, adicionam-se 10% de área construída computável ao que já estava previsto que deverão ser destinados à Cota de Solidariedade. Por exemplo, um terreno de 20.000m² e coeficiente de aproveitamento 1 que se enquadra nas exigências para a Cota de Solidariedade poderá construir 22.000m², dos quais, 2.000m² se destinarão a Habitação de Interesse Social. Esse aumento de 10%, no entanto, é obtido por meio do pagamento de Outorga Onerosa. Os produtores que optarem por adquirirem outro terreno de área equivalente ao invés de construir a Habitação de Interesse Social no próprio do empreendimento podem adquiri-lo em qualquer lugar da Macrozona de Estruturação e Qualificação Urbana, excluída a Macroárea de Redução da Vulnerabilidade Urbana e os Setores Jacu-Pêssego, Arco Leste, Noroeste e Fernão Dias da Macroárea de Estruturação Metropolitana. Repercussões da lei Após a aprovação do PDE, o urbanista João Sette Whitaker publicou um texto em 29 de Novembro de 2014 intitulado: “o patrimonialismo e as leis facultativas: o caso da cota de solidariedade em São Paulo” no qual discorre sobre o que considera os aspectos problemáticos da lei e também seu aspecto “facultativo”. O termo “facultativo” é por ele empregado para explicar os aspectos dessas leis em que sua própria redação abre margem para que sejam adotadas alternativas à sua execução, como no caso da cota de solidariedade tal como foi aprovada. O objetivo

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principal, a produção de Habitação de Interesse Social no mesmo terreno de grandes empreendimentos, torna-se apenas uma das opções apresentadas ao produtor fazendo com que a lei “não seja efetivamente cumprida” (Whitaker, 2014). Esse aspecto é apontado pelo autor como não apenas um caso isolado, mas como um evento generalizado. Em suas palavras: “A lei, no Brasil, é um tanto quanto maleável, é isso é um dos reflexos mais claros do que se denomina de Estado e sociedade patrimonialistas, em que o público não é bem público, e a máquina “pública” mais serve, na verdade, para manter as hegemonias dominantes.”.

A crítica de Whitaker à lei continua destacando as consequências que essa facultatividade gera nesse caso específico. Segundo ele, a construção dessas habitações de Interesse Social no mesmo terreno do empreendimento ou em área próxima ajuda a aproximar a população de seus empregos e assim reduzindo a chamada pendularidade. Essa redução, no entanto, não existiria com a possibilidade do produtor de construir essas habitações em qualquer local da Macrozona de Estruturação e Qualificação, uma vez que empreendedores provavelmente procurariam por terrenos mais baratos que em geral se encontram nas regiões mais periféricas da cidade. Outro aspecto problemático da lei, para o autor, é o da possibilidade de se transferir uma quantia em dinheiro equivalente ao valor de 10% da área do empreendimento aos fundos da prefeitura voltados à Habitação Social. Esse ponto seria problemático, pois modifica o aspecto da lei de oferecer terra a população, um bem de tão difícil acesso na cidade, para dinheiro. “Agora, a terra virou pó, ou melhor, dinheiro, para produzir casas provavelmente bem longe, como fazem costumeiramente as políticas habitacionais, o que aliás continua sendo praxe na atual gestão” (Whitaker, 2014)

Considerações finais As variações nos componentes integrantes da política, como a possibilidade de ser obrigatório ou não ou a porcentagem de unidades a serem separadas para produção de habitação social, tem impacto significante na quantidade de habitação de baixo custo produzida e em como o programa afeta a oferta e os preços das unidades de mercado (SCHUETZ; METZER; BEEN, 2008). Os estudos dos casos de aplicação da cota solidária se provam de melhor entendimento e mais facilmente criticáveis ao serem analisados dentro de uma comparação regional entre os programas criados e seus resultados. Por fim, as inúmeras maneiras de aplicar a cota de solidariedade demonstram sua flexibilidade como instrumento urbanístico, sendo passível de adaptação segundo a localidade onde for aplicada. Os exemplos apresentados de cidades norte-americanas, que num cenário global são o melhores quanto sua forma de aplicação e resultados obtidos, servem como balizadores para novas experiências implementações e nesse caso serão utilizadas para criticar ou elogiar as decisões adotadas em relação à cota solidária no Plano Diretor de São Paulo, sempre tendo em mente as realidades sócio-econômicas de cada país. O tamanho estabelecido pela legislação da cidade de São Paulo, como mínimo a

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partir do qual os empreendimentos deverão incluir a cota solidária, 20000m2, foi uma boa escolha no sentido que abrange também empreendimentos de médio porte, e não somente empreendimentos de grande porte. Contudo, a porcentagem de unidades destinadas à habitação social, 10% do total no texto da lei paulista, parece pouca e incipiente, insuficiente se considerarmos os déficit habitacional da cidade e a forte segregação entre os bairros centrais e mais estruturados e as áreas periféricas. Essa porcentagem poderia ser revista, tornando possível com que fosse aumentada, dependendo do empreendimento. Em algumas cidades norte-americanas, cerca de um terço dos empreendimentos devem destinar de 11 a 15% das unidades a habitação acessível , podendo chegar, em alguns casos a 25 % (SCHUETZ; METZER; BEEN,13, 2008). Espera-se maior flexibilidade da lei no sentido que ela consiga abarcar o maior número de empreendimentos possíveis, gerando assim maior número de unidades de habitação acessível e maior quantidade de áreas socialmente diversificadas. Nas cidades norte-americanas, apesar de ser da escolha do município ser os programas serão obrigatórios ou voluntários, a grande maioria optou por impor a cota solidária de maneira obrigatória aos novos empreendimentos. Em São Paulo, a lei aprovada tem, teoricamente, caráter obrigatório, apesar de que as alternativas deixadas pela própria lei para contorna-la faz com que seu objetivo seja muito pouco incisivo. A flexibilidade de um programa de Cota de Solidariedade está ligada à oferta de opções caso não seja vantajoso ou possível realizar a construção da habitação social no mesmo terreno. Na California, EUA, pelo menos 80% das cidades com programa de Cota de Solidariedade oferecem alternativas para a construção dentro do empreendimento (NHC, 2004). No programa previsto no Plano Diretor Estratégico (2014, p. 7, Subseção IX, Art. 111), são oferecidas três opções: § 2º Alternativamente ao cumprimento da exigência estabelecida no “caput” deste artigo, o empreendedor poderá: I - produzir Empreendimento de Habitação de Interesse Social com no mínimo a mesma área construída exigida no “caput” desse artigo em outro terreno, desde que situado na Macrozona de Estruturação e Qualificação Urbana, excluída a Macroárea de Redução da Vulnerabilidade Urbana e os Setores Jacu-Pêssego, Arco Leste, Noroeste e Fernão Dias da Macroárea de Estruturação Metropolitana; II - doar terreno de valor equivalente a 10% (dez por cento) do valor da área total do terreno do empreendimento, calculado conforme Cadastro de Valor de Terreno para fins de Outorga Onerosa, situado na Macrozona de Estruturação e Qualificação Urbana, excluída a Macroárea de Redução da Vulnerabilidade Urbana e os Setores Jacu-Pêssego, Arco Leste, Noroeste e Fernão Dias da Macroárea de Estruturação Metropolitana; III - depositar no Fundo de Desenvolvimento Urbano - FUNDURB, em sua conta segregada para Habitação de Interesse Social, 10% (dez por cento) do valor da área total do terreno calculado conforme Cadastro de Valor de Terreno para fins de Outorga Onerosa, destinado à aquisição de terreno ou subsídio para produção de HIS, preferen146

cialmente em ZEIS 3. A primeira medida permite a produção de Habitação de Interesse Social (HIS) com no mínimo a mesma área desde que situada na mesma Macroárea. Considerando as grandes dimensões das macroáreas do Estado de São Paulo, torna-se questionável a flexibilidade dada por essa opção, uma vez que empreendedores, ao construírem em bairros de alto padrão cuja metragem é custosa, podem optar pela produção da mesma quantidade de unidades de HIS em uma área de vulnerabilidade situada dentro da macroárea, tendo os mesmos efeitos da produção de habitação realizada até hoje no país. A construção de unidades em terrenos isolados ou fora da malha urbana limita os benefícios do programa, principalmente no que diz respeito à integração social. Em alguns casos, é exigido que o empreendedor construa mais unidades habitacionais do que as exigidas para seu terreno, uma estratégia que tem como prioridade assegurar a produção de habitação e não necessariamente sua inserção urbana. A segunda alternativa é a oferta de terras. Essa medida está diretamente ligada à qualidade da terra sendo doada, seu tamanho, formato, topografia e localização. A existência de infraestrutura adequada, limitações ambientais, a disponibilidade de recursos para a construção de habitação no novo terreno são critérios de análise indispensáveis a serem considerados ao realizar a oferta. Limitar a possibilidade de doação ao preço da terra é uma medida ineficiente na criação de habitação social em áreas que permitam sua integração na cidade. A terceira e última alternativa propõe a doação de 10% do valor total da área do terreno. O pagamento de taxas é um dos aspectos mais polêmicos das alternativas, podendo ser extremamente ineficazes dependendo de seu método de cálculo e sua aplicação. Esse é o método mais comum nos EUA, e costuma ser calculado em função da quantidade de unidades ou da área construída não realizada (NHC, 2004), diferentemente da legislação de São Paulo que a determina somente em função do preço do terreno. Apesar de serem comuns as alternativas nos programas americanos, o sucesso da Cota de Solidariedade depende também da exigência por parte das administrações de demonstrar que o uso de alternativas pode ser mais vantajoso ou trazer mais benefícios para a cidade. Em Washington, D.C., por exemplo, é permitido optar pelos outros meios caso seja provado que a construção no terreno pode acabar por ter custos extremamente elevados e incapacitar sua oferta às populações de baixa renda sem causar grandes prejuízos ao empreendedor (SCHUETZ; METZER; BEEN, 2008). Cidades que optaram pelo uso de alternativas sob certas restrições tiveram mais sucesso na produção de habitação do que as que não ofereceram nenhuma opção (NHC, 2004). A ausência de uma legislação que determine parâmetros para a diferenciação nas fachadas e elementos visuais de empreendimentos de baixa renda, é um ponto a ser criticado, já que essa característica contribui para a segregação e preconceito. A legislação de Burlington, Vermont (Burlington, EUA. 2014) é clara quanto às características das unidades produzidas.: (b) Inclusionary units may differ from the market units in a covered project with regard to interior amenities and gross floor area, provided that: 1. These differences, excluding differences related to size differentials, are not 147

apparent in the general exterior appearance of the project’s units; and 2. These differences do not include insulation, windows, heating systems, and other improvements related to the energy efficiency of the project’s units; [...] Os programas de cota solidária, tanto nos Estados Unidos como em São Paulo, apresentam-se, em sua teoria, como alternativas inovadoras para questão da habitação social e do acesso igualitário à cidade. Partem da premissa de construir uma sociedade mais heterogênea e diversa, uma cidade na qual famílias não seriam expulsas de seus bairros devido ao processo de gentrificação, na qual pessoas poderiam morar perto de seus trabalhos e gastar menos tempo – e menos recursos – para locomover-se todos os dias. Os mecanismos criados para se atingir tal objetivo são diversos. Nos EUA, o caráter Estadual das leis permite que várias soluções diferentes sejam adotadas, como já dito anteriormente, algumas mais restritivas, outras mais abrangentes. No Brasil, temos apenas o caso de São Paulo para analise, porém este parece abarcar todas as características abrangentes que as legislações americanas desenvolveram. As diversas alternativas apresentadas na lei, bem como sua falta de especificidade tornam a lei paulista aberta a interpretação do produtor. Não há especificações, como em alguns casos americanos, de que o exterior das habitações sócias sejam iguais aos das outras unidades, não há uma restrição de que essas habitações sejam construídas no próprio terreno, nem ao menos determina uma área próxima para isso. A possibilidade de pagamento em dinheiro pelo produtor simplesmente o isenta da responsabilidade da produção social. A legislação paulistana é inovadora pela sua própria existência, é uma grande conquista que tenha sido implementada no novo plano diretor, porém não se deve olhar para ela com olhos acríticos. Quando se analisa os planos americanos, percebe-se que existem maneiras melhores de se aplicar a cota solidária sem que sejam feitas mudanças radicais ao que já foi feito em São Paulo.

Bibliografia CALAVITA, Nico. Inclusionary Housing in the US and Europe. Istambul: 42nd ISoCaRP Congress, 2006. CALAVITA, N.; GRIMES, K.; MALLACH, A. Inclusionary Housing in California and New Jersey: A Comparative Analysis. Housing Policy Debate, Washington D.C., v. 8, issue 1, p.109-142, 1997. ELLICKSON, R.C., The Irony of Inclusionary Zoning. Paper. Faculty Scholarship Series, Yale Law School, New Haven, 1981. NATIONAL HOUSING CONFERENCE (NHC), Inclusionary Zoning: the California Experience. NHC Affordable Housing Policy Review, Wshington D.C., v. 3, issue 1, 2004.

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SCHUETZ, J.; MELTZER, R.; BEEN, V. 31 Flavors of Inclusionary Zoning: Comparing policies from San Francisco, Washington, D.C. and Suburban Boston. 2008. 29 f. Working Paper. Furman Center for Real Estate and Urban Police. New York University, Nova York, 2008. TALBERT, C. T.; COSTA, N. L.; KRUMBEIN, A. L. Recent developments in Inclusionary Zoning. The Urban Lawyer, Kansas City, vol. 38, nº 3, p 701-712, 2006. VANDELL, K. D. Inclusionary Zoning: Myths and Realities. 2003. 56 f. Working Paper. Center for Urban Land Economics Research at University of Wisconsin, Wisconsin, Madison, 2003. WHITAKER, J. S. O patrimonialismo e as leis facultativas: o caso da cota de solidariedade em são Paulo. Cidade para que(m)?. São Paulo, 29 nov. 2014. Disponível em: ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Burlington Comprehensive Development Ordinance. Inclusionary and Replacement Housing. Article 9. Burlington, 2014. SÃO PAULO. Lei nº 16.050, de 31 Julho de 2014. Disponível em: SÃO PAULO. Substitutivo da CPUMMA aprovado em 1ª votação. Disponível em: SÃO PAULO> 1º Substitutivo apresentado em Plenário. Disponível em: SÃO PAULO> 2º Substitutivo apresentado em Plenário. Disponível em: SÃO PAULO> 3º Substitutivo apresentado em Plenário. Disponível em:

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artigo

Dissonâncias morfológicas: a questão do traçado urbano do bairro Jardins em São Paulo

Gabriela Pedroso Chimello Leticia Falasqui Tachinardi Rocha

O conceito de bairro-jardim se materializa ao se contemplar premissas como grandes recuos, baixa densidade e a forte presença do verde. Com vantagens e críticas, exemplos desse modelo foram construídos, como é o caso do bairro Jardins em São Paulo, implantado pela companhia City. Claramente distinta do restante da malha urbana, a mancha foi tombada pelo Condephaat em 1985. O trabalho busca um diálogo entre a sintaxe formal do bairro e seu entorno, analisando sua ressemantização, que em última instância conta a história da dialética entre as práticas e as definições do vocábulo cidade. palavras-chave: morfologia urbana, bairro-jardim, Jardins - São Paulo. 151

1. Cidade-Jardim, Subúrbio-Jardim, Bairro-Jardim e as especificidades do Jardim América em São Paulo Os termos cidade-jardim e subúrbio-jardim a rigor designam diferentes condições espaciais e sociais; enquanto o primeiro se distancia das cidades existentes em busca de um modelo ideal, o segundo é interdependente das mesmas. Porém, o emprego de tais termos flexibilizou-se desde cedo; tanto que em 1922, Léon Juassely, no prefácio da edição francesa do livro “Town Planning in Practice” de 1909 de Raymond Unwin, ressalta enfaticamente a diferença entre ambos. 1 Tal generalização do conceito de cidade-jardim se pautou nas características formais deste modo de urbanização: ruas sinuosas e arborizadas, variedades formais entre as residências e a integração das mesmas com áreas ajardinadas. Porém, originalmente o conceito de cidade-jardim foi proposto por Howard em seu livro Tomorrow, a Peaceful Path to Real Reform, 1988; reeditado em 1903 com o nome através do qual ficou conhecido, Garden Cities of Tomorrow. “Sua proposta de cidade-jardim não se referia a um modelo espacial e sim a um esquema teórico de uma cidade autônoma, de gestão comunitária, de dimensão limitada por extensa faixa agrícola que a circundava e que, caracterizada por altas taxas de áreas verdes, seria uma alternativa para o caos e decadência urbanos.” 2

A forma urbana primeira que essa teoria assumiu trata-se de Letchworth. Projeto de Raymond Unwin e Barry Parker, os mesmos idealizadores de Hampstead, um subúrbio-jardim londrino e do primeiro projeto do Jardim América em São Paulo. Mas quando Parker trabalhou em São Paulo para a Cia. City deixou de lado utopias sociais vinculadas à teoria original, desenhando baseado na ideia de paisagem e de vida urbana. O projeto do Jardim América, portanto se pauta predominantemente nas peculiaridades formais e não nas premissas conceituais de cidade-jardim, tendo em vista “as aspirações dos potenciais compradores e a realidade paulistana.” 3 A fim de se construir a identidade do bairro-jardim, e garantir que a mesma se materializasse conforme seu projeto, “as construções das casas seguiram as diretrizes rigorosas estabelecidas e fiscalizadas pela loteadora.” 4 O traçado viário e dos lotes conjugou a preexistência topográfica bem como os ideais paisagísticos e urbanos de Parker. O uso do solo foi predominantemente dedicado a residências, assim, o caráter que o projeto assumiu foi de um bairro-jardim – “em extensão à cidade existente e dependente das atividades nela desenvolvidas.” 5 Os lotes originais eram grandes: com pelo menos 20 metros de frente e áreas raramente inferiores a 900 m²; totalizavam, em 1919, 396 lotes. Com jardins semi-públicos nos miolos de quadra, ruas sinuosas e abundante área verde. Mas o desenho trazia receios ao próprio autor; descritos em seu relatório final: “Meu maior temor para o futuro do Jardim América advinha da probabilidade da ideia comum dos proprietários de que se deve fazer um “show”, para impressionar os que passam, resultasse em cada casa voltando as costas para os jardins semi-públicos e portanto que estes fossem gradualmente sendo rodeados por agenciamentos de fundos – garagens, banheiros de empregados, lavanderias, galinheiros, depósitos, lixeiras, etc. 152

Se isso acontecesse os jardins semi-públicos logo deixariam de ser agradáveis e convidativos e não seriam frequentados e se tornariam nada mais que extensões dos pobres quintais. O modo que eu vejo para evitar isso é fazer com que cada casa seja uma casa com duas frentes, isto é que cada casa tenha uma fachada para a rua e uma para o jardim e situar todos os anexos entre as casas.” 6

Com efeito, após a primeira fase de ampliação do projeto – desenhada pelo próprio arquiteto, “no limite à direita do bairro” 7 – o sucesso nas vendas levou a Cia. City a aumentar o número de lotes, subdividindo os existentes e utilizando áreas dedicadas a outros fins. Além de problemas na manutenção dos jardins internos: moradores, a prefeitura e a própria Cia. City atribuíam uns aos outros tal ônus, dada a indefinição de interfaces público-privadas. “O retalhamento dos jardins internos executado entre 1931 e 1935 criará a disponibilidade de grande número de novos lotes à venda, facilmente absorvidos pelo mercado”. 8 O temor de Parker havia se consolidado em pouco mais de dez anos; o Jardim América encerrou a comercialização com 672 lotes, 276 lotes a mais que o projeto inicial. “Outro temor que eu tinha pelo Jardim América era o de que as ruas em si pudessem tornar-se monótonas e desinteressantes pela ação de proprietários construindo cercas envolvendo seus jardins de modo que os passantes não pudessem ver através delas, como tem acontecido em tantos subúrbios ingleses, onde a monotonia inigualável revela às vezes um caminho, por milhas, entre duas cercas altas. Eu gostaria de ter feito do Jardim América um “subúrbio sem cercas”, mas eu descobri que a opinião pública no Brasil não estava pronta para isto, tendo sido o preconceito muito forte para mim.” 9

A opinião pública no Brasil não estava pronta para aceitar um “subúrbio sem cercas” no início do século XX; porém a opinião pública no Brasil não está pronta para manter ao menos a permeabilidade visual das cercas baixas e vazadas: a monotonia temida e evitada no traçado viário aparece em milhas de altos muros. 2.

Conceito urbano e consequências

Traçando os conceitos e ideais de Cidade-jardim às suas origens teóricas, observa-se que foram pensados de forma a solucionar desafios recorrentes das grandes cidades do início do século XX: habitação inadequada, assim como déficit, preocupações de uma sociedade higienista e desenvolvimento urbano. Nesse período organizações nacionais e internacionais surgiram para produzir alternativas viáveis10. Desde antes das grandes reformas urbanas, compreendendo que as cidades eram aglomerações perigosamente desordenadas, foco de doenças contagiosas e sujeira, uma imagem negativa da urbanização já estava formada. A essa imagem foi acrescentada a visão de decadência familiar e das relações sociais nos centros urbanos, geradores apenas de uma sociedade sem proximidade cuja interação se baseia na expectativa de trocas vantajosas 11. Com base nessa hostilidade aos núcleos urbanos, pensadores e planejadores manifestaram uma preocupação com as relações orgânicas entre as comunidades e seus ambientes físicos, dando voz a insatisfação da população e ganhando aceitação rápida. Entre estes teóricos, Ebenerzer Howard. 153

Há um interesse social claro nas proposições iniciais da Cidade Jardim, além do aspecto de ordenação física. A preocupação com a mistura de classes e formação de uma “vizinhança”12 (a ser entendida como interação social-afetiva entre vizinhos) nesses planos iniciais serviu como conceito base para os planejadores que se seguiriam. “The terms ‘neighbourhood unit’ and ‘neighbourhood concept’ tend to denote planning and build aspects, whereas ‘neighbourhood relations’ is concerned with social interaction.” 13

Entrementes se previa que o processo de urbanização seria controlado através de estruturação espacial e zoneamento com baixas densidades. Os teóricos almejavam melhor habitação, cidades mais saudáveis e melhores condições de vida para todos, em longo prazo formando uma civilização melhor14. Os terrenos, porém, eram caros para uma iniciativa social, então a oportunidade surgiu com novos lotes na periferia urbana. Entre as vantagens contadas a favor desses empreendimentos estava a higienização dos terrenos pantanosos, escolhidos para abrigar os novos lotes. O mesmo fenômeno de periferização foi observado em terras brasileiras. Observa-se larga adaptação dos ideais sociais e formais do modelo de Cidade Jardim a outras culturas e propósitos em diferentes países, não sendo restrito a um local ou tempo15. No Brasil, esses ideais foram utilizados para promover empreendimentos “modernos” e “elegantes” com caráter civilizatório, destinados para uma específica parcela da população, assim perdendo o caráter de reforma social para se tornar apenas uma reforma física16. Esses empreendimentos propagaram a ideia de um novo modo de vida, apoiados por propagandas diversas que criaram uma “marca”, fenômeno identificado como “place branding” 17, ou seja, um processo chave para o mercado de consumo cujo discurso prega a diferenciação como forma de alegar superioridade. O ideal de bairro jardim tornou-se um produto específico a ser consumido, contribuindo por fim para discursos de privilégio, ampliando a marginalização e desigualdade social. “The Garden City presents a compelling case in that it is a place specifically created with explicit social engineering ideals in mind, manifested in its built environment and historical narration.” 18

Como exemplificado no caso de Goiania19, no Brasil, como em outros lugares a ideia foi comprada e logo alterada. Além desse aspecto inicial, com o passar do tempo certas diretrizes foram também adaptadas pela população, seja por não respeitarem a tradição das cidades pré-existentes, seja por não representarem o ideal de progresso da cidade moderna da época (cidade de concreto, movimentada, com ruas retificadas e largas possuindo exemplares da arquitetura moderna). O conceito de jardins semi-públicos no interior das quadras, por exemplo, assim como o distanciamento dos lotes em relação à rua foi logo provado falho na aplicação local, e então deixado pra trás. A exemplo também do plano para o Jardim América de Richard Barry Parker (primeira iniciativa brasileira), cujos aspectos de cidade jardim terminaram restritos à: ruas arborizadas, bem ventiladas e grandes áreas verdes, outros bairros brasileiros se adaptaram através do reparcelamento dos jardim semi-públicos e do fechamento dos lotes com muros20.

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Em São Paulo foram construídos bairros satélites dependentes dos grandes centros, ao contrário da teoria inicialmente proposta por Howard de uma cidade autossuficiente. Posteriormente tombados e englobados pela cidade espontânea, esses bairros são claramente identificáveis com traçado, morfologia e uso distintos da cidade que o rodeia. Não há uma variação constante, mas brusca, entre uma e outra tipologia, o que forma uma barreira física para que os habitantes de fora cruzem o bairro jardim, como também essa estagnação coíbe a renovação dos usos, necessária para o desenvolvimento local. Johansson na seguinte citação descreve a evolução de uma Cidade Jardim na Finlândia - Tapiola, cujo 50º aniversário criou a oportunidade para o repensar de seus usos e características importantes. “Over the years, the original plan of Tapiola was modified in the face of ideological change and practical pressure. A significant addition was the expansion of the commercial centre in the 1970s, which according to some spelled the end of the original garden city concept. In the late 1990s, there was a fresh call for construction development due to insufficient residential housing as Tapiola was growing.21 The original ideal of a harmonious balance seemed to have eroded in the face of commercial realities so the Garden City seemed out of alignment with contemporary circumstances when approaching its 50th anniversary.22 3.

Busca de um diálogo

Se por um lado as ruas sinuosas e arborizadas, as casas distintas e ajardinadas fogem a monotonia do urbanismo de grelha sem recuos; após anos de implantação a monotonia insistiu em se manifestar graças ao apelo dos altos e contínuos muros. A promessa comercial de uma vida mais saudável e bela, gestada com um arcabouço de princípios paisagísticos e formais derivados do conceito de cidade-jardim encontrou entraves em sua construção. O equilíbrio entre a ausência e a intransigência de normas sobre recuos e gabaritos, o meio termo entre a grelha e enormes ruas visando a maior acomodação à topografia, a harmonia entre espaços livres e construídos, a justa proporcionalidade entre os usos – uso misto, a adequação dos sistemas de transportes. A ponderação entre as qualidades de cada modelo, sem tábula rasa, mas sim partindo de experiências analisadas pela história, constituiria cidades mais eficientes, homogêneas, integradas e aprazíveis. Não há meios de se implantar utopias, deve-se partir das cidades existentes com todas as suas incongruências e especificidades, feitas qual colcha de retalhos, e buscar cerzi-las. Ocupações do solo urbano marcantes como o Jardim América, o centro histórico de São Paulo continuarão existindo como testemunhas oculares da história. O tempo que banhou suas construções já nos possibilita um balanço das mesmas, tem-se história, memória, experiências urbanas que devem ser estudadas não na chave da emulação e da mimese, mas sim na chave critica de balancear seus sucessos e revezes a fim de melhor orquestrar o uso e a ocupação do solo.

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Notas (1) WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América: O Primeiro Bairro-jardim de São Paulo e Sua Arquitetura – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001, passim. (2) Ibidem, p. 22. (3) Ibidem, p. 72. (4) Ibidem, p. 93. (5) Ibidem, p. 108. (6) PARKER, Barry. Relatório Final, In: GG092: ACC (7) Ibidem, p. 116. (8) BACELLI, Ronei. A presença da Cia. City em São Paulo (1915-1940) e a implantação do Primeiro Bairro-Jardim. São Paulo. Dissertação de Mestrado. FFCLUSP, Depto. De História, 1982. (9) PARKER, Barry. Op. cit. (10), (11) SCHUBERT, Dirk. The Neighbourhood Paradigm: From Garden Cities to Gated Communities. (12),(13),(14) SCHUBERT, Dirk. The Neighbourhood Paradigm: From Garden Cities to Gated Communities. (15) MILLER, Mervyn. Garden Cities and Suburbs (16) REGO, Renato Leão. Brazilian Garden Cities and Suburbs (17) JOHANSSON, M. Place Branding and the Imaginary (19),(20) REGO, Renato Leão. Brazilian Garden Cities and Suburbs (18),(21),(22) JOHANSSON, M. Place Branding and the Imaginary

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artigo

É possível resolver o déficit habitacional em São Paulo. Porque não é conveniente?

Luiza Tiritan A. Xavier Maríllia Paula M. Pimentel

Há quatro anos, o censo em São Paulo indicou que seria possível abrigar a população sem teto da cidade apenas com a ocupação dos seus edifícios abandonados, concentrados em áreas centrais. Sabe-se, porém, que o que se mostra como uma saída econômica, conveniente e favorável aos novos moradores, para resolver o grave problema da habitação, é de fato, um grande desafio técnico, político e cultural. A busca de informações sobre a técnica do “Retrofit” e a mostra de um elenco de políticas habitacionais favoráveis à essa nova ocupação, deve provar o quão palpável pode ser essa solução. Existem, entretanto, embates de interesses que talvez pesem mais ao se considerar a realização de um plano como este e espera-se constatar quão determinantes elas podem ser.Para tanto, partindo de dados de pesquisa sobre a situação dos edifícios abandonados e subutilizados, serão levantadas as barreiras legislativas e de projeto para o Retrofit e analisados os entraves políticos e de mercado que impedem a intenção de buscar a concretização de uma cidade mais justa. Ao surgir uma solução óbvia, à primeira vista, ao assentamento digno de cidadãos sem teto e moradores de cortiços em São Paulo espera-se entender o que, de fato, tem impedido esta realização por tantos anos. palavras-chave: moradia, morar no Centro, déficit habitacional, retrofit, sem-teto, HIS, imóveis subutilizados, esvaziamento populacional do centro, sub-moradias.

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Existe há alguns anos a discussão acerca da possibilidade de acomodar as famílias sem teto do município de São Paulo em residências abandonadas, concentradas principalmente na área central da cidade, e ainda não se constatou avanço na consideração desta oportunidade. Dados do programa “Morar no Centro”, desenvolvido no período 2002/2004, apontavam para o esvaziamento populacional do Centro de São Paulo em seus 13 distritos, com uma perda de 30% da população em duas décadas. Porém, esta é uma região que concentrava, à época, 21% dos empregos de toda a cidade, com ampla oferta de infraestrutura (água, esgoto, energia) e de transportes (metrô, trem, ônibus) e que continha, dentre suas edificações, 18% de prédios vazios ou subutilizados. “Este programa [Morar no Centro] foi promovido pela Secretaria da Habitação e do Desenvolvimento Urbano (SEHAB), durante a gestão da prefeita Marta Suplicy (2001/2004), e foi voltado às moradias populares existentes no centro de São Paulo, de modo geral, sendo vinculado com a reabilitação dessa região. O programa visava melhorar as condições de vida dos moradores na área central e atrair novos moradores para a região, atuando em um conjunto de 13 distritos centrais, localizados nas Subprefeituras da Sé (distritos da Sé, República, Liberdade, Consolação, Bom Retiro), da Mooca (distritos do Belém, Brás, Mooca e Pari) e da Lapa (distrito da Barra Funda).” (NETO, 2006)

O censo de 2010 revelou que o número de casas vazias no Brasil supera o seu déficit habitacional e que São Paulo é o estado com o maior número de domicílios vagos. “O número de moradias vazias chega a 1,112 milhão, de acordo com o Sinduscon – SP, são 1,127 milhão de famílias sem teto ou sem uma casa adequada. Portanto, na hipótese de que essas casas vagas fossem ocupadas por uma família, só 15 mil moradias precisariam ser construídas para solucionar o déficit habitacional do estado”, é o que consta na matéria da Agência Brasil, de 2010. Para o Município de São Paulo, atualmente, as condições permanecem favoráveis para absorver o Déficit Habitacional Básico de 411.393 (Censo IBGE, 2010), com o número total de 290 mil (Censo IBGE, 2010) domicílios vagos apenas na zona Urbana. O programa Morar no Centro lançou diretrizes e objetivos que corroboram com estas condições, como concretizar a vontade de melhorar as condições de vida dos moradores dos bairros centrais, viabilizar a moradia no centro para quem trabalha na região e evitar o processo de expulsão relacionado às políticas de reabitação de centros urbanos. Deste modo se incentiva a diversidade social, estimula a reforma de prédios vazios e de valor arquitetônico e ainda combinando soluções habitacionais com ações de geração de renda. Ainda assim, entretanto, é perpetuado o investimento em construção de novas moradias populares afastadas da porção mais consolidada, equipada e subutilizada do território. Em entrevista à Agência Brasil, o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim lembrou, porém, que nem todas essas casas ociosas poderiam ser ocupadas. Os imóveis têm diferentes características, desde estando à espera por novo locatário ou proprietário, a apresentando preço de mercado incompatível com a demanda popular. Ele aponta que o caminho para a resolução deste problema são políticas públicas favoráveis à ocupação das moradias desocupadas, que precisam de estímulo e investimento governamental dentro de um plano diretor para distribuí-las a quem mais necessita. Para que isso ocorra, também são necessárias iniciativas para desapropriar os imóveis abandonados há tempos para que voltem ao mercado e políticas de um Estado 160

forte que garantam que este mercado seja o popular. Conforme divulgado em 2010 pelo sindicato Sinduscon-SP, “77% das famílias sem teto ou que vivem em locais inadequados têm renda mensal de até três salários mínimos (R$ 1.530)”. Reforçando esta opinião, o arquiteto e urbanista do Instituto Pólis, Kazuo Nakano, afirmou em 2012 também em entrevista para a Agência Brasil da EBC que “o tema da habitação no Brasil deve ser tratado como um serviço e não como oferta de propriedade privada e individualizada por parte do Estado”. Acompanhando estes dados passa-se a especular como seria o plano de ação para a implantação das novas ocupações. Falou-se da necessidade primária de haver políticas favoráveis à ocupação do centro com habitações sociais em imóveis já existentes e sem função. Porém, os planos de desenvolvimento das cidades estão alinhados a diversos interesses, e a tradicional forma de “fazer política” no Brasil não tem mudado. Sendo assim, infelizmente não teremos melhores perspectivas para a melhoria das condições de vida se aceitarmos que os nossos problemas urbanos estão e continuarão arraigados à práticas ultra conservadoras. É dever dos cidadãos enfrentar este negativismo e acreditar que uma cidade mais justa e igualitária é possível, já que o atual inchaço e desgoverno das cidades chegou a um status que não favorece mais a ninguém. Tornou-se um desafio habitar nas grandes cidades do Brasil, uma afronta ao bem estar.

Figura1: Dados de Domicílios Urbanos vagos na RMSP em destaque. Fonte: Yolle (2006, P.3)

Figura2: Porcentagem da População do Município de São Paulo alvo do Programa Morar No Centro. Fonte: Yolle (2006, P.2) 161

Na prática, “O Brasil precisará de R$ 3 trilhões até 2022 para construir as 23 milhões de moradias necessárias para suprir seu deficit habitacional, de acordo com o Deconcic (Departamento da Indústria da Construção) da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).” (ROLNIK, 2011). Segundo ela, o menor dos problemas é o investimento a ser feito na habitação. Os investimentos feitos em moradia resolvem a situação de necessidade física de abrigo a uma parcela da população sem teto beneficiada, porém não os remove da dinâmica maléfica do modelo de cidade que ainda não se alterou no trajeto do planejamento brasileiro. “Nosso país é primitivo nesse ponto de vista, ainda é marcado pela herança escravocrata, onde se acha que casa para pobre tem de ficar na periferia. Nossa elite tem essa visão, e a máquina do Estado está montada para perpetuá-la.” (ROLNIK, 2011). Ou seja, somente combatendo a atual barreira política será possível de fato estimular o morar no centro e romper com a expulsão das famílias de baixa renda para a não-cidade, afastada da infraestrutura e emprego presentes na cidade consolidada. Uma garantia para que ocorra maior ocupação popular no centro seria buscar mais investimentos públicos em auxílio de aluguel, como propõe Raquel em seu artigo de 2010 acerca do déficit habitacional em São Paulo.

Figura 3: Agentes envolvidos no processo de Reabilitação de Edificações. Fonte: Croitor (2009, P. 17) 162

Outro desafio para este movimento de reocupação do centro é conseguir posse dos imóveis de interesse. Para tanto, existe, entre outras, a ferramenta urbanística da cobrança de IPTU progressivo, o que inibe a manutenção do imóvel vazio. Outro impedimento à aquisição dos imóveis é a prática de valorização do solo, que faz com que os imóveis não cumpram sua função social, porém, uma função mercantil. “Nosso grande desafio é desmercantilizar parte das terras urbanas das nossas cidades” (NAKANO, 2012). Ele explica que a maioria das políticas habitacionais esbarra no desafio de ofertar terra urbanizada, integrada à cidade, para construção de empreendimentos habitacionais em larga escala. “Existe uma esquizofrenia. O governo fez um esforço para implementar o Estatuto das Cidades, com ferramentas de intervenção no mercado de solos. Mas, na hora em que os recursos mais vultuosos para habitação saíram, essa pauta foi relegada. Não existe uma estratégia nacional para definir investimento e incorporar os planos diretores.” (ROLNIK, 2008) Outra etapa desafiadora é a readaptação destas casas para funcionarem como abrigo. A técnica conhecida como Retrofit é então fundamental no estudo de recuperação de espaços abandonados e desfuncionais. Ela é definida por ser a reabilitação tecnológica de edifício, uma alternativa à demolição e à construção de novos edifícios. Em oposição à expansão urbana com a ocupação de áreas degradadas (brownfields), a reabilitação busca a ocupação de áreas verdes (greenfields), entendida como a porção consolidada da cidade. “Retrofit é a troca ou substituição de componentes ou subsistemas específicos de um edifício, que se tornaram inadequados ou obsoletos, seja pelo passar do tempo, função da evolução tecnológica ou de novas necessidades dos usuários”. (DUARTE) Esta é uma prática ainda recente e com pouca reverberação no Brasil. Já na Europa constatou-se maior domínio deste conhecimento e maior aplicação deste. Um estudo divulgado pela Euroconstruct em 2003 mostra que o segmento da reabilitação no setor da construção em 2002 já representava quase 50% do mercado sueco, por exemplo. A média europeia de aproximadamente 35% mostra que reutilizar construções pode ser um caminho desejável, pela sustentabilidade de aproveitar-se de espaços construídos e de interesse urbano. Reciclar, readaptar e reutilizar são conceitos essenciais para amenizar as grandes crises contemporâneas, como o esgotamento de recursos, o crescimento da população mundial, a ingerência dos resíduos que geramos sem parar e a falta de acesso à moradia nas cidades. Conclusão Frente ao grande desafio analisado para o acesso à moradia na Cidade de São Paulo, foram listadas as maiores providências necessárias para a resolução desta mazela. Porém, dentre os comentários abordados de especialistas brasileiros em Habitação Social, entende-se que o maior desafio é um tanto abstrato: é uma questão de vontade. É uma questão de fazer aparecer esta vontade no aparato político para que medidas acertadas sejam tomadas, não somente com a questão habitacional, mas com a questão da possibilidade de manutenção de alguma qualidade de vida nas cidades. 163

A necessidade de acomodar adequadamente a população sem teto e em moradias precárias não deve se resumir à construção de abrigos descontextualizados da realidade urbana e social; ou seja, onde está este abrigo, como ele se conecta com a cidade e quais equipamentos, serviços e oportunidades estão ao seu redor são aspectos vitais que passam pormenorizados pelas políticas atuais de construção de interesse social. Foi identificada uma verdadeira “mina de ouro” para a população menos favorecida que é habitar na porção da cidade que oferece serviços indispensáveis com maior qualidade e que concentra a geração de empregos. É importante diminuir os deslocamentos na cidade, e o movimento periferia-centro ainda é causa do atual desastre da mobilidade em São Paulo. Então, uma vontade coletiva primária deveria ser de servir este pedaço generoso da cidade a quem tem fome, porém falta força, falta mais voz aos que clamam por esta oportunidade, uma vez que lutam contra o desejo de ocupação do centro pela população tradicionalmente poderosa, que prevê um uso luxuoso e mais exibido da porção histórica e turística de São Paulo. “Infelizmente temos uma inércia e uma continuidade muito grande nessa área. As políticas públicas não tiveram, ainda, força para provar que o pobre não precisa morar longe, onde não há cidade, aumentando os deslocamentos na cidade”. (ROLNIK, 2010). Ao fim desta discussão, se considera gravemente que, caso falhe a resistência à perpetuação do modelo de urbanismo vigente, além de persistir nos problemas habitacionais e na não dissolução das mazelas sociais, caminharemos para a imobilidade urbana.

Figura 4: Interação entre diversas instâncias para se alcançar a sustentabilidade na construção. Fonte: Moraes e Quelhas (2011, P. 2) 164

“Enquanto o centro das cidades está cheio de apartamentos vazios, um tipo de produto imobiliário faz sucesso: os condomínios de classe média e alta em lugares distantes. Todos dependendo do automóvel. Essa crise pode levar à imobilidade. Não tem a ver com falta de investimento em transporte coletivo. Tem a ver com o modelo urbanístico.” (ROLNIK, 2008). “Ao longo das próximas décadas, cerca de 90% do crescimento da população urbana mundial ocorrerão no Hemisfério Sul. Se os países em desenvolvimento, como o Brasil, prosseguirem na mesma trajetória da década passada, haverá um impacto profundo na mobilidade urbana.” (Robert Cervero a O Globo, 2014).

As tendências de crescimento populacional, de aumento da frota de veículos e da falta de espaço saudável para viver em sociedade são notícias terríveis para as novas gerações, que temem a herança de um sistema insustentável cuja alternativa ainda não foi encontrada. Após considerar tantas esferas de ação da vida em sociedade, se esclarece que os problemas envolvem soluções muito mais estruturais e sistemáticas do que burocráticas e políticas. Para resolver a questão do déficit habitacional, é preciso de dinheiro e de políticas públicas acertadas, e ambos devem estar alinhados a uma estrutura de governo com intenção real de diminuir as desigualdades e acima de tudo, a uma vontade coletiva que deve aflorar na sociedade. Somente a consciência de que dividimos o mesmo planeta, suporte para a vida de todos, e de que seremos afetados então pelas mesmas dificuldades à manutenção da vida em escala global, trarão à tona a vontade de mudar e de melhorar para todos as condições de moradia, de mobilidade, de sustento e de convivência nas cidades contemporâneas.

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FRANÇA, R., 2014. Robert Cervero, doutor em planejamento urbano: “O problema do trânsito não é o carro”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/ robert-cervero-doutor-em-planejamento-urbano-problema-do-transito-nao-o-carro-14494177. DUARTE, Denise. Retrofit/Reabilitação – edifícios e áreas urbanas.Trabalho à disciplina da FAU USP, AUT 221. Disponível em: http://www.usp.br/fau/cursos/graduacao/arq_urbanismo/disciplinas/aut0221/Aulas/=-utf-8-b-qxvsysa4iefvvcaymjegumv0cm9maxqgzgugzwrpzsoty2lvcy UEMURA, Margareth Matiko, 2008. Gestão de Terra Urbanizada e o Programa de Locação Social – S. Paulo. Seminário de Locação Social. Mesa 2: Utilização de imóveis vazios. Disponível em: https://jonasfederighi.files.wordpress.com/2009/03/locacao-social-centro-sp-mesa_2_margareth_matiko_brasil.pdf YOLLE, José Neto. Diretrizes para o estudo de viabilidade da reabilitação de edifíciosantigos na região central de São Paulo visando a produção de HIS: Estudo de Caso inserido no Programa de Arrendamento Residencial (PAR – Reforma) - Edifícios: Olga Benário e Labor e Joaquim Carlos 2006. 178f. Dissertação (Departamento de Engenharia de Construção Civil e Urbana) – Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: www.tesesusp.com.br. CROITOR, Eduardo Pessoa Nocetti. A gestão de projetos aplicada à reabilitação de edifícios: estudo da interface entre projeto e obra. 2009. 178f. Dissertação (Departamento de Engenharia de Construção Civil) – Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 2009. Disponível em: www.tesesusp.com.br MORAES, Virgínia Tambasco Freire; QUELHAS, Osvaldo Luiz Gonçalves. A metodologia do processo do Retrofit e os limites da intervenção. 2011. Disponível em: http://www.excelenciaemgestao.org/portals/2/documents/cneg7/anais/t11_0356_1498.pdf

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artigo

Entre valores de uso e de troca: a função social da Vila Itororó na cidade de São Paulo

Luiza Nadalutti

O presente artigo propõe discutir a problemática do direito à cidade e dos valores de uso e de troca dos espaços urbanos, com enfoque na atribuição desses valores- sociais e mercadológicos- ao patrimônio edificado. Os conceitos que dão base ao artigo estão pautados no livro de Henri Lefebvre, “O direito à cidade”, no que diz respeito à problemática que envolve as necessidades sociais urbanas, o direito à cidade e a sua relação com os valores de uso e de troca desses espaços. O livro de Françoise Choay, “A alegoria do Patrimônio”, virá para relacionar esses conceitos às questões ligadas ao patrimônio edificado. Essa introdução tem como objetivo mostrar as potencialidades de uso do espaço urbano e as diferentes formas de se apropriar dele, e abrirá caminho para introduzir o caso da Vila Itororó, um conjunto arquitetônico do começo do século XX, localizado em um bairro central de São Paulo, que passou por um processo de desapropriação das famílias que ali moravam, para implantar um projeto de centro cultural no local. Esse é um caso recente de remodelação dos espaços urbanos que resulta na expulsão da população de baixa renda de áreas privilegiadas da cidade para oferecer serviços voltados à um público elitizado. Esse processo expõe os impasses envolvidos na exploração do valor mercadológico do patrimônio edificado, destituindo-o de sua função social, o papel das políticas públicas como intermediadora dos conflitos entre a sociedade civil e o mercado imobiliário, e a trágica e consequente perda por parte da população do direito pleno à cidade. palavras-chave: capital mercadológico, conflitos sociais, direito à cidade, patrimônio cultural, Vila Itororó.

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Introdução A cidade, por ser resultado de uma construção social, econômica e política, se configura como um espaço de conflitos por natureza. Atualmente, esse processo de estruturação tem sido fortemente marcado por ações do poder público e de empreendimentos privados, minimizando a ação de outros agentes sociais, como, por exemplo, a população, que em seu cotidiano interfere diretamente na produção dos espaços urbanos. Os conflitos surgem desse desequilíbrio de forças que, em muitos casos, desconsidera as necessidades da parcela mais frágil da sociedade, ferindo diretamente o direito dessa população a usufruir plenamente a cidade. Nos escritos de Lefebvre o direito à cidade é entendido como uma plataforma política a ser construída e conquistada pelas lutas populares com o intuito de combater a lógica capitalista de produção das cidades, que mercantiliza o espaço urbano e o transforma em uma ferramenta lucrativa a serviço do capital. Para ele, o direito à cidade é exercido quando a lógica de produção e utilização do espaço urbano está em função de seu valor de uso (“a cidade e a vida urbana”) e não de seu valor de troca (“os espaços comprados e vendidos, o consumo dos produtos, dos bens, dos lugares e dos signos”) (1991, p. 27). O direito à cidade está subordinado, portanto, ao modo como ocorre a apropriação dos espaços urbanos. Em outras palavras, o direito “à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo, etc”, são elementos responsáveis pelo uso pleno dos espaços urbanos e de tudo o que a cidade oferece à população. (ibidem, p. 143) A crítica feita por Henri Lefebvre nos remete à bem conhecida reforma urbanística promovida em Paris pelo Barão Georges Haussmann, entre 1853 e 1870, e nos permite fazer um paralelo com outros diversos processos recentes de transformação dos espaços urbanos. Esse processo específico que Lefebvre descreve consiste na expulsão da população da classe baixa de áreas valorizadas para a exploração do potencial do espaço enquanto mercadoria geradora de lucro. A reforma haussmanniana foi causadora da remodelação radical do espaço urbano, expulsando para os subúrbios os trabalhadores, privando-os da urbanidade e da vida urbana dos centros equipados da cidade. Ou seja, as necessidades da população de baixa renda são desconsideradas nesse processo de reestruturação espacial, impossibilitando essa parcela da sociedade de usufruir da cidade como qualquer outro cidadão. Lefebvre desenvolve suas ideias sobre a cidade a partir da premissa de que o homem possui necessidades que vão além da sobrevivência, diferenciando-o de outros estudiosos sociológicos da época, que se focavam em questões relacionadas à sociedade de consumo, ou seja, às necessidades do mundo capitalista. Para Lefebvre, as necessidades humanas vão além daquelas ligadas à produção de bens consumíveis (produtos fabris, alimentos, vestimentas). “Trata-se da necessidade de uma atividade criadora, de obra (e não apenas de produtos e de bens materiais consumíveis), necessidades de informação, de simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas” (ibidem, p.103). Essas são algumas das necessidades intelectuais que extrapolam as barreiras da mera sobrevivência do ser humano e que são atendidas a partir das trocas sociais que ocorrem na dinâmica de um espaço urbano bem estruturado.

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“As necessidades urbanas específicas não seriam necessidades de lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontros, lugares onde a troca não seria tomada pelo valor de troca, pelo comércio, e pelo lucro? Não seria também a necessidade de um tempo desses encontros, dessas trocas?” (LEFEBVRE, p.104)

Essas necessidades, as de vivenciar e experimentar a cidade nas suas potencialidades, independente da classe social, só são válidas quando contemplam a sociedade como um todo e são também geradoras dos direitos urbanos. O direito à moradia, o direito à cultura, o direito à mobilidade urbana, e outros, juntos, configuram o direito à cidade. Convergindo a discussão para o patrimônio edificado, Françoise Choay aponta de forma direta os agentes- públicos e privados- de uma lógica capitalista de apropriação dos espaços, uma forma que explora o valor de troca do patrimônio cultural e que entra em conflito com os ideais de Lefebvre: “A metamorfose de seu valor de uso em valor econômico ocorre graças à ‘engenharia cultural’, vasto empreendimento público e privado, a serviço do qual trabalham grande número de animadores culturais, profissionais da comunicação, agentes de desenvolvimento, engenheiros, mediadores culturais.“ (2001, p. 211)

É reafirmada nas palavras de Antônio Arantes, outro grande estudioso sobre o assunto, a existência dessa dicotomia entre o valor de uso e o valor de troca do patrimônio, ao afirmar que “de um lado, há a alternativa de explorar as potencialidades de mercado do patrimônio edificado (seu valor de troca) e, de outro, a de facilitar os meios de sua apropriação pelos habitantes da cidade, em razão de sua utilidade e valor simbólico (seu valor de uso)” (2006, p.431). Ele continua dizendo que dentre essas duas possibilidades a que prevalece é aquela que tem como foco os “bens patrimoniais enquanto capital imobiliário e, em termos estéticos, a estilização que reforça os sentidos alegóricos e torna descartáveis estes bens que seriam relevantes em sua singularidade.” (2006, p.431) Ora, o que é dito aqui é que, ao se apropriar do patrimônio pelo seu potencial lucrativo, é inevitável a perda do seu valor enquanto suporte material das simbologias sociais que lhe deram origem. Arantes conclui o raciocínio ressaltando a consequência prática de gestão do patrimônio edificado pautada na lógica capitalista de produção dos espaços urbanos. “Essa é a lógica que pretende justificar a remoção das populações instaladas há longo tempo – por vezes tempos imemoriais – nas áreas a serem protegidas ou requalificadas, assim como a substituição dessas populações por agentes de investidores atraídos por novas oportunidades de negócio.” (2006, p.431-2)

Choay também faz a mesma análise ao afirmar que o patrimônio enquanto “consumo cultural (...) tende a excluir dele as populações locais ou não privilegiadas” e termina o raciocínio dizendo que as “atividades tradicionais e modestamente cotidianas” já não existirão sem os agentes sociais que a geraram. (2001, p. 226) É fundamental ter em mente essa crítica que envolve os modos de apropriações dos espaços e dos agentes sociais que estão envolvidos, para relacioná-los ao recente processo de remodelação do uso do solo urbano que ocorreu na Vila Itororó.

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Contextualizando a problemática da Vila Itororó A Vila Itororó se localiza no Bela Vista, um bairro tradicional da região central de São Paulo que foi sendo loteado em finais do século XIX por pequenos comerciantes, em sua maioria italianos, mas também brasileiros e portugueses que empreitavam construções destinadas principalmente para locação. O surgimento da Vila Itororó se insere nesse contexto de formação e consolidação do bairro. O conjunto, formado por um palacete e 37 casas, foi uma iniciativa do comerciante português Francisco de Castro, que foi quem comprou o terreno localizado na encosta do vale formado pelo córrego Itororó - hoje canalizado sob a Avenida 23 de Maio - para construir a sua própria moradia, o palacete, e as casas para locação e geração de sua renda. O processo de construção da vila inicia-se no fim década de 1910 e vai até a década de 1930 e faz com que ela seja considerada a primeira vila urbana da cidade. Outro dado importante é que a vila foi erguida com restos de demolição de diversos imóveis da cidade, o que ajudou a conferir um aspecto de excentricidade a todo o conjunto arquitetônico. Os problemas ligados ao gerenciamento da ocupação e das locações começaram em meados da década de 1950, com a morte de Francisco de Castro e o leilão do conjunto entre seus inúmeros credores. Duas décadas mais tarde, o complexo foi doado à Instituição Beneficente Augusto de Oliveira Camargo, que utilizava a arrecadação dos aluguéis das casas locadas na Vila Itororó para custear os gastos do hospital filantrópico da fundação em Indaiatuba.1 Na década de 1980, a Vila Itororó entra em processo de tombamento pelo Condephaat e pelo Compresp, órgão de preservação do Estado e do município de São Paulo, respectivamente.2 Após o tombamento, a Instituição interrompe a cobrança de aluguéis e a gestão de serviços, como os de manutenção elétrica e sanitária, abandonando o local e deixando os moradores exercendo a posse dos imóveis. A vila era ocupada nessa época por cerca de 70 famílias, muitas delas que viviam lá desde a sua fundação e que zelavam pelo espaço. Apesar das dificuldades inerentes à condição de baixa renda dos moradores e da ausência de auxílio por parte do poder público para prover a manutenção dos serviços necessários para a habitação no local, a vila se manteve em suas características originais, com alguns “puxadinhos” 3 levantados. Porém, a degradação geral das construções não pôde ser evitada por não ter sido suficiente a manutenção que os moradores se encarregavam de realizar nesse processo de autogestão. A vila, que se transformou então num cortiço, atraiu a atenção do Poder Público não só pelo seu mau estado de conservação, mas pelo potencial lucrativo do conjunto urbano, por sua localidade privilegiada e de crescente valorização no centro de São Paulo. Assim, as famílias que ali viviam e que traziam vida ao lugar foram despejadas após um decreto do Poder Público. Esse conjunto urbano, que era antes suporte dos encontros, da espontaneidade e da vida urbana cotidiana, um espaço público vibrante, foi desocupado para ser restaurado com o intuito de abrigar um centro cultural e encontra-se vazio desde 2013.

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Figura 1. Localização, em vermelho, da Vila Itororó no bairro Bela Vista. Em laranja, a Avenida Paulista; em roxo, a Avenida 23 de Julho. Fonte: google maps

Figura 2: O abandono da vila após a desocupação. Fonte: Apu Gomes/Folhapress 4

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O direito à cidade ameaçado pelo valor de troca atribuido à Vila Itororó O Decreto de Utilidade Pública, feito pela Prefeitura em 2006, culminou na retirada das mais de 105 famílias que viviam no local. Por meio de um acordo de cooperação entre município e Estado, ficou acertado que a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) seria responsável pelo atendimento provisório às famílias, e a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), por sua vez, pelo atendimento definitivo – construção e financiamento de unidades habitacionais na própria região central. 6 Um dos episódios lamentáveis dessa desocupação é que após a reintegração de posse ocorrida no dia 20 de fevereiro de 2013, as últimas famílias que ainda estavam morando na vila foram obrigadas a sair sem que houvesse uma solução habitacional para elas. 7 Essa ação política foi fruto da gestão Serra-Kassab, descritas a seguir pelo Dossiê do Fórum Centro Vivo: “A atual gestão Serra-Kassab, desde o início de 2005, demonstra que possuem objetivos e forma de atuação distinta da gestão anterior, reduzindo em muito o diálogo com os segmentos populares e organizados (...), sem que com isso estejamos sublinhando que a gestão anterior foi isenta de muitos equívocos. No entanto a gestão atual tem violado algumas conquistas básicas e importantes para o avanço da participação direta e da democratização da cidade. (...) Cortou canais de participação instituídos e vem realizando inúmeras e sistemáticas ações que têm como consequência o deslocamento e a expulsão da população mais vulnerável, mais pobre, com indícios de produção do fenômeno da gentrificação8, bem como limpeza, de caráter não só físico, mas também sócial” (FCV, 2006).

A desapropriação ocorreu para dar inícios às obras de restauração com o objetivo de transformar o conjunto arquitetônico - atribuído de certo valor estético e simbólico após o tombamento- em um centro cultural e gastronômico, como descrito pela própria Secretaria da Cultura, atual gestora dos imóveis da vila: “A Vila Itororó apresenta uma configuração espacial especialíssima, com grande potencial cenográfico, que a torna única para a possibilidade de acomodar atividades de caráter cultural, educacional e de lazer, com repercussão no campo do turismo, que ultrapassa de muito o âmbito local, possibilitando uma referência de caráter metropolitano e estadual, pelo menos. É esta referência que orientou também a definição do vulto das atividades previstas para instalação na Vila.” 9

Essa ação do poder público se insere em um contexto mais amplo e bastante recorrente de “revitalização” das áreas centrais da cidade. Constitui em um processo que consiste em retirar a população de baixa renda dos imóveis bem localizados para reformá-los ou restaurá-los, com o objetivo de viabilizar a oferta de lazer e de serviços da região central que se encontra em crescente valorização e alvo de grandes empreendimentos imobiliários10. É interessante colocar em análise a interpretação que a própria Secretaria da Cultura tem sobre o patrimônio edificado. Descrito com expressões do tipo “configuração espacial especialíssima” e “potencial cenográfico”, a Secretaria da Cultura deixa claro o seu posicionamento de condicionar o patrimônio ao papel de mer-

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cadoria cultural. A Vila Itororó, quando tratada como peça “única” para ser suporte de atividades culturais que trarão “repercussão no campo do turismo”, é mais um exemplo de que o conceito de patrimônio cultural em nosso país precisa ser atualizado e expandido. Ainda carregamos a ideia ultrapassada de que o patrimônio tem valor excepcional e assim ser destinado à um uso de mesmo valor. Com essa premissa, ainda restringimos essas construções à usos que consideramos mais “nobres” que outros. Esse pensamento seletivo e que resulta em muitos casos o processo de gentrificação dessas áreas, parte infelizmente dos próprios órgãos de preservação e de desenvolvimento urbano, atores fundamentais na produção dos espaços da cidade. Com o objetivo de exemplificar essa afirmação, abaixo se encontra as diretrizes do DPH (Departamento do Patrimônio Histórico da Cidade de São Paulo) para a “revitalização” do bairro Bela vista que evidencia uma dicotomia nas formas de atuação e gerenciamento desses espaços: “(...) incentivo ao uso residencial e melhoria das condições físicas dos cortiços; estabelecimento de projetos de inclusão social, destinados preferencialmente ao atendimento da população carente do bairro; desapropriação e restauro pela PMSP de edifícios tombados, como por exemplo, a Vila Itororó, destinando-os a uso público e/ou cultural; incentivo ao estabelecimento de atividades comerciais e de serviços e promoção da vocação turística e pitoresca do bairro através da melhoria do sistema viário local e da criação de bolsões de estacionamento para servir ao grande número de restaurantes, cantinas, casas de espetáculos, teatros etc.” 11 (D’ALAMBERT; FERNANDES, 2006, p.160)

A dicotomia se mostra nas seguintes ações: “melhoria das condições físicas dos cortiços” e “desapropriação e restauro de edifícios tombados”. No caso da Vila, que se encaixava nas duas frentes de atuação do órgão, cortiço e edifício tombado, a diretriz que prevaleceu foi a segunda, de explorar o potencial mercadológico do patrimônio histórico, negligenciando os “projetos de inclusão social e atendimento da população carente” previstos para o bairro, evidenciando que as ações de manutenção do uso habitacional e melhoria das moradias são ainda inexistentes quando se trata de edifícios tombados. No processo de desapropriação para a requalificação da vila, vemos uma política patrimonialista e excludente, que não leva em conta que o seu uso habitacional é intrínseco à sua história. Os órgãos patrimoniais não devem ter suas ações limitadas à preservação do patrimônio material (arquitetônico). O objetivo maior deveria ser de preservar as características que conferiu à edificação seus significados cultural e histórico. Nas palavras de Arantes, “o patrimônio é construção social e, assim sendo, torna-se necessário considerá-lo no contexto das práticas sociais que o geraram e lhe conferem sentido.” (2006, p. 426). O patrimônio imaterial da Vila Itororó (história da vila e dos moradores, seus costumes cotidianos e sua relação com os espaços do conjunto) é o grande autor das características peculiares que conferiram atributos para a sua preservação. E assim como os moradores foram os agentes sociais que geraram a cultura local (imaterial) da Vila Itororó, alguma parte desse patrimônio se desintegrou ao tirá-los de lá. O governo deve pensar nessa perda antes de transformar este espaço tão significativo em um centro cultural genérico, padronizado, frequentado somente por uma parte da população com poder aquisitivo para usufruir desses espaços. Mas também ter em mente que uma singela referência à memória e história da Vila Itororó não será suficiente

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para sustentar o seu título de “patrimônio cultural da cidade de São Paulo”. O ponto de conflito está no modo de como será conduzida a reconstrução do tecido social que existia na Vila Itororó e que se perdeu ao longo desse processo de reestruturação do espaço urbano. Mas um questionamento fica desse processo pelo qual passou a Vila Itororó e diversos outros espaços da cidade: Se o patrimônio cultural edificado não estiver mais integrado aos símbolos sociais que lhe deram sentido, que função social ele estará cumprindo na vida das cidades contemporâneas? Considerações Finais O presente artigo propôs uma análise de obras que servem de base para os questionamentos acerca da produção dos espaços urbanos, trazendo como foco a função do patrimônio edificado nesse contexto. A Vila Itororó foi usada como estudo de caso por ser um exemplo recente que nos mostra consequências das práticas do Poder Público enquanto agente mediador da produção dos espaços urbanos: o valor de troca como indutor das transformações urbanas, o direito à moradia ameaçado pela valorização dos espaços privilegiados da cidade, a ausência de políticas habitacionais consistentes voltadas para o auxílio de famílias de baixa renda, e o incentivo a empreendimentos que colocam a cultura como mercadoria e acima das necessidades habitacionais, evidenciando a exclusão da população de baixa renda dos serviços que a cidade tem o dever de oferecer a todos. Um desafio para os órgãos patrimoniais será reconhecer que o patrimônio histórico só exerce o seu papel social enquanto suporte das necessidades urbanas, quando o seu valor de uso se impõe acima de qualquer outro valor econômico. Em uma avaliação mais completa, esse é um desafio para todos os órgãos públicos que trabalham com a produção do espaço urbano. Ter como finalidade prática o cumprimento do direito à cidade para toda a sociedade.

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Figura 3: A escadaria da Vila enfeitada para a Festa Junina. Fonte: Hélio Bertolucci Jr./ Flickr 5

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Notas (1)Disponível em: http://www.haoc.org.br/fundacao, acesso em: 10 DEZ. 2014 (2)O tombamento estadual foi realizado pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo), conforme processo nº 22.372/82 Tomb.: Res. SC 9 de 10/3/05 D.O.: 20/04/05 - Livro do Tombo Histórico, sob Inscrição nº 351, p. 94, 23/09/05. O tombamento municipal foi realizado pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo), através da Resolução 01/93, revogada e substituída pela Resolução 22/02. (3)Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL1449740-5605,00-PATRIMONIO+HISTORICO+DE+SAO+PAULO+TEM+ATE+PUXADINHO, acesso em: 5 DEZ 2014 (4)Disponível em: http://defender.org.br/noticias/nacional/sao-paulo-sp-vazia-e-alvo-de-furtos-vila-itororo-continua-a-espera-das-reformas/, acesso em: 15 DEZ. 2014 (5)Disponível em: https://www.flickr.com/photos/chegadedemolirsp/4285560446/in/photostream/, acesso em: 4 JAN. 2015 (6)Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/noticias/?p=33010, acesso em: 5 DEZ. 2014 (7)Disponível em: http://vilaitororo.blogspot.com.br/, acesso em: 5 DEZ 2014 (8)“Gentrificação” tem origem na palavra inglesa gentry (pequena nobreza, elite) e se refere diretamente ao processo de substituição da população mais pobre pela de mais alta renda em determinadas regiões da cidade. Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em: 5 NOV. 2014. (9)Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em: 5 NOV. 2014. (10)KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1983 p. 56. (11)Revista do Arquivo Municipal, nº 204. 30 anos de DPH. São Paulo, 2006 Bibliografia ARANTES, A.A. O Patrimônio Cultural e seus Usos: a Dimensão Urbana. Goiânia. Habitatus, v. 4, n.1, p. 425-435, jan./jun. 2006. BEZERRA DE MENEZES, U.A cidade como bem cultural. [S.l.:s.n.], [200_]. CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo. Estação Liberdade 4ª edição, 2001. ______. O patrimônio em questão: antologia para um combate. Belo Horizonte. Fino Traço, 2011. D’ALAMBERT, Clara Correia; FERNANDES, Paulo César Gaioto. Bela Vista: a preservação e o desafio da renovação de um bairro paulistano. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, v. 204, p.151-168, 2006. FVC. Fórum Centro Vivo. Violações dos Direitos Humanos no Centro de São Paulo: propostas e reivindicações para políticas públicas. Dossiê Denúncia. São Paulo, 2006. Disponível em: http://www.polis.org.br/ tematicas.asp?cd_cmada1=13&cd_camada2=156 GASPAR, Samantha dos Santos. Gentrificação: processo global, especificidades locais?. Ponto Urbe [Online], 2010, Disponível em: http://www.pontourbe.net/edicao6-artigos/107-gentrification-processo-global-especificidades-locais KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1983. LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo. Editora Moraes, 1991. VIOTTO, Aline. TAVOLARI, Bianca. VASCONCELOS, Jonnas. PESTANA, Yasmin. Vila Itororó: direito à cultura como ameaça ao direito à moradia?. Anais do V Congresso brasileiro de Direito Urbanístico. Manaus, p.187-200, 2008. 176

artigo

O paradigma do city marketing e sua aplicação no brasil. Olimpíadas Barcelona – Nova Luz, São Paulo

Iván Roguera Sánchez

O planejamento estratégico inspirado no planejamento empresarial se apresenta a partir dos anos 1980s - 1990s como o modelo urbano aplicado por muitas das grandes cidades do mundo (42 nd Street em Nova York, as Docklands em Londres, Postsdamer Platz em Berlim, a Expo’98 em Lisboa, as Olimpíadas da Barcelona...). Esses modelos são exportados para tudo o mundo, sendo o processo urbano das Olimpíadas da Barcelona 1992 o exemplo para todas as grandes cidades que querem importar o modelo nos próximos anos. A cidade de São Paulo virou de uma cidade média a uma grande metrópole em pouco tempo, fato que cria a necessidade de se identificar no contexto mundial com a sua própria imagem. Por esse motivo este texto se inicia com uma breve introdução dos processos de transformação das cidades em busca de uma nova imagem e uma posição no cenário mundial. Para, por meio da comparação com caso de Barcelona, estabelecer que parte desses processos se produziram no projeto da Nova Luz e quais foram os fatores que se distanciaram do clássico planejamento estratégico. palavras-chave: city marketing, planejamento estratégico, política urbana, Barcelona, São Paulo, parceria publica-privada.

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Introdução Nas ultimas décadas a evolução dos meios de comunicação, a globalização, a incrementação de uma cultura do consumo e a extensão da informática em muitos âmbitos, estão gerando uma autentica revolução. Essa revolução promoveu uma transformação na relação das atividades econômicas com o território, tornando-se mais independentes do espaço físico, ao mesmo tempo em que aumentou sensivelmente a visibilidade do território (VARGAS, 1992) Essas palavras escritas há mais de vinte anos atrás por Heliana Comin Vargas, são ainda hoje a base da transformação que se esta produzindo em muitos aspectos das nossas vidas. Assim, nas atuações urbanísticas que se produzem nas grandes cidades, o fato da comunicação, a cultura do consumo e a visibilidade do território tornam-se questões chave. Neste contexto de transformação as cidades precisam se apresentar numa situação global e gerar uma imagem para atrair a relação das novas atividades econômicas mundiais. É por isso que: “Nesse processo de transformação o capital imobiliário e o poder público local tornaram-se grandes parceiros. (...) Juntos, adotaram o planejamento de mercado e introduziram as técnicas de marketing urbano (city marketing) Sendo o exemplo paradigmático desse período as obras para as Olimpíadas de 1992, em Barcelona”. (Vargas et al., 2006)

Deste modo parece que o marketing urbano é a solução idônea para a mudança que as cidades precisam: “O setor público projeta uns objetivos de transformação urbanística a grande escala, mas precisa da inversão do setor privado. Ao mesmo tempo, o setor privado reconhece a possiblidade de assegurar as inversões.” (Casellas, 2006)

Mas com o tempo e tendo em conta os processos que se produziram em algumas atuações, a abordagem que o city marketing apresenta está sendo questionado como modelo ao mesmo tempo em que os limites das parcerias publico-privadas são tema de debate. Partindo desta base, busca-se comparar o modelo inicial do marketing urbano com as novas aplicações que este tem. Assim, como enfoque de uma discussão sobre o futuro do planejamento estratégico de cidades, se apresenta uma seção onde exemplifica os pontos principais do city marketing a partir do caso da Barcelona e outra onde mostra como alguns desses mesmos pontos foram propostos no caso de Nova Luz São Paulo, procurando criar uma leitura paralela onde reflexiona sobre a atualidade destes sistemas.

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Barcelona Pode-se afirmar que é a partir de um planejamento estratégico e do uso de grandes eventos que a cidade de Barcelona gerou um grande crescimento econômico e uma grande visibilidade mundial. Rapidamente as olimpíadas de ‘92 de Barcelona viraram uma referência, mas é cada vez mais conhecido que o processo de transformação de Barcelona começou muito antes, e o êxito do modelo não depende só da nova fórmula de marketing incorporada com os jogos, pois no momento a cidade acumulava a experiência da gestão urbana dos prefeitos anteriores que como Otilia Arantes fala, não havia, ao menos de forma explícita, a intenção de beneficiar uma elite local, criando nichos de alto valor imobiliário. (Arantes, 2000) Cabe também destacar que antes do inicio do projeto das olimpíadas, já havia iniciado em Barcelona um conjunto de obras enfocadas no crescimento econômico e na visibilidade mundial a partir da venda de uma imagem e a promoção do turismo. •O restauro dos prédios antigos É assim que em 1985 a prefeitura de Barcelona inicia uma campanha para a Melhora da Paisagem Urbana popularizada com o slogan Barcelona, ponte guapa. A campanha consistia em promover a limpeza e o restauro das fachadas, incentivando em função do caso com exceções de impostos ou subvenções. Só até 1888 concluíram-se 1.121 atuações. (Pagès, 1990)

Fonte: http://sandrabelana.files.wordpress.com/

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•O destaque da arte e a cultura Entre 1980 e 1992 a prefeitura, seguindo o exemplo de Paris, aposta em uma vinculação com as artes. Por exemplo, a reconstrução do Pavilhão de Mies van der Rohe, em Montjuic; neste mesmo local, a renovação do Museu de Cultura da Catalunha por Gae Aulenti (a mesma arquiteta que transformara a Gare d'Orsay no museu pós-moderno mais bem sucedido até aquela data), a ampliação do Museu Miró que ao mesmo tempo é um monumento arquitetônico de G. Sert, sem falar nos estádios e centros esportivos olímpicos, representando o star system da arquitetura internacional- Gregotti, Bofil e Isosaki; some-se a isso o inusitado Museu de Arte Moderna, do arquiteto Richard Meyer, em pleno Bairro Antigo, onde se concentram vários edifícios históricos e onde foram restaurados e adaptados alguns como o Centro de Arte Santa Monica, a sede da Secretaria de Cultura na Casa de Caritat, e o Museu Picasso; do outro lado da cidade, o novo Teatro Nacional, novamente do criador catalão de ícones pós-modernos, Ricardo Bofil, que também projetou o novo aeroporto; mais, resultado de requalificações ou ampliações: a Fundaçáo Tapiés, o Palácio da Música, o Museu da Ciência. E tudo isso, de modo a dar realce às próprias tradições locais: em grande parte, como enfatizavam os seus formuladores, vinculadas à sua própria arquitetura dos desenhos urbanos originais (os quarteirões de Cerdá ou a cidade moderna do Plano Maciá), às suas casas modernistas do Bairro de La Gracia, dentre elas, em especial as de Gaudí (tudo passado devidamente a limpo, sem esquecer de "completar" a Igreja Sagrada Família), além da arquitetura catalã contemporânea, posta em desfile nos novos projetos, em grande número (especialmente de design urbano e Vilas Olímpicas) de seus próprios arquitetos. (Arantes, 2000) Mas apesar desse trabalho prévio, não há nenhuma duvida do papel das olimpíadas e a boa a gestão do projeto do evento. Porque como muitos autores falam: “São muitos os fatores que podem contribuir a não gerar uma imagem positiva de um macro evento: um projeto inadequado das instalações, uma deficiente organização do evento, a retirada dos patrocinadores, os custos sociais da gentrificação produzida pela demolição de habitação e a mudança dos residentes, um elevado déficit público, os boicotes políticos, o déficit democrático do país organizador, os ataques terroristas e os problemas da segurança e o posterior deterioro e inutilização das infraestruturas esportivas, entre outros.” (Lenskyj, 2012; Payne, 2006; Preuss, 2004; Tomlinson, 1999)

E se as olimpiadas geraram uma imagem positiva da cidade, não foi só por pela publicidade dada, senão por a integração do projeto no uso da cidade. Tal e como mostra a seguinte tabela, mais do 80% do total da inversão foi dedicada, no caso de Barcelona, a projetos urbanos e infraestrutura não relacionada aos espaços esportivos (Brunet, 1995; Gold and Gold, 2008; Varley, 1992).

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Fonte: Brunet 1995, Autoria: COOB’92, HOLSA, Cidade de Barcelona e a Generalitat de Catalunya.

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Parte dessas inversões não relacionadas diretamente aos espaços esportivos foi para a faixa marítima. Começa-se um projeto de recuperação do frente litoral nos anos oitenta, que acaba se transformando totalmente no contexto das Olimpíadas, com a criação de novas praias passeios marítimos e bairros residenciais (Bohigas et al., 1991; Martorell et al., 1992). Mas esses processos de transformação urbana criaram uma revalorização do solo, o que gerou um processo progressivo de gentrificação. Nos bairros de Barceloneta no frente litoral ou no barrio del Raval são casos claros onde não só se produziu uma saída natural dos antigos moradores com uma renda baixa por novos moradores de renda mais alta, senão que o setor privado forçou essa saída comprando quarteirões inteiros onde muitas vivendas eram de aluguéis baixos e se conseguiu o jeito de acabar com o aluguel– para demolir o edifícios velhos e criar novos espaços. O denominado Plan Central del Raval, tem lugar nos anos 90 com a demolição de 125 prédios de vivendas que afetaram a 1.384 apartamentos e 293 negócios na zona mais próxima ao porto. (Casellas et al., 2010) Mas nesse momento ainda que tenham ocorrido algumas manifestações por parte dos moradores locais, os movimentos sociais não tinha a força que têm hoje, e olhava-se mais para as melhorias que estas operações podiam criar que para os problemas de exclusão social que podiam gerar.

Mapa da divisão de setores segundo ari de ciutat vella Fonte e autoria: Informe 04/95-A de Promoció Ciutat Vella, SA (PROCIVESA).

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Contudo, outra questão a destacar e a criação de novas ferramentas para a atuação no processo. Inicia-se uma intervenção a grande escala dirigida pelo setor público, que aplica mecanismos especiais de gestão para a reabilitação integral do distrito de Ciutat Vella, dado o patrimônio urbanístico e simbólico como a grande presença institucional e política na zona (Bohigas, 1986; Capel, 2007). Incluindo novos mecanismos que ainda hoje estão presentes nos planos diretores de muitas prefeituras de Catalunha. A partir da prefeitura geram-se mecanismos de gestão urbana aprovados pela legislação urbanística do governo central. São exemplos as “Areas de Rehabilitación Integrada” (ARIs), os “Planes Especiales de Reforma Interior (PERIs), ou a criação da agência público-privada Promoció Ciutat Vella S.A, encargada do processo de regeneração urbanística. (Casellas et al., 2010) São Paulo Parece que as palavras de Carolina Margarido Moreira estão mais que justificadas - a requalificação das áreas centrais de São Paulo parece seguir o receituário do Planejamento Estratégico, ao afirmar a cidade como uma das maiores metrópoles mundiais e tentar construir uma imagem que a identifique (Moreira, 2012) – já que como Otília Arantes fala, a idéia do Planejamento Estratégico foi exportada para América do Sul com grande ênfase. Só para se ter uma idéia, foram publicados, aqui mesmo, no Brasil, fazendo apologia do Planejamento Estratégico, uma série de textos. Por exemplo: a coletânea de Tânia Fischer, Gestão contemporânea, cidades estratégicas e organizações locais, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996; Sarah Feldman e Jorge Kayano (orgs.), Avaliação de experiências de planejamento estratégico de cidades, São Paulo, Polis, julho de 1988 (xerografado); Rodrigo Lopes, Cidade intencional: o planejamento estratégico de cidades, Rio de janeiro, Mauad, 1998; Ricardo Lima e Fernando Rezende (orgs.), Rio-São Paulo, cidades mundiais, Rio de Janeiro, IPEA 1999; O futuro já chegou - eixo Tamanduathey, publicado pela Prefeitura de Santo. André; e O município no século XXI, cenários e perspectivas, publicado pelo governo do Estado de São Paulo, CEPAM, 1999. (Arantes, 2000) Com esse ideário de fundo se procura uma nova proposta para o centro de São Paulo que tal e como Cibele Saliba Rizek aponta: “Era (ainda é) circundado por um conjunto de quadras que receberam o nome de Cracolândia, onde se desenvolviam, graças à degradação do valor imobiliário local, as formas mais baratas de prostituição, onde se alojavam moradores de rua, crianças em situação de rua, com altos índices de consumo e venda de crack.” (Rizek, 2013)

As primeiras propostas de atuação sobre um centro já em deterioracão partem talvez de uma ideia já previa como ocorre no caso de Barcelona, que é aquela imagem de Paris onde a vinculação com a arte e a cultura e o elemento catalizador da transformação.

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Assim: No Projeto Luz Cultural [1984], onde a cultura estava inclusive presente no título [pelo menos discursivamente], a proposta de integração do potencial de uso dos espaços públicos e institucionais e da população local, moradora e usuária, através da recuperação de algumas instituições culturais mostraram-se forte e bem articulada. (Moreira, 2012) A Associação Viva o Centro surge, em 1991. Projeto Luz [1998] Em 1997 a transformação da Estação Júlio Prestes em um equipamento cultural [Sala São Paulo. Reforma da Pinacoteca responsável, assim que concluídas, por um novo afluxo das classes médias à região central Programa Morar Perto apontava a preservação das moradias existentes e o incremento habitacional, Desocupação policial e judicial dos grandes edifícios vazios ocupados. Os projetos precisam da ajuda policial. Estreitam-se cada vez mais os laços entre o Poder Público e o poder privado que, travestido de representação da sociedade civil, contagia a cidade com seus princípios de gestão empresarial, controle da segurança e da paisagem da cidade, assim como determina os níveis de interação entre seus habitantes, as atividades que devem ou não ser estimuladas através das “operações de força-tarefa (Moreira, 2012) A contratação, no final de 2008, da dupla de arquitetos suíços Jacques Herzog e Pierre De Meuron para a elaboração do projeto da sede da "São Paulo Companhia de Dança" [SPCD]. influenciaria a “revitalização” da região e agiria, já de início, “expulsando” os usuários atuais do local, onde até o momento do pronunciamento funciona um shopping popular especializado em tecidos, que será desapropriado. Todo esse marketing não seria estranho se tal projeto não fizesse parte da iniciativa da Prefeitura de São Paulo para requalificar a região, até então apelidada de „Cracolândia‟, através de recursos públicos e investimentos privados, teoricamente destinados à melhoria de vida da população local. (Moreira, 2012) O poder público aplicou e legitimou ações de fiscalização, de intervenções em estabelecimentos irregulares e de „zeladoria‟ urbana, de expulsão dos usuários de crack, como agora se verifica, além da demolição de uma série de imóveis desapropriados ora para a construção de equipamentos públicos [sede da Sub-prefeitura da Sé, Prodam Empresa de Tecnologia e Comunicação do Município - e Guarda Civil Metropolitana]. (Moreira, 2012)

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a Lei de Concessão Urbanística, é um instrumento que, além de reforçar a isenção fiscal [ou seja, renúncia de recursos públicos para atração de empresas privadas] (Moreira, 2012) DA CONCESSÃO URBANÍSTICA Art. 239 - O Poder Executivo fica autorizado a delegar, mediante licitação, à empresa, isoladamente, ou a conjunto de empresas, em consórcio, a realização de obras de urbanização ou de reurbanização de região da Cidade, inclusive loteamento, reloteamento, demolição, reconstrução e incorporação de conjuntos de edificações para implementação de diretrizes do Plano Diretor Estratégico. § 1º - A empresa concessionária obterá sua remuneração mediante exploração, por sua conta e risco, dos terrenos e edificações destinados a usos privados que resultarem da obra realizada, da renda derivada da exploração de espaços públicos, nos termos que forem fixados no respectivo edital de licitação e contrato de concessão urbanística. § 2º - A empresa concessionária ficará responsável pelo pagamento, por sua conta e risco, das indenizações devidas em decorrência das desapropriações e pela aquisição dos imóveis que forem necessários à realização das obras concedidas, inclusive o pagamento do preço de imóvel no exercício do direito de preempção pela Prefeitura ou o recebimento de imóveis que forem doados por seus proprietários para viabilização financeira do seu aproveitamento, nos termos do artigo 46 da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001, cabendo-lhe também a elaboração dos respectivos projetos básico e executivo, o gerenciamento e a execução das obras objeto da concessão urbanística. § 3º - A concessão urbanística a que se refere este artigo reger-se-á pelas disposições da Lei Federal nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, com as modificações que lhe foram introduzidas posteriormente, e, no que couber, pelo disposto no artigo 32 da Lei Estadual nº 7.835, de 08 de maio de 1992 (Lei 13.430/2002. Plano Diretor Estratégico).

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artigo

Olimpíadas para quem? Os direitos à moradia e à cidade negados à Vila Autódromo.

Beatriz Moura dos Santos Carolina Rodrigues de Oliveira

No intervalo de apenas dois anos, o Brasil será palco para a realização de importantes eventos esportivos: a Copa do Mundo em 2014, e as Olimpíadas em 2016. Com isso, o país será o foco da mídia internacional, além de apresentar propostas e promessas de desenvolvimento urbano para as cidades participantes. Como parte da preparação do território, são focados projetos de infraestrutura, principalmente voltados à realização das competições e de mobilidade, mas acabam por não incluir propostas de melhorias às comunidades existentes em terrenos atrativos para as transformações urbanas. Neste artigo, será apresentada a situação do assentamento da Vila Autódromo e como a comunidade está tentando contornar as ameaças de remoção em parceria com uma equipe de arquitetos, urbanistas e cientistas sociais da UFRJ, através de um projeto popular que foi vencedor do Urban Age Award. Para se analisar a situação brasileira, foi feito um estudo do histórico das Olimpíadas e seus legados em países que sediaram os jogos. A metodologia se baseia em uma revisão bibliográfica, na análise dos projetos previstos para a região do Parque Olímpico e o levantamento dos pontos positivos e negativos desses projetos e das consequências de um megaevento. A partir desta análise, espera-se responder ao questionamento: Olimpíadas para quem? E onde estaria o problema: no sistema dos megaeventos ou na maneira como as cidades os encaram? palavras-chave: parceria popular, remoções, direito à moradia, direito à cidade, impacto, intervenção na cidade existente,Olimpíadas Rio 2016. 187

Introdução Com a articulação do Movimento do Passe Livre, iniciaram-se as Jornadas de Junho, sendo a principal discussão a deficiência de mobilidade no país. No entanto, com a expansão do movimento e o aumento de pessoas envolvidas, houve uma mistura de interesses, emergindo uma infinidade de agendas mal resolvidas (ROLNIK, 2013). Dentre elas, os megaeventos entraram em pauta e eram questionados seus planejamentos, projetos, enquanto seus benefícios para a sociedade e seus “elefantes brancos”, como dito por Ermínia Maricato (2013), seriam deixados para trás. Embora essa discussão tenha ganhado destaque durante as Jornadas, muitos grupos afetados por essas mega-construções já se articulavam para que, de alguma maneira, os efeitos das mudanças urbanas e da limpeza social fossem amenizados. Assim, foram criados os Comitês Populares da Copa e, no caso do Rio de Janeiro, das Olimpíadas também. Os efeitos e ameaças produzidos pelos megaeventos tem como base a construção urbana e cultural pelas quais passamos durante a criação de nosso país, com um Estado patrimonialista e com a universalização da “política do favor”(MARICATO, 2013). Logo, nas últimas décadas as construtoras receberam vantagem sobre as necessidades sociais e urbanas obrigando os menos favorecidos a morarem na “periferia da periferia” em condições precárias, permitindo a continuação da “política do favor”, quando são trocadas obras de infraestrutura nessas regiões afastadas por votos (MARICATO, 2013). Desta forma o direito à cidade, na concepção de Harvey(2013), é perdido, já que a mesma é construída pelos desejos da população, no entanto estes desejos devem ser compostos de maneira a favorecer o coletivo e não uma parcela, como o que ocorre na construção do parque olímpico do Rio de Janeiro. Tendo assim um “agravamento da polarização social e segregação urbana; a proliferação de instalações e equipamentos orientados para o uso de um público elitizado e temporário” (LIRA, 2012). Além deste agravamento, Lira(2012) comenta o fato da valorização do solo urbano, que também acaba por expulsar a população habitante, devido à construção do parque olímpico e de suas infraestruturas viárias. O espaço urbano é remodelado e inicia-se uma corrida pela modernização desses espaços, afim de orientá-los as novas formas de consumo (SANTOS, 2013). Percebendo-se, então, que as melhorias que surgiriam após as Olimpíadas serão usufruídas apenas por uma elite local (SANTOS, 2013; SHORT, 2008), o processo de gentrificação é evidente. Silvestre (2010) define os projetos olímpicos como catalisadores desse processo. Além de apresentar as dificuldades enfrentadas pela comunidade Vila Autódromo, este artigo tem como base de discussão as organizações de megaeventos já ocorridos e como os mesmos são apresentados e estudados no meio acadêmico. Como Short(2008) coloca em seu artigo, “poucos estudos examinam os custos dos Jogos” (SHORT, 2008, p. 331), desse modo, é questionado se os problemas que ocorrem no Brasil são devidos à má organização do país ou se os mesmo já estiveram presentes nas organizações de Jogos passados.

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Por que sediar as Olimpíadas? Os megaeventos se iniciaram antes de Pierre de Coubertin ter a ideia do retorno das Olimpíadas. A partir de 1851, começaram organização das Exposições Universais, mesmo não havendo uma periodicidade regular, as mesmas tinham a intenção de expor a cidade ao mundo e colocá-la em evidência perante a ele (LIRA, 2012). Um de seus maiores destaques foi a Exposição de 1889, em Paris, quando a Torre Eiffel foi utilizada como portal para a feira, para este evento, foi feita uma remodelação da zona do Campo de Marte, marcando a possibilidade do uso de megaeventos como catalisadores urbanos (ESSEX; CHALKLEY, 1998; LIRA, 2012). Sendo em seu início um evento simples, mas que necessitava uma boa infraestrutura para a recepção dos atletas, as Olimpíadas modernas surgiram com a ideia de integração das nações, buscando “celebrar a paz” entre as mesmas por meio de uma competição esportiva (LIRA, 2012). Porém, por qual motivo uma nação se disponibilizaria para sediar os Jogos? Segundo Short (2008), sediar um evento permite que a cidade se posicione “no coração do fluxo da mídia internacional”(SHORT, 2008, p. 323). E, para isso, a cidade é reconstruída, não só fisicamente, mas também culturalmente, para se apresentar para a mídia global dentro dos padrões internacionais exigidos pelos comitês organizadores. Dessa forma, o maior incentivo para sediar as Olimpíadas é o desenvolvimento urbano e a regeneração da cidade (KITCHEN 1996 apud ESSEX; CHALKLEY, 1998), com a construção de monumentos e de equipamentos e também com a realização de obras de infraestrutura (LIRA, 2012), além da criação de empregos devido à grande quantidade de turistas antes e depois do evento (ESSEX; CHALKLEY, 1998). Como os Jogos se desenvolveram e suas consequências Tal como defendido por Essex e Chalkey(1998), é possível diferenciar em quatro períodos a crescente presença do urbanismo nos projetos das cidades sedes para a recepção das Olimpíadas. O primeiro, de 1896 a 1904, teve Jogos com um baixo investimento das cidades sede, chegando a não haver nenhuma nova construção em Paris, em 1900, utilizando o rio Sena para as atividades aquáticas (ESSEX; CHALKLEY, 1998). Em seguida, de 1908 a 1932, as cidades começam a investir em novos equipamentos, mas em pequena escala e sem grandes impactos, ainda focando nos Jogos e nos atletas acima de tudo. É a partir dos Jogos sediados em Berlim, durante o III Reich, que os investimentos aumentam. Na necessidade de reafirmar o Estado Nazista como um Estado consolidado, investimentos maciços em materiais e arquitetura da região foram feitos e, assim, as Olimpíadas de 1936 foram consideradas um sucesso e um meio de propaganda da Alemanha Nazista (ESSEX; CHALKLEY, 1998; LIRA, 2012; SHORT, 2008). E desse modo inicia-se um novo período, de 1936 a 1976, com a construção em larga escala e a melhoria da infraestrutura. O quarto período, de 1980 até a atualidade, tem como premissa a regeneração da cidade, tal como a principal justificativa para candidatura para sediar o evento. Aliás,

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antes do próprio investimento na cidade para a construção das benfeitorias previstas nos projetos, há o investimento inicial para a candidatura da mesma. Além do valor de inscrição pago ao COI (Comitê Olímpico Internacional), também há os gastos com os estudos de projeto e de legado que devem ser entregues com a inscrição (SHORT, 2008). Na tentativa de evitar o mesmo prejuízo que Montréal teve em 1976, o Comitê dos Estados Unidos criou uma empresa privada sem fins lucrativos, a Los Angeles Organizing Olympic Comitee, para fazer a captação de recursos. Desse modo, os gastos públicos foram reduzidos e com a venda de direitos televisivos e o patrocínio de quase 30 empresas, as Olimpíadas de 1984 se destacaram com Los Angeles sendo a primeira cidade a lucrar com o evento aumentando o interesse das cidades em sediar o megaevento (ESSEX; CHALKLEY, 1998; SHORT, 2008). Repetindo a mesma linha de planejamento que Los Angeles, para os Jogos de Atlanta, em 1996, o seu maior destaque foi o legado deixado para a cidade. Diferente do ocorrido em Barcelona, que teve a Vila Olímpica vendida para a população, em Atlanta, a Vila foi construída dentro do campus de Georgia Technical College e após os jogos começou a ser usada pelos alunos. Em relação aos equipamentos esportivos, grande parte foi doada a estabelecimentos educacionais e autoridades locais e o Parque Olímpico, produzido para ser usado pelos turistas durante a competição, foi construído para que após os Jogos também fosse usado pelos residentes da cidade. (ESSEX; CHALKLEY, 1998) E com a mesma preocupação de trazer um legado para a cidade e não produzir “elefantes brancos” pode-se estudar a organização e projetos de Barcelona (1992) e Londres (2012). Sendo Barcelona considerada a maior referência do uso do planejamento para as Olimpíadas como modernização e reestruturação urbana (ESSEX; CHALKLEY, 1998). As duas cidades utilizaram antigas áreas industriais para a construção do parque Olímpico, as quais eram negligenciadas e separadas de algum modo do restante da cidade. Enquanto em Londres, foi escolhida a região próxima ao rio Tâmisa, a leste da cidade, em Barcelona o Parque foi construído na região próxima à costa, porém separada da mesma devido a duas linhas de trens. De início, a cidade catalã alterou o traçado dos trilhos, permitindo com que o a cidade tivesse uma melhor relação com a costa, junto com a construção de uma nova marina. Para uma melhor relação com a cidade, novos acessos à área foram permitidos com a estruturação de um anel viário (ESSEX; CHALKLEY, 1998; LIRA, 2012; SHORT, 2008). Além de obras viárias, foram construídos ou melhorados cerca de 200 novos parques e praças(SHORT, 2008). No caso de Londres, por ser a terceira vez a sediar os Jogos Olímpicos e já ter sofrido com a grande quantidade de equipamentos que não foram usados posteriormente, foram poucas as infraestruturas construídas (LIRA, 2012). E, da mesma maneira, foram feitos projetos para que as novas, localizadas em um dos distritos mais pobres da cidade, tivessem algum uso posterior aos Jogos, transformando o Parque Olímpico em um parque com alguns dos estádios com uso comunitário (LIRA, 2012). Da mesma maneira que alguns países se preocupam com qual será o legado deixado para a população e como as obras feitas para os Jogos serão utilizadas posteriormente por quem mora na região afetada, há situações nas quais o interesse da população é

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colocado em segundo plano. Como as cidades Seoul, para os Jogos de 1988, e Pequim, para os de 2008, é evidente a semelhança de prioridades das duas cidades, mesmo com a separação de 20 anos entre a organização da primeira para a segunda. Ambas tinham como interesse ficar em evidência na mídia global e de se reafirmarem como potências em sua própria época. Para conseguirem atingir tal objetivo, além de inovações no programa padrão, como o “Ninho de Pássaros” de Pequim, com a capacidade de 91 mil lugares, medidas para trazer melhorias para o meio ambiente foram tomadas pelos dois projetos: Seoul criou programas para a despoluição do Rio Han e do ar, além de fazer um controle do lixo e da qualidade do ar (ESSEX; CHALKLEY, 1998; SHORT, 2008); e Pequim fechou quase 200 fábricas e 680 minas para a redução da poluição do ar. No entanto, mesmo com os benefícios gerados pelos programas das duas cidades, a necessidade de se destacar com eles prejudicaram a própria população de baixa renda, havendo relatos de que, em Seoul, as habitações de menor qualidade foram cobertas por paredes e tapumes durante a corrida com a tocha olímpica e a maratona (SHORT, 2008). Além de haver registros de que 720 mil pessoas foram removidas nesta cidade e de aproximadamente 1,25 milhões em Pequim, sendo que 13 mil foram despejados logo na primeira semana após o anúncio de que a mesma sediaria, em 2001 (CENTRE ON HOUSING RIGHTS AND EVICTIONS, 2007 apud SHORT, 2008). Estudo de caso: Vila Autódromo Descrita pela Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo (AMPVA), a comunidade foi formada por pescadores na década de 70 e é titulada e legalizada desde 1986, onde os títulos de posse foram concedidos por 99 anos, podendo ser prorrogado por mais 99 anos. Até junho de 2014, o Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro informa que são cerca de 550 famílias habitantes em uma área da Barra da Tijuca situada próxima ao terreno destinado à construção do Parque Olímpico. Em 2005, parte da comunidade foi decretada Área de Especial Interesse Social. A população residente passa por um histórico de ameaças de remoção pelo poder público desde a década de 1990. E, desde então, a região da Barra de Tijuca vem se valorizando cada vez mais, sendo cobiçada pelo mercado imobiliário e, com isso, retoma-se o ciclo de tentativas de retiradas das famílias do local. Com a preparação dos Jogos Olímpicos, as ameaças de remoção ganharam uma nova dimensão, segundo o Dossiê do Comitê Popular da Copa(2014) e Olimpíadas do Rio de Janeiro e Santos (2013). “Em outubro de 2009, logo após o anúncio da vitória da candidatura olímpica carioca, a Prefeitura anunciou que se faria necessário o reassentamento de mais de 3500 famílias, através do ‘Plano de Legado Urbano e Ambiental Olimpíadas Rio 2016’, produzida pela Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU), incluindo seis comunidades das zonas Oeste e Norte: Vila Autódromo, Canal do Anil, Gardênia Azul, Parque da Panela, Metrô-Mangueira e Belém-Belém.” (SANTOS, 2013, p. 97)

Inicialmente, o motivo que justificaria a necessidade das remoções foi de viabilizar a construção das instalações do Parque Olímpico. Os moradores, então, enviaram uma notificação ao Comitê Olímpico Internacional denunciando a ameaça de remoção. A Prefeitura reconheceu que a comunidade não precisaria ser removida em função do Parque

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Figura 1: Projeto vencedor para o Plano Olímpico. Fonte: http://www.rio2016.com

Figura 2: Localização da Vila Autódromo em relação ao Parque Olímpico. Fonte: (SANTOS, 2013)

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Olímpico, mas sim para viabilizar as obras dos corredores Transcarioca e Transolímpica do BRT (bus rapid transit), contradizendo os estudos apresentados das vias em audiência pública, de acordo com o Dossiê. Santos (2013) também alega que os corredores viários do Plano de Mobilidade e Transportes para 2016 vêm servindo de justificativa para a maioria das desapropriações e remoções forçadas. A intervenção proposta pelo projeto vencedor para o Parque Olímpico (Figura 1) considera a remoção da parte da comunidade situada na faixa marginal de proteção da Lagoa e não apresenta uma solução para a porção que permanece (Figura 2). Santos (2013, p. 106) ainda afirma que, em relação à remoção da comunidade Vila Autódromo, “Não há uma justificativa plausível, [...] fazendo crer que o único interesse em retirar a comunidade dali é realmente abrir espaço para a valorização imobiliária, já que após os jogos, no projeto vencedor para o Parque Olímpico, já está prevista a construção de diversos empreendimentos naquele local.”

Consta no Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro que a Prefeitura adquiriu um terreno cerca de 1,5 quilômetros distante da comunidade para o reassentamento dos moradores, através da construção de um conjunto do Programa Minha Casa, Minha Vida. Porém, essa solução não reconhece a identificação da comunidade com o local, e os laços econômicos e culturais que se formaram durante todo o período de existência da vila.

Figura 3: Proposta da Prefeitura para a Vila Autódromo versus Plano Popular. Fonte: Blog da ONG Heinrich Böll Stiftung. (TANAKA, 2014)

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A indignação dos moradores por falta de apresentação dos dados de projetos para a área e pela ausência de debates públicos democráticos é demonstrada através do Dossiê. Diante dos fatos, a comunidade decidiu buscar parceiros e colaboradores para elaborar um Plano Popular da Vila Autódromo. A parceria deu-se com pesquisadores universitários (ETTERN/IPPUR/UFRJ e NEPHU/UFF) e os moradores participaram de todas as decisões de opções apresentadas pelos técnicos, de acordo com a Carta da Vila Autódromo ao Desembargador Antônio Ibrahim. A solução apresentada foi de “urbanização dentro do perímetro ocupado atualmente pela Vila Autódromo, sem afetar a área destinada às instalações para os jogos. Seriam necessárias apenas alterações com relação aos acessos do Parque Olímpico. A proposta continha alternativas para: a recuperação da Faixa Marginal de Proteção da Lagoa de Jacarepaguá, dentro de uma faixa de 15 m permitida por lei; a resolução de problemas de saneamento básico; a melhoria da circulação interna e de acesso à cidade [...], a melhoria habitacional para situações de insalubridade; e áreas de lazer, esporte e cultura.” (TANAKA, 2014)

Apesar da mobilização da comunidade frente ao projeto do Parque Olímpico e as ameaças de remoção, em fevereiro de 2014, parte dos moradores deixou suas residências, aceitando a mudança para um apartamento no MCMV, no Conjunto Parque Carioca, segundo o Dossiê. Afirma também que a Prefeitura começou as demolições, sem ainda apresentar um projeto para a área que deve permanecer. Através da carta ao Desembargador Antônio Ibrahim, a Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo (AMPVA) exprime sua posição em relação aos jogos olí’mpicos: “Não somos contra as olimpíadas e o progresso do Estado, somos contra aos desrespeitos com os direitos conquistados a duras penas, o abuso do poder e as injustiças sociais. [...] Não podemos pagar com os nossos lares e com as nossas histórias de vida por não sermos bem vistos ‘esteticamente’ aos olhos empresariais [...], por um evento que embora seja honroso, só irá durar 17 dias.”

Por fim, tendo como estudo de caso a Vila Autódromo, Santos(2013) defronta os aspectos positivos e negativos dos investimentos de um megaevento como as Olimpíadas. Se por um lado reconhece-se como benefícios como a expansão da linha do metrô e as novas linhas expressas de BRT’s (RODRIGUES, 2012), por outro lado o novo ordenamento urbano está causando “desapropriações e as sistemáticas remoções de comunidades de baixa renda de regiões que estão recebendo investimentos de infraestrutura.” (SANTOS, 2013, p. 82) Considerações Finais Com o início do estudo deste artigo, questionava-se, tal como os manifestantes das Jornadas de Junho de 2013, a credibilidade dos megaeventos organizados pelo Brasil, tanto pelas dificuldades enfrentadas quando construídas obras de infraestrutura, quanto pelas enfrentadas pelas comunidades de todo o país com a organização da Copa realizada em 2014. 194

Da mesma maneira que Gilberto Maringoni questiona os dizeres dos manifestantes de Junho “Não vai ter Copa”, é ideal que se pergunte “Copa pra quem?”. No caso deste artigo, já passada a Copa, estende-se para os megaeventos e principalmente para os Jogos Olímpicos. Olimpíadas para quem? Percebe-se que, a partir dos estudos sobre as já cidades-sede das Olimpíadas, os Jogos podem ser apropriados pelos países para diversos objetivos. Tal como Los Angeles (1984) que teve como principal propósito o lucro, Atlanta (1996), Barcelona (1992) e Londres (2012) melhorias urbanas a serem utilizadas pela população posteriormente e Seoul (1988) e Pequim (2008), que levaram os interesses de uma elite em sobreposição aos da população. É a partir destes últimos que a insegurança sobre o planejamento dos Jogos no Brasil cresce, já que o mesmo ocorre aqui, devido ao estado patrimonialista. Assim, analisando a atual situação da Vila Autódromo, ainda que a exista uma falta de diálogo entre a organização e a comunidade, a sua resistência é nítida. No entanto, a possibilidade de diálogo pela comunidade é apresentada com a negação das medidas que estão sendo tomadas pela prefeitura da cidade, mas com a presença de uma contra proposta que permite uma discussão entre ambas as partes. Desse modo, não pode ser dito que o maior problema seja o megaevento em si, mesmo que propicie um “estado de exceção” que permita que as cidades tomem medidas que comumente não seriam tomadas. Mas sim as cidades, que tomam os megaeventos como prerrogativa para tomar medidas de interesse das elites, tal como no caso da Vila Autódromo, a qual desde a década de 1990 está sob ameaças de remoção.

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artigo

Os mutirões autogeridos vistos sob a perspectiva de gênero

Iohana Marques

A condição de gênero, estruturante na atual sociedade capitalista e patriarcal brasileira, tange os mais diversos aspectos sociais, não deixando escapar a questão da habitação, elemento primário na constituição social. Por outro lado, quando se fala do problema habitacional, nem sempre a perspectiva de gênero é colocada, descolando esse debate da realidade que oprime e dificulta o acesso à moradia de milhares de pessoas pertencentes não só a uma classe, mas a um gênero específico. Desde a década de 80, os mutirões autogeridos vêm sido discutidos como uma alternativa à questão habitacional. Em maior ou menor medida, existe uma expectativa em torno dos mutirões autogeridos sobre seu poder de fortalecimento da organização popular, já que a autogestão impele à construção coletiva e ao reconhecimento da identidade de classe, contribuindo assim para o seu empoderamento e autonomia. Porém, para tal, é preciso que as pessoas envolvidas reconheçam as estruturas que a cercam e cerceiam. Esse artigo tratará de analisar a condição de gênero nos processos de mutirões autogeridos no contexto do atual Estado brasileiro capitalista e patriarcal, articulando dados sobre a realidade feminina e sobre as práticas dos mutirões autogeridos, com base em uma bibliografia sobre os temas. palavras-chave: mulheres mutirantes, mutirão autogerido, habitação e gênero. 197

Introdução Os mutirões, se vistos como práticas de autoconstrução, sempre ocorreram no Brasil como forma de provisão de habitação para pessoas de baixa renda, e por isso dificilmente seriam, por si só, uma resposta alternativa hoje para o problema habitacional do qual sempre foram paliativo. Por outro lado, políticas habitacionais nunca foram o foco do Estado brasileiro até o período da ditadura militar de 1964, quando muito se investiu em habitação na forma de grandes conjuntos habitacionais. Essa medida atendeu, principalmente, aos interesses da classe média e das empreiteiras, servindo ao Estado como instrumento de cooptação ideológica da classe trabalhadora (ARANTES, 2002), mas não alterou o caráter da autoconstrução para as classe baixas. Somente na década de 80, mediante o processo de redemocratização do país, os mutirões são ressignificados pelos movimentos sociais urbanos de moradia, como uma alternativa à demanda habitacional e um instrumento de fortalecimento da organização popular. Em maior ou menor medida, existe uma expectativa em torno dos mutirões autogeridos sobre seu poder de fortalecimento da organização popular, já que a autogestão impele à construção coletiva e ao reconhecimento da identidade de classe, contribuindo assim para o seu empoderamento e autonomia. Porém, para tal, é preciso que as pessoas envolvidas reconheçam as estruturas que a cercam e cerceiam. Esse artigo tratará de analisar a condição de gênero nos processos de mutirões autogeridos no contexto do atual Estado brasileiro capitalista e patriarcal, articulando dados sobre a realidade feminina e sobre as práticas dos mutirões autogeridos, com base em uma bibliografia sobre os temas. Nesse intuito, esse trabalho divide-se em três partes: a primeira, “A questão habitacional sob a perspectiva de gênero” trará dados sobre a realidade feminina, que nos mais diversos âmbitos dificulta o direito à moradia da mulher; a segunda, “Os mutirões autogeridos como alternativa para a questão da habitação”, apresenta um histórico dos mutirões autogeridos institucionalizados no Brasil e suas problemáticas, e a terceira parte, “Os mutirões vistos sob a perspectiva de gênero”, objetiva discutir as estruturas que cercam e cerceiam as mutirantes, explicitando a perspectiva feminina diante do tema. A questão habitacional sob a perspectiva de gênero O problema habitacional no Brasil é histórico e enraizado, de modo que políticas públicas são pensadas constantemente para amenizar o problema. O que se ignora, no entanto, é o próprio perfil das pessoas que necessitam dessas políticas. Não somente a renda, mas também o gênero são fatores determinantes para entender como contemplar as necessidades habitacionais da população. Por uma série de condições, as mulheres são, sem dúvida, as mais vulneráveis quando tocamos na questão habitacional. O “direito à moradia” hoje se materializa por meio de transações de mercado, de herança, da concessão do Estado ou de uma rede de solidariedade. Todos esses meios de se obter uma moradia são influenciados pela estrutura patriarcal da nossa sociedade que, a partir de uma complexidade de elementos culturais, manifestam-se colocando a mulher sempre em desvantagem em relação ao homem nas mais diversas esferas.

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Taxa de desemprego da população de 16 anos ou mais, por sexo e cor/raça. IPEA, 2011.

Média de anos de estudo da população ocupada de 16 anos ou mais, por sexo e cor/ raça. IPEA,2011.

Renda média da população, por sexo e cor/raça em 2009. IPEA, 2011.

No mercado de trabalho, as mulheres têm menor remuneração, ocupam a maioria dos cargos informais (OIT, 2009) e estão mais susceptíveis ao desemprego, apesar de muitas vezes sua formação escolar ser superior à dos homens em situações análogas, como ilustram os infográficos abaixo retirados do relatório “Retratos das desigualdades de gênero e raça”, produzido pelo Ipea em 2011. Esses dados estão relacionados a diversos fatores tais como: a diminuição do valor da mão-de-obra feminina; as dificuldades de se ter uma jornada múltipla de trabalho ao terem que assumir, concomitantemente ao trabalho produtivo, o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos; as dificuldades relacionadas aos períodos de gestação e os estigmas enfrentados devido à aparência física (RABELO, 2014). Tais fatores, dentre outros, são ainda mais acentuados por condicionantes como raça e orientação sexual, criando um estado interseccional de opressões sobre a mulher. Na esfera doméstica, um dado importante é que as mulheres chefiam a maioria dos lares monoparentais, isto é, lares formados por um dos genitores e seus filhos (SANTOS; SANTOS, 2008). Essa realidade, decorrente de rupturas de casamentos e uniões, falecimento ou abandono do cônjuge e gestações extramatrimoniais, pode ser voluntária ou

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não, mas não há dúvidas sobre o peso dos papéis históricos de gênero que impõem à mulher o ônus completo pelo trabalho reprodutivo . Há de se ressaltar que, apesar de tanto a maternidade quanto o cuidado dos filhos sem o cônjuge poderem ser voluntários ou não, a criminalização do aborto deixa, necessariamente, milhares de mulheres sozinhas e desassistidas na obrigação de parir e manter um filho. Outro fator atrelado ao lar monoparental que precisa ser considerado é a escolha da mulher em romper uma união. Quando se trata de separação judicial litigiosa a iniciativa das mulheres é quatro vezes maior que a dos homens e, no caso das separações de fato, os dados mostram que a iniciativa feminina é duas vezes maior (SANTOS; SANTOS, 2008). Tudo isso indica que também há questões de gênero que incitam as mulheres a romper uma união e ter de assumir um lar monoparental, o qual será muitas vezes uma responsabilidade não compartilhada e penosa, dado que muitos homens não assumem sua responsabilidade parental, restando à mulher o peso de lidar com múltiplas jornadas de trabalho, dentro e fora de casa. Nos lares chefiados por homens, muitas vezes a mulher não tem autonomia para se divorciar pela impossibilidade de lidar com as dificuldades diversas que essa escolha pode gerar. Não raro a mulher é obrigada a conviver com situações de violência doméstica ou acaba indo morar na casa de parentes e amigos (RABELO, 2014). Mesmo para ter acesso a crédito sua situação é desvantajosa, já que essa possibilidade está vinculada à oportunidade de geração de renda, diferente para homens e mulheres (DEERE; LÉON, 2003). Não só as situações acima citadas descrevem o que enfrentam as mulheres para terem acesso à moradia. Há também as mulheres-mães que vivem com outras parceiras e enfrentam problemas particulares de estigmas contra sua orientação sexual, dado a cultura heteronormativa que impera sobre o núcleo familiar. Há as mulheres que não tem filhos e tampouco podem ser privadas de seu direito à moradia, ainda que seja comum políticas públicas considerarem mulher como sinônimo de mãe. A crescente entrada da mulher no mercado de trabalho e as novas composições da unidade domiciliar, em conjunto com as complexas dificuldades implicadas por uma estrutura patriarcal da sociedade brasileira em seus mais diversos aspectos, não devem ser vistos como temas complementares no debate sobre políticas habitacionais, tampouco como temas superficiais ou de interesse apelativo, mas tal como parte essencial que são do problema. Os mutirões autogeridos como alternativa para a questão da habitação Os mutirões autogeridos surgem como alternativa para a questão da habitação nos anos 80, diante do surgimento de movimentos de moradia e do esgotamento das políticas do BNH e do modelo de autoprovisão de habitação, no período em que se acentuava a crise econômica que se instalara no país após o fim do “milagre” (ARANTES, 2002). Há de se ressaltar que o processo de autoconstrução sempre foi adotado por grande parte da população para prover sua moradia, dada à impossibilidade de conseguir adentrar no mercado imobiliário, em conjunto com a falta de políticas públicas voltadas para tal. Porém, nesse momento, o mutirão como forma mais tradicional de cooperação popular, é ressignificado: como diz Arantes (2002), “a novidade era realiza-lo não mais como 200

forma de autoprovisão com economia própria, mas com terra e financiamento estatais, reivindicando uma parcela do fundo público e a universalização do direito à moradia”. Adotar o mutirão autogerido em detrimento de uma construtora tradicional, como se faz para as moradias populares em geral, implica na escolha por organizar e gerir o canteiro, suas práticas e recursos, o que possibilita a discussão dos projetos e procedimentos, a otimização dos custos, a melhoria das práticas do canteiro para os construtores e da qualidade das habitações para os moradores, tudo isso feito de maneira horizontal. Maior autonomia de decisão para aqueles que vão construir e habitar aquele espaço, por fim. No entanto, na virada dos anos 70 para os anos 80, o Estado brasileiro passa a legitimar a autoconstrução como política pública: uma conquista dos movimentos? É de se estranhar o Estado num regime capitalista apoiando uma política em apoio ao fortalecimento da autogestão popular e, portanto, restringindo tanto a iniciativa privada quanto a gestão estatal. De fato, essa política tinha outra intenção. Acontece que, com a crise da modernização latino-americana nos fim dos anos 70, o mutirão e a autoconstrução passam a ser práticas recomendadas por instituições internacionais como o Banco Mundial, a Habitat-ONU e o BID, por serem estratégias mais baratas para se fazer habitação. Assim, usa-se de mão de obra os próprios futuros moradores, os quais ou estão desempregados e dispõem de horas livres para dedicar-se ao mutirão, ou são obrigados a arcar com jornadas múltiplas de trabalho até o fim da construção de sua moradia. Chico de Oliveira, em “Crítica à razão dualista” (1976) é um dos primeiros a estabelecer a relação entre sobretrabalho e autoconstrução da moradia, na qual o capital é isento de arcar com os custos de sua própria reprodução, passando a ser responsabilidade dos trabalhadores por meio do trabalho extra e da absorção dos custos da construção. De fato, é inegável a dificuldade imposta para o trabalhador num regime capitalista ao ter que construir sua própria casa ao mesmo tempo em que vende sua mão-de-obra numa jornada paralela e, dado isso, a polêmica em torno dos mutirões autogeridos como alternativa à questão da habitação é grande (OLIVEIRA, 2006; LOPES, 2006; FERRO, 2006). Mas, se de um lado a crítica sempre incide sobre a questão da autoconstrução, de outro, há a necessidade de se explicitar o protagonismo do pequeno adjunto “autogerido”. A autonomia dos futuros moradores, politizados pelos movimentos sociais, assessorados por técnicos independentes e utilizando os recursos do Estado, possibilita a construção de espaços mais livres da interferência clientelista, autoritária e burocrática do Estado. A autogestão é o aspecto fundamental desse processo, já que alguns mutirões inclusive contratam pequenas empreiteiras ou cooperativas para trabalhar na construção durante a semana, o que ainda não exclui o sobretrabalho nos finais de semana. Entretanto, separar autogestão do processo de mutirão não é tarefa tão simples, uma vez que o objetivo da autogestão não só é poder otimizar os custos e o projeto da habitação em si, mas também subverter as relações existentes no canteiro tradicional e fortalecer uma consciência coletiva e política do grupo, o que se dá em momentos de assembleia ou negociações com o governo, mas também no momento da obra, da prática manual (ARANTES, 2002). Para não criar uma “mitologia emancipatória” em torno do mutirão autogerido, no entanto, é preciso que seus conceitos e suas práticas sejam alinhadas consistentemente, a fim de atender ao que propõe: a produção da moradia junto com a problematização das questões estruturais que permeiam o cotidiano daquelas pessoas, consolidando uma consciência de classe. 201

Os mutirões vistos sob a perspectiva de gênero “Assentava tijolo, cobria casa, coloquei porta, janela, reboque, encanamento, tudo! Casa de material foi a primeira vez que eu fiz, quando eu morava em Rondônia, construía casa de madeira. Mas assim foi a primeira e espero que a última... foi sofrimento demais. (Vilma - 33 anos, chefe de família) (relato)" (FERTRIN; VELHO, 2010).

Em alguns relatos sobre mutirões (ARANTES, 2002; FERTRIN; VELHO, 2010), nota-se a forte presença das mulheres nas obras, indo de encontro à tradicional perspectiva de divisão do trabalho, onde as mulheres ficariam com o trabalho “leve” e os homens com o “pesado”. Como bem se nota, o espaço doméstico no qual as mulheres têm papel essencial devido à tradicional divisão de atividades por gênero, se amplia ao espaço das comunidades, onde as mulheres acabam por liderar engajamentos políticos, sendo vistas como chefes de suas comunidades. Esse fato relaciona-se tanto com o de as mulheres, ao serem mais responsabilizadas pelo trabalho reprodutivo, sentirem-se mais responsáveis pelo suprimento das necessidades básicas do núcleo familiar (alimentação, educação, saúde, moradia), quanto com o aspecto não remunerado dessas funções (FERTRIN; VELHO, 2010). Dessa forma, mesmo aparentemente sendo inusitada a participação intensa de mulheres nos canteiros dos mutirões, ela é plenamente compreendida quando vista como parte do trabalho reprodutivo e não remunerado já exercido pelas mulheres no cotidiano doméstico. Outro fator relacionado ao grande esforço dedicado pelas mulheres nos mutirões é a maior dificuldade que elas têm, quando em lares monoparentais, para conseguir moradia, e daí a importância dada por elas à construção da casa própria. Entretanto, se de um lado há uma série de fatores que impelem a presença de mulheres no canteiro dos mutirões, de outro a dificuldade de lidar com múltiplas jornadas de trabalho é grande. Muitas vezes a mulher tem que dispor de tempo para trabalhar fora de casa, em conjunto com as tarefas domésticas, os cuidados com os filhos, e ainda cumprir as horas de trabalho necessárias no mutirão. Sem dúvidas, o sobretrabalho intrínseco ao mutirão é ainda mais penoso sobre as mulheres. Alguns mutirões colocam no seu regimento interno que aqueles que assinam como titular do financiamento trabalham um número mínimo de horas obrigatórias, sem ajuda de amigos e parentes. Vê-se que certamente há uma assimetria de situação para homens e mulheres nesse caso. A presença intensa de mulheres no canteiro, executando os mais diversos trabalhos, ressignifica a tradicional distinção entre trabalhos “leves” e “pesados”. Como diz Fertrin e Velho (2010) a respeito do tema “Poderíamos entender a concentração de mulheres em determinados trabalhos pelo fato desses exigirem menor esforço físico, ou seja, serem considerados 'leves'. No entanto, qualifica-se o trabalho em função de quem o realiza: são 'leves' as ativida des que se prestam à execução por mão de obra feminina ou mesmo infantil, tendo também menor remuneração quando comparadas àqueles consideradas 'pesadas', mesmo que ambas demandem o mesmo número de horas ou que o esforço físico exigido por uma tenha como contraponto a habilidade, a paciência e a rapidez requeridas pela outra. O serviço 'leve' pode ser igualmente estafante, demorado, ou mesmo nocivo à saúde, mas considerado 'leve' se pode ser realizado por mulheres ou crianças. O que determina o valor da remuneração é, em suma, o sexo de quem recebe.” 202

Apesar de as mulheres, por necessidade, acabarem executando os mais diversos serviços no canteiro, esse processo passa sempre por uma desconstrução de ideias preconcebidas, uma resistência que desacredita da capacidade feminina naquelas atividades, e que pode existir tanto por parte das equipes técnicas e dos colegas mutirantes, quanto por parte das próprias mulheres. Esse processo de desconstrução, que não ocorre sem a experiência prática das mulheres no canteiro, pode ser facilitado por atividades que discutam o tema e assim iniciam a problematização coletiva da questão. Não só a capacidade das mulheres de realizar as atividades, mas também o reconhecimento da qualidade dessa execução, que não é mero “substitutivo” do trabalho masculino, precisa ser problematizado. É importante dizer também que muitas técnicas no canteiro podem ser revistas para que sejam exercidas mais facilmente por pessoas de diversos tipos físicos, já que os mutirantes são, em sua maioria, pessoas que não trabalham na área de construção civil e podem ter dificuldade para lidar com algumas técnicas, o que não necessariamente diz respeito à diferença física entre homens e mulheres, mas entre pessoas. A execução das mais diversas tarefas não necessariamente confere às mulheres o meio de colocar suas opiniões diante dos processos de decisão do mutirão. Assim como na execução das tarefas, a inserção nos processos de decisão do mutirão pode ser dificultada para as mulheres tanto por processos internos quanto externos, isto é, a dificuldade da mulher em se colocar em espaços mistos em conjunto com a dificuldade de sua opinião ser legitimada. Mesmo que algumas mulheres protagonizem papéis de liderança na comunidade, é preciso que a legitimidade de expressão atinja a todas, para que essas mulheres líderes não sejam citadas como expressão de uma falsa simetria, como se não o fossem justamente por serem exceção à regra da protagonização masculina nos espaços de decisão. As questões que se relacionam com a problemática de gênero são amplas e vão além do processo construtivo em si, atingindo também questões como a elegibilidade no programa do mutirão e o projeto das habitações. Quanto ao primeiro, a exigência de uma renda mínima pode excluir uma parcela de famílias monoparentais femininas, que são as mais pobres. Há programas governamentais que dão preferência a esse tipo de composição familiar (FERTRIN; VELHO, 2010) justamente por reconhecer sua vulnerabilidade. Em relação ao projeto, que também se relaciona com outras questões menos específicas à problemática de gênero, o espaço da moradia em muito diz respeito à execução das tarefas domésticas e poderia ser flexibilizado para melhor se adequar a elas. Como o trabalho doméstico é destinado a um gênero específico e seu valor não é reconhecido, há uma separação do espaço entre os ambientes de trabalho e os ambientes de integração e descanso, sendo os primeiros comumente colocados em segundo plano em termos de qualidade, dificultando ainda mais a rotina das mulheres trabalhadoras. Outro aspecto importante sobre o projeto é a consideração dos trabalhos informais executados por elas para a geração de renda familiar, trabalhos esses que muitas vezes se dão no espaço doméstico e necessitariam de um ambiente mais adequado para sua melhor realização.

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Considerações finais Nota-se que as práticas de mutirões autogeridos, pretendendo a produção de moradia junto com a problematização das questões estruturais que permeiam o cotidiano dos mutirantes para consolidar uma consciência de classe, não podem se ausentar de um recorte de gênero. A real inserção das mulheres nesse processo só pode se dar quando há a compreensão dos problemas que elas enfrentam no mercado de trabalho, nas rotinas do espaço privado, nos espaços coletivos de decisão, e em todos os âmbitos da nossa sociedade patriarcal. Esse trabalho buscou contribuir para a compreensão da situação de gênero nos mutirões autogeridos por meio de, primeiramente, dados atuais sobre a realidade da mulher no Brasil; em segundo, uma breve análise histórica sobre os mutirões autogeridos institucionalizados e suas problemáticas; e, por último, a articulação entre problemas de gênero e o processo de mutirão autogerido. Referências ARANTES, Pedro Fiori, Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões, [s.l.]: Editora 34, 2002. DEERE, Carmem Diana; LÉON, Magdalena, Diferenças de gênero em relação a bens: a propriedade fundiária na América Latina, Sociologias, n. 10, p. 100–153, 2003. FERRO, Sérgio, Nota sobre “O vício da virtude”, Novos Estudos - CEBRAP, n. 76, p. 229–234, 2006. FERTRIN, Rebeca Buzzo; VELHO, Lea Maria Leme Strini, Mulheres em construção: o papel das mulheres mutirantes na construção de casas populares, Revista Estudos Feministas, v. 18, n. 2, p. 585–606, 2010. LOPES, João Marcos, O anão caolho, Novos Estudos - CEBRAP, n. 76, p. 219–227, 2006. MARCONDES, Willer Baumgartem et al, O peso do trabalho “leve” feminino à saúde, São Paulo em Perspectiva, v. 17, n. 2, p. 91–101, 2003. OLIVEIRA, Francisco de, Crítica à razão dualista ; O ornitorrinco, [s.l.]: Boitempo Editorial, 2003. OLIVEIRA, Francisco de, O vício da virtude, Novos Estudos - CEBRAP, n. 74, p. 67–85, 2006. RABELO, Maria Mercedes, O programa bolsa família na voz das beneficiárias: inclusão e cidadania. Políticas Para Família, Gênero e Geração / Jurema Gorski Brites, Leticia Schabbach, organizadoras, Porto Alegre: UFRGS/CEGOV, 2014. 162 p. SANTOS, Jonabio Barbosa dos; SANTOS, Morgana Sales da Costa, Revista Jurídica, v. 10, n. 92, p.01-30, Brasília: 2008. (IPEA), Brasil Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada et al, Retrato das desigualdades de gênero e raça, http://www.ipea.gov.br, 2011. (OIT), Organização Internacional do Trabalho, Trabalho e família: rumo a novas formas de conciliação com corresponsabilidade social / Brasília: 2009. 150 p.

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artigo

Os Shopping Centers e a deser tificação das ruas de São Paulo

Daniel L. C. Hebling Luiz H. B. Grecco

Na década de 1960 foi inaugurado em São Paulo o Shopping Iguatemi, empreendimento que marca o início de um movimento de afastamento da população com as ruas e que acabou por resultar numa espécie de marginalização do comércio de rua e, por consequência, num processo de desertificação das ruas da cidade. Nos últimos dez anos, no entanto, o movimento passa a inverter-se. Talvez pelos preços abusivos dos shoppings, ou talvez por estar cansada da atmosfera pasteurizada desses edifícios a população passa a procurar nas ruas seu lazer, revitalizando ruas degradadas (como a Rua Augusta) e ocupando de fato a cidade. O estudo tem por objetivo analisar a relação da população paulistana com as ruas devido à construção excessiva de grandes shopping centers a partir dos anos 1960, que prometia garantir lazer, conforto e segurança para os frequentadores. Para tal devem ser realizados estudos de caso que demostrem a relação entre a construção dos mesmos e a deterioração do espaço público que os envolve. palavras-chave: shopping, consumo, segregação, São Paulo. 205

“De uma coisa podemos ter certeza: reduzir o adensamento de uma cidade não garante a segurança contra o crime nem previne o temor ao crime.”

JACOBS, J. Morte e vida das Grandes Cidades

Desde a época da Revolução Industrial até mais da metade do século XX, com reflexos intensos sobre a sociedade atual, houve uma mudança na relação do homem com o espaço e com o tempo. Cada vez mais, éramos capazes de percorrer grandes distâncias em menor intervalo temporal, e a noção do que é rápido ou lento se alterava no mais profundo nível. Com tal mudança, a própria sociedade passa a se reorganizar para, da maneira mais cômoda, adaptar-se aos requisitos deste novo e frenético mundo que então se revelava. O automóvel e sua popularização são fator determinante não só para promover como também para impulsionar esta nova sociedade, universalizando a “aceleração” da rotina dos indivíduos, famílias, sociedades e corporações. Decorrente deste aumento de ritmo é o desejo e a tendência de concentração, no sentido espacial, de serviços e fluxos. A partir desse pensamento, começam a surgir núcleos comerciais e de serviços, que ao longo do tempo se transformam em centros comerciais, e posteriormente, aliados à necessidade de cada vez maior espaço dedicado aos carros, surgem os Shopping Centers que hoje conhecemos, com seus edifícios mirabolantes e estacionamentos colossais. No Brasil, a implantação da “racionalidade burguesa” (GAETA [1992: 45]), ou seja, a dinâmica de acumulação essencialmente capitalista, nas décadas de 1950 e 60, foi o grande impulsionador da “cultura do Shopping Center”. Foi precisamente na década de 1960 que se inaugurou o Shopping Iguatemi (Fig. 1), o primeiro dos mais de 50 Shopping Centers que marcam o espaço urbano de São Paulo atualmente. Junto a ele, iniciou-se um movimento de desertificação paulatina das ruas, que se intensificou até a década de 1990. Os primeiros Shoppings são construídos justamente em bairros que acompanhavam a ocupação e a “dispersão” das classes média e acima da média (VILLAÇA [2003: 342]) pelo Quadrante Sudoeste da cidade. Posteriormente foram construídos Shoppings em outros poucos bairros fora desse quadrante, mas que também abrigavam essas classes, como Tatuapé e Alto de Santana. A presença dos Shopping Centers em São Paulo ainda coincide com o início de uma nova forma de ocupação na região metropolitana, marcada pela fragmentação de sua centralidade e, consequentemente, a degradação do centro velho, que é justamente impulsionada pela construção de Shoppings, hipermercados, torres comercias para abrigar centros empresariais, ou até mesmo um empreendimento que junte todos esses espaços.1 A promessa quase demagógica dos Shopping Centers era a de prover à população o lazer de consumo seguro e fácil, agregando dentro de si diversos serviços que eram encontrados nas ruas: lojas e butiques, cinemas e opções para alimentação. Claro, por consequência direta da construção excessiva desses grandes empreendimentos, as ruas começam a perder sua atratividade e entram num processo bastante acentuado de degradação. 206

Como colocado por Jane Jacobs, é ato de inocência considerar que uma rua despovoada seria mais segura. Na verdade, a autora mostra diversas vezes, na obra já citada, diferentes situações vivenciadas por ela ou pessoas próximas a ela que validam esse ponto. Tendo isso em vista, é importante ressaltar que a presença de um Shopping Center numa determinada área não só direciona fluxos, mas também os concentra dentro de si e, pelo fato de prover ao consumidor diversas mercadorias, desde aviamentos até serviços de Pet Shop, por exemplo, e acaba por tirar da cabeça do cidadão a alternativa de andar pela rua, já que em um único lugar se encontra de tudo. O cidadão tem tendência a considerar o Shopping Center um salvador, um generoso agente que veio para possibilitar as compras fora do ambiente hostil que são as ruas. Tal pensamento ocorre devido ao fato inegável de se estar relativamente e confortavelmente seguro quando dentro de um edifício fechado, que tenta ao máximo simular um ambiente acolhedor e paradisíaco, onde pessoas, em sua grande maioria, estão ou para tentar comprar ou para tentar vender. No entanto, nos esquecemos de pensar nas influências que tal organização exerce sobre as ruas, pois a crença comum é de que o Shopping Center é uma consequência, uma medida tomada para tirar das garras da rua impiedosa e cruel o cidadão de bem, quando o que de fato ocorre é quase contrário a este raciocínio, mesmo por que a sensação de segurança que se tem nos Shoppings é justamente trazida pela dominação da classe endinheirada que frequenta esses espaços. Para ilustrar a situação acima apresentada, pensemos na rotina de um hipotético adolescente de uma família de alta classe na cidade de São Paulo. Durante o período de aulas, que consiste na maior parte do ano, este jovem acorda cedo nos dias de semana, toma seu café da manhã, é levado de carro pelos pais à escola – muito provavelmente também frequentada somente por crianças e jovens equivalentemente ricos – e retorna, também de carro, à sua residência em um condomínio fechado situado em um bairro nobre da cidade. Durante as férias, feriados e finais de semana, este indivíduo faz passar o tempo com jogos eletrônicos, visitas às casas de seus amigos ou passeios em shopping centers. A rotina de seu pai e de sua mãe dificilmente será radicalmente diferente da sua (à exceção, muito provavelmente, da ida à escola). Uma família assim vive perfeitamente bem em seu círculo social, com seus amigos e parentes e suas frequentes viagens turísticas. No entanto, um fato chocante pode passar despercebido: nenhum dos indivíduos desta família tem significante contato com a cidade onde vivem. O condomínio fechado, o shopping center e, em menor escala porém não com menor impacto, o carro, atuam como bolhas nas quais os cidadãos abastados alegremente mergulham, em busca de um pequenino mundo perfeito, e estão tão felizes confinados em suas prisões paradisíacas que raramente saem a pé às ruas, utilizam o transporte público ou conhecem novas partes de sua cidade. É desta realidade, à qual a maioria da classe alta brasileira pertence, que surge o pensamento de que as ruas e avenidas devem ser evitadas. É até difícil afirmar com total segurança que a maioria da classe alta vira as costas aos problemas urbanos. Alguns, hoje em dia, tão imersos neste pensamento de realização pessoal e de busca pelo mais confortável dos mundos, vivem tão fechados nesta visão que simplesmente desconhecem o lado de fora, e não param para pensar neste tipo de questão justamente pelo fato de que o ambiente no qual eles estão inseridos não sugere a existência deste tipo de problema. É possível imaginar, neste contexto, um pensamento que admita que a rua, a periferia e qualquer outro elemento que não

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pertença à rotina destas pessoas, sejam lugares perigosos e hostis por definição, e não pelo estado atual do comportamento humano. Jacobs aponta que a rua é o órgão mais vital de uma cidade. Quando pensamos em uma cidade, visualizamos suas ruas. Elas não apenas são o grande retrato que guardamos em nossa mente, como também o fator que determina se a cidade é ou não saudável, receptiva e até habitável. Nas grandes cidades, estamos cercados por estranhos. Somos apenas indivíduos no meio de uma multidão desconhecida. Esta, reconheçamos, não é a mais confortável das posições, e cabe à rua e à cidade nos passar segurança. Sozinha, a rua nada é capaz de fazer, pois cuida de estabelecer as relações entre as edificações e espaços abertos da cidade, e é justamente dessas relações que extrai seu significado, suas nuances. Para garantir um espaço apto a acolher os estranhos que nele têm de conviver, a rua deve mostrar claramente a divisão entre o que é público e o que é privado, para garantir uma passagem menos confusa e, na falta de melhor termo, mais direta. Também deve ser utilizada regularmente, e não só em certos períodos do dia, como por exemplo uma rua de comércio na qual nenhum estabelecimento permanece aberto após as 19 horas. Um outro aspecto importante, que se relaciona a este último apresentado, é o apelo visual. Olhares devem se dirigir à rua, tanto como passatempo como para fins de segurança, e existem poucas coisas menos divertidas do que olhar para um espaço morto, onde nada acontece. É muito fácil e cômodo virar as costas para um panorama monótono e sem novidades, e nada perderíamos, como indivíduos, ao fazê-lo. Porém, um espaço com essas características é muito prejudicial à cidade como “ser”. Por tais motivos, o pior que pode acontecer a uma cidade é ter ruas desertas. Quando as mesmas deixam de ser um trajeto prazeroso que carrega consigo efeitos de passeio e lazer, e passam a ser apenas um processo, um meio de deslocamento quase automático e inconsciente entre dois pontos, a cidade manifesta-se como reflexo de tal comportamento, perdendo sua graciosidade e, em equivalente importância, sua segurança. Em grandes cidades, como São Paulo, a “cultura do Shopping” foi fator que impulsionou a desertificação das ruas, e, logo, a “perda de confiança” na cidade. Hoje, ao sairmos às ruas, olhamos para todos os lados, não por um apelo visual exercido pela cidade sobre nós, mas sim por sabermos que o espaço público representa um ambiente potencialmente traiçoeiro. “A segregação, como um mecanismo de dominação e exclusão, sempre impede ou dificulta o acesso dos segregados a algum serviço, benefício, direito ou vantagem, seja público, seja privado” (VILLAÇA, F. Segregação Urbana, 2003)

Além disso, é possível dizer que os Shopping Centers de hoje não são mais tão atrativos porque cada vez mais estão sendo utilizados pelas classes mais altas como ferramenta de segregação. Como apontado por Flávio Villaça, em seu texto “Segregação Urbana”, quase não se vê negros ou pobres visitando Shoppings, e quando se vê, geralmente são pessoas que trabalham como empregada doméstica de outras pessoas e estão lá para cuidar dos filhos dos patrões. Essa questão inclusive inicia uma discussão interessante. Quando o Shopping Higienópolis (Fig. 2) já estava plenamente incorporado à rotina dos moradores do bairro, nos

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seus dias de folga, as pessoas que atuavam como funcionários ou empregadas domésticas nos luxuosos apartamentos da região começaram a frequentar tal shopping com sua própria família. Quase que imediatamente as lojas um pouco mais baratas que as outras deram lugar a novas lojas, de marcas e produtos muito mais caros, de forma que essas pessoas sentiam-se constrangidas e impotentes estando lá. É possível perceber, então, que o Shopping Center, como materialização do pensamento elitista, atua como uma espécie de organismo vivo, e reage a estes estímulos “negativos” como um corpo humano reage a uma infecção. Essa estratégia de “adaptação para sobrevivência” pode ser observada em outros shopping centers, como o Shopping Pátio Paulista (Fig. 3), por exemplo, que passou nos últimos anos por uma reformulação drástica em seu espaço e proposta, trazendo para si lojas e marcas cada vez menos acessíveis, e, assim, alterando seu público alvo. A mudança começa a partir do momento em que o ambiente do Shopping se torna saturado demais, além de não ser mais, de fato, uma alternativa ao comércio de rua. Em quase todos se encontram as mesmas lojas, com os mesmos produtos e com o mesmo preço abusivo, o que também é consequência direta dos altíssimos preços para se alugar os espaços de lojas dentro dos Shoppings. Atualmente, verifica-se o processo contrário ao ocorrido dos anos 1960/70 até os anos 2000. O comércio de rua volta a ganhar espaço na cidade a partir do momento em que a população sente a necessidade de uma alternativa aos Shoppings. A Rua Augusta é o maior exemplo disto. Historicamente marcada por sua degradação ao longo dos anos, agora ela vem se tornando o grande centro boêmio de São Paulo, e, acompanhando essa nova caracterização, o comércio de rua voltou a fervilhar naquela região. Por mais que esteja fadada à gentrificação, a Rua Augusta é ainda o maior ponto de encontro de todas as tribos de São Paulo e centro de manifestações artísticas que estão ligadas a essa retomada do comércio de rua. Uma boa situação em que isso se faz presente é o surgimento das novas galerias (Fig. 4), que ocupam antigas casas, ou sobrelojas de edifícios, comercializando artigos de pessoas que não possuem condição de sustentar uma loja própria e muito menos pagar o aluguel de um lote comercial em algum Shopping Center da cidade, e que outrora já foram marginalizadas, porém atualmente recebem a oportunidade de terem a atenção merecida. Nos últimos 10 anos, o que se observa, então, é uma mudança no interesse da elite, já saturada do ambiente genérico produzido pelos grandes centros comerciais. Tal mudança, caso aproveitada, pode canalizar a atenção da camada social de maior influência para os problemas urbanos, e, por consequência, tem potencial para gerar imensos benefícios não só para as classes menos favorecidas, mas para toda a cidade como organismo vivo. Agora, cabe à sociedade tomar medidas que incentivem e apoiem este novo pensamento, que, como já observado, principalmente nas grandes metrópoles europeias, atua positivamente sobre as cidades e seus habitantes.  

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Fig. 1: Shopping Iguatemi Foto: Google Street View

Fig. 2: Shopping Higienópolis Foto: Google Street View

Fig. 3: Shopping Paulista Foto: Google Street View

Fig. 4: Galeria na R. Augusta Foto: Luiz Grecco

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Nota (1) Cf. FRÚGOLI, Heitor. In São Paulo: Espaços Públicos e Interação Social, 1995

Referências VILLAÇA, Flávio; Segregação Urbana, 2003 VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1998 VILLAÇA, Flávio. Reflexões sobre as cidades brasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 2012. JACOBS, Jane; Morte e Vida das Grandes Cidades, Martins Fontes 1983 PINTAUDI, S. M., & FRÚGOLI JR, Heitor. Shopping Centers: Espaço, Cultura e Modernidade Nas Cidades Brasileiras. Editora UNESP, Fundação para o Desenvolvimento da UNESP, 1992 FRÚGOLI JR, Heitor; São Paulo: Espaços Públicos e Interação Social, Editora SESC, 1995 FERREIRA, João Sette Whitaker (Org.). Produzir casas ou construir cidades?: Desafios para um novo Brasil urbano. São Paulo: Fupam, 2012. MARICATO, Erminia (Org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. 2. ed. São Paulo: Alfa-omega, 1982.

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artigo

Políticas públicas e habitação de interesse popular : Conjuntos Jardim Edite e Parque do Gato Luiza Pires Fujiara Guerino Nathalia Proeti Pardo

Esse artigo se propõe a analisar dois conjuntos de habitação social coletiva em São Paulo a partir de sua interlocução com a cidade, tendo em vista suas diferentes localizações, políticas públicas e propostas conceituais arquitetônicas, enfatizando a relação entre sua arquitetura e a cidade. Os conjuntos escolhidos são o Jardim Edite (2013) e Parque do Gato (2004). Este primeiro é projeto dos escritórios MMBB e H+F Arquitetos, implantado próximo à Marginal Pinheiros na Av. Jornalista Roberto Marinho no programa de Urbanização de Favelas da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) que acompanhou a Operação Urbana Consorciada Água Espraiada (OUCAE). O segundo foi desenvolvido pelo escritório Peabiru no bairro do Bom Retiro conjuntamente com o programa Morar no Centro da Prefeitura de São Paulo, inicialmente, funcionou como Locação Social (PLS), mas atualmente faz parte do sistema da Companhia Metropolitana de Habitação (COHAB). Ambos os conjuntos são relativamente recentes – apesar da proximidade temporal, seus contextos políticos e econômicos não podem ser considerados similares – e estão localizados em situações urbanas favoráveis em nível metropolitano, porém com diferentes caracterizações em escala local – sendo essas áreas de urbanização consolidada e central. Outro fator como a já citada política pública do governo que promoveu a construção e gestão de cada conjunto também é levada em conta uma vez que possui relevância na formação e apropriação do espaço. Considerando a produção de habitação social coletiva mais recente de São Paulo e a quantidade de conjuntos que se tornaram segregados da cidade, gerando impactos urbanos negativos, de desvalorização de seu uso, entende-se estas duas propostas a serem analisadas como interessantes do ponto de vista de sua forma arquitetônica, urbanidade e/ou política pública. A partir da análise de cada caso busca-se compreender os fatores que influenciam a relação de um conjunto construído com seu entorno imediato. Esta pesquisa, para realização das análises e posteriormente comparação, apoia-se em critérios espaciais e políticos para fundamentar argumentação. Fatores considerados geradores de diversidade e urbanidade como densidade habitacional, diversidade tipológica, inserção no lote, acesso ao transporte público e localização, são dados base deste trabalho. palavras-chave: política pública, urbanização de favelas, locação social, habitação de interesse social,HIS, urbanidade. 213

Introdução A produção habitacional brasileira passou por muitos períodos a partir do momento que foi pensada como dever governamental, nas últimas décadas, porém, tem ocorrido produção padronizada na forma dos empreendimentos da Companhia Metropolitana de Habitação (COHAB) e do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Quando se fala de Habitação de Interesse Social imediatamente associa-se a ideia de grandes conjuntos habitacionais inseridos nas periferias da metrópole, na forma de pequenos edifícios habitacionais implantados segundo alguma condicionante geométrica, ou inúmeras casinhas alinhadas sobre malha viária inexpressiva. São poucas as produções que fogem deste padrão, principalmente no período mais recente – padrão que busca atender grandes números com investimento mínimo possível. As exceções partem de condicionantes especiais, ou seja, não se alinham com o padrão da produção habitacional recente, seja por se inserirem em uma política pública interessante ou por sua forma arquitetônica. Os conjuntos escolhidos se destacam da produção recente devido às condicionantes apresentadas. Ambos partem de políticas públicas interessantes, os programas Morar no Centro e de Locação Social destacam o conjunto Parque do Gato por permitirem que a população mais carente more legalmente no centro com menores pressões econômicas além de estimular a regeneração desta área importante para o funcionamento da cidade. Enquanto que o Programa de Urbanização de Favelas (PUF), através do conjunto Jardim Edite, considera o valor social da terra e o direito dos moradores de favelas sobre o terreno ocupado há mais de dez anos, direito que segue a avançados conceitos de direitos humanos colocados pelo Estatuto das Cidades e o Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE). Conjunto Parque Do Gato O Programa de Locação Social (PLS), aprovado em junho de 2002 pelo Conselho do Fundo Municipal de Habitação (CMFH) (SALCEDO E MONTEIRO, 2011), foi elaborado durante o mandato da prefeita de São Paulo Marta Suplicy (2000-2004), pensado, a princípio, como parte do programa social de habitação Morar no Centro (PMC). Considerando o esvaziamento populacional e enfraquecimento da atividade econômica na área central da cidade nas décadas de 80 e 90, bem como o crescimento de cortiços e prédios habitacionais abandonados no local, o PMC tinha como objetivo requalificar a região, dotada de infraestrutura, serviços equipamentos urbanos, e recuperar os edifícios antigos, viabilizando o uso habitacional pela camada de baixa renda. Esse modelo de política habitacional permite a implantação de unidades habitacionais em terrenos de propriedade da Prefeitura Municipal, em situação fundiária complexa, além de impedir um processo comum no campo da Habitação de Interesse Social (HIS), que é a venda das unidades pelos moradores, e migração destes para terrenos periféricos. Posteriormente, o PLS foi desvinculado do PMC, dada a necessidade de abranger outras áreas da cidade além do centro. O programa é destinado a famílias com renda de até três salários mínimos, valor insuficiente para arcar com um financiamento 214

para compra de uma unidade habitacional (UH) e faixa na qual o déficit habitacional chega a 90% (SILVA, 2014). Nele é cobrado do beneficiado um aluguel para cobrir despesas condominiais, calculado em função do número de membros e da renda familiar, correspondente, geralmente, a 10% dela (PETRELLA, 2009). Além dos seus beneficiários, estão envolvidos com o Programa de Locação Social a Superintendência de Habitação Popular da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano (SEHAB/HABI), sendo esta o Órgão Gestor, e a COHAB-SP, sendo o Órgão Operador. O programa de requalificação do Centro previa, entre outras melhorias, a criação de parque na Foz do Rio Tamanduateí, ao lado da Favela do Gato. Para abrigar a população dessa favela, o projeto previa a construção de um conjunto de HIS, o Residencial Parque do Gato, ao qual seriam associados equipamentos de saúde, educação e esporte e que teria financiamento externo do Banco Internacional de Desenvolvimento (BID), conforme solicitado pela Prefeitura do Município de São Paulo (PMSP), entretanto, o projeto nunca foi plenamente executado. O conjunto Parque do Gato se localiza na área central do município de São Paulo, Subprefeitura da Sé e distrito do Bom Retiro, na foz do rio Tamanduateí e ao lado da Av. Presidente Castelo Branco. Situa-se, de acordo com o Plano Diretor Estratégico, na Macroárea de Restruturação e Requalificação Urbana, a qual corresponde aos bairros de urbanização consolidada já na metade do século XX, dotados de infraestrutura, acessibilidade e oferta de emprego. Entretanto, essa macroárea tem passado, nas últimas décadas, por um processo de esvaziamento populacional (Art. 155, Plano Diretor Estratégico). Como foi dito, o Residencial Parque do Gato foi construído ao lado de uma área onde havia a Favela do Gato, em uma faixa de 1,5 km de barracos de madeira que margeavam o Tamanduateí. Estima-se que essa favela tenha surgido há cerca de 20 anos, mas em 2001, um incêndio destruiu parte dos barracos. Segundo Salcedo e Monteiro (2011), as famílias realojadas provisoriamente, somadas a 112 outras famílias que moravam sobre tubulações de gasoduto, criaram uma demanda emergencial de habitação social no local. O projeto, entregue ao final de 2004, foi concebido pela COHAB-SP e detalhado pelo escritório Peabiru. Tratando-se se de uma região de urbanização consolidada, o entorno do conjunto é bem servido de transporte público, sendo que há um ponto de ônibus na entrada do conjunto e vários outros nas ruas vizinhas. A estação de metrô da linha azul Armênia dista pouco menos de 1 km, e a Tiradentes, 1,5 km, ambas localizadas na Avenida Tiradentes. Entretanto, não há passarelas de pedestres próximas que possibilitem a travessia do Rio Tietê. Considerando o processo de esvaziamento populacional dos bairros centrais, consta no Plano Diretor Estratégico que deve haver na Macroárea de Reestruturação e Requalificação Urbana um estímulo ao uso habitacional de interesse social, uma tentativa de reverter o processo de periferização das camadas mais pobres. Nesse sentido, o Parque do Gato se classifica como ZEIS 3 (Zona Especial de Interesse Social), estabelecida em “áreas localizadas em regiões com infraestrutura urbana consolidada, de intensa concentração de cortiços, habitações coletivas e edificações deterioradas” (Art. 181, Plano Diretor Estratégico). 215

Quanto ao uso do solo, é possível identificar reminiscências do uso industrial do Bom Retiro instaurado no fim do século XIX, pois ainda são frequentes os galpões industriais e armazéns. Além de indústrias, há o uso comercial ligado a tecelagens entre a linha do trem e o Rio Tietê, no entorno do terreno do Parque do Gato. Atualmente (2015), ao andar nas imediações do terreno, percebe-se um aumento do uso residencial. Observando o uso do solo do entorno, é possível constatar que, apesar de constituir um conjunto exclusivamente residencial, com pouca permeabilidade e cercado por grandes rios ou avenidas o Residencial Parque do Gato está inserido em um contexto urbano, diferentemente de alguns prédios da COHAB construídos em regiões muito periféricas, sem qualquer infraestrutura e urbanidade. Pelo fato de estar em uma região central da cidade, há muitos equipamentos públicos próximos, embora a maioria se concentre ao redor da Estação da Luz, a cerca de 1 km dali. O Parque do Gato é composto por nove blocos residenciais de térreo mais quatro pavimentos, divididos em quatro condomínios independentes. Em cada bloco, há dois edifícios conectados por uma escada comum, tendo o formato H (amplamente adotado nos empreendimentos da COHAB, tendo um deles térreo livre e, o outro, térreo com apartamentos. Ao todo, são 486 unidades habitacionais e, além disso, há também uma creche e um centro comercial (que, apesar de constar no programa original, só foi construído em 2013). Às margens do Tamanduateí, ao norte, onde antes se situava a Favela do Gato, foi implantado um parque linear, inserido na faixa non aedificandi do rio (NETO, 2013). Os prédios laminares têm orientação Norte-Sul, perpendiculares à Av. Castelo Branco e com empena cega voltada para ela, assim, os mesmos têm suas aberturas direcionadas uns para os outros. O lote intercala os espaços condominiais (quatro), delimitados por grades, com áreas de lazer e uso comum para moradores (com bancos, playgrounds e mesas de xadrez nos térreos livres), com os públicos, que são as quadras poliesportivas, ao sul, uma praça seca, na parte central, as circulações viárias e de pedestres

Figura 1: Esquema de implantação do conjunto Parque do Gato. Fonte: NETO,2013, p.93. 216

e o Parque Linear que margeia o Rio Tietê. Também são de acesso público a creche e o edifício comercial. O edifício de uso comercial abriga funções de padaria, tele centro, banca de jornal, centro cultural e farmácia. Orienta-se perpendicularmente à Av. Presidente Castelo Branco, com sua fachada principal e acessos voltados para os conjuntos habitacionais, ou seja, para um caminho de pedestres que leva à creche. O atraso na sua construção fez com que surgisse um comércio informal ao redor da praça central, um dos principais espaços de circulação. A creche segue a orientação do edifício comercial, situando-se entre este e o Tamanduateí (NETO, 2013). O conjunto é acessado por uma faixa local de desaceleração, paralela e conectada à Av. Presidente Castelo Branco, ao sul, que leva às vias e caminhos de pedestres no interior do lote. Não há conexão com nenhuma outra via de automóveis ou caminho de pedestres de fora do lote, o que restringe o fluxo de pedestres dentro do mesmo e prejudica a relação com o entorno. Apesar de ser um elemento previsto em projeto, apenas o condomínio A, mais ao sul, possui portaria de ingresso. Embora a mesma iniba entrada de não condôminos, ela não controla o acesso de moradores e visitantes (NETO, 2013). Há três tipologias dentre as 486 unidades habitacionais: 162 com dois dormitórios, copa-cozinha, sala, área de serviço e banheiro (43,69 m²), 243 com um dormitório, cozinha, sala, área de serviço e banheiro (34,14 m²) e 81 quitinetes com cozinha, sala e dormitório integrados, mais banheiro (30,15 m²) (SALCEDO E MONTEIRO, 2011). De acordo com avaliação pós-ocupação realizada entre junho e outubro de 2007 por Salcedo e Monteiro, quase que a totalidade das áreas dos apartamentos foram consideradas insuficientes, com exceção dos banheiros, que têm boa área. Isso se deve ao fato de as tipologias, principalmente as quitinetes, mal conseguirem acomodar o mobiliário considerado mínimo na pesquisa, além de muitas vezes, abrigarem mais membros por família do que o ideal para o seu tamanho. Segundo os autores, também q a maioria dos apartamentos tem péssima área construída por habitante, considerando 15 m² o valor

Figura 2: Imagem do Parque do Gato e do Parque Linear ao norte, a partir da Marginal Tietê (foto tirada em 20. Julho. 2013). FONTE: NETO,2013, p.95. 217

ideal, pois 66,6% das quitinetes têm menos do que 11,2 m² por habitante, enquanto 81,2% dos apartamentos de um dormitório e 93,7% dos de dois dormitórios estão abaixo desse valor. Conjunto Jardim Edite O conjunto habitacional Jardim Edite foi construído pelo programa de Urbanização de Favelas no território da OUCAE, e localiza-se em parte da área que era ocupada pela favela Jardim Edite. O programa de Urbanização de Favelas tem como foco a regularização fundiária “áreas degradadas, ocupadas desordenadamente e sem infraestrutura” (SÃO PAULO, SP. Secretaria municipal de Habitação, 2015) com objetivo de regularizar favelas e ocupações subnormais, garantindo assim acesso à infraestrutura básica e serviços públicos. A Operação Urbana Consorciada (OUC) é um instrumento urbanístico que começou a ser aplicado no Brasil durante a década de 1990, em paralelo com adoção de políticas governamentais neoliberais. A OUC delimita, na cidade, um território de exceção, onde a legislação urbana não é comumente aplicada e pode ser modificada em função de propósitos colocados pela própria operação, esta tem como principal objetivo coletar recursos da iniciativa privada para financiar obras de infraestrutura na mesma área. Na realidade a OUC permite que a iniciativa privada, mediante investimentos, tenha mais liberdade para moldar a cidade segundo seus interesses, o que segue diretrizes de políticas neoliberais. Esse instrumento alcança arrecadação de grandes valores para melhoria de trechos pontuais da cidade, ao permitir como modificação dos índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, bem como alterações das normas edilícias, criando assim perspectiva de valorização imobiliária e adensamento da região que será revertida em arrecadação financeira para o poder público. (FRANÇA, 2014). Este processo, porém, não ocorre em qualquer área da cidade, por trás das escolhas existem interesses de corporações e de agentes que muitas vezes independem do real interesse público, são áreas com grande potencial de adensamento e valorização, ou que já estão em processo de valorização, tal qual foi o exemplo da Água Espraiada. Segundo que, uma vez que se trata de uma parceria com a iniciativa privada, é necessária a confirmação de que esta se interessa pelo território demarcado e irá investir nele, então o governo injeta inicialmente fundos para garantir e torná-lo um investimento “seguro” e interessante para esta, o que acaba contradizendo o próprio propósito do instrumento (FIX, 2004). A OUCAE teve início em 2001 quando foi aprovada a Lei 13.206 e pretendia ser um estímulo à valorização e reestruturação urbana da zona Sudeste da cidade, em específico a área entre a Marginal Pinheiros e a Av. dos Bandeirantes, ao longo da antiga Av. Água Espraiada, atual, Jornalista Roberto Marinho. A região da Água está encoberta por pequenos núcleos de favelas e habitações subnormais, desde os anos 70, quando havia um projeto de minianel viário que desapropriou muitos terrenos na região, porém após o cancelamento deste, as áreas vazias foram invadidas e ocupadas somando o total de 68 núcleos e 50 mil moradores, somente 218

Figura 3: Esquema de implantação do conjunto edificado. FONTE: Acervo MMBB.

Tabela 1: Dados dos conjuntos Parque do Gato e Jardim Edite. FONTES: Jardim Edite (CORADIN, 2014). Parque do Gato (NETO, 2013).

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a favela Jardim Edite alcançou 12 mil moradores . Ao longo do final do século passado surgiram vários projetos, por parte dos governos municipais, para melhoria e colocação da região (em conjunto com o sudeste da cidade) nos eixo de crescimento a ser explorado como centro comercial, esses projetos eram iniciados em uma gestão e parados na gestão do governo seguinte. Durante esse período a região foi deixada de lado, porém alguns empresários, tendo em vista seu potencial, colocavam investimentos e negociações para que a região não perdesse interesse do governo e da iniciativa privada. No caso da OUCAE, a operação urbana promoveu uma “limpeza social”, em 2001 com o início da operação e com o aumento do potencial construtivo a região tornou-se de fato tabuleiro de negociações e competição. Aos poucos moradores das favelas que já moravam a, pelo menos 10 anos na região e que possuíam direitos à propriedade pela lei de usucapião, eram expulsos para periferias cada vez mais distantes do centro em função de pressões exercidas pelo governo e pela iniciativa privada. (CAVENAGHI, et al., 2013). O próprio processo de desapropriação da favela Jardim Edite se mostrou truculento e contraditório a política colocada pelo Programa de Urbanização de Favelas, primeiramente ocorreram tentativas de negociação com o oferecimento de dinheiro ou promessa de alojamento provisório até a construção do conjunto, parte da população concordou em deixar a região, mas parte não aceitou nenhuma das opções. Após um incêndio duvidoso a população que não havia aceitado partir, acabou sem opções senão aceitar as condições colocadas pela SEHAB. O projeto do Conjunto Jardim edite previu atender 900 famílias moradoras da favela, destas se diz que apenas 254 optaram por continuar na mesma região. Tiago Silva (2014) coloca que a região previa dois zoneamentos, como ZEIS-01 ou como Zona da OUCAE, sendo que foi construído seguindo pressupostos urbanísticos do primeiro zoneamento que permitia Coeficiente de Aproveitamento (CA) de 2,5 x Área do terreno (Índices previstos na Lei de zoneamento nº 13.885). Porém a existência da OUC permitia ainda maiores aproveitamentos (4,0 x Área do terreno) e, portanto, atendimento de pelo menos mais 301 famílias da favela. Não existe motivo aparente para adoção do zoneamento com menores potenciais para a construção do conjunto. “O conjunto de 252 unidades habitacionais (...) apresenta uma densidade aproximadamente três vezes menor do que a favela existente no local anteriormente, porém cinco vezes maior se comparada às densidades do distrito e da Subprefeitura” (CORADIN, 2014:162)

A partir do entendimento dos objetivos do Programa de Urbanização de Favelas que busca alojar a maioria possível dos moradores no mesmo local, a adoção de tais valores torna-se incompatível, principalmente quando se analisa o entorno que é bem servido de transporte pelo trem da linha Esmeralda de Trem, que passa ao longo da Marginal Pinheiros e pelas inúmeras linhas de ônibus que circulam a região. A região é carente de equipamentos, porém devido ao fácil transporte, pode-se ter acesso à estes em pouco tempo de transporte público. Sob o ponto de vista de seu espaço edificado e relação com o entorno este conjunto se destaca em relação à maior parte da produção de habitação social. O conjunto esta inserido no lote de maneira a criar relações com o entorno. O conjunto é conformado por duas quadras, onde estão colocados cinco torres de habitação, três verticais e duas horizontais, além de um restaurante escola, uma Unidade básica de Saúde (UBS), e 220

uma Creche (CEI). Os equipamentos formam o embasamento do conjunto que ocupam o perímetro das quadras, todos os equipamentos têm entradas diretas e independentes voltadas para a rua mais local (Rua Charles Coloumb) permitindo permeabilidade intraquadra sem apelar para grandes vazios. Ainda assim existem trechos sem entradas e sem acessos voltados para a Av. Rberto Marinho que é mais movimentada, para que a rua em frente a estes trechos não perdesse qualidade urbana foram colocadas paredes de cobogós ou gradis que permitem permeabilidade visual, sem criar empenas cegas no entorno do conjunto. Sobre este embasamento estão apoiados os prédios habitacionais, o teto dos equipamentos funciona como pátio comum ao prédio e incluí uma área de lazer e descanso para uso dos moradores. Foram feitas quatro tipologias de apartamentos com metragem entre 50 e 52 m², todas, porém, apresentam o mesmo programa: dois dormitórios, um banheiro, sala de estar, cozinha e área de serviço, em sua análise, Renata Coradin (2014) considera o apartamento suficiente do ponto de vista do conforto e de programa. Nas extremidades de cada bloco estão colocados os prédios verticais transversalmente ao maior lado da quadra, dois na quadra mais próxima à av. Berrini e um na quadra ao lado, estes blocos possuem 17 pavimentos (térreo para equipamento, um piso condominial e 15 andares de apartamentos). Estes blocos são servidos de circulações por escada e elevador. Perpendicularmente a estes, estão colocados os blocos em lâmina, mais baixos com quatro pavimentos e acesso vertical apenas por escadas. Todos os prédios habitacionais possuem janelas voltadas ao exterior que permitem visibilidade da rua e a partir desta, volumetricamente o conjunto dialoga com o entorno de prédios altos, principalmente ao longo da Berrini, mas também com as casas mais baixas, localizadas próximas ao conjunto, através do embasamento. Do outro lado da Rua Charles Coloumb existe uma praça onde foram colocadas quadras esportivas e alguns mobiliários, esta é muito movimentada aos fins de semana por moradores do conjunto e da região, o fato do conjunto concentrar muitos equipamentos atrai parte da população para servir-se destes, potencializando também o uso desta praça.    Conclusão Retomando, a política pública Morar no Centro manifestou a tendência das últimas décadas de retorno ao centro da cidade, prática que tem ocorrido em alguns países, e expressa a valorização da vida urbana, associada com as vantagens de se morar em um local que abriga várias funções e, com isso, diminui a necessidade de deslocamentos. Opõe-se, portanto, ao tradicional modelo de produção de HIS associado à periferização, em que grandes conjuntos habitacionais são construídos em glebas totalmente descontextualizadas do restante da cidade e, portanto, os moradores são privados de vivenciar a urbanidade em suas moradias, além das dificuldades diárias de deslocamento. A Locação Social, por sua vez, mostrou-se interessante por incluir, dentre os beneficiários da produção de HIS, uma população com faixa de renda menor que, inserida no centro, promove a diversidade social do mesmo. Além disso, tal programa evita a expulsão de famílias mais pobres com a requalificação do centro. Em contrapartida, a política pública relacionada com o Jardim Edite difere muito da de Locação Social. Apesar de ambos os conjuntos serem destinados a moradores de

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antigas favelas praticamente no mesmo local, o programa de Urbanização de Favelas aplicado ao Jardim Edite, está inserido na OUCAE, que conta com a participação do capital privado. Isso resulta em um urbanismo submetido aos interesses privados, principalmente quando se trata de uma avenida de grande interesse imobiliário, como a Luis Carlos Berrini. Desse modo, nem sempre os interesses públicos, como uma vida urbana dinâmica e de qualidade, com acessibilidade, infraestrutura, multiplicidade de usos e inclusão social são as principais diretrizes nas modificações urbanas. Por mais interessante que a política pública seja, seus objetivos podem ser distorcidos quando há interesses movidos mais pelo capital do que pelo bem público. A solução projetual adotada no Jardim Edite, porém, atentou-se à inserção do edifício e de seus moradores no contexto urbano. Se, por um lado, a densidade não foi condizente com a demanda da favela e muitas pessoas se mudaram para longe, por outro, evitou-se a segregação do conjunto com o entorno. A presença dos equipamentos permite que o conjunto se relacione também com não moradores, e a clara demarcação dos espaços públicos, de uso condominial e privado, evita o abandono devido à transformação dos mesmos em espaços inertes. Seu gabarito que alterna volumes mais altos e mais baixos permite o diálogo com as diferentes construções do entorno. Há permeabilidade visual mesmo na fachada voltada para a Av. Jornalista Roberto Marinho, onde não há acessos e, com isso, percebe-se uma valorização da rua enquanto local de vivência urbana, tanto que as fachadas são voltadas para elas. A concepção arquitetônica do Parque do Gato assume determinadas características comumente aplicadas nos empreendimentos da COHAB, com elementos inspirados nas propostas do modernismo. No caso do Parque do Gato e de outros conjuntos de HIS, esses elementos não se mostram tão coerentes com a ideia de vivência urbana subentendida na política pública na qual ele se enquadra. Não, há, de fato, uma interlocução evidente com o entorno, considerando que os prédios não se voltam para ele. A falta de conexões viárias ou de caminhos de pedestre interessantes - que façam do conjunto parte de um percurso envolvendo a o resto da cidade - contribui com áreas públicas ermas, tais como a Praça Central e o Parque Linear, situados mais distantes do acesso principal e pouco frequentados. Entretanto, não se pode dizer que não houve uma preocupação com os espaços livres na elaboração do projeto, pois se pensou em áreas de fruição pública dentre os prédios e espaços de lazer, em uma permeabilidade visual, tanto pelo emprego de grades, ao invés de muros, quanto pela presença de um dos térreos livres em cada bloco, e verifica-se uma inserção urbana muito melhor resolvida do que em outros empreendimentos da COHAB na periferia. A partir da leitura desses dois conjuntos, se verificam neles algumas soluções consideradas interessantes, tanto do ponto de vista político quanto da forma arquitetônica, sua inserção no entorno imediato e na cidade. A produção habitacional em São Paulo ainda se mostra insuficiente qualitativamente e o estudo destes conjuntos indicam soluções com aspectos positivos que podem ser aplicados em outras situações, mediante adaptações.

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Nota (1) Dados apresentados por Fiz com base no relatório de impacto ambiental da Operação Urbana Água Espraiada EIA-RIMA), Emurb

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artigo

Reprodução do capital e da sociedade de elite e seus desdobramentos na explosão imobiliária do Brasil entre 2009 e 2012

Pedro Abrantes Andrade

Esse artigo tem como objetivo analisar a formação dos meios de reprodução do sistema capitalista e da sociedade de elite presente no Brasil desde sua gênese e que mantém em suas mãos o poder sobre o governo e sobre as pessoas influenciando-os. A partir dessas duas análises vemos como elas estão intrinsicamente conectadas e relacionadas ao período de expansão imobiliária que o Brasil passou entre os anos de 2009 e 2012 com a criação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e Minha Casa Minha Vida, iniciativas do governo federal em parceria com empresários da construção civil e do mercado imobiliário. A primeira parte relacionada à reprodução do capital é escrita tendo em base o livro Cidades Rebeldes – do direito à cidade à revolução urbana de David Harvey. Utilizam-se os dois primeiros capítulos majoritariamente que tratam do direito à cidade e das raízes do capitalismo e seus métodos de exploração e a forma que são aplicados. Pretende-se dessa forma entender o funcionamento da economia. A reprodução da sociedade de elite é analisada de acordo com o texto Acumulação entravada no Brasil/E a crise dos anos 80 de Csaba Déak. A partir do texto é feita um breve estudo sobre a origem e as características dessa sociedade bem como seus meios de reprodução. Tendo como cenário os fatores que levam a reprodução dos meios econômicos e sociais, olhamos para a situação do Brasil num período específico relacionando os acontecimentos recentes com a estrutura do sistema vigente. Assim, torna possível a discussão dos objetivos e meios pelos quais a ascensão do mercado imobiliário ocorreu e seus eventuais desdobramentos no meio urbano, bem como as formas pelas quais poderia ser diferentes. palavras-chave: reprodução do capital, mercado imobiliário, crédito imobiliário, direito à cidade, boom imobiliário, expansão urbana. 225

Reprodução do capital O capitalismo, segundo Marx, constrói-se a partir da busca da mais valia, isso é, o lucro. Para tanto é necessário uma produção de capital excedente que gere esse lucro. Sendo assim, surge um eterno ciclo de produção de excedente que se transforma em lucro que por sua vez é investido em mais excedente. Claro que ao surgir o primeiro lucro, este pode ser utilizado para satisfazer o prazer do capitalista e assim ser absorvido em necessidades individuas, entretanto, se utilizado dessa forma, este capitalista estará regressando no ciclo do capital e outro que o investir passará a sua frente. Sendo assim, podemos entender o capitalismo como uma eterna luta na qual o indivíduo capitalista se vê sempre forçado a perpetuar o ciclo para se manter como capitalista. Esse ciclo só funciona, entretanto, se houver absorção do capital excedente. Caso contrário, poderíamos dizer simplificadamente, haveria a ruptura desse sistema econômico na forma de uma crise de superprodução. A maneira tratada no presente artigo a cerca da absorção do capital, será urbana. Uma vez que a cidade surge a partir da concentração geográfica e social dos excedentes de produção, a cidade se torna resposta para a absorção desses excedentes. Pela lei do capitalismo, a busca contínua por absorção de excedente faz com que caso um determinado mercado não tenha poder de compra o suficiente para consumir, novos mercados devem ser buscados ou criados. Para criar mercados ou até mesmo tornar possível um consumo em mercados de baixo poder de compra, o capitalista utiliza-se da criação e implantação de instrumentos de crédito e de gastos públicos financiados pela dívida. Para exemplificar voltamos à Paris da metade do século XIX. Nessa época, a capital francesa foi atingida pela crise de 1848, uma das primeiras envolvendo excedente de capital e de trabalho. Para resolver o problema, o recém-nomeado imperador Luís Bonaparte (através de um golpe de Estado em 1851) viu que a solução estava no investimento do capital excedente tanto dentro quanto fora da França. Esse investimento foi feito na forma de infraestrutura urbana como estradas e grandes obras.

Figura 1 - Edifícios altos construídos em Nova York de 1980 a 2010 1.

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Em Paris, porém, temos essa solução mais clara na figura de Haussmann, responsável pela modernização da cidade. Ele recebeu a tarefa de comandar obras públicas em Paris a fim de resolver o problema do excedente de capital e desemprego por meio da urbanização. Com este objetivo, foi concebida uma cidade em grande escala passando pela reformulação de bairros inteiros tornando necessária a criação de instituições financeiras e instrumentos de crédito (crédit mobilier e immobilière). Em outras palavras, Haussmann procurou resolver o problema instituindo um sistema de melhorias urbanas que fosse financiado pela dívida. Um século depois, com o fim da Segunda Guerra Mundial, Robert Moses fez na região metropolitana de Nova Iorque o mesmo que Haussmann havia feito em Paris. Entretanto nos Estados Unidos o processo foi ainda mais complexo, no sentido de que não apenas as obras em infraestrutura foram feitas, mas todo estilo de vida norte americano foi reformulado. Instituiu assim no modo de vida do cidadão a “necessidade” de possuir dois carros na garagem, ar condicionado e mais uma infinidade de eletrodomésticos. Apesar de toda essa estrutura de reprodução do capital, este ainda está sujeito às crises, e estas acontecem. Na ideologia neoliberal predominante nos países capitalistas pós-segunda guerra majoritariamente influenciados pelos Estados Unidos, em caso de crise e conflito entre o bem-estar do povo e das instituições financeiras, estas devem ser privilegiadas. Um exemplo disso pode ser visto no seguinte fato: quando a absorção do capital é dada através da urbanização, um dos personagens principais é o mercado imobiliário e os sistemas de financiamento. Logo, as flutuações do mercado imobiliário estão intimamente ligadas com os fluxos financeiros especulativos. Se um país tem seu PIB fortemente influenciado pelo mercado imobiliário, quer dizer que o financiamento está fortemente ligado ao investimento no ambiente construído, tornando-se assim um potencial de macro crises. Tudo fica visível quando pegamos o exemplo dos Estados Unidos, onde a dívida hipotecária representa quarenta por cento do PIB. A partir dessa mensuração vemos os enormes impactos gerados pela crise de 2007 a 2009. Também é possível visualizar essa relação de macro crises e mercado imobiliário e construtivo através do seguinte gráfico (Figura 1), no qual observamos um aumento surreal na construção de edifícios altos construídos em Nova Iorque totalmente conectados aos períodos de crise: 1929, 1973, 1987, 2000 e 2008. O controle das instituições de crédito somado à detenção dos meios de produção torna possível, de certa forma, o controle do capital sobre a oferta e sobre a demanda. Possuindo esse controle basta que o capital ajuste a ponderação entre oferta e demanda para diferentes contextos garantindo seu maior lucro e sua estabilidade. Para os países emergentes, como é o caso do Brasil, podemos ver a intervenção direta do capital através dos booms imobiliários. No caso dos países desenvolvidos há uma enorme dificuldade para gerar aumento significativo no número de residências. Estimular a demanda por meio da tributação, também não resolve o problema, apenas inflaciona o mercado. Assim, a busca pela absorção do excedente se encontra no investimento exterior e no gasto de dinheiro em transações financeiras com as moradias existentes. A urbanização do capital, concluindo, torna necessária a dominação da classe capitalista não só sobre os aparelhos de Estado, mas sobre toda a população através do estilo de vida, capacidade de trabalho, valores culturais e visão de mundo. Essa classe é minoritária, e na maioria dos casos é na mão dela que se encontra o direito de trans-

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formar a cidade de acordo com suas necessidades particulares, excluindo esse poder do povo, e reduzindo a ideia de direito à cidade para apenas “direito aos recursos da cidade”. O problema poderia ser resolvido caso houvesse um maior controle estatal sobre excedente de produção conquistado através de lutas e movimentos sociais urbanos, entretanto, essa classe minoritária, também detém meios de reprodução social. Reprodução da Sociedade de Elite A reprodução da sociedade de elite será tratada exclusivamente no contexto do Brasil. Essa sociedade se caracteriza por um pequeno grupo detentor do poder que se reproduz desde a gênese do Estado brasileiro. A qualificação ideológica da questão político-administrativa preserva a estrutura econômico-social vigente. As contínuas mudanças na organização do governo, que é influenciado em todas as esferas pela sociedade de elite, desestruturam a atuação do aparelho estatal tornando viável a reprodução desta. Para que isso ocorra, as condições existentes antes da independência precisaram ser mantidas e adaptadas ao novo período. Na esfera econômica temos a introdução do termo expatriação do capital (DÉAK). Este é completamente necessário para que o capital continue sendo gerado, continue pertencendo a classe dominante, e o mais importante, não vá para a população de forma a possibilitar o surgimento de uma alta burguesia capaz de enfrentar a sociedade de elite. No Brasil colônia a lógica econômica se resumia em gerar excedente e enviá-lo para a metrópole, no caso, Portugal. Dessa forma a questão de classe mantinha-se estagnada uma vez que não há oportunidade de ascensão. Ao passo que a colônia cresce e se desenvolve, esse processo de exportação do excedente necessita ser reimposto para que não seja absorvido internamente. Esse processo esteve presente na sociedade brasileira até o momento da independência. Ao separar-se de Portugal, não há mais razões para o excedente não ser absorvido internamente, o que pode resultar em instabilidade da sociedade de elite. Logo, para que este grupo se mantenha, é necessário solucionar o problema buscando meios de absorção no exterior. A forma encontrada é a dívida externa. Portugal havia uma dívida com a Inglaterra, e um dos requisitos para a independência seria a transferência dessa divida para o recém formado Estado brasileiro. Sendo assim, o capital excedente gerado é expatriado, evitando assim a absorção interna. Resumindo, temos que as forças externas que eram exercidas pela metrópole foram substituídas por forças internas produzidas por um Estado institucionalizado criado com o intuito de proteção da reprodução social e também a substituição da utilização do excedente antes feito pela metrópole para a expatriação do excedente. Outro problema surgido é o modo de produção. Ao se tornar independente, a escravidão não foi imediatamente abolida, mas aos poucos a pressão da Inglaterra principalmente, desencadeou em sua abolição. Essa pressão é devido ao advento do capitalismo e a busca por novos mercados assalariado. Nesse ponto, a sociedade de elite brasileira viu-se a necessidade de substituir o modo de produção escravocrata por outro que ainda possibilitasse sua manutenção no poder. 228

As forças de produção que movem a sociedade capitalista podem ser extensivas ou intensivas. Na primeira, nas palavras de Déak “a expansão da forma-mercadoria procede relativamente desimpedida predominantemente mediante a extensão da produção de mercadorias à custa de formas não capitalistas de produção” enquanto na segunda “a expansão da produção fica restrita essencialmente ao aumento da produtividade do trabalho”. A acumulação predominantemente extensiva que acontece no Brasil faz com que a expatriação continue vigente. Há um enorme esforço para que esse capital não seja incorporado ao país dando margem para ascensão de uma classe burguesa. Para amenizar essa acumulação interna muitas vezes empresas nacionais são privatizadas para o capital estrangeiro. Dessa forma aprofundamos o tópico tratado sobre reprodução do capital no território brasileiro, o qual é constituído por uma reprodução da sociedade de elite. Podemos enxergar como o processo de estagnação social necessita de um processo capitalista contínuo e como esse para existir, necessita de uma busca eterna por mercado e áreas de influência. Atualmente observamos nas metrópoles brasileiras um enorme crescimento dos setores imobiliário e da construção civil que se iniciou em 2009 ao desencadear da crise mundial de 2008. A partir das considerações feitas podemos relacionar o poder que a sociedade capitalista exerce na cidade por meio da urbanização para continuar sua reprodução. Veremos a seguir o modo de implantação e as consequências dessas políticas econômicas implantadas na cidade de São Paulo no final da primeira década do século XXI a partir dos novos sistemas de crédito imobiliário e na construção civil de grandes projetos urbanos desencadeando um enorme processo de gentrificação e de expansão do horizonte da mancha urbana.

Desdobramentos no Brasil No início do século XX as reformas sanitárias buscando o embelezamento das cidades começaram a ser feitas. Os fundos de vale tinham seus córregos canalizados dando espaço para grandes eixos viários que podem ser facilmente notados na cidade de São Paulo. Não só essas obras, mas também os loteamentos de alto padrão em áreas nobres dotados de infraestrutura visando “embelezar” a cidade culminaram num primeiro processo de afastamento das populações de baixa renda para as periferias da cidade. Inicia-se também nesse contexto a formação das primeiras favelas e intensifica o processo de exclusão e aumento da desigualdade social. Assim se inicia o século, e ao decorrer dos anos essas características são cada vez mais colocadas em prática a partir dos embates sociais e econômicos que surgem. Na segunda metade do século XX a população brasileira dá um salto de 18,8mi de habitantes para 138mi tornando necessário um enorme aumento na construção de moradia. O que não foi necessariamente feito. Apesar disso, é sabido que a maioria dessa nova população estava residindo nas cidades, mais especificamente nas grandes cidades (Maricato 2000). 229

Figura 2 - Concessões de financiamentos imobiliários 2

A partir dessa demanda habitacional temos em 1964 a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) com a função principal de realizar as funções de crédito imobiliário. Tem-se então o início da grande verticalização dos centros urbanos para abrigar a população atendida pelo financiamento, mudando o perfil das cidades. Entretanto, temos sempre que ter em mente que os programas de crédito e financiamento não atende todas as classes sociais, mas sim as classes que podem pagar as parcelas. Logo, a parte que não é capaz de pagar tais parcelas, e que se encontra nas favelas e cortiços nas zonas centrais das cidades, é expulsa pelas desapropriações de terra e enviada para os limites da mancha urbana metropolitana. Isso ocorre, pois o processo de inflação imobiliária, setor pertencente à classe capitalista dominante, leva em conta a especulação do solo para realizar as desapropriações ao invés de se basear no uso social do solo. Sendo assim não é a população que necessita de moradia que vai morar nos lançamentos em zonas privilegiadas, mas sim a população que pode pagar para morar em zonas privilegiadas. Ou seja, o problema da moradia não é resolvido, apenas cria-se um cenário onde as classes média e alta ocupam os apartamentos recém-construídos nas zonas centrais e a classe baixa é enviada para as periferias (Castro 1999) (Ribeiro 1997).

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2009 – 2012 Como dito anteriormente, o mercado imobiliário é fortemente influenciado pelo governo que por sua vez é influenciado pelo capital pertencente a uma classe minoritária. Ao final de dez/2012 com a queda das taxas de juros os custos de financiamento baixaram possibilitando um investimento mais forte. Sendo esses financiamentos feitos em longo prazo combinando com a estabilidade econômica do país, a segurança desses investimentos também aumentou. Ao mesmo tempo a renda média do trabalhador brasileiro também aumentou devido à queda de juros e aumento da rentabilidade na caderneta de poupança. Todos esses fatores somados desencadeiam na oportunidade de uma camada da população ter acesso ao mercado imobiliário e assim obter a casa própria que há tempos, por meio da propaganda, é considerada um sonho e objetivo na vida do indivíduo (Mendonça 2013). A partir do gráfico abaixo é possível observar como esses fatores mudaram a estrutura da concessão de crédito a partir de 2005. Ao surgir essa parcela da sociedade com acesso a moradia, aumenta-se a especulação imobiliária e a construção de imóveis residenciais. Em 2008, porém, a expansão do crédito imobiliário até então majoritariamente partindo da iniciativa privada passa a ser dominada pela iniciativa pública recebendo uma maior atenção do governo. Isso se deve ao fato de dar oportunidade de moradia para camadas específicas da população antes não totalmente pertencentes às classes privilegiadas pelo sistema de crédito imobiliário. Esse processo tem início em 2007 com a criação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que visa o investimento em infraestrutura econômica e social. Ao desencadear da crise de 2008 houve um aprofundamento nessa direção culminando em 2009 na criação do PAC II e do programa habitacional Minha Casa Minha Vida. Aqui, lembramos a já citada relação das crises com o aumento do mercado imobiliário e construtivo e na busca de investimento no exterior para absorção do capital excedente. Também há a necessidade de expatriação do capital interno acumulado, gerando a reflexão das atuais necessidades e se essas são sanadas ou não com os objetivos desses programas. Importante ressaltar que esses programas são fruto da parceria público-privada dos empresários do setor civil e imobiliário com o governo federal. É evidente que temos aqui forças antagônicas. Por um lado a pressão da sociedade de elite detentora da produção de excedente e representada por parte do governo, e do outro, representantes do governo apoiados pelos movimentos sociais que buscam o direito pleno à cidade. Independente desses choques da estrutura social vigente é fato concreto os dados obtidos a partir da prática desses programas: O PIB brasileiro e da construção civil, ainda negativos em 2009, passa em 2010 para 7,5% e 11,7% respectivamente. A taxa de desemprego de 12,8% em 2003 passa a 5,8% em 2012 nas principais regiões metropolitanas. Destacamos o enorme impacto da construção civil nessa taxa de desemprego, que no referido setor passa de 9,8% para 2,7% no mesmo período. O investimento privado no setor cresceu de 1,8bi em 2002 para 79,9bi em 2011 e os subsídios do governo de 784,7mi para 5,3bi (Maricato 2013) Todos esses fatores e dados são materializados na forma de um processo de multiplicação de torres de apartamento em solo urbano que visam ocupar qualquer espaço

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vazio. Essa busca transborda dos limites centrais atingindo até as regiões periféricas obrigando a população miserável a se alocar para além dos limites de expansão urbana em condições mais precárias ainda e na maioria das vezes irregulares. Áreas de proteção ambiental passam a ser invadidas e favelas em localização estratégica “acidentalmente” queimadas (Finazzi 2012). Essas não foram as únicas consequências desastrosas para os não atendidos pelos programas de crédito. Em São Paulo e no Rio de Janeiro os imóveis sofreram aumentos de 153% e 184% respectivamente. Uma vez que essa expansão imobiliária não é acompanhada do desenvolvimento urbanístico adequado, pelo contrário, tendo leis flexibilizadas para o interesse do capital imobiliário, as consequências ambientais são sentidas em toda a cidade com o déficit da mobilidade urbana que desencadeia as manifestações de junho de 2013. As lutas sociais e a conscientização do direito à cidade surgem ao redor do mundo. Formas alternativas de estruturação da sociedade já estão sendo colocadas em prática em algumas sociedades. O mundo vive um período de efervescência que pode desestabilizar as bases da sociedade de elite e da reprodução do capital. A questão urbana é fruto de um processo parasita ao sistema econômico-social vigente, e a resolução de um está intimamente entrelaçada com a do outro. Notas (1) Fonte: William Goetzmann e Frank Newman, “Securitization in the 1920s”, Working Papers, National Bureau of Economic Research, 2010. (2) Fonte: MENDONÇA, S.J.C., op. cit., 2013.

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artigo

Reurbanização e revitalização de centros urbanos: o caso da Orla de Toronto

Felipe Kilaris Gallani Stefano Damiani Fiocca

Este estudo busca, a partir da análise das revitalizações de orlas que se tornaram comuns a partir da década de 1970 nos países desenvolvidos, estudar os conflitos e dilemas que os governos encontram em tais revitalizações de larga escala. Um dos principais objetivos destas intervenções, especialmente no caso analisado de Toronto, foi recriar a imagem da cidade no âmbito de propaganda, o que gera uma discussão sobre a efetividade destes projetos para melhorar e dar vida aos espaços centrais da cidade. Procurou-se fazer um desmembramento das operações urbanas nas quais a reurbanização de orlas foi o carro-chefe, para criar uma crítica ao caso específico estudado. Muitas das orlas que sofreram este processo eram orlas portuárias, o que confere um caráter industrial no qual a escala principal não é a humana, e por isto estes projetos foram importantes para criar uma interface entre a cidade e a hidrografia que se adeque a uma metrópole moderna. Entretanto, apesar de o amplo espaço público ter sido criado na orla de Toronto, o maior beneficiado foi o desenvolvimento privado, que conseguiu facilitações para a especulação, pode aproveitar de um espaço novo, bem localizado e sem entraves políticos e econômicos para a construção. A contradição está no fato de que o uso tanto dos novos espaços públicos planejados quanto dos novos empreendimentos (habitações, museus, shopping centers...) se restringe a uma população que já tinha acesso a esta infraestrutura, enquanto a cidade real, a periferia, como explica David Gordon, sofre grandes problemas de infraestrutura urbana, de transporte e de falta de habitações de qualidade. palavras-chave: Toronto Waterfront, reurbanização, operação urbana, orla metropolitana. 233

Por meio deste artigo, projetos públicos em escala urbana são defendidos como caminho a um desenvolvimento organizado. Isto, desde que estejam vinculados a estratégias e propostas que não assumam as dinâmicas de mercado como perfeitas às consequentes transformações culturais, sociais, físicas e políticas. Por alimentar a discussão de espaços centrais às cidades e o estímulo à sua vivacidade que este estudo busca o desmembramento do planejamento urbano em seus diversos âmbitos para uma possível – ou não – reaplicação. Assume-se como objeto as transformações recentes ocorridas em Toronto, no Canadá, mais especificamente, o projeto Waterfront Revitalization proposto em 2000. A reurbanização de orlas foi um instrumento muito empregado no planejamento urbano na América do Norte a partir das décadas de 1970 e 1980 (ainda que em Toronto tal processo se iniciou algumas décadas antes), como explica Jussi Jauhiainen em seu artigo “Waterfront Redevelopment and Urban Policy”, por ser considerada uma ferramenta potente contra o comum abandono das áreas próximas à água, especialmente em áreas portuárias. Por trás deste processo existiram grandes mudanças físico-territoriais como a containerização dos portos e o sumiço dos navios de passageiros, mas principalmente a restruturação de espaços urbanos interessantes à especulação, apoiada pelo setor imobiliário nesta época de uma economia muito crescente, “como a consolidação e ativação dos centros urbanos com o reuso de edifícios industriais, e a globalização do sistema financeiro, do mercado imobiliário e de empreendimentos desenvolvimentistas.” (Jauhiainen, 1995). Como será explicado adiante, essas revitalizações na maioria das vezes funcionaram com parcerias público-privadas que vão além da reconstrução das orlas, principalmente no caso do Canadá onde a iniciativa privada responsabilizou-se também por suprir a demanda habitacional. Se a priori a ação de (re)planejar a cidade fundamenta-se em melhorias da qualidade de vida de seus habitantes, principalmente sob aspectos físicos, na prática, tal ação existe graças à ótica de interdependências entre espaços, fluxos e usuários; graças a políticas assertivas, alicerce indissociável ao desenvolvimento urbano. Sob este ponto de vista, o construído fundamentalmente não regulamenta e ordena a cidade. Quem o faz é o partido adotado, o viés no qual o caráter humano deve ser eleito em primeiro plano. Ainda que contrário a grupos e/ou interesses majoritariamente privados, o planejamento urbano vale-se para a transformação mais que espacial, da própria vida de seus habitantes. “Não obstantes os valores positivos assumidos que acompanham a noção de senso de lugar, os críticos recentemente sugerem uma variedade de contextos acadêmicos e públicos. Suas análises sugerem que os lugares são mais do que locais simplesmente geográficos com características físicas e textuais definitivos - lugares também são flúidos, mutáveis, dinâmicos contextos de interação social e de memória.” (Gomez, 2008)

Elegendo a máquina como elemento regulamentador dos espaços da cidade, mesmo que não declaradamente, o Movimento Moderno perdeu-se ao passar das décadas pelo esquecimento da razão essencial à cidade: o Homem. A vida em ambiente urbano não viria a suportar a racionalização excessiva do seu espaço, um modus operandi industrial. História e culturas diversas vezes avassaladoramente apagadas em prol de sua ideologia, seriam as mesmas que exigiriam readequações. A setorização e o tratamento da cidade como uma máquina revelariam por fim a discrepância entre o idealizado e o real, a utopia modernista. 234

O que viria a seguir representaria, senão, o anseio e o desejo ao não repúdio da história, à sua recuperação. Significaria a leitura da cidade como plural, diversificada e dinâmica. No entanto, abriria espaço e permitiria transformações espaciais segundo lógicas de mercado com maior intensidade. Assim, a reinvenção, recriação e reorganização urbana assumiram posteriormente valores econômicos mais importantes que políticos e sociais. Vazios e cheios nas cidades, atrelados à sua infra-estrutura, são então objetos de exploração do capital com voracidade tal, capaz de reverter um ou outro em curto espaço de tempo. À exemplificação, destacam-se os centros urbanos abandonados, os “cheios-vazios” nas cidades. Seja por especulação imobiliária ou até pela gentrificação de muitos bairros, o fomento de interesses financeiros há alguns anos procria a periferização de parcelas sociais. Acaba por restringir qualidades urbanas e/ou infra-estruturais aos mais abastados, ao ponto de excluir, não permitir ou dificultar o proveito homogêneo à sociedade. Para ser mais claro, observemos o caso do centro de São Paulo. Maior cidade brasileira e com maior importância econômica ao país, seu centro enfrenta hoje o paradoxo de ter significativa infra-estrutura, cultura, lazer, história e emprego enquanto edifícios abandonados ou vazios esperam uma valorização da área para cumprirem seu potencial especulativo. Contingentes populacionais deslocam-se para a área diariamente, em viagens de ida e volta, ao mesmo tempo em que poderiam permanecer, criar laços maiores que apenas o de emprego com a região. A visibilidade de um futuro em que parcelas e parcelas de trabalhadores sejam enfim alocados ou incentivados a viver este centro da cidade ainda é, no entanto, ofuscada por interesses maiores – sejam eles do capital ou políticos. Apesar disso, resistem ao sórdido meio regulamentador urbano planos e estratégias de revitalização e ordenação de qualidade. São estes feitos sob a intervenção completa ou parcial pública. Com o óbice político, em sua maioria estendem-se por anos, mas, benefícios e beneficiados são recompensadores. O interessante fato é a repetição deste processo em diversos centros urbanos. A razão: a insustentabilidade neoliberal em regir a ordem das cidades. Ora, se respeitadas as suas particularidades e entendidos os devidos contextos, a similaridade no enfrentamento de problemas e desenvolvimento de soluções urbanas apresentar-se-á em diversas partes do mundo. Seguindo esta linha, é válida portanto a análise e a revisão de projetos na busca de características passíveis de reaplicações. À tona, a análise do Waterfront Revitalization ilustra tal possibilidade, com a intenção clara da sua compreensão. É interessante e extremamente relevante a noção de que os os requisitos de instalações portuárias de segurança fizeram com que o público fosse excluído da maior parte das terras há mais de um século. Como resultado, poucos cidadãos chegaram a caminhar à beira da água nos locais do projeto. Agências de desenvolvimento tiveram alguma dificuldade em atrair o público para os seus terrenos relativamente inacessíveis, e de alguma forma degradados. Enquanto isso, os planos diretores e as diretrizes de desenho urbano voltavam-se ao espaço aberto e ao aumento do acesso à orla, diferindo-se quanto às estratégias físicas utilizadas para atingir esses objetivos. O acesso acaba por não ser uma questão de projeto; é um benefício atribuído pela política pública. Toronto felizmente reservou sua orla ao uso público, vinculando seus benefícios ao desenvolvimento privado. 235

Esquema da história da construção e aterro do porto - Imagem retirada de uma publicação sobre o Waterfront Toronto do site da prefeitura da cidade (http://www1.toronto.ca/wps/portal/waterfronttoronto.pdf)

Localizada no sudeste do Canadá, Toronto tem sua extensa orla às margens do lago Ontário, o qual divide os EUA do Canadá e é altamente urbanizado em seu entorno. O primeiro planejamento oficial que a região de Ontário enfrentou foi feito em 1912, no mesmo ano em que desenvolvia-se um plano de ferrovias para a província. Priorizando fortemente a localização da cidade de Toronto, os dois planos fomentaram a criação no ano seguinte da Unidade Administrativa Metropolitana para desenvolver principalmente um zoneamento urbano. Nesta década, consequentemente, Toronto cresceu aceleradamente e se consolidou. Posteriormente, seu próximo grande planejamento acompanhou a revitalização da cidade, em 1943, com o Toronto’s Master Plan encabeçado por J.P. Maher. Ao invés de projetos infraestruturais isolados, este promoveu o planejamento regional, muito ligado ao que L.I.R. de Anhaia Mello já defendia e procurou implantar em São Paulo nesta década (ver “O Planejamento Regional de São Paulo”). Na década de 1950, a construção de uma ferrovia ligando os subúrbios ao Waterfront permitiu que a atividade industrial naturalmente mudasse a um local menos valorizado, cedendo a região a outros interesses. A partir da década de 1970, foram construídos prédios icônicos de corporações, edifícios de escritórios e residenciais de alto padrão. Após as eleições de 1972, o governo federal visualizou a oportunidade em meio ao processo de tranformação para desapropriar uma grande área do Waterfront (aproximadamente 1,5 Quilômetros lineares da orla, logo a oeste da área do novo projeto Waterfront Revitalization, com uma parte sobreposta) para o projeto Harbourfront. O projeto de 236

reurbanização reformou algumas estruturas como edifícios de uso misto, demoliu para a construção de equipamentos de lazer e cultura na orla e construiu habitações em seu entorno. “Os 92 acres de área do Harbourfront representam uma porção urbana central oeste de Toronto. O projeto foi um presente do governo canadense à eleição de 1972, e originalmente proposto como um parque linear. Após seis anos de debates com a Cidade de Toronto, o governo federal estabeleceu uma agência quase independente, o Harbourfront Corporation, para desenvolver um uso misto na orla. Os parques propostos pela agência, seus programas públicos e o início dos projetos de reurbanização tornaram-se aclamados e populares pelos cidadãos locais.” (Gordon, 1997)

No entanto, a corporação fora requerida a ser autosuficiente e agressivamente procurada pela iniciativa privada em meados de 1980. Protestos públicos em razão dos novos arranha-céus levaram à demanda de mais parques e a uma moratória sobre o desenvolvimento. A Harbourfront Corporation foi por fim desmantelada em 1990, com apenas metade do projeto completo. O programa público para o centro perdeu seu permanente financiamento e várias tentativas de resgate financeiros deixaram o seu futuro a longo prazo incerto. O plano ao qual nos detemos é o Waterfront Revitalization, que revela a área de interesse ao estudo o singular centro (Downtown e não o geográfico Midtown) da orla, chamado de old city ou western waterfront - parte específica da mesma. Provavelmente podendo ser também considerada a parte mais importante da cidade, tanto para o mercado como para o interesse público. Nos anos 2000, as três instâncias do governo se propuseram a liberar 500 milhões de dólares canadenses para o propósito, criando-se uma corporação para administrar o projeto, hoje chamada Waterfront Toronto. Esta corporação não pôde ser aberta para investimento privado, essencial para que as forças do mercado não atrapalhassem o objetivo ao qual foi criada. Sendo este nomeadamente: implementar um plano para melhorar o valor econômico, social e cultural da terra – o que caracteriza uma espécie de gentrificação planejada, como explica Laura Levin, dizendo que a reurbanização desenvolvimentista busca promover uma imagem de “cidade criativa, que no fundo se trata de um mero espetáculo, e não da produção performativa, do espaço urbano” (Levin, 2009) –, criar uma orla de fácil acesso e ativa para a habitação, trabalho e recreação (novamente podendo-se relembrar os princípios citados por Anhaia Mello para o plano regional), assegurar que o desenvolvimento da área seja financeiramente autossustentável, promover o envolvimento do setor privado na região e envolver a participação pública nas decisões. Tudo isto, com a perspectiva de estender-se por trinta anos. Projetos urbanos para a recuperação de orlas extendem-se por décadas até serem finalizados, enfrentando diversos ciclos políticos. É inevitável que o primeiro grupo político do projeto seja eventualmente alterado, o que torna importante a capacidade de adaptação por parte das autoridades do projeto em relação às mudanças políticas em diversos níveis, particularmente com o apoio do governo, com as autoridades locais e com os residentes das proximidades. O problema maior dessas diretrizes, no entanto, provavelmente está na valorização econômica e no envolvimento feroz do setor privado. A valorização econômica acaba por promover a gentrificação, já que não existem nesse caso ferramentas para impedi237

Western Waterfront Masterplan – Imagem retirada da publicação do projeto pela Urban Strategies Inc. (http://www.urbanstrategies.com)

Plano de equipamentos de recreação no parque linear da faixa oeste do Waterfront – Imagem retirada da publicação do projeto pela Urban Strategies Inc. (http://www.urbanstrategies.com)

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-la. Estas ferramentas poderiam ser, por exemplo, a barragem de comércio dos imóveis na região, de modo que não possa haver lucro, como existe nos EUA com as co-ops, ou com a criação de uma propriedade comunitária. Estes cenários são, entretanto, pouco prováveis em Toronto, já que o próprio planejamento vai de encontro à especulação. As principais obras de infraestrutura citadas nas recomendações para o planejamento destacam um novo passeio na orla, com novos prédios ao norte, novos parques e espaços livres, a eliminação da linha férrea Gardiner que será substituída por uma via asfaltada para garantir acesso mais fácil e contínuo à orla, 100.000 novos residentes e 25.000 novos postos de trabalho, como meio de reduzir a expansão urbana, e criar equipamentos culturais e de recreação para os residentes e turistas. Após a implantação da circulação livre de produtos com os Estados Unidos na década de 1980, muitas indústrias na região de Toronto fecharam, acarretando desemprego e um menor acesso a habitação, o que contribuiu para o crescimento das periferias carentes de infraestrutura. O interessante é notar que os governos locais durante o período de expansão, por procurarem evitar este espalhamento, não criaram uma estrutura urbana regional adequada. O presidente do Instituto Canadense de Urbanismo Richard Gilbert, num artigo de 1991, comenta sobre o que considera ser um problema para o desenvolvimento da cidade: “O grande paradoxo é que qualquer sistema baseado em valor de mercado vai estimular o espalhamento e desestimular a construção na área que se quer desenvolver”. Fica claro nesta ideia a consonância com os interesses imobiliários, pois o espalhamento da cidade faz parte da contradição que o sistema capitalista gera, mais especificamente a espoliação e segregação urbana. Os esforços de revitalização do centro em contraposição à consolidação de infraestrutura nas áreas mais afastadas não beneficia a maior parte da população, que inevitavelmente se estabelece nas periferias. Entretanto o presidente do Instituto Canadense de Urbanismo na década de 1990, vê o espalhamento como uma “doença” da cidade, muito similar aos moldes modernistas, e idealiza deixar de taxar a terra de acordo com o valor de mercado para taxar os automóveis, evitando assim que a terra urbana no centro seja muito mais cara para construir do que na periferia, além de melhorar um grave problema de transporte e de qualidade dos espaços livres, o que é venerável. A remoção do ônus sobre os edifícios está de acordo com o incentivo dado ao setor imobiliário que permitiu toda a reurbanização da orla, o problema é que todos os esforços tem como base a promoção da imagem da cidade e a valorização e reocupação do centro, o que constitui melhorias limitadas para a cidade. Podemos ver no trecho a seguir como Gilbert favorece o setor imobiliário facilitando a construção nas áreas ricas, que geram muito mais lucro pelo preço de venda e certamente não atenderão as classes mais baixas pois não existe um programa social integrado no projeto. “A pergunta é como atingir as suas metas usando o setor privado (...) Certamente você tem que ter um sistema tributário que incentive o desenvolvimento e as incorporações (...) Queremos incentivar o desenvolvimento, portanto temos que pensar em tributá-lo menos.” (Gilbert, 1991)

O domínio político do setor privado funciona no mesmo sistema que predominou nos Estados Unidos a partir do século XX, que através das “Comissões de Plano” (comandavam juntamente o Executivo e o Legislativo) constituídas por agentes do setor imobiliário

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e financeiro controlavam as leis de construção. Em ambos os casos o prefeito tinha um poder muito limitado, e o planejamento urbano evitava se focar nas melhorias da cidade real, informal. Grant Ledgerwood comenta em seu livro sobre a transformação da orla fluvial de Londres que estas operações urbanas dependiam da associação público-privada para viabilizar economicamente as intervenções. “O setor privado participou inicialmente na recuperação da orla através de organizações coletivas como o Downtown Lower Manhattan Association e o Toronto Downtown Business Council. Líderes empresariais locais foram muitas vezes incluídos no conselho da agência de recuperação. Por outro lado, quando o setor privado não estava envolvido significativamente na elaboração do Plano Estratégico London Docklands de 1976, a agência teve dificuldade em atrair investimentos.” (Ledgerwood, 1985).

Numa análise formal do conjunto de projetos que compõem o waterfront Revitalization, pode-se observar que o espaço proposto tem qualidade urbana. Os problemas só aparecem em uma análise voltada aos aspectos políticos e sociais, que revelam as reais melhorias (ou falta delas) para a maior parte da cidade. A pergunta que queremos responder no final é se o fato destas intervenções nas orlas metropolitanas terem usado um amplo apoio do setor privado para se viabilizar não gera problemas desde que o planejamento seja bem elaborado (já que estamos falando de contextos nos quais prevalece uma forte economia de mercado), ou se as reurbanizações surgiram fundamentalmente para reaquecer a valorização de áreas centrais e facilitar a especulação imobiliária. Quando vemos que o discurso de Richard Gilbert em 1991 de que a revitalização vai ajudar a suprir o déficit habitacional ficou apenas no discurso duas décadas depois (foram feitos apenas empreendimentos habitacionais com um preço de mercado não compatível com a população incluída no déficit), ou quando Laura Levin considera que a reurbanização como foi feita se trata apenas de um tratamento de fachada da cidade, sem a “produção performativa do espaço urbano”, podemos suspeitar que o foco destas operações é as prioridades do setor imobiliário, e não uma cidade menos segregada, mais dinâmica e mais viva.

Bibliografia BASSETT, Keith; GRIFFITHS, Ron; SMITH, Ian. Testing Governance: Partnerships, Planning and Conflict in Waterfront Regeneration. Urban Studies, Volume 39, Nº 10, pp. 1757-1775, 2002. University of Bristol. GOMEZ, José Edgardo Abaya. Waterfront design without policy? The actual uses of Manila’s Baywalk. Cities, Volume 25, N°2, Abril 2008, pp. 86-106. GORDON, David L. A.. Managing the Changing Political Environment in Urban Waterfront Redevelopment. Urban Studies, Volume 34, Nº 1, pp. 61-83, 1997. University of Glasgow. JAUHIAINEN, Jussi. Waterfront Redevelopment and Urban Policy: The Case of Barcelona, Cardiff and Genoa. European Planning Studies, Volume 3, N° 1, 1995, pp. 3-23. Journals Oxford Ltd. LEDGERWOOD, Grant. Urban innovation: the transformation of London's docklands, 1968-84. Aldershot. Gower. 1985. 178 p.

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LEVIN, Laura. SOLGA, Kim. Building Utopia: Performance and the Fantasy of Urban Renewal in Contemporary Toronto. TDR/The Drama Review, Volume 53, N° 3, pp. 37-53, 2009. New York University and the Massachusetts Institute of Technology. REEVES, Wayne C. Visions for the Metropolitan Toronto Waterfront, II: Forging a Regional Identity, 1913-1968. Centre for Urban and Community Studies, Universidade de Toronto, 1993. (Artigo inicialmente desenvolvido para o Departamento de Planejamento de Toronto Metropolitano).

Referências http://www.waterfrontoronto.ca/ http://www.urbanstrategies.com/project/toronto-waterfront-revitalization/ GILBERT, Richard. Soluções de Vida Urbana. Anais da Câmera Municipal de São Paulo: Instituto de Engenharia, 1991. Páginas 105-130. Biblioteca do Departamento de Documentação e Informática da Câmera Municipal de São Paulo. JONES, Andrew. Issues in Waterfront Regeneration: More Sobering Thoughts - A UK Perspective. Planning Practice & Research, Volume 13, N° 4, 1998. pp. 433-442. GILLILAND, Jason; GAUTHIER, Pierre. The study of urban form in Canada. Urban Morphology, Volume 10, N° 1, 2006. pp. 51-66.

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artigo

Sistematização do ambiente construído e seus impactos: uma análise da utilização do space syntax nos cursos de arquitetura de universidades brasileiras

Seoung Koo Moon Tainá Sato Sophia

Desde a Revolução Industrial, a preocupação com a rápida urbanização tornou-se uma constante, principalmente no que diz respeito aos impactos, tanto sociais, econômicos e ambientais, causados pelo ambiente construído. Este artigo analisa o uso da sintaxe espacial na simulação dos prováveis efeitos de projetos sobre os usuários e passantes, sejam eles construções ou espaços livres, além de avaliar como essa teoria é aceita pelos cursos de arquitetura e urbanismo em São Paulo. O texto está dividido em três partes. Primeiramente, é discutida a preocupação com os impactos socioespaciais desde meados do século XIX, assumindo-se que a expansão urbana de cada sociedade gerava uma ordem espacial distinta da outra, tanto pela forma das edificações quanto pelos padrões culturais. Em segundo, ele aborda sobre a teoria da sintaxe espacial, seus conceitos e análises a partir de espaços livres ou construídos. No space syntax, esses espaços são entendidos como vazios entre as paredes, cercas e outros obstáculos que limitam a passagem de pessoas e o campo visual. Por último, considera-se a utilização dessa sistematização e sua frequência de abordagem em várias universidades do mundo e avalia-se sua aceitação ou recusa, bem como o porquê, em algumas universidades de do Brasil, especificamente UFRGS e USP. palavras-chave: space syntax, sistematização, urbanização, impactos, simulação, universidades. 243

1. Introdução Derivado do êxodo rural, de habitações e infraestruturas insuficientes e precárias para abrigar a população urbana, de poluição e insalubridade, o início do pensamento urbano data da segunda metade do século XIX, logo após a Revolução Industrial. A partir dos problemas causados pela rápida urbanização é que se começam a serem pensadas soluções de organização e lógica para as cidades. A questão da higiene pública, a circulação do ar e a questão da mobilidade levam a uma configuração e determinação das espacialidades no ambiente urbano, que acarretam indiretamente nas relações sociais. É a configuração social que serve de base para toda a questão urbanística. A partir das produções e inovações industriais, as transformações consequentes acontecem e de forma drástica e rápida. Mudanças intelectuais e produtivas, com a criação de um “novo homem” e do modo de produção fordista, a formação de uma nova mentalidade, tanto burguesa quanto operária, através das ideias iluministas, e os novos desejos tanto políticos quanto econômicos, pautados no ideal capitalista, resultaram no surgimento do homem moderno, da modernidade. E isso se repercute nas artes, na forma de ver o mundo, pelas vanguardas, e na organização das habitações, repetidas uma ao lado da outra, visando o melhor aproveitamento espacial. As destruições de grande parte da Europa pelas guerras mundiais deram oportunidade aos arquitetos e urbanistas à reconstrução das cidades. As destruições das construções do passado seriam uma forma simbólica de construir e representar a nova mentalidade moderna: a manifestação burguesa de rompimento com o passado e emergência do novo, moderno. No entanto, o fracasso do movimento moderno, desse “novo”, foi a absorção e entendimento do que seria essencialmente o movimento moderno. E esse fracasso é simbolizado nos conjuntos habitacionais criados: a espacialidade criada por esse movimento originou uma formação social segregada, como aconteceu no Estados Unidos, com a formação de guetos nos conjuntos habitacionais. O que esse artigo procura mostrar é a preocupação com a questão urbanística: a espacialidade criada pelo ambiente construído, acarretando na configuração e nas relações sociais. Tal preocupação resulta na criação de softwares, como o da sintaxe espacial (SS). 2.

Princípios Básicos do Space Syntax

2.1. Motivações para a criação do método Os planejamentos urbanos que geraram edifícios isolados sem ter a correlação com o todo fizeram com que surgissem novos pensamentos que pudessem incluir o social com o espaço, deste modo, Jane Jacobs, em seu livro The Death and Life of American Gran Cities (Jacobs, 1961), explora elementos da cidade que podem gerar diversidade no ambiente urbano, alegando que essa diversidade torna a cidade mais segura aumentando o contanto com o público. “A mixture of uses, if it is to be sufficiently complex to sustain city safety, public contact and cross-use, needs an enormous diversity of ingredients” (Jacobs, 1961) 244

Dessa forma, as ruas, junto com a tipologia dos prédios, são consideradas, segundo Jacobs, o coração da cidade, elas deveriam estar vivas com a diversidade do seu uso, através da presença de pedestres sendo moradores e visitantes usufruindo o espaço. A autora também propõe quatro definições para que o uso múltiplo das ruas e dos distritos fossem possíveis: primeiro, os distritos deveriam garantir mais de uma função para o uso de mesmas instalações em tempos diferentes; segundo, os blocos deveriam ser menores para gerar novas possibilidades de caminhos entre os pontos de partida e de destino; terceiro, as edificações deveriam ter idades variadas a fim de acomodar pessoas, serviços e comércios diferentes; e por último, a cidade deve ser capaz de abrigar um número elevado de pessoas, incluindo os moradores para promover uma visibilidade da cidade viva. “The necessity for these four conditions is the most important point this book has to make. In combination, these conditions create effective economic pools of use. Given these four conditions, not all city districts will produce a diversity equivalent to one another. the potentials of different districts differ for many reasons; but, given the development of these four conditions, ... , a city district should be able to realize its best potential, wherever that may lie.” (Jacobs, 1961)

Entre a metade de 1970 e nos meados de 1980, Bill Hillier, Julienne Hanson e outros colegas da Bartlett UCL, proveram uma forte base conceitual e empírica para a ideia de Jacobs, dando o intuito de que a relação entre o espaço e o meio físico são interligadas, sendo responsáveis em criar essas ruas ativas, vivas e um senso urbano de lugar. Essas pesquisas feitas, examinam a relação entre o espaço físico e a vida social, ou mais precisamente, uma relação entre “o conteúdo social no padrão de espaço e o conteúdo espacial na padrão social.” (Hillier & Hanson, 1984) Dessa forma, o trabalho de Hillier evidencia que um layout espacial de um assentamento contribui para o lugar em que ele se insere e também para a comunidade local. A partir disso a teoria da sintaxe espacial acaba apontando para duas possibilidades: que o espaço deve ser pensado antes da forma, e segundo, ao se levar em conta o espaço, deve ser priorizado uma possível “rede” de caminhos no assentamento. Somente então será capaz de estabelecer um melhor layout para uma parte específica da cidade que está sendo concebida ou reformulada. “Essa lógica se refere ao reconhecimento de uma relação objetiva entre a estrutura relacional e geométrica dos assentamentos e as restrições que elas impõem ao movimento e copresença, como sistema de barreiras e permeabilidades.” (Netto, 2013).

Com isso se mostra que o ambiente construído, tendo o seu valor espacial, desempenha um papel tão importante em apoio a vida de uma rua, além de mostrar o porquê uma rua é ativa e outra não é devido as evidências quantitativas em relação ao físico e ao humano. Assim, a sintaxe espacial é um modelo que foi proposto para a análise da forma urbana, baseando-se na representação bidimensional, pela qual a realidade e baseada por símbolos e as relações entre os espaços são expressas por métodos operacionais. Esse modelo de análise auxilia na compreensão da relação de um determinado objeto arquitetônico com o seu entorno, assim como a influência desse espaço nos seus usuários. 245

“A sintaxe espacial emergiu nos anos 1980 como uma teoria sistemática sobre fenômenos urbanos vistos em suas relações sistêmicas vivas e aparentes, capaz de evocar com clareza uma dimensão social do espaço antes só intuída, em um campo onde predominavam a visão cognitiva incipiente das relações humano-espaço nas teorias da percepção, a limitação da ação econômica nas poderosas explicações da economia espacial, e as reduções da prática humana ao trabalho, das relações sociais às relações de classe e do espaço às relações centro-periferia na geometria urbana marxista.” (Netto, 2013)

2.2. Apresentação do Space Syntax Na sintaxe espacial o espaço é representado através de mapas e grafos que descrevem as suas diferentes propriedades, a análise e feita assumindo três conceitos básicos referentes ao espaço: Isovist: Polígono ou área de visibilidade que representa o volume de espaço visível de um determinado ponto. Espaço Axial: Linhas de visão e possíveis caminhos de serem criados. O espaço é representado através de grafos nos quais os compartimentos são representados através de nós e as ligações através de vetores, essa representação reforça a noção de espaço, acessibilidade com possíveis caminhos de serem criados e permeabilidade. Espaço convexo: Espaço ocupado é considerado um vazio ocupado e representado através de formas convexas. (Klarqvist, 1993) A análise espacial utiliza as medidas sintáticas que quantificam as relações entre os diferentes tipos de espaços no sistema, definindo o grau de integração, profundidade, e entre outros. Integração: hierarquização espacial que quantifica o grau de acessibilidade de um espaço. Quanto mais profundo for um espaço menos acessível ele será, dessa forma ela mede o grau de centralidade de um espaço, quanto mais integrado for um edifício mais uso informal e intenso ele terá. Profundidade: reflete o grau de esforço necessário para um objeto ou espaço alcançar o outro. Um espaço está a profundidade 1 de outro se for diretamente acessível por ele; e estará a profundidade 2 se for necessário transpor alguma obstrução intermediário. Quer a integração quer a profundidade representam medidas topológicas e não geométricas. Valor de Controle: E a medida da dinâmica local, expressa a quantidade proporcional de acessos que um determinado espaço tem em relação aos adjacentes, além de estabelecer grau de importância do mesmo como um ponto de passagem. Contiguidade: mede o número de lugares vizinhos que são diretamente conectados ao espaço. (Klarqvist, 1993) 3.

Utilização do método em universidades brasileiras

Foi analisada a adaptação de universidades de arquitetura e urbanismo ao software, o estudo aprofundado da sintaxe espacial ou não e sua aplicação no ensino. Os métodos utilizados para essa análise foram entrevistas diretas (ao vivo) ou indiretas 246

(via email). Foram entrevistados os professores Frederico Holanda, da Universidade de Brasília, Renato Saboya, da Universidade Federal de Santa Catarina, Romulo Krafta, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Vinicius Netto, da Universidade Federal Fluminense e Raquel Rolnik e Nabil Bonduki, ambos da Universidade de São Paulo. No entanto, somente o professor Romulo Krafta, via email, e Raquel Rolnik, diretamente, responderam as entrevistas. 3.1. Universidade Federal do Rio Grande do Sul Entrevista com Romulo Krafta, professor doutor titular da UFRGS, com experiência na área de Planejamento Urbano e Regional, com ênfase em Técnicas de Análise e Avaliação Urbana e Regional, atuando principalmente em análise espacial urbana, modelos configuracionais urbanos, configuração espacial urbana, simulação da dinâmica espacial e desenho urbano. 1. O Space Syntax (ou Sintaxe Espacial) é utilizado no ensino de planejamento urbano da UFRGS? “Há talvez dois professores que usam SS nas disciplinas práticas de urbanismo. Estas são disciplinas basicamente de Desenho Urbano, e as medidas sintáticas são usadas para analisar os layouts viários.” 2. Se sim, como o Space Syntax ajuda na compreensão das relações urbanas? “SS descreve relações espaciais e pretende aproximar propriedades espaciais das cidades às dinâmicas socioeconômicas, como distribuição do uso do solo, fluxos, esse tipo de coisa. A chamada teoria da SS é fundamentada num modelo de acessibilidade (que na SS leva o nome de assimetria relativa, ou integração). Acessibilidade normalmente é definida como um somatório de distâncias de um ponto a todos os demais de um mesmo sistema. Acessibilidade tem sido usada para estudos urbanos desde a década de 50, mas o Hillier acrescentou ao modelo original uma descrição de espaço e de distância particulares (espaço descrito como linha axial, e distância medida topologicamente); com isso ele obteve uma representação muito econômica e sintética da estrutura espacial da cidade. Estudos sugerem que acessibilidade é uma força indutora poderosa nas cidades, condicionando fluxos e usos do solo, e, por consequência, variáveis socioeconômicas, como valor da terra e segregação socioespacial.” 3. Acredita no uso desse software para a otimização de projetos urbanos? “SS é um pequeno nicho dentro de uma área maior conhecida como análise espacial. Entendo que análise espacial é essencial para o entendimento da constituição e dinâmica das cidades. O software clássico da SS, que produz basicamente as medidas de integração, controle e escolha é apenas um dentre uma variedade de aplicativos existentes, que não para de crescer. Nós aqui no nosso GP temos 3 diferentes softwares, que calculam dezenas de propriedades espaciais e funcionam como sistemas de suporte à decisão em Desenho e Planejamento Urbano. O software da SS tem sido usado (foi utilizado pela primeira vez em aplicações de projeto urbano pelo Norman Foster no estudo que fez para a área da Kings Cross, em Londres) para auxiliar na análise de projetos urbanísticos. Basicamente o que ele pode revelar, na comparação entre diferentes alternativas de projeto, é, primeiro, o efeito do novo layout sobre a distribuição da acessibili247

dade no sistema urbano em que vai se inserir, e como consequência, a adequação das prescrições de uso do solo, atividades e previsão de animação urbana decorrentes. Eu tenho usado em trabalhos de elaboração de Planos Diretores vários modelos desse tipo, que tem me permitido não apenas entender e representar as cidades em questão, como testar proposições urbanísticas e até descrever alguns efeitos de forma mais sintética”. 4. As universidades brasileiras deveriam se aprofundar no estudo desse software? “Não há muito o que aprofundar ‘nesse software’, como dizes, mas há sim muita necessidade de melhorar a capacitação de alunos e pesquisadores em análise espacial urbana. Veja que não há no Brasil, escolas ou cursos de planejamento urbano, como existem em quase todos os países; aqui os planejadores urbanos são arquitetos, cujos cursos de graduação dedicam uma fração do tempo ao estudo da cidade. Então, a rigor, não existe a profissão de planejador urbano aqui, e todo mundo que faz planejamento urbano neste país é basicamente amador. Acho que as universidades deveriam investir mais em pesquisa sobre análise espacial e produzir seus próprios softwares. Digo isso assim porque análise espacial urbana não é apenas uma questão de aplicar este ou aquele software, até porque nenhum deles produz análise, não é mesmo, o software realiza uma ou mais operações matemáticas que produzem um ou mais resultados numéricos e/ou gráficos, mas a análise quem produz é o analista, que apenas usa o software como uma ferramenta, então o que é preciso é desenvolver capacitação para análise urbana, o que inclui a formulação de métodos analíticos novos e apropriados para realidades específicas, e, como decorrência, produção de software que instrumentem esses métodos analíticos. Por exemplo, uma aluna minha de mestrado se propôs a estudar dispersão urbana no Br e para isso teve que desenvolver um software específico que mede quantitativamente a dispersão. Outro aluno de doutorado está estudando uma suposta relação de criticalidade entre habitação e serviços urbanos, baseada numa distância máxima ponderada, e para isso teve que construir um software para calcular isso. A idéia básica é essa, quer dizer, não simplesmente usar métodos e instrumentos existentes (veja que a SS e seu software foram desenvolvidos na Inglaterra e servem muito bem para descrever relações entre espaço e desempenho em cidades britânicas, mas não têm a mesma eficácia para cidades construídas a partir de grelhas mais regulares, como as americanas), mas desenvolver métodos e técnicas de análise espacial próprios e adequados. Não obstante, acho que um começo disso, seria conhecer e utilizar o que já existe, como forma de se meter no tema, motivar pessoas, esse tipo de coisa”. 3.2. Universidade de São Paulo Foi entrevistada diretamente a professora Raquel Rolnik, professora doutora da USP, com experiência na área de Planejamento Urbana e Regional, foi Diretora de Planejamento da cidade de São Paulo e consultora de cidades brasileiras e latinoamericanas em política urbana e habitacional. Foi também Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades entre 2003 e 2007. É autora de livros e artigos sobre a questão urbana e foi Relatora Internacional do Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU (2008-2014). A entrevistada não conhecia o software em estudo, tampouco como ele era executado. Aparentemente Rolnik estava finalizando a criação de outro software que tinha funcionalidades parecidas com a sintaxe espacial, ainda que desconhecia o mesmo. 248

4.

Conclusões e pontos de vista

A Sintaxe espacial aborda uma relação entre o meio físico, o espaço vivenciado nas cidades, e o meio socioeconômico ajudando a realizar análises e dados relacionados a acessibilidade e a integração contribuindo para a optimização de projetos urbanos. A área de estudo dela, a analise espacial, aborda um vasto campo de conhecimento a ser desenvolvido, sendo possível a criação softwares de outros gêneros que possam identificar e auxiliar outros temas de fenômenos urbanos. A partir das entrevistas, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul possui uma maior afinidade com o programa space syntax, sendo utilizado nos grupos de projeto na área do urbanismo e talvez em outas disciplinas de desenho urbano. Além disso, a universidade já teve iniciativas em desenvolvimento de programas que auxiliam no desenho e no planejamento urbano. Quanto a universidade de São Paulo, não houve conhecimento sobre o software, devido a sua ausência nas disciplinas de planejamento, desenho e organização urbana, além do desconhecimento da SS pela entrevistada. Uma outra percepção e que o principal problema apontado não e o desuso da sintaxe espacial, mas a ausência de uma base forte para a formação de novos planejadores urbanos que possam aprofundar sobre a área de análise espacial, além de poder relacionar com os problemas urbanos que aparecem no pais. Assim, o software Sintaxe Espacial, deveria ser aplicado na FAUUSP devido ao auxilio que esta ferramenta dá aos seus usuários, além de poder estimular os alunos da graduação a buscarem e terem uma maior proximidade na utilização de programas, que vem sendo estudadas e abordadas pelas outras universidades do exterior. Além disso, a aplicação do seu uso seria o primeiro passo a desenvolver outros tipos de softwares e métodos com funções e temas distintas a SS, mas que poderiam auxiliar nas soluções urbanas para as cidades brasileiras.

Referências bibliográficas Hillier, B., & Hanson, J. (1984). The social logic of space. Cambridge University Press. Jacobs, J. (1961). The death and life of great American cities. New York: Vintage Books. Klarqvist, B. (1993). A space syntax glossary. Nordisk Arkitekturforskning, 2, 11–12. Netto, V. de M. (2013). O que a sintaxe espacial não é - Netto (2013).pdf. Arquitextos. Hillier, B. (1998). Space Is the Machine: A Configurational Theory of Architecture. Cambridge University Press.

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artigo

Urbanismo e mobilidade em São Paulo: um estudo sobre as possibilidades de aplicação do transpor te fluvial para passageiros nos Rios Pinheiros e Tietê

Fernanda Ormelezi Pitombo Leticia Pose Hirata

O sistema de transporte fluvial de passageiros é parte integrante do sistema de transporte público de cidades como Roterdã e Amsterdã, na Holanda; Nova Iorque, nos Estados Unidos; Paris, na França; e Londres, no Reino Unido. No Brasil, mais especificamente em São Paulo, esse tipo de transporte não compõe o sistema de deslocamentos dentro da cidade - apesar de ser o meio mais barato e limpo - principalmente pelo fato de a cidade possuir uma estrutura rodoviarista, a qual encontra-se saturada por preconizar o transporte individual e privado. O objetivo deste artigo é estudar a inserção do transporte fluvial para passageiros no Rio Pinheiros e seus impactos no entorno imediato e em toda a cidade de São Paulo, tomando como referência o projeto já desenvolvido no Rio Tâmisa, em Londres, e o projeto do Hidroanel Metropolitano de São Paulo. Para isso, pretende-se primeiramente entender o processo histórico que gerou as problemáticas urbanísticas enfrentadas hoje pelo Rio Pinheiros (e todos os rios da cidade): sua poluição e invisibilidade dentro da dinâmica urbana. Pretende-se também compará-lo ao projeto de reinserção urbana do Rio Tâmisa, que apresentava uma situação semelhante. Com enfoque no transporte fluvial urbano, será estudado o projeto do Hidroanel, que apresenta ideias concretas para a aplicação desse tipo de transporte. Para a análise desses projetos, serão levantados alguns dados populacionais, como: números de deslocamentos, quantidade de vias e número de veículos, para compreender a real demanda de transporte dessa região da cidade de São Paulo. Desta forma, esse artigo se propõe a pensar alternativas para a melhoria da mobilidade urbana, baseando-se em sistemas de transporte hidroviário existentes em grandes metrópoles, além de estudar sua viabilidade e a possível integração dele com os outros sistemas de transportes utilizados nas grandes cidades. palavras-chave: transporte fluvial, São Paulo, Rio Pinheiros, Rio Tietê Rio Tâmisa, Hidroanel

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1. Contextualização e problematização A capital paulista, extensa e verticalizada, encontra-se hoje em grande parte situada entre as várzeas dos rios Pinheiros e Tietê. O Espigão Central, que abriga a Avenida Paulista, complementa o sistema de várzeas, representando uma plataforma interfluvial que os divide. Durante muitas décadas, as marginais do rio Pinheiros e Tietê contavam com a presença de chácaras pobres, moradias de trabalhadores, “pastos” de areia, cascalho e argila. Antes de grande alteração de seu traçado, os dois rios receberam ainda a instalação de clubes de recreação, afirmando num período singular da história da cidade uma tentativa de integração da cidade com seus cursos d’água. A grande obra de retificação dos rios Pinheiros e Tietê iniciou-se em 1928 e estendeu-se até a década de 1950. Durante esse processo, muitas atividades vieram se instalar em suas margens: algumas moradias esparsas, blocos residenciais populares, fábricas isoladas, autoestradas e parques. A cidade começava a se tornar burguesa e amplamente enriquecida com os lucros vindos do comércio do café. O advento da indústria e do automóvel também contribuíram para o grande crescimento de São Paulo que, de 25 mil habitantes em 1860, chega a 240 mil na virada do século XIX e chega aos 10 milhões após 100 anos. Do modelo europeu (parques e bulevares) adotado até a década de 1930, a cidade dá espaço para a implementação de um estilo norte-americano de urbanização, quando o Plano de Avenidas, idealizado por Ulhôa Cintra e Prestes Maia, leva o crescimento de São Paulo para uma direção majoritariamente rodoviarista, que transforma o automóvel como o bem material mais desejado, e insere as margens do rio Pinheiros e Tietê no sistema básico de avenidas da cidade, configurando-os como o seu principal anel. Uma alteração significativa neste cenário ocorre na década de 1960, quando as vias expressas que margeiam os dois rios (já canalizados e retificados) são concluídas e passam a representar o sistema principal da metrópole, conectando-se posteriormente às saídas oeste, leste e norte da cidade. Da mesma forma que elas possibilitam rápida circulação de automóveis, essas avenidas permitem a formação de grandes vazios junto

Figura 1 – Rio Pinheiros na década de 20 Fonte: http://casa.abril.com.br/materia/o-rio-pinheiros -e-o-plano-de-avenidas-de-prestes-maia

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Figura 2 – Rio Pinheiros atualmente Fonte: http://vilamundo.org.br/2013/04/e-possivel-ressuscitar-o-rio-pinheiros/

às várzeas, atraindo novos programas privados que necessitam de um grande terreno e fácil acesso, como: hipermercados, shoppings centers, escritórios de grandes empresas, entre outros. O sistema ferroviário, instalado nas margens nos primeiros anos de industrialização, foi utilizado posteriormente para o transporte metropolitano e algumas construções fabris foram desativadas. Nesse momento, o sistema hidrográfico da capital é duramente atingido, pois a ocupação dos territórios da região não contribuiu para o aproveitamento das margens e dos rios como espaço público habitável. Um local, que antes se harmonizava com a paisagem e era parte integrante do cotidiano da cidade, passou a ser esquecido pela população que habita ou transita em seu entorno. Ao serem retificados, canalizados e delimitados por vias expressas de tráfego, os rios Pinheiros e Tietê foram isolados do convívio da população, antes mesmo de terem suas áreas deterioradas pela poluição. Sem um plano paisagístico adequado, imersos em processos de contaminação e ainda sob riscos de inundações, os rios tentam se ajustar à escala metropolitana de São Paulo, mas cada vez mais se desintegram do território. Apesar de haver um sistema de tratamento de esgotos desenvolvido nas últimas décadas, os rios ainda continuam sendo o seu destino final, o que aumenta as áreas com riscos ambientais e dificulta o fornecimento de água para a Região Metropolitana de São Paulo. Complementando o sistema de circulação que passava a dominar o cenário urbano da capital paulistana na tentativa de organizar seu crescimento descontrolado, foram abertas avenidas de fundo de vale, afirmando a prioridade do fluxo de veículos. Nas décadas de 1980 e 1990 são construídas as avenidas Vinte e Três de Maio, Nove de Julho, Bandeirantes, Nova Faria Lima, Hélio Pellegrino e Água Espraiada. Por fim, na tentativa de adiar o inchaço de transportes sobre a cidade, foi realizado o rodoanel, que reafirma a ideia radiocêntrica do Plano de Avenidas e ainda causa grande impacto na paisagem. Atualmente, a cidade de São Paulo abriga uma população de 11.895.893 de pessoas (IBGE,2014). Segundo a Prefeitura de São Paulo (2010), a frota da cidade conta com 5 736 377 veículos destinados ao deslocamento de pessoas e destes, somente 14 932 são destinados ao transporte público (CET, 2010). Como forma de melhorar essa estatística, o governo municipal implantou em 1996 o rodízio de veículos mais recentemente proibiu a circulação de caminhões particulares em algumas áreas da cidade. Em 2003, iniciou-se uma grande reformulação no sistema de transporte público na cidade que reduziu significativamente o grande número de lotações clandestinas, que em sua maioria foram cadastradas e organizadas em cooperativas. Paralelamente, o Governo do Estado tem projetos para a ampliação das linhas do Metrô e trens da cidade. A Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) transporta em média 3,5 milhões de pessoas por dia em seus 330 quilômetros de extensão. Espera-se que em 2020 essa distância chegue a 500 quilômetros. Entretanto, o aumento da frota de ônibus e das linhas de metrô pode ser insuficiente na tentativa de solucionar os altos índices de congestionamentos da cidade. Tendo isso em vista, esse trabalho objetiva abordar uma alternativa nova e ainda não muito estudada nas pesquisas e difundida na cidade: o transporte fluvial para passageiros como parte integrante do sistema de transporte urbano.

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O transporte hidroviário representa a alternativa mais econômica entre todos os modais. Isso devido ao baixo consumo de combustível associado à reduzida necessidade de manutenção em comparação aos demais meios de transporte, além de pouco poluente e possui maior vida útil. 2. O Rio Tâmisa O projeto realizado no rio Tâmisa, em Londres, ilustra um interessante processo de despoluição e reintegração de um rio no meio urbano, através de áreas de lazer a ele associadas e utilização de transporte fluvial em suas águas. Após um tratamento intensivo no sistema de esgotos domésticos e a eliminação da contaminação industrial na década de 1970, o rio Tâmisa, que era extremamente poluído entre as décadas de 1920 e 1960, reintegra-se à cidade e assume sua função de eixo principal da cidade, permitindo uma renovação das áreas urbanas de seu entorno. A recuperação dos antigos cais de Docklands, região à beira do rio que abrigou o maior porto do mundo durante o século XIX e que nos anos 1970 encontrava-se totalmente degradada, destaca-se nessa tentativa de reconciliação entre a cidade e o rio. Novos usos foram criados como conjuntos habitacionais e edifícios de escritórios e serviços onde antes havia armazéns e foi construído também o grande símbolo de recuperação de Docklands: o Canary Wharf, que se torna o segundo centro financeiro da cidade. Além disso, houve a ampliação do sistema de transporte público da região. Vale ressaltar que essa operação, que teve até que alterar algumas legislações urbanas para poder ser realizada, é considerada mal-sucedida do ponto de vista social, pois grande parte dos investimentos da área foram feitos por uma companhia privada (Olympia & York), que não sobreviveu e foi à falência. Porém, apesar das críticas negativas ao alto custo social e à especulação imobiliária gerada, Docklands acabou se tornando o caso mais emblemático de transformação de uma área portuária. O Rio Tâmisa, após essa operação, passou a receber diversos investimentos nos anos 1980. No sul de suas margens, a transformação da antiga galeria Bankside Power

Figura 3 – Mapa de Rotas fluviais feitas pelas Thames Clippers Fonte: http://www.thamesclippers.com/route-time-table/book-now

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Figura 4 – Projeto do Hidroanel Fonte: http://www.mobilize.org.br/noticias/1836/hidroanel--ferroanel.html?print=s

Station e a construção da Ponte do Milênio (2002), uma ponte de pedestres que liga a nova galeria de arte à Catedral de Saint Paul, criaram uma nova zona cultural associada ao rio. A criação do Thames Path, um caminho linear nas margens do rio, representa mais um incentivo à utilização dos espaços contíguos a ele. A integração do transporte fluvial ao sistema metropolitano e a presença de barcos turísticos incentivaram a percepção de elementos significativos da paisagem circundante e colocam-se como uma alternativa de deslocamento dentro da cidade. 3. Projetos Em São Paulo, foram desenvolvidos alguns projetos relacionados ao transporte fluvial urbano. São ainda pouco difundidos ou sofrem preconceitos por parte da população, mas que estão em estágio avançado e mostram que é possível a implantação desse tipo de transporte na cidade. Serão apresentados a seguir: o Projeto do Hidroanel Metropolitano de São Paulo, a Lei 16.010/2014 e o Projeto Bandeirante.

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3.1. Hidroanel Metropolitano da Cidade de São Paulo Para a reinserção dos rios na cidade de São Paulo, existe um projeto em estudo, que prevê o transporte fluvial integrado ao sistema de transporte público na cidade: o Hidroanel Metropolitano da Cidade de São Paulo elaborado pelo Grupo Metrópole Fluvial, o qual pertence ao Laboratório do Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. É constituído por professores, alunos da graduação, da pós-graduação e técnicos. A equipe é coordenada pelos professores Alexandre Delijaicov, Antonio Carlos Barossi, Milton Braga e pelo arquiteto da Prefeitura de São Paulo, André Takiya. O projeto propõe uma reestruturação da metrópole pela reintegração das águas à cidade, através da construção de diques, barragens, eclusas, parques e portos ao longo do sistema de canais, formados por rios e lagos, articulando a gestão integrada dos recursos hídricos, mobilidade urbana e resíduos sólidos. As vias navegáveis pensadas são composta pelos rios Tietê e Pinheiros, e pelas represas Billings e Taiaçupeba, além de um canal artificial ligando essas represas, resultando em um total de 170 quilômetros de hidrovias urbanas. Com relação à mobilidade, o projeto propõe embarcações de carga (barcos urbanos de carga), de passageiros (transporte público de passageiros, turismo e balsa de travessia em represas) e de serviço (limpeza, rega, auxílio à navegação e socorro). O projeto define três tipos de portos de pedestres: turismo, balsa e passageiros, totalizando 24 portos. Os turísticos estariam localizados em áreas com grande potencial de visitação, e mais outros na Represa Billings. Também na Billings estariam as balsas, que podem transportar veículos motorizados, pedestres e ciclistas. A parte do Hidroanel relacionada ao transporte de cargas está consolidada, enquanto a de passageiros é prevista, porém ainda está em fase de desenvolvimento. 3.2. Lei 16.010/2014 Voltado mais para o transporte fluvial, existe outro projeto: a Lei 16.010/2014, promulgada recentemente. Tal lei, proposta pelo vereador Ricardo Nunes (PMDB) e promulgada em junho de 2014, prevê a incorporação do Sistema de Transporte Público Hidroviário de São Paulo (STPHSP) à rede de transporte coletivo, podendo então o paulistano pagar através do Bilhete Único. Duas de cinco potenciais hidrovias seriam no Rio Pinheiros: inferior (das imediações de trem Ceasa até a Usina Elevatória de Traição, na altura da estação de trem Vila Olímpia) e superior (desde a estação Vila Olímpia até a Billings). Esses, mais o do Tietê, seriam trajetos lineares, enquanto nas represas, Billings e Guarapiranga existem infinitas opções de trajeto. A lei determina que o STPHSP preze por deslocamentos econômicos, seguros, eficientes, confortáveis e rápidos. Ricardo Nunes acredita que “do ponto imediato e prático, a legislação poderá beneficiar cerca de dois milhões de pessoas que vivem em bairros da Zona Sul, como Grajaú, Pedreira e Jardim Ângela.” A integração dos sistemas é prevista no Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo, aprovado pela CMSP e promulgado em julho pelo prefeito Fernando Haddad (PT) determina que os portos de passageiros tenham: serviços públicos e proximidade com

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trens, ônibus, metrôs, ciclovias, serviços de compartilhamento de automóveis e estacionamentos, além da articulação com a oferta de moradia popular. Uma das vantagens e que possibilita essa aplicação imediata do transporte de passageiros, é que a sua infraestrutura é simples, requerendo apenas um deque de madeira para o cais e a atracagem. Além disso, o casco dos barcos para transporte de pessoas fica apenas um metro submerso, o que não requer o aprofundamento do leito do rio. Para não gerar poluição, o barco seria movido a energia elétrica, de acordo com os especialistas do projeto. Além disso seria silencioso, para não contribuir também com a poluição sonora. As cabines seriam fechadas com vidro para não se jogar objetos na água ou sentir o mau cheiro. Teriam também 3 tamanhos de barco, dependendo do horário e fluxo de passageiros: um pequeno, com 20 passageiros sentados; um médio, com 50 passageiros sentados; e outro grande, com a capacidade de 200 pessoas sentadas. As embarcações seriam controladas por robôs, com pilotos para situações de emergência. Nas horas de manutenção, barcos limpadores, como existentes em metrópoles como Holanda e França, seriam utilizados. Eles aspiram a água, peneiram a superfície com uma escumadeira, escovam as paredes dos canais e retiram objetos maiores. O Grupo Metrópole Fluvial, para contribuir com a lei, pensa em portos como centro de cultura, lazer, saúde, assistência social, educação ambiental focada na reciclagem, e educação esportiva voltada ao remo e navegação à vela. Seriam “uma praça de políticas sociais, que por estar na beira do canal ou lago navegável, passaria a ter um papel importantíssimo para mudar a mentalidade da sociedade, do cidadão, visando a preservação da qualidade ambiental urbana, ao bem-estar coletivo e individual”, segundo Alexandre Delijaicov. O cais seria um ponto de encontro prazeroso para o paulistano. O que é questionado no projeto pela população é a poluição do rio e o mau cheiro. Porém, pensa-se que a poluição não afeta as embarcações e os passageiros não teriam contato com a água. Além disso, acredita-se que a melhor forma de se valorizar o rio é justamente utilizá-lo, tornando evidente sua importância para a cidade e a necessidade de cuidá-lo. 3.3. Projeto Bandeirante O Projeto Bandeirante leva esse nome devido à larga utilização dos rios pelos bandeirantes, para a exploração do território brasileiro no passado. Ele pretende melhorar a mobilidade de São Paulo através da implantação do transporte fluvial coletivo nos Rios Pinheiros e Tietê. Segundo relatório técnico do Departamento Hidroviário da Secretaria de Transportes do Estado de São Paulo, tecnicamente, este projeto é viável. Assim, será estimada uma possível demanda para análise posterior da viabilidade econômica para a operação de Embarcações no Transporte Coletivo Hidroviário na cidade de São Paulo. O projeto possui dois itinerários: o Norte-Sul e o Centro-Leste. Estas linhas ligam áreas com os maiores índices populacionais e de densidade de emprego. A linha Norte-Sul possui 25 km de extensão. Tem início em Barueri e termina na Usina Elevatória de Traição. A linha Centro-Leste inicia-se na junção dos rios (Cebolão) e termina na Barragem da Penha.

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Embarcações de acordo com a NORMAM 02 (Normas da Autoridade Marítima para Embarcações Empregadas na Navegação Interior, de 1998), a qual estabelece requisitos que uma embarcação deve atender, foram pensadas. Também foram utilizados dados do Projeto de embarcações para o transporte de passageiros e cargas do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Segundo levantamento do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de São Paulo, durante os congestionamentos da manhã e da tarde, os ônibus atingem, em média, a velocidade de 12 km/h. As embarcações, por não dividirem a via com outro transporte, conseguirão uma velocidade média de 37 km/h. 4. Conclusão Observa-se, segundo o panorama apresentado, que a implantação do transporte hidroviário como parte integrante do sistema de transporte público da cidade de São Paulo ainda encontra-se incipiente no campo da pesquisa e um pouco afastada de sua aplicação real. Porém, alguns modelos internacionais, assim como projetos já estruturados, como o Hidroanel Metropolitano de São Paulo, se colocam neste cenário como referência e pontapés iniciais para o desenvolvimento do assunto. Uma maior difusão do tema entre especialistas, o governo e até mesmo entre os cidadãos paulistanos mostra-se necessária para que possa haver uma crença de que é possível implantar o transporte fluvial para pessoas dentro da cidade, pois não é a questão financeira ou técnica que dificulta a execução dessa ideia, mas a necessidade de um maior entendimento sobre sua importância. A população ainda está impregnada com pensamentos mercantilistas e rodoviaristas, e ainda é preciso vencer a inércia ou oposição de setores da administração pública. Além disso, é necessário que se compreenda que ele não representa uma substituição de um meio de transporte de alta capacidade, mas sim uma alternativa de deslocamento que pode desafogar as vias marginais e os trens e ao mesmo tempo reaproximar o cidadão ao rio.

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