Caio Prado e a polêmica historiográfica sobre a formação social no Brasil

July 26, 2017 | Autor: Valerio Arcary | Categoria: Historia, História do Brasil, Brasil
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Caio Prado e a polêmica historiográfica sobre o Brasil Valerio Arcary Coloquemo-nos naquela Europa anterior ao séc. XVI, isolada dos trópicos, só indireta e longinquamente acessíveis, e imaginemo-la, como de fato estava, privada quase inteiramente de produtos que se hoje, pela sua banalidade, parecem secundários, eram então prezados como requintes de luxo. Tome-se ocaso do açúcar; que embora se cultivasse em pequena escala na Sicília era artigo de grande raridade e muita procura; até nos enxovais de rainhas ele chegou a figurar como dote precioso(...) Isto nos dá a medida do que representariam os trópicos como atrativo para a fria Europa, situada tão longe deles(...) É isto que estimulará a ocupação dos trópicos americanos. Mas trazendo este agudo interesse, o colono europeu não traria com ele a disposição de pôr-lhe a serviço, neste meio tão difícil e estranho, a energia do seu trabalho físico. Viria como dirigente da produção de gêneros de grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso; mas só a contragosto como trabalhador. Outros trabalhariam para ele. 1 Caio Prado Jr. O livro que o leitor recebe agora é um tributo à obra de Caio Prado Jr. Egmar Oliveira Souza Júnior investigou a obra de Caio Prado e estabeleceu um diálogo entre a sua interpretação do sentido da colonização, precursora no marxismo brasileiro, e a obra desbravadora de Antonio Gramsci. A pesquisa recupera o conceito de revolução passiva para compreender como foi realizada a passagem de uma sociedade baseada no trabalho escravo para uma estruturada sobre o trabalho assalariado, sem revolução político-social. Ou seja, o padrão de transição pelo alto, que Lenin tinha qualificado como via prussiana. Trata-se, portanto, de uma pesquisa original e instigante.

O tema é um problema central na historiografia. Por que não houve revolução burguesa no Brasil? Quem formulou pela primeira vez a pergunta correta, e sugeriu uma resposta foi Caio Prado Jr. Foi ele quem fez a corajosa, porém, desconcertante elaboração, no contexto do debate, de que a burguesia brasileira não tinha surgido com a industrialização, nem sequer com a produção do café, no século XIX, mas no século XVI, construindo as fazendas e os engenhos do açúcar. No Brasil a burguesia surgiu no século XVI e o proletariado no XIX. Classes sociais não devem ser percebidas como uma categoria sociológica abstrata. Nada pode fazer sentido quando se despreza a geografia e a história, portanto, o espaço e o tempo. O principal traço peculiar da evolução do capitalismo na América 1

PRADO JÚNIOR, Caio. O sentido da colonização In Formação do Brasil Contemporâneo, Brasiliense/Publifolha, 2000, p.29.

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Portuguesa, depois no Brasil, é que ele se implantou da forma mais atroz, desumana e bárbara possível, recorrendo à escravidão como relação de trabalho dominante, em escala sem paralelo no mundo nos últimos mil e quinhentos anos. O Brasil permanece muito diferente dos seus vizinhos sul-americanos de colonização espanhola, por muitas determinações, todavia, esta é a principal. Houve escravidão em muitas outras colônias das Américas. No entanto, nenhuma nação contemporânea conheceu em sua história escravidão negra em tão larga proporção, e por tanto tempo como o Brasil. 2 Sem compreender o significado histórico da escravidão é impossível decifrar a especificidade da formação da burguesia no Brasil. Mas, tampouco, é possível entender a formação da classe trabalhadora brasileira. O capitalismo no Brasil, entendido como capitalismo comercial, não foi tardio. Tardia foi a urbanização e, sobretudo, a industrialização. Essa descoberta chave é uma dívida que o marxismo tem com Caio Prado Jr. Três correntes debateram no interior do marxismo, pelo menos desde meados do século XX, o sentido da colonização ibérica. O estalinismo defendeu a tese de que ela teria sido feudal. Gunder Franck respondeu defendendo que teria sido diretamente capitalista. Em 1948, Nahuel Moreno defendeu em Quatro Teses sobre a colonização espanhola e portuguesa na América, uma terceira posição. O processo teria sido mais complexo, porque resultado de um amálgama entre interesses capitalistas, relações sociais escravistas e formas feudais, portanto, uma formação social histórica original. Em uma interpretação desta discussão historiográfica, anos depois, afirmou:

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O primeiro censo nacional foi realizado entre 1870/72. O questionário era de difícil transcrição e apuração. Embora tenha sido feito em condições, especialmente, precárias, sua importância como fonte não merece ser diminuída. Sobre uma população próxima a dez milhões ou, mais exatamente 9.930.478, a população escrava era ainda um pouco maior que um milhão e meio, ou, mais precisamente de 1.510.806, sendo 805.170 homens e 705.636 mulheres. Estudos demográficos históricos são somente aproximações de grandeza, mas estima-se que nunca deve ter sido menor que um terço do total até 1850, e pode ter sido próxima à metade, ou pelo menos 40% no século XVIII, no auge da exploração do ouro das Minas Gerais. PUBLICAÇÃO CRÍTICA DO RECENSEAMENTO GERAL DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1872 do Núcleo de Pesquisa em História Econômica e Demográfica - NPHED da UFMG. Consulta em dezembro 2014. Disponível em: www.nphed.cedeplar.ufmg.br/.../Relatorio_preliminar_1872_site_nphed.

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“O marxismo latino-americano foi educado sob a influência de um pseudomarxismo que tinha bebido nas fontes dos historiadores liberais. Eles pregavam que uma suposta colonização feudal por Espanha e Portugal tinha sido a origem do nosso atraso relativamente aos Estados Unidos. Este falso esquema da colonização foi suplantado em alguns ambientes marxistas por outro tão perigoso quanto o anterior: a colonização da América Latina teria sido diretamente capitalista. Gunder Frank é um dos representantes mais importantes desta nova corrente de interpretação marxista. Como bem cita George Novack, Gunder Frank "o capitalismo começa a penetrar, formar, a caracterizar por completo a América Latina (...) já, no século XVI."; Produção e descobrimentos por objetivos capitalistas; relações escravas ou semi-escravas; formas e terminologías feudais (igual que o capitalismo mediterrânico) são os três pilares e que se assentou a colonização da América”. 3 (grifo e tradução nossos) A colonização do Brasil foi motivada por interesses capitalistas. Muito antes da independência, já existia uma classe dominante luso-brasileira com características burguesas, embora as relações sociais fossem pré-capitalistas. A acumulação capitalista precedeu, portanto, a abolição da escravidão. Existiam assalariados desde os tempos da América portuguesa, mas esta relação de trabalho era marginal. Não obstante, no Brasil, a burguesia começou a se formar no século XVI. Por isso, porque nunca conhecemos uma classe dominante que não fosse burguesa, porque o país nasceu de uma exploração capitalista, não houve revolução burguesa no Brasil. Como alertou, pioneiramente, ainda nos anos quarenta do século XX, Caio Prado Júnior: “A situação do Brasil se apresenta de forma distinta, pois na base e origem da nossa estrutura e organização agrária, não encontramos, tal como na Europa, uma economia camponesa, e sim a mesma grande exploração rural que se perpetuou desde o início da colonização brasileira até nossos dias; e se adaptou ao sistema capitalista de produção através de um processo ainda em pleno desenvolvimento e não inteiramente completado (sobretudo naquilo que mais interessa ao trabalhador), de substituição do trabalho escravo pelo trabalho juridicamente livre.” 4 O proletariado surge como classe, ainda assim muito embrionariamente, somente no final do século XIX, alguns séculos mais tarde. Se avaliarmos a escala nacional, só 3

Ainda mais claro: No inauguraron un sistema de producción capitalista porque no había en América un ejército de trabajadores libres en el mercado. Es así como los colonizadores para poder explotar capitalísticamente a América se ven obligados a recurrir a relaciones de producción no capitalista: la esclavitud o una semi-esclavitud de los indígenas. MORENO, Nahuel. Cuatro Tesis sobre la colonización española y portuguesa em América. https://www.marxists.org/espanol/moreno/obras/01_nm.htm Consulta em dezembro de 2014. 4

PRADO JÚNIOR, Caio. In Formação do Brasil Contemporâneo, Brasiliense/Publifolha, 2000, p.29.

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podemos considerar uma presença da classe operária em alguns poucos centros urbanos depois dos anos trinta do século XX e, de forma mais expressiva, somente depois dos anos cinquenta, quando ainda quase metade da população vivia no mundo rural. Esta assimetria do processo histórico-social de formação das duas classes mais importantes da atual sociedade brasileira potencializou no marxismo duas posições opostas, que podemos classificar, simplificando, como os “produtivistas”, muito inspirados na escola de Althusser e sua leitura da obra de Marx, e os “circulacionistas”, que passaram a ser conhecidos como a escola do sistema-mundo, inspirados em Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrigui. Os estruturalistas foram a escola marxista mais influente. Não admitiam a possibilidade da existência de uma colonização capitalista desde a invasão portuguesa. Defenderam que uma sociedade deve ser caracterizada, historicamente, pelas relações sociais de produção dominantes. Afirmaram quase como um dogma que o que caracteriza o capitalismo é o trabalho assalariado. Se o trabalho assalariado não é dominante, a sociedade não é capitalista. Insistiram durante décadas na defesa esdrúxula de que teria existido feudalismo no Brasil. Alberto Passos Guimarães e sua obra Quatro séculos de latifúndio conseguiu grande repercussão.5 Uma parcela dos circulacionistas, na posição simétrica, era unilateral, também. Os circulacionistas afirmavam que a colonização tinha sido, sumariamente, capitalista, desprezando o fato monumental de que o escravismo criou raízes profundas em quase quatro séculos de existência. A Organização Revolucionária Marxista-Política Operária, POLOP, por exemplo, assumiu esta interpretação para concluir a necessidade de um programa diretamente socialista ou anticapitalista, diminuindo a importância das tarefas democráticas da revolução brasileira. 6

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Sobre a interpretação da hipótese de feudalismo, Alberto Passos Guimarães é representativo: “A simples eliminação em nossa História da essência feudal do sistema latifundiário brasileiro e a consequente suposição de que iniciamos nossa vida econômica sob o signo da formação social capitalista significa, nada mais nada menos, considerar uma excrescência, tachar de supérflua qualquer mudança ou reforma profunda de nossa estrutura agrária.” GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1968, p.33. 6 REIS FILHO, D.A. & SÁ, J. F. de. [Org.] Imagens da revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.

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Jacob Gorender tentou solucionar o debate com uma elaboração inspirada, ainda que sob forte influência estruturalista, sugerindo que o Brasil conheceu um modo de produção próprio, o escravista colonial.7 O Brasil é ainda um país muito atrasado. É atrasado econômica, social, política e culturalmente. É dramaticamente atrasado em termos educacionais quando comparado com nações em estágio semelhante de desenvolvimento econômico. Atrasado, portanto, em toda a linha. Mas é, ao mesmo tempo, o maior parque industrial do hemisfério sul do planeta, e uma das maiores economias capitalistas do mundo contemporâneo, com doze cidades com um milhão ou mais de habitantes, e 85% da população economicamente ativa em centros urbanos. Só utilizando os recursos marxistas da lei do desenvolvimento desigual e combinado é possível equacionar a principal das peculiaridades brasileiras: o capitalismo usou em escala insólita a mão de obra escrava. Voltar à leitura de Caio Parado Jr. para compreender o Brasil parece, portanto, um bom caminho. Foi ele quem fez esta descoberta teórica, entre nós, pela primeira vez. Usar Gramsci nesse diálogo é muito prometedor.

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Mário Maestri resgatou, merecidamente, este trabalho do esquecimento:“Em O escravismo colonial, Gorender superava a tradicional apresentação cronológica de cunho historicista do passado do Brasil para definir em forma categorial-sistemática sua estrutura escravista colonial. Ou seja, empreendia estudo “estrutural” daquela realidade, para penetrar “as aparências fenomenais e revelar” sua “estrutura essencial”. Isto é, seus elementos e conexões internos e o movimento de suas contradições.” MAESTRI, Mário O Escravismo Colonial: A revolução Copernicana de JacobGorender. http://www.espacoacademico.com.br/035/35maestri.htm#_ftn23 Consulta em dezembro 2014

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