Caio Prado Jr. e Paulo Duarte no campo intelectual paulistano na década de 1950

July 24, 2017 | Autor: Bruno Zorek | Categoria: Historia Intelectual, Paulo Duarte, Caio Prado Jr.
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Caio Prado Jr. e Paulo Duarte no campo intelectual paulistano na década de 1950 Bruno de Macedo Zorek (Doutorando em História – Unicamp) Resumo. O objetivo desta comunicação é comparar as atuações de Paulo Duarte e de Caio Prado Jr. no campo intelectual paulistano durante a década de 1950. Neste período, cada um capitaneava uma importante revista cultural: Prado Jr. estava à frente da Revista Brasiliense, enquanto Duarte dirigia a Revista Anhembi. Ambas as publicações ocupavam uma posição intermediária entre os jornais de ampla circulação e os periódicos especializados. Seu público era a elite cultivada local. Os dois editores ocupavam posições em falso na configuração do campo intelectual. Prado Jr. gozava de significativo reconhecimento, sobretudo por conta de sua produção como historiador. Contudo, vivia um momento de relativo isolamento político, em função de sua relação tumultuada com o PCB, e intelectual, por investir seus principais esforços em áreas (como a Filosofia e a Economia) nas quais seu lugar era menos unânime do que na História. Já Paulo Duarte era um escritor bissexto, lembrado principalmente por suas polêmicas jornalísticas. Ele não contava com o mesmo reconhecimento de Prado Jr., mas sua rede de contatos lhe garantia uma posição mais arejada do que a do primeiro. Além disso, nenhum deles estava vinculado à instituição que se tornava a principal instância de consagração intelectual daquele momento: a Universidade de São Paulo. 1 No entanto, a consolidação da USP como o centro da vida intelectual local ainda estava em processo. Não havia um monopólio da consagração legítima e as revistas dirigidas por ambos faziam parte do universo de veículos para a divulgação das ideias dos intelectuais. Palavras-chave: Caio Prado Jr.; Paulo Duarte; Revista Brasiliense; Revista Anhembi; história dos intelectuais. Financiamento: FAPESP. Esse texto é uma comparação das trajetórias políticas e intelectuais de Caio Prado Jr. e Paulo Duarte, com foco na atuação de ambos na década de 1950. Neste período, os dois ocupavam posições estruturantes do campo intelectual paulistano, cada um à frente de uma importante revista cultural. Caio Prado Jr. dirigia a Revista Brasiliense e Paulo Duarte a Revista Anhembi. Essas revistas ficavam a meio caminho entre o campo político e o campo cultural, além de servirem também como veículo de divulgação das ideias de acadêmicos, sobretudo dos sociólogos vinculados a Florestan Fernandes (Jackson: 2004). O papel de cada um desses editores e de suas revistas na década de 1950, contudo, não pode ser examinado sem antes considerar as trajetórias anteriores de ambos. Por isso, o texto primeiro 1 Errata: diferente do informado no resumo, Paulo Duarte estava vinculado à USP no período em questão. As especificidades e as implicações dessa vinculação para sua posição no campo intelectual serão explicadas ao longo do artigo.

apresenta as origens sociais de Caio Prado Jr. e de Paulo Duarte, sua iniciação na política e na vida intelectual, suas respectivas consolidações para somente então discutir como ambos se tornaram figuras-chave do campo intelectual paulistano. Origens sociais: Paulo Duarte nasceu em novembro de 1899. Caio Prado Jr., por sua vez, veio ao mundo em fevereiro de 1907. Ambos eram filhos de famílias aristocráticas tradicionais, ligadas aos cafezais do interior de São Paulo. Contudo, Paulo Duarte estava em um ramo empobrecido e decadente de sua família (Catani: 2009), enquanto Caio Prado Jr., ao contrário, estava entre os mais ricos e bem estabelecidos da sua. Os dois estudaram em colégios tradicionais da elite paulista, embora Caio Prado Jr. tenha contado com uma formação escolar um tanto mais privilegiada, pois, além de ter aulas com professores particulares antes de frequentar qualquer escola, também passou um ano estudando na Inglaterra, quando tinha 15 anos de idade (Iumatti: 2007). Para a família de Caio Prado Jr., o investimento na formação escolar de suas crianças era apenas mais uma das tantas estratégias a seu dispor para garantir no futuro a reprodução de sua condição de classe. Já a família de Paulo Duarte tinha na formação escolar e cultural dos filhos o único recurso disponível para evitar um rebaixamento social ainda maior. Com a mesma idade com que Caio Prado Jr. viveu seu intercâmbio na Europa, Paulo Duarte começou a trabalhar para ajudar nas despesas de casa. Iniciou sua vida profissional em uma empresa de publicidade. Quando estava com 17 anos, conseguiu um emprego de suplente de revisor no Jornal do Comércio (Catani: 2009). Em 1919, com quase 20 anos de idade, Paulo Duarte ingressou na tradicional Faculdade de Direito do Largo São Franciso, garantindo o retorno do investimento de seus pais em sua formação escolar. Neste mesmo ano, começou a trabalhar como revisor no jornal O Estado de S. Paulo, pertencente à família Mesquita. Ficou mais de trinta anos no “Estadão”, onde, depois de revisor, passou a repórter e, mais tarde, a redator-chefe (Ferreira: 2001). Caio Prado Jr., graças à fortuna familiar a seu dispor, nunca precisou trabalhar. A tendência de sua trajetória inicial era cumprir com o destino desejado por seus familiares, ou seja: tornar-se mais um notável da elite paulista. Depois de terminar sua formação escolar, Caio Prado Jr., então com 17 anos, começou o curso de Direito, também na Faculdade do Largo São Francisco. Como chama a atenção o

historiador Paulo Iumatti (2000), a escolha de Caio Prado Jr. por este curso revelava apego às tradições familiares e de sua classe social. Além disso, o bacharelado em leis abria caminhos na política, reforçando o sentido de sua trajetória para a reprodução das posições de seus familiares, muitos já envolvidos nesse universo. Iniciação política e intelectual: O universo político atraiu, de fato, ambos os jovens em questão. Paulo Duarte se envolveu na política já em 1919, fazendo campanha para Rui Barbosa, candidato à presidência da República. Em 1924, apoiou ativamente a revolta tenentista chefiada por Isidoro Dias Lopes, que chegou a ocupar a capital paulista por três semanas. E em 1926 participou da fundação do Partido Democrático (Ferreira: 2001). Esse partido foi organizado como uma reação de vários personagens influentes da elite paulista que estavam insatisfeitos com os rumos da política em seu seu estado. Até então, a politíca em São Paulo era dominada pelo Partido Republicano Paulista que, na visão daqueles insatisfetos e de dissidentes do próprio PRP, não estava atendendo às demandas de uma parte importante das elites (Saes: 2007). O principal articular do novo partido foi o conselheiro Antônio da Silva Prado, importante político do Império, e prefeito de São Paulo entre 1899 e 1911. O conselheiro era também tio-avô de Caio Prado Jr. e atraíra para seu partido vários familiares. Em 1928, recém-formado em Direito, Caio Prado Jr., ainda seguindo o caminho “natural” dos membros de sua família, também se deixou atrair pelo partido do tio-avô, onde encontrou Paulo Duarte como companheiro de militância. Os dois jovens bacharéis tiveram participação intensa na campanha de Getúlio Vargas para a presidência, em 1929. Ambos, quando o resultado das urnas apontou a vitória de Júlio Prestes, foram favoráveis ao golpe de estado. Inclusive, diferentemente da posição oficial do Partido Democrático, que, mesmo tendo participado da campanha por Vargas, tornou-se reticente em apoiar a revolução, Paulo Duarte e Caio Prado Jr. se envolveram de modo efetivo nas articulações que derrubaram o governo (Ferreira: 2001; Iglésias: 1982). A concordância política entre os dois, todavia, durou pouco. Após a confirmação de Vargas no poder – que teve como um dos principais resultados a desarticulação completa do PRP em São Paulo –, Caio Prado Jr. rompeu com seus companheiros de partido, e mesmo com sua classe social, e se filiou ao Partido Comunista, a inflexão mais importante de sua trajetória política (Zorek: 2007).

Enquanto isso, Paulo Duarte seguia o caminho da maioria dos jovens de seu partido e participava, como um dos organizadores, da rearticulação das elites paulistas, que resultou na “Revolução Constitucionalista”, em 1932 (Miceli: 1979). Caio Prado Jr. se posicionou contra a tentativa de golpe da elite paulista. Do seu ponto de vista, o sucesso desse movimento seria o retorno à ordem anterior e, portanto, um retrocesso político (Iglésias: 1982). Apesar de não apoiar o governo de Getúlio Vargas, via a possibilidade de volta da oligarquia paulista ao poder como uma opção pior do que a que estava dada. Paulo Duarte, ao contrário, destacou-se como um dos líderes dos “constitucionalistas”. Os resultados do episódio, apesar da derrota militar, foram bastante positivos para Paulo Duarte, que consolidou uma posição destacada entre os políticos paulistas. Ao passo que Caio Prado Jr. apenas ampliava mais a distância que construíra entre si e sua classe de origem. Por ter sido contra a assinatura do armistício que pôs fim à revolta paulista, Paulo Duarte foi preso e, em seguida, exilado na França. Lá conheceu Paul Rivet, antropólogo e criador do Musée de L’Homme, que seria uma figura central para a sua trajetória intelectual (Backx: 2013). Em 1933, enquanto Duarte preparava-se para retornar de seu exílio, Caio Prado Jr. lançou seu primeiro livro de história, Evolução política do Brasil, cuja proposta ousada era tanto mostrar a superação da historiografia tradicional quanto aplicar o método de interpretação materialista para analisar a história brasileira. Apesar do livro ser a introdução do marxismo no meio intelectual do país, que, conforme Franciso Iglésias, pela primeira vez “era inteligentemente aplicado na historiografia brasileira” (Iglésias: 1982, p. 7), sua repercussão na década de 1930 foi mínima. Isso se explica tanto pelo fato de Caio Prado Jr. se posicionar intelectualmente da mesma forma que fazia socialmente – isto é, criando distância entre si e seus possíveis leitores –, quanto porque o marxismo era, naquele momento, uma perspectiva analítica desconhecida e vista com desconfiança pelo ambiente cultural paulistano (Zorek: 2007). Em outras palavras, neste momento, Caio Prado Jr. colhia os dividendos negativos de sua opção política. Ao mesmo tempo, Paulo Duarte começava a colher os seus dividendos positivos. Participou, assim que retornou da França, da criação e organização da Universidade de São Paulo, em parceria com Júlio de Mesquita Filho – instituição que se tornaria, em alguns anos, central para a estruturação do campo intelectual paulistano (Miceli: 2001). Em seguida, foi convidado pelo prefeito Fábio Prado – irmão do pai de Caio

Prado Jr. – para chefiar seu gabinete (Ferreira: 2001). Portanto, circulava por cargos e participava de projetos que lhe transformavam em um membro politicamente ativo e relevante da elite dirigente de São Paulo. Confirmação dos posicionamentos políticos e intelectuais: Em 1934, Paulo Duarte candidatou-se e foi eleito deputado da Assembléia Legislativa Estadual, pela legenda do Partido Constitucionalista. No exercício de seu mandato, Duarte consolidou-se como porta-voz do empresariado cultural paulista, de tendência liberal, cujo principal veículo era o jornal O Estado de S. Paulo.2 Enquanto isso, em 1935, Caio Prado Jr. se envolveu na famosa Aliança Nacional Libertadora, onde assumiu a vice-presidência da regional paulista do movimento, secundando Miguel Costa. O envolvimento mais intenso com a atividade política, além de novamente reforçar a distância de Prado Jr. em relação às elites dirigentes, foi uma tentativa de se projetar como uma liderança de esquerda, de construir um lugar de destaque entre os comunistas.3 Contudo, esse seu papel durou pouco: quando, em meados de 1935, a ANL foi declarada ilegal, Caio Prado Jr. foi preso e permaneceu encarcerado até 1937. Liberado junto com outros presos políticos pelo Ministério da Justiça, escolheu se exilar vonluntariamente e passou dois anos na França. Quando Prado Jr. embarcava para a Europa, Paulo Duarte se engajou na campanha presidencial de Armando Sales. O golpe do Estado Novo cancelou a eleições e extinguiu todos os cargos legislativos, por isso, Paulo Duarte perdeu sua cadeira de deputado estadual. A partir de então, Duarte passou a combater o novo regime sistematicamente. Foi preso várias vezes ao longo de 1938, até ser exilado novamente na França. Na Europa, trabalhou como correspondente d’O Estado de S. Paulo e também no Musée de L’Homme, a convite de Paul Rivet (Ferreira: 2001). Neste momento, Duarte passou a investir esforços no estudo da pré-história e da arqueologia – disciplinas que figurariam, mais tarde, como importantes em seu projeto de “elevação do nível cultural do Brasil” (Backx: 2013; Catani: 2009). Enquanto esteve na França, Caio Prado Jr. viveu intensamente o universo intelectual e acadêmico de Paris (Iumatti: 2000), reforçando seu contato com a vanguarda da historiografia francesa que, incorporada ao seu cabedal marxista, figurou como mais um trunfo na sua legitimação posterior como um dos principais 2 Sobre o papel do empresariado cultural paulista e do jornal O Estado de S. Paulo para o ambiente intelectual e cultural paulista durante a primeira metade do século XX, cf. Limongi: 2001. 3 Sobre o PCB e a ANL, cf. Rodrigues: 2007.

renovadores da historiografia brasileira (Candido: 1995). Além disso, estabeleceu laços com o Partido Comunista francês, colaborando na ajuda a refugiados republicanos da Guerra Civil Espanhola (Iglésias: 1982). Durante o Estado Novo: Caio Prado Jr. voltou ao Brasil em 1939, pouco antes da eclosão da II Guerra Mundial. A partir de então, passou a procurar uma relativa aproximação com as elites dirigentes. Ao longo da década de 1940, período em que viveu o auge de sua carreira intelectual, as classes dominantes e a intelectualidade foram interpeladas como atores políticos de relevo. Ao invés de simplesmente se opor aos interesses das elites e afirmar os das classes dominadas, como fizera durante a década de 1930, Caio Prado Jr. passou a fomentar o diálogo, argumentando que essas elites deveriam agir de acordo com os interesses gerais, pois isso levaria à construção de um país melhor para todos. Em relação aos intelectuais, embora entendesse o marxismo como uma perspectiva acima das demais, passou a propor o desenvolvimento da reflexão sobre o Brasil como um projeto coletivo, a ser abraçado por toda a intelectualidade. Essa mudança de postura se explica por uma série de motivos: primeiro, pela dupla experiência da derrota – inicialmente no Brasil, com as desarticulações da ANL e do PCB e, em seguida, na Europa, com a ascensão da ditadura franquista na Espanha; segundo, por conta de determinadas políticas do governo Vargas que, embora fossem problemáticas em diversos aspectos, atendiam à parte das demandas dos trabalhadores; terceiro, pela necessidade de rearticular o Partido Comunista; e quarto, por conta do apoio oficial do PCB ao Estado Novo, a partir da entrada do Brasil na guerra (Caio Prado Jr., de fato, defendeu dentro do partido que se mantivesse o combate ao fascismo de Vargas, mas foi voto vencido e assumiu as diretrizes oficiais). Em resumo, Caio Prado Jr. deixou de lado a postura ideológica purista e se tornou um político e um intelectual mais pragmático – apesar de certos posicionamentos continuarem inegociáveis. Paulo Duarte, por sua vez, viveu um exílio prolongado, de 1939 até 1945, marcado por uma série de aventuras, incluindo uma viagem clandestina para o Brasil. Fugiu da França para os EUA, quando da invasão das tropas alemãs. Estabeleceu-se em Nova Iorque, onde encontrou sérias dificuldades para conseguir trabalho. Depois da desocupação da França, reestabeleceu-se novamente em Paris, onde voltou a trabalhar com Paul Rivet (Duarte: 1976; Ferreira: 2001). Em seus

escritos, combateu duramente a ditadura do Estado Novo, e passou a defender a democracia como uma necessidade urgente para o Brasil. Suas opiniões se harmonizavam com as da elite cultural paulista e, portanto, tinham vazão certa no país, mesmo seus textos sendo produzidos no exterior. Enquanto Paulo Duarte sofria com as atribulações da guerra e de seus posicionamentos políticos no exterior, Caio Prado Jr. se firmava, no Brasil, como um analista poderoso da história do país. Em 1942, o historiador lançou sua principal obra: Formação do Brasil contemporâneo, que lhe projetou como um dos principais nomes da historiografia brasileira. Três anos mais tarde, publicou História econômica do Brasil, consolidando sua posição de destaque no ambiente intelectual. Nos dois livros, Caio Prado Jr. desenvolveu a ideia de que a estrutura econômica do Brasil seria a mesma desde o período colonial, caracterizada pela dependência da exportação de bens primários. Ao invés de pensar o Brasil exclusivamente a partir de suas lógicas internas, o historiador focava nas relações políticas e econômicas internacionais do país. Nesse sentido, entendia que o Brasil era um país dominado, cuja função econômica no mundo seria fornecer produtos primários para o mercado capitalista (Zorek: 2007). O marxismo apareceu na estreia, em 1933, e no livro de 1942 como o principal diferencial do ponto de vista de Caio Prado Jr. Em ambas as ocasiões, era através da análise dialética das relações políticas e econômicas do Brasil, que o historiador construía a especificidade de sua contribuição. A diferença entre 1933 e 1942 é a de que, no segundo caso, o ambiente intelectual paulistano estava bastante mais preparado para receber com bons olhos uma análise marxista da história nacional. Em 1933, como já se chamou a atenção, o marxismo era para a elite intelectual uma doutrina radical pouco conhecida e vista com desconfiança e distanciamento. Entre 1933 e 1942, o PCB cresceu significativamente, incorporando militantes de origens de classe diversas, o que permitiu uma circulação ampliada das ideias fundamentais do comunismo. Também nesse período, foram fundadas a Universidade de São Paulo e a Escola Livre de Sociologia e Política, ambas com cursos de ciências humanas, onde, embora de maneira ainda restrita, havia alguma penetração da literatura marxista, tornando as novas gerações de intelectuais mais permeáveis às análises do tipo. A guerra na Europa, que pôs lado a lado EUA, França, Inglaterra e, sobretudo, a URSS contra o fascismo, foi mais um elemento que favoreceu a curiosidade positiva dos intelectuais em relação ao marxismo. Em

suma, o marxismo deixara de ser simplesmente uma doutrina radical de uma facção de esquerda e passara a ser também uma refinada filosofia para a observação da realidade. Em alguns círculos intelectuais, Marx havia sido suficientemente “domesticado”, a ponto de poder ser recebido de forma positiva. Portanto, os livros de Caio Prado Jr. da década de 1940 foram publicados em um momento especialmente propício para a literatura marxista, ainda bastante rara no país. Ao contrário de Caio Prado Jr., que representava um ponto de vista novo no ambiente intelectual paulistano, Paulo Duarte se firmava como defensor de uma perspectiva conhecida e bem consolidada. Nesse sentido, seus textos não tinham impacto e significado comparáveis aos de Caio Prado Jr.: enquanto o historiador se transformava em uma referência intelectual central; o jornalista mantinha sua postura combativa e polemista, mas não trazia nada de realmente novo para os debates. Além disso, ainda na década de 1940, Caio Prado Jr. buscou construir alianças intelectuais e políticas em outras instâncias, que estavam fechadas a Paulo Duarte em função de sua distância física do cenário paulistano. Nos meses finais de 1943, em parceria com Monteiro Lobato e Arthur Neves, o historiador fundou a Livraria e Editora Brasiliense. Esse empreendimento pemitiu a construção de uma nova posição para Caio Prado Jr. nos círculos intelectuais paulistanos, pois criava e consolidava laços com diversos outros agentes: artistas, escritores, jornalistas, etc., que, tanto por serem publicados pela editora, quanto simplesmente por se tornarem frequentadores da livraria, estabeleciam contatos quase cotidianos com Caio Prado Jr. (Iumatti: 1998). Portanto, se, desde a publicação de Formação do Brasil contemporâneo em 1942, Caio Prado Jr. passara a ser reconhecido como um intelectual de destaque, a partir de sua atuação como editor, somar-se-ão os papéis de importante organizador da pauta dos debates e de figura central da sociabilidade intelectual local. Paulo Duarte, como se verá adiante, somente terá um papel comparável a partir de 1950, quando fundou a Revista Anhembi. Fim do Estado Novo: Com a abertura política ocasionada pela queda de Vargas, Paulo Duarte regressou ao Brasil. Reassumiu sua função de redator-chefe do jornal O Estado de S. Paulo e passou a atuar também como professor da USP, ensinando arqueologia e préhistória (Ferreira: 2001). De 1945 até 1950, ficou entre a França e o Brasil, trabalhando em dois projetos em parceria com Paul Rivet: os preparativos para a

criação do Museu do Homem no Brasil, e a organização, na França, do Institut Français des Hautes Etudes Brésiliennes (Backx: 2013). Quando finalmente se fixou em São Paulo, em 1950, deixou o cargo de redator-chefe do “Estadão”, tornando-se apenas um colaborador ocasional, e passou a se dedicar a seus projetos pessoais: o Museu do Homem, que não chegou a se concretizar, e a Revista Anhembi.4 Caio Prado Jr., por sua vez, resolveu testar sua popularidade nas urnas. Candidatou-se a deputado federal em 1945, mas não foi eleito. Nas eleições seguintes, de 1947, Caio Prado Jr. novamente tentou o pleito, desta vez como candidato para a Assembléia Legislativa de São Paulo. Com uma campanha mais organizada do que a primeira, nesta segunda tentativa conseguiu a eleição. Contudo, sua contribuição no Legislativo foi bastante breve. Alguns meses depois de assumir o cargo, o registro do Partido Comunista foi cancelado e, assim, todos os seus filiados que ocupavam algum posto no governo tiveram seus mandatos cassados. Em 1948, por ser membro do PCB, Caio Prado Jr. foi preso novamente, um encarceramento que durou três meses. Liberto, decidiu viajar. Primeiro, percorreu o interior do Brasil, em seguida, visitou o Leste Europeu e a França, renovando os laços tanto com a militância comunista internacional, quanto com a intelectualidade francesa (Iglésias: 1982). Década de 1950: Ao retornar ao Brasil, Caio Prado Jr. resolveu investir seus esforços em áreas novas. Primeiro, arriscou-se na filosofia, com a publicação do extenso estudo Dialética do conhecimento, em 1952. A recepção inicial do livro foi equivalente ao de sua obra de estreia: seus leitores reagiram com reserva e estranhamento. Em 1954, candidatouse à cátedra de Economia Política da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (então já integrada à USP). Para poder concorrer, apresentou a tese Diretrizes para uma política econômica brasileira, onde propunha o reforço do mercado interno, através de políticas de redistribuição de renda, incluindo a reforma agrária, para, progressivamente e por meio da ação reformista do Estado, estabelecer um regime socialista no Brasil. Segundo Francisco Iglésias (1982) e Heitor Ferreira Lima (1989), a candidatura de Caio Prado Jr. tinha um quê de provocação, pois ele consideraria desde o princípio que não poderia ser aprovado, dada o conservadorismo do curso 4 Para a análise do projeto do museu, que não cabe nos objetivos deste texto, remeto ao já citado trabalho de Isabela Backx (2013).

de Direito e a ousadia da tese apresentada. E, de fato, não foi aprovado, embora tenha recebido o título simbólico de livre-docente. Mas, independente das intenções subjetivas de Caio Prado Jr., sua tentativa de se tornar professor universitário da faculdade de Direito foi, objetivamente, um “erro” estratégico. Pela segunda vez, Caio Prado Jr. tentou converter seu prestígio como historiador para um setor do campo intelectual em que seu capital não era valororizado. A primeira tentativa fora justamente a publicação de Dialética do conhecimento; a segunda, sua candidatura para a cátedra de Economia Política. A Revista Anhembi circulou de 1950 a 1962. Desde seu início, ela promoveu Paulo Duarte à posição de agitador cultural em São Paulo. Até 1955, quando Caio Prado Jr. fundou a Revista Brasiliense, Paulo Duarte dominava sozinho a função de mediador entre os campos culturais (artísticos e intelectuais) e o campo político na capital paulista. Os primeiros anos da década de 1950, portanto, foram marcados, por um lado, pela ascenção de Paulo Duarte como uma figura importante nos debates culturais e, por outro lado, pelo progressivo isolamento de Caio Prado Jr. em relação aos intelectuais. Se nas décadas de 1930 e 1940, os valores da produção intelectual eram oriundos ou do campo político ou do campo econômico principalmente, a partir da década de 1950, uma nova instituição passou a pautar essa produção: a universidade. Durante essas três décadas, São Paulo viu consolidar-se um espaço para a atuação intelectual e cultural que, cada vez mais, afrouxava as amarras de seus produtores em relação às elites dirigentes. Na década de 1950, os intelectuais, tanto por conta de um processo de diversificação das elites e de ampliação dos agentes políticos – o que criava um novo equilíbrio entre as forças políticas em São Paulo –, quanto porque a universidade se fortaleceu internamente e se sedimentou como lugar por excelência dos intelectuais, tiveram um espaço relativamente autônomo para basear sua produção (Miceli: 2001). Os valores que vingaram nesse novo espaço foram os da ciência, do rigor metodológico, do comprometimento com a “verdade” – em oposição, por exemplo, aos “interesses do país” ou às possibilidade de ganho monetário. O principal representante dessa postura e defensor dos novos valores foi Florestan Fernandes, que se consolidou como um dos mais importantes sociólogos brasileiros justamente em meados da década de 1950 (Arruda: 2001). Em termos esquemáticos, pode-se considerar o campo intelectual paulistano dos anos 50 como estruturado em torno de algumas posições: em primeiro lugar, a

posição dos professores catedráticos da USP, sobretudo os das Ciências Humanas e seus principais assistentes; em seguida, e muito próximos dos professores da USP, os professores da Escola Livre de Sociologia e Política; em terceiro lugar, os escritores auto-didatas que viveram o auge de sua carreira intelectual nos anos 30 e 40 (como Caio Prado Jr.) – alguns, inclusive, também professores universitários; também os jornais, que ainda tinham um papel importante na organização desse campo, sobretudo O Estado de S. Paulo; e, enfim, os intelectuais de outras cidades, especialmente do Rio de Janeiro, que tinham algum peso no campo paulistano por conta das homologias estruturais. Essas posições não esgotam o cenário, mas estabelecem pontos de apoio que definem em boa medida os lugares que cada um dos intelectuais ocupava. Nesse contexto, nenhum dos dois personagens considerados incorporava plenamente o habitus intelectual em construção, cujo paradigma era Florestan Fernandes (Miceli: 2012). Paulo Duarte, mesmo sendo professor universitário, tinha como sua principal função pública a de jornalista e de agitador cultural. Caio Prado Jr., embora incorporasse mais o habitus do que Paulo Duarte, não se dispôs a buscar inserção nos ambientes que lhe acolheriam (como os cursos de História, Geografia ou Ciências Sociais, onde sua obra era valorizada), além de considerar os objetivos políticos como tão ou mais relevantes do que os objetivos científicos na produção intelectual. De um lado, Paulo Duarte, mesmo com as posições institucionais a seu favor (professor universitário e editor de uma importante revista), não tinha uma obra de relevo para o campo intelectual – seu valor era o de articulador e de promotor das produções dos pares, não o de produtor. De outro lado, Caio Prado Jr., que nos anos 40, em função de sua produção e de sua ação editorial, fora uma figura central para o ambiente intelectual, perdera seu lugar, primeiro, porque a vida intelectual não girava mais em torno das livrarias, mas sim em torno da universidade, e, segundo, porque não se dispôs nem a adaptar sua produção aos novos interesses do campo, nem a procurar uma nova colocação entre aqueles que provavelmente lhe receberiam de braços abertos. A partir de 1955, com a criação da Revista Brasiliense, Caio Prado Jr. passou a concorrer com Paulo Duarte na função de mediador entre os campos cultural e político. Ambos dividiam a atividade em termos de orientação ideológica. No entanto, diferente de Paulo Duarte, que se colocava em sua publicação como um representante das ideias dos setores liberais da elite cultural paulista (Catani: 2009),

Caio Prado Jr. não conseguia se tornar um porta-voz da esquerda cultural na Revista Brasiliense. A voz dessa esquerda, de qualquer forma, fazia-se representar na revista de Caio Prado Jr., mas não pelos textos de seu principal editor. Já Paulo Duarte falava em nome de seus representados diretamente. Ou seja, dos dois, somente Duarte conseguiu criar com seus leitores uma comunidade razoavelmente homogênea de ideias. Caio Prado Jr., por sua vez, criou uma série de desconfortos com os militantes do PCB, por se posicionar frequentemente contra as teses do partido, e se afastou ainda mais dos intelectuais, pois não dava atenção às demandas da universidade. Nesse sentido, a Revista Anhembi significou para Paulo Duarte o auge de sua carreira intelectual, favorecida pela harmonia de ideias entre o editor e uma parcela da elite cultural paulista. Já a Revista Brasiliense, ao contrário, significou para Caio Prado Jr. o aprofundamento do processo de isolamento no qual o historiador se viu enredado desde o início da década de 1950, apesar de dar espaço tanto para comunistas como para acadêmicos. Caio Prado Jr. publicava o que bem queria em sua revista e em sua editora, mas não era ouvido por ninguém. A situação de ambos os editores continuou essencialmente inalterada até o golpe militar de 1964. A partir daí, em função da desestruturação profunda que os campos político, cultural e intelectual sofreriam em todo o país, Caio Prado Jr. e Paulo Duarte se viram em posições novas. Paulo Duarte continuava um polemista, mas com menos recursos do que anteriormente, pois sua revista já havia encerrrado as atividades e os outros canais que tinha à disposição, como o “Estadão”, cada vez tinham menos liberdade em função do progressivo recrudescimento do regime. Caio Prado Jr., em contraste, teve um período curto, mas significativo, como novamente um intelectual de destaque no campo. A repentina emergência da voz de Caio Prado Jr. entre a esquerda em geral e entre os comunistas especificamente foi fruto justamente da desarticulação geral. Suas ideias, que ao longo da década de 1950 não foram consideradas relevantes, surgiram de repente como uma explicação convincente para o golpe militar. Mas isso não aconteceu exclusivamente por conta de uma “tomada de consciência” da esquerda sobre seus “erros” de interpretação. Foi resultado, fundamentalmente, do fato de que Caio Prado Jr. era praticamente a única e última voz da esquerda com condições de fazer suas ideias circularem, graças ao isolamento anterior que lhe fez relativamente imune ao balde de água fria que o golpe representou para toda a esquerda (Silva: 1989).

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