Caminha no século XVI: estudo sócio-económico
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Caminha no século XVI: estudo sócio‐económico
Dos que ganhão suas vidas sobre as agoas do mar
Sara Maria Costa Pinto
Faculdade de Letras, Universidade do Porto Dissertação desenvolvida no âmbito do Mestrado em Estudos Locais e Regionais, sob a orientação da Prof. Doutora Amélia Polónia Porto, Agosto de 2008
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Resumo O estudo dos portos de pequena e média dimensão tem‐se revelado essencial para a compreensão das dinâmicas económicas portuárias do Portugal Moderno. A nossa dissertação de mestrado, centrada num caso de estudo, o porto de Caminha no século XVI, segue este quadro teórico. Localizada na fronteira do noroeste português, Caminha é um exemplo de uma comunidade marítima inserida num importante complexo portuário. Rodeada por portos de maior dimensão – Pontevedra, Viana do Castelo, Vila do Conde, Porto, Caminha teve um papel a desempenhar nos jogos de complementaridades definidas no noroeste português. A análise de diversas tipologias documentais permitiu o conhecimento de algumas dinâmicas desta comunidade: o espaço físico (geomorfologia da barra e condições de navegabilidade); o espaço social e sua projecção na topografia urbana; questões de identidade do grupo dos homens do mar; actividades económicas desempenhadas (pesca, navegação e comércio marítimo) e questões de sociabilidade.
Abstract The study of small and medium‐sized ports is crucial for the understanding of the seaport’s economical dynamics in the Portuguese Early Modern Age. Our master thesis, centred in a case study of one of the Portuguese seaports, Caminha, in the 16th century, follows the same theoretical guidelines. Settled on the Portuguese northwest border, Caminha is an example of a small port surrounded by several large ports – Pontevedra, Viana do Castelo, Vila do Conde, Porto – with which establishes logistic and human connections, taking part in their trade routes. Primary sources analysis allowed us to acknowledge some of the Caminha’s features. These includes: the physical environment (harbour geomorphology and navigational conditions); the social space and its projection on urban topography; identity issues concerning seamen; main economic activities (fishery, navigation and maritime trade) and sociability issues.
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Ao Pedro. Aos meus pais, ao Tiago e à Nocas. Muitos vêem sobretudo o que muda, outros procuram surpreender o que, a despeito disso, permanece. Orlando Ribeiro Apercebo‐me agora de que não fiz outra coisa senão escrever ficções. Michel Foucault
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Agradecimentos No meu percurso de investigação nunca estive só. Bem pelo contrário, a imagem do investigador debruçado sobre uma pilha de manuscritos, sua permanente companhia, foi substituída pelas muitas trocas de ideias, partilha de informações, e, principalmente pelo alargamento do meu círculo de colegas e interlocutores. Na verdade, seja esta a mais‐valia de um trabalho feito em busca de fontes que a princípio pareciam não existir. A riqueza que não obtive dos documentos fui buscá‐la às muitas deslocações que empreendi e que me levaram a conhecer mais gente, mais sítios, mais apaixonados como eu pelas gentes do mar e pela sua história. Pelas sugestões de leitura e até mesmo pela facilidade em facultar documentação, um agradecimento ao Prof. Doutor Hilario Casado Alonso e ao Doutor José Manuel Vazquez Lijó, como mais um testemunho das boas relações ibéricas. Das minhas viagens fica um sentimento de gratidão para com o Arquivo Distrital de Viana do Castelo, especialmente para com a Dr.ª Olinda e Dr.ª Clotilde pela ajuda incansável na busca por documentação. Em Caminha, ao Eng.º Marco Pereira, do Gabinete de Planeamento, Projecto e Estudo Urbanístico pelo interesse demonstrado pelo trabalho e por me conceder o acesso a cartografia do centro histórico. Acredito que o meu trabalho nunca teria o mesmo interesse se não fosse a documentação da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes tão simpaticamente e prontamente facultada pelo seu presidente, o Sr. Gavinho. Verdadeiro homem do mar, é com muita tristeza minha que ele tenha partido sem conhecer este trabalho. Quanto ao apoio recebido dentro da Faculdade de Letras começo por agradecer a colaboração da MAPOTECA na elaboração de um mapa temático inserido na dissertação. A minha investigação levou‐me a incorrer por disciplinas alheias à minha formação académica de base, mas que em muito
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enriqueceram o meu trabalho e o meu saber. Por isto mesmo, um muito obrigada ao Prof. Doutor João Garcia, à Prof. Doutora Nicole Vareta, à Prof. Doutora Assunção Araújo e ao Prof. Doutor Alberto Gomes. Aos meus Professores, a quem devo todas as oportunidades de investigação, toda a transmissão do saber e de como saber, e todo o encorajamento e amizade demonstrados ao longo dos anos: ao Prof. Doutor Luís Amaral por ter iluminado no momento certo a cabeça confusa de uma aluna do 2º ano, e pelos preciosos préstimos na leitura e tradução do latim; à Professora Helena Osswald por ser um modelo de dedicação, inteligência, solidariedade e tolerância; à Prof. Doutora Inês Amorim por ter visto em mim uma aprendiza de investigadora, pela forma como apostou em mim e porque acreditou nas minhas capacidades e mas demonstrou. À Prof. Doutora Amélia Polónia, minha orientadora científica, pela confiança que sempre depositou em mim, pelo encorajamento em momentos menos bons, pela liberdade que me deu para trilhar o caminho da pesquisa, e, principalmente, nunca ter duvidado da viabilidade do meu projecto. À Patrícia, ao Hugo e à Ana, colegas de aprendizagem e amigos constantes. A partilha dos cansaços, dos desalentos, mas também dos sucessos, das boas surpresas, e das muitas conquistas tornaram‐vos parte da minha experiência de investigadora, e por isso, também parte do meu trabalho. Aos meus pais e manos por acreditarem de forma incansável e incondicional nas minhas capacidades, por sempre terem apoiado a minha escolha pela investigação, sentindo e fazendo me sentir orgulho no que faço. Ao meu marido Pedro, meu porto de abrigo, de onde parto para concretizar os meus sonhos e projectos, e aonde aporto para recarregar forças e orientar o meu caminho.
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Abreviaturas A.D.B. – Arquivo Distrital de Braga B.N. – Biblioteca Nacional B.P.M.P. ‐ Biblioteca Pública Municipal do Porto T.T. ‐ Torre do Tombo A.C.B.J.M.C. ‐ Arquivo da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes da Vila de Caminha A.H.M.P. – Arquivo Histórico Municipal do Porto A.H.M.C. – Arquivo Histórico da Misericórdia de Caminha A.D.P.B. ‐ Archivo Diputación Provincial de Burgos
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Índice 1. Introdução
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1.1 Objecto e objectivos 1.2. Enquadramento espaciotemporal 1.3. Quadro teórico 1.4. Estado da arte 1.5. Percursos metodológicos 1.6. Estrutura da dissertação
1 3 5 8 12 22
2. O Espaço
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2.1. Espaço natural 2.1.1. Evolução do nível do mar e da sedimentação na costa litoral 2.1.2. A navegabilidade do rio Minho e evolução da sua barra 2.1.3. A barra de Caminha nos testemunhos históricos 2.2. Espaço social
25 27 30 35 52
3. Os Homens
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3.1. Quadro demográfico 3.2. A comunidade marítima
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4. As Actividades
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4.1. Pesca 4.1.1. Enquadramento legal 4.1.2. Enquadramento fiscal 4.1.3. Partilha de recursos num espaço fronteira 4.1.4. Espaços de acção 4.1.5. Regime de trabalho 4.1.6. Meios de produção: as “artes” 4.1.7. Produção: o peixe 4.2. Navegação e comércio marítimo
72 72 75 78 80 83 88 92 96 vii
4.2.1. Enquadramento tributário 4.2.2. Frota 4.2.3. Circuitos de navegação e comércio a) Peixe e Sal b) Têxteis c) Tabuado d) Redistribuição e transporte 4.2.4. Circuitos transatlânticos
96 98 102 105 108 110 111 113
5. Dinâmicas sociais
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5.1. Elites e hierarquias sociais 5.2. Mobilidades geográficas e sociais 5.3. Formas de organização laboral 5.4. Formas de espiritualidade 5.5. Formas de assistência
118 128 133 136 137
6. Conclusão
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7. Fontes e Bibliografia
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8. Índice de figuras e quadros
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1. Introdução
1.1 Objecto e objectivos A presente dissertação de mestrado tem como objecto de estudo a comunidade marítima de Caminha no século XVI, designadamente os seus aspectos sociais e económicos. Apresenta como principais objectivos: ‐ Caracterizar socioprofissionalmente uma comunidade marítima; ‐ Abordar questões identitárias dos homens do mar; ‐ Identificar as dinâmicas mercantis de um porto quinhentista, e delimitar o raio de acção dos seus agentes; ‐ Contribuir para o estudo dos portos do noroeste português na época da Expansão. Não negamos a importância que tem o círculo de investigadores com que temos contacto, e que de forma inconsciente modela e orienta o nosso olhar para determinados temas. Da mesma forma, a participação em trabalhos vocacionados para os estudos marítimos e a nossa natural inclinação para a época da expansão marítima determinaram a nossa escolha. No entanto, o que mais nos interessa é o estudo da articulação da rede de portos na qual a expansão assentou, sobretudo a partir do séc. XVI: “A estruturação viária do noroeste português confirma essa confluência de rotas para portos que servem e se articulam com vastos hinterlands interiores e rurais, pelo que o estudo de espaços portuários se torna fundamental para a compreensão de dinâmicas económicas de mais vastas regiões”1. Após a licenciatura, foi‐nos dada a oportunidade de colaborar num projecto desenvolvido no âmbito do Instituto de História Moderna – o
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Projecto HISPORTOS POCTI/HAR/36417/99 ‐ HISPORTOS: Fundamentação científica. In www.hisportos.com.
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HISPORTOS 2 – que se debruçou sobre a rede portuária do noroeste português, numa tentativa conseguida de demonstrar a vitalidade dos portos de média dimensão, cuja articulação se revelou essencial para sustento da economia marítima moderna. Ora, se os principais portos do noroeste provaram a importância do seu papel no desenvolvimento desta economia, o que dizer dos portos de menor dimensão? Em última análise, gostaríamos de poder contribuir para o estudo do papel desempenhado por Caminha no processo da expansão ultramarina. Porém, guia‐nos o respeito pela realidade histórica e não é nossa intenção deturpar ou forçar a documentação, dando a esta comunidade uma dimensão que ela poderá nunca ter tido. Para a investigação desta temática têm‐se tornado essenciais os estudos dos portos marítimos portugueses nos séculos XV a XVIII. Porém, não é nossa intenção decalcar grelhas de análise existentes, aplicando‐as agora a um novo espaço e/ou tempo. Apesar de não considerarmos completamente desprovido de valor um trabalho neste sentido, seria bastante redutor da nossa parte não atender à especificidade de Caminha. É a consciência da sua inserção numa realidade mais vasta, regional, e até mesmo internacional, que nos impede de limitar o nosso projecto ao estudo do mero lugar. Ele mesmo se torna vazio de significado quando apartado dessa mesma realidade. As contribuições do Mestrado que frequentamos alertaram‐nos para a necessidade de recorrer aos estudos locais para a compreensão do global. Análises de fundos documentais locais constituem o caminho para concluirmos sobre as realidades nacionais. Não é nossa intenção tornar o nosso estudo de caso num trabalho isolado e solitário. Faz parte do nosso projecto a sua inserção num contexto nacional e internacional, usufruindo do contacto com outros investigadores. Acreditamos que a investigação histórica se faz da soma de muitos e variados contributos e nunca será resultado do trabalho de um homem 2
Projecto HISPORTOS POCTI/HAR/36417/99 ‐“História dos Portos do Noroeste Português na Época Moderna – séc. XV‐XVIII”
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só (como a História também não o foi). Desta forma, não fazia sentido que a minha escolha fosse individual, mas sim um complemento à investigação já realizada. É neste contexto que surge a minha opção pela comunidade marítima de Caminha e pela dinâmica comercial do seu porto.
1.2 Enquadramento espaciotemporal A participação no Projecto HISPORTOS e o contacto com as fontes documentais que nele se compulsaram foram fundamentais para a definição do espaço em estudo. Das principais conclusões retiradas transpareceu uma articulação entre os diferentes centros marítimos, que revelou determinadas vocações, funcionalidades e, até mesmo, complementaridades portuárias. Enquanto que grande parte destes portos tinha sido já alvo de análise, nomeadamente Viana do Castelo3, Vila do Conde4, Porto5, e Aveiro6, outros portos de menor dimensão, como Caminha, Esposende, Póvoa de Varzim, Leça, e Matosinhos, permaneciam por estudar. A vila de Caminha era‐nos familiar e a monumentalidade da sua igreja matriz, assim como a sua topografia urbana, não nos haviam passado despercebidas enquanto testemunho de uma vivência histórica anterior, mais concretamente, de uma forte vitalidade quinhentista. Esta noção foi confirmada pela cartografia reunida no âmbito do projecto, que parecia confirmar uma grande potencialidade de movimento marítimo na foz do rio Minho. Estava assim determinado o contexto espacial do nosso estudo: a vila de Caminha, o espaço que corresponde à actual freguesia. Na prática, falamos essencialmente do espaço intra‐muros e zona portuária, palco onde se movimentam os agentes que elegemos para análise.
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MOREIRA, 1984 POLÓNIA, 2007a 5 BARROS, 2004a 6 AMORIM, 1997 4
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A opção cronológica está tão imbuída de um conhecimento da realidade histórica como do gosto pessoal pelo momento quinhentista. A percepção que tínhamos de Caminha era a de uma vila essencialmente piscatória, um pequeno porto de cabotagem. As descrições de Lacerda Lobo7 e de Adolfo Loureiro8 esboçam uma imagem de um centro marítimo de pouco fulgor nos finais do Antigo Regime. Para podermos aferir acerca da sua vitalidade portuária teríamos de recuar no tempo. O século XVI foi identificado, por Fernand Braudel9, com a plenitude do desenvolvimento das economias‐mundo, por Michel Mollat10 com o tempo por excelência da génese de uma Europa mercantil, e por Immanuel Wallerstein11 com o desenhar de um sistema mundial. A todas estas dinâmicas que tornam o século XVI, aos nossos olhos, um tempo de eleição, juntamos mais uma motivação: a de nos ajudar a conhecer Caminha. Uma época de crescimento e vitalidade, tanto local como nacional, será um bom pano de fundo para averiguarmos acerca do posicionamento de Caminha, e da sua participação num novo contexto. Deliberadamente não foram estabelecidas barreiras cronológicas, tornando o enquadramento temporal o mais flexível e abrangente possível, até porque muitos dos fenómenos que nos propomos analisar não são estanques. Acresce que a descrição das fontes e metodologias que estavam disponíveis para a realização do nosso trabalho demonstrará a necessidade de aproveitar todos os indicadores encontrados para um resultado final o mais fiável e consistente possível. 7
LOUREIRO, 1904 LOBO, 1991a 9 BRAUDEL, 1979 10 JOURDIN, 1995 11 WALLERSTEIN, 1990 8
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1.3 Quadro teórico A historiografia comprovou o importante papel que os portos desempenharam na época moderna (séculos XVI a XVIII), quer no contexto europeu, quer no americano, revelando‐se indispensáveis para a articulação de espaços políticos e económicos a nível regional e supraregional. Por sua vez, o estudo desta articulação assenta numa teorização da existência de redes e de sistema portuários, que inclui dois pressupostos: o da existência de hierarquias portuárias e o das complementaridades inter‐portuárias12. Frédéric Mauro desenvolveu o conceito de hierarquias portuárias analisando as relações entre mercados, produtos, e preços. As suas conclusões sobre as relações interportuárias, não contrariadas por Vitorino Magalhães Godinho, têm inspirado todas as interpretações globalizantes da história luso‐ brasileira do séc. XVII. O período entre 1580 e 1620 foi favorável à reanimação de diversos portos de tráfico, mercê da participação das respectivas burguesias nas rotas atlânticas, sobretudo brasileiras. Ao longo de quarenta anos, o Portugal atlântico reconstruía‐se na agitação de povoados como o Porto, Viana e muitas outras pequenas localidades13. No entanto, esta perspectiva alicerça‐se numa leitura que tende a ser macro‐analítica, pela vastidão de espaços envolvidos. Este tipo de abordagem subvaloriza o estudo das dinâmicas internas e dos perfis específicos de cada porto, que constituem, afinal, as particulares condições que definem o seu lugar e a sua participação nesse conjunto de redes e nesses sistemas articulados14. A aplicação destes conceitos, como hierarquias, sistemas, redes, ou complementaridades aos portos nacionais carece, porém, de um estudo pormenorizado das realidades individuais de cada porto aprioristicamente. Na verdade, quer este conhecimento individualizado, quer a 12
POLÓNIA, 2007c COSTA, 2000: 14‐15 14 POLÓNIA, 2007c 13
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sua relação / função num sistema colectivo, são os dois vectores essenciais para uma análise consistente. “The study of a port was validated by examining the interplay of facts and comparisons between ports and people; their role within two extended systems: the collection and distributions of good within their hinterland and the economic development there and elsewhere in the national economy.”15 Mas como avaliar o papel desempenhado por um pequeno porto na rede que o envolve? “We should perhaps forget about their comparative status and study them for what they did on their own terms and within the overall port system. All ports are servants of a regional and national economy. Small ports are often ‐ if not usually ‐ trade‐specific, with a variety of niche operations. Ports are not to be measured only in terms of throughput, proportion of national customs duties or share of imports or exports of particular goods. Their significance lies on the one hand in their role within an integrated system in witch their costal exports are necessary for regional centres larger than their own; and on the other hand by the importance of their own hinterlands of the provision of necessary imports from home or abroad and the disposal of foodstuffs, manufactures and raw materials that could not be otherwise sold.”16 Este processo de avaliação e aferição do papel desempenhado por Caminha no sistema portuário do noroeste implica a utilização de determinados conceitos, específicos desta temática, que importam esclarecer. Guimerá Ravina17 entende que uma cidade portuária constitui o centro de um aglomerado urbano, exercendo determinadas funções económicas não agrárias e que, de uma forma geral, se relaciona com outras cidades através de uma rede urbana. Apresenta como principais características a monumentalidade dos seus edifícios, a presença de muralhas, uma grande capacidade de autonomia 15
JACKSON, 2001: 4 JACKSON, 2001: 7 e 16 17 GUIMERÁ RAVINA, 2002 16
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administrativa, comportamentos económicos e populacionais específicos e uma cultura distinta da do mundo rural. Por sua vez, por comunidade marítima, o autor entende uma sociedade flexível, permeável, heterogénea, móvel e ligada ao mar, dependente de agentes externos e que tem o porto como eixo da sua actividade. São comunidades que representam muito bem a fronteira entre o mar e a terra, com uma natureza muito distinta dos povos do interior. Uma perspectiva mais ampla é a que define sociedade litoral, comunidades cujas vidas estão ligadas ao mar, mas que não estão a ele restringidas, sofrendo influências provenientes do interior. Face a este quadro de conceptualização, interessa‐nos partir de algumas hipóteses sobre o papel que Caminha poderá ter assumido no complexo portuário do noroeste: 1ª ‐ O porto de Caminha participou nas principais rotas comerciais do Atlântico, através de um grupo de mercadores organizado. 2ª ‐ O porto de Caminha funcionou como um porto de dimensão regional, cuja comunidade marítima participou nas rotas comerciais do Atlântico, em sociedade com agentes de outros portos. 3ª ‐ O porto de Caminha funcionou como um porto de pequena dimensão, vocacionado para o abastecimento regional e fronteiriço, com uma população que se dividia entre a pesca, a navegação e o pequeno comércio marítimo. Certamente que a resposta a uma série de questões que se podem colocar a partir deste quadro hipotético, nos permitirá caracterizar correctamente Caminha, reconhecendo o que de original possui, ou o que de comum tem com os outros portos. Para o debate destas questões importa apontar e reter algumas especificidades do nosso objecto de estudo: Caminha.
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1. Caminha situa‐se numa região de fronteira: ‐ Que implicações a nível de povoamento e de actividades produtivas? ‐ Terá por isso sido alvo de maior legislação e vigilância por parte do poder central? ‐ Uma fronteira constitui um limite e um obstáculo às relações de comunidade ou poderá funcionar como um estímulo aos contactos populacionais? 2. Caminha tem uma grande proximidade com a Galiza: ‐ Estão bem documentadas as relações galaico‐portuguesas, mas deveremos abordá‐las em termos de cooperação ou concorrência? 3. Em Caminha convergem dois recursos: ‐ O fluvial (o rio Minho) e o marítimo (o Oceano) ‐ Qual o peso destes dois recursos na comunidade caminhense: estamos perante uma vila piscatória ou uma vila de marinheiros mercadores? De cada uma destas características estruturantes decorrem outras questões que emergem como pertinentes, ainda que não nos proponhamos responder a todas elas, por impossibilidade e por opção.
1.4 Estado da arte A percepção que sempre tivemos relativamente à história marítima portuguesa da centúria de quinhentos era a de que pouco mais havia a dizer. A abundante produção científica na área dos descobrimentos e da expansão ultramarina parecia ter esvaziado o tema e abarcado todas as perspectivas de análise. Ainda assim, e dado o nosso gosto por este período histórico, optámos pelo estudo de um espaço marítimo no século XVI. Munidos de um abundante levantamento bibliográfico, iniciamos as nossas leituras em busca de modelos 8
de análise e de quadros de contextualização. Rapidamente, porém, nos apercebemos que neste âmbito se tem privilegiado, mesmo em abordagens mais recentes, o estudo das técnicas, dos saberes, das navegações, do corso e da pirataria, das batalhas navais e das dinâmicas económicas, em particular comerciais. Ainda que nos últimos anos a investigação académica tenha incorporado novos e notáveis contributos, nomeadamente no que se refere a actividades como as da construção naval, do transporte atlântico ou as dinâmicas marítimas de algumas vilas e cidades portuárias18, não avultam ainda os estudos que partam de uma abordagem integrada, ora das comunidades marítimas como um todo, enquanto sociedades complexas, ora dos estratos directa e inexoravelmente ligados ao mar e à vida marítima19. A historiografia das décadas de 40 a 60 do século XX dedicou‐se ao estudo de indivíduos, os heróis dos descobrimentos, determinadas figuras ou acontecimentos que comprovavam a vocação marítima e expansionista dos portugueses. Segundo Amélia Polónia, numa revisão sobre a historiografia referente a comunidades marítimas, são os trabalhos e actas de Congresso sobre figuras centrais ligados às navegações portuguesas, como Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Pedro Nunes ou, de forma ainda mais dominante, o Infante D. Henrique, que não foram, de resto, em essência, gente do mar, que dominam uma historiografia centrada na heroicidade e no protagonismo individual. Jaime Cortesão e António Sérgio, ou mais recentemente, Luís de Albuquerque, Vitorino Magalhães Godinho ou Joaquim Barradas de Carvalho contrariam esta tendência, mas as comunidades marítimas, enquanto agentes activos da dinâmica do expansionismo português permanecem ausentes das suas obras. Partindo de uma leitura mais estrutural e geo‐económica, estes historiadores, em particular Vitorino Magalhães Godinho, centram‐se na definição de ciclos conjunturais, de curvas de tendência, de políticas 18
Vejam‐se as numerosas publicações da CNCDP, e as dissertações académicas de COSTA, 1997 e 2000; DOMINGUES, 2004; BARROS, 2004a; POLÓNIA, 2007a. 19 POLÓNIA, 2007b
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económicas, esquecendo os homens do mar e as comunidades marítimas como agentes centrais dessa dinâmica. As excepções a este quadro surgem na década de 70 a 80, e são constituídas pelo trabalho dos investigadores e curiosos locais que, apesar de nem sempre seguirem metodologias rigorosas, acabaram por reunir alguns elementos da história local essenciais para o estudo destas comunidades20. Uma pesquisa bibliográfica centrada na vila de Caminha revelou a predominância deste tipo de estudos monográficos locais, nomeadamente em artigos inseridos em rubricas de revistas de carácter regional e local. Falamos de publicações periódicas como Ecos da Matriz, Caminiana, Notícias de Caminha, Arquivos do Alto Minho e o Caminhense. No grupo de investigadores refira‐se Lourenço Alves e, especialmente, Serra de Carvalho21. Também ao nível micro, são de referir os estudos sobre associações de homens de mar (confrarias de pescadores e de mareantes) paralelos à curiosidade suscitada pelas suas particulares formas de religiosidade, os “ex‐ votos”. Da mesma forma, a antropologia se debruçou sobre as comunidades piscatórias, embora incidam prioritariamente sobre o período contemporâneo ou o tempo recente. O final da década de 80 ainda vê surgir, do lado académico, o estudo de Joaquim Romero de Magalhães sobre o Algarve22, e do lado dos historiadores locais, os estudos sobre Viana de Fernandes Moreira23. Na última década surgiram uma série de trabalhos focados em estudos de caso que, de uma forma geral, abordaram, quer questões puramente portuárias, quer questões relativas às suas comunidades, com abordagens socioprofissionais. Apontamos, para a região do noroeste português, o estudo de Amélia Polónia para Vila do Conde24, de Amândio Barros para o Porto25, e de
20
POLÓNIA, 2007c ALVES, 1985 e CARVALHO, 1961‐1965 22 MAGALHÃES, 1988 23 MOREIRA, 1984 24 POLÓNIA, 2007a 25 BARROS, 2004a 21
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Inês Amorim para Aveiro26. Mais recentemente, assumindo um carácter sistematizante, o Projecto HISPORTOS (POCTI/HAR/36417/2000) teve como objecto de estudo a rede portuária do noroeste português, na qual abordou prioritariamente temas como os constrangimentos geo‐morfológicos, as políticas de obras públicas, a construção logística desses espaços portuários, etc. Ainda assim, a mais recente produção académica, a comprovar, quer pelos temas de dissertações, quer pelos artigos incluídos em revistas da especialidade, como a “Oceanos” ou a “Mare Liberum”, continua a privilegiar temas relacionados com a logística da expansão (arquitectura naval, construção naval, análise das rotas de navegação: rota brasileira do açúcar ou rota do Cabo). Continuam a ser raros os estudos sobre sociedades litorais como um todo ou aqueles que privilegiam a análise social ou socioprofissional do grupo dos navegadores.27 Neste quadro historiográfico, e a nível internacional, insere‐se a produção francesa, sem tradição nesta área de estudos. As obras de Alain Cabantous28, e Gérard Le Bouëdec29, constituem algumas excepções. Da mesma forma, na historiografia espanhola, os estudos de abordagem social são residuais num panorama de vasta produção sobre história marítima. São de referir, no entanto, quer os estudos sobre centros portuários e suas relações comerciais30, quer o estudo das comunidades de pescadores, em particular na Galiza31. Relativamente à historiografia galega, esta é tradicionalmente marcada pelos temas da ruralidade em detrimento das questões do comércio marítimo. Embora o desenvolvimento das regiões costeiras no séc. XVI seja ponto assente, também aqui continuam a faltar monografias que dêem uma visão global. Considerando o enquadramento geográfico do nosso estudo, encontrar 26
AMORIM, 1997 É de referir a dissertação de mestrado de Susana Pereira sobre a comunidade marítima de Vila do Conde no séc. XVII. PEREIRA, 2006 28 CABANTOUS, 1991 29 LE BOUËDEC, 1997 30 ALONSO ROMERO, 1984, p. 185‐195. ARMAS CASTRO, 1992; FERREIRA PRIEGUE, 1988; GUIRAL‐HADZIIOSSIF, 1986 31 FANGUEIRO, 1984; ROTA Y MONTER, 1996 27
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bibliografia de contextualização tornou‐se ainda mais complicado, dado que a Galiza nortenha tem sido alvo preferencial de estudo, em relação ao sul galego32. A especificidade geográfica de Caminha exigiu também uma análise do panorama bibliográfico das relações galaico‐portuguesas. A historiografia nacional apresenta alguns estudos sobre as relações ibéricas, contudo, estes são feitos essencialmente às duas escalas nacionais – Portugal e Castela, não se debatendo sobre o assunto a um nível mais micro33. Nos poucos estudos que realmente focam a região de fronteira do Alto‐Minho e as suas relações com a Galiza, é privilegiada a perspectiva do poder central e a análise das chancelarias, assim como das relações entre mosteiros, resultando em trabalhos essencialmente de carácter político‐religioso34. No entanto, a historiografia galega apresenta um caso de excepção e de grande contributo para esta temática: a obra de Elisa Ferreira Priegue. Debruçando‐se essencialmente sobre o comércio marítimo, a historiadora aborda as relações mercantis estabelecidas entre a Galiza e Portugal, a dois níveis distintos: o da cabotagem e abastecimento feito ao longo das duas costas, e um nível mais micro, o do comércio fronteiriço35.
1.5 Percursos metodológicos As leituras bibliográficas, das quais tentamos absorver percursos documentais e metodologias de trabalho, permitiram‐nos acumular o conhecimento necessário para partirmos para a exploração de fontes documentais, que de outra forma, seriam estéreis. A esperança é sempre a de que encontremos mananciais de documentos que satisfaçam todas as 32
SAAVEDRA VÁSQUEZ, 2008 Veja‐se apenas a título de exemplo: MARQUES, 1994; BRAGA, 1996 34 Veja‐se apenas a título de exemplo: MORENO, 1990; MARQUES, 2004; e ANDRADE, 1994 35 FERREIRA PRIEGUE, 1988 33
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perguntas que levantamos inicialmente. Na orientação recebida fomos alertados para a importância das fontes notariais para a construção de um esboço das transacções comerciais do porto em estudo36, nomeadamente através da análise de contratos comerciais, cartas de fretamento, constituição de sociedades e letras de câmbio. Na mesma linha, os livros de registo de Alfândega poderiam elucidar‐nos sobre produtos transaccionados, quantidades, locais de origem e de destino. A documentação municipal (actas de vereação, livros de receita e despesa, livros de registo geral) permitiria o traçado da vida comunitária, da organização social e espacial da vila, assim como dos movimentos das finanças locais. A documentação régia faria a ligação do local ao central, elucidando sobre interferências e controlos, complementada com a documentação senhorial (relativa à jurisdição do Marquês de Vila Real). Para o estudo das comunidades, da sua composição e organização, os registos paroquiais poderiam potencialmente constituir uma boa resposta, dando‐nos a conhecer redes e laços de solidariedade social e socioprofissional; assim como a documentação de Confrarias e Misericórdias. Por fim, a imprescindível compreensão do espaço físico em estudo seria feita através de fontes de carácter geográfico, cartográfico e geomorfológico. Com o objectivo de averiguar sobre as presenças e ausências documentais, o nosso primeiro passo foi a pesquisa em guias arquivísticos e consultas on‐line, quando possível37. Obtivemos os seguintes resultados: ‐ Registos notariais do concelho de Caminha Æ a partir de 1659 ‐ Registos paroquiais da paróquia de Caminha Æ a partir de 1612 ‐ Documentação municipal:
‐ Actas de vereação Æ a partir de 1733
‐ Livros de registo geral Æ a partir de 1652
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BARROS, 2000 Guia Geral dos Fundos da Torre do Tombo, Lisboa, I.A.N./T.T., 1998, 4 vols.; Recenseamentos dos Arquivos Locais: Câmaras Municipais e Misericórdias, Lisboa, I.A.N./T.T., 1995 – Arquivos vol. 3: Distrito de Viana do Castelo, 1996.; www.adporto.org; http://ttonline.iantt.pt.
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‐ Livros de acórdãos Æ inexistentes
‐ Livros do cofre Æ inexistentes
‐ Livros de sisas Æ inexistentes
‐ Livros da alfândega Æ inexistentes Tornou‐se óbvia a ausência dos principais fundos documentais considerados necessários para responder à nossa questão inicial. A viabilidade do projecto estava em causa, não parecendo ser possível obter informação sobre matérias tão essenciais como a movimentação portuária ou o retrato da vida local. As grelhas de análise que outros haviam utilizado com sucesso deixaram de ser aplicáveis. Tornou‐se, então, necessário redobrar a atenção nas leituras contextuais, procurando reconhecer eventuais fundos e tipologias documentais que, apesar de mais indirectos, nos pudessem auxiliar no nosso estudo. Um novo olhar para a documentação que havíamos reunido foi também essencial para percebermos o que realmente poderia ser proveitoso. Em primeiro lugar, quisemos conhecer os fundos documentais locais, as suas potencialidades e de que forma poderiam contribuir para a resposta às nossas questões. As nossas tentativas passaram por uma visita à Capitania do Porto de Caminha (em busca de documentação do porto e alfândega) e pelo contacto com o Pároco, no sentido de aceder ao arquivo paroquial, embora sem quaisquer resultados. Relativamente à documentação do Marquês de Vila Real, a nossa visita à Torre do Tombo foi infrutífera, assim como o nosso contacto com o Arquivo Distrital de Vila Real. Após uma busca, igualmente infrutífera, no arquivo municipal, arquivo distrital e arquivo do Governo Civil, a procura insistente da documentação da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes de Caminha levou‐nos a entrar em contacto com o seu actual Presidente, que nos confirmou a existência de documentação e nos autorizou o acesso à consulta. Apesar de não se encontrar
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organizada, uma primeira exploração permitiu‐nos reconhecer a documentação de maior pertinência para o nosso estudo: ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes ‐ Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes A nossa atenção recaiu sobre o livro de acórdãos, que lemos na íntegra, e o qual transcrevemos. Consiste num livro de traslados feito pelo escrivão da Confraria, António Gonçalves Ferraz, e data de 1650. O livro contém o traslado de uma procuração a João Gonçalves, sapateiro, para que leve as ordenações e estatutos da Confraria ao Bispado de Ourense para serem reconhecidos (1549), o traslado das Ordenações da Confraria (1549), o traslado da petição que os pescadores fizeram ao Arcebispo de Braga e respectivo despacho (1621), e traslados de acórdãos feitos pelos mareantes ao longo do século XVII. A funcionalidade do livro é clara, podendo ler‐se, num registo de 1650: “O qual traslado de poder e procuraçam bastante bulla de Sua Sanctidade, estatutos instituidos pellos mordomos oficiais e regedores antigos da Comfraria do Bom jezu e comfirmação delles eu Afonço Roiz Veiga que ora sirvo de escrivão da dita Comfraria este anno presente de seis centos e sincoenta annos fis tresladar e traduzir de lingua galega em purtugueza bem fielmente neste caderno por mim numerado e rubricado pera com mais clareza serem emtendidos dos mordomos e oficiais e regedores que agora sam”38. No mesmo sentido, num acórdão de 1687, regista‐se que “por coanto este libro sosmente serve pera estatutos”39. Porém, foi no Livro de Estatutos de 1650, também da responsabilidade do escrivão Afonso Roiz da Veigua, que encontramos os estatutos da Confraria. Muito semelhante ao anterior, este livro contém também o traslado das ordenações e acórdãos dos mareantes.
38 39
A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 21 a 21v. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 26v.
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Compreende‐se a importância que esta fonte assumiu para o nosso estudo. Perante a falta de documentação municipal, que ameaçava a consistência do nosso projecto, surgia agora uma nova via para procurar responder às questões iniciais. Obviamente, esta não era a solução por si, longe disso, mas cruzada com outras fontes, torna‐se num bom manancial de estudo. Entre estas, uma de grande valor foi a riqueza do fundo documental da Misericórdia de Caminha, quer no seu âmbito cronológico, quer a nível de tipologias documentais, das quais salientamos: ‐ Livros de receita e despesa, 1551‐1594 ‐ Notícia do princípio que teve a irmandade desta Santa Misericórdia com algumas cousas mais notáveis que nela sucederam, 1734 ‐ Maços de testamentos, 1557‐1749 ‐ Maços de escrituras de prazos, 1532‐1912 A nível de fundos documentais locais, a documentação da Confraria dos Mareantes e a da Misericórdia constituem, ao momento, as principais fontes disponíveis para o estudo de Caminha no século XVI. Por fim, alargamos ainda mais a nossa pesquisa a documentação de arquivos de regiões próximas, e naturalmente aos fundos nacionais. No Arquivo Distrital de Braga pesquisamos: ‐ Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. ‐ Livro dos Milagres do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. 1725. O Cartório do Convento da Ínsua40 constitui uma miscelânea de documentação variada que inclui, desde róis de irmãos e inventários a relatos 40
Agradecemos ao Prof. Doutor João Cabral, do Departamento de Botânica da Faculdade de Ciências, o alerta para a importância desta documentação.
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de acontecimentos que de alguma forma os irmãos consideraram dignos de registo. Estes últimos relatos revelaram‐se de uma riqueza extraordinária, no que respeita a informações sobre evolução da paisagem, fenómenos meteorológicos, referências a fauna e flora, e até mesmo questões de pesca. Frequentemente testemunhas de naufrágios, pirataria e pilhagem, os irmãos registaram também a presença de embarcações estrangeiras. Perante a ausência de registos notariais da vila de Caminha, e a aparente ausência de informação nos de Viana, tornou‐se necessário alargar a nossa pesquisa a outros centros marítimos. Dada a inviabilidade de percorrermos todo os fundos notariais de cada arquivo, optamos por recorrer a informação notarial já analisada e compilada por outros investigadores. Neste sentido recorremos à documentação notarial do Porto tratada por Amândio Barros41, mas da qual não retiramos quaisquer resultados, e aos notariais de Vila do Conde, recolhidos e tratados por Amélia Polónia42, e inseridos na base de dados do CEDOPORMAR ‐ Núcleo Informacional “Vila do Conde Quinhentista”43, da qual retiramos bastante informação. Ainda assim, olhando para o contexto espacial do nosso objecto de estudo, compreendemos que a pesquisa apenas estaria completa com informação retirada dos fundos galegos. Com efeito, se colocávamos a hipótese das relações comerciais estabelecidas entre os agentes ultrapassarem a fronteira, era coerente uma incursão aos arquivos do sul da Galiza. Uma pesquisa em guias on‐line44 e uma deslocação ao Arquivo da Catedral de Tui revelaram, no entanto, um imenso acervo notarial: ‐ Arquivo da Catedral de Tui ‐ Protocolos notariais 1334‐1870 (22 livros para o séc. XVI)
41
BARROS, 2004a POLÓNIA, 2007a 43 Documentação disponível em formato digital e através de pesquisa multinível numa interface de intranet. 44 Servizo de Patrimonio Documental e Bibliográfico da Deputacion de Pontevedra: www.depontevedra.es. Este site contém uma listagem completa dos Arquivos de Pontevedra, a nível municipal, empresarial e particular; Concello da Coruña: Arquivos: www.aytolacoruna.es. 42
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‐ Archivo del Reino de Galicia ‐ Fondos Publicos de la fe publica: Notariales 1519‐1862 (310 livros) ‐ Archivo Historico Provincial Pontevedra ‐ Protocolos Notariales 1502 – 1923 (6432 caixas) Foi, então, essencial o contacto com investigadores galegos, nomeadamente o Doutor Vázquez Lijó, que me aconselharam a concentrar a minha pesquisa no Arquivo de Pontevedra. No entanto, e embora tenha percorrido os registos de nove notários de Pontevedra, Vigo e Baiona (utilizando o método de amostragem), não obtive nenhum resultado satisfatório. Na verdade, esta ausência verificada, quer nos arquivos nacionais, quer nos galegos, é o reflexo de um fenómeno sobre o qual todos os historiadores parecem estar de acordo: nos pequenos circuitos comerciais os mercadores renunciam, muitas vezes, a registar o seu contrato perante um notário. Carmen Saavedra que, no momento, acabara de analisar a documentação notarial quinhentista de Pontevedra, afirma isto mesmo: “… las relaciones entre Baiona y el país vecino estaban marcadas por la existencia de un doble circuito en el que figuraban por una parte puertos próximos, como Viana o Camiña, protagonistas de pequeños tráficos que en muchos casos no llegaban a registrarse ante notario, y, por la otra, enclaves más alejados, como Aveiro, Lisboa o Setúbal, con los que se realizaban operaciones de mayor envergadura.”45 A utilização de alguns instrumentos de pesquisa on‐line e a consulta de fontes publicadas46 não evitou a necessidade de uma deslocação à Torre do Tombo, na qual procedemos à pesquisa nos diversos índices disponíveis ao investigador. Dos fundos consultados salientamos as Chancelarias Régias, o Corpo Cronológico e o Tribunal do Santo Ofício. Nos registos de privilégios e 45
SAAVEDRA VÁSQUEZ, 2008 As Gavetas da Torre do Tombo, 1960‐1977, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 12 vols.; MARQUES, 1988; ttonline.iantt.pt.
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doações régias encontramos um traslado de uma acta de vereação caminhense relativa à mata do Camarido e aos seus efeitos na barra de Caminha; o reconhecimento régio dos privilégios da Confraria dos Mareantes; e uma série de concessões de cargos administrativos a serem exercidos na vila de Caminha, como procuradores do número, almoxarifes, ou guardas da alfândega. No Corpo Cronológico conseguimos identificar um processo de corso, de 1538, do qual tinham sido vítimas uma série de moradores dos portos do noroeste português, nomeadamente mercadores de Caminha47. Os processos do Tribunal do Santo Ofício foram essenciais para o conhecimento biográfico de alguns mercadores de Caminha. Por último, não queremos deixar de referir três livros de alfândega que também encontramos no arquivo nacional: ‐ Livro da Sisa de Caminha de 151948 ‐ Livro da Sisa dos Panos da Alfândega de Caminha do Ano de 152749 ‐ Livro da Dízima de Caminha de 153250 A hipótese de trabalharmos estas fontes foi considerada no início no projecto, mas rapidamente abandonada. Em primeiro lugar, exigiria um trabalho serial que, por si só, consumiria o projecto de dissertação. Em segundo lugar, e bastante mais relevante, não responderia à nossa questão inicial, visto que concluímos tratarem‐se de registos relativos, quase exclusivamente, ao comércio de panos. Bastante similares a estas fontes, os livros de receita da alfândega de Vila do Conde foram igualmente considerados, por João Cordeiro Pereira, insuficientes para “uma visão exaustiva do comércio marítimo de Vila do Conde nos princípios do séc. XVI”51. 47
Agradecemos a preciosa ajuda do Prof. Doutor Luís Carlos Amaral e da Maria João na leitura do documento. T.T. ‐ Núcleo Antigo, Nº 525. 49 T.T. ‐ Núcleo Antigo, Nº 524. Publicado por CASTRO, Elisa; CUNHA, Mário, 1986‐1988 ‐ Livro da Sisa da Alfândega dos Panos de Caminha do ano de 1527. “Caminiana”, Dez. 1986, p.153‐215 e Dez. 1988, p.181‐210 50 T.T. ‐ Núcleo Antigo, Nº 534. 51 “Os livros apenas dizem respeito a mercadorias importadas e ficam a faltar os registos dos artigos importados de Espanha e de outros portos do reino, que não eram despachados na alfândega real. Além disso as mercadorias importadas por privilegiados eram registadas separadamente, bem como um grupo de artigos cuja dízima estava doada ao Marquês de Vila Real”. In PEREIRA, 1983: 30 48
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Uma das temáticas do nosso projecto – a das dinâmicas comerciais do porto de Caminha – continuava em causa pela escassez de fontes. O contacto que mantínhamos com investigadores de temas afins levou‐nos a contactar o Prof. Doutor Hilario Casado Alonso que analisara as relações comerciais entre Espanha e Portugal, no séc. XVI, através dos seguros marítimos contratados em Burgos por mercadores de ambas as nacionalidades. Com uma admirável solidariedade científica, o investigador facultou‐nos os registos que havia encontrado envolvendo mercadores naturais de Caminha, o que enriqueceu em grande medida os resultados do nosso trabalho. Em 1538, Mendo Afonso de Resende, sob as ordens de D. João III, percorre toda a fronteira nacional, averiguando sobre a definição dos seus limites e possíveis contendas com os castelhanos52. O relato da sua conversa com a vereação e os moradores de Caminha sobre direitos e práticas de pesca no rio Minho é de extrema relevância para a compreensão da gestão de recursos e espaços comuns. Já referimos a inexistência dos registos paroquiais de Caminha pelo que um necessário estudo alargado da sua população se tornou inviável. Tivemos de nos cingir aos numeramentos de 151353 e 152754 para obtermos alguns dados e tendências demográficas. Depois de termos lido repetidamente, nos trabalhos monográficos de Lourenço Alves e Serra de Carvalho55, referências aos manuscritos do Padre Gonçalo da Rocha de Morais56, foi com bastante agrado que encontramos na Biblioteca Nacional, pelo menos, um deles. Pároco da Igreja Matriz de Caminha (sécs. XVII‐XVIII), Gonçalo da Rocha de Morais terá deixado importantes contributos manuscritos sobre a história de Caminha. Com a mesma relevância 52
Fonte publicada em MORENO, 2003. OLIVEIRA, 1976: 125‐165 54 DIAS, 1996 55 ALVES, 1985; CARVALHO 56 Memória de cousas antigas que sucederam nesta terra, 1722; Grandezas da Villa de Caminha; Acerca dos valores da villa de Caminha. 53
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apontamos também a Descripção da villa de Caminha de Frei Miguel da Purificação57. Nesta selecção de fontes uma das nossas maiores preocupações foi com o estudo do espaço. Para além das muitas corografias e geografias, às quais recorremos, assim como ao Livro das Fortalezas de Duarte d’Armas, de 1509, de extrema importância, queremos sublinhar as fontes cartográficas. Visto que este tipo de fundos se encontra um pouco disperso por bibliotecas e arquivos de diferentes entidades tutelares, optamos por recorrer numa primeira fase a pesquisas on‐line58, mas também à base de dados do Projecto Hisportos. O estudo do espaço e da geomorfologia levou‐nos a reunir um conjunto de fontes cartográficas que consideramos de maior significado e utilidade ao projecto: ‐ ABERVILLE, N. Sanson, 1654 ‐ Mapa do Reyno de Portugal59 ‐ BLAEW, William Iansz, 1638 ‐ De Zeecusten van Galissen Tusschem de Cabo Finisterre en Camino ‐ BRANDÃO, Gonçalo Luís da Silva, 1758 – Planta da barra de Caminha e entrada do Rio Minho ‐ OXEA, Frey Fernando ‐ Mapa do Reino da Galiza60 ‐ SECO, Fernando Álvaro, 1630 – Portugallia et Algarbia (“Portugal Deitado”) (1561). Amsterdão, Ed. Irmãos Blaeuw ‐ TEIXEIRA, Pedro, 1634 ‐ Descripcíon de España y de las costas y puertos de sus reinos61 Por último, gostaríamos de alertar para o nosso esforço de comparação da realidade histórica de Caminha com a realidade de outras comunidades marítimas. Com efeito, ao longo da dissertação as referências a espaços 57
B.P.M.P. – Ms. 543. Biblioteca Nacional: www.bn.pt; I.A.N./T.T.:www.iantt.pt; Biblioteca Nacional de Espanha: www.bne.es; Instituto Geográfico Português: www.igeo.pt. 59 BRITO, 1988: 21 60 BRITO, 1987: 91 61 El Atlas del Rey Planeta: La "Descripcíon de España y de las costas y puertos de sus reinos”, de Pedro Teixeira (1634), 2003, Editorial Nerea 58
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semelhantes, a dinâmicas mercantis de outros portos e agentes, a descrições de diferentes organizações confraternais são bastante recorrentes, principalmente as referências à realidade histórica galega. Na verdade, este tipo de abordagem comparativa tornou‐se num poderoso processo metodológico que nos permitiu obter uma análise mais correcta e contextualizada da comunidade marítima de Caminha.
1.6 Estrutura da dissertação De acordo com as problemáticas apontadas como essenciais e tendo em conta a informação disponível, subdividimos a nossa síntese em três componentes essenciais: a)
O Espaço: o estudo de uma localidade marítima pressupõe, não
apenas o estudo de um espaço social e humano, mas também o estudo de um espaço físico. Um levantamento de carácter geomorfológico e hidrográfico torna‐se essencial para compreendermos de que forma estes aspectos influenciaram actividades, relações humanas e comerciais (não se trata aqui de um determinismo, mas de um condicionalismo). b)
Os Agentes: um bom contributo para o estudo das comunidades
marítimas é o conhecimento dos seus elementos, das suas ocupações, da forma como se movimentam e relacionam entre si. A nossa pesquisa aborda aspectos distintos, mas complementares, da actividade dos homens do mar: identificação do “mareante”, delimitação do seu espaço, caracterização do seu regime de trabalho, meios de produção e produtos. Se é claro que os pescadores e marinheiros estiveram relacionados entre si, já não é tão clara a forma como estes se articularam: será que o processo da expansão os remeteu para lugares bem distintos, ou os caminhos de pescadores e marinheiros cruzaram‐se sempre? A dificuldade deste estudo pode ser comprovada pela diversidade de
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termos com que estes homens são designados: “pescador”, “homem do mar”, “mareante”, “navegante”, “marinheiro”. c)
As Dinâmicas: o contacto que tivemos com bibliografia especializada
e de contextualização, quer da realidade local, quer das realidades nacionais, permitiu‐nos concluir sobre os diversos papéis que os diferentes portos nacionais podem ter assumido no processo da expansão. Não se trata aqui de especializações estanques em rotas e produtos, mas sim de reconhecer determinadas características que nos ajudam a compreender dinâmicas portuárias. A estrutura da dissertação reflecte, naturalmente, o nosso percurso de investigação. O primeiro capítulo, dedicado ao estudo do espaço, abarca dois níveis espaciais: o natural, no qual tivemos como objectivo aferir acerca da navegabilidade do rio Minho no séc. XVI, assim como das suas potencialidades / limitações enquanto recurso natural, e o social, no qual tentamos desenhar o espaço urbano no qual se movimentaram os agentes da comunidade em estudo. O segundo capítulo recai sobre os homens, enquanto grupo humano, que por ser de carácter marcadamente marítimo, apresenta comportamentos populacionais específicos. Neste ponto, para além de abordarmos questões demográficas gerais, que abarcam toda a comunidade, analisamos questões de identidade dos homens do mar, numa tentativa de compreender a sua heterogeneidade e ambiguidade, demarcando‐os dos restantes grupos sociais. O terceiro capítulo compreende as actividades que ocuparam estes homens, agrupadas em dois grandes sectores: o da pesca, abordada a partir de uma perspectiva assumidamente laboral; e o da navegação e do comércio marítimo, relacionadas quer com questões portuárias locais (alfândega e frota), quer com a identificação dos agentes e da sua acção em espaços externos, nomeadamente nos circuitos europeus e transatlânticos. O quarto capítulo, dedicado às dinâmicas sociais, pretende estudar o homem do mar enquanto
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agente social, sujeito a exclusões, mas também a um forte sentido de pertença ao grupo. Questões de mobilidade geográfica e a forma como esta se interliga com a criação de laços familiares, redes de negócio, ou simplesmente, com o aumento do seu raio de acção serão também objecto da nossa atenção. Apontamos ainda algumas formas de assistência, religiosidade e organização do grupo dos homens do mar porque as consideramos centrais como mecanismos de análise social comunitária.
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2. O Espaço 2.1 Espaço natural “Même si l'historien est enclin à privilégier le temps à l'espace, il ne peut jamais tenir pour négligeable le cadre naturel dans lequel évolue la société qu'il souhaite étudier. Cette règle vaut tout particulièrement dans le cas des sociétés maritimes où l'effect du lieu est determinant”1. Alain Cabantous esclarece, no entanto, que não se trata de uma tradicional descrição geográfica, meramente introdutória, que passe ao lado da análise social propriamente dita. Bem pelo contrário, trata‐se de uma das mais fundamentais variáveis a considerar neste tipo de análise, compreender a relação que o homem do mar estabelece com o espaço no qual exerce a sua acção: “Comment ne pas s'interroger sur les poids des contraintes naturelles, muables ou immobiles, qui provoquent au dynamisme ou au repli, qui définissent ou non les caractères maritimes d'une population, qui conditionnent une part des relations sociales des hommes de la mer?”2 A este pressuposto teórico acrescentemos um exercício essencialmente prático: na ausência de indicadores relativos à tipologia e volumetria de embarcações, ou até mesmo à frequência de movimentos portuários, tornou‐se imperativo reconstruir o estado da barra de Caminha e da navegabilidade do Rio Minho, no século XVI, de forma a alcançar uma das mais importantes condicionantes a considerar neste tipo de estudos: a facilidade de acesso das embarcações à vila. Assim, ao silêncio da documentação, respondemos com o que nos pode testemunhar a paisagem: um rio Minho de difícil acesso que isolou Caminha de outros centros portuários, ou pelo contrário, uma via de comunicação por excelência que permitiu a circulação de pessoas e produtos? 1 2
CABANTOUS, 1991: 55 CABANTOUS, 1991: 55
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Admitimos a nossa dificuldade em abordar questões de reconstrução de paisagens naturais, que requerem conhecimentos especializados que a nossa formação básica não nos facultou, e, portanto, a necessidade de recorrer a uma orientação mais especializada. Depreende‐se facilmente que a bibliografia nos pôs em contacto com uma disciplina completamente nova para nós: a geomorfologia. Foi necessária uma atenção redobrada nas leituras, assim como a familiarização com um vocabulário muito especializado. Porém, este passo foi essencial para uma reconstrução espacial consistente e fundamentada. Devidamente contextualizados, partimos para a análise de fontes históricas, nas quais procuramos indícios de alterações na barra. A natureza dos fenómenos geomorfológicos impõe estudos na longa duração. Com efeito, se um assoreamento pode ocorrer em intervalos de tempo mais reduzidos, falar em evolução de linha da costa pressupõe a análise de testemunhos num tempo alargado. Assim, apesar de termos tentado privilegiar o século XVI, a nossa recolha documental abarcou também as centúrias de seiscentos e de setecentos. Seguindo uma metodologia comummente aceite3, recorremos a estudos geomorfológicos feitos por especialistas, testemunhos históricos e cartografia, analisados em três linhas de estudo: 1. Evolução do nível do mar e da sedimentação na costa litoral – na qual recorremos a estudos de longa duração e que cobrem um espaço alargado, para uma necessária contextualização. 2. A navegabilidade do rio Minho e a evolução da sua barra – na qual tentamos caracterizar a área da foz do Minho, a corrente fluvial e os diferentes fenómenos a que se encontram sujeitas.
3
POLÓNIA, 2002: 147
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3. A barra de Caminha nos testemunhos históricos – na qual tentamos ler e interpretar as fontes históricas de modo a que nos conduzissem a uma reconstrução espacial. 2.1.1. Evolução do nível do mar e da sedimentação na costa litoral Segundo Alveirinho Dias, é possível que a tendência actual de regressão do nível marítimo tenha sido interrompida, nos tempos históricos, por períodos transgressivos, isto é, em que a linha de costa apresentou tendência para migrar em direcção ao continente4. A evolução do litoral foi fortemente influenciada pelas pequenas oscilações climáticas históricas, sucedendo‐se os períodos de transgressão deposicional e regressão erosiva. Admitem‐se pequenas variações do nível do mar, que juntamente com as variações no abastecimento sedimentar foram determinantes para modificar a fisionomia do litoral português. Com efeito, é necessária cautela com a interpretação que aponta a navegabilidade dos rios como indicativo de altos níveis marinhos ou a que sustenta que a navegabilidade está essencialmente associada ao assoreamento, pois é preciso ter em conta os calados dos navios antes utilizados5. A deriva litoral, que transporta continuamente sedimentos, e cuja orientação depende da direcção dos ventos dominantes e, consequentemente da ondulação, resulta, geralmente numa orientação de norte para sul ao longo da costa do norte de Portugal6, o que provoca problemas de assoreamento a sul e erosão a norte nas estruturas portuárias, de tal forma que têm mesmo prejudicado instalações marítimas7. O estudo das variações históricas da linha de costa tem vindo a ser feito por exploração e comparação de mapas históricos (desde o séc. XIV até ao séc. 4
DIAS, 1993: 9‐11 DIAS, RODRIGUES, MAGALHÃES, 1997: 54‐60. As oito Cartas Litológicas Submarinas da Costa de Portugal, feitas entre 1913 a 1928, fazem o reconhecimento sedimentológico da plataforma continental. 6 ARAÚJO, 2002: 77 7 ALVES, 1996: 10 5
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XX), de documentação escrita, da toponímia, de dados arqueológicos, etc.8. Analisando as interpretações de diversos autores, pode concluir‐se que no início da expansão romana para o Ocidente (séc. III a.C.), coincidindo com uma fase de clima ameno, o nível do mar estava ligeiramente acima da posição que tem actualmente, condições que terão facilitado aquela expansão. Os rios europeus, incluindo o Minho, Lima, Tejo, Mondego e Douro eram então mais navegáveis. Ainda nos primeiros tempos da presença romana no país, uma fase de abaixamento da temperatura foi responsável por um avanço de linha de costa, o que permitiu a instalação de villas e fábricas de peixe durante o séc. I, em locais actualmente ao nível do mar. A partir do séc. III ocorre um novo período de aquecimento e consequente subida do nível marinho9. Entre os séculos XI a XV dá‐se o Pequeno Óptimo Climático, que na Península Ibérica foi caracterizado por uma amenidade climática que parece não ter tido paralelo em outros tempos históricos, e em que, provavelmente, o nível médio do mar ocupou posição igual ou ligeiramente superior ao actual10. O recuo da linha da costa decorreu, assim, de uma subida do nível do mar, ao mesmo tempo que se verificou um assoreamento dos estuários11.
Fig.1 – Linha de evolução da temperatura global antes do presente (BP). Fonte: DEAN, 2000
8
DIAS, RODRIGUES, MAGALHÃES, 1997: 54 ALVES, 1996: 282 10 DIAS, 1993: 9‐11. 11 ARAÚJO, 2002: 78 9
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Desde o século XIV até ao século XVI passa‐se por uma fase de transição, estando a Pequena Idade do Gelo definitivamente estabelecida na Europa por volta do século XVI. Aparentemente, nos séculos XVI e XVII o nível médio do mar atingiu uma posição sensivelmente inferior à actual. O mínimo de Maunder I (ver fig. 1), entre 1550 e 185012, altura em que as manchas solares se esbateram, caracterizou‐se num acentuado arrefecimento climático, de 2ºC de temperatura, e por uma intensificação e agravamento das tempestades, maior que a dos tempos modernos, resultando em muitos desastres costeiros13. Na sequência deste período mais frio, em que a distribuição sazonal das chuvas era diferente da actual, ocorreu intensa sedimentogénese e o litoral apresentou comportamento regressivo bem marcado. Na Península Ibérica, esta transição climática parece ter sido mais brusca do que no resto da Europa, e ter sido mais drástica na parte atlântica do que na mediterrânica. Assim, no decurso da Pequena Idade do Gelo ter‐se‐ia verificado um aumento substancial do transporte sedimentar por via fluvial. Simultaneamente, uma mais intensa ocupação do território, a expansão das áreas consagradas à agricultura e o desenvolvimento de práticas agrícolas intensivas tiveram, em geral, como consequência, uma maior erosão dos solos e, portanto, um maior fornecimento sedimentar ao transporte fluvial14. A cobertura dunar do litoral minhoto, representada nas cartas geológicas, ter‐se‐á formado nesta altura15. O aquecimento actual iniciou‐se a seguir à Pequena Idade do Gelo, acompanhado por uma subida do nível do mar (12 cm de 1825 até 1973)16. 12
M. J. Alcoforado situa o "Mínimo de Maunder" entre 1675 e 1715. In ALCOFORADO, 1999: 3 ARAÚJO, 2002: 81 e GRANJA, 2002: 99 14 DIAS, 1993: 9 ‐11 15 ALVES, 1996: 284 16 ARAÚJO, 2002: 76 13
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2.1.2. A navegabilidade do rio Minho e a evolução da sua barra O perfil do rio Minho apresenta tipicamente duas situações distintas entre o litoral e o interior: no interior, o perfil é de um rio de alta energia, com fortes correntes, rápido; com a proximidade do litoral apresenta um carácter marcadamente mais regularizado; a competência é extraordinariamente mais reduzida, o rio desliza aqui suavemente durante várias dezenas de quilómetros, permitindo que o efeito das marés se manifeste bastante para o interior, até cerca de 40 km, o que transforma o estuário num importante receptor de sedimentos.
Fig. 2 – Localização de Caminha. Fonte: Carta Administrativa Oficial de Portugal, escala 1:25 000, IGP, 2004.
30
Fig. 3 – Zona do estuário do Rio Minho (Maio de 2004). Fonte: http://earth.google.com/intl/pt.
Para montante de Seixas e até Valença, o estuário do Minho é reduzido praticamente a um só canal navegável, de profundidade mais uniforme, permitindo a navegação a embarcações de calado pouco superior a 2 metros. Informações recolhidas em documentos antigos indicam claramente que tanto o rio Minho como o Lima foram navegáveis por embarcações de calado significativamente maior que o dos pequenos barcos sem quilha que actualmente aí se podem encontrar, as maceiras ou gamelas. Valença, ainda em meados do séc. XV, era visitada por barcos estrangeiros e possuía navios que se davam a um comércio activo com outros portos do reino e fora dele17. O rio Minho percorria‐se por barco até mais de 50 km da foz, para lá de Valença18. 17 18
ALVES, 1996: 31, 143 e 296 MARQUES, 1987: 128
31
Descrição da costa entre a Foz do Rio Minho e Moledo do Minho: ‐ Limitada pelo rio Minho, do lado norte, e o extremo sul da povoação de Moledo, com forma aproximadamente triangular, cujo vértice recto se situa na foz daquele rio, desenvolve‐se uma plataforma baixa, entre a arriba e a costa, ocupada em grande parte por uma mancha de pinhal, o Pinhal do Camarido. A costa é, na totalidade, constituída por praia arenosa, com uma extensão de 2,5 km, formando um duplo arco aberto para o lado do mar que no ponto de encontro dos dois arcos gera uma praia em ponta (Ponta Ruiva).
Fig. 4 ‐ Foz do rio Minho. Por efeito de difracção e refracção as ondas cruzam‐se contribuindo para a formação duma praia em ponta entre o Pinhal do Camarido e a Ínsua de Caminha. In ALVES, 1996: 94
Frente à embocadura do rio existe uma pequena ilha, a Ínsua de Caminha, distanciada da praia cerca de 500 metros. A Ínsua divide a entrada do estuário em dois canais: o do lado norte, chamado barra espanhola, tem zonas de maior profundidade, contudo a navegação, raramente se faz por este canal, mesmo para pequenas embarcações, dado que o fundo é rochoso e pejado de escolhos; o canal do lado sul, ou barra portuguesa, tem fundo arenoso, mas
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frequentemente encontra‐se assoreado, com migração dos bancos submersos19. Esta ínsua é abrigada do mar por um renque de penedos, chamados Ínsua velha, que na preia‐mar ficam a descoberto20.
Fig. 5 – Ínsua de Caminha (Maio de 2004). Fonte: http://earth.google.com/intl/pt.
Independentemente da orientação da ondulação considerada, cada onda é dividida em dois arcos, um do lado norte e outro do sul, ficando uma das extremidades de cada arco "apoiada" na ínsua enquanto a outra "varre" a praia. Tais efeitos produzem junto à praia duas correntes longitudinais convergentes, uma com sentido norte‐sul a partir da foz do Minho e outra com sentido sul‐ norte a partir da praia de Moledo. O encontro destas duas correntes provoca a deposição dos sedimentos nelas transportados, com o desenvolvimento de uma praia em ponta, frente à Ínsua, provocando o assoreamento da barra portuguesa. A Ínsua de Caminha, situada paralelamente ao litoral, funciona como um quebra‐mar (ilha barreira), originando, do lado da praia que lhe fica 19 20
ALVES, 1996: 79‐80 VASCONCELOS, 1984: 8
33
imediatamente em frente, uma acumulação de areia em forma de tômbolo (ou praia de ponta). Periodicamente, quando a reserva em sedimentos arenosos aumenta significativamente, forma‐se um cordão arenoso que une a Ínsua à Ponta Ruiva, dando assim origem à formação de um tômbolo. Esta ligação dura apenas alguns dias e acaba, novamente, por desaparecer21.
Fig. 6 ‐ O assoreamento no estuário do rio Minho (Setembro de 1994). In ALVES, 1996: 303
Na atribuição de foral à vila de Caminha, em 1284, e na sequência de exigências semelhantes para outras regiões, D. Dinis ordenou a plantação de um pinhal junto à foz do rio Minho, para deter o avanço das areias sobre os terrenos agrícolas. Porém, os problemas do assoreamento do Minho continuaram a fazer‐se sentir. O século XVI foi marcado por uma forte actividade eólica, pelo que a povoação de Éster, em Viana do Castelo, chegou mesmo a ser soterrada22. A barra, outrora funda e limpa, foi‐se obstruindo e solidificando a leste, originando a formação do assento arenoso da vila de Caminha, dentro e fora 21 22
Litoral de Caminha: uma paisagem a salvaguardar, 1988: 10 ALVES, 1996: 80‐285
34
muralhas, como de toda a margem abaixo dos morros do Sinal e Santo António, assim como o areal à borda do monte de S. Tiago de Cristelo, no local que se denomina Camarido23. Pior que o aperto dos rochedos marginais, a implantação do pinhal, na duna do cabedelo, solidificou‐a irremediavelmente, constituindo um obstáculo à entrada do rio dos navios de médio calado, pela progressiva penetração da duna na barra. Jaime Cortesão concluiu, com apoio na cartografia e em fontes escritas coevas, que na Idade Média a costa portuguesa era muito mais recortada e que foi o assoreamento pós‐medieval que inutilizou certos portos, que já tinham sido animados24. Hoje em dia, o assoreamento, bem evidente na maré baixa, tem sido sobretudo problemático para os pescadores. A diminuição da cota do leito do rio tem originado uma baixa significativa no referente a espécies migratórias como a lampreia, o sável e o salmão25. 2.1.3. A barra de Caminha nos testemunhos históricos Após termos descrito os vários fenómenos a que a barra de Caminha esteve, e está, sujeita, e termos traçado a evolução do seu desenho com o auxílio dos estudos geomorfológicos, podemos recorrer agora à análise das fontes históricas. Com efeito, um estudo geomorfológico impõe‐se para uma melhor compreensão e contextualização dos testemunhos que conseguimos reunir. 23
BRITO, 1987: 92 ABREU, 1987: 58 25 ALVES, 1996: 297 24
35
A barra no século XVI Uma das fontes quinhentistas, incontornável para quem estuda as paisagens, é o levantamento das praças fortificadas de Portugal, realizado em 1509 por Duarte d’Armas26. Ele não nos informa, directamente, sobre assoreamentos ou navegabilidade fluvial. Porém, a presença ou ausência de embarcações, assim como o seu número e dimensão, podem‐nos dizer muito acerca destes dois fenómenos.
Fig. 7 – Rio Minho. In ARMAS, 1997
26
ARMAS, 1997
36
Fig. 8 – Valença do Minho. In ARMAS, 1997
Fig. 9 – Monção. In ARMAS, 1997
37
Nas representações de Caminha, a parte vestibular do rio aparece frequentada por grandes naus e caravelas: uma das naus afasta‐se em direcção ao oceano, enquanto outra nau e duas caravelas ficam ancoradas na foz, perto de Caminha, e a terceira nau ao pé do castelo de Vila Nova de Cerveira (ver fig. 7). Mais a montante, em Valença do Minho, estão ancoradas no rio duas grandes naus, com três mastros e castelos à proa e à popa, e também duas pequenas caravelas, com dois mastros e duas velas triangulares (ver fig. 8). Três léguas mais a montante, em Monção, o desenhador representou apenas uma barca no rio, pequena, como permite apreciar o barqueiro nela instalado, e com uma vela só (ver fig. 9). Estas representações parecem confirmar que a interrupção da navegação marítima se fazia em Valença, e que as mercadorias passavam em Monção levadas em récuas de bestas, dirigidas por almocreves27. Estes indicadores indirectos parecem sugerir, em primeiro lugar, o alcance da navegabilidade do Minho, até Valença; e em segundo lugar, a presença de grandes embarcações na barra de Caminha, pelo que esta se deveria encontrar aberta e desassoreada. João de Barros, na sua Geografia, diz que o rio Minho“... na foz do qual está a vila de Caminha, uma légua do mar, onde ha muito bom porto para os navegantes e na foz está uma pequena ínsua que não tem mais espaço que onde está um mosteiro pequeno da ordem de São Francisco da Observância (...) cercado de todas as partes de bravo mar e ondas que se encontram do mar e do Minho e muitas vezes cresce o mar tanto que entram as ondas no mosteiro e os religiosos se sobem ao telhado com temor”28. Desta pequena descrição facilmente se pode concluir acerca da existência de um bom porto para a navegação, assim como da tempestuosidade do mar na zona da foz.
27 28
DAVEAU, 2003: 81‐96 BARROS, 1919: 84
38
A qualidade do porto de Caminha é confirmada por Frei Bernardo de Brito, que sobre o rio Minho diz: “... a sua corrente é navegável algumas léguas com embarcações de bom tamanho”29. De maior pertinência para este estudo são as informações dadas pela documentação local, nomeadamente pelos testemunhos deixados ao longo do tempo pelos frades do Mosteiro de Nossa Senhora da Ínsua, que presenciaram estes fenómenos: •
(1580) “Os religiosos que tinham experiência da grande violência e
força que naquele sítio [junto ao sítio de Alverne] faziam os mares (...)” •
“Em o anno do Senhor de myl e quinhentos e tres em dia de Natal
acabasse a missa do galo se alevantou nesta insua o mar muy rijo que ffoy cousa de espanto que diziam assy os velhos que aqui moravam como os da villa de camynha que ayia bem xxx anos que tal não acordava tal (...) tal tormenta que não na pode crer senão quem a viu que nao deixou nesta insua hum soo punho de areia (...) e descobriu penedos que jaziam cobertos debaixo da areia que nunca ninguem vira ffez barrancos de arredor da insua e assy cortou a terra (...) moveu penedos que cento homens não poderiam com elles (...) e fazia hi tam triste som que não avya ninguem que não ouvesse pavor muitos dos que aqui estavam não dormiram aquela noite muito consolados.” •
“Na era de 1545 foi tamanha maresia que botava por riba do muro
que defende a agua (...)” •
“Na era de 1548 no mes dabril hu dia aa hua hora depois de meyo
dia entrando hua das derradeiras pinaças de Caminha pella barra de galiza, ao longo da ynsoa velha, que chamão porta(?), com muyto grande noroeste lhe deu hu maar dandacya(?) que assy lhe chamão nesta terra e a levou ao fundo com tanto impeto que lhe quebrou a proa donde deu, onde morrerão cinco pessoas (...)” 29
BRITO, 1597: 6
39
•
“Em o ano do Senhor de 1561 (...) entrou nesta casa da Insoa o dito
padre frey padre ministro a primeyra vez a visitala aos 12 dias de julho da dita era hu sabado vimdo pelo minho abayxo em hu barco com tanta bonança que ate a ynsoa vierão à vela sem entrar na villa.” •
“Na era 1574 a 13 de setembro se levantou o mar na mare de polla
manhã e sem nenhuma tempestade da terra de maneira que os homens velhos affirma não não (sic) verem nunqua tal estava tão rebentada maresia e em tal tempo neste mesmo dia que era uma segunda que se perderão sahyndo da Guarda tres dornas em as quaes dornas morreram 10 galegos.” •
“Em a era de 1582 8 dias antes do natal forão tamtas as tromentas e
tempestades que fazia medo e pavor as gentes he os velhos da terra diziam a ver trimta annos ou mais não berem tal (...) foy tam gramde a furia da tromenta que (...) nao deixou nesta Imssoa case area, mas toda em redor era penedia foy tamta a augoa que das teras he momtes veo que trouxe tamta he tam gramde numero de area que fez hua pomta do cabedello fromteira a barra de galiza tam gramde que os vivos he muito velhos de outro tal sennão acordao por que corendo esta area ate defronte da portaria desta caza fycou tam perto e baixo que pasarão alguns homens a pee (...) he no mesmo tempo veo dar ha costa da bamda de baixo da camboa hua ballea muy grande ha qual parecia ter sesemta palmos de comprimento ou mais por que nesta casa ficou hu oso que dizião ser de hua queixada que tinha 22 palmos de comprido ha qual baalea veo na preamar da noute he se foy na preamar de dia por que tava gramde ha marosia por que queremdo a medir nos não deu logar (...).”30 Em 1532, Claude de Bronseval, ao entrar em Portugal, descreve a chegada à “... praça forte de Caminha situada sobre a margem do rio. Foi preciso atravessar aqui e não sem perigo, as águas do mar, que refluíram ao conter as do rio. Mas um bateleiro fez‐nos atravessar com toda a segurança as 30
A.D.B. ‐ Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha.
40
ondas profundas e caprichosas. Desta cidade, vê‐se o mar que bate duas vezes por dia as muralhas com as suas ondas potentes.”31 Se, por um lado, estes testemunhos alertam para a violência das correntes do rio Minho, eles apontam também para uma inconstância no nível das suas águas. Com efeito, a par das tormentas que faziam a água chegar aos muros do convento, encontramos relatos de claros assoreamentos que tornaram possível a passagem para a Ínsua. Frei Miguel da Purificação, também ele religioso do Convento da Ínsua, relata, num manuscrito setecentista, que em 1575 e 1582 “... secou de tal forma a barra portuguesa que se passou a vau para a Ínsua”32. Da mesma forma, em 1562, a vereação caminhense recorre ao rei no sentido de proibir o corte de lenha na mata do Camarido, visto que “... o ano passado ouvera ali muita instruição de lenha que se cortou por onde e por esta causa a barra está enserrada com areia que se não podia por ela navegar com a muita areia que correu e tapou a barra”33. A análise de mapas antigos, nomeadamente os de Petrus Vesconte (de 1318), de Álvaro Seco (de 1560 e 1561), de Ortelius (de 1570), de João Teixeira (de 1648) e de Teixeira Albernaz (de 1662), permitem constatar que a configuração do litoral português era, então, sensivelmente diferente da actual. Embora esta cartografia antiga deva ser analisada com precaução devido às incorrecções que frequentemente apresenta (na maior parte derivadas das técnicas cartográficas ao tempo disponíveis), é possível verificar que a maior parte das lagoas se encontravam ainda abertas para o mar, que o assoreamento dos estuários era reduzido, e que as restingas arenosas que se desenvolveram na foz dos rios parecem estar, nessa altura, em fase de constituição. Junto à foz do rio Minho, por exemplo, a acumulação arenosa da Camarido‐Moledo parece ser, nos mapas referidos, muito pequena ou quase inexistente34. 31
BRONSEVAL, 1970: 309 B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fl. 23 e 54v. 33 T.T. ‐ Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, lv. 3, fl. 175‐175v. 34 DIAS, 1993: 9‐11 32
41
Fig. 10 – Região do noroeste peninsular. In SECO, Fernando Álvaro – Portugallia et Algarbia (“Portugal Deitado”) (1561). Amsterdão: Ed. Irmãos Blaeuw, 1630.
Suzanne Daveau, apesar de considerar este mapa do tipo corográfico, considera ser uma das suas características mais notáveis a abundância e boa qualidade do traçado da rede hidrográfica35. Considerando isto, torna‐se notável a largura que o rio Minho assume nesta representação cartográfica.
35
DAVEAU, 2000: 12
42
Fig. 11 – Região do sul da Galiza. In OXEA, Frey Fernando ‐ Mapa do Reino da Galiza
Este extracto do Mapa do Reino da Galiza é dos finais do séc. XVI, e da autoria de Frey Fernando Oxea, historiador e geógrafo, nascido em Ourense, em 1560. Mostra que, ao seu tempo, a barra do canal sul da boca do Minho era bem mais ampla, e que a meio dela, mais perto da margem norte, se constitui uma avultada Ínsua, da qual restam, na actualidade, as penedias da chamada Ínsua‐Velha e a Ínsua‐Fortaleza36. O que justifica, porém, a exagerada largura atribuída aos estuários dos rios que desaguam ao norte do Douro? Na verdade, esse facto não basta para aí ter prosperado o comércio marítimo, pois o que interessa ao calado dos navios é a profundidade das águas, e não a largura das vias fluviais: os barcos do séc. XIV não exigiriam amplos átrios de estuário37. 36 37
BRITO, 1987: 91‐93 MARTINS, 1947: 18
43
A barra no século XVII
Fig. 12 – Foz do rio Minho. In TEIXEIRA, Pedro ‐ Descripcíon de España y de las costas y puertos de sus reinos (1634).
Esta representação identifica, claramente, a divisão da entrada do Minho em duas barras: a galega e a portuguesa, fazendo circular, por esta última, embarcações de grande volumetria. É também de notar a largura que o rio Coura apresenta, diminuindo consideravelmente o espaço da vila. Pedro Teixeira completa a sua descrição informando que: “... entre la ynsoa y la tierra firme, que llamam el cabo de san Yzidro tiene esta barra de ancho hun quarto de legua. Y aunque de menos fondo que la que queda a la parte del septentríon y
44
Galizia es más segura, por ser más linpia. Divide estas dos barras del río Miño una ysleta que tiene de sercuyto duzientos paços y en ella está fundado un conbento de la orden de San Françisco que llamam San Antonio. Y por estar tan desabrigada y metida en el mar es muy frequentada de los piratas, de ordinario. Y a susedido munchas vezes veniren dando casa a los navíos y ellos, por no ser tienpo para tomar la barra, vararen en tierra. (...) Tiene de fondo esta barra dicha de Portugal en la entrada dos braças y media y dos braças, y en medio huna braça, dando fondo dentro en el puerto en dos braças. Y en la otra que llamam de Galizia tiene a la entrada trez braças, y en medio huna, y luego dos, entrando en el puerto del poniente ao levante.”38
Fig. 13 – Entrada da barra de Caminha. In BLAEW, William Iansz ‐ De Zeecusten van Galissen Tusschem de Cabo Finisterre en Camino (1638). Fonte: B.P.M.P. 38
TEIXEIRA, Pedro ‐ Descripcíon de España y de las costas y puertos de sus reinos. 1634, fl. 44v. Publ. in El Atlas del Rey Planeta: La "Descripcíon de España y de las costas y puertos de sus reinos", de Pedro Teixeira (1634), 2003: 334‐ 335
45
No atlas de Blaew o desenho da barra de Caminha não merece tanto pormenor, mas as indicações de baixa profundidade (possíveis assoreamentos) apontam já para dificuldades na entrada de grandes barcos. Curiosamente, a sua circulação parece fazer‐se pelo lado galego, contrariamente ao que as outras representações cartográficas indicam.
Fig. 14 ‐ ABERVILLE, N. Sanson ‐ Mapa do Reyno de Portugal (1654). In BRITO, 1988: 21
Este extracto do Mapa do Reyno de Portugal, de N. Sanson de Aberville, dedicado a D. João IV, em 1654, coloca ainda na foz do rio Minho uma larga boca39. Tem ainda a particularidade de mostrar, defronte da margem norte, em vez de uma ínsua, duas (provavelmente causada por um ligeiro abaixamento do nível do mar). Na centúria de seiscentos, a foz do Minho é ainda larga e permite a navegabilidade de barcos de grande calado. Porém, alguns fenómenos geomorfológicos deveriam já concorrer para a alteração da linha de costa. Neste sentido, seria bastante pertinente perceber os fenómenos que afectaram a acessibilidade ao cais de Caminha ao longo de seiscentos. Com
39
BRITO, 1988: 21
46
efeito, iniciada a sua construção em 161240, menos de cem anos depois, diz‐nos Carvalho da Costa que “... a torre do Marquês, que em outro tempo foi de grande serventia para os navios que junto a ela estavam no rio Minho com um cais muito grande de cantaria; porém como as areias tudo cobriram, se perdeu o uso desta porta.”41 Da mesma forma, Pinho Leal, tratando da vila de Caminha, relata que: “... junto à Torre do Marquês houve antigamente um grande cais onde carregavam e descarregavam navios de muito maior lote do que os que hoje podem entrar na barra; mas as areias foram cobrindo este cais, até ficar completamente enterrado...”. Acrescenta também que “Caminha, ainda no século XVI formava uma península triangular, e muito menos espaçosa do que actualmente; porem o Coura (que então passava por onde hoje é a praça do Terreiro) foi‐se obstruindo na sua margem esquerda e invadindo os pântanos da margem oposta, dando assim mais amplitude à vila, e à península sobre que ela está fundada, a configuração quadrangular que actualmente tem”42. A barra no século XVIII O século XVIII é rico em trabalhos corográficos e descrições geográficas do território nacional. Os seus autores, de uma forma mais ou menos fidedigna, preocuparam‐se em descrever as paisagens naturais, as vilas, as populações, e, naturalmente, os rios. Em 1722, o pároco da igreja matriz de Caminha, respondendo ao apelo dos inquéritos promovidos pela Academia Real de História, redige uma memória sobre os acontecimentos mais importantes da vila. Nela, refere que em 1708, no mês de Setembro, “... o mar acrescentou tanto as areias para a parte do Sobreiral que a dita barra, por onde entravam embarcações para a vila de Caminha, ficou seca”. Curiosamente, na mesma memória, o pároco sente a 40
B.N. ‐ Reservados, Ms. 8750. MORAIS, Pe. Gonçalo da Rocha de ‐ Grandezas da Villa de Caminha, 1722. COSTA, 1868‐1869: 246 42 LEAL, 1874: 54‐57 41
47
necessidade de certificar que “... tem esta vila uma das melhores barras do reino de Portugal e um cabedelo capaz de ter muitos navios”43. Uma das fontes mais recorrentes para estudos paisagísticos, no século XVIII, são, sem dúvida, as Memórias Paroquiais de 1758. Dirigido aos párocos, e admitindo‐os como bons conhecedores das realidades locais, este inquérito, sobre os mais variados temas, incluía questões sobre as paisagens naturais, como os rios e as serras. Nas suas respostas, os párocos vão dando diferentes informações que, directa ou indirectamente, nos permitem fazer algumas leituras históricas do espaço. Estas notas não eram dadas com nenhum tipo de interesse climatológico ou geomorfológico, surgem de forma inocente, associadas, muitas vezes, a queixas sobre fugas da população, e/ou situações de carestia. Com efeito, os males denunciados nas Memórias Paroquiais são de diversa ordem: a intensidade dos ventos; a invasão de areias vindas do mar; o assoreamento dos rios, particularmente junto à foz; o depósito de areias na margem esquerda (sul) dos rios (atlânticos), e a seca dos cursos de água no verão44. Felizmente para o nosso estudo, as Memórias Paroquiais da vila de Caminha45 são ricas neste tipo de informações. Na verdade, conseguimos encontrar indicadores de interesse nas memórias de cinco freguesias (que correspondem exactamente às freguesias do litoral). Os problemas de assoreamento e de acesso à barra de Caminha estão bem patentes nestes testemunhos. O pároco da vila já não nos relata a presença das grandes embarcações de outrora, mas apenas de barcos, lanchas, e iates. Acusa um assoreamento e uma descida do nível das águas46. Em Cristelo, surge novamente a diferenciação entre as duas barras, referindo‐se o pároco à barra 43
B.N. ‐ Reservados, Ms. 8750. MORAIS, Pe. Gonçalo da Rocha de ‐ Grandezas da Villa de Caminha, 1722. ABREU, 1987: 56 45 CARVALHO, 1979 46 “ ... tem porto de mar por onde entram iates de sal e outros de cal e também barcos grandes dos pescadores naturais e algumas lanchas” e “... o rio Minho é navegável de barcos, lanchas e iates e não é muito capaz para outras embarcações por a barra ter às vezes suas areias e nele baixarem muito as águas” 44
48
galega, assim denominada por ficar a norte da fortaleza da ínsua. Nesta freguesia, onde actualmente se situa a ponta do cabedelo, confirma‐se o testemunho anterior: as embarcações maiores que entram são iates e caravelas, por a barra estar areada e ser brava (mais uma referência à tempestuosidade das águas)47. Mais a sul, em Moledo, acrescenta‐se que estas mesmas embarcações entram apenas com duas condições: estando preia‐mar e tendo vento sul. A barra é larga, mas tem muitas pedras e areias, pelo que, muitas vezes, os barcos, estando vento norte, preferem utilizar a barra galega48. Continuando para sul, o pároco de Gontinhães (actual Vila Praia de Âncora) apenas testemunha a movimentação de barcos de pescadores, e algumas lanchas da Galiza e Caminha, e apenas nos meses de Verão, ou estando o mar sereno49. A norte, e já dentro do rio Minho, o pároco de Seixas alerta para o facto de as caravelas e pataxos já lá não chegarem. O assoreamento, que diz ser provocado pelas areias fluviais, era de tal ordem que as embarcações não passavam do cabedelo e do cais de Caminha50. João Baptista de Castro, alguns anos depois, indica que a foz do Rio Minho tem na sua entrada uma ilha, onde está o forte de Nossa Senhora da Ínsua, que faz duas barras pequenas: uma para o norte e é perigosa; e outra para sul51. A sua obra recupera a ideia de que a barra galega não era aconselhável à navegação.
47
“... não fica nesta freguesia o porto de mar onde descarregam as embarcações que acodem e entram nesta barra, que se apelida de Barra Galega, por ficar a norte da fortaleza da ínsua para o reino da Galiza, pela qual entram os iates ou caravelas que de Setúbal vêm com o seu sal. Estes são os maiores, mas também entram quaisquer pataxos, lanchas e todo o género de barcos de pescaria, e outros maiores não entram por estar a barra areada e ser brava” 48 “... barra portuguesa pela qual estando preiamar e tendo vento sul entram alguns iates ou caravelas que com o seu sal vêm ao porto de Caminha e a toda a hora entram barcos de pescaria. Esta barra é bastantemente larga com muitas pedras e para dentro está muito cheia de areia, e ordinariamente as embarcações entram pela barra galega com vento norte” 49 “... há nesta freguesia um porto de mar por natureza, onde chamam o Porto de Âncora no sítio do lugar da Lagarteira, pelo qual entram somente barcos de pescadores, e algumas lanchas da Galiza e Caminha, principalmente nos meses de Verão, ou estando o mar sereno” 50 “... entram pela barra caravelas e pataxos com sal, porém estes não passam do cabedelo e do cais de Caminha por causa das muitas areias que mete o Minho” 51 CASTRO, 1762‐1763: I,18 e IV, 175
49
Estas mesmas descrições são comprovadas por Frei Miguel da Purificação: “... a barra galega fica direita a oeste, é semeada de muitos cachopos pelos lados; a portuguesa fica ao sudoeste, é muito limpa. Tem dentro uma enseada muito capaz, muito abrigada e fiel às embarcações. Hoje só entram algumas caravelas, patachos e chalupas de sal e de cal.” 52 Frei Pedro de Jesus Maria José, mais um religioso da Ínsua, dá‐nos notícias de que as areias, com a sua inconstância, repetidas vezes deram passagem franca para terra da parte de Portugal, nomeadamente em 1575, 1582 e 1708. Acrescenta que este mesmo fenómeno “... aconteceu também da parte da Galiza, quando ainda permanecia a que hoje chamam Ínsua Velha que, comunicando‐se com a que agora existe, davam passagem livre e desembaraçada para as terras fronteiras do reino de Galiza”. Quanto a consequências desta actividade geomorfológica, refere que “... o circuito da praia está todo rodeado de camboas ou pesqueiras, que os religiosos começaram a fabricar desde os primeiros anos, em que foi notavelmente abundante a pescaria, e depois se foi esterilizando cada vez mais.”53 Bastante ilustrativa deste evidente assoreamento que a barra de Caminha foi sofrendo ao longo do tempo, e que reduz em grande parte a sua capacidade no séc. XVIII, é a Planta da barra de Caminha e entrada do Rio Minho de 1758:
52 53
B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fl. 23 e 54v. JOSÉ, AGUILAR, 1965: 14‐16
50
Fig. 15 – Planta da entrada do rio Minho. In BRANDÃO, Gonçalo Luís da Silva – Planta da barra de Caminha e entrada do Rio Minho (1758).
“Vê‐se aqui a barra de Caminha, fim do curso do Rio Minho, envolto no mar oceano, tanto pela parte de Portugal, como de Galiza, ficando‐lhe no meio a Fortaleza de Nossa Senhora da Ínsua que o divide. Mostra‐se La Guardia, sua enseada e fortaleza, o Camarido, o Rio Coura e salinas que da sua parte há. Pelas duas barras só entram embarcações pequenas, como iates e caravelas. O que se diz Camarido é mais de quarto de légua de mata de sobreiros e pinheiros velhíssimos, que em dia de São Bento deste ano de 1758 padeceram grande destroço.” A – Rio Minho
K – Pedras Ruivas
B – Barra de Galiza
L – La Guardia
C – Barra de Portugal
M – Fortaleza de Santa Cruz
D – Vila de Caminha
N – Freguesia de São Lourenço de Sibadães
E – Igreja Velha
O – Ponte de Tamuje
51
F – Camarido
P – Serra altíssima e Ermida de Santa Tecla
G – Fortaleza de Nossa Senhora da Ínsua
Q – Lugar de Camposancos
H – Salinas
R – Rio Coura
I – Nossa Senhora da Ajuda
S – Convento das Freiras de La Guardia
A utilização de tão diversas fontes pode parecer ter resultado em
conclusões dispersas, criando um conhecimento fragmentado da paisagem. No entanto, compreenda‐se que se trata essencialmente de apurar algumas tendências gerais da evolução geomorfológica que nos permitam dissertar sobre as relações estabelecidas pelo homem do mar com o seu espaço: “Com efeito, qualquer que seja a variável‐chave, um grupo humano estabelece sempre relações com o seu ambiente, e muitos fenómenos sociais não podem ser explicados sem uma referência a estas relações que são dialécticas.”54 Neste sentido, parece‐nos legítimo afirmar que no século XVI a barra de Caminha ainda permitia uma boa acessibilidade às grandes embarcações, e que o Minho apresentava uma boa navegabilidade. Os problemas de assoreamento, que já se revelavam na centúria de quinhentos, são muito mais significativos, ou conhecem a sua maior expressão continuada no século XVIII, quando limitam a utilização da barra de Caminha às embarcações mais pequenas.
2.2. Espaço social “É sabida a atracção que a beira‐mar exerceu sobre a população portuguesa na época moderna. Os portos de embarque e chegada, nas embocaduras dos rios ou nas enseadas do mar, tornaram‐se, por isso, lugares "chamarizes" de povoamento e habitação”55. Após termos desenhado o espaço 54 55
BRUN, 1986: 19 DIAS, 2002: 277
52
natural de Caminha, e analisado os fenómenos geomorfológicos a que se encontra sujeito, concluímos acerca da sua potencialidade como um "lugar chamariz" à fixação de população. Assim sendo, como evoluiu a ocupação humana em Caminha? De que forma uma comunidade marítima organiza o seu espaço? No ano de 1512 a população de Caminha entregava‐se, desde há oito ou mais anos, à construção da muralha, “... obra muito grande e de muito custo” 56. Apesar de gastarem “... de suas casas muito dinheiro que he maravilha soportarem tanto trabalho”, estava ainda por cercar mais da terça parte da vila. Dos projectos da câmara faziam ainda parte a construção do cais da vila, “... que ha de seer mui grande obra”, e fazer o caminho da Junqueira, caminho empedrado que ligaria Caminha a Vila Nova de Cerveira. A estes empreendimentos acrescentemos a construção da Igreja de Nossa Senhora da Assunção ou dos Anjos, matriz de Caminha, iniciada a 4 de Abril de 1488. Principiada à custa da Câmara e com esmolas do povo da vila, D. Manuel I terá contribuído muito para a sua conclusão, em 155657.
Fig. 16 – Caminha In ARMAS, 1997 56
OLIVEIRA, 1976: 125‐165. O seu período de maior edificação foi até 1516, datando de 1511 a Capela dos Mareantes. In Reabilitação da Igreja Matriz de Caminha, 2007 e LEAL, 1874: 54‐57
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Se por um lado, todas estas obras resultam num grande peso fiscal e contributivo para a vila, não deixam de ser também um importante indicador do dinamismo interno da vila, e de certo modo do poder económico da sua população. Com efeito, teremos de comprovar se esta evolução acentuada da paisagem urbana, este pulsar da vila, resultaram do crescimento e do amadurecimento de Caminha enquanto comunidade. Após uma primeira ocupação na margem esquerda do rio Coura, “... onde ainda hoje chamam de Fonte da Vila”58, a comunidade caminhense deslocou‐se para a área habitacional actual, “... quase toda areia, e nela estão fundados os seus maiores edifícios”59. Claramente, assiste‐se à transição da população, de uma zona de interior, para uma localização estrategicamente bem mais perto da foz do rio Minho e de mais fácil acesso ao mar. Com o desenvolvimento da edificação, nomeadamente com a construção da muralha, começam a desenhar‐se espaços socioprofissionais bem delimitados. Dentro de muros habitam os mercadores, as pessoas honradas, os privilegiados, e, de forma geral, uma burguesia que se distribui pelos dois principais eixos intra‐muros: a Rua da Ribeira e a Rua dos Meios. O rol de 1513 refere que nesta última se encontrava “... o melhor terço da vila”, onde as melhores casas, edificadas por burgueses, e dentro do mimetismo dos arquétipos sociais, copiavam as características exteriores da casa nobre dos Pitas60. Informa‐nos ainda que pelas ruas da Ribeira e do Vau, na sua maior parte habitada por pescadores, se erguia o mesmo número de fogos. Note‐se, porém, que a Rua do Vau, ainda que usufruindo do estatuto de uma das principais ruas da vila, se situa já fora das muralhas. Em termos socioprofissionais ela constitui, juntamente com a Rua da Misericórdia e a Rua dos Pescadores (na realidade prolongamentos da Rua do Vau), o principal espaço de acção dos homens do mar. Carvalho da Costa chega
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B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fls. 55 a 63v. B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fls. 55 a 63v. 60 CRUZ, 1988: 91 59
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mesmo a considerar um eixo único: “... dentro della há só huma rua comprida, que chamão da Misericórdia, em que vivem os homens do mar”61. As alterações que o rio Coura sofreu, nomeadamente a diminuição da sua largura ao desembocar no rio Minho62, tiveram notórias consequências no espaço ocupado pela vila. Com efeito, a Rua do Vau “... tem o nome de Vau por se passar ali em o rio coura, na vazante da maré”63. Pinho Leal confirma que “Caminha, ainda no século XVI, formava uma península triangular, e muito menos espaçosa do que actualmente; porém o Coura (que então passava por onde hoje é a praça do Terreiro) foi‐se obstruindo na sua margem esquerda e invadindo os pântanos da margem oposta, dando assim mais amplitude à vila, e à península sobre que ela está fundada, a configuração quadrangular que actualmente tem”64. O mapa da figura 17 projecta essa distribuição populacional, bem como as projecções no espaço da sua evolução diacrónica.
61
COSTA, 1868‐1869: 246 Sugerida não só pela documentação escrita, mas também pela cartografia. Ver mapa da fig. 12. 63 B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fls. 55 a 63v. 64 LEAL, Pinho, 1874: 54‐57 62
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Fig. 17 – Caminha: presença de mercadores e pescadores no séc. XVI. Projecção sobre o actual espaço urbano.
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“Nos portos de navegação e comércio, a comunidade marítima tende a cindir‐se em duas: os estratos superiores tendem a diluir‐se e a procurar integrar‐se em espaços topográficos de elite, convivendo com os restantes grupos da burguesia artesanal e mercantil, com o oficialato e mesmo com os estratos nobres e nobilitados, buscando nessa centralidade um meio de prestígio e promoção social, enquanto os estratos inferiores tendem a delimitar‐ se em bairros mais concêntricos e excêntricos em relação ao núcleo urbano, convivendo, frequentes vezes, com os bairros de pescadores”65. Uma análise da distribuição da população pela vila, assim como da sua organização dentro do espaço urbano, explanada no mapa da fig. 17, permite‐nos integrar Caminha neste conjunto de pressupostos. Relativamente à construção de infraestruturas portuárias, sabemos apenas que em 1612 se principiou a fazer o cais da vila, situado no fim da rua do Vau, para a qual obra se fintou toda a comarca por provisão régia66. No entanto, as consequências das alterações geomorfológicas não se fizeram esperar, pelo que a porta da muralha “... que em outro tempo foi de grande serventia para os navios que junto a ela estavam no rio Minho com um cais muito grande de cantaria; porém como as areias tudo cobriram, se perdeu o uso desta porta”67. Apesar de a referência datar do século XVII, temos de considerar a forte possibilidade de o cais de cantaria ter sido construído sobre um ancoradouro que desempenhava desde sempre estas funções. Por confirmar ficam as ideias de o cais do Vau ser um cais essencialmente piscatório, no seguimento da zona de acção dos pescadores, assim como a de o ancoradouro, localizado no final da Rua Areinho do Ouro, estar mais vocacionado para a actividade comercial. Explica‐se que o seu nome é “... Arinho do Ouro, porque antes destes muros ia dar ao areal, que nesta terra se chama arinho, e se chamava de ouro tanta era a
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POLÓNIA, 2007b B.N. ‐ Reservados, Ms. 8750. MORAIS, Pe. Gonçalo da Rocha de ‐ Grandezas da Villa de Caminha, 1722. 67 COSTA, 1868‐1869: 246 66
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riqueza do comércio que aqui ouve em tempos passados, que aquela areia das praias do nosso Minho, em que encalhavam as embarcações dos negociantes”68. Um pouco dentro desta linha de estudo, trabalhos que têm sido feitos sobre alguns portos nacionais (como o Porto, Vila do Conde, Viana do Castelo e Aveiro) falam‐nos também de espaços que, mais ou menos estanques, albergavam as comunidades marítimas. Não podemos, por isso mesmo, pôr de lado a ideia da existência de uma delimitação sócio‐espacial em Caminha. Ainda hoje, a Rua dos Pescadores69, continua a ser ocupada pelas típicas habitações de pescadores, o que aponta para uma marca socioprofissional muito forte no espaço urbano. Os estudos que se fazem sobre as vilas mariñeiras da Galiza, verificam que não são poucas as vilas marítimas que testemunham uma tradicional segregação espacial do grupo de pescadores, em bairros muitas vezes denominados de A Pescadería, A Mariña, A Ribeira; e que ainda hoje se tornam passíveis de detectar, localizados, geralmente, fora de muralhas, e sempre bem delimitados. Segregação espacial que se reforçava corporativamente com a existência do próprio grémio ou confraria70. Em Pontevedra, a Moureira era um arrabalde marinheiro, onde se vivia da pesca na ria, da exportação e da construção de barcos71. Conferindo idêntica distribuição espacial em Caminha, não cremos, porém, poder falar de "segregação", até pelas próprias características dos homens do mar desta comunidade, matéria a que voltaremos.
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B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fls. 55 a 63v. Na realidade a rua de que falamos é hoje a Rua Benemérito Joaquim Rosas, mas o topónimo “Rua dos Pescadores” é o que continua a ser utilizado. 70 ROTA Y MONTER, 1996: 44 71 FILGUEIRA VALVERDE, 1996 69
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3. Os Homens “Dos salineiros aos pescadores, costeiros inicialmente e depois do mar alto, estabeleceu‐se uma gradação que corresponde à profundidade e à constância da sua relação com o mar. (…) Pouco satisfeito por ser um local de trabalho, ele apropria‐se de uma só vez de homens, mulheres e crianças que dele vivem; talha‐lhes a vida, a mentalidade e os gestos; é um molde cultural. Faz deles gentes do mar, ou seja, pessoas ‐ ou antes, grupos – que vivem do mar, por ele e para ele.”1
3.1. Quadro demográfico Em 1406, D. João I determinava que Caminha, por ser “... muito despovorada e minguada de gentes”, se tornasse couto de homiziados para pescadores e marinheiros de todo o reino, que houvessem praticado crimes graves. Encetava, desta forma, uma política de incentivo à fixação de população numa região que, por ser de fronteira, representava uma maior preocupação em questões defensivas. Sucederam‐se as respectivas confirmações régias a esta determinação, porém, ainda nas cortes de 1439, Caminha se queixava da “... mingoa e desffalecimento” em que se encontrava a localidade, procurando obter mais‐valias, como certas isenções fiscais sobre a prática da pesca2. O primeiro recenseamento populacional realizado no século XVI para o espaço em estudo data de 1513, e abarca todos os moradores dos lugares dependentes da administração eclesiástica de Valença, entre o Minho e o Lima3. Neste rol são registados 216 fogos na vila de Caminha4. A fonte informa‐nos ainda que a população se distribuía por três ruas: a Rua dos Meios, onde está 1
JOURDIN, 1995:183 MORENO, 1989: 95‐96 3 Publicado por OLIVEIRA, 1976: 125‐165 4 O rol apresenta o número de fogos distribuído por três espaços: dentro de muros, arrabalde, e termo. Considerando o objecto de estudo – a comunidade marítima – e a sua distribuição espacial, representada no mapa da fig. 16, consideramos o espaço da vila como sendo o constituído pela área muralhada e o arrabalde. 2
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“... o melhor terço da vila”, a Rua da Ribeira, e a Rua do Vau, pelas quais se erguia o mesmo número de fogos5. Como interpretar esta estimativa global da população de Caminha? De que forma ela nos ajuda a conhecer a sua comunidade marítima? O numeramento de 15276 regista, para Caminha, 280 fogos, o que revela um aumento de 64 fogos num espaço de 14 anos. Considerando que isto se traduz numa taxa de crescimento anual de 2%7, podemos equiparar este crescimento ao apresentado para outros espaços portuários circundantes, pelo que Caminha apresenta a mesma taxa que Vila do Conde (2% no mesmo intervalo de tempo8), mas não atinge, porém, a de Viana (6% entre 15179 e 1523). Quadro 1 ‐ População de alguns portos de Entre‐Douro‐e‐Minho em 1527/32 Localidades
N.º Fogos Núcleo % de Mancebos
Caminha
280
23,8
Viana
962
19,7
Esposende/ Fão
272
‐
V. Conde
905
27,4
In POLÓNIA, 2007a: vol. I, 209
5
OLIVEIRA, 1976: 125‐165 DIAS, 1996: 45‐46 7 A fórmula de cálculo utilizada foi a indicada em POLÓNIA, 1999 8 POLÓNIA, 2007a: vol. I, 212 9 Para 1517 a Finta para a Ponte do Rio Guadiana regista 677 fogos em Viana do Castelo. In MOREIRA, 1984: 76 6
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Fig. 18 ‐ Representação cartográfica da população do norte de Portugal, segundo o numeramento de 1527/32. Fonte: Adaptado do mapa “Sede das unidades administrativas com mais de 100 moradores (1527‐1532)”. In GALEGO, 1986: 35, figura 7
Apesar do crescimento verificado, é bem evidente a pequena dimensão populacional de Caminha face a portos como Viana do Castelo e Vila do Conde. Na verdade, Caminha está no mesmo patamar que Esposende e Fão, quanto a número de habitantes. “O crescimento portuário tende a ser muito mais nítido em espaços marítimos voltados para o grande comércio europeu e mundial, do que para a pesca, por exemplo, sendo esta geralmente responsável por uma fixação estável de populações, mas não por projecções e crescimentos notórios”10. Esta explicação talvez se aplique a Caminha, já que, numa primeira leitura, Caminha, nos inícios do século XVI, apresenta‐se como uma comunidade mais virada para o sector piscícola, e por isso com um peso populacional mais próximo do de Esposende e Fão11, do que para as grandes actividades comerciais, e por isso mais distante do de Viana e Vila do Conde. Mas de que forma se estrutura a população de Caminha? Se atendermos à percentagem de mancebos12, a população em estudo aproxima‐se da realidade de Vila do Conde, chegando mesmo a superar Viana, em número de 10
POLÓNIA, 2007b Sobre estes portos ver SOARES, 1989 12 De acordo com a definição do documento: "... mancebos solteiros de dezoyto pera trinta annos que vyvem com seus pays e ammos...". Numeramento de 1527‐1532, publ. in FREIRE, 1905: 249 11
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mancebos. Se considerarmos que “a maioria destes mancebos seria atraída à vila por actividades de navegação ou por ofícios mecânicos de apoio às mesmas”13, e que a sua presença é um indicador de forte mobilidade geográfica, encontramos na comunidade caminhense dinâmicas demográficas próprias de centros portuários. Outro indicador que nos coloca perante uma população de forte actividade marítima é o elevado número de viúvas14. Registam‐se 33 viúvas numa população aproximada de 1120 indivíduos15, ou seja 2,95%, ao passo que em Viana se apontam 101 viúvas numa população estimada de 3848, ou seja, 2,62%. Comparando com uma vila de interior, para o ano de 1513, aferiu‐se uma diferença significante entre o nº de viúvas de Caminha (15,27%) e de Valença (9,45%)16. Trata‐se, por certo, de uma taxa de viuvez resultante do elevado risco que o trabalho do homem do mar acarreta, quer se trate de pesca, marinhagem ou navegação. Uma comparação entre Viana e Caminha torna bastante claro que ambas as populações têm a mesma percentagem de viúvas, pelo que a comunidade caminhense, apesar de ter um menor peso demográfico que Viana, apresenta os mesmos indicadores de vitalidade portuária: elevado número de mancebos e de viúvas.
3.2. A comunidade marítima Caracterizar um determinado ofício pressupõe o reconhecimento de um grupo homogéneo de indivíduos que se inserem num mesmo universo laboral, sujeitos aos mesmos ritmos de trabalho, possuidores dos mesmos meios de produção e conhecedores das mesmas tecnologias. Neste sentido, tentar definir o ofício daqueles que vivem dos recursos marítimos ou fluviais, espartilhando‐os em categorias estanques, é tarefa inglória, e infrutífera, pela forma como limita 13
POLÓNIA, 2007a: vol. I, 236 POLÓNIA, 2005b 15 Para o cálculo utilizamos coeficiente multiplicativo 4, que se nos afigura adequado para este espaço e tempo. Ver metodologia utilizada por POLÓNIA, 2007a: vol. I, 209 16 OLIVEIRA, 1972: 131 14
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as potencialidades do estudo deste tipo de comunidades. A sua pluralidade e heterogeneidade, resultantes de diferentes contextos temporais e espaciais, torna esta tarefa complexa, mas acima de tudo enriquecedora. Uma série de variantes, como a sazonalidade e a precariedade laboral, a intervenção de agentes externos à comunidade, a sua mobilidade, ou os próprios ritmos ecológicos das espécies piscícolas têm de ser atendidas para permitir uma correcta aproximação aos homens do mar. Esta ideia sobre a complexidade das comunidades marítimas não é uma novidade. É ponto assente que os principais núcleos piscatórios achavam‐se junto às embocaduras dos grandes rios, onde formigavam os pescadores, dedicando‐se por vezes à pesca nos próprios rios e barras, e indo em outras ocasiões tentá‐la ao mar alto. Reconhece‐se mesmo que o próprio tipo de embarcações utilizadas pode ser uma forma de distinção de ocupações17. Mesmo alguns estudos que se ocupam das condições de arranque da expansão marítima portuguesa se vêm obrigados a reconhecer que grupos de pescadores e de marinheiros, inicialmente relacionados entre si, ligados à foz de um rio, e responsáveis pela formação de um porto no qual baseavam a sua acção, foram também agentes responsáveis pela evolução da projecção marítima e mesmo comercial do reino. A eles se deveu, em grande medida, a génese e evolução de um processo de expansão ultramarina, plenamente arreigada nos séculos XV e XVI, pelos contactos com os lugares‐chave do tráfico marítimo europeu18. Ora, se é claro que os pescadores e marinheiros estiveram relacionados entre si, já não é tão clara a forma como estes se articularam: será que o processo da expansão os remeteu para lugares bem distintos, ou os caminhos de pescadores e marinheiros cruzaram‐se sempre? A dificuldade deste estudo pode ser comprovada pela diversidade de termos com que estes homens são designados: pescador, homem do mar, mareante, navegante, 17 18
ESPINOSA, 1972: 153 BARROS, 2004b
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marinheiro, para além daqueles que dispõem de um saber técnico institucionalmente reconhecido e creditado: arrais, mestres, contramestres, guardiães, pilotos e sotapilotos. Uma metodologia de análise pressupõe a existência de categorias. No entanto, demonstradas e verificadas as limitações recorrentes da categorização dos homens do mar e não querendo impor artificialismos, optámos por analisar as designações com que os homens do mar se apresentam na documentação. Ou seja, a forma como se auto‐denominam ou como outros os reconhecem. Nesta perspectiva, ao considerarmos as confrarias dos homens do mar como uma projecção da consciência da sua identidade, do ponto de vista social19, elas tornam‐se espaços privilegiados de auto‐representação do grupo. Em Caminha, a Confraria do Bom Jesus dos Mareantes é reconhecida oficialmente por bula papal no ano de 1547. O documento refere que, perante a insuficiência do hospital existente e das iniciativas dos “navegadores e pescadores” antecedentes, se instituiu uma confraria de “pescadores e náuticos”. Logo à partida é possível identificar um grupo relativamente organizado de homens do mar, em torno de um hospital, que se constitui numa associação confraternal, obtendo o reconhecimento de uma instituição eclesiástica externa20. É também de enorme relevância a identificação de dois sub‐grupos: pescadores e navegadores/naúticos, mostrando a consciência da heterogeneidade dos ofícios do mar, e, consequentemente, do grupo de homens que assim se faz representar. Os estatutos da Confraria dizem ser esta destinada aos “... mestres de navios e pinaças e os mais senhorios de todo o barco de pescaria e pasajes e barcas de carreto, com todos os mais marinheiros, pilotos, gorometes e 19
POLÓNIA, 2007b Não temos conhecimento de qualquer outro documento de reconhecimento oficial régio. A consulta da documentação das Chancelarias apenas revelou um alvará de 6 de Junho de 1571, no qual é concedido aos mordomos e confrades da Confraria de Mareantes da vila de Caminha, o usufruto, por 7/8 anos, dos privilégios contidos numa petição por eles remetida ao rei (T.T. – Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, lv. 7, fl. 278). A ausência de documentação municipal também não nos permitiu aferir acerca do estatuto da Confraria junto da vereação de Caminha. 20
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serventes trabalhadores, assi no oficio de marear, como no oficio de toda a pescaria”21. Como conclusões de uma primeira leitura poderíamos apontar: ‐ a presença dos ofícios mais nobres da actividade marítima: marinheiros, pilotos e mestres de navio; ‐ uma hierarquização de ofícios: desde os mestres aos serventes trabalhadores; ‐ uma dualidade ocupacional: “... assi no oficio de marear, como no oficio de toda a pescaria”; ‐ uma dualidade instrumental: “barco de pescaria e barcas de carreto”; ‐ o reconhecimento da pesca como um ofício distinto e específico. Esta expressão introdutória transmite, por um lado, uma organização dos homens do mar, em termos hierárquico/funcionais (proprietários/ trabalhadores), e por outro lado, uma divisão do trabalho em termos de ofício (ofício de marear/ofício de pescaria). Ela não é, porém, suficientemente explícita quanto à correspondente divisão dos homens do mar por esses ofícios, ao colocá‐los “... assi no oficio de marear, como no oficio de toda a pescaria”. Será que a confusão e a promiscuidade entre ofícios que a documentação transmite é apenas o reflexo da realidade vivida e estamos em busca de uma separação que não existia, de facto? Quando procuramos conhecer a formação de confrarias de mareantes noutras vilas piscatórias, verificámos que a Confraria de Mareantes de Viana do Castelo segue a mesma invocação e foi formada à semelhança do que os vianenses haviam visto em Lisboa e no Porto22. Neste pressuposto, sendo a confraria de Viana anterior à de Caminha (1506), é natural que tenha transmitido a esta, para além da invocação, a estrutura dos estatutos e da própria organização (da mesma forma que Viana copiara o que tinha visto noutros locais). Assim, mesmo que a documentação da Confraria esclarecesse 21 22
A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl.9v. MOREIRA, 1995: 97
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claramente a actividade dos seus elementos, ficaríamos sem saber se transmitia uma realidade ou um mimetismo. A discussão da interferência de contextos locais na constituição das confrarias é pertinente, pois, por exemplo, a Confraria de S. Pedro de Miragaia, de origem medieval, era composta por pilotos, mestres de barcos e marinheiros, mas também cordoeiros, calafates e carpinteiros. O estudo desta Confraria permitiu identificar esta diversidade de ofícios, claramente ligada à dimensão portuária do Porto. Curiosamente, os pescadores não seriam integrados como confrades, e a questão da designação de mareante mantém‐ se: nos finais do séc. XV os administradores da Confraria pediram à Câmara que lançasse um pregão convocando os mareantes de Miragaia a participar na procissão do Corpo de Deus. Referem a presença, no desfile da Confraria, dos pescadores juntamente com os mestres, pilotos e marinheiros. Na análise do autor deste estudo, trata‐se de uma das primeiras referências, na documentação da confraria, à ligação entre os pescadores e os mareantes23. Se os estatutos da Confraria dos Mareantes de Caminha demonstram claras semelhanças com os de outras confrarias, comprometendo assim a percepção de quaisquer especificidades que procurássemos na nossa análise, tornou‐se necessária uma recolha que abarcasse a restante documentação. Apontemos algumas considerações resultantes desta recolha: ‐ O termo identificativo mais utilizado é o de mareante. Esta designação é recorrente ao longo de toda a documentação da Confraria; ‐ O sentido de identidade do grupo está bem patente, pela exclusão de todos os que não são homens do mar24; ‐ Uma hierarquia dentro do próprio grupo, na qual são incluídos os que “... trazem ração ou ganham marinhagem”25; 23
BARROS, 1991: 87 “... para rigimento desta Comfraria nem para tomar conta de nenhum gasto, nem cousa que a Comfraria pertença seja emleyto, nem chamado, homem de nenhuma calidade senão sosmente os mareantes”. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 5. 24
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‐ A necessidade de assegurar, e incluir, os que estão ausentes ou morrem fora da terra26, o que demonstra a familiaridade com situações de deslocações para o exterior, o que concorda com o que comummente se afirma sobre esta comunidade: os mareantes revelam uma grande mobilidade; as comunidades marítimas integram, com enorme frequência, elementos vindos de fora, nacionais e estrangeiros27. Por último, sublinhe‐se a importância da utilização da expressão “... que ganhão suas vidas sobre as agoas do mar”28 para identificar a globalidade do universo abrangido pela Confraria. O próprio grupo, na necessidade de abarcar todos os seus potenciais elementos, vê‐se obrigado a utilizar uma expressão englobante mas, por isso mesmo, pouco precisa. Outra ocorrência paradigmática está projectada na petição que os pescadores de Caminha fazem ao Arcebispo de Braga, em 1621, para que lhes permita pescar em dias santos e feriados. Neste documento, inserto no Livro de Acórdãos29, quem surge a fazer o pedido são os pescadores, não se mencionando a Confraria uma única vez (nem na petição, nem na resposta do arcebispo). Questiona‐se: os pescadores fizeram‐se representar num grupo à parte, ou identificaram‐se de tal forma com a Confraria que não tiveram necessidade de a referir? Um outro espaço de sociabilidade destes homens, e onde eles se fazem representar, é a Misericórdia. Analisando a documentação da Misericórdia de Caminha, nomeadamente os Registos dos Irmãos do Cento que, para a 25
“... não saira a cruz da sancta comfraria com criado nem filho de comfrade sosmente saira com as cabesseiras excepto se o filho do comfrade for homem que traga reçam ou ganhe marinhagem a qual mandamos que saia a elle a crux e cera e se digam as missas que se mandão dizer pellos comfrades que sam cabesseiras”. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6. 26 “... qualquer comfrade desta sancta comfraria que acertar de morrer fora da terra (...) assi os comfrades absentes como presentes vibos e defuntos queremos que poçam gozar e serem participantes dos beneficios e bens espirituaes e temporaes desta sancta comfraria”. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6. 27 BARROS, 2004b 28 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 10. 29 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13.
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cronologia em estudo, existem para cinco anos (1560, 1561, 1567, 1573 e 1583)30, procedemos a um levantamento semelhante ao da Confraria, recolhendo todas as designações de ofícios relacionados com o mar. Apesar das referências laborais serem muito escassas obtivemos alguns resultados, sendo que a referência mais utilizada é a de mareante. No ano de 1560 encontramos duas designações de marinheiro, que se reduzem a uma nos anos seguintes. O ano de 1560 é o mais rico em designações laborais. Se considerarmos uma hierarquia entre ofícios, pelo menos a nível de prestígio social, parece ser também o ano no qual os homens do mar se fazem identificar pela designação laboral de maior nível. Uma novidade é a auto‐designação de marinheiro que não tínhamos encontrado na Confraria. Esta designação surge a par de mareante, pelo que sugere uma distinção clara de ocupações. No entanto, o facto de um homem do mar se auto‐designar de diferentes formas pode ter interpretações distintas: ou a complementaridade das ocupações é tal que não existe uma diferenciação clara entre elas, ou então, elas são bem distintas, e os indivíduos integram‐nas, como ocupações distintas, ou como graus distintos, ao longo da sua carreira. Alargando a nossa pesquisa documental, à análise do numeramento de 1527, tentando reunir mais algumas referências de carácter ocupacional, nele se refere que na vila de Caminha e arrabaldes viviam “... por escudeiros, mercadores, mareantes com alguns clérigos e viúvas 280 moradores”31. Nas freguesias vizinhas da vila apenas são referidos lavradores. Mais do que o número, interessa‐nos a clara indicação da existência de mareantes, que constitui a única referência que é feita em toda a comarca a esta actividade32.
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A.H.M.C. – Livros de receita e despesa, 1551 a 1594. DIAS, 1996: 45‐46 32 GALEGO, 1986 31
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Esta confusão entre pescador, mareante e marinheiro, não é um exclusivo nacional33. Todavia, na Galiza, dentro da classe de pescadores, sempre se diferenciou marinheiro (mariñeiro) de pescador. Pescador é o que trabalha com linha, o que requer mais conhecimento do mar e mãos hábeis para o ofício. Teria que ser mais hábil que o que trabalha com aparelhos, embora recebesse menos rendimentos34. Na Galiza medieval e moderna, os mareantes são, não os homens do mar em geral, como no resto de Castela, mas os pescadores especializados na captura das espécies "mercantis", as que vão ter valor comercial: a sardinha, a pescada e o congro. Têm uma forte organização colectiva para a achega financeira, co‐propriedade das imensas e custosas artes de pesca, apetrecho dos barcos e distribuição das tarefas administrativas. Os pescadores entram numa categoria inferior, não conhecendo uma organização gremial própria. São particulares ‐ independentes ou vassalos ‐ que operam associados em pequenos grupos, geralmente familiares, e frequentemente sozinhos, com barco ou a partir de terra. A sua capacidade de captura é tão reduzida que aproveitam um grande raio de acção, sem que constituam ameaça aos mareantes. As suas artes de pesca são singelas: a linha, o palangre e o tresmalho. Pescam congro e pescada que vendem frescos ou passam‐nos aos mareantes para a sua redistribuição; pescam polvos, e em geral todo o peixe fresco de rocha, que se consome nos mercados locais35. Existe como que uma distinção empírica entre mariñeiro e mareante, dedicados a fainas de pesca em grande escala, com artes que requerem uma forte organização de equipa e agrupados em confrarias bem diferenciadas das dos mariñeiros, ainda que muito vinculadas entre si: a do Corpo Santo em Pontevedra, S. Andrés em La Coruna, S. Nicolás de Noya, etc 36.
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Sobre este tema ver o levantamento das diferentes designações para os homens do mar na Galiza e portos do norte de Portugal feito por CALO LOURIDO, 2003: 19‐42 34 CALO LOURIDO, 1996: 22 35 FERREIRA PRIEGUE, 1998: 66 36 FERREIRA PRIEGUE, 1988: 339
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Esclarecer a questão da sazonalidade do trabalho é também essencial neste tipo de investigação. A pesca seria exercida em exclusividade, ou seria insuficiente para o auto‐sustento, tendo o pescador caminhense de recorrer a outras formas de rendimento? A resposta a esta questão terá de passar pelo conhecimento dos espaços de acção dos pescadores de Caminha, assim como das próprias espécies capturadas. De um modo geral, o pescador fluvial é um pescador ocasional, porque as características do ecossistema em causa possibilitam‐lhe ser pescador de mar, barqueiro, trabalhador da terra (agricultor, vendeiro, etc.)37. Carminda Cavaco concluiu, para uma cronologia recente, que Caminha integrou sempre mais um núcleo de pescadores das águas salobras da secção vestibular do Minho do que de pescadores fluviais: aquelas oferecem solhas; o rio, espécies raras e valiosas mas de curta permanência. Ainda neste sentido, Baldaque da Silva considerou a pesca fluvial do Minho mais rentável do que o trabalho dos campos para a população do lado português, pelo que os proprietários rurais abandonavam‐nos ao cuidado de jornaleiros no tempo das lampreias, salmões e sáveis. Fora desta temporada as outras espécies atraíam muitos pescadores profissionais mas cujos ganhos encontravam complemento na agricultura e pecuária: uns possuíam barcos, outros pescavam a partir das margens; e, sobretudo a montante de Valença, com pesqueiras fixas38. Para a caracterização de um grupo e para a percepção da sua eventual especificidade/identidade no seio de uma comunidade mais vasta importa também identificar comportamentos que decorrem da tentativa de defesa dos seus interesses, mas que acabam por implicar formas de exclusão da restante comunidade. Ou seja, importa “averiguar até que ponto uma específica vivência do grupo, decorrente da partilha de quotidianos profissionais, se projecta, ou não, em experiências familiares e sociais concretas que diferenciem estes grupos da restante comunidade, conferindo‐lhes um sentido de 37 38
AMORIM, MADUREIRA, 2001: 37 CAVACO, 1973: 33 e 35
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individualidade”39. Para esta análise parece‐nos pertinente discutir a questão do não cumprimento do preceito dominical por parte dos pescadores, um ponto bastante recorrente no estudo das comunidades marítimas. Em Caminha, a confraria resolve esta questão estabelecendo uma missa duas horas antes da manhã, fazendo tanger os sinos para chamar os mareantes40. Ao fazê‐lo, define uma vivência, neste caso religiosa, exclusiva do grupo. Em paralelo, um acórdão feito pelos mareantes em 1630 proíbe a utilização de caldeiras de encascar alugadas a “... pessoas que não erão do mar”41, mostrando claramente que, para defesa dos seus interesses, a confraria segrega todos aqueles que não inserem o grupo. A questão da identidade ocupacional dos “... que ganhão suas vidas sobre as agoas do mar” está bem longe de se esgotar nas considerações que fizemos ao longo deste ponto. Na verdade, ela está presente ao longo de toda a dissertação, pelo que irá ficando um pouco mais clara, pelo menos no que toca à comunidade de Caminha, à medida que esclarecermos questões como: as tipologias de embarcações; os espaços de acção; os aparelhos de pesca utilizados; as espécies de peixe capturadas; as formas de organização; a sazonalidade do trabalho; os mercados de escoamento dos produtos. Uma coisa temos, porém, como certa: a comunidade dos homens do mar de Caminha é identificada como uma das mais significativas dessa vila marítima; tem organização corporativa própria e revela alguns indicadores de individualidade, que se manifestam, inclusive, na sua distribuição/organização espacial. Outra coisa não sabemos, por certo: qual a efectiva representatividade desta comunidade na globalidade da sociedade e da estrutura socioprofissional da vila de Caminha, questões inviabilizadas pela ausência de corpos documentais imprescindíveis ao seu estudo.
39
POLÓNIA, 2007b A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9. 41 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 17. 40
71
4. As actividades Apresentados o espaço e os homens, centremo‐nos nas actividades económicas de que estes são actores, bem como nos instrumentos e nas estratégias que as viabilizam. 4.1. Pesca Seguiremos, neste capítulo, uma abordagem clássica da actividade pesqueira, tendo em conta os parâmetros convencionais de avaliação: enquadramento legal; fiscalidade; partilha de recursos; espaços de acção; regime de trabalho; meios de produção e índices de produção. 4.1.1. Enquadramento legal Juridicamente, em Portugal, o mar era considerado de propriedade e gestão do Estado, pelo que, sendo as águas marítimas e fluviais da Coroa, os senhorios apenas teriam direito a dispor delas por expressa doação régia1. “Até ao séc. XIX a pesca é vista como uma actividade exercida sobre um espaço que o monarca cedia a quem lhe aprouvesse, na sequência da concepção patrimonial do Estado, princípio que confundia poder político e propriedade. A pesca é encarada pelo monarca como uma reserva fiscal significativa, mas raramente contempla objectivos de exploração produtiva”2. Os próprios forais manuelinos incidem meramente sobre direitos de usufruto, deixando um enorme silêncio quanto à regulamentação de actividades3. Com efeito, o poder central apenas intervinha quando a exploração dos domínios aquáticos estava em causa, deixando para as entidades locais a regularização das actividades pesqueiras4. 1
AMORIM, POLÓNIA, 2001: 2 AMORIM, 2001: 124 3 AMORIM, 2003: 297 4 AMORIM, 2001: 129 2
72
Que legislação podemos esperar encontrar, neste contexto, sobre esta actividade? O quadro que em seguida apresentamos resume um levantamento de regulação incidente sobre a actividade piscatória no período em estudo. Apesar da ausência de documentação municipal, tentamos privilegiar regulamentos locais, abarcando também a Galiza, para uma análise comparativa.
Quadro 2 – Actividade pesqueira – Enquadramento legal. Alguns exemplos Tempo
1545
1549
1549
1565
Origem do regulamento
Regulamento
Privilégio arcebispal
Autorização para marear e realizar fainas de pesca em dias festivos a benefício da redenção de cativos da vila, ou de determinadas finalidades piedosas5.
Espaço
Pontevedra
Caminha
Pontevedra
Nos rios por onde estes reinos partem com os de Castela
Direito consuetudinário
Os pescadores de Caminha podem pescar em dias de festa sem pagar dízimos nem outra imposição7.
Arcebispo de Santiago
Punições para os pescadores que pescam nos limites da vila, desrespeitam os dias de festa e usam aparelhos proibidos8.
Extravagante de D. Sebastião
“Poderão os naturais deste reino pescar livremente em todo o tempo, e por qualquer maneira que seja, enquanto correm entre os ditos reinos somente. Porque seria desigualdade pescarem os moradores de Castela e defender‐se aos de Portugal.”9
6
5
FILGUEIRA VALVERDE, 1996 “... que de custume im memorial e passifica posse" 7 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 11v. 8 FILGUEIRA VALVERDE, 1946 9 Título XIV: Das caças e pescarias defesas. Lei III: Dos que caçam e pescam em tempos defesos. In LIÃO, 1569: 159‐ 161 6
73
séc. XVI
Pontevedra
‐
Proibição de pescar sáveis e salmões no rio Minho até onde chega o mar salgado, fora dos meses de Março, Abril e Maio10.
1612
Caminha
Acórdão camarário
Proibição de pescar nas camboas e limites da Ínsua e de apanhar marisco sem licença do Padre Guardião11.
1621
Caminha
Legislação eclesiástica
Autorização para pescarem livremente em dias santos. 12
Acórdão da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes
Condenação dos mareantes ou pescadores que forem lançar ou colher redes ao mar ou rio em dias santos de guarda ou domingos, que não seja o peixe de corço. 13
1670
Caminha
Da legislação nacional é de referir uma lei que consagra uma excepção a uma série de proibições extensivas a todo o reino, liberalizando‐se a pesca nos rios de fronteira. A prática local, em Caminha, é ainda regulada por um direito consuetudinário, que a Confraria se esforça por ver mantido, reconhecido e respeitado. No que se refere à Galiza, nosso permanente espaço de comparação, sabe‐se que a jurisdição de Pontevedra estava entregue ao Arcebispo de Santiago, que toma algumas iniciativas no sentido de regulamentar essa actividade. A preocupação prevalecente é a de estipular calendários de pesca. Como a interpretar? Na Galiza, na primeira metade do séc. XVI, a escassez de sardinha provocou mudanças no interior das confrarias, no sentido de uma maior 10
FILGUEIRA VALVERDE, 1946 JOSÉ, AGUILAR, 1965: 100 12 "... comforme a disposiçam dos sagrados canones que principalmente prilita(sic) neste rio por estar entre Reynos devisos". A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13. 13 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 22v. 11
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"protecção ecológica". Surgiu um controlo mais apertado das artes da pesca e uma "semana inglesa" (insólita no mundo laboral), abandonando‐se a pesca aos domingos e dias santos, não tanto para guardar o descanso dominical, mas para salvaguardar a sardinha14. Da mesma forma, no contexto nacional começam a surgir restrições a certos procedimentos técnicos que, ao fazerem perigar o crescimento ou a frequência das espécies, desviavam ou impediam o crescimento das receitas do pescado15. 4.1.2. Enquadramento fiscal A pesca como que obedecia à estrutura de exploração fundiária. O mar, rios e lagoas não seriam mais do que uma extensão da terra e os direitos sobre os seus rendimentos passíveis de arrendamento16. A lei é bem clara: “as águas navegáveis e flutuáveis, e bem assim os rios perenes, (...) bem como as marítimas” são do Estado; e sobre quem aproveita os seus recursos recairão as respectivas imposições17. Se a pesca era encarada pelo poder central como uma fonte de rendimentos fiscais, torna‐se então essencial fazer uma identificação das imposições a que os pescadores estavam sujeitos, para uma melhor compreensão da sua realidade laboral. Existente desde a Idade Média em todo o reino, à dízima velha (ou mordomado), aplicada sobre a venda e saída de peixe por mar, junta‐se a dízima nova, criada por D. João I, em substituição das vintenas do mar e do serviço prestado pelos pescadores na defesa da costa. Ao nível local, os forais manuelinos revelam a aplicação de dízimas régias, ora reservadas, ora alienadas, e direitos consignados a senhorios, laicos e eclesiásticos18. 14
FERREIRA PRIEGUE, 1998: 68 AMORIM, 2003: 297 16 AMORIM, MADUREIRA, 2001: 7‐8 17 LOBÃO [1865] cit in AMORIM, 2001: 126‐127 18 AMORIM, 2001: 126‐127 15
75
No quadro que de seguida apresentamos, relativo aos direitos praticados em Caminha, achamos pertinente juntar, às imposições estabelecidas pelo poder central, através do foral, uma imposição especificamente local, estabelecida pela Confraria do Mareantes. Em 1789, Lacerda Lobo regista que “... chegando ele [o pescador] à praia com o seu peixe paga, pelo menos, uma quinta parte de direitos de matança; ficam quatro, das quais duas são para os proprietários das redes; e das outras duas, uma é sempre para contribuições a confrarias”19. Relativamente a Caminha especifica que os pescadores estavam obrigados a entregar de todo o pescado, duas décimas partes, uma para a Casa do Infantado, e outra para o Cabido de Braga20.
19 20
LOBO, 1991a: 271‐272 LOBO, 1991b: 311‐313
76
Quadro 3 – Fiscalidade sobre a pesca em Caminha
Fonte
Foral manuelino1
Data
Imposição
1512
Direito das caravelas e barcas de pescado
Recai sobre
Quem paga
cada caravela ou pescadores barca de que não forem pescado que vizinhos ou vier à vila com privilegiados pescadas frescas
Quem recebe
Valor
Isenções
vila de Caminha
1 pescada
pescadores vizinhos da vila de Caminha e privilegiados
Foral manuelino
1512
Dízima nova
todos os pescadores que vierem à vila
pescadores
rei
‐
“... não pagam nada sobre o que matarem com anzol, ou cana, nem com "vitoroooens com redepée" ou com outras armadilhas, se for para seu comer e não para vender; não pagam nada sobre o marisco (excepto lagostas e santolas que entrarem pela foz)
Foral manuelino
1512
Dízima velha
‐
pescadores da vila de Caminha
Igreja
‐
‐
navio e companha
Confraria do Bom Jesus dos Mareantes
1 seixma de todo o frete que ganharem
‐
Confraria do Bom Jesus 1549 dos Mareantes2
“Seixma”
cada viagem que fizerem
1 2
DIAS, 1969: 128‐130 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 10.
77
4.1.3. Partilha de recursos num espaço fronteira A estes vectores juntemos ainda um outro, decorrente da especificidade da comunidade alvo de estudo: o facto de constituir um espaço fronteira, obrigando‐a a partilhar o seu mais importante recurso ‐ o rio Minho, com uma outra nação. Ao estudo das relações galaico‐minhotas importam não só questões simples de fronteira, mas outras questões mais complexas, como a gestão comum de um espaço, que é via de comunicação e fonte dos mais variados recursos. Em 1538, Mendo Afonso de Resende empreende uma viagem, por ordem de D. João III, que o leva a percorrer toda a fronteira portuguesa, averiguando sobre a definição dos seus limites e possíveis contendas com os castelhanos. Conhecendo o objectivo desta viagem, compreende‐se a importância das descrições que dela resultaram para o nosso estudo. Pela vereação caminhense é dito que no rio Minho existia uma ínsua, a Ínsua das Canosas, cuja propriedade era dividida por galegos e portugueses. Declara‐se que “... Caminha tem metade da posse sobre esta ínsua das Canosas, no que respeita às pastagens, ao milho e às pescarias, sendo a outra metade posse da Galiza”1. Porém, esta partilha estava longe de ser pacífica, visto que os oficiais se apressam a argumentar que “... se a Ínsua das Canosas fosse toda de Portugal renderia muito, por se juntarem todos os direitos da pescaria para o concelho”2. Na mesma linha de pensamento, os moradores mais velhos, chamados a depôr, comprovam ser tudo verdade, e acrescentam que tinham ouvido os seus pais dizerem que a Ínsua das Canosas era toda do concelho de Caminha, e que há 45 anos todas as pescarias das Canosas eram suas, e, que desde então, como os de Caminha haviam casado os seus filhos com os da Galiza, tinha‐se divido a ínsua. Inclusivamente, já tinha havido debate e brigas entre os de Caminha e os de Tui sobre esta questão. 1 2
MORENO, 2003: 191‐194 MORENO, 2003: 191‐194
78
Relativamente à pesca no rio, ambas as comunidades seguem os mesmos procedimentos: pescam em toda a sua extensão, apenas com o cuidado de tirarem as suas redes nos respectivos termos das vilas, para não pagarem dízimas ao outro país. Até nesta questão, que parece estar resolvida, existe inconformidade, pelo que os vereadores “... disseram que na Torre do Tombo se podia achar algum foral ou escritura que declarasse o rio Minho como sendo todo de Portugal, porque os antigos assim o diziam”3. Dado o interesse desta questão, procuramos conhecer os testemunhos das outras vilas fronteiriças que viviam a mesma realidade. Em Vila Nova de Cerveira afirma‐se que era ponto assente na vila ser todo o Rio Minho de Portugal, embora admitissem que na prática “... esta vila apenas tem em posse metade do rio”4. A população de Valença do Minho parece ser a mais conformada, admitindo que “... pescam na sua metade com as suas redes pacificamente e os de Galiza fazem os mesmo sem haver contradição nenhuma”. Porém, parecem conhecer uma outra forma de divisão do espaço. Em Valença não falam na utilização de todo o rio, mas sim “... partindo sempre pelo meio do fio da água metade do rio é do termo desta vila e a outra metade é da Galiza.”5. Estas “estranhas relações de amor‐ódio”6 entre ambas as margens do Minho, tiveram como episódio paradigmático as queixas dos pescadores minhotos, nas cortes de 1439, contra a pressão fiscal da dízima nova, nas quais ameaçavam mudar‐se para a Galiza “... por induzimentos e tregeitos que lhes fazem os de Guarda e Baiona, onde se não pagam tais dízimas e imposições” (argumentação de cujo teor meramente estratégico não duvidamos).
3
MORENO, 2003: 191‐194 MORENO, 2003: 185‐189 5 MORENO, 2003: 181‐183 6 ANDRADE, 1999 4
79
Junte‐se a isto uma configuração costeira muito distinta, que faz a pesca ser mais rica em águas galegas. As pescarias dos portugueses no sul da Galiza, especialmente na ria de Vigo e no Minho, devem remontar a muito antes da separação política; os sectores da costa galega que não pertenciam às vilas mais importantes eram frequentados, desde tempos imemoriais, por pescadores forasteiros, em busca essencialmente da sardinha: biscaínhos, guipuscoanos, cantábricos e portugueses7. Não se fez esperar a defesa do sector pesqueiro galego face a estes pescadores, que, tradicionalmente, instalavam as suas pesqueiras de tempada nas praias galegas, em operações massivas de pesca e salga, levando o peixe, consumindo o sal escasso dos alfolíns, e muitas vezes, recolhendo os camarões pequenos, o gueldo, para usá‐lo como isco noutras zonas. É uma longa luta que se inicia no último quartel do século XIV e segue no século XVI8. Em 1550 envolve os grande centros de pesca, como Pontevedra, Noya, Bayona, Coruna, Foz e Grove 9. Os conflitos deveriam surgir a vários níveis, visto que a gente de entre Lima e Minho “... são quase como galegos e da mesma linguagem e traje (...) é gente belicosa e muito má de amanssar”10. 4.1.4. Espaços de acção No primeiro capítulo ficou bem demonstrada a importância que tem, para o estudo das comunidades marítimas, o conhecimento dos espaços em que estas se movem, quer se trate de espaços naturais, de espaços sociais, ou de espaços de exercício ocupacional. No que se refere à pesca, a documentação da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes de Caminha é elucidativa em relação àqueles em que a actividade se exerce. Com efeito, uma das primeiras observações que podemos fazer é a de 7
FERREIRA PRIEGUE, 1988: 136 FERREIRA PRIEGUE, 1998: 69 9 FANGUEIRO, 1984 10 BARROS, 1919: 83 8
80
que, percorrendo os estatutos e ordenações da Confraria (documentação de 1549), as referências ao mar, enquanto espaço de pesca, predominam em relação às registadas para o rio. Para uma melhor compreensão deste facto, convém não esquecer que Caminha se localiza na foz do Rio Minho, no qual as marés marítimas se fazem sentir até 40 km do seu curso11; o que faz com que o espaço aquático de toda a costa da vila e termo de Caminha seja predominantemente de influência marítima. Todavia, no exercício da actividade é possível identificar diferentes níveis espaciais: ‐ o rio12 ‐ a foz13 ‐ espaços de pesca partilhados com os da Galiza e Viana do Castelo (pesca costeira?)14 ‐ espaços de costa longínqua ‐ a costa brasileira15 Analisando a descrição de 1538 da pesca no rio Minho, é referido que os pescadores de Caminha pescavam em todo o rio com as suas redes, assim como faziam pescarias na Ínsua das Canosas16. Por sua vez, Frei Pedro, na sua memória sobre o Convento de Nossa Senhora da Ínsua, relata que “... o circuito da praia está todo rodeado de camboas ou pesqueiras, que os religiosos começaram a fabricar desde os primeiros anos, em que foi notavelmente abundante a pescaria, e depois se foi esterilizando cada vez mais”, e que “... não foram também pouco molestos os pescadores da mesma vila, e das freguesias vizinhas em virem repetidas vezes lançar as redes junto às nossas camboas, com 11
ALVES, 1996: 31 “... neste rio por estar entre Reynos devisos” (1621). A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13. 13 “... em a dita ribeyra do mar” (1549). A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 11v. 14 “... quantas vezes forem ao mar tantas vezes levem a dita rede para o bom Jezu e sendo cazo e acontesser virem pescar onde pescão os da Galiza ou de Vianna onde quer que a dita pinaça for parar e desembarquar” e “... que por o mar e por terra se ajuntarem por ser emporto donde tanta gente demutas partes acorrem” (1549). A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 8v e 11v. 15 “... por coanto os pescadores e mais irmãos da dita comfraria que vão pescar ao brasil e vahia de tos os santos e mais partes” (1630). A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 16. 16 MORENO, 2003: 191‐194 12
81
que se seguia notável detrimento à sua pescaria”17. Um outro relato do cartório deste convento especifica que: “Em o anno de mil e quinhentos e vinte e dous sahirão alguns pescadores de Caminha em tres barcos ao mar a pescaria dos congroz”18. Os diferentes espaços que conseguimos identificar correspondem, na realidade, às várias áreas de pesca, verificáveis noutros portos nacionais, e que reflectem também diferentes momentos históricos, ainda que coexistam no século XVI: uma pesca fluvial, que dominou na época medieval; uma pesca costeira, que reúne toda a exploração das espécies piscícolas do mar, que se pratica nas costas, enseadas, baías, portos, rios, etc., onde chegam as águas salgadas; uma pesca do alto, que se faz em paragens longínquas com armamentos especiais, adequados ao ramo a que se destinam; e uma pesca longínqua, marcada exclusivamente pela pesca do bacalhau19. Em 1789, Lacerda Lobo descrevia assim a pesca no Minho: “... a maior parte dos pescadores do Minho fazem as suas pescarias nos mares, que estão em direitura dos lugares aonde vivem, e em pequena distância da terra; porém alguns mais práticos e inteligentes divergem para os lados, indo procurar o peixe a sítios mais distantes, aos quais dão diversos nomes”20. Sobre Caminha, registou que tinha 100 pescadores que faziam as suas pescarias no mar, em alturas de Verão e perto de terra (até 2 léguas); e no rio, onde pescavam no Inverno o sável, o salmão e a lampreia. No rio, pescavam todo o ano linguados, solhas, tainhas e robalos. 17
JOSÉ, AGUILAR, 1965: 100 A.D.B. – Livro dos Milagres do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. 1725. 19 AMORIM, MADUREIRA, 2001: 15 20 LOBO, 1991b: 311‐313 18
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4.1.5. Regime de trabalho Não é fácil caracterizar o regime de trabalho de um pescador, muito menos quando se trata do século XVI, e muito menos ainda quando as fontes escasseiam. Porém, num estudo que inclui temas laborais, não podíamos ignorar questões tão essenciais como os horários e as remunerações. Este item, mais do que conhecimento, transmite vontade de conhecer, pois as perguntas são muitas, e as respostas rareiam. Ainda assim, pela análise da documentação da Confraria dos Mareantes de Caminha, encontramos algumas referências temporais, em particular a uma questão essencial, e transversal a vários tempos e espaços: a guarda do preceito dominical e dos dias santos. Diz‐se, num registo de 1549: •
“... possam mandar e mandem deyxar as redes qualquer festa, ou
domingo que lhes paresser bem a todos os mestres das pinaças e a suas companhas que as deixem no mar e as possão ir levantar ou domingo ou festa pella menhão muyto cedo” e “as pescas que se fazem em os dias domingos e festas sam para os ditos efeytos segundo pellos ditos estatutos se comtem”21. A centralidade da questão, e a tensão daí decorrente reflecte‐se ainda num registo de 1621 que explica: •
“... de tempo im memorial a esta parte por si e seus anteseçores
custumão no tempo da pescaria de sabeis, e lampreas pescar em domingos e dias santos nas comjunçons das mares e para não serem obrigados a esperarem pella missa do dia tem missas particulares que se dizem em tempo conviniente de modo que nem perdem oubir missa nem a comjunção de sua pescaria e ora o Reitor desta villa procede contra elles supplicantes dizendo que não podem pescar nos dias santos que a igreja manda guardar por resam de travalho, o que he em grave damno delles supplicantes e de seu remedio que todo depende da pescaria principalmente nesta monçam de sabes e lampreas que he a Sam 21
A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fls. 9 e 11v.
83
Miguel delles supplicantes e de que se aproveytão para todo o anno com que remedeam suas familias e porque a dita pescaria ser de arivaçam acontesse em hua mare dar mais proveyto que em mutas outras”22. Nada transparece mais deste excerto do que a ditadura do peixe sobre o pescador. Falar dos horários destes homens exige conhecer os "horários" dos cardumes, ou seja, os calendários das diferentes espécies piscícolas. Ficamos, assim, a saber que as alturas de “conjunções de marés”, que proporcionavam “monções” de sáveis e lampreias eram o S. Miguel deles, ou seja, a época de maior produtividade; e que por a pescaria ser de “arribação” nem todas as marés davam o mesmo proveito. Ora aqui, o social entra em conflito com o natural, pois se todas as marés têm de ser aproveitadas, o pescador não pode ficar retido pelo cumprimento do preceito dominical. A chamada de atenção para a obrigação de todos os fiéis cristãos cumprirem o preceito canónico de guardar os domingos e dias santos surge em numerosas constituições sinodais portuguesas (54ª constituição sinodal de Braga de 1477 e a 60ª do Porto de 1496). Porém, a abstenção de trabalhar aos domingos, apesar de bem fundamentada na prática judaico‐cristã, nem sempre se torna fácil de cumprir para determinados ofícios, sujeitos a um tipo de calendários. Com efeito, os pescadores são talvez o único grupo profissional cuja actividade está condicionada por ciclos naturais ‐ as marés ‐ e por hábitos de determinadas espécies (actividade diurna ou nocturna) e migrações. Estas circunstâncias inevitáveis irão obrigar a diversas reflexões sobre o objectivo dos dias de guarda ou sobre a abrangência temporal do domingo e dias santos, servindo também de desculpa para as transgressões nesta matéria (como faltar à Santa Missa e fazer crer ao cura que se assistiu noutra paróquia, por exemplo)23.
22 23
A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13. VENTURA, 1999: 435
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Os mareantes de Caminha não são excepção, e a sua necessidade de justificar a pesca nos dias de festa e domingos é uma constante no seu livro de acórdãos. Nas ordenações de 1549 estabelece‐se que, em épocas de maior necessidade, diagnosticadas pelos seis oficiais da Confraria e pelo escrivão, poderiam mandar deitar, a todos os mestres das pinaças e a suas companhas, as redes no mar, em dias de festa ou domingo, levantando‐as pela manhã muito cedo, revertendo esta pescaria para os gastos e coisas necessárias da Confraria. A questão religiosa é resolvida mandando os mordomos dizer uma missa duas horas antes da manhã, fazendo tanger os sinos para chamar os mareantes24. Esta excepção é ainda mais alargada pela ordenação que estabelece que, para essas épocas de necessidade, além dos lanços que os barcos saveiros costumam deitar para a Confraria do Bom Jesus, poderiam mandar deitar as redes em dias de festa e domingos de noite e de dia, assim aos sáveis, como às lampreias, sardinha e mais peixes25. A salvaguarda desta clara transgressão aos preceitos canónicos está numa ordenação que diz que “... relativamente às pescarias que se fazem aos domingos e festas não sejam obrigados a obedecer ao pároco da vila, nem pagaram pena alguma, pois para isso têm licença na bula apostólica”26. Esta questão irá prolongar‐se ao longo do tempo, e certamente deverá ter suscitado alguns atritos com os párocos locais. Com efeito, e apesar de todas as ressalvas feitas nas suas ordenações (devidamente autorizadas por licenças eclesiásticas), em 1621, a Confraria do Bom Jesus reforça ainda este seu direito fazendo uma petição ao Arcebispo de Braga. D. Afonso Furtado de Mendonça, por despacho de 2 de Abril de 1621, concede‐lhes a liberdade para pescar aos domingos ou dias de guarda “... em que acontece marés de monção desde que 24
A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9 a 9v. 26 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9v a 10. A bula papal permite aos confrades que “... fiquem em posse pacífica de nesses dias pescar e trazer o peixe para a dita cidade” (Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fls. 6v a 8). 25
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tenham primeiro ouvido missa em qualquer igreja ou ermida”27. Nesta petição, um dos argumentos utilizados pelos pescadores é o de que: “... não pescando, ficavam os do reino da Galiza que pescão de mistura com elles supplicantes com o proveito todo, pois no dito reino não são proibidos de pescar nesta monção de sabes e lampreas, nem se pode proibir neste reino conforme a disposição dos sagrados cânones que principalmente prilita(sic) neste rio por estar entre reinos divididos”28. A validade deste argumento relativiza‐se, porém, quando o confrontamos com os regulamentos da Confraria de Mareantes de Pontevedra. Com efeito, no século XV, os deveres religiosos dos confrades de Pontevedra incluíam os de não se pôr no mar nem estar na ria “... desde a sexta de cada semana, posto o sol, até às segundas seguintes”, tanto pelo desejo de honrar o domingo e conceder um descanso aos mareantes, como para "sossego" e conservação da sardinha29. Como explicar, então, esta contradição com o argumento utilizado pelos mareantes da Confraria para convencer o arcebispo a defender a sua causa? A verdade é que esta situação evolui no século XVI. A Confraria do Corpo Santo recebe um privilégio arcebispal, em 1545, autorizando os pescadores a marear e a realizar fainas de pesca em dias festivos. Mas é necessário fazer aqui duas observações: em primeiro lugar, se se trata de um privilégio, é porque a prática era a proibição da pesca nestes dias, e em segundo lugar, a liberdade é apenas concedida para pescarias em benefício da redenção de cativos da vila, ou de determinadas finalidades piedosas30. Percebemos assim que a pesca nos dias festivos não seria tão extraordinária, pela tendência do poder eclesiástico para permitir a pesca nos dias de guarda com fins caritativos, nomeadamente para doações a hospitais e 27
A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13v. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13 a 13v. 29 FILGUEIRA VALVERDE, 1946: 31‐33 30 FILGUEIRA VALVERDE, 1996: 91 28
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confrarias. Assim acontece também no caso dos pescadores do Hospital do Corpo de Deus em Lisboa, ou dos pescadores da Ericeira31 e de Pontevedra, onde, em meados do séc. XVI, se chegaram a formar cercos com o único objectivo de pescar para a Igreja32. Trata‐se de um direito particularmente importante para estes pescadores, que se esforçam pela sua manutenção, a julgar pelas sucessivas confirmações dadas pelos arcebispos de Santiago de Compostela, em 1536, 1543 e 1549, aos mareantes de Pontevedra. Em Caminha, em 1670 um acórdão dos mareantes esclarece ainda que, “... se acazo acontecer que alguns mareantes ou pescadores forem lançar ou colher redes ao mar ou rio em dias santos de guarda ou domingos que não seja o peixe de corço combem a saber sardinhas sabeis e lampreas o vigario e oficiais desta sancta comfraria os pederam condenar”33. Concluindo, não deveria ser tarefa fácil gerir a necessidade de peixe com o cumprimento do preceito dominical, o que nos leva a questionar os critérios utilizados para declarar as tais “épocas de necessidade”. Encontrar referências a rendimentos obtidos afigura‐se ainda mais complicado. Estes homens viviam do peixe que capturavam, é certo, mas de que forma? Vendiam todo o pescado ou apenas uma parte? São pagos em espécies ou em dinheiro, quando integrados em companhas? Era a actividade rentável? Desenvolvem a pesca em regime de mono ou de pluriactividade? Um facto transparece claramente, o peso desta actividade seria enorme no universo dos rendimentos familiares, pois eram as pescarias “... com que remedeam suas familias”34. Uma das ordenações da Confraria de Mareantes estabelece que cada “... navio e companha a pagar de cada viagem que fiserem huma seixma de todo o
31
VENTURA, 1999: 442 FILGUEIRA VALVERDE, 1946: 31 33 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 22v. 34 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13. 32
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frete que ganharem”35. Seria importante esclarecer o significado da palavra “frete” aqui utilizada (ou pelo menos esclarecer se a seixma remete para uma remuneração em dinheiro ou em pescado). Em 1789, Lacerda Lobo verificava “... a pouca quantidade de pescado que fica livre ao pescador em recompensa do seu grande trabalho, e perigo. Chegando ele à praia com o seu peixe (quando o traz) paga, pelo menos, uma quinta parte de direitos de matança; ficam quatro, das quais duas são para os proprietários das redes; e das outras duas, uma é sempre para contribuições a confrarias. Acha‐se por fim, o pescador somente com a quinta parte do seu pescado, que é vendido a almocreves, por preço muito baixo”36. 4.1.6. Meios de produção: as “artes” O estudo dos meios de produção, no contexto da actividade piscícola, pressupõe o estudo da evolução da tipologia de embarcações e dos aparelhos de pesca. Para o nosso trabalho interessa conhecer as “artes” utilizadas, quer no meio fluvial, quer no meio marítimo, por portugueses e galegos. Isto justifica‐se pela partilha de espaço por estas duas comunidades, seja o Rio Minho ou o Oceano Atlântico, pelo que nos interessa averiguar qualquer tipo de transferência tecnológica. Como primeira abordagem, analisamos a documentação da Confraria dos Mareantes, que refere, em 1549, navios e pinaças; barcos de pescaria e passagem; barcas de carreto37; e barcos saveiros38. É também referida a designação geral de “navio”, a par de nau, navio latino e navio redondo, assim
35
A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 10. LOBO, 1991a: 272 37 “... navios e pinaças e os mais senhorios de todo o barco de pescaria e pasajes e barcas de carreto” e “... que cada pinaça tragua huma rede gracioza (...) a coal rede sera nova como levarem duas redes novas arreçam (...) onde quer que a dita pinaça for parar e desembarquar em terra pera vender o dito peyxe ou salgar”. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 8v e 9. 38 “... alem dos lanços que os barquos sabeiros estão em costume deyxar para a dita Comfraria do bom Jezu”. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9. 36
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como de trincados e chiolas39. Paralelamente, os frades da Ínsua referem dois tipos de embarcações pesqueiras: a dorna (no episódio relatado é utilizada por galegos) e a pinaça (claramente referida como o barco dos pescadores de Caminha)40. Das tipologias de embarcações mencionadas, destaquemos a pinaça, caracterizada pela sua polivalência (veja‐se que na documentação ela surge referida numa situação de transporte, ainda que se trate de uma embarcação pesqueira). Com efeito, na Galiza, o barco mais característico para auxiliar nos cercos e sacadas era a pinaça, apoiada já desde o séc. XV pelo trincado, barco inseparável do cerco, que desde o séc. XVI se conhecerá também como galeão. Outra pequena embarcação polivalente é o baixel, todos pequenos navios mistos de vela e remo, de pesca e carga. Aos navios pesqueiros tradicionais juntaram‐se, no séc. XVI, a dorna, as zabras e as volantas, barcos que combinam a temporada de pesca com as actividades mercantis41. Sabemos que, na Galiza, as embarcações assumiam a polivalência dos seus proprietários: servem a pesca, o transporte, e o comércio. Considerando que os portugueses introduziram na Galiza alguns tipos de embarcações ligeiras e especializadas na pesca e transporte fluvial (saveiros, moliceiros, barcas serranas, barcas da neta)42, a transferência de todo o tipo de técnicas e saberes em ambas as margens do Rio Minho tem de ser seriamente considerada. O reconhecimento feito por Lacerda Lobo, em 1789, das embarcações utilizadas no Rio Minho, registou lanchas, batéis e catraias43. 39
“... que todo o navio, assi nau, navio latino e navio rodendo, trincados e chiolas, e os mais de navegaçom”. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 10. 40 “Na era de 1574 a 13 de setembro (...) se perderão sahyndo da Guarda tres dornas em as quaes dornas morreram 10 galegos” e “Na era do Senhor de 1545 (...) hua quarta feira do mes de junho (...) arribou sobre a Imsoa hua armada muyto pera ber em mar não acostumado (...) que o disseram os pescadores que das pinaças que passaram”. A.D.B. – Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. 41 FERREIRA PRIEGUE, 1998: 80 42 FERREIRA PRIEGUE, 1988 43 LOBO, 1991b: 294
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As referências aos aparelhos de pesca não são tão expressivas como as anteriores. Fala‐se essencialmente do trabalho das redes, associadas a expressões como lanços, lançar, e colher. Associando a esta documentação a descrição de 1538, encontramos ainda a distinção entre dois tipos de rede: “E isto é com as redes grandes, porque com as pequenas, que não saiem fora, pescam onde quiserem e as recolhem nas barcas. As redes grandes, que é preciso tirá‐las, apenas o fazem no termo e arrogam‐nas com seus pés quando chegam.”44. E ainda: “... pescam em todo o rio com as suas redes (...) e o peixe que se ade arogar em terraa e tirar nas redes em terra naom o poder tyrar em terra senam vam com seu peixe nas redes e o tyraom em o termo desta villa”. A pouca expressividade destas referências contrasta com a riqueza de tecnologias que encontramos na bibliografia. Com efeito, em Vila do Conde, em meados do século XVI, “conviviam, no rio, açudes ou pesqueiras das freiras, chumbeiras, calçadas, vargas, redes pé e tresmalhos. (...) Estamos, assim, perante redes fixas (açudes, estacadas ou mesmo "armadilhas"), redes de arrasto (rede pé, chumbeira e calçada) e redes de emalhar (vargas ‐ redes de um só pano, e tresmalhos ‐ redes de três panos)”45. Paralelamente, quando chegamos ao séc. XV e XVI, temos já documentada para a realidade galega uma grande variedade de aparelhos de pesca, desde linhas (barbante com um anzol na extremidade, para pescar peixe miúdo) e palangres (linha para pescar com anzóis dispostos em espinha; até redes como rascas (redes de emalhar), betas, volatas, raeiras, e sacadas46. Na região galega, as grandes artes de pesca desenvolveram‐se com as confrarias: o jeito, que pressupunha a participação de vários sócios para o seu aparelhamento; e a sacada e o cerco, que requeriam o apoio de grandes barcos para as arrastar e fazer o serviço de carreto para terra e a partir de terra47.
44
MORENO, 2003: 191‐194 AMORIM, POLÓNIA, 2001: 17 46 CALO LOURIDO, 1996: 16 47 FERREIRA PRIEGUE, 1998: 76‐77 45
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Lacerda Lobo identifica, na comarca do Entre‐Douro‐e‐Minho, o emprego da rasca, para a captura do rodovalho, peixe‐prego, solho‐rei, e espécies de arraia; da saramona, para as pescadas; do tresmalho; e da zangarelha, utilizada nas pescarias que se fazem perto da costa (pescada, ruivos, gorazes, peixes galos, e todo os outros que não podem escapar‐se da malha). Refere que os pescadores desta comarca não fazem, normalmente, a pescaria da sardinha com redes de arrastar, como nas outras províncias, mas que usam redes chamadas sardinheiras. Regista ainda a utilização de anzóis e do espinhel, quando fazem as pescarias nos lugares pedregosos da costa. Para o Rio Minho indica o uso da rasca, da rede de pescada, da rede da sardinha, do algarife (rede de arrastar para os sáveis e salmões), do tresmalho (para os sáveis e salmões), da lampreeira, da barga (para as taínhas e robalos), e da sacada (rede de arrastar)48. Ainda no que refere a meios de produção, deparamo‐nos, em 1650, com um “Acordão que se fes pera efeito de fazerem humas caldeiras de emcascar redes pera o rendimento dellas aver de ser pera a Comfraria (...) se mandassem fazer humas caldeyras pera se aver de emcasquar e emprestar a toda a pessoa que as quiser alugar por quanto pera seu menisterio de pescar as alugavão a pessoas que não erão do mar e querião que as ganancias dellas pera a dita cappella rendesse; por hoye estar tudo acabado e a cappella ter pouco rendimento pera suas ordinarias ejaa que davão a ganacia a outrem a querião dar que fosse pera aumento da cappella pella obrigaçam que tinhão a ella por ser sua verdadeira igreja e caza (...) e tenham grande cuidado que nenhum pescador alugue caldeyras alheas com penna de cada ves que as alugar pagar coatro centos reis ou duas libras de cera”49. Não queremos deixar de referir o interessante testemunho que este acórdão dá sobre a gestão de um dos meios de produção: as caldeiras de encascar redes50 que a Confraria decide ter para 48
LOBO, 1991b: 291‐294 e 311‐313 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 17. 50 Antes, as redes eram feitas de fio de linho, e, por isso, depois de prontas, eram "encascadas". Esta operação consistia em ferver, num grande pote de ferro, água com cascas de salgueiro durante 12 horas. Em seguida, eram as 49
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seu próprio rendimento, visto que até aí, quem lucrava eram pessoas “... que não erão do mar”, que as tinham e alugavam aos pescadores. Mais uma vez, o testemunho de Lacerda Lobo: “Em toda a costa vivem muitas pessoas, que nunca foram ao mar, porém mandam fazer redes para arrendar aos pescadores. Há outras, que pagam a despesa do barco, ou lancha, e a companhia obriga‐se a dar‐lhes parte dos lucros do pescado, ou lhes faz uma consignação para pagamento da dívida”51. Este tipo de testemunhos é essencial para percebermos qual a relação do pescador com os seus meios de produção. Mas de que forma esta relação dita a prosperidade ou precariedade da sua ocupação? Tradicionalmente, os marinheiros são vistos como donos ou co‐ proprietários de embarcações e artes de pesca. No caso das grandes artes, como a do cerco, e tendo em conta a quantidade de barcos grandes e pequenos que se empregavam nesta ceifa, seria impossível, para as economias da altura, que uma só pessoa dispusesse de tudo o necessário. O mesmo sucedia com o aparelho: cada marinheiro contribuía com um ou mais panos de rede que, convenientemente armados, formavam o grande aparelho. Desta forma, tanto a força de trabalho como os meios de produção eram comuns52. 4.1.7. Produção: o peixe O conhecimento das espécies capturadas é mais um traço que importa juntar ao estudo do desempenho laboral do pescador de Caminha. Nesse sentido, procedemos a um levantamento das espécies mais referidas para a zona do Minho, presentes, quer nas águas marítimas, quer nas fluviais: redes postas numa gamela de madeira (com cerca de 1,8m por 90 cm) e sobre elas se lançava a "casca" e eram dadas voltas até que o líquido fosse totalmente absorvido. Depois de completamente arrefecidas, eram estendidas; quando secas, estavam prontas a serem "largadas" (lançadas ao mar) e, depois de serem utilizadas cerca de 8 vezes eram "aladas" (recolhidas), pois estavam mareadas (sujas de sargaço, algas e salitre). Depois eram lavadas em terra por mulheres, secas, recolhidas, consertadas, e voltavam a ser encascadas. Esta operação do encasque tinha como função dar mais consistências às redes. In FORTES, 1971: 29 51 LOBO, 1991a: 271‐272 52 CALO LOURIDO, 1996: 18
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Quadro 4 – Recursos piscícolas Fonte
Data
Espécies
Foral manuelino de Caminha53
1512
pescada, lagostas , santolas
Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus do Mareantes, fl. 9v
1549
sáveis, lampreias, sardinha
Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus do Mareantes, fl. 9v
1549
sável, lampreia, sardinha
Livro dos Milagres do Convento de N. Srª da Ínsua
1522
congro
Livro dos Milagres do Convento de N. Srª da Ínsua
1580
sargo, tainha, negrão, truta mariscada
Frei Bernardo de Brito54
séc. XVI
sáveis, lampreias, salmonetes, solhos
Duarte Nunes do Leão55
1606
sáveis, lampreias, trutas, ireses, lingoados, solhos, salmões, relhos
Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus do Mareantes, fl. 13
1621
sáveis, lampreias
Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus do Mareantes, fl. 22v
1670
sardinhas, sáveis, lampreias
Carvalho da Costa
1706
corvinas, solhos, salmões, lampreias, sáveis, trutas, muges, taínhas, linguados, azevias, negros, solhas, bogas, escalhos
Memórias Paroquiais57
1758
salmões, sáveis, lampreias
1789
pescadas, sardinhas, ruivos, salmão, sável, lampreia, linguados, solhas, tainhas, robalos, barbos
56
58
Lacerda Lobo
53
DIAS, 1969: 128‐130 BRITO, 1597: 6 55 LEÃO, 2002: 196 56 COSTA, 1868‐1869: 245‐252 57 CARVALHO, 1979 58 LOBO, 1991b: 289‐313 54
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Gostaríamos de acrescentar a este quadro algumas referências, de carácter casuístico, mas que não deixam de ser relevantes. É registado no cartório do convento da Ínsua que “... na hera de 1548 a dos dias por andar de janeiro (...) hamanheceo nesta ilha de frente da pista da igreja hua bailea toda inteira (...) tinha de comprido 14 varas de medir: de hua ponta do rabo a outra tinha quatro varas hera cousa fermosa de ver e monstruosa”59. Foi registada uma outra baleia em 1582, e referida uma lontra que andaria nas redondezas da ínsua e aos frades “... lhes dava todos os dias um robalo”60. Quanto à riqueza das águas os frades da Ínsua mencionam, em 1580, a quase inexistência de sargo, sugerindo a sua abundância em tempos anteriores, que ilustram da seguinte forma: “... a partir daqui nunca mais se viu um sargo e faltava a pescaria. Causou isto maior admiração por ser até então tão copiosa, principalmente os ditos sargos que se proviam com abundância os conventos vizinhos, e ainda os povos destas vizinhanças, e freguesias, que nos ficam defronte. Uma delas é São Paio de Moledo, da qual sucedeu muitas vezes levarem daqui barcos carregados de peixe, que ficava nos lagos ou camboas, que liberalmente lhe davam os religiosos, e com tal fartura, que para o conduzirem da praia para suas casas o levavam em carros. Passaram a consumir outros peixes como as choupas, tainhas, negrões e também alguma truta mariscada”61. Menos episódicas são as referências à pesca da lampreia pelos pescadores de Caminha, os quais ofereciam um destes peixes aos frades, por esmola ou promessa. Em 1758, as Memórias Paroquiais da vila de Caminha referem as pescarias de salmões, sáveis e lampreias, que eram iniciadas em Março e iam até meados de Maio, acabando a pesca das lampreias um pouco mais cedo.
59
A.D.B. ‐ Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. JOSÉ, AGUILAR, 1965: 28 61 JOSÉ, AGUILAR, 1965, 65‐67 60
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Em 1789, Lacerda Lobo indica a pescada como sendo o peixe mais abundante na comarca do Entre‐Douro‐e‐Minho, cujas migrações são seguidas pelos pescadores. De Novembro a Janeiro a pescada encontra‐se a sul da barra do Porto, perto da costa, enquanto entre Janeiro e Maio os pescadores se vêem obrigados a subir a nordeste da barra do Porto, indo mesmo até à Galiza, no sítio do “mar novo”, nos meses de Maio, Junho e Julho. A sardinha seria pescada em todo o mar, desde Maio a Setembro, sendo porém em Janeiro “a maior matança”. Os ruivos pescavam‐se à linha desde Novembro a Janeiro e perto da costa, sendo necessário ir pescá‐los mais longe entre Abril e Junho. Nos meses de Março e Abril os pescadores ocupar‐se‐iam também com a pesca do congro62. Os pescadores de Caminha fariam as suas pescarias no mar durante o Verão, enquanto que no rio pescavam o sável, o salmão e a lampreia durante o Inverno, e linguados, solhas, tainhas e robalos todo o ano. Naturalmente, as espécies migrantes, que vivem no rio Minho de Janeiro a Junho, e que são também as de maior valor ‐ lampreia, salmão e sável ‐ são procuradas em toda a sua secção fronteiriça63. Pelo exposto, o pescador de Caminha identifica‐se perfeitamente com os seus congéneres dos centros piscatórios do noroeste português e do sul galego. Sujeito ao calendário das diferentes espécies piscícolas, o seu ritmo quotidiano difere da restante comunidade, constituindo um grupo laboral bastante específico e distinto. A sua complexidade espelha‐se nos diferentes espaços em que actua, originando especializações dentro do seu próprio sector. Talvez a maior originalidade do pescador da vila em estudo consista na partilha forçada do Rio Minho e dos seus recursos com os pescadores galegos, e na sua gestão. Da mesma forma, a ligação aos mercados nos quais coloca o seu produto, o pescado, reveste‐se também de algumas especificidades que importam conhecer. 62 63
LOBO, 1991b: 289‐313 CAVACO, 1973: 32
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4.2. Navegação e comércio marítimo Como vimos anteriormente, grupos de pescadores e de marinheiros, inicialmente relacionados entre si, e ligados à foz de um rio, foram também os agentes responsáveis pela evolução da projecção marítima e mesmo comercial do reino. Concluímos também acerca da dificuldade em categorizar estes homens do mar em sub‐grupos distintos, pelo que continuaremos a analisar o seu universo laboral como a melhor forma de os conhecermos. Assim, deixamos agora de lado a pesca para nos centrarmos no comércio e na navegação, enquanto outras actividades económicas centrais na vila de Caminha. 4.2.1. Enquadramento tributário “Privilégios idênticos, alguns datando de finais do século XIV, uma gerência unitária até inícios de Quinhentos, bem como estatutos especiais detidos no sector da importação ‐ exportação pelos moradores das respectivas vilas, fazem que não seja possível estudar isoladamente as alfândegas de Caminha e de Viana”64. João Cordeiro Pereira define assim um vector essencial para a história da alfândega de Caminha: a relação umbilical que estabeleceu, desde a sua génese, com a de Viana do Castelo. Remetendo para este autor uma análise mais pormenorizada desta questão65, avançaremos apenas com algumas linhas que consideramos ser fundamentais para a compreensão das dinâmica mercantis da comunidade em estudo, nomeadamente algumas proibições e/ou privilégios concedidos pelo poder régio. O foral que D. Afonso III concedeu a Viana do Castelo isentara os seus moradores do pagamento da dízima, excepto das mercadorias que viessem de França e de terra de mouros. Na interpretação de João Cordeiro Pereira, para além de se tratar de um forte impulso à mobilização das actividades mercantis, 64 65
PEREIRA, 2003: 9 PEREIRA, 2003 (especialmente o 1º capítulo “Portos do mar: de Caminha ao Guadiana”).
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que deu frutos nas centúrias seguintes, este privilégio explica o crescimento da vila e a sua supremacia relativamente à vizinha Caminha. Com efeito, nos finais da Idade Média, a comunidade apresentava ainda dificuldades em progredir, o que o poder central tentava colmatar com sucessivos incentivos à atracção de população (nomeadamente o estabelecimento de couto de homiziados para marinheiros, pescadores e mercadores, por D. João I)66. Ao mesmo tempo, a costa do Minho assistia a um forte movimento mercantil, no qual ansiava participar (pois que “... polla costa do mar do dicto logo atravessam muitos navios”67). Consequentemente, em 1392, é concedido o estatuto de porto franco à vila de Caminha (novamente à semelhança de Viana), permitindo a todos os navios entrar e permanecer sem pagar dízima, costumagem ou ancoragem, nem nenhum direito, salvo se descarregasse a respectiva carga: “... e se alguu navio assy quiser descaregar como dicto he stando no dicto porto franco mandamos que o meestre del e marinheiros e os mercadores que em elle trouxerem suas mercadorias e averes o façam saber ante ao nosso almoxarife e scripvam da dicta villa de viana ou aquelles que as dictas dizimas e direitos ouverem daver e recadar pera nos e em nosso nome pera as hirem receber e poer em recado como compre a nosso serviço”68. A alfândega de Caminha conhecia, quer uma dependência administrativa da de Viana69, quer uma clara posição de inferioridade na criação de condições favoráveis ao trato mercantil. Este desequilíbrio é apenas anulado no tempo de D. Afonso V, altura em que se concedem a esta vila, “... todollos outros privilegios graças e liberdades que temos dadas e outorgadas a dita nossa vila de Viana”70. A partir daqui, Caminha e Viana partilharam das mesmas regulamentações alfandegárias, considerando que, na sua grande maioria, consistiram em claros incentivos às trocas comerciais. 66
PEREIRA, 2003: 10 T.T. ‐ Chancelaria de D. João I, lv. 2, fl. 66 (carta de 1392/04/21), 2ª col.. Publ. in MARQUES, 1988: 72, doc. n.º 53. 68 T.T. ‐ Chancelaria de D. João I, lv. 2, fl. 66 (carta de 1392/04/21), 2ª col.. Publ. in MARQUES, 1988: 72, doc. n.º 53. 69 Apesar da dependência orgânica e funcional da alfândega de Caminha relativamente à de Viana ter terminado formalmente em 1504 (a 11 de Junho é passada a primeira carta de juiz da alfândega da foz do Minho ao escudeiro Pedro Anes do Prado), na prática, a gestão continua a ser comum, com o principais cargos alfandegários a serem entregues ao mesmo funcionário. PEREIRA, 2003: 16‐18 70 Carta confirmada por D. Manuel I em 02/08/1497. PEREIRA, 2003: 11 67
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Logo em 1498, é‐lhes concedida autorização para poderem carregar os panos que da comarca de Entre‐Douro‐e‐Minho se remetessem para a ilha da Madeira, anteriormente um exclusivo da cidade do Porto71. A subversão das facilidades de que usufruíam é clara quando, em 1521, é denunciado que os moradores dos lugares de Caminha e Viana metiam muitas mercadorias de Londres, Flandres e de outras partes, de outras pessoas, naturais e/ou estrangeiras, e os dizimavam como suas. Como consequência ficam proibidos “... de levarem as mercadorias que trazem às alfândegas sem primeiro pagarem dízima”72. Completemos este quadro com a análise do contrato de arrendamento das alfândegas do Entre‐Douro‐e‐Minho, Aveiro e Buarcos, feito em 1553. Segundo este, todos os panos de Londres e Inglaterra que fossem às alfândegas de Viana e Caminha, depois de serem despachados e pagos os direitos, podiam livremente entrar e serem levados a qualquer dos lugares e portos de mar, sem serem obrigados a pagar outro qualquer direito. Aos moradores de Caminha era permitido alealdar suas mercadorias e dinheiros na alfândega de Viana, sendo o inverso proibido. Estas mesmas condições vão ser confirmadas nos arrendamentos posteriores, nomeadamente nos anos de 1559 a 156273. 4.2.2. Frota Fazer o estudo das embarcações do porto de Caminha parece tarefa impossível, face à ausência de qualquer tipo de recenseamento naval. Na verdade, este ponto consiste na reunião de alguns indícios que fomos juntando ao longo da nossa investigação na esperança de nos aproximarmos da realidade histórica.
71
T.T. ‐ Chancelaria de D. Manuel, lv. 31, fl. 121v (carta de 1498/02/19), 2º dipl. Publ. in MARQUES, 1988: 482, doc. n.º 318. 72 A.H.M.P., Reservados, n.º 435. Regimento Geral da Alfândega do Porto, 1521, fl. 44 e 55. 73 A.D.P., Registo de Contos. Arrendamento das Alfândegas do Entre‐Douro‐e‐Minho, Aveiro e Buarcos, 1553/08/18, fls. 324, 344v, 345v e 347.
98
O primeiro consiste numa informação dada pelo poder central, na qual, D. João III confirma, em 1525, numa confirmação de uma carta de 1502, que autoriza as vilas de Caminha e Valença a poderem carregar as suas mercadorias em navios da Galiza “... por não terem navios que lhe pera ello comprião”74. A nível local, uma análise da documentação da Confraria dos Mareantes de Caminha revelou uma diversificada tipologia: navios, pinaças, barcos de pescaria, barcos de passagem, barcas de carreto, barcos saveiros, naus, navios latinos, navios rodendos, trincados e chiolas75. Perante esta listagem é‐nos permitido concluir sobre a riqueza da frota do porto de Caminha em meados do século XVI? Em primeiro lugar, não nos podemos esquecer do mimetismo que verificamos existir entre Confrarias. Além disso, o facto de algumas embarcações de grande porte serem referidas, pode ser apenas um indício de que estes grandes barcos eram avistados, ou até mesmo frequentavam a barra de Caminha, mas não que pertencessem aos mareantes da vila. Um indício disto mesmo é o espanto com que os frades da Ínsua relatam a presença de grandes embarcações na foz do Minho76: ‐ “Em o anno de mil e quinhentos e tres entrou pela barra de Galliza huma grande e possante nao Portugueza muito carregada e rica”; ‐ “Na era do Senhor de 1545 (...) hua quarta feira do mes de junho bespera de sam brenabe (...) arribou sobre a Imsoa hua armada muyto pera ber em mar não acostumado”. Com efeito, no cartório deste convento, a única referência clara a uma embarcação de Caminha é feita em 1548 quando se regista que: “... no mes dabril hu dia aa hua hora depois de meyo dia entrando hua das derradeiras pinaças de Caminha pella barra de galiza, ao longo da ynsoa velha”. Curiosamente, a documentação produzida em contextos comerciais, que no caso em estudo é exclusivamente não local, regista a existência de 74
Carta de 1525/11/09. In BRAGA, 1996: 301 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, passim. 76 A.D.B. ‐ Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. 75
99
embarcações de maior porte e com finalidades mercantis. Assim, em 1565, a vereação de Baiona regista um aportamento de uma caravela de Caminha77. Os seguros marítimos de Burgos78 registam mais dois casos: Æ em 1568 a nau Santa Cruz do mestre Pero Gonçalves, natural de Caminha. A nau encontrava‐se fundeada em Caminha e levaria pescado de Vigo para Cartagena, Alicante e Valência; Æ em 1570 o navio Nossa Senhora da Nazaré do mestre Pero Frois, natural de Caminha, que se ocupava na rota Viana – Brasil. Um acto notarial de 1579 refere a nau Nossa Senhora da Esperança, do mestre e piloto Gaspar Dantas, morador em Caminha, aparelhada em parceria com mercadores de Caminha e de Vila do Conde, para ir à pesca do Bacalhau na Terra Nova79. A comprovar esta vitalidade está um levantamento da frota nacional, feito no ano de 1586, que, apesar de se desconhecer os contornos da sua realização, tem sido utilizado em outros trabalhos que têm como objectivo apurar questões semelhantes80. Quadro 5 ‐ Frota dos portos do Entre‐Douro‐e‐Minho e Aveiro em 1586 Portos
N.º Navios
Tonelagem
N.º Caravelas
Tonelagem
Caminha
8
100 a 250
16
60 a 100
Viana
7
100 a 200
12
50 a 100
Vila do Conde
9
100 a 260
10
50 a 160
Porto
7
100 a 150
13
50 a 100
Aveiro
11
100 a 150
15
50 a 100
Fonte: British Museum, Biblioteca Sloane, ms. 1026. Publ. in SILVA, 1862‐1972: vol. III, 536‐537
77
Libro de la fieldad, 1565. Publ in: GARCÍA ORO, PORTELA SILVA, 2003 A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101 79 CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/0996 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 9, fl. 46‐48 80 Nomeadamente por POLÓNIA, 2000: 29‐52 78
100
Compreende‐se que não poderíamos deixar de lado um levantamento que coloca a frota de Caminha como uma das mais expressivas a norte do Douro, quer em termos de número de embarcações, quer em termos da sua volumetria. Naturalmente, e por esta mesma razão, não podemos deixar de ter sérias dúvidas quanto à sua fiabilidade, dado que esta imagem não é, de forma nenhuma, suportada por estudos relativos aos outros centros portuários. A sua inclusão neste trabalho serve apenas para recordar que, com a ausência de outras fontes de carácter mais sistemático, como o Censo Naval de 1552 (essencial para um análise comparativa), estamos muito longe de ter um desenho claro da frota em análise, e que todas as hipóteses devem estar em aberto. Juntamos a este quadro um recenseamento feito na Galiza para uma data aproximada, 1588, analisado por María del Carmen Saavedra81. Dos vinte e três portos galegos recenseados, dezasseis não possuíam qualquer embarcação de grande porte, caracterizando‐se a sua actividade comercial por uma pequena cabotagem realizada em barcos de pequenas dimensões, como pinaças e volantes, pelo que os seus homens do mar eram fundamentalmente pescadores “... que nunca han hecho viaje”. Mesmo no caso de Pontevedra as embarcações registadas eram zabras de naturais destinadas ao comércio de pescado. Apenas Baiona, Teis e Corunha registavam a presença de barcos de maior tonelagem. Em Baiona, na maior parte dos casos, tratava‐se de embarcações de mais de 100 toneladas, e de origem portuguesa. Na verdade, se nos apoiarmos, mais uma vez, na realidade galega, talvez possamos compreender esta ambiguidade. Com efeito, “a natureza do comércio galego explica a relativa escassez de barcos galegos nas rotas comerciais nacionais e internacionais. A frota galega era de escasso porte, dedicando‐se, essencialmente, à pesca e ao transporte de mercadorias para zonas próximas, nomeadamente as Astúrias e o norte de Portugal”82. 81 82
SAAVEDRA VÁSQUEZ, 2008: 7 DUBERT, 2000: 266
101
4.2.3. Circuitos de navegação e comércio “São de pescadores as primeiras viagens a relativa distância ‐ do Porto à Galiza, da Pederneira ao Algarve, do Algarve à costa andaluza. Viagens modestas, de pura cabotagem, em que a actividade piscatória e o transporte de mercadorias dão as mãos e assentam numa mesma base”83. Considerando a progressiva participação dos pescadores na dinâmica mercantil quinhentista, que tipo de iniciativas esperar da comunidade marítima de Caminha? Está bem demonstrado que actividades económicas interdependentes teceram a integração das regiões de Entre‐Douro‐e‐Minho e a Galiza, desde o século XV84. Na acepção de Elisa Ferreira Priegue, a largura do rio Minho não constituiu um entrave ao comércio fronteiriço entre a Galiza e Portugal, mas sim um veículo de comunicação, difícil de controlar pelas autoridades, e objecto de sucessiva legislação, quer pelos monarcas espanhóis, quer pelos portugueses. No alvor da época moderna, o movimento de mercadorias entre Galiza e Portugal é caracterizado por um tráfico muito diversificado, modesto e pouco marcado pelo comércio internacional. Com efeito, exceptuando as rotas do sal, do vinho, do pescado e da madeira, trata‐se de um comércio de raio pequeno, entre as vilas das margens do Minho, unidas por antigos privilégios de vizinhança e por uma feliz ignorância das barreiras fiscais. Os dois reinos suprem mutuamente as suas carestias ao ritmo da conjuntura85. Por esse mesmo facto, o comércio marítimo e fluvial com outros portos dos dois reinos, do estrangeiro e, progressivamente, das colónias, constituiu um notável factor de desenvolvimento urbano, precoce nos casos de Caminha, Viana e Baiona, e mais tarde, Vigo86. Pelo menos desde o séc. XIV (umas vezes confirmada por privilégios régios, outras vezes resultado de uma prática imemorial) existia entre as vilas a prática da vizinhança dupla: portugueses e galegos desfrutavam 83
ESPINOSA, 1972: 151 COSTA, 2000: 78 85 FERREIRA PRIEGUE, 1988 86 CAVACO, 1973: 54 84
102
indistintamente do estatuto de vizinhos nas vilas do outro lado da fronteira, nomeadamente entre povoações mais próximas ‐ La Guardia com Caminha; Monção com Salvaterra; todos os galegos em Valença; os de Tui e Baiona em todo o Portugal. Se por um lado, Portugal necessitava de madeira, pescado e panos de importação que a Galiza lhe proporcionava; por outro, esta precisava do sal português e estava interessada nos produtos algarvios e da região lisboeta ‐ fruta e vinho para consumo e distribuição. Isto significava um comércio franco que se repercutia duramente nas finanças dos recebedores de impostos, uma vez que, salvo algumas mercadorias de grande distância (como o sal), a maior parte do tráfego destas pequenas vilas se fazia com as suas vizinhas da frente, com as quais se saltavam as barreiras fiscais. Não é de estranhar que os oficiais régios e senhoriais do norte de Portugal estorvem continuamente o movimento de galegos e portugueses através da fronteira87. A comprová‐lo está a apresentação feita em conjunto pelos procuradores de Viana, Vila Nova (Cerveira), Valença e Caminha, nas cortes de Lisboa em 1456: “Senhor em cada huu anno se carrega no rrio de minho pera frandes e pera aragam huu navyo e aly se ajuntavam as mercadorias de toda riba de minho comprando os mercadores da comarca a mayor parte das mercadorias asy as de hua parte como da outra de galiza e as traziam a esta parte e as carregavam no dicto navyo e despois que eram carregadas as davam em rrol ao almoxarife e asy dadas faziam novimento pera meyo do rio e ali tomava as outras mercadorias que alguus galegos que as queriam caregar e seguia sua viagem e ase custumou de sempre atee ora avera dous annos que gonçalo afonso voso coontador mandou que nenhum navio deste reino nom fretasse no dicto rio nem em galiza alguua mercadoria levasse nele nem trouxesse em o que recebemos grande agravo e vossas rendas e
87
Sobre este assunto ver a obra de José Marques, nomeadamente MARQUES, 1994 e MARQUES, 2004.
103
dizima nom rendem nada praza a vosa alteza mandar husar como se atee quy husou”88. Curiosamente, a grande similitude de produtos de exportação e importação originou, quer situações de concorrência, face aos mercados externos, quer situações em que galegos e portugueses são reciprocamente intermediários no comércio com o estrangeiro. Ambos se encontravam no Mediterrâneo em competição directa, desde finais do séc. XIV e ao longo de todo o séc. XV. Os portugueses que mais frequentavam os portos levantinos com os seus pescados e couros eram os das vilas do norte: Caminha, Viana, Ponte de Lima e Vila do Conde. Portugueses e galegos chegam a Valência e Barcelona formando comboios de naus de um e doutro lado do Minho; as partidas fazem‐se juntas, sendo frequente que mercadores galegos de portos com pouca capacidade de transporte utilizem os serviços dos patrões portugueses89. Nos inícios do séc. XVI, as ligações de Valência com Portugal começam a decair e a chegada de navios a este porto diminuem, no momento em que os interesses portugueses se viram para o Atlântico, para a exploração de África e das Índias. Nas ligações com Valência predominam Lisboa, Setúbal e o Algarve, nomeadamente Lagos. Os portos do norte mais activos são apenas Viana e o Porto, exportadores de couros, peixe salgado e de vinhos90. O estudo das apólices de seguros marítimos, efectuadas em Burgos, permitiu a Hilario Casado Alonso obter uma mais completa imagem das relações comerciais ibéricas, no séc. XVI: “Un primer ámbito es el que unía la costa cantábrica española com los puertos portugueses, donde contamos com 313 pólizas por valor de 169.650 ducados. Son seguros de mercancías cargadas en barcos vascos y santanderinos, más algunos de Oport, Vila do Conde y Viana do Castelo. Es una imporatante ruta de navegación de cabotaje en la que se transporta, sobre todo, hierro vasco y manudacturas europeas que eran redistribuídas desde los puertos españoles hacia Portugal. Allí, según los seguros 88
T.T. ‐ Chancelaria de D. Afonso V, lv. 36, fl. 197, 2º dipl. Publ. in MARQUES, 1988: 574, doc. n.º 1171 FERREIRA PRIEGUE, 1988 90 GUIRAL‐HADZIIOSSIF, 1986: 19 89
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burgaleses, eran intercambiados por la sal de Aveiro o Setúbal, y por las especias, azucares, colorantes y algodones adquiridos en Lisboa, Viana do Castelo y Oporto” 91. a) Peixe e Sal É curioso como Portugal, exportador de grandes quantidades de pescado com as mesmas características, importe tanto pescado galego, e precisamente o façam as comarcas do Norte, as mais dedicadas à salga. Nos mesmos meses em que as naus portuguesas saem com as suas sardinhas, congros e pescadas para o Mediterrâneo, navios galegos de pequena tonelagem sobem os rios, combinando a venda a bordo e o transporte terrestre e levando o pescado para povoações do interior. Elisa Priegue defende que a pesca seria mais rica em águas espanholas, pelo que os portugueses as frequentavam desde muito cedo92. A salga permitiu aumentar o raio das exportações galegas de pescado e iniciar o transporte marítimo, pelo este se dirigiu para as costas portuguesas e do sudoeste peninsular, essencialmente através dos mercadores de Santiago de Compostela, Noia, Muros e Pontevedra93. No séc. XVI os vizinhos de Vigo e outros portos compravam a sardinha no mar por grosso e remetiam‐na para Portugal já salgada94. Com efeito, o peixe é, juntamente com a madeira, a moeda habitual com que os galegos pagam as aquisições de sal na costa norte portuguesa95. Em 1539, o corregedor de Valença pedia a D. João III que se fizesse, nesta vila, uma alfândega e outra na de Caminha, para melhor arrecadação dos direitos de vários géneros que vinham da Galiza para este reino, referindo explicitamente o pescado: “... E assim me parece que se devia fazer na vila de caminha que outro si he duas léguas abaixo de vila nova per onde passa muito pescado que bem da galiza e não paga por não ouver hi 91
CASADO ALONSO, 2003: 218‐219 FERREIRA PRIEGUE, 1988 93 GELABERT, 1981: 434 94 FANGUEIRO, 1984: 251‐276 95 FERREIRA PRIEGUE, 1988 92
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oficiais que arrecadem os rendimentos de sua alteza.”96. Em 1538, das embarcações estrangeiras fundeadas em Baiona, seis eram caravelas portuguesas carregando sardinha97. Esta importação massiva de pescado galego tem sido comprovada por trabalhos relativos a outros centros portuários do noroeste português. Manuel Fernandes Moreira colocou esta questão: como explicar que, a partir de meados do século XVI, cinco sextos da sardinha consumida em Viana venha da Galiza? O investigador refere, que numa acta camarária de 1560, a propósito da exploração das águas nacionais por pescadores galegos, o facto se explica por haver poucos pescadores e poucos barcos e os galegos serem muitos e ricos98. A documentação municipal de Baiona deu‐nos a conhecer o circuito terrestre do pescado. Uma análise da cobrança da imposição sobre a sua compra nesta vila galega, para o ano de 156599, permitiu tecer as seguintes considerações: Æ os compradores de nacionalidade portuguesa que adquiriram peixe em Baiona são de Monção (6); Caminha (3); Trancoso (1) e Lisboa (1); Æ os três registos existentes para Caminha referem‐se a mulheres, enquanto que em todos os outros casos os compradores são homens; Æ este comércio é feito, na sua maioria, nos meses de Janeiro e Fevereiro. Este levantamento, ainda que de resultados lacunares, acaba por atestar a realidade que já tínhamos descrito, relativamente a um abastecimento feito pelas populações da fronteira junto das vilas pesqueiras galegas. Atendendo à sazonalidade da pesca, que atingia a sua maior actividade, entre os meses de
96
Carta de 1539/08/08. T.T. ‐ Corpo Cronológico, Parte 1ª, maço 65, doc. 30. SAAVEDRA VÁSQUEZ, 2008: 6 98 MOREIRA, 1982: 129 99 Libro de la fieldad, 1565. Publ. in GARCÍA ORO, PORTELA SILVA, 2003: 417‐452 97
106
Setembro e Dezembro100, é de todo coerente que o pescado seja adquirido logo nos primeiros meses do ano. A documentação também nos informa sobre o circuito marítimo, que assume uma dimensão completamente diferente do terrestre. Em Junho, registou‐se que um homem de Baiona levou 10 milhares de sardinha para Portugal; e que um comprador de Lisboa adquiriu, em Agosto, uma caravela de “pescado de pasta” para levar para Sevilha. Novamente, e de forma muito clara, o circuito marítimo envolve já outros portos de maior dimensão, como Lisboa, e um outro tipo de rotas, como o abastecimento da Andaluzia. Curiosamente, os seguros marítimos efectuados em Burgos parecem contrariar as considerações acerca da participação quase exclusiva dos grandes portos do sul (de Lisboa, Setúbal e do Algarve) no abastecimento do Mediterrâneo. Vejam‐se os seguros aí realizados por mercadores de Caminha. Em 1568, Gregório Felgueira, Pedro da Rocha e Afonso Mendes, residentes em Caminha, seguram uma nau carregada de sardinha e congro, destinada a Cartagena, Alicante e Valência, com origem em Vigo101. Este registo testemunha a permanência da realidade que Elisa Ferreira Priegue atestara para os séculos XIV e XV. Segundo a autora: “Parte das mercadorias importadas da Galiza por Valência e Barcelona chegam em naus portuguesas, e vice‐versa”102. Ou seja, apesar do porto de Caminha não constar da rota do pescado, os seus mercadores participam directamente, efectuando o transporte entre a Galiza e o Mediterrânico. Na mesma linha de acção, e apesar de termos constatado que o abastecimento da Galiza com o sal português se fazia, essencialmente, através do comércio directo com os centros produtores, ou através de Valença, centro de redistribuição para as localidades galegas do sul103, não podemos, de forma 100
CASTIÑEIRA CASTRO, 1999: 7‐30 A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101 102 FERREIRA PRIEGUE, 1988. 103 PINTO, 2006 101
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nenhuma, concluir acerca da ausência de Caminha nesta importante rota. Em 1597 perante a presença de um navio carregado de sal na baía de Caminha, e estando vazios os alfolins e os vizinhos da cidade e seu termo com grande necessidade do produto, mandaram requerer ao administrador de Pontevedra que se ordenasse ao navio ir descarregar a Tui, pois que aqui havia muita pescaria de sábado e falta de sal104. Podemos mesmo recuar a 1538, ano em que as notícias de depredações feitas pelos franceses em navios carregados de sal, e pertencentes a mercadores de vários portos, identificam Gabriel Afonso, mercador e vizinho de Caminha a transaccionar esse produto105. b) Têxteis O comércio têxtil entre Portugal e Castela e a importação massiva de panos do Norte da Europa constituem uma das mais importantes linhas da história económica ibérica106. O movimento das alfândegas do Entre Douro e Minho (desde Caminha a Aveiro) assinala este movimento comercial, nos quais se revelam protagonistas, produtos em circulação e espaços de contacto107. Um dos seus vectores a destacar é a intensidade de tráfico verificada entre estes portos do noroeste português e os da Galiza, envolvendo a troca de produtos como o sal, os cereais e o pescado108. Relativamente ao espaço de fronteira aqui em análise, é perceptível que também este comércio assume igualmente um carácter não‐oficial: um alvará régio de 9 de Setembro de 1551 denunciava que os mercadores ingleses, combinados com mercadores de Caminha e de Viana, em vez de irem, como era habitual, descarregar as suas mercadorias, nomedamente panos, à cidade do 104
LÓPEZ GÓMEZ, 1985: 217 T.T. ‐ Corpo Cronológico, Parte 2ª, maço 221, docs. 85 e 90. 106 Sobre este tema foi feito recentemente um ponto da situação no painel Consumo e Redes de Comercialização Têxtil no Espaço Ibérico (Séculos XV ‐ XVIII) do “XXVII Encontro da APHES ‐ Globalização: Perspectivas de Longo Prazo”. Lisboa, 16 e 17 de Novembro de 2007. 107 BARROS, 2007b 108 CASADO ALONSO, 2007 105
108
Porto e às outras alfândegas da comarca de Entre‐Douro‐e‐Minho, aportavam a Baiona e a outros portos galegos, donde avisavam os vianenses e caminhenses que lá lhas iam comprar, introduzindo‐as depois em Portugal beneficiando da isenção de dízima109. Elisa Priegue identificou também uma outra vertente deste comércio: a redistribuição que os portugueses faziam na Galiza do excedente de panos e outras mercadorias que traziam da Irlanda, no torna‐viagem dos seus carregamentos de sal110. Inserida neste circuito, uma nau foi vítima de corso, em Outubro de 1537, quando transportava vinho de Monção e roupa, desde Caminha até à Galiza111. A documentação de Baiona atesta esta realidade, mas no sentido inverso: a procura de têxteis em Baiona, por parte dos portugueses. Em 1565, Francisco Franco leva para Caminha 4 panos de Londres e 2 buriéis; João Rodrigues compra 7 frisetas; e João Lopes compra 2 fardos de frisas, tudo para abastecimento de Caminha112. Este tráfico apresenta também outra faceta: o transporte feito por embarcações inglesas e flamengas que prolongam as suas rotas desde Burgos até ao Porto, Vila do Conde e Lisboa, fazendo escala ao longo da costa espanhola e portuguesa. Estas paragens não eram, por norma, meramente técnicas, pelo que se aproveitava para descarregar, voltando a carregar com as mais variadas mercadorias113. Os frades da Ínsua assistiram a este mesmo movimento mercantil registando que “Em o ano de 1544, no dia da traladação de Santa Clara (...) emtrou hua nau de ingreses carregada de panos (...) em véspera de todos os santos do mesmo ano saiu a mesma nau carregada de vinhos e saindo pela mesma barra (...)”114. 109
PEREIRA, 2003: 12 FERREIRA PRIEGUE, 1988 111 FERREIRA, 1995: 349‐365, Apêndice I: Assaltos Franceses (T.T. – Corpo Cronológico, Parte 2ª, maço 220, doc. 32). 112 Libro de la fieldad, 1565. Publ. in GARCÍA ORO, PORTELA SILVA, 2003: 417‐452 113 CASADO ALONSO, 2007 114 A.D.B. ‐ Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. 110
109
c) Tabuado O censo naval de 1552 regista seis caravelas de Esposende que transportam tabuado de Caminha para Lisboa115. Quer as descrições corográficas da época116, quer os trabalhos que se debruçam sobre os recursos florestais117, convergem para uma imagem do Entre‐Douro‐e‐Minho como uma região abastecedora de espécies, nomeadamente o pinheiro manso, o carvalho e o sobreiro. Mestre António refere, em 1512, a riqueza desta região em “... arvores muyto frutiferas e muii grandes, que se faz muita madeira tavoado para casas e para naos e para caixas que dão tavoado de cinco e seis palmos em ancho que abasta para a comarqua, e que levão sobre mar para outras partes muiitas"118. Quanto à região de Caminha, Frei Miguel da Purificação confirma que “... Cristelo é toda de carvalhos, sobreiros e pinheiros. Em Moledo, a mata do Camarido era toda de sobreiros e pinheiros que os de Caminha e Galiza cortaram e roubaram”119. Esta denúncia parece ser corroborada por um acordo feito pela vereação caminhense, a 10 de Janeiro de 1562, para que não se “... corte lenha nem sobreiros de nenhuma qualidade (...) pois que o ano passado ouvera ali muita instruição (destruição) de lenha que se cortou”120. Embora não seja referida a causa de tanto corte de madeira, apontamos o habitual aproveitamento dos ramos para cestaria e de certos componentes para arcos e tanoaria. Temos de considerar, também, que as espécies referidas, sobreiros e pinheiros, eram as tradicionalmente utilizadas na construção de navios121, pelo que é de ponderar a possibilidade de a mata do Camarido ser uma fonte de abastecimento para esta actividade. A fortalecer esta hipótese estão as queixas de desflorestação apresentadas por centros portuários em contextos semelhantes. Refira‐se o 115
SOARES, 1989: 296 BARROS, 1919 117 DEVY‐VARETA, 1985: 47‐67 e OLIVEIRA, 1974 118 RIBEIRO, 1959: 441‐460 119 B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fl. 74 e 74v. 120 T.T., Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, lv. 3, fl. 175‐175v. 121 POLÓNIA, 2007a: vol. I, 290 116
110
caso de Vila do Conde, no qual o desenvolvimento da construção naval é a explicação apontada muito claramente pela respectiva vereação122. Na mesma altura, em meados de quinhentos, o concelho galego de Viveiro, queixava‐se do "disipado que estaban los montes" devido ao corte de madeira para exportação123. Não podemos, no entanto, ignorar a possibilidade de a madeira ser expedida a partir de Caminha, mas ter outros pontos de origem, como, por exemplo, da Galiza, funcionando como porto de escoamento124. d) Redistribuição e transporte A análise feita até agora da dinâmica mercantil da comunidade marítima de Caminha aponta para um raio de acção que se limita ao espaço ibérico. Mas quais as hipóteses de uma participação mais alargada, nomeadamente ao norte europeu, e, se esta existe, quais as suas características? A Burgos, fazer um seguro marítimo, “vai desde o dono de um barco que segura o casco, a artilharia da embarcação, até ao simples mestre que segura os apetrechos de pesca ou mercadoria miúda. Mas são, fundamentalmente, comerciantes, desde pequenos mercadores e/ou particulares, até aos elementos das grandes dinastias mercantis.”125. Sendo este o perfil dos contratantes portugueses que surgem nos seguros de Burgos, compreende‐se a nossa expectativa em obter um resultado positivo para a presença de mercadores de Caminha. Um filtro feito a todo o universo documental não tardou em revelar alguns resultados afirmativos. O quadro 6 resume os registos que foram encontrados para contratantes de seguros, residentes em Caminha, e cujas mercadorias tinham como destino o norte da Europa. Temos consciência da sua reduzida presença quando comparada com outros portos do noroeste 122
POLÓNIA, 2007a: vol. I, 291 DUBERT, 2000: 265 124 BARROS, 2004a: 511‐513 125 CASADO ALONSO, 2003: 221 123
111
português, como o Porto ou Viana126, mas não deixa de ser uma importante achega para o nosso estudo. Quadro 6 – Contratantes de apólices de seguros marítimos em Burgos, residentes em Caminha (Norte da Europa) Ano
Contratante
Origem
Destino
Mercadoria
1567
Pero da Rocha
Viana do Castelo
Antuérpia e Londres
açúcar e algodão
1569
Gregório Pita
Arosa
Antuérpia
açúcar e algodão
1570
Gaspar Fernandes Viegas
Baiona
Antuérpia
‐
1570
Pero d'Oia
Viana do Castelo
Antuérpia
‐
1572
Gaspar Fernandes Viegas
Baiona
Antuérpia
açúcar e algodão
Fonte: A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101
Os resultados que este quadro sintetiza encaixam perfeitamente no esboço que temos vindo a fazer da comunidade marítima em estudo. Em primeiro lugar, continua a demonstrar uma acção conjunta com os portos que a rodeiam: Viana, Arosa e Baiona, imiscuindo‐se nas suas frotas, e participando nos seus circuitos. Em segundo lugar, ocupa‐se da redistribuição de produtos coloniais, como o açúcar e o algodão brasileiros, fazendo o transporte destes até ao norte europeu (nomeadamente, e quase exclusivamente, até Antuérpia). Manuel Fernandes Moreira identificou alguns mercadores vianenses que estabeleceram verdadeiras redes de importação, distribuição, e escoamento do açúcar. Com armazéns e sede em Viana, estes grandes mercadores açucareiros faziam chegar o produto até aos seus correspondentes no norte da Europa127. Comprovadamente, os mercadores de Caminha estão inseridos nestas 126 127
CASADO ALONSO, 2003: 223‐224 MOREIRA, 1990: 206‐207
112
dinâmicas mercantis. Porém, a sua acção não se esgota na redistribuição de produtos brasileiros. O mesmo fundo documental regista um seguro feito em 1570, pelo caminhense Francisco Pires, de uma carga de figos, para ser transportada entre o Algarve e Bilbau. Este tipo de transporte era realizado já em 1536, ano em que uma embarcação de Caminha é vítima de corso quando transportava figos de Tavira com destino a Antuérpia128. Refira‐se ainda, em 1524, um outro navio também com origem em Caminha, e cujo mestre era João de Caminha. Desta vez o navio sofreu um ataque de corso na costa galega quando se deslocava às Astúrias para carregar ferro129. Estas ocorrências, ainda que casuísticas, não deixam de fornecer alguns apontamentos sugestivos quanto ao envolvimento de mercadores e transportadores de Caminha em circuitos comerciais que integram, mas extrapolam, o espaço ibérico.
4.2.4. Circuitos transatlânticos Compreende‐se agora que a participação do grupo de mercadores em
estudo, nas mais variadas rotas, tem de ser seriamente considerada, principalmente em articulação com os centros portuários mais próximos. Uma das principais rotas identificadas por Hilario Casado Alonso foi a do Brasil, que fazia circular tecidos, alimentos e manufacturas europeias, em troca de açúcar e algodão brasileiros130. Uma vez mais procuramos mercadores de Caminha envolvidos neste circuito. O quadro 7 apresenta os resultados obtidos: 128
FERREIRA, 1995: 349‐365, Apêndice I: Assaltos Franceses (T.T. – Corpo Cronológico, Parte 2º, maço 210, doc. 95) FERREIRA, 1995: 415‐417, Apêndice III: Maus tratos 130 CASADO ALONSO, 2003: 218‐219 129
113
Quadro 7 – Contratantes de apólices de seguros marítimos em Burgos, residentes em Caminha (Rota do Brasil) Ano
Contratante
Origem
Destino
Mercadoria
1568
Gregório Pita; Diogo da Rocha Palacios e Pero da Rocha
Caminha
São Salvador da Baía
vinho
1569
Gregório Pita e Pero da Rocha
São Salvador da Baía
Viana do Castelo/Vigo
açúcar, algodão e melaço
Baía e Porto Seguro
panos de linho, panos de Castela e 20 cobertores
1570
Pero Frois
Viana do Castelo
1570
Pero Frois
Viana do Castelo
Baía e Porto Seguro
panos de linho, ferramentas, sedas, ferro, cobertores de Castela
1570
Pero Frois
Viana do Castelo
Baía e Porto Seguro
vinho e linho
1571
Pero Frois
São Salvador e Porto Seguro
Viana do Castelo
açúcar e algodão
1571
Pero Frois
Porto Seguro
Viana do Castelo
açúcar, algodão e pau Brasil
1571
Pero Frois
Porto Seguro
Viana do Castelo
açúcar e algodão
1579
Gregório Pita e Francisco da Rocha Palacios
São Salvador da Baía
Viana do Castelo
açúcar e algodão
Fonte: A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101
Novamente, o facto de a esmagadora maioria dos seguros efectuados não envolverem partidas ou chegadas das embarcações ao porto de Caminha, não impede a participação dos seus agentes na rota dos produtos brasileiros. A proximidade a Viana, onde uma maior facilidade de escoamento para os centros europeus fez que por aqui passasse uma parte do açúcar consumido na Europa, permitiu a Caminha absorver o dinamismo deste grande circuito mercantil. “A residência dos mercadores e as parcerias criadas para o tráfego e tráfico 114
brasileiro questionam uma observação compartimentada dos portos”131. Com efeito, a grande aceitação do açúcar nos mercados internacionais tornam‐no apetecível, e provoca a adopção de estratégias que agilizem a sua distribuição. No Porto, à semelhança do que vimos em Viana, verificou‐se uma organização de mercadores em torno deste comércio132. De uma forma geral, os agentes mercantis descolam‐se do seu enquadramento portuário, para se movimentarem em todos os espaços por onde passa o produto (ou seguirem o seu movimento através de correspondentes e parceiros comerciais estrategicamente colocados). Se recuperarmos as informações do quadro relativo ao norte europeu testemunhamos a presença de agentes de Caminha nas várias etapas da comercialização dos produtos brasileiros: vão buscá‐los à origem, fazem a sua redistribuição no espaço europeu, e recolhem têxteis e vinho que levam de novo para o Brasil. Desta forma, são também os protagonistas das ligações entre “Portugal e os portos europeus de Bordéus, Nantes, Ruão, Londres, Hamburgo e Antuérpia. É a troca das especiarias por produtos manufacturados, sobretudo têxteis”133. No Livro das navegações e comércio de Viana, testemunho por excelência do comércio marítimo quinhentista deste porto, encontramos os mesmos produtos e proveniências que até agora temos enumerado: panos do norte europeu; açúcar e vinhos da Madeira; pão das ilhas; ferro das Astúrias; sardinha e fruta da Galiza; bacalhau da Terra Nova; açúcar e algodão brasileiros134. Não ignorantes desta vitalidade, os caminhenses parecem abarcar todos os seus sectores. Em 1523 um navio com origem em Vila do Conde é assaltado por corsários, próximo de Viana. Tinha estado nos Açores e dirigia‐se para 131
COSTA, 2000: 82‐84 BARROS, 2007b: 33 133 CASADO ALONSO, 2003: 218‐219 134 MOREIRA, 1982: 125‐126 132
115
Inglaterra, tendo os corsários levado dinheiro, pastel, o navio, e um homem de Caminha que foi “açoutado e desorelhado” por não lhes dizer onde estava o dinheiro.135 No ano de 1575 João Lopes, mercador e morador em Caminha, faz uma procuração a seu sobrinho, Francisco de Brito, morador na Ilha da Madeira para que, em nome dele recebesse todas as dívidas, dinheiro e mercadorias que aí lhe deviam136. Com efeito, para além do comércio brasileiro, os mercadores dos portos nortenhos especializaram‐se no das ilhas da Madeira e Açores. Se assumirmos que os contextos sejam comuns a Entre‐Douro‐e‐Minho, e baseando‐nos no que está dito para Vila do Conde, para os arquipélagos da Madeira e Açores, levava‐se do reino, sal, tecidos em peça, beatilhas, couros, linho, estopa, a par de roupas variadas. Da Madeira trazia‐se vinho, conservas, marmelada e, acima de tudo, açúcar, enquanto dos Açores provinham pastel e trigo, para além de ouro, este certamente como forma de pagamento de produtos aí vendidos137. E para que a lista de produtos e circuitos se complete, em 1579, Simão Dias e António Fernandes, mercadores de Caminha, Manuel Dias, mercador de Vila do Conde e Gaspar Dantas, mestre e piloto, também de Caminha, obrigam‐ se como parceiros no aparelhamento da nau Nossa Senhora da Esperança, com partida marcada para a Terra Nova, para ir à pesca do Bacalhau138. Claramente, a vitalidade mercantil de uma comunidade marítima, como Caminha, ultrapassa em muito o seu espaço portuário. O dinamismo dos portos do noroeste português assentou na sua complementaridade, e na forma como coordenaram a sua participação no período da expansão. Esta tese encontra no comportamento dos agentes caminhenses mais um comprovativo. Apontamos para a existência de centros portuários de média dimensão, articulados entre si, e em torno dos quais gravitam mercadores de localidades costeiras mais 135
FERREIRA, 1995: 415‐417, Apêndice III: Maus tratos CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/0795 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 7, fl 26‐27 137 POLÓNIA, 2007a: vol. II, 59 138 CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/0996 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 9, fl. 46‐48 136
116
pequenas. Estes homens associam‐me entre si, ou a mercadores de maior capital, criando parcerias capazes de investimento. A sua acção é bastante heterogénea: ocupam‐se da importação dos produtos, da sua colocação nos mais variados mercados, e até mesmo da sua reexportação. Relativamente às actividades da comunidade marítima em estudo, tema deste capítulo, concluímos apelando à mesma imagem híbrida com que definimos o mareante: ocupação na pesca, desde a rocha ao mar alto; ocupação no transporte, desde a cabotagem ao longo curso; ocupação no trato mercantil, desde a vizinha Galiza ao Brasil. Para uma melhor compreensão de todas estas actividades faltou conhecer a percentagem de homens que nelas se ocupa, e de que forma estas se cruzam e complementam entre si. Teria sido fundamental perceber quantos são os pescadores e os mareantes envolvidos: em que alturas se ocupam do transporte?; são os mesmos?; que percentagem da globalidade consegue alcançar a actividade mercantil de maior dimensão? Por último, os grandes mercadores, como os envolvidos no trato do açúcar, constituem uma minoria, actuam exclusivamente em parceria com outros de outras localidades, ou chegam a ter mesmo capacidade financeira para uma actuação isolada? À falta de indicadores quantitativos, tentaremos conhecer um pouco melhor estes homens, abordando questões de sociabilidade, nomeadamente aferindo acerca da sua integração na comunidade mais vasta, a vila de Caminha.
117
5. Dinâmicas sociais O estudo das sociabilidades das comunidades marítimas apresenta a mesma dificuldade com que nos deparámos quanto à sua caracterização socioprofissional. Se concluímos estar perante um grupo heterogéneo, naturalmente não podemos contar com um bloco homogéneo do ponto de vista de perfis e de práticas sociais. Ainda assim, tentaremos abordar algumas questões de maior pertinência como o estudo da representação social do grupo; a identificação de mobilidade, quer em termos geográficos, quer em termos sociais; a caracterização de formas de organização laboral; e, por fim, a abordagem ao tema da espiritualidade e da assistência.
5.1. Elites e hierarquias sociais Em paralelo com as várias perspectivas através das quais temos analisado a comunidade marítima de Caminha, importa que se questione a sua projecção social, e, mais concretamente, os espaços de elite em que o grupo, eventualmente, se terá movimentado. Concordamos com a ideia de que, neste tipo de estudos uma das questões que se deve colocar “é a de saber se as elites económicas e sociais de determinado espaço portuário conseguem projectar‐se, ou não, e com que peso, nos espaços e estruturas de poder”1. Nas sociedades de Antigo Regime a posição de um grupo define‐se a partir de determinados vectores, como o estatuto social (direitos, privilégios, isenções, acesso ao poder); a organização socioprofissional (integração num grupo profissional, ocupação na sociedade); a situação material (acesso a bens e
1
POLÓNIA, 2007b
118
valores patrimoniais e financeiros); e a representação sociocultural (aparato simbólico, auto‐representação)2. Idealmente, para aferirmos acerca destes vectores, a análise da documentação camarária, que nos informasse acerca do perfil socioprofissional dos agentes do poder, seria a primeira etapa desse trabalho. No entanto, a inexistência desta documentação vedou‐nos, logo à partida, esta metodologia de análise. Ainda assim, encontramos um indicador bastante pertinente: em 1567, os mareantes de Viana enviaram ao rei um requerimento no sentido de obterem autorização para participarem “... no governo da dita villa, igualmente, como os omens da terra, como se faz em Caminha, Villa do Conde, Porto, Aveiro e Buarcos”3. A confirmar‐se esta realidade, que no caso de Vila do Conde4 e do Porto5 está comprovada, podemos aceitar a hipótese de os homens do mar de Caminha se fazerem representar no poder local e participarem no governo da vila, embora desconhecendo o peso ou o âmbito dessa mesma participação. A base de recrutamento social das elites do poder local constitui também um bom indicador. Nos inícios do século XVI, enquanto que a população de Viana era constituída por 13% de privilegiados6, em Caminha este grupo representa apenas 4% da população7. Neste contexto, para constituir o grupo dos elegíveis para cargos concelhios, os melhores da terra, seria necessário recorrer a outras camadas sociais, que não apenas membros da nobreza, abrindo‐se as portas da vereação a oficiais mecânicos ou de mercancia8. Perante um quadro de ausência documental, mas que indicia uma presença dos homens do mar em espaços de poder, tornou‐se necessário 2
POLÓNIA, 2004: 4‐5 MOREIRA, 1995: 58 4 POLÓNIA, 2007a e 2005a; PEREIRA, 2006 5 No caso do Porto a representação dos homens do mar era feita através da sua participação na “Casa dos 24”, grupo composto por dois membros de cada actividade profissional, e que, desde D. João I, tem o direito a estar no governo do concelho (Cf. BARROS, 2005). No caso de Vila do Conde esta participação é feita directamente através de cargos de vereação, tendo os homens do mar o privilégio de aí estarem representados em paridade com os homens da terra. 6 MOREIRA, 1984: 76 7 OLIVEIRA, 1976: 125‐165 8 POLÓNIA, 2005a: 32 3
119
encontrar outros espaços de elite, para os quais fosse possível obter informação, pelo que a análise do fundo documental da Misericórdia de Caminha foi a etapa seguinte. De carácter profundamente elitista, “as misericórdias constituíram um dos mais relevantes pólos de poder na sociedade local”9. Os vários estudos que recaem sobre estas instituições são, de forma geral, unânimes em afirmar que o grupo que forma a mesa da misericórdia coincide com os indivíduos que efectivamente detêm o poder local, nomeadamente são os mesmos que constituem a vereação. A Misericórdia de Caminha teve o seu princípio em 1516. O seu primeiro compromisso, idêntico ao da Misericórdia de Lisboa, de onde se mandou vir o traslado, foi confirmado por D. João III em 1537. A sua igreja foi construída em 1551, com um legado deixado por Fernão Pires Viegas, o Velho. A partir de 1566, a Misericórdia passou a administrar o hospital, que estava sob gestão da câmara desde 1457, e que tinha como principal função prestar assistência aos doentes estrangeiros, como os peregrinos, e não aos locais10. Sobre o número e qualidades dos irmãos, o compromisso da Misericórdia estabelece algumas limitações: não excederá os cem, sendo 50 nobres e 50 oficiais; são excluídas as pessoas que não residam na vila, as que tenham cometido delito, e as menores de 25 anos. Quanto aos oficiais mecânicos, tinham de ter tenda, bens próprios, saber ler e escrever, sendo excluídos os aprendizes e os obreiros. Um número reduzido de indivíduos, geralmente pertencentes às famílias mais influentes a nível local, são os que devemos esperar encontrar a ocupar os cargos de maior relevo, como o de provedor e o de escrivão. Em Caminha, isto significa que nos vamos deparar com nomes como os: Abreu, Morais, Noronha, Nóbrega, Pita, Rocha, Soares, Sousa, ou Vale11. São também os mesmos que 9
SÁ, 1996: 136‐142 A.H.M.C. ‐ Notícia do princípio que teve a irmandade desta Santa Misericórdia com algumas cousas mais notáveis que nela sucederam, 1734, fl. 36. 11 Pero de Abreu, provedor (1551 a 1553), André de Noronha, provedor (1556 e 1557); Baltasar da Nóbrega, bacharel, escrivão (1578) e provedor (1577); António de Abreu do Vale, escrivão (1586 e 1589) e provedor (1594); 10
120
ocupam cargos concelhios de relevo, verificando‐se, muitas vezes, uma coincidência, ou alternância, entre o cargo de vereador e provedor no mesmo indivíduo12. Uma limitação que nos impõe a fonte, mais especificamente, o registo de irmãos da Misericórdia de Caminha, é o facto de não indicar claramente quais os irmãos maiores e quais os menores, o que não nos permitiu aferir acerca de hierarquias, nomeadamente entre ofícios. Tivemos que nos apoiar na divisão social que está identificada para outros espaços, pelo que será de esperar que do grupo de irmãos maiores façam parte os indivíduos que, através do cruzamento feito com outras fontes documentais, identificamos como sendo vereadores, escrivães, juizes ordinários, procuradores do número, recebedores das sisas, recebedores da sisa dos panos, e até mesmo guardas da alfândega13. Uma outra limitação decorre do facto de a indicação da profissão não constituir uma norma, mas antes, um apontamento muito casual. O número de referências laborais recolhidas demonstra bem a sua pouca representatividade no universo dos irmãos. Brás Roiz Pita, cavaleiro da Ordem de Cristo e procurador às cortes de Almeirim em 1580, e provedor (1586, 1595 a 1598). In B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543, fl. 31v a 33; e AVILLEZ, 1935: 58‐60 12 Gaspar da Nóbrega, vereador em 1562, escrivão (1558) e provedor (1562 e 1566); Gastão da Rocha, vereador em 1562 e provedor (1575); António Pita da Vale, procurador do número, escrivão (1564) e provedor (1582 e 1590); Manuel Lobo, escrivão das sisas e almoxarife da alfândega de Caminha e provedor (1580 e 1589). In B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543, fl. 31v a 33; e T.T. – Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, lv. 3, fl. 175; lv. 39, fl. 244; lv. 19, fl. 215v; Doações, lv. 20, fl. 339, 339v, e 421 a 422v. 13 Pero Lopes Calheiros, vereador em 1562; António Lobo, escrivão e juiz ordinário da vila em 1553; Afonso de Crasto, juiz ordinário da vila; Cristóvão Mendes, procurador do número; Gaspar da Fonseca, recebedor das sisas dos panos da alfândega de Caminha em 1591; Jacome Pires, guarda da alfândega de Caminha; Rui Novais, recebedor das sisas de Caminha. In T.T. – Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, lv. 3, fl. 175, lv. 7, fl. 80, lv. 14, fl. 472, e lv. 19, fl. 158v; Chancelaria de Filipe I, Privilégios, lv. 17, fl. 443v; A.H.M.C. ‐ Maços de escrituras de prazos, 1532‐1912
121
Quadro 8 – Ofícios dos irmãos da Misericórdia de Caminha, referidos no Registos dos Irmãos do Cento 1560
1561
1567
1573
1583
Mareante
5
10
1
1
Marinheiro
2
1
1
Pescador
1
1
1
Mercador
2
2
2
1
Alfaiate
3
1
2
2
7
Sapateiro
12
16
16
16
17
Barbeiro
2
2
2
2
2
Tanoeiro
1
1
1
Cordoeiro
4
4
3
2
1
Barqueiro dos Frades
1
1
1
Ferreiro
3
1
4
Carpinteiro
1
1
Tosador
2
2
3
Sombreireiro
1
2
2
Entalhador
2
Tendeiro
1
Pintor
1
Total
30
43
33
30
43
Total irmãos
117
140
132
119
185
Fonte: A.H.M.C. – Livros de receita e despesa, 1551 a 1594
O quadro 8 sintetiza a recolha feita de todas as referências laborais fornecidas acerca dos indivíduos que podemos considerar como sendo os irmãos menores, ou seja, o grupo dos oficiais. Para além de ajudar a uma
122
aproximação ao quadro socioprofissional da comunidade em estudo, permite‐ nos relativizar a representatividade dos ofícios marítimos no universo da Misericórdia. Uma das primeiras observações a fazer relaciona‐se com o elevado número de irmãos, verificado em todos os anos analisados, que excede em muito o número de cem que o compromisso estabelece. Este fenómeno é referido na documentação da Misericórdia, na qual se diz que não seriam aceites mais elementos “... até se reduzir a irmandade pois tinham excesso de irmãos”14. Logo de seguida aponta‐se como justificação a ausência de muitos deles. Considerando o contexto socioprofissional da comunidade na qual se insere a irmandade, é natural que este indicador nos sugira um cenário de um grupo numeroso de irmãos que se ocupa em actividades marítimas, obrigando‐ os muitas vezes a ausências prolongadas. Isto explicaria que se aceitassem mais irmãos que a centena estipulada, visto que a sua presença efectiva difere do número real de inscritos15, e coloca em questão a veracidade da sua representatividade expressa no nosso universo de dados.
Quadro 9 – Homens do mar na Misericórdia de Caminha, referidos no Registos dos Irmãos do Cento 1560
1561
1567
1573
1583
Mareante
5
10
1
1
Marinheiro
2
1
1
Pescador
1
1
1
Barqueiro dos Frades
1
1
1
Total
6
13
4
3
1
Total ofícios
30
43
33
30
43
Fonte: A.H.M.C. – Livros de receita e despesa, 1551 a 1594 14
A.H.M.C. ‐ Notícia do princípio que teve a irmandade desta Santa Misericórdia com algumas cousas mais notáveis que nela sucederam, 1734, fl. 4v a 7v. 15 Na verdade, este excesso de irmãos como forma de assegurar o cumprimento das tarefas, face a um número elevado de ausências, verifica‐se também em outras misericórdias. Ver ARAÚJO, 2000: 80‐81
123
Quanto à questão da representatividade, cremos, na verdade, poder afirmar que o número efectivo de mareantes excederia em muito o número dos registados como tal. Apoiamo‐nos em dois exemplos de indivíduos, cujo percurso foi reconstruído através do cruzamento de fontes documentais. Gaspar Dantas, irmão da Misericórdia pelo menos entre 1560 e 1583, apesar de nunca ter referido a sua ocupação, surge, em 1579, numa parceria para a pesca do bacalhau na Terra Nova, como mestre e piloto da nau Nossa Senhora da Esperança16. À sua semelhança, Pero Frois, também irmão entre 1560 e 1583, é identificado como mestre do navio Nossa Senhora da Nazaré em 157017. A sustentar esta ideia está também a coincidência de nomes entre os irmãos da Misericórdia e os confrades da irmandade dos mareantes de Caminha. Esta coincidência é sustentada pela referência que encontramos em 1594, quando um irmão da Misericórdia, Miguel Álvares, no seu testamento, pede ao mordomo da Confraria do Bom Jesus “... que levem a cruz da dita confraria acompanhando o meu corpo por quanto eu sou confrade da dita confraria”18. Apesar destas considerações, procedemos à análise dos números sintetizados nos quadros. Concluímos que o ano de 1561 é o que apresenta o maior número de referências laborais, com 31% dos irmãos com actividade registada, seguido do ano anterior, 1560, com 26% de referências. Elegemos, desta forma, estes dois anos como os mais representativos e filtramos os ofícios marítimos. Em 1560, 20% dos oficiais identificados são marítimos, em 1561 este grupo atinge os 30%. Curiosamente, porque realmente desconhecemos as razões deste fenómeno, nos últimos anos, a par do aumento da diversidade de ofícios e do seu número, os mareantes parecem desaparecer da Misericórdia (de 10 identificados em 1561 passam a apenas 1 em 1567).
16
CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/0996 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 9, fl. 46‐48 A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101 18 A.H.M.C. – Maços de testamentos, 1557‐1749 17
124
Como o registo de irmãos constitui o único indicador deste declínio das actividades marítimas, não pudemos aferir acerca da sua representatividade. Na verdade, pode tratar‐se apenas, por exemplo, de uma exclusão imposta pela Misericórdia, ou pela preferência de integrar elementos de outros grupos socioprofissionais em detrimento dos homens do mar. No entanto, não podemos deixar de comparar com o que está aferido para outros espaços portuários. Em Vila do Conde, a partir das últimas décadas de quinhentos, verifica‐se um real decréscimo de marítimos nas referências laborais, quer na documentação da Misericórdia, quer na documentação de carácter fiscal. Amélia Polónia aponta como quadro explicativo “os consabidos riscos com que se debatem as navegações ultramarinas, acrescidos pela união dinástica e correlativos confrontos com inimigos da coroa espanhola: holandeses e ingleses, directamente ligados ao incremento do corso e da pirataria. Ataques sucessivos, percas de embarcações, saques arruinantes tornariam, por certo, menos atractivos para a iniciativa privada os negócios de transporte e comércio ultramarino e, de um modo geral, menos atraentes as carreiras profissionais ligadas a estas actividades.”19. Considerando o universo de irmãos e o nosso desconhecimento sobre o seu efectivo perfil ocupacional, temos que admitir que estes resultados constituem mais um exercício estatístico do que uma representação da realidade histórica. Acreditamos mesmo que, por vezes, as informações qualitativas acabam por ser mais ricas do ponto de vista do conhecimento do que as quantitativas. Senão vejamos: o irmão Domingos Fernandes apresenta‐se em 1567 e 1583 como pescador. Apesar de todas as limitações impostas pelo compromisso e de todo o carácter elitista das misericórdias, a de Caminha aceita no seu grupo um pescador. Apesar de estatisticamente irrelevante, como caso isolado que é, revela‐se de uma enorme relevância para a compreensão das dinâmicas sociais específicas das comunidades marítimas. No caso de Vila 19
POLÓNIA, 2007a: vol. I, 440
125
do Conde, será necessário chegarmos a seiscentos para encontrar um pescador como irmão da Misericórdia, pelo que durante toda a centúria de quinhentos este espaço de elite é‐lhes completamente vedado20. Igualmente relevante é o testamento de Vicente Gonçalves, marinheiro, que em 1553 lega uma quantia em dinheiro à Misericórdia, pois “...disse que na Casa da Índia em Lisboa lhe deviam 3500 reis que lhe ficaram devendo quando veio da Índia do seu serviço do ano de 550”21. A Misericórdia, a quem interessava integrar indivíduos com avultados legados que, após o seu óbito, ficassem para património da casa, encontra também no grupo dos marítimos elementos atractivos. Um outro grupo de interesse para o nosso estudo é o dos mercadores. Se numa primeira leitura parecem constituir uma minoria dentro da Misericórdia, com apenas 2 registos anuais, à semelhança do que acontece com os ofícios marítimos, eles seriam em muito maior número. Mais uma vez, o cruzamento com outros dados permitiu‐nos identificar mais 11 mercadores no grupo de irmãos da Misericórdia. Este processo permitiu‐nos concluir ainda que, para além de serem muito mais numerosos, os mercadores ocuparam muitas vezes os lugares de maior importância na mesa da Misericórdia, pelo que muitos deles deveriam ser do grupo dos irmãos maiores, ideia sustentada pelo facto de os seus nomes serem registados logo a seguir aos das famílias mais nobres. Apontemos alguns exemplos ilustrativos. Diogo da Rocha Paços, mercador de grosso trato, incorporando a rota do Brasil em 156822, ocupa o cargo de escrivão da Misericórdia em 1574. Nesse mesmo ano, a documentação regista a chegada de uma imagem do Bom Jesus crucificado, colocada no altar das chagas da Igreja da Misericórdia, e que teria sido trazida da Flandres por
20
PEREIRA, 2006: 106 A.H.M.C. – Maços de escrituras de prazos, 1532‐1912 22 A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101 21
126
Diogo da Rocha Paços e João de Oia23. Gaspar Fernandes Viegas, identificado na documentação como fidalgo, foi escrivão em 1551, 1552, 1554 e 1559. No ano de 1570 encontrámo‐lo a reexportar produtos brasileiros para Antuérpia24. Afonso Mendes, escrivão em 1567, ocupa‐se, no ano seguinte, do transporte de pescado para o Mediterrâneo25. Gregório Pita Calheiros, mercador envolvido nos produtos brasileiros26, depois de ser escrivão em 1568, chega mesmo a ocupar o cargo de provedor em 1574. Estes casos são bastante significativos, pois também comprovam, para além da presença dos mercadores na Misericórdia, o seu peso e a sua influência, principalmente quando são grandes mercadores. Miguel Álvares, no seu testamento, em 1594, apesar de não mencionar a sua ocupação, entre os legados que deixa à Misericórdia, refere “... 1500 cruzados pouco mais ou menos entre móvil e raiz e dinheiro que será pouco na casa ao presente nalguma mercadoria que está na casa e encomendas que tenho mandadas por via de Viana para Bilbau e daqui”27. Este mercador pede que o seu corpo “... seja enterrado numa sepultura que eu tenho na casa de nossa senhora da misericórdia na capela grande”. Ainda sobre o grupo de mercadores não queremos deixar de referir a presença de três cristão‐novos na Misericórdia. Henrique Vaz, mercador, apanhado pelo Tribunal da Inquisição em 155728, é solto dois anos depois, pelo que em 1560 surge já como irmão da Misericórdia. A ele juntemos os mercadores Simão Dias29 e Simão Lopes30, cujos percursos nos serão úteis para o próximo ponto. 23
B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543, fl. 31. A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101 25 A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101 26 A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101 27 A.H.M.C. – Maços de testamentos, 1557‐1749 28 T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 2930 29 T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 4514 30 T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 4520 24
127
5.2. Mobilidades geográficas e sociais Numa
comunidade
marítima
são
esperados
determinados
comportamentos populacionais específicos, nomeadamente uma elevada mobilidade geográfica dos seus agentes, que resulta, invariavelmente, em consideráveis taxas de migração e de casamentos envolvendo nubentes exógenos à comunidade. Face à inexistência de fontes documentais que nos permitissem aferir acerca destes fenómenos, nomeadamente de registos paroquiais, mais uma vez tivemos que nos limitar a indicações casuais, e mais sugestivas do que conclusivas. Sobre o universo dos mareantes não pudemos aferir nada de concreto. Os notariais de Vila do Conde informam‐nos apenas que a vila acolhia alguns indivíduos de Caminha, como o caso de Francisca Gaspar e do seu marido, mareante, em 159631; e de João Rodrigues, pescador, e sua mulher, em 158032. Comprovamos, desta maneira, a migração de marítimos para espaços portuários relativamente próximos, mas também apontamos a hipótese de deslocações a grande distância, pois em 1573 o provedor da Misericórdia de Vila do Conde regista que se “... despendeo com hum omem e sua mulher e synqo filhos que veo de Caminha e vai pera Lixboa cento e cinquenta reaes”33. Relativamente à comunidade mercantil, conseguimos reunir mais alguma informação, embora muito episódica e muito específica de determinados agentes individuais. Na verdade, o seu carácter biográfico justifica que tenhamos substituído os habituais gráficos que sintetizam tendências de mobilidade e nupcialidade, por um esquema de carácter genealógico, mas que se torna, igualmente ilustrativo. 31
CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/1956 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 20, fl. 30‐31v CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/1063 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 9, fl. 196v‐198 33 POLÓNIA, 2007a: vol. II, 339 32
128
Fig. 19 – Genealogia de Simão Dias. Fonte: T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 4514 e 5810; Inquisição de Coimbra, Processo n.º 10073
Simão Dias, não sendo filho de um mercador, possui, no seu contexto familiar, fortes relações com o pequeno comércio: um dos seus tios é marceiro e o outro tendeiro. Todos os seus irmãos abandonam Monção, pelo que três deles se instalam em Viana (o mais velho segue o ofício do pai, alfaiate, embora dos outros dois desconhecemos a ocupação) e a irmã vai para Vigo. Simão Dias opta por se instalar em Caminha, onde exerce a sua ocupação como mercador. A partir do esquema da fig. 19 é bastante perceptível a adopção, por três gerações, do mesmo tipo de comportamento nupcial: Henrique Vaz, mercador, casa a sua filha com um mercador, que por sua vez, casa a sua filha com outro mercador. De certa forma, na ausência de um descendente masculino que integre o negócio familiar, o casamento do elemento feminino com um membro do mesmo grupo assegura a sua continuação, e, talvez mesmo, o seu alargamento, através da concretização de eventuais novos contactos. Relativamente a estas ligações, é fundamental a mobilidade verificada nesta rede familiar: Simão Dias possui contactos com comerciantes em Viana, no Porto, e com o seu genro, mercador em Vila Real. Para que este esquema tivesse realmente impacto na nossa percepção das dinâmicas sociais das comunidades mercantis, seria crucial verificar se estas ligações familiares se 129
concretizam de forma consciente e calculada por parte dos agentes, ou seja, se a esta rede familiar realmente correspondeu um aumento de ligações comerciais e uma rede de negócios. Sobre isso pouco sabemos, embora Simão Dias relate uma ida a Baiona com o seu irmão alfaiate para comprar islandros; e uma outra ida à ribeira de Viana para comprar pescado com um outro seu irmão. Também sabemos que por parte da sua mulher tinha contactos na Galiza, visto que, quando foi apanhada pelo Tribunal da Inquisição, Grácia Vaz encontrava‐se num porto perto de Santiago, com o intuito de embarcar para a Flandres ou Inglaterra. Teria andado fugida pela Galiza e Astúrias e acabou por ser trazida a tribunal pelo seu irmão34. Apesar de não podermos aferir acerca da relevância das ligações familiares, uma coisa sabemos por certo: as ligações mercantis de Simão Dias ultrapassavam as referidas até agora. Em 1578, Guilherme Incol, inglês, passa uma quitação a Manuel Dias, mercador de Vila do Conde, de uma dívida contraída em Baiona, por Simão Dias, Simão Lopes e António Fernandes, todos mercadores de Caminha35. Este Simão Lopes era também um cristão‐novo, residente em Caminha, mas natural de Viana; ia algumas vezes a Braga e Viana vender suas mercadorias e à feira de São Bento em Caminha36. Em 1585, António Henriques e Manuel Pinheiro, mercadores da vila de Trancoso, reconhecem uma dívida a Miguel Rodrigues, mercador, morador em Vila do Conde, e a Simão Lopes, que se diz ser cunhado do anterior37. Um registo notarial, de 1586, informa‐nos ainda que o já referido mercador de Vila do Conde, Manuel Dias, e Simão Dias, estavam envolvidos numa parceria de compra e venda de panos de Londres, e de outras mercadorias, que mantiveram durante anos38. Na mesma altura, à semelhança deste caso, Miguel Rodrigues, 34
T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 4514 e 5810 CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/0893 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 8, fl. 58v‐60 36 T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 4520 37 CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/1238 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr. 38 CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/1440 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 13, fl. 155v‐156 35
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mercador de Caminha reconhece uma dívida de Jorge Barreto, morador na cidade de Viseu, por certa quantia de panos e roupa que este lhe comprara39. As ligações verificadas a Vila do Conde deverão ser reforçadas com a presença significativa de mercadores caminhenses neste espaço portuário, presença essa, comprovada por Amélia Polónia40. Apesar de não nos ser permitido contabilizar este tipo de ligações, os casos referidos demonstram, que também Caminha é marcada pela “grande mobilidade populacional, que tem nos portos espaços de atracção, que gere dinâmicas sociais que são marcantes, e por vezes específicas, de sociedades marítimas, e que conduz a um cosmopolitismo com significativas projecções sociais”41. Convém agora esclarecer até que ponto toda esta mobilidade geográfica, assim como o estabelecimento de ligações com novos elementos, se concretiza em mobilidade social, ou seja, aferir acerca de permeabilidades na comunidade marítima. Entendemos, porém, considerar mobilidade social, não no sentido habitual de ascensão a novas camadas sociais através da concessão de privilégios ou títulos nobiliárquicos, mas sim a mobilidade entre os sub‐grupos dos homens do mar. Optamos por esta conceptualização, pois apesar de serem todos marítimos, um pescador não possui o mesmo prestígio, nem apresenta o mesmo tipo de comportamento que, por exemplo, um marinheiro ou um piloto. Com efeito, a integração em determinados grupos implica, com frequência, um distinto recrutamento social. Para Vila do Conde, Amélia Polónia concluiu que enquanto os pescadores tendem a fazer um recrutamento endógeno ao grupo, os marinheiros parecem oferecer proveniências sociais mais alargadas: podem ser filhos de pescadores, de artesãos e mesmo de agricultores, que por uma questão de oportunidade, prestígio profissional e mobilidade tendem a 39
CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/3384 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 3 sr., lv. 1, fl. 79v‐80v POLÓNIA, 2007a: vol. II, 133 41 POLÓNIA, 2007b 40
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alimentar o universo da navegação42. Os homens do mar de Caminha parecem reconhecer estes mesmos princípios de recrutamento: no registo de irmãos da Misericórdia, de Alexandre(?) Fernandes, identificado como marinheiro, diz‐se ser genro de Gonçalo Roiz, pescador43. Em 1580, João Rodrigues, pescador, e sua mulher, passam uma procuração a um mareante de Vila do Conde, para poder receber dos oficiais da Casa da Contratação de Sevilha todos os bens que tivessem ficado de seu filho, mancebo solteiro, que faleceu vindo das Índias de Castela na nau de Antão Sanches44. Uma outra dinâmica social específica das comunidades marítimas que gostaríamos de ver mais bem documentada é a do trabalho feminino. É consensual a ideia de que o peso do protagonismo feminino, no mundo do trabalho, na família e na própria sociedade, é grande em comunidades marítimas, ideia explicada pelas ausências masculinas, e pela importância da complementaridade de um rendimento adicional45. Embora se revista de diferentes características, consoante o grupo marítimo considerado, no mundo da pesca o trabalho feminino desenvolve‐se em termos de complementaridade e no próprio âmbito de extracção, transformação e venda do pescado46. É este tipo de trabalho feminino que pudemos documentar em Caminha. A documentação municipal de Baiona, que nos deu a conhecer o circuito terrestre do pescado entre a Galiza e Portugal, identifica os compradores portugueses, no ano de 1565, da seguinte maneira: 6 homens de Monção; 1 homem de Lisboa; 1 homem de Trancoso; e 3 mulheres de Caminha47. Ou seja, enquanto que em Caminha são as mulheres as responsáveis por este circuito, em Monção, também uma vila de fronteira, são os homens. Se considerarmos a diferença de realidades socioprofissionais entre povoações do litoral e do interior, este facto 42
POLÓNIA, 2007b A.H.M.C. ‐ Livro de receita e despesa, 1551‐1561, fl. 275 44 CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/1063 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 9, fl. 196v‐198 45 POLÓNIA, 2007b 46 AMORIM, 2002 47 Libro de la fieldad, 1565. Publ. in GARCÍA ORO, PORTELA SILVA, 2003: 417‐452 43
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torna‐se bastante compreensível. Com efeito, não nos custa nada aceitar que os homens de Caminha, ocupados na pesca, no transporte, e no comércio marítimos, delegassem nas mulheres o abastecimento feito por via terrestre.
5.3. Formas de organização laboral No que se refere ao universo dos pescadores, dois aspectos o caracterizam em todas as épocas e em toda a Europa: a interdependência das actividades e a solidariedade necessária entre os homens, perceptíveis a todos os níveis. Aos laços da comunidade familiar vêm reunir‐se os da comunidade de trabalho. Desta forma, os pescadores, com o aval dos poderes públicos, dotaram‐se de organizações profissionais reforçadas por confrarias religiosas48. Elas constituem‐se em associações de leigos que livremente se comprometem a respeitar e a cumprir as normas associativas consignadas por escrito ou meramente consuetudinárias49. Mas até que ponto as confrarias se limitam a ser “um meio de participação mais intenso de um grupo de leigos na actividade eclesiástica, como um estádio intermediário entre a vida cristã no século e a vida religiosa em comunidade”?50 Não são as confrarias bem mais do que isto? Apesar de libertas da fiscalização e superintendência das autoridades municipais, não poderemos ver nelas uma forma de regulamentação do “mester”/“ofício” de marear ou pescar? Não são elas, na verdade, uma espécie de corporação de ofício, numa arte em que estas são, por norma, inexistentes? Conscientes da interdependência das suas tarefas, as gentes do mar ganharam o hábito de deliberar sobre o que convinha fazer. Cedo, essas comunidades, identificadas por uma confraria, revelam um espírito muito vivo de interdependência em todos os aspectos: moral, religioso, e por vezes, disciplinar. 48
JOURDIN, 1995:177‐181 MARQUES, 1989: 42 50 MARQUES, 1981: 169 49
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Tendo recorrido à documentação da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes para esclarecer matérias de carácter laboral, podíamos ser levados a pensar nesta instituição como uma forma de organização corporativa da comunidade marítima caminhense no séc. XVI. Porém, da análise feita aos seus estatutos e ordenações depreendem‐se mais prescrições de carácter espiritual e assistencial, do que propriamente laboral. Não negamos que esta encerre em si uma forma de hierarquia e de regulamentação social; porém, estas recaem sobre os mareantes enquanto confrades, e não enquanto agentes profissionais51. Procurando nessa documentação indícios sobre as formas de organização e a hierarquia interna do trabalho dos homens do mar, definidas em contextos essencialmente laborais, obtivemos alguns indicadores significativos. É possível aferir: ‐ a reunião dos homens do mar em companhas dirigidas por um mestre52; ‐ a existência de restrições à mobilidade dos companheiros pelas diferentes companhas53; ‐ o modelo organizativo parece ser comum na pesca no Brasil54; ‐ a existência de uma forte preocupação com a estipulação de deveres inerentes aos cargos de maior responsabilidade, como os de mestre e regedor55.
51 É também de considerar o nosso total desconhecimento da dimensão desta Confraria, e do peso da sua representatividade no totalidade dos homens do mar. 52 “... a todos os mestres das pinaças e a suas companhas” (1549). A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9. 53 “... se for cazo que algum companheiro contradisser ao mestre ou a campanha a não queres deyxar suas redes aos lanços ou aquella que se tras todo o anno nenhum mestre, nem companha nem outros nenhuns mestres o levara comsiguo sob penna” (1549). A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes , fl. 9. 54 “... em cada companhia que no brasil possão dar o carguo a hum homem o que lhe pareser de mais conviencia para que da sua companhia cada escuro que fizerem conta tirem sua esmola pera a dita comfraria” (1630). A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 16v. 55 “.... sempre o mestre da tal pinaça seja obrigado a dar conta do pescado que a dita rede pescar” (1549).; e “... assinaram regedores dos marinheiros Bernardo Annes e os mais” (1630). A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 8v e fl. 16v.
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Confessamos as nossas expectativas frustradas em relação à apreensão do quotidiano desta comunidade marítima, aspectos bem mais esclarecidos pela documentação de confrarias congéneres da Galiza56. Aqui, a origem e o desenvolvimento das organizações confraternais dos homens do mar resultou da necessidade de responder às novas exigência de um sector piscícola em rápida expansão. Eram necessárias frotas bem apetrechadas e artes de pesca mais eficazes; era necessário criar apoio legal e impulsionar o trato mercantil, para que se defendessem colectivamente e dessem saída às suas capturas. Nas regiões onde os pescadores careciam destes recursos, tornaram‐se dependentes de intermediários para os quais trabalhavam e que garantiam o investimento e a venda do peixe. Noutras, como é o caso da Galiza, os pescadores tinham já um marco profissional forte ‐ a confraria ‐ que assume estas funções, garantindo a autogestão dos recursos57. Nada sabemos sobre contextos semelhantes em Portugal. Ainda relativamente aos homens que instituíram esta Confraria em Caminha, seria de muito interesse termos a noção do seu número e perfil socioeconómico. O único indicador que, para já, encontramos, foi para o ano de 1670, em que num registo se escreveu: “Irmandade que oye passa de dusentos e tantos irmans”58. Trata‐se de uma informação dada pelo Frei Gonçalo de Morais, juiz conservador da Confraria. Este dado, além de ser para a segunda metade do século XVII, terá de ser cruzado com outros números de população para o mesmo período, para lhe podermos dar algum valor. Porém, é impressionante a diferença que encontramos quando o cruzamos com a realidade envolvente, ainda que para um período anterior: em 1562 a Confraria
56
A costa galega era salpicada por confrarias que assumiram verdadeiras funções corporativas e de organização do trabalho dos homens do mar, como demonstra ERKOREKA GERVASIO, 2003: 43‐71 57 FERREIRA PRIEGUE, 1998: 65 58 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 24 a 24v.
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de Viana contava com 5060 irmãos59 e Pontevedra tinha 2000 membros em 155060.
5.4. Formas de espiritualidade Do ponto de vista devocional, a gente do mar, em particular as mulheres, que vêem os seus homens partir à aventura, recorre particularmente a Jesus, como salvador, e a Maria, mãe de Jesus e Nossa Senhora. Olhando para Cristo, vêm‐no como Senhor Bom Jesus, a acolher a súplica angustiada e preocupada de mareantes e seus familiares61. Como que obedecendo a este contexto, os mareantes de Caminha instituem uma santa confraria e irmandade da invocação do santíssimo nome de Jesus “... salvador e guiador de todas suas necessidades e preosperidades pera que nesta vida presente os guie e livre em todos os perigos”62. Dedicam quatro das suas ordenações à instituição de missas e à regulamentação da participação dos seus confrades nas festas religiosas da comunidade: ‐ No dia do Corpo de Deus, quarta‐feira de Endoenças e dia de Páscoa, sairiam quatro dos oficiais, ou quatro dos principais mareantes, com as suas varas pintadas nas mãos de vermelho e regeriam os confrades, para que se cumprisse o silêncio63. ‐ Instituem três missas semanais: missas rezadas às segundas e terças‐ feiras e missa cantada às sextas‐feiras. As missas nas festas de Nosso Senhor e Nossa Senhora seriam também cantadas.
59
No século XVI esta Confraria abriu as suas portas a toda a população, pelo que este número não representa apenas o número de mareantes. MOREIRA, 1995: 99 60 Segundo a Descripcíon del Reyno de Galicia de Molina. FILGUEIRA VALVERDE, 1946: 1‐2 61 DIAS, 2002: 280 62 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9v. 63 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 5v.
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‐ Nas missas cantadas utilizar‐se‐ia a cera da Confraria64. Para assegurar todas estas celebrações elegiam, anualmente, cinco capelães. E como complemento à prática intimista do grupo, elegiam um vigário por um ou dois anos, ou perpetuamente, para que “... pregue, confesse e aconselhe os confrades”65. Em Viana do Castelo, a Confraria do Bom Jesus, em 1618, celebrava 6 missas semanais de obrigação, incluindo as cantadas. Ao longo do séc. XVI participava nas procissões da Santa Isabel, Anjo e São João66, assim como na do Corpo de Deus, procissão que no Porto contava igualmente com a presença dos confrades de S. Pedro de Miragaia67. A vida religiosa acrescentava assim às solidariedades profanas a consagração de uma espécie de mutualismo espiritual68.
5.5 Formas de assistência Na época moderna, a organização em confrarias e irmandades dos homens que viviam de seus ofícios, continuará a ser a única forma de assegurarem, a si próprios e à sua família, o apoio material e espiritual, em situações de pobreza, velhice, invalidez e morte. Se o aplicarmos a um grupo de risco, como é o dos mareantes, concluiremos rapidamente sobre a importância da assistência fraternal, que será um dos vectores mais importantes nas confrarias que surgem nas várias vilas marítimas. Este tipo de organizações tinha, estatutariamente, uma finalidade caritativa em benefício das viúvas, dos órfãos e dos marinheiros idosos e doentes, e a procura dos corpos dos afogados a fim de lhes dar uma sepultura em terra69. 64
A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6v. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6v. 66 MOREIRA, 1995 67 BARROS, 1991: 53 68 JOURDIN, 1995: 180 69 JOURDIN, 1995: 197‐199 65
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A vila de Caminha não é uma excepção, e falar de cooperação entre os marítimos desta comunidade, é falar da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, instituída com o objectivo de lhes proporcionar dois níveis de assistência: à alma e ao corpo. Ainda assim, nas suas ordenações torna‐se bem evidente que o universos dos auxiliados ultrapassava a comunidade de mareantes. Em 1549 estipula‐se o seguinte: “Todos asi junctos em comum e cada hum em especial para aqueles que agora são e ao diante ão de ser ad perpetuam rey memoriam movidos de piedade e com entranhas de misericordia e zello de nossa fee catolica e salvação das almas e pera os pobres não perecerem hordenarão e instituirão huma sancta comfraria e irmandade a invocação da qual he o sanctissimo nome de jezus ao coal tomão por salvador e guiador de todas suas necessidades e preosperidades pera que nesta vida presente os guie e livre em todos os perigos”70. A Confraria era instituída para “... bem e proveyto de toda a republica, e das almas dos defuntos que prigarem no mar, como dos comfrades, e outros defuntos, e pobres da tera; como os bens da dita Comfraria são para gastos, e despender alem do sobredito, para remediar, e asimentar pessoas pobres e miseraveis necessitadas do lugar e terra donde esta a dita Comfraria e de outras quais quer partes, que por o mar e por terra se ajuntarem por ser emporto donde tanta gente demutas partes acorrem”71. A Confraria assume assim funções caritativas que abarcam toda a população marítima, incluindo vizinhos e forasteiros. Paralelamente, assegura um auxílio específico à sua comunidade confraternal estipulando que “... qualquer comfrade desta sancta comfraria que acertar de morrer fora da terra (...) assi os comfrades absentes como presentes vibos e defuntos queremos que poçam gozar e serem participantes dos beneficios e bens espirituaes e
70 71
A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9v. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 11v.
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temporaes desta sancta comfraria”72. Para tal afirmam‐se inspirados “... com aquella de S. Paullo que diz Irmans ajudaibos huns aos outros e assim comprireis a ley de Christo”, estabelecendo que “... se for cauza que algum Comfrade seja tam anciozo; e velho em dias; que nada possa ir ao mar, que os seus regedores que ao tempo forem desta santa Comfraria do nome de Jezu repartam por somana a cada huma rede do que assi for tam velho que não possa hir ao mar, para que assim se mantenha e não pareça com necissidade”73. Se na primeira ordenação é assegurada a assistência ao mareante em épocas de ausência, na segunda assegura‐se uma fonte de rendimento aos pescadores de idade demasiado avançada para poderem viver do seu ofício. Logo na terceira ordenação estabelece‐se a eleição anual de dois mareantes, “os mais caritativos e virtuosos”, para que, quando adoecesse algum confrade ou pobre, fossem “ver e visitar e prover os ditos emfermos”. Estes dois mareantes estavam também encarregues de se informar dos pobres envergonhados e dos presos, para que todos os domingos fossem distribuídas as esmolas da Confraria74. O pescador pertence a uma paróquia à qual está ligado, aí nasceu, aí foi baptizado e aí deseja ser enterrado75. Esta preocupação com a morte, e com a dignidade do funeral ocupa cinco das ordenações da Confraria, demonstrando a importância desta questão para o homem do mar. Assim, “... coando acontesser ir buscar algum corpo de algum defuncto assi dos que se afogar no mar que bem ter a costa como dos mais defunctos que na villa falesserem” sairiam quatro dos oficiais, ou quatro dos principais mareantes, com as suas varas pintadas de vermelho e regeriam os confrades, para que se cumprisse o silêncio76.
72
A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 10v. 74 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 5v. 75 JOURDIN, 1995: 177 76 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 5v. 73
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Cada ordenação que se segue descreve como será feito o ofício de enterramento, de acordo com o estatuto do defunto, e estabelecendo uma verdadeira hierarquia da morte: ‐ se fosse confrade, filho de confrade ou um criado, deveriam informar o pároco da vila para que se mandasse dobrar os sinos e se juntassem os sacerdotes para se proceder ao funeral77; ‐ se fosse cabeceira dos confrades, homem ou mulher, saía a cruz da confraria, e os confrades levariam cada um o seu círio na mão, procedendo‐se ao enterramento, com seis missas à custa da confraria (uma cantada e cinco rezadas); ‐ se fosse filho de confrade ou criado, sairiam os confrades, levando doze círios de cera, e mandando dizer uma missa à custa da Confraria78; ‐ no ofício do enterramento de um confrade, sendo cabeceira, tirar‐se‐ iam somente duas tochas e doze círios. Sendo filho ou criado de confrade tirar‐ se‐iam quatro círios da cera da Confraria que ardiam enquanto o corpo não fosse enterrado. A cruz apenas sairia com os cabeceiros, excepto se o filho do confrade fosse homem “que traga reçam ou ganhe marinhagem”, se tivesse mais de quinze anos, ou se fosse filha esposada79. Estava também prevista a situação dos que faleciam fora da terra, pelo que assim que chegasse a notícia, seis governadores deveriam mandar fazer o ofício e dizer as missas. A sua vontade era a de que todos os confrades, ausentes ou presentes, gozassem dos bens espirituais e temporais da Confraria, e tivessem exéquias na terra de sua naturalidade ou residência, independentemente do local do óbito80. Como já referimos, a caridade e o auxílio ao próximo, bem como a responsabilidade de enterramento era comum nas confrarias. A Confraria de 77
A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 5v. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6. 79 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6. 80 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6 a 6v. 78
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Viana tinha, também, a missão de acolher pobres e peregrinos, dando‐lhes guarida e funeral, bem como a organização do funeral e respectivos sufrágios de todos os marítimos de Viana, onde quer que acontecessem, e dos estranhos que falecessem no concelho, nomeadamente os náufragos. Regista‐se mesmo que “tem privilégio para enterrar os mortos como as misericórdias do reino e hem especial todos os mareantes”81. Da mesma forma, S. Pedro de Miragaia e a do Corpo Santo, de Pontevedra, ocupavam‐se da ajuda mútua em alturas de necessidade, enterramento dos mortos, e do zelo pela salvação das almas82. O instinto de solidariedade das organizações confraternais também assumia formas de sociabilidade. Na segunda oitava do Natal, dia de S. João, juntavam‐se os oficiais novos e velhos com todos os mais confrades, “... para fazer uma consoada caritativamente”83. Da mesma forma, quando se juntassem os oficiais para fazer contas, para fazer cera, ou “outro algum ajuntamento onesto” poderiam consoar e beber uns com os outros à custa da Confraria. Também em S. Pedro de Miragaia, os confrades tinham por hábito realizar refeições em comum, nomeadamente um banquete anual que era partilhado com toda a comunidade84. Esta partilha do banquete anual com os pobres, apesar de não ser referida nas ordenações dos mareantes de Caminha, é uma constante nas práticas confraternais85. Apesar da pouca abundância das fontes, os indicadores reunidos permitem‐nos, de uma forma geral, categorizar a comunidade de Caminha como marítima. Do averiguado sobre comportamentos sociais, mobilidade geográfica, e religiosidade, ela apresenta as mesmas características identificadas noutros espaços portuários congéneres.
81
MOREIRA, 1995: 101 BARROS, 1991: 74 e FILGUEIRA VALVERDE, 1946: 33 83 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 7v. 84 BARROS, 1991: 53 85 TAVARES, 1987: 61 82
141
Em Caminha, os homens do mar, nomeadamente mareantes e marinheiros, assumem comportamentos idênticos aos dos grupos de elite, fazendo‐se representar em espaços privilegiados como a Misericórdia, nos quais exercem a sua influência, em função da sua capacidade financeira. Exercendo atracção sobre a comunidade e integrando diferentes grupos socioprofissionais, a Misericórdia acaba por espelhar as vicissitudes da vila, os seus elementos, e as suas hierarquias. Na verdade, a presença do pescador pode significar duas realidades distintas: a força do grupo é suficiente para se fazer reconhecer pelas elites, ou o número e o poder económico destas elites é reduzido ao ponto de fazer baixar o grau de exigência na admissão à irmandade. Mesmo admitindo uma comunidade com um forte sector piscícola, não podemos negar a força do grupo de mercadores que demonstra uma enorme visibilidade e influência no governo da vila. Com efeito, a sua grande mobilidade acaba por ser causa e consequência do estabelecimento de ligações com outros agentes e portos, sejam estas meramente mercantis, ou se concretizem alianças familiares. O seu dinamismo e o facto de não parecerem actuar isoladamente sustentam, uma vez mais, a importância da complementaridade portuária, verificada no noroeste português em quinhentos, na qual podemos afirmar que Caminha se integrou plenamente. É de referir a presença constante da questão da identidade dos homens do mar, que se encontra em todos os aspectos abordados, e que mesmo assim permanece em aberto. É nossa opinião que as permeabilidades, que se podem aferir nas comunidades marítimas, podem ser a causa, ou até mesmo consequência, da heterogeneidade ocupacional e das dificuldades em estabelecer elementos de identificação dentro do próprio grupo. Ou seja, a mobilidade que estes homens apresentam entre ocupações não lhes permite identificarem‐se em sub‐grupos estanques. É certo que tradicionalmente os pescadores se assumem como um grupo mais estabilizado e identificável. Não
142
esqueçamos, porém, que muitas vezes constituem a base de recrutamento de mareantes e marinheiros, que, por sua vez, apresentarão outro tipo de perfis e comportamentos sociais. Na verdade, em Caminha, é a heterogeneidade e a ambiguidade ocupacional que se torna o mais relevante. Com efeito, a própria Confraria de Mareantes, nem se assume como espaço identitário de um grupo específico (pescadores,
mareantes,
marinheiros,
navegadores?),
nem
funciona
prioritariamente como uma corporação de ofícios, funcionando muito mais como espaço assistencial e de religiosidade. Ao compararmos com outras confrarias, sejam as de pescadores na Galiza (onde se assumiram como autênticas instituições de gestão e regulamentação da pesca), ou de mareantes, como a de Viana (que representou claramente marinheiros e mareantes junto do poder local e central), a ambiguidade da de Caminha parece indiciar alguma debilidade por parte dos marítimos. Com efeito, pouco podemos concluir acerca da sua representatividade, quer dentro da vila, face a outros grupos socioprofissionais, quer no seu exterior, face a instituições de poder. Ainda assim, em questões identitárias, a vivência de uma religiosidade e formas de assistência comuns, parecem ser as menos controversas. A preocupação em acudir o próximo, os afogados no mar, ou os pescadores mais velhos, ou até mesmo o simbolismo e o cuidado na preparação da cerimónia fúnebre, parecem constituir elementos de união do grupo.
143
6. Conclusão “The smaller the merchant or port, the less we know of its history or importance, and that has remained true more or less to the present day”1. Desde o início do projecto que trabalhamos com a consciência das dificuldades que lhe estavam inerentes, em grande medida resultantes da ausência de fontes documentais. No entanto, as virtualidades da investigação passam também pela reinvenção de leituras e de métodos de análise. A mais‐ valia do trabalho em História consiste mesmo na reinvenção de percursos, na reformulação de questões, aproveitando, de inúmeras maneiras uma fonte que nunca se esgota. Os percursos alternativos que tivemos de percorrer levaram‐nos a contactar com documentação que de outra forma nunca teríamos analisado, e que nos surpreendeu pelas potencialidades reveladas. A primeira, e principal conclusão que retiramos com este trabalho são as mais‐ valias que adquirimos, em termos metodológicos e de conhecimento histórico, fruto das dificuldades ultrapassadas. Recuperando os objectivos iniciais que guiaram a nossa pesquisa comecemos por concluir acerca do conhecimento adquirido sobre a comunidade marítima de Caminha. Acima de qualquer conclusão explicativa está a evidência de que este estudo constitui apenas um ponto de partida. O trabalho que desenvolvemos em termos de identidade do grupo dos homens do mar e das suas questões laborais e sociais, permitiu‐nos contactar com estudos
homólogos,
com
outras
perspectivas
(nomeadamente
antropológicas), com novos vocabulários e conceitos. Porém, tentar seguir o percurso dos que não deixam escritos é ler nas entrelinhas; é mais um trabalho de suposição, do que de constatação. No fundo, mesmo após uma análise exaustiva da documentação da Confraria continuamos sem saber 1
JACKSON, 2001: 3
144
quem são os “mareantes” do Bom Jesus de Caminha. Pouco mais sabemos de que se trata de um grupo que é híbrido, heterogéneo, e cuja acção se caracteriza, muitas vezes, pelo anonimato. Assim, temos a clara consciência da ausência de respostas que consideramos essenciais, como, a quantificação da presença de marítimos na comunidade; a identificação dos pesos diferenciais de sub‐grupos internos: pescadores/marinheiros/navegadores; ou de que forma as suas actividades se complementam. Pensamos, porém, ter contribuído largamente para a compreensão da complexidade que estas questões apresentam e, de uma forma mais específica e desenvolvida, ter contribuído para o estudo da actividade piscatória no rio Minho do século XVI. Da mesma forma, as descrições relativas às vivências confraternais, religiosas, e de assistência, dos mareantes, apresentam uma enorme relevância para a compreensão do tema das sociabilidades em comunidades e em sociedades marítimas. Sobre a vida local, as questões continuam ainda em aberto. Importaria aferir acerca da representatividade da confraria na vida concelhia, de que forma se relaciona com o poder local e que dimensão tem no município. Ainda relativamente aos poderes, seria muito pertinente concluir sobre as relações com o poder central. O estudo das confrarias congéneres da Galiza revelou‐ nos a riqueza do diálogo entre os mareantes e a Coroa. Desde cedo, Pontevedra aufere de variados privilégios que recaem sobre os vários ofícios marítimos: a pesca, a construção naval e o comércio, que no nosso estudo não pudemos conferir. Quanto à contextualização de Caminha no sistema portuário do noroeste, e ao papel desempenhado pelos seus agentes nas dinâmicas comerciais marítimas, pensamos que a ausência de fontes essenciais para este estudo não nos impediu de alcançar alguns resultados bastante satisfatórios. Na verdade, o comportamento dos seus mercadores integra‐se perfeitamente
145
nos modelos das realidades históricas que têm sido identificadas em estudos homólogos: “… o tráfego a que assiste cada localidade litorânea não é um retrato fiel da sua actividade marítima. Migrações internas, a itinerância dos homens de cabedal, redes mercantis tecem relações complementares entre cada localidade marítima.”2 A mais importante conclusão a retirar é a de que a vitalidade mercantil de um centro marítimo não se pode medir exclusivamente pela sua actividade portuária, mas tem necessariamente que ser complementada pela acção dos seus agentes, muitas vezes estranha à lógica do mercado local. Note‐se o importante papel redistribuidor representado pelos mercadores de Caminha. Estes actuaram fora do raio de acção do seu próprio porto, escapando às limitações tradicionalmente atribuídas a um pequeno porto, e testemunhando que “ports at heart were not places but mercantile people in appropriate places, providing maritime services”3. Lembremos as conclusões retiradas por Amélia Polónia relativamente a Vila do Conde: “Importa perceber que este universo de mercadores não actua isoladamente, mas recebe impulsos e acciona negócios em que actuam por vezes em parceria com mercadores residentes em áreas exteriores à própria vila. Esta tendência é confirmada pela presença, nesse porto, de agentes comerciais provindos de uma vasta área de Entre‐Douro‐e‐Minho, como se pode atestar pelas informações coligidas em registos notariais. Aí encontramos frequentes referências a estes indivíduos como fretadores de embarcações, credores, parceiros em contratos comerciais, ou como simples testemunhas de actos públicos.”4 Em termos de hierarquias portuárias, Caminha parece preencher os requisitos de um ”unimportant port”, na acepção que lhe atribui Gordon Jackson: “What were unimportant ports? Those with a poor or backward 2
COSTA, 2000: 82‐84 JACKSON, 2001: 5‐6 4 POLÓNIA, 2007a: vol. II, 132 3
146
hinterland and few external connections; with a small or no share of national imports and exports and, contrary to expectations, a small share of coastal trade, witch was also dominated by major ports; with exceptions they owned and built few ships; they had inadequate facilities for larger ships, few warehouses, no comprehensive mercantile community or direct foreign linkages, few industries and small populations. In sum they had no opportunity for self generated trade”5. Ainda assim, Gordon Jackson defende que era a estreita relação de cooperação que estes pequenos portos estabeleciam com os de média e grande dimensão, a par da sua articulação com hinterlands mais ou menos vastos, matéria de que não tratámos, que os coloca como peças fundamentais na articulação das redes portuárias. Os mercadores, independentemente da dimensão do seu porto de acção, colaboraram entre si, fortificando redes de negócio, que actuam, posteriormente e em articulação, face ao exterior. “As associações mercantis e a mobilidade geográfica dos agentes retiram, desta forma, operacionalidade a uma abordagem centrada isoladamente em cada uma das localidades portuárias”6. É nesta perspectiva que entendemos que deverá ser aferida a contribuição deste trabalho, que se apresenta como mais um contributo para o delinear de um puzzle mais vasto, o do Noroeste português, em articulação com universos que incluem circuitos locais, regionais e, numa expressão porventura menor, intercontinentais.
Este foi o contributo possível, que
cremos ser coerente com o enfoque de um programa académico proposto por um curso de Mestrado em Estudos Locais e Regionais, em que esta dissertação se insere.
5 6
JACKSON, 2001: 5‐6 COSTA, 2000: 11‐12, 88
147
7. Fontes e Bibliografia Fontes Manuscritas Arquivo da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes da Vila de Caminha Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes Arquivo Histórico da Misericórdia de Caminha (incorporado no Arquivo Distrital de Viana do Castelo) Cota 7.35.1.1 ‐ Livro de receita e despesa, 1551‐1561 Cota 7.35.1.2 ‐ Livro de receita e despesa, 1565‐1570 Cota 7.35.1.3 ‐ Livro de receita e despesa, 1570‐1573 Cota 7.35.1.5 ‐ Livro de receita e despesa, 1582‐1594 Cota 7.36.2.19 ‐ Notícia do princípio que teve a irmandade desta Santa Misericórdia com algumas cousas mais notáveis que nela sucederam, 1734 Cota cx. 23 ‐Maços de testamentos, 1557‐1749 Cota cx. 15 ‐ Maços de escrituras de prazos, 1532‐1912 Arquivo Distrital de Braga Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. Livro dos Milagres do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. 1725. Arquivo Histórico Municipal do Porto Reservados, nº 435. Regimento Geral da Alfândega do Porto, 1521 Arquivo Distrital do Porto Registo de Contos. Arrendamento das Alfândegas do Entre‐Douro‐e‐Minho, Aveiro e Buarcos CEDOPORMAR – Núcleo Informacional “Vila do Conde Quinhentista” Notariais Vila do Conde 1º cartório, 1ª série, livro 9, fl. 46‐48 148
1º cartório, 1ª série, livro 7, fl. 26‐27 1º cartório, 1ª série, livro 8, fl. 58v‐60 1º cartório, 1ª série, livro 13, fl. 155v‐156 1º cartório, 3ª série, livro 1, fl. 79v‐80v 1º cartório, 1ª série, livro 20, fl. 30‐31v 1º cartório, 1ª série, livro 9, fl. 196v‐198 Archivo Diputación Provincial de Burgos Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101 Biblioteca Pública Municipal do Porto Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha. Torre do Tombo Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios Livro 3, fl. 175‐175v Livro 7, fl. 80, 278 Livro 14, fl. 472 Livro 19, fl. 158v e 215v Livro 39, fl. 244 Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Doações Livro 20, fl. 339 a 339v; 421 a 422v Chancelaria de Filipe I, Privilégios Livro 17, fl. 443v Corpo Cronológico, Parte 1ª, maço 65, doc. 30. Corpo Cronológico, Parte 2ª, maço 221, docs. 85 e 90. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 2930, 4520, 4514 e 5810 Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, Processo n.º 10073 Biblioteca Nacional Reservados, Ms. 8750. MORAIS, Pe. Gonçalo da Rocha de ‐ Grandezas da Villa de Caminha, 1722.
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161
8 ‐ Índice de figuras e quadros
Figuras Fig. 1 – Linha de evolução da temperatura
28
Fig. 2 ‐ Caminha
30
Fig. 3 – Zona do estuário do Rio Minho
31
Fig. 4 ‐ Foz do rio Minho
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Fig. 5 – Ínsua de Caminha
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Fig. 6 ‐ O assoreamento no estuário do rio Minho (Setembro de 1994)
34
Fig. 7 – Rio Minho (Duarte d’Armas)
36
Fig. 8 – Valença do Minho (Duarte d’Armas)
37
Fig. 9 – Monção (Duarte d’Armas)
37
Fig. 10 ‐ SECO, Fernando Álvaro – Portugallia et Algarbia (“Portugal Deitado”) (1561)
42
Fig. 11 ‐ OXEA, Frey Fernando ‐ Mapa do Reino da Galiza
43
Fig. 12 ‐ TEIXEIRA, Pedro ‐ Descripcíon de España y de las costas y puertos de sus reinos (1634)
44
Fig. 13 ‐ BLAEW, William Iansz ‐ De Zeecusten van Galissen Tusschem de Cabo Finisterre en Camino (1638)
45
Fig. 14 ‐ ABERVILLE, N. Sanson ‐ Mapa do Reyno de Portugal (1654)
46
Fig. 15 ‐ BRANDÃO, Gonçalo Luís da Silva – Planta da barra de Caminha e entrada do Rio Minho (1758)
51
Fig. 16 – Caminha (Duarte d’Armas)
53
Fig. 17 – Caminha: presença de mercadores e pescadores no séc. XVI. Projecção sobre o actual espaço urbano.
56
162
Fig. 18 ‐ Representação cartográfica da população do norte de Portugal, segundo o numeramento de 1527/32
61
Fig. 19 – Genealogia de Simão Dias
129
Quadros Quadro 1 ‐ População de alguns portos de Entre‐Douro‐e‐Minho em 1527/32
60
Quadro 2 – Actividade pesqueira – Enquadramento legal. Alguns exemplos
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Quadro 3 – Fiscalidade sobre a pesca em Caminha
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Quadro 4 – Recursos piscícolas
93
Quadro 5 ‐ Frota dos portos do Entre‐Douro‐e‐Minho e Aveiro em 1586
100
Quadro 6 ‐ Contratantes de apólices de seguros marítimos em Burgos, residentes em Caminha (Norte da Europa)
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Quadro 7 – Contratantes de apólices de seguros marítimos em Burgos, residentes em Caminha (Rota do Brasil)
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Quadro 8 – Ofícios dos irmãos da Misericórdia de Caminha, referidos no Registos dos Irmãos do Cento
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Quadro 9 – Homens do mar na Misericórdia de Caminha, referidos no Registos dos Irmãos do Cento
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