Caminha no século XVI: estudo sócio-económico

June 14, 2017 | Autor: Sara Pinto | Categoria: Maritime History
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Caminha no século XVI: estudo sócio‐económico   

 Dos que ganhão suas vidas sobre as agoas do mar       

Sara Maria Costa Pinto     

  Faculdade de Letras, Universidade do Porto  Dissertação desenvolvida no âmbito do Mestrado em Estudos Locais  e Regionais, sob a orientação da Prof. Doutora Amélia Polónia    Porto, Agosto de 2008 

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Resumo  O  estudo  dos  portos  de  pequena  e  média  dimensão  tem‐se  revelado  essencial  para  a  compreensão  das  dinâmicas  económicas  portuárias  do  Portugal  Moderno. A nossa dissertação de mestrado, centrada num caso de estudo, o porto  de  Caminha  no  século  XVI,  segue  este  quadro  teórico.  Localizada  na  fronteira  do  noroeste português, Caminha é um exemplo de uma comunidade marítima inserida  num  importante  complexo  portuário.  Rodeada  por  portos  de  maior  dimensão  –  Pontevedra,  Viana  do  Castelo,  Vila  do  Conde,  Porto,  Caminha  teve  um  papel  a  desempenhar nos jogos de complementaridades definidas no noroeste português.  A análise de diversas tipologias documentais permitiu o conhecimento de algumas  dinâmicas desta comunidade: o espaço físico (geomorfologia da barra e condições  de navegabilidade); o espaço social e sua projecção na topografia urbana; questões  de  identidade  do  grupo  dos  homens  do  mar;  actividades  económicas  desempenhadas  (pesca,  navegação  e  comércio  marítimo)  e  questões  de  sociabilidade. 

  Abstract  The study of small and medium‐sized ports is crucial for the understanding  of  the  seaport’s  economical  dynamics  in  the  Portuguese  Early  Modern  Age.  Our  master thesis, centred in a case study of one of the Portuguese seaports, Caminha,  in  the  16th  century,  follows  the  same  theoretical  guidelines.  Settled  on  the  Portuguese  northwest  border,  Caminha  is  an  example  of  a  small  port  surrounded  by several large ports – Pontevedra, Viana do Castelo, Vila do Conde, Porto – with  which establishes logistic and human connections, taking part in their trade routes.  Primary  sources  analysis  allowed  us  to  acknowledge  some  of  the  Caminha’s  features.  These  includes:  the  physical  environment  (harbour  geomorphology  and  navigational conditions); the social space and its projection on urban topography;  identity  issues  concerning  seamen;  main  economic  activities  (fishery,  navigation  and maritime trade) and sociability issues.  

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Ao Pedro.         Aos meus pais, ao Tiago e à                                                                              Nocas.                      Muitos vêem sobretudo o que muda, outros procuram surpreender o que, a  despeito disso, permanece.  Orlando Ribeiro      Apercebo‐me agora de que não fiz outra coisa senão escrever ficções.  Michel Foucault 

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Agradecimentos    No meu percurso de investigação nunca estive só. Bem pelo contrário, a  imagem  do  investigador  debruçado  sobre  uma  pilha  de  manuscritos,  sua  permanente companhia, foi substituída pelas muitas trocas de ideias, partilha  de  informações,  e,  principalmente  pelo  alargamento  do  meu  círculo  de  colegas  e  interlocutores.  Na  verdade,  seja  esta  a  mais‐valia  de  um  trabalho  feito em busca de fontes que a princípio pareciam não existir. A riqueza que  não obtive dos documentos fui buscá‐la às muitas deslocações que empreendi  e que me levaram a conhecer mais gente, mais sítios, mais apaixonados como  eu pelas gentes do mar e pela sua história.  Pelas  sugestões  de  leitura  e  até  mesmo  pela  facilidade  em  facultar  documentação, um agradecimento ao Prof. Doutor Hilario Casado Alonso e ao  Doutor  José  Manuel  Vazquez  Lijó,  como  mais  um  testemunho  das  boas  relações ibéricas.  Das minhas viagens fica um sentimento de gratidão para com o Arquivo  Distrital  de  Viana  do  Castelo,  especialmente  para  com  a  Dr.ª  Olinda  e  Dr.ª  Clotilde  pela  ajuda  incansável  na  busca  por  documentação.  Em  Caminha,  ao  Eng.º  Marco  Pereira,  do  Gabinete  de  Planeamento,  Projecto  e  Estudo  Urbanístico  pelo  interesse  demonstrado  pelo  trabalho  e  por  me  conceder  o  acesso  a  cartografia  do  centro  histórico.  Acredito  que  o  meu  trabalho  nunca  teria  o  mesmo  interesse  se  não  fosse  a  documentação  da  Confraria  do  Bom  Jesus  dos  Mareantes  tão  simpaticamente  e  prontamente  facultada  pelo  seu  presidente,  o  Sr.  Gavinho.  Verdadeiro  homem  do  mar,  é  com  muita  tristeza  minha que ele tenha partido sem conhecer este trabalho.   Quanto  ao  apoio  recebido  dentro  da  Faculdade  de  Letras  começo  por  agradecer a colaboração da MAPOTECA na elaboração de um mapa temático  inserido  na  dissertação.  A  minha  investigação  levou‐me  a  incorrer  por  disciplinas  alheias  à  minha  formação  académica  de  base,  mas  que  em  muito 

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enriqueceram  o  meu  trabalho  e  o  meu  saber.  Por  isto  mesmo,  um  muito  obrigada  ao  Prof.  Doutor  João  Garcia,  à  Prof.  Doutora  Nicole  Vareta,  à  Prof.  Doutora Assunção Araújo e ao Prof. Doutor Alberto Gomes.    Aos  meus  Professores,  a  quem  devo  todas  as  oportunidades  de  investigação,  toda  a  transmissão  do  saber  e  de  como  saber,  e  todo  o  encorajamento  e  amizade  demonstrados  ao  longo  dos  anos:  ao  Prof.  Doutor  Luís  Amaral  por  ter  iluminado  no  momento  certo  a  cabeça  confusa  de  uma  aluna do 2º ano, e pelos preciosos préstimos na leitura e tradução do latim; à  Professora  Helena  Osswald  por  ser  um  modelo  de  dedicação,  inteligência,  solidariedade e tolerância; à Prof. Doutora Inês Amorim por ter visto em mim  uma aprendiza de investigadora, pela forma como apostou em mim e porque  acreditou nas minhas capacidades e mas demonstrou. À Prof. Doutora Amélia  Polónia,  minha  orientadora  científica,  pela  confiança  que  sempre  depositou  em mim, pelo encorajamento em momentos menos bons, pela liberdade que  me  deu  para  trilhar  o  caminho  da  pesquisa,  e,  principalmente,  nunca  ter  duvidado da viabilidade do meu projecto.  À  Patrícia,  ao  Hugo  e  à  Ana,  colegas  de  aprendizagem  e  amigos  constantes.  A  partilha  dos  cansaços,  dos  desalentos,  mas  também  dos  sucessos, das boas surpresas, e das muitas conquistas tornaram‐vos parte da  minha  experiência  de  investigadora,  e  por  isso,  também  parte  do  meu  trabalho.  Aos  meus  pais  e  manos  por  acreditarem  de  forma  incansável  e  incondicional  nas  minhas  capacidades,  por  sempre  terem  apoiado  a  minha  escolha pela investigação, sentindo e fazendo me sentir orgulho no que faço.  Ao  meu  marido  Pedro,  meu  porto  de  abrigo,  de  onde  parto  para  concretizar os meus sonhos e projectos, e aonde aporto para recarregar forças  e orientar o meu caminho. 

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Abreviaturas    A.D.B. – Arquivo Distrital de Braga  B.N. – Biblioteca Nacional  B.P.M.P. ‐ Biblioteca Pública Municipal do Porto  T.T. ‐ Torre do Tombo  A.C.B.J.M.C.  ‐  Arquivo  da  Confraria  do  Bom  Jesus  dos  Mareantes  da  Vila  de  Caminha  A.H.M.P. – Arquivo Histórico Municipal do Porto  A.H.M.C. – Arquivo Histórico da Misericórdia de Caminha   A.D.P.B. ‐ Archivo Diputación Provincial de Burgos   

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Índice    1. Introdução 

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     1.1 Objecto e objectivos       1.2. Enquadramento espaciotemporal       1.3. Quadro teórico       1.4. Estado da arte       1.5. Percursos metodológicos       1.6. Estrutura da dissertação 

1  3  5  8  12  22 

  2. O Espaço 

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     2.1. Espaço natural            2.1.1. Evolução do nível do mar e da sedimentação na costa litoral            2.1.2. A navegabilidade do rio Minho e evolução da sua barra            2.1.3. A barra de Caminha nos testemunhos históricos       2.2. Espaço social 

25  27  30  35  52 

  3. Os Homens  

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     3.1. Quadro demográfico       3.2. A comunidade marítima 

59  62 

  4. As Actividades 

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     4.1. Pesca             4.1.1. Enquadramento legal             4.1.2. Enquadramento fiscal             4.1.3. Partilha de recursos num espaço fronteira            4.1.4. Espaços de acção            4.1.5. Regime de trabalho            4.1.6. Meios de produção: as “artes”            4.1.7. Produção: o peixe       4.2. Navegação e comércio marítimo  

72  72  75  78  80  83  88  92  96  vii

            4.2.1. Enquadramento tributário            4.2.2. Frota            4.2.3. Circuitos de navegação e comércio                 a) Peixe e Sal                 b) Têxteis                  c) Tabuado                 d) Redistribuição e transporte            4.2.4. Circuitos transatlânticos 

96  98  102  105  108  110  111  113 

  5. Dinâmicas sociais  

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     5.1. Elites e hierarquias sociais       5.2. Mobilidades geográficas e sociais       5.3. Formas de organização laboral       5.4. Formas de espiritualidade       5.5. Formas de assistência 

118  128  133  136  137 

  6. Conclusão 

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  7. Fontes e Bibliografia 

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  8. Índice de figuras e quadros 

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1. Introdução   

1.1 Objecto e objectivos  A  presente  dissertação  de  mestrado  tem  como  objecto  de  estudo  a  comunidade  marítima  de  Caminha  no  século  XVI,  designadamente  os  seus  aspectos sociais e económicos. Apresenta como principais objectivos:   ‐ Caracterizar socioprofissionalmente uma comunidade marítima;  ‐ Abordar questões identitárias dos homens do mar;  ‐ Identificar as dinâmicas mercantis de um porto quinhentista, e delimitar  o raio de acção dos seus agentes;  ‐ Contribuir para o estudo dos portos do noroeste português na época da  Expansão.  Não negamos a importância que tem o círculo de investigadores com que  temos  contacto,  e  que  de  forma  inconsciente  modela  e  orienta  o  nosso  olhar  para  determinados  temas.  Da  mesma  forma,  a  participação  em  trabalhos  vocacionados  para  os  estudos  marítimos  e  a  nossa  natural  inclinação  para  a  época da expansão marítima determinaram a nossa escolha. No entanto, o que  mais  nos  interessa  é  o  estudo  da  articulação  da  rede  de  portos  na  qual  a  expansão  assentou,  sobretudo  a  partir  do  séc.  XVI:  “A  estruturação  viária  do  noroeste português confirma essa confluência de rotas para portos que servem  e se articulam com vastos hinterlands interiores e rurais, pelo que o estudo de  espaços  portuários  se  torna  fundamental  para  a  compreensão  de  dinâmicas  económicas de mais vastas regiões”1.   Após  a  licenciatura,  foi‐nos  dada  a  oportunidade  de  colaborar  num  projecto  desenvolvido  no  âmbito  do  Instituto  de  História  Moderna  –  o 

                                                             1

 Projecto HISPORTOS POCTI/HAR/36417/99 ‐ HISPORTOS: Fundamentação científica. In www.hisportos.com. 

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HISPORTOS  2  – que se debruçou sobre a rede portuária do noroeste português,  numa  tentativa  conseguida  de  demonstrar  a  vitalidade  dos  portos  de  média  dimensão,  cuja  articulação  se  revelou  essencial  para  sustento  da  economia  marítima  moderna.  Ora,  se  os  principais  portos  do  noroeste  provaram  a  importância do seu papel no desenvolvimento desta economia, o que dizer dos  portos de menor dimensão? Em última análise, gostaríamos de poder contribuir  para o estudo do papel desempenhado por Caminha no processo da expansão  ultramarina. Porém, guia‐nos o respeito pela realidade histórica e não é nossa  intenção  deturpar  ou  forçar  a  documentação,  dando  a  esta  comunidade  uma  dimensão que ela poderá nunca ter tido.   Para a investigação desta temática têm‐se tornado essenciais os estudos  dos  portos  marítimos  portugueses  nos  séculos  XV  a  XVIII.  Porém,  não  é  nossa  intenção  decalcar  grelhas  de  análise  existentes,  aplicando‐as  agora  a  um  novo  espaço e/ou tempo. Apesar de não considerarmos completamente desprovido  de valor um trabalho neste sentido, seria bastante redutor da nossa parte não  atender  à  especificidade  de  Caminha.  É  a  consciência  da  sua  inserção  numa  realidade mais vasta, regional, e até mesmo internacional, que nos impede de  limitar o nosso projecto ao estudo do mero lugar. Ele mesmo se torna vazio de  significado quando apartado dessa mesma realidade.   As  contribuições  do  Mestrado  que  frequentamos  alertaram‐nos  para  a  necessidade  de  recorrer  aos  estudos  locais  para  a  compreensão  do  global.  Análises de fundos documentais locais constituem o caminho para concluirmos  sobre  as  realidades  nacionais.  Não  é  nossa  intenção  tornar  o  nosso  estudo  de  caso num trabalho isolado e solitário. Faz parte do nosso projecto a sua inserção  num  contexto  nacional  e  internacional,  usufruindo  do  contacto  com  outros  investigadores.  Acreditamos  que  a  investigação  histórica  se  faz  da  soma  de  muitos e variados contributos e nunca será resultado do trabalho de um homem                                                               2

 Projecto HISPORTOS POCTI/HAR/36417/99 ‐“História dos Portos do Noroeste Português na Época Moderna – séc.  XV‐XVIII” 

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só  (como  a  História  também  não  o  foi).  Desta  forma,  não  fazia  sentido  que  a  minha  escolha  fosse  individual,  mas  sim  um  complemento  à  investigação  já  realizada. É neste contexto que surge a minha opção pela comunidade marítima  de Caminha e pela dinâmica comercial do seu porto.    

1.2 Enquadramento espaciotemporal    A  participação  no  Projecto  HISPORTOS  e  o  contacto  com  as  fontes  documentais que nele se compulsaram foram fundamentais para a definição do  espaço  em  estudo.  Das  principais  conclusões  retiradas  transpareceu  uma  articulação  entre  os  diferentes  centros  marítimos,  que  revelou  determinadas  vocações,  funcionalidades  e,  até  mesmo,  complementaridades  portuárias.  Enquanto  que  grande  parte  destes  portos  tinha  sido  já  alvo  de  análise,  nomeadamente  Viana  do  Castelo3,  Vila  do  Conde4,  Porto5,  e  Aveiro6,  outros  portos de menor dimensão, como Caminha, Esposende, Póvoa de Varzim, Leça,  e Matosinhos, permaneciam por estudar. A vila de Caminha era‐nos familiar e a  monumentalidade  da  sua  igreja  matriz,  assim  como  a  sua  topografia  urbana,  não nos haviam passado despercebidas enquanto testemunho de uma vivência  histórica  anterior,  mais  concretamente,  de  uma  forte  vitalidade  quinhentista.  Esta noção foi confirmada pela cartografia reunida no âmbito do projecto, que  parecia confirmar uma grande potencialidade de movimento marítimo na foz do  rio Minho. Estava assim determinado o contexto espacial do nosso estudo: a vila  de Caminha, o espaço que corresponde à actual freguesia. Na prática, falamos  essencialmente  do  espaço  intra‐muros  e  zona  portuária,  palco  onde  se  movimentam os agentes que elegemos para análise.  

                                                             3

 MOREIRA, 1984     POLÓNIA, 2007a  5  BARROS, 2004a  6  AMORIM, 1997  4

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A opção cronológica está tão imbuída de um conhecimento da realidade  histórica como do gosto pessoal pelo momento quinhentista. A percepção que  tínhamos de Caminha era a de uma vila essencialmente piscatória, um pequeno  porto  de  cabotagem.  As  descrições  de  Lacerda  Lobo7  e  de  Adolfo  Loureiro8  esboçam  uma  imagem  de  um  centro  marítimo  de  pouco  fulgor  nos  finais  do  Antigo  Regime.  Para  podermos  aferir  acerca  da  sua  vitalidade  portuária  teríamos  de  recuar  no  tempo.  O  século  XVI  foi  identificado,  por  Fernand  Braudel9,  com  a  plenitude  do  desenvolvimento  das  economias‐mundo,  por  Michel  Mollat10  com  o  tempo  por  excelência  da  génese  de  uma  Europa  mercantil,  e  por  Immanuel  Wallerstein11  com  o  desenhar  de  um  sistema  mundial.  A  todas  estas  dinâmicas  que  tornam  o  século  XVI,  aos  nossos  olhos,  um  tempo  de  eleição,  juntamos  mais  uma  motivação:  a  de  nos  ajudar  a  conhecer Caminha.   Uma época de crescimento e vitalidade, tanto local como nacional, será  um  bom  pano  de  fundo  para  averiguarmos  acerca  do  posicionamento  de  Caminha,  e  da  sua  participação  num  novo  contexto.  Deliberadamente  não  foram  estabelecidas  barreiras  cronológicas,  tornando  o  enquadramento  temporal  o  mais  flexível  e  abrangente  possível,  até  porque  muitos  dos  fenómenos  que  nos  propomos  analisar  não  são  estanques.  Acresce  que  a  descrição das fontes e metodologias que estavam disponíveis para a realização  do  nosso  trabalho  demonstrará  a  necessidade  de  aproveitar  todos  os  indicadores  encontrados  para  um  resultado  final  o  mais  fiável  e  consistente  possível.                                                                   7

 LOUREIRO, 1904   LOBO, 1991a  9  BRAUDEL, 1979  10  JOURDIN, 1995  11  WALLERSTEIN, 1990 8

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1.3 Quadro teórico    A  historiografia  comprovou  o  importante  papel  que  os  portos  desempenharam  na  época  moderna  (séculos  XVI  a  XVIII),  quer  no  contexto  europeu, quer no americano, revelando‐se indispensáveis para a articulação de  espaços políticos e económicos a nível regional e supraregional. Por sua vez, o  estudo  desta  articulação  assenta  numa  teorização  da  existência  de  redes  e  de  sistema portuários, que inclui dois pressupostos: o da existência de hierarquias  portuárias e o das complementaridades inter‐portuárias12.   Frédéric  Mauro  desenvolveu  o  conceito  de  hierarquias  portuárias  analisando as relações entre mercados, produtos, e preços. As suas conclusões  sobre  as  relações  interportuárias,  não  contrariadas  por  Vitorino  Magalhães  Godinho,  têm  inspirado  todas  as  interpretações  globalizantes  da  história  luso‐ brasileira do séc. XVII. O período entre 1580 e 1620 foi favorável à reanimação  de diversos portos de tráfico, mercê da participação das respectivas burguesias  nas  rotas  atlânticas,  sobretudo  brasileiras.  Ao  longo  de  quarenta  anos,  o  Portugal atlântico reconstruía‐se na agitação de povoados como o Porto, Viana  e muitas outras pequenas localidades13. No entanto, esta perspectiva alicerça‐se  numa  leitura  que  tende  a  ser  macro‐analítica,  pela  vastidão  de  espaços  envolvidos. Este tipo de abordagem subvaloriza o estudo das dinâmicas internas  e  dos  perfis  específicos  de  cada  porto,  que  constituem,  afinal,  as  particulares  condições que definem o seu lugar e a sua participação nesse conjunto de redes  e nesses sistemas articulados14. A aplicação destes conceitos, como hierarquias,  sistemas, redes, ou complementaridades aos portos nacionais carece, porém, de  um  estudo  pormenorizado  das  realidades  individuais  de  cada  porto  aprioristicamente. Na verdade, quer este conhecimento individualizado, quer a                                                               12

 POLÓNIA, 2007c   COSTA, 2000: 14‐15  14  POLÓNIA, 2007c 13

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sua relação / função num sistema colectivo, são os dois vectores essenciais para  uma análise consistente.   “The study of a port was validated by examining the interplay of facts and  comparisons  between  ports  and  people;  their  role  within  two  extended  systems: the collection and distributions of good within their hinterland and the  economic  development  there  and  elsewhere  in  the  national  economy.”15  Mas  como  avaliar  o  papel  desempenhado  por  um  pequeno  porto  na  rede  que  o  envolve? “We should perhaps forget about their comparative status and study  them for what they did on their own terms and within the overall port system.  All ports are servants of a regional and national economy. Small ports are often ‐  if not usually ‐ trade‐specific, with a variety of niche operations. Ports are not to  be measured only in terms of throughput, proportion of national customs duties  or share of imports or exports of particular goods. Their significance lies on the  one hand in their role within an integrated system in witch their costal exports  are necessary for regional centres larger than their own; and on the other hand  by  the  importance  of  their  own  hinterlands  of  the  provision  of  necessary  imports from home or abroad and the disposal of foodstuffs, manufactures and  raw materials that could not be otherwise sold.”16  Este  processo  de  avaliação  e  aferição  do  papel  desempenhado  por  Caminha no sistema portuário do noroeste implica a utilização de determinados  conceitos,  específicos  desta  temática,  que  importam  esclarecer.  Guimerá  Ravina17  entende  que  uma  cidade  portuária  constitui  o  centro  de  um  aglomerado urbano, exercendo determinadas funções económicas não agrárias  e  que,  de  uma  forma  geral,  se  relaciona  com  outras  cidades  através  de  uma  rede urbana. Apresenta como principais características a monumentalidade dos  seus  edifícios,  a  presença  de  muralhas,  uma  grande  capacidade  de  autonomia                                                               15

 JACKSON, 2001: 4   JACKSON, 2001: 7 e 16  17  GUIMERÁ RAVINA, 2002 16

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administrativa, comportamentos económicos e populacionais específicos e uma  cultura  distinta  da  do  mundo  rural.  Por  sua  vez,  por  comunidade  marítima,  o  autor entende uma sociedade flexível, permeável, heterogénea, móvel e ligada  ao mar, dependente de agentes externos e que tem o porto como eixo da sua  actividade.  São  comunidades  que  representam  muito  bem  a  fronteira  entre  o  mar  e  a  terra,  com  uma  natureza  muito  distinta  dos  povos  do  interior.  Uma  perspectiva  mais  ampla  é  a  que  define  sociedade  litoral,  comunidades  cujas  vidas  estão  ligadas  ao  mar,  mas  que  não  estão  a  ele  restringidas,  sofrendo  influências provenientes do interior.  Face a este quadro de conceptualização, interessa‐nos partir de algumas  hipóteses  sobre  o  papel  que  Caminha  poderá  ter  assumido  no  complexo  portuário do noroeste:  1ª  ‐  O  porto  de  Caminha  participou  nas  principais  rotas  comerciais  do  Atlântico, através de um grupo de mercadores organizado.  2ª  ‐  O  porto  de  Caminha  funcionou  como  um  porto  de  dimensão  regional,  cuja  comunidade  marítima  participou  nas  rotas  comerciais  do  Atlântico, em sociedade com agentes de outros portos.   3ª  ‐  O  porto  de  Caminha  funcionou  como  um  porto  de  pequena  dimensão, vocacionado para o abastecimento regional e fronteiriço, com uma  população  que  se  dividia  entre  a  pesca,  a  navegação  e  o  pequeno  comércio  marítimo.  Certamente  que  a  resposta  a  uma  série  de  questões  que  se  podem  colocar  a  partir  deste  quadro  hipotético,  nos  permitirá  caracterizar  correctamente  Caminha,  reconhecendo  o  que  de  original  possui,  ou  o  que  de  comum tem com os outros portos.  Para  o  debate  destas  questões  importa  apontar  e  reter  algumas  especificidades do nosso objecto de estudo: Caminha.  

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1. Caminha situa‐se numa região de fronteira:    ‐ Que implicações a nível de povoamento e de actividades produtivas?  ‐  Terá  por  isso  sido  alvo  de  maior  legislação  e  vigilância  por  parte  do  poder central?  ‐  Uma  fronteira  constitui  um  limite  e  um  obstáculo  às  relações  de  comunidade  ou  poderá  funcionar  como  um  estímulo  aos  contactos  populacionais?  2. Caminha tem uma grande proximidade com a Galiza:  ‐  Estão  bem  documentadas  as  relações  galaico‐portuguesas,  mas  deveremos abordá‐las em termos de cooperação ou concorrência?  3. Em Caminha convergem dois recursos:   ‐ O fluvial (o rio Minho) e o marítimo (o Oceano)  ‐ Qual o peso destes dois recursos na comunidade caminhense: estamos  perante uma vila piscatória ou uma vila de marinheiros mercadores?  De  cada  uma  destas  características  estruturantes  decorrem  outras  questões  que  emergem  como  pertinentes,  ainda  que  não  nos  proponhamos  responder a todas elas, por impossibilidade e por opção.   

1.4 Estado da arte    A  percepção  que  sempre  tivemos  relativamente  à  história  marítima  portuguesa da centúria de quinhentos era a de que pouco mais havia a dizer. A  abundante  produção  científica  na  área  dos  descobrimentos  e  da  expansão  ultramarina  parecia  ter  esvaziado  o  tema  e  abarcado todas  as  perspectivas  de  análise. Ainda assim, e dado o nosso gosto por este período histórico, optámos  pelo estudo de um espaço marítimo no século XVI. Munidos de um abundante  levantamento  bibliográfico,  iniciamos  as  nossas  leituras  em  busca  de  modelos  8

de  análise  e  de  quadros  de  contextualização.  Rapidamente,  porém,  nos  apercebemos  que  neste  âmbito  se  tem  privilegiado,  mesmo  em  abordagens  mais recentes, o estudo das técnicas, dos saberes, das navegações, do corso e  da  pirataria,  das  batalhas  navais  e  das  dinâmicas  económicas,  em  particular  comerciais.  Ainda  que  nos  últimos  anos  a  investigação  académica  tenha  incorporado  novos  e  notáveis  contributos,  nomeadamente  no  que  se  refere  a  actividades  como  as  da  construção  naval,  do  transporte  atlântico  ou  as  dinâmicas marítimas de algumas vilas e cidades portuárias18, não avultam ainda  os  estudos  que  partam  de  uma  abordagem  integrada,  ora  das  comunidades  marítimas  como  um  todo,  enquanto  sociedades  complexas,  ora  dos  estratos  directa e inexoravelmente ligados ao mar e à vida marítima19.  A  historiografia  das  décadas  de  40  a  60  do  século  XX  dedicou‐se  ao  estudo  de  indivíduos,  os  heróis  dos  descobrimentos,  determinadas  figuras  ou  acontecimentos  que  comprovavam  a  vocação  marítima  e  expansionista  dos  portugueses.  Segundo  Amélia  Polónia,  numa  revisão  sobre  a  historiografia  referente  a  comunidades  marítimas,  são  os  trabalhos  e  actas  de  Congresso  sobre figuras centrais ligados às navegações portuguesas, como Vasco da Gama,  Pedro  Álvares  Cabral,  Pedro  Nunes  ou,  de  forma  ainda  mais  dominante,  o  Infante D. Henrique, que não foram, de resto, em essência, gente do mar, que  dominam  uma  historiografia  centrada  na  heroicidade  e  no  protagonismo  individual.  Jaime  Cortesão  e  António  Sérgio,  ou  mais  recentemente,  Luís  de  Albuquerque,  Vitorino  Magalhães  Godinho  ou  Joaquim  Barradas  de  Carvalho  contrariam  esta  tendência,  mas  as  comunidades  marítimas,  enquanto  agentes  activos  da  dinâmica  do  expansionismo  português  permanecem  ausentes  das  suas  obras.  Partindo  de  uma  leitura  mais  estrutural  e  geo‐económica,  estes  historiadores,  em  particular  Vitorino  Magalhães  Godinho,  centram‐se  na  definição  de  ciclos  conjunturais,  de  curvas  de  tendência,  de  políticas                                                               18

  Vejam‐se  as  numerosas  publicações  da  CNCDP,  e  as  dissertações  académicas  de  COSTA,  1997  e  2000;  DOMINGUES, 2004; BARROS, 2004a; POLÓNIA, 2007a.  19  POLÓNIA, 2007b

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económicas, esquecendo os homens do mar e as comunidades marítimas como  agentes centrais dessa dinâmica. As excepções a este quadro surgem na década  de 70 a 80, e são constituídas pelo trabalho dos investigadores e curiosos locais  que,  apesar  de  nem  sempre  seguirem  metodologias  rigorosas,  acabaram  por  reunir  alguns  elementos  da  história  local  essenciais  para  o  estudo  destas  comunidades20. Uma pesquisa bibliográfica centrada na vila de Caminha revelou  a predominância deste tipo de estudos monográficos locais, nomeadamente em  artigos inseridos em rubricas de revistas de carácter regional e local. Falamos de  publicações  periódicas  como  Ecos  da  Matriz,  Caminiana,  Notícias  de  Caminha,  Arquivos  do  Alto  Minho  e  o  Caminhense.  No  grupo  de  investigadores  refira‐se  Lourenço Alves e, especialmente, Serra de Carvalho21.  Também  ao  nível  micro,  são  de  referir  os  estudos  sobre  associações  de  homens  de  mar  (confrarias  de  pescadores  e  de  mareantes)  paralelos  à  curiosidade  suscitada  pelas  suas  particulares  formas  de  religiosidade,  os  “ex‐ votos”.  Da  mesma  forma,  a  antropologia  se  debruçou  sobre  as  comunidades  piscatórias,  embora  incidam  prioritariamente  sobre  o  período  contemporâneo  ou o tempo recente. O final da década de 80 ainda vê surgir, do lado académico,  o  estudo  de  Joaquim  Romero  de  Magalhães  sobre  o  Algarve22,  e  do  lado  dos  historiadores locais, os estudos sobre Viana de Fernandes Moreira23.  Na  última  década  surgiram  uma  série  de  trabalhos  focados  em  estudos  de  caso  que,  de  uma  forma  geral,  abordaram,  quer  questões  puramente  portuárias,  quer  questões  relativas  às  suas  comunidades,  com  abordagens  socioprofissionais.  Apontamos,  para  a  região  do  noroeste  português,  o  estudo  de Amélia Polónia para Vila do Conde24, de Amândio Barros para o Porto25, e de 

                                                             20

 POLÓNIA, 2007c   ALVES, 1985 e CARVALHO, 1961‐1965   22  MAGALHÃES, 1988  23  MOREIRA, 1984  24  POLÓNIA, 2007a  25  BARROS, 2004a 21

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Inês  Amorim  para  Aveiro26.  Mais  recentemente,  assumindo  um  carácter  sistematizante,  o  Projecto  HISPORTOS  (POCTI/HAR/36417/2000)  teve  como  objecto  de  estudo  a  rede  portuária  do  noroeste  português,  na  qual  abordou  prioritariamente  temas  como  os  constrangimentos  geo‐morfológicos,  as  políticas  de  obras  públicas,  a  construção  logística  desses  espaços  portuários,  etc. Ainda assim, a mais recente produção académica, a comprovar, quer pelos  temas  de  dissertações,  quer  pelos  artigos  incluídos  em  revistas  da  especialidade,  como  a  “Oceanos”  ou  a  “Mare  Liberum”,  continua  a  privilegiar  temas relacionados com a logística da expansão (arquitectura naval, construção  naval,  análise  das  rotas  de  navegação:  rota  brasileira  do  açúcar  ou  rota  do  Cabo).  Continuam  a  ser  raros  os  estudos  sobre  sociedades  litorais  como  um  todo  ou  aqueles  que  privilegiam  a  análise  social  ou  socioprofissional  do  grupo  dos navegadores.27  Neste  quadro  historiográfico,  e  a  nível  internacional,  insere‐se  a  produção  francesa,  sem  tradição  nesta  área  de  estudos.  As  obras  de  Alain  Cabantous28, e Gérard Le Bouëdec29, constituem algumas excepções. Da mesma  forma,  na  historiografia  espanhola,  os  estudos  de  abordagem  social  são  residuais  num  panorama  de  vasta  produção  sobre  história  marítima.  São  de  referir,  no  entanto,  quer  os  estudos  sobre  centros  portuários  e  suas  relações  comerciais30,  quer  o  estudo  das  comunidades  de  pescadores,  em  particular  na  Galiza31. Relativamente à historiografia galega, esta é tradicionalmente marcada  pelos temas da ruralidade em detrimento das questões do comércio marítimo.  Embora o desenvolvimento das regiões costeiras no séc. XVI seja ponto assente,  também  aqui  continuam  a  faltar  monografias  que  dêem  uma  visão  global.  Considerando  o  enquadramento  geográfico  do  nosso  estudo,  encontrar                                                               26

 AMORIM, 1997   É de referir a dissertação de mestrado de Susana Pereira sobre a comunidade marítima de Vila do Conde no séc.  XVII. PEREIRA, 2006  28  CABANTOUS, 1991  29  LE BOUËDEC, 1997  30   ALONSO  ROMERO,  1984,  p.  185‐195.  ARMAS  CASTRO,  1992;  FERREIRA  PRIEGUE,  1988;  GUIRAL‐HADZIIOSSIF,  1986  31  FANGUEIRO, 1984; ROTA Y MONTER, 1996 27

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bibliografia  de  contextualização  tornou‐se  ainda  mais  complicado,  dado  que  a  Galiza  nortenha  tem  sido  alvo  preferencial  de  estudo,  em  relação  ao  sul  galego32.   A  especificidade  geográfica  de  Caminha  exigiu  também  uma  análise  do  panorama  bibliográfico  das  relações  galaico‐portuguesas.  A  historiografia  nacional apresenta alguns estudos sobre as relações ibéricas, contudo, estes são  feitos  essencialmente  às  duas  escalas  nacionais  –  Portugal  e  Castela,  não  se  debatendo  sobre  o  assunto  a  um  nível  mais  micro33.  Nos  poucos  estudos  que  realmente focam a região de fronteira do Alto‐Minho e as suas relações com a  Galiza, é privilegiada a perspectiva do poder central e a análise das chancelarias,  assim  como  das  relações  entre  mosteiros,  resultando  em  trabalhos  essencialmente  de  carácter  político‐religioso34.  No  entanto,  a  historiografia  galega  apresenta  um  caso  de  excepção  e  de  grande  contributo  para  esta  temática: a obra de Elisa Ferreira Priegue. Debruçando‐se essencialmente sobre  o comércio marítimo, a historiadora aborda as relações mercantis estabelecidas  entre  a  Galiza  e  Portugal,  a  dois  níveis  distintos:  o  da  cabotagem  e  abastecimento  feito  ao  longo  das  duas  costas,  e  um  nível  mais  micro,  o  do  comércio fronteiriço35.    

1.5 Percursos metodológicos    As  leituras  bibliográficas,  das  quais  tentamos  absorver  percursos  documentais  e  metodologias  de  trabalho,  permitiram‐nos  acumular  o  conhecimento  necessário  para  partirmos  para  a  exploração  de  fontes  documentais, que de outra forma, seriam estéreis. A esperança é sempre a de  que  encontremos  mananciais  de  documentos  que  satisfaçam  todas  as                                                               32

 SAAVEDRA VÁSQUEZ, 2008   Veja‐se apenas a título de exemplo: MARQUES, 1994; BRAGA, 1996  34  Veja‐se apenas a título de exemplo: MORENO, 1990; MARQUES, 2004; e ANDRADE, 1994  35  FERREIRA PRIEGUE, 1988 33

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perguntas  que  levantamos  inicialmente.  Na  orientação  recebida  fomos  alertados  para  a  importância  das  fontes  notariais  para  a  construção  de  um  esboço  das  transacções  comerciais  do  porto  em  estudo36,  nomeadamente  através  da  análise  de  contratos  comerciais,  cartas  de  fretamento,  constituição  de  sociedades  e  letras  de  câmbio.  Na  mesma  linha,  os  livros  de  registo  de  Alfândega poderiam elucidar‐nos sobre produtos transaccionados, quantidades,  locais  de  origem  e  de  destino.  A  documentação  municipal  (actas  de  vereação,  livros de receita e despesa, livros de registo geral) permitiria o traçado da vida  comunitária,  da  organização  social  e  espacial  da  vila,  assim  como  dos  movimentos das finanças locais. A documentação régia faria a ligação do local  ao central, elucidando sobre interferências e controlos, complementada com a  documentação senhorial (relativa à jurisdição do Marquês de Vila Real). Para o  estudo  das  comunidades,  da  sua  composição  e  organização,  os  registos  paroquiais poderiam potencialmente constituir uma boa resposta, dando‐nos a  conhecer redes e laços de solidariedade social e socioprofissional; assim como a  documentação  de  Confrarias  e  Misericórdias.  Por  fim,  a  imprescindível  compreensão  do  espaço  físico  em  estudo  seria  feita  através  de  fontes  de  carácter geográfico, cartográfico e geomorfológico.  Com  o  objectivo  de  averiguar  sobre  as  presenças  e  ausências  documentais,  o  nosso  primeiro  passo  foi  a  pesquisa  em  guias  arquivísticos  e  consultas on‐line, quando possível37. Obtivemos os seguintes resultados:  ‐ Registos notariais do concelho de Caminha Æ a partir de 1659  ‐ Registos paroquiais da paróquia de Caminha Æ a partir de 1612  ‐ Documentação municipal:   

‐ Actas de vereação Æ a partir de 1733 

 

‐ Livros de registo geral Æ a partir de 1652 

                                                             36

 BARROS, 2000   Guia Geral dos Fundos da Torre do Tombo, Lisboa, I.A.N./T.T., 1998, 4 vols.; Recenseamentos dos Arquivos Locais:  Câmaras Municipais e Misericórdias, Lisboa, I.A.N./T.T., 1995 – Arquivos vol. 3: Distrito de Viana do Castelo, 1996.;  www.adporto.org; http://ttonline.iantt.pt. 

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‐ Livros de acórdãos Æ inexistentes   

‐ Livros do cofre Æ inexistentes 

 

‐ Livros de sisas Æ inexistentes 

‐ Livros da alfândega Æ inexistentes   Tornou‐se  óbvia  a  ausência  dos  principais  fundos  documentais  considerados  necessários  para  responder à  nossa  questão  inicial.  A  viabilidade  do  projecto  estava  em  causa,  não  parecendo  ser  possível  obter  informação  sobre matérias tão essenciais como a movimentação portuária ou o retrato da  vida  local.  As  grelhas  de  análise  que  outros  haviam  utilizado  com  sucesso  deixaram de ser aplicáveis. Tornou‐se, então, necessário redobrar a atenção nas  leituras  contextuais,  procurando  reconhecer  eventuais  fundos  e  tipologias  documentais  que,  apesar  de  mais  indirectos,  nos  pudessem  auxiliar  no  nosso  estudo. Um novo olhar para a documentação que havíamos reunido foi também  essencial  para  percebermos  o  que  realmente  poderia  ser  proveitoso.  Em  primeiro  lugar,  quisemos  conhecer  os  fundos  documentais  locais,  as  suas  potencialidades e de que forma poderiam contribuir para a resposta às nossas  questões. As nossas tentativas passaram por uma visita à Capitania do Porto de  Caminha  (em  busca  de  documentação  do  porto  e  alfândega)  e  pelo  contacto  com  o  Pároco,  no  sentido  de  aceder  ao  arquivo  paroquial,  embora  sem  quaisquer resultados. Relativamente à documentação do Marquês de Vila Real,  a  nossa  visita  à  Torre  do  Tombo  foi  infrutífera,  assim  como  o  nosso  contacto  com o Arquivo Distrital de Vila Real.    Após  uma  busca,  igualmente  infrutífera,  no  arquivo  municipal,  arquivo  distrital  e  arquivo  do  Governo  Civil,  a  procura  insistente  da  documentação  da  Confraria  do  Bom  Jesus  dos  Mareantes  de  Caminha  levou‐nos  a  entrar  em  contacto  com  o  seu  actual  Presidente,  que  nos  confirmou  a  existência  de  documentação e nos autorizou o acesso à consulta. Apesar de não se encontrar 

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organizada, uma primeira exploração permitiu‐nos reconhecer a documentação  de maior pertinência para o nosso estudo:   ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes  ‐ Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes  A nossa atenção recaiu sobre o livro de acórdãos, que lemos na íntegra, e  o  qual  transcrevemos.  Consiste  num  livro  de  traslados  feito  pelo  escrivão  da  Confraria, António Gonçalves Ferraz, e data de 1650. O livro contém o traslado  de uma procuração a João Gonçalves, sapateiro, para que leve as ordenações e  estatutos da Confraria ao Bispado de Ourense para serem reconhecidos (1549),  o  traslado  das  Ordenações  da  Confraria  (1549),  o  traslado  da  petição  que  os  pescadores  fizeram  ao  Arcebispo  de  Braga  e  respectivo  despacho  (1621),  e  traslados  de  acórdãos  feitos  pelos  mareantes  ao  longo  do  século  XVII.  A  funcionalidade  do  livro  é  clara,  podendo  ler‐se,  num  registo  de  1650:  “O  qual  traslado  de  poder  e  procuraçam  bastante  bulla  de  Sua  Sanctidade,  estatutos  instituidos pellos  mordomos  oficiais  e regedores  antigos  da  Comfraria  do  Bom  jezu e comfirmação delles eu Afonço Roiz Veiga que ora sirvo de escrivão da dita  Comfraria  este  anno  presente  de  seis  centos  e  sincoenta  annos  fis  tresladar  e  traduzir de lingua galega em purtugueza bem fielmente neste caderno por mim  numerado e rubricado pera com mais clareza serem emtendidos dos mordomos  e  oficiais  e  regedores  que  agora  sam”38.  No  mesmo  sentido,  num  acórdão  de  1687,  regista‐se  que  “por  coanto  este  libro  sosmente  serve  pera  estatutos”39.  Porém,  foi  no  Livro  de  Estatutos  de  1650,  também  da  responsabilidade  do  escrivão  Afonso  Roiz  da  Veigua,  que  encontramos  os  estatutos  da  Confraria.  Muito  semelhante  ao  anterior,  este  livro  contém  também  o  traslado  das  ordenações e acórdãos dos mareantes. 

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 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 21 a 21v.   A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 26v. 

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Compreende‐se  a  importância  que  esta  fonte  assumiu  para  o  nosso  estudo.  Perante  a  falta  de  documentação  municipal,  que  ameaçava  a  consistência  do  nosso  projecto,  surgia  agora  uma  nova  via  para  procurar  responder às questões iniciais. Obviamente, esta não era a solução por si, longe  disso, mas cruzada com outras fontes, torna‐se num bom manancial de estudo.   Entre estas, uma de grande valor foi a riqueza do fundo documental da  Misericórdia  de  Caminha,  quer  no  seu  âmbito  cronológico,  quer  a  nível  de  tipologias documentais, das quais salientamos:  ‐ Livros de receita e despesa, 1551‐1594   ‐ Notícia do princípio que teve a irmandade desta Santa Misericórdia com  algumas cousas mais notáveis que nela sucederam, 1734   ‐ Maços de testamentos, 1557‐1749   ‐ Maços de escrituras de prazos, 1532‐1912  A nível de fundos documentais locais, a documentação da Confraria dos  Mareantes  e  a  da  Misericórdia  constituem,  ao  momento,  as  principais  fontes  disponíveis para o estudo de Caminha no século XVI.  Por  fim,  alargamos  ainda  mais  a  nossa  pesquisa  a  documentação  de  arquivos de regiões próximas, e naturalmente aos fundos nacionais.  No Arquivo Distrital de Braga pesquisamos:  ‐  Cartorio  muito  antigo  do  Convento  de  Nossa  Senhora  da  Insua  de  Caminha.  ‐ Livro dos Milagres do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha.  1725.  O  Cartório  do  Convento  da  Ínsua40  constitui  uma  miscelânea  de  documentação  variada  que  inclui,  desde  róis  de  irmãos  e  inventários  a  relatos                                                               40

 Agradecemos ao Prof. Doutor João Cabral, do Departamento de Botânica da Faculdade de Ciências, o alerta para  a importância desta documentação. 

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de  acontecimentos  que  de  alguma  forma  os  irmãos  consideraram  dignos  de  registo.  Estes  últimos  relatos  revelaram‐se  de  uma  riqueza  extraordinária,  no  que  respeita  a  informações  sobre  evolução  da  paisagem,  fenómenos  meteorológicos,  referências  a  fauna  e  flora,  e  até  mesmo  questões  de  pesca.  Frequentemente  testemunhas  de  naufrágios,  pirataria  e  pilhagem,  os  irmãos  registaram também a presença de embarcações estrangeiras.  Perante a ausência de registos notariais da vila de Caminha, e a aparente  ausência  de  informação  nos  de  Viana,  tornou‐se  necessário  alargar  a  nossa  pesquisa a outros centros marítimos. Dada a inviabilidade de percorrermos todo  os fundos notariais de cada arquivo, optamos por recorrer a informação notarial  já analisada e compilada por outros investigadores. Neste sentido recorremos à  documentação notarial do Porto tratada por Amândio Barros41, mas da qual não  retiramos quaisquer resultados, e  aos  notariais  de  Vila  do  Conde,  recolhidos  e  tratados por Amélia Polónia42, e inseridos na base de dados do CEDOPORMAR ‐  Núcleo  Informacional  “Vila  do  Conde  Quinhentista”43,  da  qual  retiramos  bastante  informação.  Ainda  assim,  olhando  para  o  contexto  espacial  do  nosso  objecto  de  estudo,  compreendemos  que  a  pesquisa  apenas  estaria  completa  com  informação  retirada  dos  fundos  galegos.  Com  efeito,  se  colocávamos  a  hipótese das relações comerciais estabelecidas entre os agentes ultrapassarem  a  fronteira,  era  coerente  uma  incursão  aos  arquivos  do  sul  da  Galiza.  Uma  pesquisa  em  guias  on‐line44  e  uma  deslocação  ao  Arquivo  da  Catedral  de  Tui  revelaram, no entanto, um imenso acervo notarial:   ‐  Arquivo  da  Catedral  de  Tui  ‐  Protocolos  notariais  1334‐1870  (22  livros  para o séc. XVI) 

                                                             41

 BARROS, 2004a   POLÓNIA, 2007a  43  Documentação disponível em formato digital e através de pesquisa multinível numa interface de intranet.  44  Servizo de Patrimonio Documental e Bibliográfico da Deputacion de Pontevedra: www.depontevedra.es. Este site  contém uma listagem completa dos Arquivos de Pontevedra, a nível municipal, empresarial e particular; Concello da  Coruña: Arquivos: www.aytolacoruna.es.   42

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‐  Archivo  del  Reino  de  Galicia  ‐  Fondos  Publicos  de  la  fe  publica:  Notariales 1519‐1862 (310 livros)  ‐  Archivo  Historico  Provincial  Pontevedra  ‐  Protocolos Notariales 1502  –  1923 (6432 caixas)  Foi,  então,  essencial  o  contacto  com  investigadores  galegos,  nomeadamente  o  Doutor  Vázquez  Lijó,  que  me  aconselharam  a  concentrar  a  minha  pesquisa  no  Arquivo  de  Pontevedra.  No  entanto,  e  embora  tenha  percorrido os registos de nove notários de Pontevedra, Vigo e Baiona (utilizando  o método de amostragem), não obtive nenhum resultado satisfatório.  Na  verdade,  esta  ausência  verificada,  quer  nos  arquivos  nacionais,  quer  nos  galegos,  é  o  reflexo  de  um  fenómeno  sobre  o  qual  todos  os  historiadores  parecem  estar  de  acordo:  nos  pequenos  circuitos  comerciais  os  mercadores  renunciam, muitas vezes, a registar o seu contrato perante um notário. Carmen  Saavedra  que,  no  momento,  acabara  de  analisar  a  documentação  notarial  quinhentista de Pontevedra, afirma isto mesmo: “… las relaciones entre Baiona  y  el  país  vecino  estaban  marcadas  por  la  existencia  de  un  doble  circuito  en  el  que  figuraban  por  una  parte  puertos  próximos,  como  Viana  o  Camiña,  protagonistas  de  pequeños  tráficos  que  en  muchos  casos  no  llegaban  a  registrarse  ante  notario,  y,  por  la  otra,  enclaves  más  alejados,  como  Aveiro,  Lisboa  o  Setúbal,  con  los  que  se  realizaban  operaciones  de  mayor  envergadura.”45  A  utilização  de  alguns  instrumentos  de  pesquisa  on‐line  e  a  consulta  de  fontes  publicadas46  não  evitou  a  necessidade  de  uma  deslocação  à  Torre  do  Tombo,  na  qual  procedemos  à  pesquisa  nos  diversos  índices  disponíveis  ao  investigador.  Dos  fundos  consultados  salientamos  as  Chancelarias  Régias,  o  Corpo  Cronológico  e  o  Tribunal  do  Santo  Ofício.  Nos  registos  de  privilégios  e                                                               45

 SAAVEDRA VÁSQUEZ, 2008    As  Gavetas  da  Torre  do  Tombo,  1960‐1977,  Lisboa,  Centro  de  Estudos  Históricos  Ultramarinos,  12  vols.;  MARQUES, 1988; ttonline.iantt.pt.

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doações régias encontramos um traslado de uma acta de vereação caminhense  relativa  à  mata  do  Camarido  e  aos  seus  efeitos  na  barra  de  Caminha;  o  reconhecimento régio dos privilégios da Confraria dos Mareantes; e uma série  de concessões de cargos administrativos a serem exercidos na vila de Caminha,  como procuradores do número, almoxarifes, ou guardas da alfândega. No Corpo  Cronológico  conseguimos  identificar  um  processo  de  corso,  de  1538,  do  qual  tinham sido vítimas uma série de moradores dos portos do noroeste português,  nomeadamente  mercadores  de  Caminha47.  Os  processos  do  Tribunal  do  Santo  Ofício  foram  essenciais  para  o  conhecimento  biográfico  de  alguns  mercadores  de Caminha. Por último, não queremos deixar de referir três livros de alfândega  que também encontramos no arquivo nacional:  ‐ Livro da Sisa de Caminha de 151948  ‐ Livro da Sisa dos Panos da Alfândega de Caminha do Ano de 152749  ‐ Livro da Dízima de Caminha de 153250  A  hipótese  de  trabalharmos  estas  fontes  foi  considerada  no  início  no  projecto,  mas  rapidamente  abandonada.  Em  primeiro  lugar,  exigiria  um  trabalho serial que, por si só, consumiria o projecto de dissertação. Em segundo  lugar, e bastante mais relevante, não responderia à nossa questão inicial, visto  que  concluímos  tratarem‐se  de  registos  relativos,  quase  exclusivamente,  ao  comércio  de  panos.  Bastante  similares  a  estas  fontes,  os  livros  de  receita  da  alfândega de Vila do Conde foram igualmente considerados, por João Cordeiro  Pereira,  insuficientes  para  “uma  visão  exaustiva  do  comércio  marítimo  de  Vila  do Conde nos princípios do séc. XVI”51.                                                               47

 Agradecemos a preciosa ajuda do Prof. Doutor Luís Carlos Amaral e da Maria João na leitura do documento.   T.T. ‐ Núcleo Antigo, Nº 525.  49  T.T. ‐ Núcleo Antigo, Nº 524. Publicado por CASTRO, Elisa; CUNHA, Mário, 1986‐1988 ‐ Livro da Sisa da Alfândega  dos Panos de Caminha do ano de 1527. “Caminiana”, Dez. 1986, p.153‐215 e Dez. 1988, p.181‐210  50  T.T. ‐ Núcleo Antigo, Nº 534.  51  “Os livros apenas dizem respeito a mercadorias importadas e ficam a faltar os registos dos artigos importados de  Espanha  e  de  outros  portos  do  reino,  que  não  eram  despachados  na  alfândega  real.  Além  disso  as  mercadorias  importadas  por  privilegiados  eram  registadas  separadamente,  bem  como  um  grupo  de  artigos  cuja  dízima estava  doada ao Marquês de Vila Real”. In PEREIRA, 1983: 30  48

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Uma  das  temáticas  do  nosso  projecto  –  a  das  dinâmicas  comerciais  do  porto  de  Caminha  –  continuava  em  causa  pela  escassez  de  fontes.  O  contacto  que  mantínhamos  com  investigadores  de  temas  afins  levou‐nos  a  contactar  o  Prof.  Doutor  Hilario  Casado  Alonso  que  analisara  as  relações  comerciais  entre  Espanha e Portugal, no séc. XVI, através dos seguros marítimos contratados em  Burgos  por  mercadores  de  ambas  as  nacionalidades.  Com  uma  admirável  solidariedade  científica,  o  investigador  facultou‐nos  os  registos  que  havia  encontrado envolvendo mercadores naturais de Caminha, o que enriqueceu em  grande medida os resultados do nosso trabalho.   Em  1538,  Mendo  Afonso  de  Resende,  sob  as  ordens  de  D.  João  III,  percorre  toda  a  fronteira  nacional,  averiguando  sobre  a  definição  dos  seus  limites  e  possíveis  contendas  com  os  castelhanos52.  O  relato  da  sua  conversa  com a vereação e os moradores de Caminha sobre direitos e práticas de pesca  no  rio  Minho  é  de  extrema  relevância  para  a  compreensão  da  gestão  de  recursos e espaços comuns.   Já referimos a inexistência dos registos paroquiais de Caminha pelo que  um necessário estudo alargado da sua população se tornou inviável. Tivemos de  nos cingir aos numeramentos de 151353 e 152754 para obtermos alguns dados e  tendências demográficas.  Depois  de  termos  lido  repetidamente,  nos  trabalhos  monográficos  de  Lourenço  Alves  e  Serra  de  Carvalho55,  referências  aos  manuscritos  do  Padre  Gonçalo  da  Rocha  de  Morais56,  foi  com  bastante  agrado  que  encontramos  na  Biblioteca Nacional, pelo menos, um deles. Pároco da Igreja Matriz de Caminha  (sécs.  XVII‐XVIII),  Gonçalo  da  Rocha  de  Morais  terá  deixado  importantes  contributos manuscritos sobre a história de Caminha. Com a mesma relevância                                                               52

 Fonte publicada em MORENO, 2003.   OLIVEIRA, 1976: 125‐165  54  DIAS, 1996  55  ALVES, 1985; CARVALHO  56  Memória de cousas antigas que sucederam nesta terra, 1722; Grandezas da Villa de Caminha; Acerca dos valores  da villa de Caminha.  53

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apontamos  também  a  Descripção  da  villa  de  Caminha  de  Frei  Miguel  da  Purificação57.  Nesta selecção de fontes uma das nossas maiores preocupações foi com  o  estudo  do  espaço.  Para  além  das  muitas  corografias  e  geografias,  às  quais  recorremos, assim como ao Livro das Fortalezas de Duarte d’Armas, de 1509, de  extrema  importância,  queremos  sublinhar  as  fontes  cartográficas.  Visto  que  este  tipo  de  fundos  se  encontra  um  pouco  disperso  por  bibliotecas  e  arquivos  de  diferentes  entidades  tutelares,  optamos  por  recorrer  numa  primeira  fase  a  pesquisas  on‐line58,  mas  também  à  base  de  dados  do  Projecto  Hisportos.  O  estudo do espaço e da geomorfologia levou‐nos a reunir um conjunto de fontes  cartográficas que consideramos de maior significado e utilidade ao projecto:  ‐ ABERVILLE, N. Sanson, 1654 ‐ Mapa do Reyno de Portugal59   ‐  BLAEW,  William  Iansz,  1638  ‐  De  Zeecusten  van  Galissen  Tusschem  de  Cabo Finisterre en Camino   ‐ BRANDÃO, Gonçalo Luís da Silva, 1758 – Planta da barra de Caminha e  entrada do Rio Minho   ‐ OXEA, Frey Fernando ‐ Mapa do Reino da Galiza60   ‐  SECO,  Fernando  Álvaro,  1630  –  Portugallia  et  Algarbia  (“Portugal  Deitado”) (1561). Amsterdão, Ed. Irmãos Blaeuw  ‐ TEIXEIRA, Pedro, 1634 ‐ Descripcíon de España y de las costas y puertos  de sus reinos61   Por último, gostaríamos de alertar para o nosso esforço de comparação  da  realidade  histórica  de  Caminha  com  a  realidade  de  outras  comunidades  marítimas.  Com  efeito,  ao  longo  da  dissertação  as  referências  a  espaços                                                               57

 B.P.M.P. – Ms. 543.    Biblioteca Nacional: www.bn.pt; I.A.N./T.T.:www.iantt.pt; Biblioteca Nacional de Espanha: www.bne.es; Instituto  Geográfico Português: www.igeo.pt.  59  BRITO, 1988: 21  60  BRITO, 1987: 91  61   El  Atlas  del  Rey  Planeta:  La  "Descripcíon  de  España  y  de  las  costas  y  puertos  de  sus  reinos”,  de  Pedro  Teixeira  (1634), 2003, Editorial Nerea  58

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semelhantes, a dinâmicas mercantis de outros portos e agentes, a descrições de  diferentes organizações confraternais são bastante recorrentes, principalmente  as referências à realidade histórica galega. Na verdade, este tipo de abordagem  comparativa tornou‐se num poderoso processo metodológico que nos permitiu  obter uma análise mais correcta e contextualizada da comunidade marítima de  Caminha.   

1.6 Estrutura da dissertação     De acordo com as problemáticas apontadas como essenciais e tendo em  conta  a  informação  disponível,  subdividimos  a  nossa  síntese  em  três  componentes essenciais:   a)

O  Espaço:  o  estudo  de  uma  localidade  marítima  pressupõe,  não 

apenas o estudo de um espaço social e humano, mas também o estudo de um  espaço  físico.  Um  levantamento  de  carácter  geomorfológico  e  hidrográfico  torna‐se  essencial  para  compreendermos  de  que  forma  estes  aspectos  influenciaram actividades, relações humanas e comerciais (não se trata aqui de  um determinismo, mas de um condicionalismo).   b)

Os  Agentes:  um  bom  contributo  para  o  estudo  das  comunidades 

marítimas é o conhecimento dos seus elementos, das suas ocupações, da forma  como se movimentam e relacionam entre si. A nossa pesquisa aborda aspectos  distintos, mas complementares, da actividade dos homens do mar: identificação  do  “mareante”,  delimitação  do  seu  espaço,  caracterização  do  seu  regime  de  trabalho,  meios  de  produção  e  produtos.  Se  é  claro  que  os  pescadores  e  marinheiros  estiveram  relacionados  entre  si,  já  não  é  tão  clara  a  forma  como  estes se articularam: será que o processo da expansão os remeteu para lugares  bem  distintos,  ou  os  caminhos  de  pescadores  e  marinheiros  cruzaram‐se  sempre? A dificuldade deste estudo pode ser comprovada pela diversidade de 

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termos com que estes homens são designados: “pescador”, “homem do mar”,  “mareante”, “navegante”, “marinheiro”.   c)

As Dinâmicas: o contacto que tivemos com bibliografia especializada 

e  de  contextualização,  quer  da  realidade  local,  quer  das  realidades  nacionais,  permitiu‐nos  concluir  sobre  os  diversos  papéis  que  os  diferentes  portos  nacionais podem ter assumido no processo da expansão. Não se trata aqui de  especializações  estanques  em  rotas  e  produtos,  mas  sim  de  reconhecer  determinadas  características  que  nos  ajudam  a  compreender  dinâmicas  portuárias.   A  estrutura  da  dissertação  reflecte,  naturalmente,  o  nosso  percurso  de  investigação.  O  primeiro  capítulo,  dedicado  ao  estudo  do  espaço,  abarca  dois  níveis  espaciais:  o  natural,  no  qual  tivemos  como  objectivo  aferir  acerca  da  navegabilidade do rio Minho no séc. XVI, assim como das suas potencialidades /  limitações  enquanto  recurso  natural,  e  o  social,  no  qual  tentamos  desenhar  o  espaço  urbano  no  qual  se  movimentaram  os  agentes  da  comunidade  em  estudo.  O  segundo  capítulo  recai  sobre  os  homens,  enquanto  grupo  humano,  que  por  ser  de  carácter  marcadamente  marítimo,  apresenta  comportamentos  populacionais  específicos.  Neste  ponto,  para  além  de  abordarmos  questões  demográficas gerais, que abarcam toda a comunidade, analisamos questões de  identidade  dos  homens  do  mar,  numa  tentativa  de  compreender  a  sua  heterogeneidade  e  ambiguidade,  demarcando‐os  dos  restantes  grupos  sociais.  O  terceiro  capítulo  compreende  as  actividades  que  ocuparam  estes  homens,  agrupadas  em  dois  grandes  sectores:  o  da  pesca,  abordada  a  partir  de  uma  perspectiva assumidamente laboral; e o da navegação e do comércio marítimo,  relacionadas quer com questões portuárias locais (alfândega e frota), quer com  a  identificação  dos  agentes  e  da  sua  acção  em  espaços  externos,  nomeadamente  nos  circuitos  europeus  e  transatlânticos.  O  quarto  capítulo,  dedicado  às  dinâmicas  sociais,  pretende  estudar  o  homem  do  mar  enquanto 

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agente social, sujeito a exclusões, mas também a um forte sentido de pertença  ao grupo. Questões de mobilidade geográfica e a forma como esta se interliga  com  a  criação  de  laços  familiares,  redes  de  negócio,  ou  simplesmente,  com  o  aumento  do  seu  raio  de  acção  serão  também  objecto  da  nossa  atenção.  Apontamos ainda algumas formas de assistência, religiosidade e organização do  grupo dos homens do mar porque as consideramos centrais como mecanismos  de análise social comunitária. 

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2. O Espaço    2.1 Espaço natural    “Même si l'historien est enclin à privilégier le temps à l'espace, il ne peut  jamais tenir pour négligeable le cadre naturel dans lequel évolue la société qu'il  souhaite étudier. Cette règle vaut tout particulièrement dans le cas des sociétés  maritimes  où  l'effect  du  lieu  est  determinant”1.  Alain  Cabantous  esclarece,  no  entanto, que não se trata de uma tradicional descrição geográfica, meramente  introdutória,  que  passe  ao  lado  da  análise  social  propriamente  dita.  Bem  pelo  contrário, trata‐se de uma das mais fundamentais variáveis a considerar neste  tipo de análise, compreender a relação que o homem do mar estabelece com o  espaço no qual exerce a sua acção: “Comment ne pas s'interroger sur les poids  des  contraintes  naturelles,  muables  ou  immobiles,  qui  provoquent  au  dynamisme  ou  au  repli,  qui  définissent  ou  non  les  caractères  maritimes  d'une  population, qui conditionnent une part des relations sociales des hommes de la  mer?”2  A  este  pressuposto  teórico  acrescentemos  um  exercício  essencialmente  prático:  na  ausência  de  indicadores  relativos  à  tipologia  e  volumetria  de  embarcações, ou até mesmo à frequência de movimentos portuários, tornou‐se  imperativo reconstruir o estado da barra de Caminha e da navegabilidade do Rio  Minho,  no  século  XVI,  de  forma  a  alcançar  uma  das  mais  importantes  condicionantes  a  considerar  neste  tipo  de  estudos:  a  facilidade  de  acesso  das  embarcações  à  vila.  Assim,  ao  silêncio  da  documentação,  respondemos  com  o  que  nos  pode  testemunhar  a  paisagem:  um  rio  Minho  de  difícil  acesso  que  isolou  Caminha  de  outros  centros  portuários,  ou  pelo  contrário,  uma  via  de  comunicação por excelência que permitiu a circulação de pessoas e produtos?                                                               1 2

 CABANTOUS, 1991: 55   CABANTOUS, 1991: 55

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Admitimos a nossa dificuldade em abordar questões de reconstrução de  paisagens  naturais,  que  requerem  conhecimentos  especializados  que  a  nossa  formação básica não nos facultou, e, portanto, a necessidade de recorrer a uma  orientação  mais  especializada.  Depreende‐se  facilmente  que  a  bibliografia  nos  pôs  em  contacto  com  uma  disciplina  completamente  nova  para  nós:  a  geomorfologia. Foi necessária uma atenção redobrada nas leituras, assim como  a familiarização com um vocabulário muito especializado. Porém, este passo foi  essencial  para  uma  reconstrução  espacial  consistente  e  fundamentada.  Devidamente contextualizados, partimos para a análise de fontes históricas, nas  quais  procuramos  indícios  de  alterações  na  barra.  A  natureza  dos  fenómenos  geomorfológicos  impõe  estudos  na  longa  duração.  Com  efeito,  se  um  assoreamento  pode  ocorrer  em  intervalos  de  tempo  mais  reduzidos,  falar  em  evolução  de  linha  da  costa  pressupõe  a  análise  de  testemunhos  num  tempo  alargado.  Assim,  apesar  de  termos  tentado  privilegiar  o  século  XVI,  a  nossa  recolha  documental  abarcou  também  as  centúrias  de  seiscentos  e  de  setecentos.   Seguindo uma metodologia comummente aceite3, recorremos a estudos  geomorfológicos  feitos  por  especialistas,  testemunhos  históricos  e  cartografia,  analisados em três linhas de estudo:  1. Evolução do nível do mar e da sedimentação na costa litoral – na qual  recorremos a estudos de longa duração e que cobrem um espaço alargado, para  uma necessária contextualização.  2.  A  navegabilidade  do  rio  Minho  e  a  evolução  da  sua  barra  –  na  qual  tentamos caracterizar a área da foz do Minho, a corrente fluvial e os diferentes  fenómenos a que se encontram sujeitas. 

                                                             3

 POLÓNIA, 2002: 147 

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3. A barra de Caminha nos testemunhos históricos – na qual tentamos ler  e  interpretar  as  fontes  históricas  de  modo  a  que  nos  conduzissem  a  uma  reconstrução espacial.    2.1.1. Evolução do nível do mar e da sedimentação na costa litoral    Segundo Alveirinho Dias, é possível que a tendência actual de regressão  do nível marítimo tenha sido interrompida, nos tempos históricos, por períodos  transgressivos, isto é, em que a linha de costa apresentou tendência para migrar  em  direcção  ao  continente4.  A  evolução  do  litoral  foi  fortemente  influenciada  pelas  pequenas  oscilações  climáticas  históricas,  sucedendo‐se  os  períodos  de  transgressão deposicional e regressão erosiva. Admitem‐se pequenas variações  do  nível  do  mar,  que  juntamente  com  as  variações  no  abastecimento  sedimentar  foram  determinantes  para  modificar  a  fisionomia  do  litoral  português. Com efeito, é necessária cautela com a interpretação que aponta a  navegabilidade  dos  rios  como  indicativo  de  altos  níveis  marinhos  ou  a  que  sustenta que a navegabilidade está essencialmente associada ao assoreamento,  pois é preciso ter em conta os calados dos navios antes utilizados5.  A  deriva  litoral,  que  transporta  continuamente  sedimentos,  e  cuja  orientação depende  da  direcção dos  ventos  dominantes  e, consequentemente  da ondulação, resulta, geralmente numa orientação de norte para sul ao longo  da costa do norte de Portugal6, o que provoca problemas de assoreamento a sul  e  erosão  a  norte  nas  estruturas  portuárias,  de  tal  forma  que  têm  mesmo  prejudicado instalações marítimas7.  O estudo das variações históricas da linha de costa tem vindo a ser feito  por exploração e comparação de mapas históricos (desde o séc. XIV até ao séc.                                                               4

 DIAS, 1993: 9‐11    DIAS,  RODRIGUES,  MAGALHÃES,  1997:  54‐60.  As  oito  Cartas  Litológicas  Submarinas  da  Costa  de  Portugal,  feitas  entre 1913 a 1928, fazem o reconhecimento sedimentológico da plataforma continental.  6  ARAÚJO, 2002: 77  7  ALVES, 1996: 10  5

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XX),  de  documentação  escrita,  da  toponímia,  de  dados  arqueológicos,  etc.8.  Analisando as interpretações de diversos autores, pode concluir‐se que no início  da expansão romana para o Ocidente (séc. III a.C.), coincidindo com uma fase de  clima  ameno,  o  nível  do  mar  estava  ligeiramente  acima  da  posição  que  tem  actualmente, condições que terão facilitado aquela expansão. Os rios europeus,  incluindo o Minho, Lima, Tejo, Mondego e Douro eram então mais navegáveis.  Ainda  nos  primeiros  tempos  da  presença  romana  no  país,  uma  fase  de  abaixamento da temperatura foi responsável por um avanço de linha de costa, o  que permitiu a instalação de villas e fábricas de peixe durante o séc. I, em locais  actualmente  ao  nível  do  mar.  A  partir  do  séc.  III  ocorre  um  novo  período  de  aquecimento e consequente subida do nível marinho9. Entre os séculos XI a XV  dá‐se  o  Pequeno  Óptimo  Climático,  que  na  Península  Ibérica  foi  caracterizado  por  uma  amenidade  climática  que  parece  não  ter  tido  paralelo  em  outros  tempos  históricos,  e  em  que,  provavelmente,  o  nível  médio  do  mar  ocupou  posição  igual  ou  ligeiramente  superior  ao  actual10.  O  recuo  da  linha  da  costa  decorreu,  assim,  de  uma  subida  do  nível  do  mar,  ao  mesmo  tempo  que  se  verificou um assoreamento dos estuários11.  

  Fig.1 – Linha de evolução da temperatura global antes do presente (BP).  Fonte: DEAN, 2000 

                                                               8

 DIAS, RODRIGUES, MAGALHÃES, 1997: 54   ALVES, 1996: 282  10  DIAS, 1993: 9‐11.  11  ARAÚJO, 2002: 78  9

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Desde o século XIV até ao século XVI passa‐se por uma fase de transição,  estando  a  Pequena  Idade  do  Gelo  definitivamente  estabelecida  na  Europa  por  volta do século XVI. Aparentemente, nos séculos XVI e XVII o nível médio do mar  atingiu  uma  posição  sensivelmente  inferior  à  actual.  O  mínimo  de  Maunder  I  (ver  fig.  1),  entre  1550  e  185012,  altura  em  que  as  manchas  solares  se  esbateram, caracterizou‐se num acentuado arrefecimento climático, de 2ºC de  temperatura, e por uma intensificação e agravamento das tempestades, maior  que  a  dos  tempos  modernos,  resultando  em  muitos  desastres  costeiros13.  Na  sequência deste período mais frio, em que a distribuição sazonal das chuvas era  diferente  da  actual,  ocorreu  intensa  sedimentogénese  e  o  litoral  apresentou  comportamento  regressivo  bem  marcado.  Na  Península  Ibérica,  esta  transição  climática parece ter sido mais brusca do que no resto da Europa, e ter sido mais  drástica  na  parte  atlântica  do  que  na  mediterrânica.  Assim,  no  decurso  da  Pequena  Idade  do  Gelo  ter‐se‐ia  verificado  um  aumento  substancial  do  transporte  sedimentar  por  via  fluvial.  Simultaneamente,  uma  mais  intensa  ocupação  do  território,  a  expansão  das  áreas  consagradas  à  agricultura  e  o  desenvolvimento  de  práticas  agrícolas  intensivas  tiveram,  em  geral,  como  consequência, uma maior erosão dos solos e, portanto, um maior fornecimento  sedimentar  ao  transporte  fluvial14.  A  cobertura  dunar  do  litoral  minhoto,  representada nas cartas geológicas, ter‐se‐á formado nesta altura15.   O  aquecimento  actual  iniciou‐se  a  seguir  à  Pequena  Idade  do  Gelo,  acompanhado por uma subida do nível do mar (12 cm de 1825 até 1973)16.                                                                      12

 M. J. Alcoforado situa o "Mínimo de Maunder" entre 1675 e 1715. In ALCOFORADO, 1999: 3   ARAÚJO, 2002: 81 e GRANJA, 2002: 99  14  DIAS, 1993: 9 ‐11  15  ALVES, 1996: 284  16  ARAÚJO, 2002: 76 13

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2.1.2. A navegabilidade do rio Minho e a evolução da sua barra    O  perfil  do  rio  Minho  apresenta  tipicamente  duas  situações  distintas  entre o litoral e o interior: no interior, o perfil é de um rio de alta energia, com  fortes correntes, rápido; com a proximidade do litoral apresenta um carácter  marcadamente mais regularizado; a competência é extraordinariamente mais  reduzida,  o  rio  desliza  aqui  suavemente  durante  várias  dezenas  de  quilómetros, permitindo que o efeito das marés se manifeste bastante para o  interior,  até  cerca  de  40  km,  o  que  transforma  o  estuário  num  importante  receptor de sedimentos.    

  Fig. 2 – Localização de Caminha.   Fonte: Carta Administrativa Oficial de Portugal, escala 1:25 000, IGP, 2004. 

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  Fig. 3 – Zona do estuário do Rio Minho (Maio de 2004).  Fonte: http://earth.google.com/intl/pt. 

  Para montante de Seixas e até Valença, o estuário do Minho é reduzido  praticamente  a  um  só  canal  navegável,  de  profundidade  mais  uniforme,  permitindo a navegação a embarcações de calado pouco superior a 2 metros.  Informações recolhidas em documentos antigos indicam claramente que  tanto  o  rio  Minho  como  o  Lima  foram  navegáveis  por  embarcações  de  calado  significativamente  maior  que  o  dos  pequenos  barcos  sem  quilha  que  actualmente aí se podem encontrar, as maceiras ou gamelas. Valença, ainda em  meados do séc. XV, era visitada por barcos estrangeiros e possuía navios que se  davam  a  um  comércio  activo  com  outros  portos  do  reino  e  fora  dele17.  O  rio  Minho percorria‐se por barco até mais de 50 km da foz, para lá de Valença18.                                                                17 18

 ALVES, 1996: 31, 143 e 296   MARQUES, 1987: 128

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Descrição da costa entre a Foz do Rio Minho e Moledo do Minho:  ‐ Limitada pelo rio Minho, do lado norte, e o extremo sul da povoação de  Moledo, com forma aproximadamente triangular, cujo vértice recto se situa na  foz daquele rio, desenvolve‐se uma plataforma baixa, entre a arriba e a costa,  ocupada em grande parte por uma mancha de pinhal, o Pinhal do Camarido. A  costa é, na totalidade, constituída por praia arenosa, com uma extensão de 2,5  km,  formando  um  duplo  arco  aberto  para  o  lado  do  mar  que  no  ponto  de  encontro dos dois arcos gera uma praia em ponta (Ponta Ruiva).   

  Fig. 4 ‐ Foz do rio Minho. Por efeito de difracção e refracção as ondas cruzam‐se  contribuindo para a formação duma praia em ponta entre o Pinhal do Camarido  e a Ínsua de Caminha.  In ALVES, 1996: 94 

  Frente  à  embocadura  do  rio  existe  uma  pequena  ilha,  a  Ínsua  de  Caminha, distanciada da praia cerca de 500 metros. A Ínsua divide a entrada do  estuário em dois canais: o do lado norte, chamado barra espanhola, tem zonas  de maior profundidade, contudo a navegação, raramente se faz por este canal,  mesmo para pequenas embarcações, dado que o fundo é rochoso e pejado de  escolhos;  o  canal  do  lado  sul,  ou  barra  portuguesa,  tem  fundo  arenoso,  mas 

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frequentemente encontra‐se assoreado, com migração dos bancos submersos19.  Esta ínsua é abrigada do mar por um renque de penedos, chamados Ínsua velha,  que na preia‐mar ficam a descoberto20.   

  Fig. 5 – Ínsua de Caminha (Maio de 2004).  Fonte: http://earth.google.com/intl/pt. 

  Independentemente da orientação da ondulação considerada, cada onda  é  dividida  em  dois  arcos,  um  do  lado  norte  e  outro  do  sul,  ficando  uma  das  extremidades de cada arco "apoiada" na ínsua enquanto a outra "varre" a praia.  Tais efeitos produzem junto à praia duas correntes longitudinais convergentes,  uma  com  sentido  norte‐sul  a  partir  da  foz  do  Minho  e  outra  com  sentido  sul‐ norte a partir da praia de Moledo. O encontro destas duas correntes provoca a  deposição dos sedimentos nelas transportados, com o desenvolvimento de uma  praia  em  ponta,  frente  à  Ínsua,  provocando  o  assoreamento  da  barra  portuguesa.  A  Ínsua  de  Caminha,  situada  paralelamente  ao  litoral,  funciona  como  um  quebra‐mar  (ilha  barreira),  originando,  do  lado  da  praia  que  lhe  fica                                                               19 20

 ALVES, 1996: 79‐80   VASCONCELOS, 1984: 8

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imediatamente em frente, uma acumulação de areia em forma de tômbolo (ou  praia  de  ponta).  Periodicamente,  quando  a  reserva  em  sedimentos  arenosos  aumenta  significativamente,  forma‐se  um  cordão  arenoso  que  une  a  Ínsua  à  Ponta Ruiva, dando assim origem à formação de um tômbolo. Esta ligação dura  apenas alguns dias e acaba, novamente, por desaparecer21.   

  Fig. 6 ‐ O assoreamento no estuário do rio Minho (Setembro de 1994).  In ALVES, 1996: 303 

  Na  atribuição  de  foral  à  vila  de  Caminha,  em  1284,  e  na  sequência  de  exigências semelhantes para outras regiões, D. Dinis ordenou a plantação de um  pinhal  junto  à  foz  do  rio  Minho,  para  deter  o  avanço  das  areias  sobre  os  terrenos  agrícolas.  Porém,  os  problemas  do  assoreamento  do  Minho  continuaram  a  fazer‐se  sentir.  O  século  XVI  foi  marcado  por  uma  forte  actividade  eólica,  pelo  que  a  povoação  de  Éster,  em  Viana  do  Castelo,  chegou  mesmo a ser soterrada22.  A barra, outrora funda e limpa, foi‐se obstruindo e solidificando a leste,  originando  a  formação  do  assento  arenoso  da  vila  de  Caminha,  dentro  e  fora                                                               21 22

 Litoral de Caminha: uma paisagem a salvaguardar, 1988: 10   ALVES, 1996: 80‐285

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muralhas, como de toda a margem abaixo dos morros do Sinal e Santo António,  assim  como  o  areal  à  borda  do  monte  de  S.  Tiago  de  Cristelo,  no  local  que  se  denomina Camarido23.  Pior  que  o  aperto  dos  rochedos  marginais,  a  implantação  do  pinhal,  na  duna do cabedelo, solidificou‐a irremediavelmente, constituindo um obstáculo à  entrada  do  rio  dos  navios  de  médio  calado,  pela  progressiva  penetração  da  duna na barra. Jaime Cortesão concluiu, com apoio na cartografia e em fontes  escritas  coevas,  que  na  Idade  Média  a  costa  portuguesa  era  muito  mais  recortada e que foi o assoreamento pós‐medieval que inutilizou certos portos,  que já tinham sido animados24.  Hoje  em  dia,  o  assoreamento,  bem  evidente  na  maré  baixa,  tem  sido  sobretudo  problemático  para  os  pescadores.  A  diminuição  da  cota  do  leito  do  rio  tem  originado  uma  baixa  significativa  no  referente  a  espécies  migratórias  como a lampreia, o sável e o salmão25.    2.1.3. A barra de Caminha nos testemunhos históricos    Após  termos  descrito  os  vários  fenómenos  a  que  a  barra  de  Caminha  esteve,  e  está,  sujeita,  e  termos  traçado  a  evolução  do  seu  desenho  com  o  auxílio  dos  estudos  geomorfológicos,  podemos  recorrer  agora  à  análise  das  fontes  históricas.  Com  efeito,  um  estudo  geomorfológico  impõe‐se  para  uma  melhor  compreensão  e  contextualização  dos  testemunhos  que  conseguimos  reunir.                                                                      23

 BRITO, 1987: 92   ABREU, 1987: 58  25  ALVES, 1996: 297 24

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A barra no século XVI  Uma  das  fontes  quinhentistas,  incontornável  para  quem  estuda  as  paisagens,  é  o  levantamento  das  praças  fortificadas  de  Portugal,  realizado  em  1509  por  Duarte  d’Armas26.  Ele  não  nos  informa,  directamente,  sobre  assoreamentos  ou  navegabilidade  fluvial.  Porém,  a  presença  ou  ausência  de  embarcações,  assim  como  o  seu  número  e  dimensão,  podem‐nos  dizer  muito  acerca destes dois fenómenos.   

  Fig. 7 – Rio Minho.  In ARMAS, 1997 

                                                             26

 ARMAS, 1997 

36

       Fig. 8 – Valença do Minho.   In ARMAS, 1997 

 

  Fig. 9 – Monção.  In ARMAS, 1997 

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Nas  representações  de  Caminha,  a  parte  vestibular  do  rio  aparece  frequentada por grandes naus e caravelas: uma das naus afasta‐se em direcção  ao oceano, enquanto outra nau e duas caravelas ficam ancoradas na foz, perto  de Caminha, e a terceira nau ao pé do castelo de Vila Nova de Cerveira (ver fig.  7).  Mais  a  montante,  em  Valença  do  Minho,  estão  ancoradas  no  rio  duas  grandes  naus,  com  três  mastros  e  castelos  à  proa  e  à  popa,  e  também  duas  pequenas caravelas, com dois mastros e duas velas triangulares (ver fig. 8). Três  léguas  mais  a  montante,  em  Monção,  o  desenhador  representou  apenas  uma  barca no rio, pequena, como permite apreciar o barqueiro nela instalado, e com  uma  vela  só  (ver  fig.  9).  Estas  representações  parecem  confirmar  que  a  interrupção da navegação marítima se fazia em Valença, e que as mercadorias  passavam em Monção levadas em récuas de bestas, dirigidas por almocreves27.  Estes  indicadores  indirectos  parecem  sugerir,  em  primeiro  lugar,  o  alcance  da  navegabilidade  do  Minho,  até  Valença;  e  em  segundo  lugar,  a  presença  de  grandes embarcações na barra de Caminha, pelo que esta se deveria encontrar  aberta e desassoreada.  João de Barros, na sua Geografia, diz que o rio Minho“... na foz do qual  está a vila de Caminha, uma légua do mar, onde ha muito bom porto para os  navegantes  e  na  foz  está  uma  pequena  ínsua  que  não  tem  mais  espaço  que  onde  está  um  mosteiro  pequeno  da  ordem  de  São  Francisco  da  Observância  (...) cercado de todas as partes de bravo mar e ondas que se encontram do mar  e  do  Minho  e  muitas  vezes  cresce  o  mar  tanto  que  entram  as  ondas  no  mosteiro  e  os  religiosos  se  sobem  ao  telhado  com  temor”28.  Desta  pequena  descrição facilmente se pode concluir acerca da existência de um bom porto  para a navegação, assim como da tempestuosidade do mar na zona da foz. 

                                                             27 28

 DAVEAU, 2003: 81‐96   BARROS, 1919: 84

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A  qualidade  do  porto  de  Caminha  é  confirmada  por  Frei  Bernardo  de  Brito, que sobre o rio Minho diz: “... a sua corrente é navegável algumas léguas  com embarcações de bom tamanho”29.  De  maior  pertinência  para  este  estudo  são  as  informações  dadas  pela  documentação local, nomeadamente pelos testemunhos deixados ao longo do  tempo pelos frades do Mosteiro de Nossa Senhora da Ínsua, que presenciaram  estes fenómenos:  •

(1580) “Os religiosos que tinham experiência da grande violência e 

força que naquele sítio [junto ao sítio de Alverne] faziam os mares (...)”  •

“Em  o  anno  do  Senhor  de  myl e  quinhentos  e  tres  em dia de  Natal 

acabasse  a  missa  do  galo  se  alevantou  nesta  insua  o  mar  muy  rijo  que  ffoy  cousa de espanto que diziam assy os velhos que aqui moravam como os da villa  de camynha que ayia bem xxx anos que tal não acordava tal (...) tal tormenta  que  não  na  pode  crer  senão  quem  a  viu  que  nao  deixou  nesta  insua  hum  soo  punho de areia  (...)  e  descobriu penedos  que  jaziam cobertos  debaixo da areia  que nunca ninguem vira ffez barrancos de arredor da insua e assy cortou a terra  (...)  moveu  penedos  que  cento  homens  não  poderiam  com  elles  (...)  e  fazia  hi  tam  triste  som  que  não  avya  ninguem  que  não  ouvesse  pavor  muitos  dos  que  aqui estavam não dormiram aquela noite muito consolados.”  •

“Na era de 1545 foi tamanha maresia que botava por riba do muro 

que defende a agua (...)”  •

“Na era de 1548 no mes dabril hu dia aa hua hora depois de meyo 

dia entrando hua das derradeiras pinaças de Caminha pella barra de galiza, ao  longo da ynsoa velha, que chamão porta(?), com muyto grande noroeste lhe deu  hu maar dandacya(?) que assy lhe chamão nesta terra e a levou ao fundo com  tanto impeto que lhe quebrou a proa donde deu, onde morrerão cinco pessoas  (...)”                                                               29

 BRITO, 1597: 6 

39



“Em o ano do Senhor de 1561 (...) entrou nesta casa da Insoa o dito 

padre frey padre ministro a primeyra vez a visitala aos 12 dias de julho da dita  era hu sabado vimdo pelo minho abayxo em hu barco com tanta bonança que  ate a ynsoa vierão à vela sem entrar na villa.”  •

“Na era 1574 a 13 de setembro se levantou o mar na mare de polla 

manhã e sem nenhuma tempestade da terra de maneira que os homens velhos  affirma não não (sic) verem nunqua tal estava tão rebentada maresia e em tal  tempo  neste  mesmo  dia  que  era  uma  segunda  que  se  perderão  sahyndo  da  Guarda tres dornas em as quaes dornas morreram 10 galegos.”  •

“Em a era de 1582 8 dias antes do natal forão tamtas as tromentas e 

tempestades  que  fazia  medo  e  pavor  as  gentes  he  os  velhos  da  terra  diziam  a  ver trimta annos ou mais não berem tal (...) foy tam gramde a furia da tromenta  que (...) nao deixou nesta Imssoa case area, mas toda em redor era penedia foy  tamta a augoa que das teras he momtes veo que trouxe tamta he tam gramde  numero de area que fez hua pomta do cabedello fromteira a barra de galiza tam  gramde  que  os  vivos  he  muito  velhos  de  outro  tal  sennão  acordao  por  que  corendo esta area ate defronte da portaria desta caza fycou tam perto e baixo  que pasarão alguns homens a pee (...) he no mesmo tempo veo dar ha costa da  bamda de baixo da camboa hua ballea muy grande ha qual parecia ter sesemta  palmos de comprimento ou mais por que nesta casa ficou hu oso que dizião ser   de  hua  queixada  que  tinha  22  palmos  de  comprido  ha  qual  baalea  veo  na  preamar da noute he se foy na preamar de dia por que tava gramde ha marosia  por que queremdo a medir nos não deu logar (...).”30  Em  1532,  Claude  de  Bronseval,  ao  entrar  em  Portugal,  descreve  a  chegada  à  “...  praça  forte  de  Caminha  situada  sobre  a  margem  do  rio.  Foi  preciso  atravessar  aqui  e  não  sem  perigo,  as  águas  do  mar,  que  refluíram  ao  conter as do rio. Mas um bateleiro fez‐nos atravessar com toda a segurança as                                                               30

 A.D.B. ‐ Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. 

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ondas profundas e caprichosas. Desta cidade, vê‐se o mar que bate duas vezes  por dia as muralhas com as suas ondas potentes.”31  Se,  por  um  lado,  estes  testemunhos  alertam  para  a  violência  das  correntes do rio Minho, eles apontam também para uma inconstância no nível  das suas águas. Com efeito, a par das tormentas que faziam a água chegar aos  muros  do  convento,  encontramos  relatos  de  claros  assoreamentos  que  tornaram possível a passagem para a Ínsua. Frei Miguel da Purificação, também  ele religioso do Convento da Ínsua, relata, num manuscrito setecentista, que em  1575 e 1582 “... secou de tal forma a barra portuguesa que se passou a vau para  a Ínsua”32. Da mesma forma, em 1562, a vereação caminhense recorre ao rei no  sentido  de  proibir  o  corte  de  lenha  na  mata  do  Camarido,  visto que  “...  o  ano  passado ouvera ali muita instruição de lenha que se cortou por onde e por esta  causa a barra está enserrada com areia que se não podia por ela navegar com a  muita areia que correu e tapou a barra”33.  A  análise  de  mapas  antigos,  nomeadamente  os  de  Petrus  Vesconte  (de  1318), de Álvaro Seco (de 1560 e 1561), de Ortelius (de 1570), de João Teixeira  (de  1648)  e  de  Teixeira  Albernaz  (de  1662),  permitem  constatar  que  a  configuração do litoral português era, então, sensivelmente diferente da actual.  Embora  esta  cartografia  antiga  deva  ser  analisada  com  precaução  devido  às  incorrecções  que  frequentemente  apresenta  (na  maior  parte  derivadas  das  técnicas  cartográficas  ao  tempo  disponíveis),  é  possível  verificar  que  a  maior  parte das lagoas se encontravam ainda abertas para o mar, que o assoreamento  dos estuários era reduzido, e que as restingas arenosas que se desenvolveram  na foz dos rios parecem estar, nessa altura, em fase de constituição. Junto à foz  do rio Minho, por exemplo, a acumulação arenosa da Camarido‐Moledo parece  ser, nos mapas referidos, muito pequena ou quase inexistente34.                                                                31

 BRONSEVAL, 1970: 309   B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fl. 23 e 54v.  33  T.T. ‐ Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, lv. 3, fl. 175‐175v. 34  DIAS, 1993: 9‐11  32

41

 

  Fig. 10 – Região do noroeste peninsular.   In SECO, Fernando Álvaro – Portugallia et Algarbia (“Portugal Deitado”) (1561).  Amsterdão: Ed. Irmãos Blaeuw, 1630.  

  Suzanne  Daveau,  apesar  de  considerar  este  mapa  do  tipo  corográfico,  considera  ser  uma  das  suas  características  mais  notáveis  a  abundância  e  boa  qualidade  do  traçado  da  rede  hidrográfica35.  Considerando  isto,  torna‐se  notável a largura que o rio Minho assume nesta representação cartográfica.   

                                                             35

 DAVEAU, 2000: 12 

42

 

  Fig. 11 – Região do sul da Galiza.  In OXEA, Frey Fernando ‐ Mapa do Reino da Galiza 

  Este extracto do Mapa do Reino da Galiza é dos finais do séc. XVI, e da  autoria de Frey Fernando Oxea, historiador e geógrafo, nascido em Ourense, em  1560.  Mostra  que,  ao  seu  tempo,  a  barra  do  canal  sul  da  boca  do  Minho  era  bem mais ampla, e que a meio dela, mais perto da margem norte, se constitui  uma  avultada  Ínsua,  da  qual  restam,  na  actualidade,  as  penedias  da  chamada  Ínsua‐Velha e a Ínsua‐Fortaleza36.   O  que  justifica,  porém,  a  exagerada  largura  atribuída  aos  estuários  dos  rios que desaguam ao norte do Douro? Na verdade, esse facto não basta para aí  ter prosperado o comércio marítimo, pois o que interessa ao calado dos navios  é a profundidade das águas, e não a largura das vias fluviais: os barcos do séc.  XIV não exigiriam amplos átrios de estuário37.                                                               36 37

 BRITO, 1987: 91‐93   MARTINS, 1947: 18

43

A barra no século XVII   

  Fig. 12 – Foz do rio Minho.  In TEIXEIRA, Pedro ‐ Descripcíon de España y de las costas y puertos de sus reinos    (1634). 

  Esta representação identifica, claramente, a divisão da entrada do Minho  em  duas  barras:  a  galega  e  a  portuguesa,  fazendo  circular,  por  esta  última,  embarcações  de  grande  volumetria.  É  também  de  notar  a  largura  que  o  rio  Coura  apresenta,  diminuindo  consideravelmente  o  espaço  da  vila.  Pedro  Teixeira completa a sua descrição informando que: “... entre la ynsoa y la tierra  firme, que llamam el cabo de san Yzidro tiene esta barra de ancho hun quarto de  legua. Y aunque de menos fondo que la que queda a la parte del septentríon y 

44

Galizia es más segura, por ser más linpia. Divide estas dos barras  del río Miño  una  ysleta  que  tiene  de  sercuyto  duzientos  paços  y  en  ella  está  fundado  un  conbento de la orden de San Françisco que llamam San Antonio. Y por estar tan  desabrigada y metida en el mar es muy frequentada de los piratas, de ordinario.  Y a susedido munchas vezes veniren dando casa a los navíos y ellos, por no ser  tienpo  para  tomar  la  barra,  vararen  en  tierra.  (...)  Tiene  de  fondo  esta  barra  dicha  de  Portugal  en  la  entrada  dos  braças  y  media  y  dos  braças,  y  en  medio  huna  braça,  dando  fondo  dentro  en  el  puerto  en  dos  braças.  Y  en  la  otra  que  llamam de Galizia tiene a la entrada trez braças, y en medio huna, y luego dos,  entrando en el puerto del poniente ao levante.”38   

  Fig. 13 – Entrada da barra de Caminha.  In BLAEW, William Iansz ‐ De Zeecusten van Galissen Tusschem de Cabo Finisterre en  Camino (1638). Fonte: B.P.M.P.                                                               38

 TEIXEIRA, Pedro ‐ Descripcíon de España y de las costas y puertos de sus reinos. 1634, fl. 44v. Publ. in El Atlas del  Rey Planeta: La "Descripcíon de España y de las costas y puertos de sus reinos", de Pedro Teixeira (1634), 2003: 334‐ 335 

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No  atlas  de  Blaew  o  desenho  da  barra  de  Caminha  não  merece  tanto  pormenor, mas as indicações de baixa profundidade (possíveis assoreamentos)  apontam  já  para  dificuldades  na  entrada  de  grandes  barcos.  Curiosamente,  a  sua  circulação  parece  fazer‐se  pelo  lado  galego,  contrariamente  ao  que  as  outras representações cartográficas indicam.   

  Fig. 14 ‐ ABERVILLE, N. Sanson ‐ Mapa do Reyno de Portugal (1654).  In BRITO, 1988: 21 

  Este extracto do Mapa do Reyno de Portugal, de N. Sanson de Aberville,  dedicado  a  D.  João  IV,  em  1654,  coloca  ainda  na  foz  do  rio  Minho  uma  larga  boca39. Tem ainda a particularidade de mostrar, defronte da margem norte, em  vez de uma ínsua, duas (provavelmente causada por um ligeiro abaixamento do  nível do mar).  Na  centúria  de  seiscentos,  a  foz  do  Minho  é  ainda  larga  e  permite  a  navegabilidade  de  barcos  de  grande  calado.  Porém,  alguns  fenómenos  geomorfológicos deveriam já concorrer para a alteração da linha de costa.   Neste  sentido,  seria  bastante  pertinente  perceber  os  fenómenos  que  afectaram  a  acessibilidade  ao  cais  de  Caminha  ao  longo  de  seiscentos.  Com 

                                                             39

 BRITO, 1988: 21 

46

efeito, iniciada a sua construção em 161240, menos de cem anos depois, diz‐nos  Carvalho  da  Costa  que  “...  a  torre  do  Marquês,  que  em  outro  tempo  foi  de  grande serventia para os navios que junto a ela estavam no rio Minho com um  cais muito grande de cantaria; porém como as areias tudo cobriram, se perdeu o  uso desta porta.”41 Da mesma forma, Pinho Leal, tratando da vila de Caminha,  relata  que:  “...  junto  à  Torre  do  Marquês  houve  antigamente  um  grande  cais  onde  carregavam  e  descarregavam  navios  de  muito  maior  lote  do  que  os  que  hoje  podem  entrar  na  barra;  mas  as  areias  foram  cobrindo  este  cais,  até  ficar  completamente  enterrado...”.  Acrescenta  também  que  “Caminha,  ainda  no  século XVI formava uma  península  triangular, e muito  menos espaçosa  do que  actualmente;  porem  o  Coura  (que  então  passava  por  onde  hoje  é  a  praça  do  Terreiro) foi‐se obstruindo na sua margem esquerda e invadindo os pântanos da  margem oposta, dando assim mais amplitude à vila, e à península sobre que ela  está fundada, a configuração quadrangular que actualmente tem”42.     A barra no século XVIII    O  século  XVIII  é  rico  em  trabalhos  corográficos  e  descrições  geográficas  do território nacional. Os seus autores, de uma forma mais ou menos fidedigna,  preocuparam‐se em descrever as paisagens naturais, as vilas, as populações, e,  naturalmente, os rios.  Em  1722,  o  pároco  da  igreja  matriz  de  Caminha,  respondendo  ao  apelo  dos inquéritos promovidos pela Academia Real de História, redige uma memória  sobre  os  acontecimentos  mais  importantes  da  vila.  Nela,  refere  que  em  1708,  no  mês  de  Setembro,  “...  o  mar  acrescentou  tanto  as  areias  para  a  parte  do  Sobreiral  que  a  dita  barra,  por  onde  entravam  embarcações  para  a  vila  de  Caminha,  ficou  seca”.  Curiosamente,  na  mesma  memória,  o  pároco  sente  a                                                               40

 B.N. ‐ Reservados, Ms. 8750. MORAIS, Pe. Gonçalo da Rocha de ‐ Grandezas da Villa de Caminha, 1722.   COSTA, 1868‐1869: 246  42  LEAL, 1874: 54‐57 41

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necessidade  de  certificar  que  “...  tem  esta  vila  uma  das  melhores  barras  do  reino de Portugal e um cabedelo capaz de ter muitos navios”43.  Uma  das  fontes  mais  recorrentes  para  estudos  paisagísticos,  no  século  XVIII, são, sem dúvida, as Memórias Paroquiais de 1758. Dirigido aos párocos, e  admitindo‐os  como  bons  conhecedores  das  realidades  locais,  este  inquérito,  sobre  os  mais  variados  temas,  incluía  questões  sobre  as  paisagens  naturais,  como os rios e as serras. Nas suas respostas, os párocos vão dando diferentes  informações  que,  directa  ou  indirectamente,  nos  permitem  fazer  algumas  leituras históricas do espaço. Estas notas não eram dadas com nenhum tipo de  interesse  climatológico  ou  geomorfológico,  surgem  de  forma  inocente,  associadas, muitas vezes, a queixas sobre fugas da população, e/ou situações de  carestia.  Com  efeito,  os  males  denunciados  nas  Memórias  Paroquiais  são  de  diversa ordem: a intensidade dos ventos; a invasão de areias vindas do mar; o  assoreamento  dos  rios,  particularmente  junto  à  foz;  o  depósito  de  areias  na  margem  esquerda  (sul)  dos  rios  (atlânticos),  e  a  seca  dos  cursos  de  água  no  verão44.  Felizmente  para  o  nosso  estudo,  as  Memórias  Paroquiais  da  vila  de  Caminha45  são  ricas  neste  tipo  de  informações.  Na  verdade,  conseguimos  encontrar  indicadores  de  interesse  nas  memórias  de  cinco  freguesias  (que  correspondem  exactamente  às  freguesias  do  litoral).  Os  problemas  de  assoreamento  e  de  acesso  à  barra  de  Caminha  estão  bem  patentes  nestes  testemunhos.  O  pároco  da  vila  já  não  nos  relata  a  presença  das  grandes  embarcações  de  outrora,  mas  apenas  de  barcos,  lanchas,  e  iates.  Acusa  um  assoreamento  e  uma  descida  do  nível  das  águas46.  Em  Cristelo,  surge  novamente a diferenciação entre as duas barras, referindo‐se o pároco à barra                                                               43

 B.N. ‐ Reservados, Ms. 8750. MORAIS, Pe. Gonçalo da Rocha de ‐ Grandezas da Villa de Caminha, 1722.   ABREU, 1987: 56  45  CARVALHO, 1979  46  “ ... tem porto de mar por onde entram iates de sal e outros de cal e também barcos grandes dos pescadores  naturais e algumas lanchas” e “... o rio Minho é navegável de barcos, lanchas e iates e não é muito capaz para  outras embarcações por a barra ter às vezes suas areias e nele baixarem muito as águas”  44

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galega,  assim  denominada  por  ficar  a  norte  da  fortaleza  da  ínsua.  Nesta  freguesia,  onde  actualmente  se  situa  a  ponta  do  cabedelo,  confirma‐se  o  testemunho anterior: as embarcações maiores que entram são iates e caravelas,  por  a  barra  estar  areada  e  ser  brava  (mais  uma  referência  à  tempestuosidade  das  águas)47.  Mais  a  sul,  em  Moledo,  acrescenta‐se  que  estas  mesmas  embarcações  entram  apenas  com  duas  condições:  estando  preia‐mar  e  tendo  vento  sul.  A  barra  é  larga,  mas  tem  muitas  pedras  e  areias,  pelo  que,  muitas  vezes,  os  barcos,  estando  vento  norte,  preferem  utilizar  a  barra  galega48.  Continuando  para  sul,  o  pároco  de  Gontinhães  (actual  Vila  Praia  de  Âncora)  apenas  testemunha  a  movimentação  de  barcos  de  pescadores,  e  algumas  lanchas da Galiza e Caminha, e apenas nos meses de Verão, ou estando o mar  sereno49.  A  norte,  e  já  dentro  do  rio  Minho,  o  pároco  de  Seixas  alerta  para  o  facto de as caravelas e pataxos já lá não chegarem. O assoreamento, que diz ser  provocado  pelas  areias  fluviais,  era  de  tal  ordem  que  as  embarcações  não  passavam do cabedelo e do cais de Caminha50.   João  Baptista  de  Castro,  alguns  anos  depois,  indica  que  a  foz  do  Rio  Minho  tem  na  sua  entrada  uma  ilha,  onde  está  o  forte  de  Nossa  Senhora  da  Ínsua,  que  faz  duas  barras  pequenas:  uma  para  o  norte  e  é  perigosa;  e  outra  para  sul51.  A  sua  obra  recupera  a  ideia  de  que  a  barra  galega  não  era  aconselhável à navegação. 

                                                             47

 “... não fica nesta freguesia o porto de mar onde descarregam as embarcações que acodem e entram nesta barra,  que se apelida de Barra Galega, por ficar a norte da fortaleza da ínsua para o reino da Galiza, pela qual entram os  iates ou caravelas que de Setúbal vêm com o seu sal. Estes são os maiores, mas também entram quaisquer pataxos,  lanchas  e todo o género de barcos de pescaria, e outros maiores não entram por estar a barra areada e ser brava”  48  “... barra portuguesa pela qual estando preiamar e tendo vento sul entram  alguns iates ou caravelas que com o  seu sal vêm ao porto de Caminha e a toda a hora entram barcos de pescaria. Esta barra é bastantemente larga com  muitas pedras e para dentro está muito cheia de areia, e ordinariamente as embarcações entram pela barra galega  com vento norte”  49   “...  há  nesta  freguesia  um  porto  de  mar  por  natureza,  onde  chamam  o  Porto  de  Âncora  no  sítio  do  lugar  da  Lagarteira,  pelo  qual  entram  somente  barcos  de  pescadores,  e  algumas  lanchas  da  Galiza  e  Caminha,  principalmente nos meses de Verão, ou estando o mar sereno”  50  “... entram pela barra caravelas e pataxos com sal, porém estes não passam do cabedelo e do cais de Caminha por  causa das muitas areias que mete o Minho”  51  CASTRO, 1762‐1763: I,18 e IV, 175 

49

Estas  mesmas  descrições  são  comprovadas  por  Frei  Miguel  da  Purificação:  “...  a  barra  galega  fica  direita  a  oeste,  é  semeada  de  muitos  cachopos pelos lados; a portuguesa fica ao sudoeste, é muito limpa. Tem dentro  uma  enseada  muito  capaz,  muito  abrigada  e  fiel  às  embarcações.  Hoje  só  entram algumas caravelas, patachos e chalupas de sal e de cal.” 52  Frei  Pedro  de  Jesus  Maria  José,  mais  um  religioso  da  Ínsua,  dá‐nos  notícias  de  que  as  areias,  com  a  sua  inconstância,  repetidas  vezes  deram  passagem  franca  para  terra  da  parte  de  Portugal,  nomeadamente  em  1575,  1582 e 1708. Acrescenta que este mesmo fenómeno “... aconteceu também da  parte da Galiza, quando ainda permanecia a que hoje chamam Ínsua Velha que,  comunicando‐se  com  a  que  agora  existe,  davam  passagem  livre  e  desembaraçada  para  as  terras  fronteiras  do  reino  de  Galiza”.  Quanto  a  consequências  desta  actividade  geomorfológica,  refere  que  “...  o  circuito  da  praia  está  todo  rodeado  de  camboas  ou  pesqueiras,  que  os  religiosos  começaram  a  fabricar  desde  os  primeiros  anos,  em  que  foi  notavelmente  abundante a pescaria, e depois se foi esterilizando cada vez mais.”53  Bastante  ilustrativa  deste  evidente  assoreamento  que  a  barra  de  Caminha  foi  sofrendo  ao  longo  do  tempo,  e  que  reduz  em  grande  parte  a sua  capacidade  no  séc.  XVIII,  é  a  Planta  da  barra  de  Caminha  e  entrada  do  Rio  Minho de 1758:   

                                                             52 53

 B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fl. 23 e 54v.   JOSÉ, AGUILAR, 1965: 14‐16 

50

  Fig. 15 – Planta da entrada do rio Minho.  In BRANDÃO, Gonçalo Luís da Silva – Planta da barra de Caminha e entrada do Rio  Minho (1758). 

   “Vê‐se aqui a barra de Caminha, fim do curso do Rio Minho, envolto no  mar oceano, tanto pela parte de Portugal, como de Galiza, ficando‐lhe no meio  a Fortaleza de Nossa Senhora da Ínsua que o divide. Mostra‐se La Guardia, sua  enseada  e  fortaleza,  o  Camarido,  o  Rio  Coura  e  salinas  que  da  sua  parte  há.  Pelas duas barras só entram embarcações pequenas, como iates e caravelas. O  que se diz Camarido é mais de quarto de légua de mata de sobreiros e pinheiros  velhíssimos,  que  em  dia  de  São  Bento  deste  ano  de  1758  padeceram  grande  destroço.”    A – Rio Minho 

K – Pedras Ruivas

B – Barra de Galiza

L – La Guardia

C – Barra de Portugal 

M – Fortaleza de Santa Cruz 

D – Vila de Caminha 

N – Freguesia de São Lourenço de  Sibadães 

E – Igreja Velha 

O – Ponte de Tamuje

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F – Camarido 

P – Serra altíssima e Ermida de Santa  Tecla 

G – Fortaleza de Nossa Senhora da Ínsua

Q – Lugar de Camposancos 

H – Salinas 

R – Rio Coura

I – Nossa Senhora da Ajuda 

S – Convento das Freiras de La Guardia

 

  A  utilização  de  tão  diversas  fontes  pode  parecer  ter  resultado  em 

conclusões dispersas, criando um conhecimento fragmentado da paisagem. No  entanto,  compreenda‐se  que  se  trata  essencialmente  de  apurar  algumas  tendências  gerais  da  evolução  geomorfológica  que  nos  permitam  dissertar  sobre  as  relações  estabelecidas  pelo  homem  do  mar  com  o  seu  espaço:  “Com  efeito,  qualquer  que  seja  a  variável‐chave,  um  grupo  humano  estabelece  sempre relações com o seu ambiente, e muitos fenómenos sociais não podem  ser explicados sem uma referência a estas relações que são dialécticas.”54 Neste  sentido,  parece‐nos  legítimo  afirmar  que  no  século  XVI  a  barra  de  Caminha  ainda permitia uma boa acessibilidade às grandes embarcações, e que o Minho  apresentava uma boa navegabilidade. Os problemas de assoreamento, que já se  revelavam  na  centúria  de  quinhentos,  são  muito  mais  significativos,  ou  conhecem a sua maior expressão continuada no século XVIII, quando limitam a  utilização da barra de Caminha às embarcações mais pequenas.    

2.2. Espaço social     “É  sabida  a  atracção  que  a  beira‐mar  exerceu  sobre  a  população  portuguesa  na  época  moderna.  Os  portos  de  embarque  e  chegada,  nas  embocaduras  dos  rios  ou  nas  enseadas  do  mar,  tornaram‐se,  por  isso,  lugares  "chamarizes" de povoamento e habitação”55. Após termos desenhado o espaço                                                               54 55

 BRUN, 1986: 19   DIAS, 2002: 277 

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natural  de  Caminha,  e  analisado  os  fenómenos  geomorfológicos  a  que  se  encontra  sujeito,  concluímos  acerca  da  sua  potencialidade  como  um  "lugar  chamariz"  à  fixação  de  população.  Assim  sendo,  como  evoluiu  a  ocupação  humana em Caminha? De que forma uma comunidade marítima organiza o seu  espaço?  No ano de 1512 a população de Caminha entregava‐se, desde há oito ou  mais anos, à construção da muralha, “... obra muito grande e de muito custo” 56.  Apesar  de  gastarem  “...  de  suas  casas  muito  dinheiro  que  he  maravilha  soportarem tanto trabalho”, estava ainda por cercar mais da terça parte da vila.  Dos projectos da câmara faziam ainda parte a construção do cais da vila, “... que  ha  de  seer  mui  grande  obra”,  e  fazer  o  caminho  da  Junqueira,  caminho  empedrado  que  ligaria  Caminha  a  Vila  Nova  de  Cerveira.  A  estes  empreendimentos  acrescentemos  a  construção  da  Igreja  de  Nossa  Senhora da  Assunção  ou  dos  Anjos,  matriz  de  Caminha,  iniciada  a  4  de  Abril  de  1488.  Principiada à custa da Câmara e com esmolas do povo da vila, D. Manuel I terá  contribuído muito para a sua conclusão, em 155657.   

  Fig. 16 – Caminha   In ARMAS, 1997                                                               56

 OLIVEIRA, 1976: 125‐165.    O  seu  período  de  maior  edificação  foi  até  1516,  datando  de  1511  a  Capela  dos  Mareantes.  In  Reabilitação  da  Igreja Matriz de Caminha, 2007 e LEAL, 1874: 54‐57 

57

53

Se  por  um  lado,  todas  estas  obras  resultam  num  grande  peso  fiscal  e  contributivo para a vila, não deixam de ser também um importante indicador do  dinamismo  interno  da  vila,  e  de  certo  modo  do  poder  económico  da  sua  população.  Com  efeito,  teremos  de  comprovar  se  esta  evolução  acentuada  da  paisagem  urbana,  este  pulsar  da  vila,  resultaram  do  crescimento  e  do  amadurecimento de Caminha enquanto comunidade.   Após uma primeira ocupação na margem esquerda do rio Coura, “... onde  ainda hoje chamam de Fonte da Vila”58, a comunidade caminhense deslocou‐se  para a área habitacional actual, “... quase toda areia, e nela estão fundados os  seus  maiores  edifícios”59.  Claramente,  assiste‐se  à  transição  da  população,  de  uma zona de interior, para uma localização estrategicamente bem mais perto da  foz  do  rio  Minho  e  de  mais  fácil  acesso  ao  mar.  Com  o  desenvolvimento  da  edificação,  nomeadamente  com  a  construção  da  muralha,  começam  a  desenhar‐se  espaços  socioprofissionais  bem  delimitados.  Dentro  de  muros  habitam  os  mercadores,  as  pessoas  honradas,  os  privilegiados,  e,  de  forma  geral, uma burguesia que se distribui pelos dois principais eixos intra‐muros: a  Rua  da  Ribeira  e  a  Rua  dos  Meios.  O  rol  de  1513  refere  que  nesta  última  se  encontrava “... o melhor terço da vila”, onde as melhores casas, edificadas por  burgueses,  e  dentro  do  mimetismo  dos  arquétipos  sociais,  copiavam  as  características exteriores da casa nobre dos Pitas60. Informa‐nos ainda que pelas  ruas da Ribeira e do Vau, na sua maior parte habitada por pescadores, se erguia  o  mesmo  número  de  fogos.  Note‐se,  porém,  que  a  Rua  do  Vau,  ainda  que  usufruindo  do  estatuto  de  uma  das  principais  ruas  da  vila,  se  situa  já  fora  das  muralhas. Em termos socioprofissionais ela constitui, juntamente com a Rua da  Misericórdia  e  a  Rua  dos  Pescadores  (na  realidade  prolongamentos  da  Rua  do  Vau), o principal espaço de acção dos homens do mar. Carvalho da Costa chega 

                                                             58

 B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fls. 55 a 63v.   B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fls. 55 a 63v. 60  CRUZ, 1988: 91  59

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mesmo a considerar um eixo único: “... dentro della há só huma rua comprida,  que chamão da Misericórdia, em que vivem os homens do mar”61.  As alterações que o rio Coura sofreu, nomeadamente a diminuição da sua  largura  ao  desembocar  no  rio  Minho62,  tiveram  notórias  consequências  no  espaço ocupado pela vila. Com efeito, a Rua do Vau “... tem o nome de Vau por  se  passar  ali  em  o  rio  coura,  na  vazante  da  maré”63.  Pinho  Leal  confirma  que  “Caminha,  ainda  no  século  XVI,  formava  uma  península  triangular,  e  muito  menos  espaçosa  do  que  actualmente;  porém  o  Coura  (que  então  passava  por  onde  hoje  é  a  praça  do  Terreiro)  foi‐se  obstruindo  na  sua  margem  esquerda  e  invadindo os pântanos da margem oposta, dando assim mais amplitude à vila, e  à  península  sobre  que  ela  está  fundada,  a  configuração  quadrangular  que  actualmente tem”64.  O mapa da figura 17 projecta essa distribuição populacional, bem como  as projecções no espaço da sua evolução diacrónica. 

                                                             61

 COSTA, 1868‐1869: 246   Sugerida não só pela documentação escrita, mas também pela cartografia. Ver mapa da fig. 12.  63  B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fls. 55 a 63v. 64  LEAL, Pinho, 1874: 54‐57  62

55

  Fig. 17 – Caminha: presença de mercadores e pescadores no séc. XVI. Projecção  sobre o actual espaço urbano. 

56

 “Nos portos de navegação e comércio, a comunidade marítima tende a  cindir‐se  em  duas:  os  estratos  superiores  tendem  a  diluir‐se  e  a  procurar  integrar‐se  em  espaços  topográficos  de  elite,  convivendo  com  os  restantes  grupos  da  burguesia  artesanal  e  mercantil,  com  o  oficialato  e  mesmo  com  os  estratos  nobres  e  nobilitados,  buscando  nessa  centralidade  um  meio  de  prestígio e promoção social, enquanto os estratos inferiores tendem a delimitar‐ se  em  bairros  mais  concêntricos  e  excêntricos  em  relação  ao  núcleo  urbano,  convivendo, frequentes vezes, com os bairros de pescadores”65. Uma análise da  distribuição  da  população  pela  vila,  assim  como  da  sua  organização  dentro  do  espaço  urbano,  explanada  no  mapa  da  fig.  17,  permite‐nos  integrar  Caminha  neste conjunto de pressupostos.  Relativamente  à  construção  de  infraestruturas  portuárias,  sabemos  apenas que em 1612 se principiou a fazer o cais da vila, situado no fim da rua do  Vau, para a qual obra se fintou toda a comarca por provisão régia66. No entanto,  as  consequências  das alterações geomorfológicas não se  fizeram esperar, pelo  que a porta da muralha “... que em outro tempo foi de grande serventia para os  navios  que  junto  a  ela  estavam  no  rio  Minho  com  um  cais  muito  grande  de  cantaria; porém como as areias tudo cobriram, se perdeu o uso desta porta”67.  Apesar  de  a  referência  datar  do  século  XVII,  temos  de  considerar  a  forte  possibilidade  de  o  cais  de  cantaria  ter  sido  construído  sobre  um  ancoradouro  que desempenhava desde sempre estas funções. Por confirmar ficam as ideias  de o cais do Vau ser um cais essencialmente piscatório, no seguimento da zona  de acção dos pescadores, assim como a de o ancoradouro, localizado no final da  Rua  Areinho  do  Ouro,  estar  mais  vocacionado  para  a  actividade  comercial.  Explica‐se que o seu nome é “... Arinho do Ouro, porque antes destes muros ia  dar ao areal, que nesta terra se chama arinho, e se chamava de ouro tanta era a 

                                                             65

 POLÓNIA, 2007b   B.N. ‐ Reservados, Ms. 8750. MORAIS, Pe. Gonçalo da Rocha de ‐ Grandezas da Villa de Caminha, 1722.  67  COSTA, 1868‐1869: 246 66

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riqueza do comércio que aqui ouve em tempos passados, que aquela areia das  praias do nosso Minho, em que encalhavam as embarcações dos negociantes”68.  Um  pouco  dentro  desta  linha  de  estudo,  trabalhos  que  têm  sido  feitos  sobre alguns portos nacionais (como o Porto, Vila do Conde, Viana do Castelo e  Aveiro)  falam‐nos  também  de  espaços  que,  mais  ou  menos  estanques,  albergavam as comunidades marítimas. Não podemos, por isso mesmo, pôr de  lado a ideia da existência de uma delimitação sócio‐espacial em Caminha. Ainda  hoje, a Rua dos Pescadores69, continua a ser ocupada pelas típicas habitações de  pescadores,  o  que  aponta  para  uma  marca  socioprofissional  muito  forte  no  espaço urbano.  Os  estudos  que  se  fazem  sobre  as  vilas  mariñeiras  da  Galiza,  verificam  que  não  são  poucas  as  vilas  marítimas  que  testemunham  uma  tradicional  segregação  espacial  do  grupo  de  pescadores,  em  bairros  muitas  vezes  denominados de A Pescadería, A Mariña, A Ribeira; e que ainda hoje se tornam  passíveis de detectar, localizados, geralmente, fora de muralhas, e sempre bem  delimitados.  Segregação  espacial  que  se  reforçava  corporativamente  com  a  existência do próprio grémio ou confraria70. Em Pontevedra, a Moureira era um  arrabalde  marinheiro,  onde  se  vivia  da  pesca  na  ria,  da  exportação  e  da  construção de barcos71.  Conferindo  idêntica  distribuição  espacial  em  Caminha,  não  cremos,  porém,  poder  falar  de  "segregação",  até  pelas  próprias  características  dos  homens do mar desta comunidade, matéria a que voltaremos. 

                                                             68

 B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fls. 55 a 63v.    Na  realidade  a  rua  de  que  falamos  é  hoje  a  Rua  Benemérito  Joaquim  Rosas,  mas  o  topónimo  “Rua  dos  Pescadores” é o que continua a ser utilizado.  70  ROTA Y MONTER, 1996: 44  71  FILGUEIRA VALVERDE, 1996 69

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  3. Os Homens    “Dos salineiros aos pescadores, costeiros inicialmente e depois do mar  alto,  estabeleceu‐se  uma  gradação  que  corresponde  à  profundidade  e  à  constância da sua relação com o mar. (…) Pouco satisfeito por ser um local de  trabalho, ele apropria‐se de uma só vez de homens, mulheres e crianças que  dele vivem; talha‐lhes a vida, a mentalidade e os gestos; é um molde cultural.  Faz deles gentes do mar, ou seja, pessoas ‐ ou antes, grupos – que vivem do  mar, por ele e para ele.”1   

3.1. Quadro demográfico    Em  1406,  D.  João  I  determinava  que  Caminha,  por  ser  “...  muito  despovorada  e  minguada  de  gentes”,  se  tornasse  couto  de  homiziados  para  pescadores  e  marinheiros  de  todo  o  reino,  que  houvessem  praticado  crimes  graves. Encetava, desta forma, uma política de incentivo à fixação de população  numa  região  que,  por  ser  de  fronteira,  representava  uma  maior  preocupação  em  questões  defensivas.  Sucederam‐se  as  respectivas  confirmações  régias  a  esta  determinação,  porém,  ainda  nas  cortes  de  1439, Caminha  se  queixava  da  “... mingoa e desffalecimento” em que se encontrava a localidade, procurando  obter mais‐valias, como certas isenções fiscais sobre a prática da pesca2.   O  primeiro  recenseamento  populacional  realizado  no  século  XVI  para  o  espaço  em  estudo  data  de  1513,  e  abarca  todos  os  moradores  dos  lugares  dependentes da administração eclesiástica de Valença, entre o Minho e o Lima3.  Neste  rol  são  registados  216  fogos  na  vila  de  Caminha4.  A  fonte  informa‐nos  ainda que a população se distribuía por três ruas: a Rua dos Meios, onde está                                                               1

 JOURDIN, 1995:183   MORENO, 1989: 95‐96  3  Publicado por OLIVEIRA, 1976: 125‐165  4   O  rol  apresenta  o  número  de  fogos  distribuído  por  três  espaços:  dentro  de  muros,  arrabalde,  e  termo.  Considerando o objecto de estudo – a comunidade marítima – e a sua distribuição espacial, representada no mapa  da fig. 16, consideramos o espaço da vila como sendo o constituído pela área muralhada e o arrabalde.   2

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“...  o  melhor  terço  da  vila”,    a  Rua  da  Ribeira,  e  a  Rua  do  Vau,  pelas  quais  se  erguia o mesmo número de fogos5.  Como  interpretar  esta  estimativa  global  da  população  de  Caminha?  De  que forma ela nos ajuda a conhecer a sua comunidade marítima?  O numeramento de 15276 regista, para Caminha, 280 fogos, o que revela  um  aumento  de  64  fogos  num  espaço  de  14  anos.  Considerando  que  isto  se  traduz  numa  taxa  de  crescimento  anual  de  2%7,  podemos  equiparar  este  crescimento ao apresentado para outros espaços portuários circundantes, pelo  que  Caminha  apresenta  a  mesma  taxa  que  Vila  do  Conde  (2%  no  mesmo  intervalo  de  tempo8),  mas  não  atinge,  porém,  a  de  Viana  (6%  entre  15179  e  1523).  Quadro 1 ‐ População de alguns portos de Entre‐Douro‐e‐Minho em 1527/32  Localidades 

N.º Fogos Núcleo % de Mancebos 

Caminha 

280 

23,8 

Viana 

962 

19,7 

Esposende/ Fão 

272 

‐ 

V. Conde 

905 

27,4 

In POLÓNIA, 2007a: vol. I, 209 

                                                                       5

 OLIVEIRA, 1976: 125‐165   DIAS, 1996: 45‐46  7  A fórmula de cálculo utilizada foi a indicada em POLÓNIA, 1999  8  POLÓNIA, 2007a: vol. I, 212  9  Para 1517 a Finta para a Ponte do Rio Guadiana regista 677 fogos em Viana do Castelo. In MOREIRA, 1984: 76  6

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  Fig. 18 ‐ Representação cartográfica da população do norte de Portugal,  segundo o numeramento de 1527/32.    Fonte: Adaptado do mapa “Sede das unidades administrativas com mais de 100  moradores (1527‐1532)”. In GALEGO, 1986: 35, figura 7 

  Apesar  do crescimento  verificado,  é  bem  evidente  a pequena dimensão  populacional de Caminha face a portos como Viana do Castelo e Vila do Conde.  Na verdade, Caminha está no mesmo patamar que Esposende e Fão, quanto a  número de habitantes. “O crescimento portuário tende a ser muito mais nítido  em espaços marítimos voltados para o grande comércio europeu e mundial, do  que  para  a  pesca,  por  exemplo,  sendo  esta  geralmente  responsável  por  uma  fixação  estável  de  populações,  mas  não  por  projecções  e  crescimentos  notórios”10. Esta explicação talvez se aplique a Caminha, já que, numa primeira  leitura, Caminha, nos inícios do século XVI, apresenta‐se como uma comunidade  mais virada para o sector piscícola, e por isso com um peso populacional mais  próximo  do  de  Esposende  e  Fão11,  do  que  para  as  grandes  actividades  comerciais, e por isso mais distante do de Viana e Vila do Conde.   Mas de que forma se estrutura a população de Caminha? Se atendermos  à  percentagem  de  mancebos12,  a  população  em  estudo  aproxima‐se  da  realidade de Vila do Conde, chegando mesmo a superar Viana, em número de                                                               10

 POLÓNIA, 2007b   Sobre estes portos ver SOARES, 1989 12  De acordo com a definição do documento: "... mancebos solteiros de dezoyto pera trinta annos que vyvem com  seus pays e ammos...". Numeramento de 1527‐1532, publ. in FREIRE, 1905: 249  11

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mancebos.  Se  considerarmos  que  “a  maioria  destes  mancebos  seria  atraída  à  vila  por  actividades  de  navegação  ou  por  ofícios  mecânicos  de  apoio  às  mesmas”13,  e  que  a  sua  presença  é  um  indicador  de  forte  mobilidade  geográfica,  encontramos  na  comunidade  caminhense  dinâmicas  demográficas  próprias  de  centros  portuários.  Outro  indicador  que  nos  coloca  perante  uma  população  de  forte  actividade  marítima  é  o  elevado  número  de  viúvas14.  Registam‐se  33  viúvas  numa  população  aproximada  de  1120  indivíduos15,  ou  seja  2,95%,  ao  passo  que  em  Viana  se  apontam  101  viúvas  numa  população  estimada de 3848, ou seja, 2,62%. Comparando com uma vila de interior, para o  ano  de  1513,  aferiu‐se  uma  diferença  significante  entre  o  nº  de  viúvas  de  Caminha (15,27%) e de Valença (9,45%)16. Trata‐se, por certo, de uma taxa de  viuvez resultante do elevado risco que o trabalho do homem do mar acarreta,  quer  se  trate  de  pesca,  marinhagem  ou  navegação.  Uma  comparação  entre  Viana e Caminha torna bastante claro que ambas as populações têm a mesma  percentagem de viúvas, pelo que a comunidade caminhense, apesar de ter um  menor  peso  demográfico  que  Viana,  apresenta  os  mesmos  indicadores  de  vitalidade portuária: elevado número de mancebos e de viúvas.    

3.2. A comunidade marítima    Caracterizar um determinado ofício pressupõe o reconhecimento de um  grupo homogéneo de indivíduos que se inserem num mesmo universo laboral,  sujeitos  aos  mesmos  ritmos  de  trabalho,  possuidores  dos  mesmos  meios  de  produção e conhecedores das mesmas tecnologias. Neste sentido, tentar definir  o ofício daqueles que vivem dos recursos marítimos ou fluviais, espartilhando‐os  em categorias estanques, é tarefa inglória, e infrutífera, pela forma como limita                                                               13

 POLÓNIA, 2007a: vol. I, 236   POLÓNIA, 2005b  15  Para o cálculo utilizamos coeficiente multiplicativo 4, que se nos afigura adequado para este espaço e tempo. Ver  metodologia utilizada por POLÓNIA, 2007a: vol. I, 209  16  OLIVEIRA, 1972: 131  14

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as  potencialidades  do  estudo  deste  tipo  de  comunidades.  A  sua  pluralidade  e  heterogeneidade,  resultantes  de  diferentes  contextos  temporais  e  espaciais,  torna  esta  tarefa  complexa,  mas  acima  de  tudo  enriquecedora.  Uma  série  de  variantes,  como  a  sazonalidade  e  a  precariedade  laboral,  a  intervenção  de  agentes  externos  à  comunidade,  a  sua  mobilidade,  ou  os  próprios  ritmos  ecológicos  das  espécies  piscícolas  têm  de  ser  atendidas  para  permitir  uma  correcta aproximação aos homens do mar.  Esta ideia sobre a complexidade das comunidades marítimas não é uma  novidade.  É  ponto  assente  que  os  principais  núcleos  piscatórios  achavam‐se  junto  às  embocaduras  dos  grandes  rios,  onde  formigavam  os  pescadores,  dedicando‐se  por  vezes  à  pesca  nos  próprios  rios  e  barras,  e  indo  em  outras  ocasiões  tentá‐la  ao  mar  alto.  Reconhece‐se  mesmo  que  o  próprio  tipo  de  embarcações utilizadas pode ser uma forma de distinção de ocupações17.  Mesmo  alguns  estudos  que  se  ocupam  das  condições  de  arranque  da  expansão  marítima  portuguesa  se  vêm  obrigados  a  reconhecer  que  grupos  de  pescadores e de marinheiros, inicialmente relacionados entre si, ligados à foz de  um  rio,  e  responsáveis  pela  formação  de  um  porto  no  qual  baseavam  a  sua  acção,  foram  também  agentes  responsáveis  pela  evolução  da  projecção  marítima  e  mesmo  comercial  do  reino.  A  eles  se  deveu,  em  grande  medida,  a  génese  e  evolução  de  um  processo  de  expansão  ultramarina,  plenamente  arreigada nos séculos XV e XVI, pelos contactos com os lugares‐chave do tráfico  marítimo europeu18. Ora, se é claro que os pescadores e marinheiros estiveram  relacionados entre si, já não é tão clara a forma como estes se articularam: será  que  o  processo  da  expansão  os  remeteu  para  lugares  bem  distintos,  ou  os  caminhos  de  pescadores  e  marinheiros  cruzaram‐se  sempre?  A  dificuldade  deste estudo pode ser comprovada pela diversidade de termos com que estes  homens  são  designados:  pescador,  homem  do  mar,  mareante,  navegante,                                                               17 18

 ESPINOSA, 1972: 153   BARROS, 2004b

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marinheiro,  para  além  daqueles  que  dispõem  de  um  saber  técnico  institucionalmente  reconhecido  e  creditado:  arrais,  mestres,  contramestres,  guardiães, pilotos e sotapilotos.   Uma  metodologia  de  análise  pressupõe  a  existência  de  categorias.  No  entanto, demonstradas e verificadas as limitações recorrentes da categorização  dos homens do mar e não querendo impor artificialismos, optámos por analisar  as  designações  com  que  os  homens  do  mar  se  apresentam  na  documentação.  Ou  seja,  a  forma  como  se  auto‐denominam  ou  como  outros  os  reconhecem.  Nesta  perspectiva,  ao  considerarmos  as  confrarias  dos  homens  do  mar  como  uma projecção da consciência da sua identidade, do ponto de vista social19, elas  tornam‐se espaços privilegiados de auto‐representação do grupo. Em Caminha,  a  Confraria  do  Bom  Jesus  dos  Mareantes  é  reconhecida  oficialmente  por  bula  papal  no  ano  de  1547.  O  documento  refere  que,  perante  a  insuficiência  do  hospital  existente  e  das  iniciativas  dos  “navegadores  e  pescadores”  antecedentes,  se  instituiu  uma  confraria  de  “pescadores  e  náuticos”.  Logo  à  partida é possível identificar um grupo relativamente organizado de homens do  mar, em torno de um hospital, que se constitui numa associação confraternal,  obtendo o reconhecimento de uma instituição eclesiástica externa20. É também  de  enorme  relevância  a  identificação  de  dois  sub‐grupos:  pescadores  e  navegadores/naúticos, mostrando a consciência da heterogeneidade dos ofícios  do  mar,  e,  consequentemente,  do  grupo  de  homens  que  assim  se  faz  representar.  Os  estatutos  da  Confraria  dizem  ser  esta  destinada  aos  “...  mestres  de  navios  e  pinaças  e  os  mais  senhorios  de  todo  o  barco  de  pescaria  e  pasajes  e  barcas  de  carreto,  com  todos  os  mais  marinheiros,  pilotos,  gorometes  e                                                               19

 POLÓNIA, 2007b    Não  temos  conhecimento  de  qualquer  outro  documento  de  reconhecimento  oficial  régio.  A  consulta  da  documentação  das  Chancelarias  apenas  revelou  um  alvará  de  6  de  Junho  de  1571,  no  qual  é  concedido  aos  mordomos  e  confrades  da  Confraria  de  Mareantes  da  vila  de  Caminha,  o  usufruto,  por  7/8  anos,  dos  privilégios  contidos numa petição por eles remetida ao rei (T.T. – Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, lv. 7, fl.  278). A ausência de documentação municipal também não nos permitiu aferir acerca do estatuto da Confraria junto  da vereação de Caminha.  20

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serventes  trabalhadores,  assi  no  oficio  de  marear,  como  no  oficio  de  toda  a  pescaria”21. Como conclusões de uma primeira leitura poderíamos apontar:  ‐ a presença dos ofícios mais nobres da actividade marítima: marinheiros,  pilotos e mestres de navio;  ‐  uma  hierarquização  de  ofícios:  desde  os  mestres  aos  serventes  trabalhadores;  ‐ uma dualidade ocupacional: “... assi no oficio de marear, como no oficio  de toda a pescaria”;  ‐ uma dualidade instrumental: “barco de pescaria e barcas de carreto”;  ‐ o reconhecimento da pesca como um ofício distinto e específico.  Esta expressão introdutória transmite, por um lado, uma organização dos  homens  do  mar,  em  termos  hierárquico/funcionais  (proprietários/  trabalhadores), e por outro lado, uma divisão do trabalho em termos de ofício  (ofício  de  marear/ofício  de  pescaria).  Ela  não  é,  porém,  suficientemente  explícita quanto à correspondente divisão dos homens do mar por esses ofícios,  ao  colocá‐los  “... assi no  oficio de marear, como  no  oficio  de  toda a pescaria”.  Será  que  a  confusão  e  a  promiscuidade  entre  ofícios  que  a  documentação  transmite  é  apenas  o  reflexo  da  realidade  vivida  e  estamos  em  busca  de  uma  separação que não existia, de facto?  Quando  procuramos  conhecer  a  formação  de  confrarias  de  mareantes  noutras vilas piscatórias, verificámos que a Confraria de Mareantes de Viana do  Castelo  segue  a  mesma  invocação  e  foi  formada  à  semelhança  do  que  os  vianenses  haviam  visto  em  Lisboa  e  no  Porto22.  Neste  pressuposto,  sendo  a  confraria  de  Viana  anterior  à  de  Caminha  (1506),  é  natural  que  tenha  transmitido  a  esta,  para  além  da  invocação,  a  estrutura  dos  estatutos  e  da  própria  organização  (da  mesma  forma  que  Viana  copiara  o  que  tinha  visto  noutros  locais).  Assim,  mesmo  que  a  documentação  da  Confraria  esclarecesse                                                               21 22

 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl.9v.   MOREIRA, 1995: 97

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claramente a actividade dos seus elementos, ficaríamos sem saber se transmitia  uma realidade ou um mimetismo.   A  discussão  da  interferência  de  contextos  locais  na  constituição  das  confrarias é pertinente, pois, por exemplo, a Confraria de S. Pedro de Miragaia,  de  origem  medieval,  era  composta  por  pilotos,  mestres  de  barcos  e  marinheiros,  mas  também  cordoeiros,  calafates  e  carpinteiros.  O  estudo  desta  Confraria  permitiu  identificar  esta  diversidade  de  ofícios,  claramente  ligada  à  dimensão  portuária  do  Porto.  Curiosamente,  os  pescadores  não  seriam  integrados como  confrades,  e  a questão  da  designação  de  mareante  mantém‐ se: nos finais do séc. XV os administradores da Confraria pediram à Câmara que  lançasse  um  pregão  convocando  os  mareantes  de  Miragaia  a  participar  na  procissão  do  Corpo  de  Deus.  Referem  a  presença,  no desfile  da  Confraria, dos  pescadores  juntamente  com  os  mestres,  pilotos  e  marinheiros.  Na  análise  do  autor  deste  estudo,  trata‐se  de  uma  das  primeiras  referências,  na  documentação da confraria, à ligação entre os pescadores e os mareantes23.  Se  os  estatutos  da  Confraria  dos  Mareantes  de  Caminha  demonstram  claras  semelhanças  com  os  de  outras  confrarias,  comprometendo  assim  a  percepção  de  quaisquer  especificidades  que  procurássemos  na  nossa  análise,  tornou‐se  necessária  uma  recolha  que  abarcasse  a  restante  documentação.  Apontemos algumas considerações resultantes desta recolha:  ‐ O termo identificativo mais utilizado é o de mareante. Esta designação é  recorrente ao longo de toda a documentação da Confraria;  ‐  O  sentido  de  identidade  do  grupo  está  bem  patente,  pela  exclusão  de  todos os que não são homens do mar24;  ‐ Uma hierarquia dentro do próprio grupo, na qual são incluídos os que  “... trazem ração ou ganham marinhagem”25;                                                               23

 BARROS, 1991: 87      “...  para  rigimento  desta  Comfraria  nem  para  tomar  conta  de  nenhum  gasto,  nem  cousa  que  a  Comfraria  pertença seja emleyto, nem chamado, homem de nenhuma calidade senão sosmente os mareantes”. A.C.B.J.M.C. ‐  Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 5.  24

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‐ A necessidade de assegurar, e incluir, os que estão ausentes ou morrem  fora da terra26, o que demonstra a familiaridade com situações de deslocações  para o exterior, o que concorda com o que comummente se afirma sobre esta  comunidade:  os  mareantes  revelam  uma  grande  mobilidade;  as  comunidades  marítimas  integram,  com  enorme  frequência,  elementos  vindos  de  fora,  nacionais e estrangeiros27.  Por último, sublinhe‐se a importância da utilização da expressão “... que  ganhão  suas  vidas  sobre  as  agoas  do  mar”28  para  identificar  a  globalidade  do  universo abrangido pela Confraria. O próprio grupo, na necessidade de abarcar  todos  os  seus  potenciais  elementos,  vê‐se  obrigado  a  utilizar  uma  expressão  englobante mas, por isso mesmo, pouco precisa.  Outra  ocorrência  paradigmática  está  projectada  na  petição  que  os  pescadores de Caminha fazem ao Arcebispo de Braga, em 1621, para que lhes  permita pescar em dias santos e feriados. Neste documento, inserto no Livro de  Acórdãos29,  quem  surge  a  fazer  o  pedido  são  os  pescadores,  não  se  mencionando a Confraria uma única vez (nem na petição, nem na resposta do  arcebispo).  Questiona‐se:  os  pescadores  fizeram‐se  representar  num  grupo  à  parte,  ou  identificaram‐se  de  tal  forma  com  a  Confraria  que  não  tiveram  necessidade de a referir?   Um outro espaço de sociabilidade destes homens, e onde eles se fazem  representar,  é  a  Misericórdia.  Analisando  a  documentação  da  Misericórdia  de  Caminha,  nomeadamente  os  Registos  dos  Irmãos  do  Cento  que,  para  a                                                                                                                                                                                 25

  “...  não  saira  a  cruz  da  sancta  comfraria  com  criado  nem  filho  de  comfrade  sosmente  saira  com  as  cabesseiras  excepto se o filho do comfrade for homem que traga reçam ou ganhe marinhagem a qual mandamos que saia a elle  a crux e cera e se digam as missas que se mandão dizer pellos comfrades que sam cabesseiras”. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro  de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6.  26  “... qualquer comfrade desta sancta comfraria que acertar de morrer fora da terra (...) assi os comfrades absentes  como presentes vibos e defuntos queremos que poçam gozar e serem participantes dos beneficios e bens espirituaes  e temporaes desta sancta comfraria”. A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl.  6.  27  BARROS, 2004b  28  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 10.  29  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13. 

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cronologia  em  estudo,  existem  para  cinco  anos  (1560,  1561,  1567,  1573  e  1583)30,  procedemos  a  um  levantamento  semelhante  ao  da  Confraria,  recolhendo todas as designações de ofícios relacionados com o mar. Apesar das  referências  laborais  serem  muito  escassas  obtivemos  alguns  resultados,  sendo  que a referência mais utilizada é a de mareante. No ano de 1560 encontramos  duas designações de marinheiro, que se reduzem a uma nos anos seguintes.  O ano de 1560 é o mais rico em designações laborais. Se considerarmos  uma hierarquia entre ofícios, pelo menos a nível de prestígio social, parece ser  também o ano no qual os homens do mar se fazem identificar pela designação  laboral  de  maior  nível.  Uma  novidade  é  a  auto‐designação  de  marinheiro  que  não  tínhamos  encontrado  na  Confraria.  Esta  designação  surge  a  par  de  mareante,  pelo  que  sugere  uma  distinção  clara  de  ocupações.  No  entanto,  o  facto  de  um  homem  do  mar  se  auto‐designar  de  diferentes  formas  pode  ter  interpretações distintas: ou a complementaridade das ocupações é tal que não  existe uma diferenciação clara entre elas, ou então, elas são bem distintas, e os  indivíduos integram‐nas, como ocupações distintas, ou como graus distintos, ao  longo da sua carreira.  Alargando  a  nossa  pesquisa  documental,  à  análise  do  numeramento  de  1527,  tentando  reunir  mais  algumas  referências  de  carácter  ocupacional,  nele  se  refere  que  na  vila  de  Caminha  e  arrabaldes  viviam  “...  por  escudeiros,  mercadores,  mareantes  com  alguns  clérigos  e  viúvas  280  moradores”31.  Nas  freguesias  vizinhas  da  vila  apenas  são  referidos  lavradores.  Mais  do  que  o  número,  interessa‐nos  a  clara  indicação  da  existência  de  mareantes,  que  constitui a única referência que é feita em toda a comarca a esta actividade32.  

                                                             30

 A.H.M.C. – Livros de receita e despesa, 1551 a 1594.   DIAS, 1996: 45‐46 32  GALEGO, 1986  31

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Esta  confusão  entre  pescador,  mareante  e  marinheiro,  não  é  um  exclusivo nacional33. Todavia, na Galiza, dentro da classe de pescadores, sempre  se  diferenciou  marinheiro  (mariñeiro)  de  pescador.  Pescador  é  o  que  trabalha  com linha, o que requer mais conhecimento do mar e mãos hábeis para o ofício.  Teria que ser mais hábil que o que trabalha com aparelhos, embora recebesse  menos rendimentos34. Na Galiza medieval e moderna, os mareantes são, não os  homens  do  mar  em  geral,  como  no  resto  de  Castela,  mas  os  pescadores  especializados  na  captura  das  espécies  "mercantis",  as  que  vão  ter  valor  comercial:  a  sardinha,  a  pescada  e  o  congro.  Têm  uma  forte  organização  colectiva para a achega financeira, co‐propriedade das imensas e custosas artes  de  pesca,  apetrecho  dos  barcos  e  distribuição  das  tarefas  administrativas.  Os  pescadores entram numa categoria inferior, não conhecendo uma organização  gremial  própria.  São  particulares  ‐  independentes  ou  vassalos  ‐  que  operam  associados  em  pequenos  grupos,  geralmente  familiares,  e  frequentemente  sozinhos,  com  barco  ou  a  partir  de  terra.  A  sua  capacidade  de  captura  é  tão  reduzida que aproveitam um grande raio de acção, sem que constituam ameaça  aos  mareantes.  As  suas  artes  de  pesca  são  singelas:  a  linha,  o  palangre  e  o  tresmalho.  Pescam  congro  e  pescada  que  vendem  frescos  ou  passam‐nos  aos  mareantes  para  a  sua  redistribuição;  pescam  polvos,  e  em  geral  todo  o  peixe  fresco de rocha, que se consome nos mercados locais35. Existe como que uma  distinção empírica entre mariñeiro e mareante, dedicados a fainas de pesca em  grande  escala,  com  artes  que  requerem  uma  forte  organização  de  equipa  e  agrupados  em  confrarias  bem  diferenciadas  das  dos  mariñeiros,  ainda  que  muito  vinculadas  entre  si:  a  do  Corpo  Santo  em  Pontevedra,  S.  Andrés  em  La  Coruna, S. Nicolás de Noya, etc 36. 

                                                             33

 Sobre este tema ver o levantamento das diferentes designações para os homens do mar na Galiza e portos do  norte de Portugal feito por CALO LOURIDO, 2003: 19‐42  34  CALO LOURIDO, 1996: 22  35  FERREIRA PRIEGUE, 1998: 66  36  FERREIRA PRIEGUE, 1988: 339 

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Esclarecer  a  questão  da  sazonalidade  do  trabalho  é  também  essencial  neste  tipo  de  investigação.  A  pesca  seria  exercida  em  exclusividade,  ou  seria  insuficiente  para  o  auto‐sustento,  tendo  o  pescador  caminhense de  recorrer  a  outras  formas  de  rendimento?  A  resposta  a  esta  questão  terá  de  passar  pelo  conhecimento  dos  espaços  de  acção  dos  pescadores  de  Caminha,  assim  como  das  próprias  espécies  capturadas.  De  um  modo  geral,  o  pescador  fluvial  é  um  pescador  ocasional,  porque  as  características  do  ecossistema  em  causa  possibilitam‐lhe  ser  pescador  de  mar,  barqueiro,  trabalhador  da  terra  (agricultor,  vendeiro,  etc.)37.  Carminda  Cavaco  concluiu,  para  uma  cronologia  recente,  que  Caminha  integrou  sempre  mais  um  núcleo  de  pescadores  das  águas  salobras  da  secção  vestibular  do  Minho  do  que  de  pescadores  fluviais:  aquelas  oferecem  solhas;  o  rio,  espécies  raras  e  valiosas  mas  de  curta  permanência. Ainda neste sentido, Baldaque da Silva considerou a pesca fluvial  do Minho mais rentável do que o trabalho dos campos para a população do lado  português,  pelo  que  os  proprietários  rurais  abandonavam‐nos  ao  cuidado  de  jornaleiros no tempo das lampreias, salmões e sáveis. Fora desta temporada as  outras  espécies  atraíam  muitos  pescadores  profissionais  mas  cujos  ganhos  encontravam  complemento  na  agricultura  e  pecuária:  uns  possuíam  barcos,  outros  pescavam  a  partir  das  margens;  e,  sobretudo  a  montante  de  Valença,  com pesqueiras fixas38.   Para  a  caracterização  de  um  grupo  e  para  a  percepção  da  sua  eventual  especificidade/identidade  no  seio  de  uma  comunidade  mais  vasta  importa  também identificar comportamentos que decorrem da tentativa de defesa dos  seus  interesses,  mas  que  acabam  por  implicar  formas  de  exclusão  da  restante  comunidade. Ou seja, importa “averiguar até que ponto uma específica vivência  do  grupo,  decorrente  da  partilha  de  quotidianos  profissionais,  se  projecta,  ou  não,  em  experiências  familiares  e  sociais  concretas  que  diferenciem  estes  grupos  da  restante  comunidade,  conferindo‐lhes  um  sentido  de                                                               37 38

 AMORIM, MADUREIRA, 2001: 37   CAVACO, 1973: 33 e 35 

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individualidade”39. Para esta análise parece‐nos pertinente discutir a questão do  não  cumprimento  do  preceito  dominical  por  parte  dos  pescadores,  um  ponto  bastante  recorrente  no  estudo  das  comunidades  marítimas.  Em  Caminha,  a  confraria  resolve  esta  questão  estabelecendo  uma  missa  duas  horas  antes  da  manhã, fazendo tanger os sinos para chamar os mareantes40. Ao fazê‐lo, define  uma vivência, neste caso religiosa, exclusiva do grupo. Em paralelo, um acórdão  feito  pelos  mareantes  em  1630  proíbe  a  utilização  de  caldeiras  de  encascar  alugadas  a  “...  pessoas  que  não  erão  do  mar”41,  mostrando  claramente  que,  para  defesa  dos  seus  interesses,  a  confraria  segrega  todos  aqueles  que  não  inserem o grupo.  A questão da identidade ocupacional dos “... que ganhão suas vidas sobre  as agoas do mar” está bem longe de se esgotar nas considerações que fizemos  ao  longo  deste  ponto.  Na  verdade,  ela  está  presente  ao  longo  de  toda  a  dissertação, pelo que irá ficando um pouco mais clara, pelo menos no que toca  à  comunidade  de  Caminha,  à  medida  que  esclarecermos  questões  como:  as  tipologias  de  embarcações;  os  espaços  de  acção;  os  aparelhos  de  pesca  utilizados;  as  espécies  de  peixe  capturadas;  as  formas  de  organização;  a  sazonalidade do trabalho; os mercados de escoamento dos produtos.  Uma coisa temos, porém, como certa: a comunidade dos homens do mar  de Caminha é identificada como uma das mais significativas dessa vila marítima;  tem  organização  corporativa  própria  e  revela  alguns  indicadores  de  individualidade,  que  se  manifestam,  inclusive,  na  sua  distribuição/organização  espacial. Outra coisa não sabemos, por certo: qual a efectiva representatividade  desta comunidade na globalidade da sociedade e da estrutura socioprofissional  da  vila  de  Caminha,  questões  inviabilizadas  pela  ausência  de  corpos  documentais imprescindíveis ao seu estudo.  

                                                             39

 POLÓNIA, 2007b   A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9.  41  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 17. 40

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4. As actividades    Apresentados  o  espaço  e  os  homens,  centremo‐nos  nas  actividades  económicas  de  que  estes  são  actores,  bem  como  nos  instrumentos  e  nas  estratégias que as viabilizam.            4.1. Pesca    Seguiremos,  neste  capítulo,  uma  abordagem  clássica  da  actividade  pesqueira,  tendo  em  conta  os  parâmetros  convencionais  de  avaliação:  enquadramento  legal;  fiscalidade;  partilha  de  recursos;  espaços  de  acção;  regime de trabalho; meios de produção e índices de produção.    4.1.1. Enquadramento legal    Juridicamente,  em  Portugal,  o  mar  era  considerado  de  propriedade  e  gestão  do  Estado,  pelo  que,  sendo  as  águas  marítimas  e  fluviais  da  Coroa,  os  senhorios apenas teriam direito a dispor delas por expressa doação régia1. “Até  ao séc. XIX a pesca é vista como uma actividade exercida sobre um espaço que o  monarca cedia a quem lhe aprouvesse, na sequência da concepção patrimonial  do  Estado,  princípio  que  confundia  poder  político  e  propriedade.  A  pesca  é  encarada  pelo  monarca  como  uma  reserva  fiscal  significativa,  mas  raramente  contempla objectivos de exploração produtiva”2. Os próprios forais manuelinos  incidem  meramente  sobre  direitos  de  usufruto,  deixando  um  enorme  silêncio  quanto  à  regulamentação  de  actividades3.  Com  efeito,  o  poder  central  apenas  intervinha  quando  a  exploração  dos  domínios  aquáticos  estava  em  causa,  deixando para as entidades locais a regularização das actividades pesqueiras4.                                                               1

 AMORIM, POLÓNIA, 2001: 2   AMORIM, 2001: 124  3  AMORIM, 2003: 297  4  AMORIM, 2001: 129  2

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Que  legislação  podemos  esperar  encontrar,  neste  contexto,  sobre  esta  actividade?   O  quadro  que  em  seguida  apresentamos  resume  um  levantamento  de  regulação incidente sobre a actividade piscatória no período em estudo. Apesar  da  ausência  de  documentação  municipal,  tentamos  privilegiar  regulamentos  locais, abarcando também a Galiza, para uma análise comparativa.      

 

Quadro 2 – Actividade pesqueira – Enquadramento legal. Alguns exemplos  Tempo 

1545 

1549 

1549 

1565 

Origem do  regulamento 

Regulamento 

Privilégio arcebispal 

Autorização para marear e realizar  fainas de pesca em dias festivos a  benefício da redenção de cativos da  vila, ou de determinadas finalidades  piedosas5. 

Espaço 

Pontevedra 

Caminha 

Pontevedra 

Nos rios por  onde estes  reinos partem  com os de  Castela 

Direito consuetudinário   

Os pescadores de Caminha podem  pescar em dias de festa sem pagar  dízimos nem outra imposição7. 

Arcebispo de Santiago 

Punições para os pescadores que  pescam nos limites da vila,  desrespeitam os dias de festa e usam  aparelhos proibidos8. 

Extravagante de D.  Sebastião 

“Poderão os naturais deste reino pescar  livremente em todo o tempo, e por  qualquer maneira que seja, enquanto  correm entre os ditos reinos somente.  Porque seria desigualdade pescarem os  moradores de Castela e defender‐se aos  de Portugal.”9 

6

                                                             5

 FILGUEIRA VALVERDE, 1996   “... que de custume im memorial e passifica posse"  7  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 11v.  8  FILGUEIRA VALVERDE, 1946  9  Título XIV: Das caças e pescarias defesas. Lei III: Dos que caçam e pescam em tempos defesos. In LIÃO, 1569: 159‐ 161  6

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séc. XVI 

Pontevedra 

‐ 

Proibição de pescar sáveis e salmões no  rio Minho até onde chega o mar  salgado, fora dos meses de Março, Abril  e Maio10. 

1612 

Caminha 

Acórdão camarário 

Proibição de pescar nas camboas e  limites da Ínsua e de apanhar marisco  sem licença do Padre Guardião11. 

1621 

Caminha 

Legislação eclesiástica 

Autorização para pescarem livremente  em dias santos. 12 

Acórdão da Confraria do  Bom Jesus dos Mareantes 

Condenação dos mareantes ou  pescadores que forem lançar ou colher  redes ao mar ou rio em dias santos de  guarda ou domingos, que não seja o  peixe de corço. 13 

1670 

Caminha 

  Da legislação nacional é de referir uma lei que consagra uma excepção a  uma série de proibições extensivas a todo o reino, liberalizando‐se a pesca nos  rios de fronteira. A prática local, em Caminha, é ainda regulada por um direito  consuetudinário,  que  a  Confraria  se  esforça  por  ver  mantido,  reconhecido  e  respeitado.  No  que  se  refere  à  Galiza,  nosso  permanente  espaço  de  comparação,  sabe‐se  que  a  jurisdição  de  Pontevedra  estava  entregue  ao  Arcebispo  de  Santiago,  que  toma  algumas  iniciativas  no  sentido  de  regulamentar  essa  actividade.  A preocupação prevalecente é a de estipular calendários de pesca. Como  a interpretar?  Na  Galiza,  na  primeira  metade  do  séc.  XVI,  a  escassez  de  sardinha  provocou  mudanças  no  interior  das  confrarias,  no  sentido  de  uma  maior                                                               10

 FILGUEIRA VALVERDE, 1946   JOSÉ, AGUILAR, 1965: 100  12  "... comforme a disposiçam dos sagrados canones que principalmente prilita(sic) neste rio por estar entre Reynos  devisos". A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13.  13  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 22v. 11

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"protecção ecológica". Surgiu um controlo mais apertado das artes da pesca e  uma "semana inglesa" (insólita no mundo laboral), abandonando‐se a pesca aos  domingos e dias santos, não tanto para guardar o descanso dominical, mas para  salvaguardar  a  sardinha14.  Da  mesma  forma,  no  contexto  nacional  começam  a  surgir  restrições  a  certos  procedimentos  técnicos  que,  ao  fazerem  perigar  o  crescimento  ou  a  frequência  das  espécies,  desviavam  ou  impediam  o  crescimento das receitas do pescado15.    4.1.2. Enquadramento fiscal    A pesca como que obedecia à estrutura de exploração fundiária. O mar,  rios e lagoas não seriam mais do que uma extensão da terra e os direitos sobre  os seus rendimentos passíveis de arrendamento16. A lei é bem clara: “as águas  navegáveis  e  flutuáveis,  e  bem  assim  os  rios  perenes,  (...)  bem  como  as  marítimas” são do Estado; e sobre quem aproveita os seus recursos recairão as  respectivas imposições17.   Se  a  pesca  era  encarada  pelo  poder  central  como  uma  fonte  de  rendimentos  fiscais,  torna‐se  então  essencial  fazer  uma  identificação  das  imposições  a  que  os  pescadores  estavam  sujeitos,  para  uma  melhor  compreensão da sua realidade laboral.    Existente  desde  a  Idade  Média  em  todo  o  reino,  à  dízima  velha  (ou  mordomado), aplicada sobre a venda e saída de peixe por mar, junta‐se a dízima  nova,  criada  por  D.  João  I,  em  substituição  das  vintenas  do  mar  e  do  serviço  prestado  pelos  pescadores  na  defesa  da  costa.  Ao  nível  local,  os  forais  manuelinos  revelam  a  aplicação  de  dízimas  régias,  ora  reservadas,  ora  alienadas, e direitos consignados a senhorios, laicos e eclesiásticos18.                                                               14

 FERREIRA PRIEGUE, 1998: 68   AMORIM, 2003: 297  16  AMORIM, MADUREIRA, 2001: 7‐8  17  LOBÃO [1865] cit in AMORIM, 2001: 126‐127  18  AMORIM, 2001: 126‐127  15

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No  quadro  que  de  seguida  apresentamos,  relativo  aos  direitos  praticados  em  Caminha,  achamos  pertinente  juntar,  às  imposições  estabelecidas  pelo  poder  central,  através  do  foral,  uma  imposição  especificamente  local,  estabelecida  pela  Confraria  do  Mareantes.  Em  1789,  Lacerda  Lobo  regista  que  “...  chegando  ele  [o  pescador]  à  praia  com  o  seu  peixe  paga,  pelo  menos,  uma  quinta  parte  de  direitos  de    matança;  ficam  quatro, das quais duas são para os proprietários das redes; e das outras duas,  uma  é  sempre  para  contribuições  a  confrarias”19.  Relativamente  a  Caminha  especifica  que  os  pescadores  estavam  obrigados  a  entregar  de  todo  o  pescado, duas décimas partes, uma para a Casa do Infantado, e outra para o  Cabido de Braga20.     

                                                             19 20

 LOBO, 1991a: 271‐272   LOBO, 1991b: 311‐313 

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Quadro 3 – Fiscalidade sobre a pesca em Caminha 

Fonte 

Foral  manuelino1 

Data

Imposição 

1512 

Direito das  caravelas e  barcas de  pescado 

Recai sobre 

Quem paga 

cada caravela ou  pescadores  barca de  que não forem  pescado que  vizinhos ou  vier à vila com  privilegiados  pescadas frescas 

Quem  recebe 

Valor 

Isenções 

vila de  Caminha 

1 pescada 

pescadores vizinhos da vila de Caminha e  privilegiados 

Foral  manuelino 

1512 

Dízima nova 

todos os  pescadores que  vierem à vila 

pescadores 

rei 

‐ 

“... não pagam nada sobre o que matarem com  anzol, ou cana, nem com "vitoroooens com  redepée" ou com outras armadilhas, se for para seu  comer e não para vender; não pagam nada sobre o  marisco (excepto lagostas e santolas que entrarem  pela foz) 

Foral  manuelino 

1512 

Dízima velha 

‐ 

pescadores da  vila de  Caminha 

Igreja 

‐ 

‐ 

navio e  companha 

Confraria do  Bom Jesus  dos  Mareantes 

1 seixma  de todo o  frete que  ganharem 

‐ 

Confraria do  Bom Jesus  1549  dos  Mareantes2 

“Seixma” 

cada viagem  que fizerem 

                                                             1 2

 DIAS, 1969: 128‐130   A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 10.

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4.1.3. Partilha de recursos num espaço fronteira    A estes vectores juntemos ainda um outro, decorrente da especificidade  da  comunidade  alvo  de  estudo:  o  facto  de  constituir  um  espaço  fronteira,  obrigando‐a a partilhar o seu mais importante recurso ‐ o rio Minho, com uma  outra  nação.  Ao  estudo  das  relações  galaico‐minhotas  importam  não  só  questões  simples  de  fronteira,  mas  outras  questões  mais  complexas,  como  a  gestão  comum  de  um  espaço,  que  é  via  de  comunicação  e  fonte  dos  mais  variados recursos.   Em 1538, Mendo Afonso de Resende empreende uma viagem, por ordem  de D. João III, que o leva a percorrer toda a fronteira portuguesa, averiguando  sobre  a  definição  dos  seus  limites  e  possíveis  contendas  com  os  castelhanos.  Conhecendo  o  objectivo  desta  viagem,  compreende‐se  a  importância  das  descrições que dela resultaram para o nosso estudo.  Pela vereação caminhense é dito que no rio Minho existia uma ínsua, a  Ínsua  das  Canosas,  cuja  propriedade  era  dividida  por  galegos  e  portugueses.  Declara‐se que “... Caminha tem metade da posse sobre esta ínsua das Canosas,  no  que  respeita  às  pastagens,  ao  milho  e  às  pescarias,  sendo  a  outra  metade  posse da Galiza”1. Porém, esta partilha estava longe de ser pacífica, visto que os  oficiais se apressam a argumentar que “... se a Ínsua das Canosas fosse toda de  Portugal  renderia  muito,  por  se  juntarem  todos  os  direitos  da  pescaria  para  o  concelho”2.  Na  mesma  linha  de  pensamento,  os  moradores  mais  velhos,  chamados  a  depôr,  comprovam  ser  tudo  verdade,  e  acrescentam  que  tinham  ouvido os seus pais dizerem que a Ínsua das Canosas era toda do concelho de  Caminha,  e  que  há  45  anos  todas  as  pescarias  das  Canosas  eram  suas,  e,  que  desde  então,  como  os  de  Caminha  haviam  casado  os  seus  filhos  com  os  da  Galiza,  tinha‐se  divido  a  ínsua. Inclusivamente,  já tinha  havido  debate  e  brigas  entre os de Caminha e os de Tui sobre esta questão.                                                               1 2

 MORENO, 2003: 191‐194   MORENO, 2003: 191‐194

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Relativamente à pesca no rio, ambas as comunidades seguem os mesmos  procedimentos:  pescam  em  toda  a  sua  extensão,  apenas  com  o  cuidado  de  tirarem  as  suas  redes  nos  respectivos  termos  das  vilas,  para  não  pagarem  dízimas  ao  outro  país.  Até  nesta  questão,  que  parece  estar  resolvida,  existe  inconformidade, pelo que os vereadores “... disseram que na Torre do Tombo se  podia  achar  algum  foral  ou  escritura  que  declarasse  o  rio  Minho  como  sendo  todo de Portugal, porque os antigos assim o diziam”3.  Dado  o  interesse  desta  questão,  procuramos  conhecer  os  testemunhos  das outras vilas fronteiriças que viviam a mesma realidade.  Em  Vila  Nova  de  Cerveira  afirma‐se  que  era  ponto  assente  na  vila  ser  todo o Rio Minho de Portugal, embora admitissem que na prática “... esta vila  apenas tem em posse metade do rio”4.  A  população  de  Valença  do  Minho  parece  ser  a  mais  conformada,  admitindo que “... pescam na sua metade com as suas redes pacificamente e os  de Galiza fazem os mesmo sem haver contradição nenhuma”. Porém, parecem  conhecer  uma  outra  forma  de  divisão  do  espaço.  Em  Valença  não  falam  na  utilização de todo o rio, mas sim “... partindo sempre pelo meio do fio da água  metade do rio é do termo desta vila e a outra metade é da Galiza.”5.  Estas  “estranhas  relações  de  amor‐ódio”6  entre  ambas  as  margens  do  Minho,  tiveram  como  episódio  paradigmático  as  queixas  dos  pescadores  minhotos, nas cortes de 1439, contra a pressão fiscal da dízima nova, nas quais  ameaçavam  mudar‐se  para  a  Galiza  “...  por  induzimentos  e  tregeitos  que  lhes  fazem  os  de  Guarda  e  Baiona,  onde  se  não  pagam  tais  dízimas  e  imposições”  (argumentação de cujo teor meramente estratégico não duvidamos). 

                                                             3

 MORENO, 2003: 191‐194   MORENO, 2003: 185‐189  5  MORENO, 2003: 181‐183  6  ANDRADE, 1999 4

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Junte‐se a isto uma configuração costeira muito distinta, que faz a pesca  ser mais rica em águas galegas. As pescarias dos portugueses no sul da Galiza,  especialmente  na  ria  de  Vigo  e  no  Minho,  devem  remontar  a  muito  antes  da  separação política; os sectores da costa galega que não pertenciam às vilas mais  importantes  eram  frequentados,  desde  tempos  imemoriais,  por  pescadores  forasteiros,  em  busca  essencialmente  da  sardinha:  biscaínhos,  guipuscoanos,  cantábricos  e  portugueses7.  Não  se  fez  esperar  a  defesa  do  sector  pesqueiro  galego  face  a  estes  pescadores,  que,  tradicionalmente,  instalavam  as  suas  pesqueiras de tempada nas praias galegas, em operações massivas de pesca e  salga,  levando  o  peixe,  consumindo  o  sal  escasso  dos  alfolíns,  e  muitas  vezes,  recolhendo  os  camarões  pequenos,  o  gueldo,  para  usá‐lo  como  isco  noutras  zonas. É uma longa luta que se inicia no último quartel do século XIV e segue no  século  XVI8.  Em  1550  envolve  os  grande  centros  de  pesca,  como  Pontevedra,  Noya, Bayona, Coruna, Foz e Grove 9.  Os  conflitos  deveriam  surgir  a  vários  níveis,  visto  que  a  gente  de  entre  Lima e Minho “... são quase como galegos e da mesma linguagem e traje (...) é  gente belicosa e muito má de amanssar”10.    4.1.4. Espaços de acção    No  primeiro  capítulo  ficou  bem  demonstrada  a  importância  que  tem,  para  o  estudo  das  comunidades  marítimas,  o  conhecimento  dos  espaços  em  que estas se movem, quer se trate de espaços naturais, de espaços sociais, ou  de espaços de exercício ocupacional.   No que se refere à pesca, a documentação da Confraria do Bom Jesus dos  Mareantes de Caminha é elucidativa em relação àqueles em que a actividade se  exerce. Com efeito, uma das primeiras observações que podemos fazer é a de                                                               7

 FERREIRA PRIEGUE, 1988: 136   FERREIRA PRIEGUE, 1998: 69  9  FANGUEIRO, 1984  10  BARROS, 1919: 83  8

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que,  percorrendo  os  estatutos  e  ordenações  da  Confraria  (documentação  de  1549),  as  referências  ao  mar,  enquanto  espaço  de  pesca,  predominam  em  relação  às  registadas  para  o  rio.  Para  uma  melhor  compreensão  deste  facto,  convém não esquecer que Caminha se localiza na foz do Rio Minho, no qual as  marés marítimas se fazem sentir até 40 km do seu curso11; o que faz com que o  espaço  aquático  de  toda  a  costa  da  vila  e  termo  de  Caminha  seja  predominantemente de influência marítima.  Todavia, no exercício da actividade é possível identificar diferentes níveis  espaciais:  ‐ o rio12  ‐ a foz13  ‐ espaços de pesca partilhados com os da Galiza e Viana do Castelo (pesca  costeira?)14  ‐ espaços de costa longínqua ‐ a costa brasileira15  Analisando a descrição de 1538 da pesca no rio Minho, é referido que os  pescadores de Caminha pescavam em todo o rio com as suas redes, assim como  faziam  pescarias  na  Ínsua  das  Canosas16.  Por  sua  vez,  Frei  Pedro,  na  sua  memória sobre o Convento de Nossa Senhora da Ínsua, relata que “... o circuito  da  praia  está  todo  rodeado  de  camboas  ou  pesqueiras,  que  os  religiosos  começaram  a  fabricar  desde  os  primeiros  anos,  em  que  foi  notavelmente  abundante a pescaria, e depois se foi esterilizando cada vez mais”, e que “... não  foram também pouco molestos os pescadores da mesma vila, e das freguesias  vizinhas em virem repetidas vezes lançar as redes junto às nossas camboas, com                                                               11

 ALVES, 1996: 31   “... neste rio por estar entre Reynos devisos” (1621). A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus  dos Mareantes, fl. 13.  13  “... em a dita ribeyra do mar” (1549). A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes,  fl. 11v.  14  “... quantas vezes forem ao mar tantas vezes levem a dita rede para o bom Jezu e sendo cazo e acontesser virem  pescar onde pescão os da Galiza ou de Vianna onde quer que a dita pinaça for parar e desembarquar” e “... que por  o mar e por terra se ajuntarem por ser emporto donde tanta gente demutas partes acorrem” (1549). A.C.B.J.M.C. ‐  Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 8v e 11v.  15  “... por coanto os pescadores e mais irmãos da dita comfraria que vão pescar ao brasil e vahia de tos os santos e  mais partes” (1630). A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 16.  16  MORENO, 2003: 191‐194 12

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que se seguia notável detrimento à sua pescaria”17.  Um outro relato do cartório  deste convento especifica que: “Em o anno de mil e quinhentos e vinte e dous  sahirão  alguns  pescadores  de  Caminha  em  tres  barcos  ao  mar  a  pescaria  dos  congroz”18.  Os  diferentes  espaços  que  conseguimos  identificar  correspondem,  na  realidade, às várias áreas de pesca, verificáveis noutros portos nacionais, e que  reflectem  também  diferentes  momentos  históricos,  ainda  que  coexistam  no  século  XVI:  uma  pesca  fluvial,  que  dominou  na  época  medieval;  uma  pesca  costeira,  que  reúne  toda  a  exploração  das  espécies  piscícolas  do  mar,  que  se  pratica  nas  costas,  enseadas,  baías,  portos,  rios,  etc.,  onde  chegam  as  águas  salgadas;  uma  pesca  do  alto,  que  se  faz  em  paragens  longínquas  com  armamentos  especiais,  adequados  ao  ramo  a  que  se  destinam;  e  uma  pesca  longínqua, marcada exclusivamente pela pesca do bacalhau19.  Em  1789,  Lacerda  Lobo  descrevia  assim  a  pesca  no  Minho:  “...  a  maior  parte  dos  pescadores  do  Minho  fazem  as  suas  pescarias  nos  mares,  que  estão  em direitura dos lugares aonde vivem, e em pequena distância da terra; porém  alguns mais práticos e inteligentes divergem para os lados, indo procurar o peixe  a  sítios  mais  distantes,  aos  quais  dão  diversos  nomes”20.  Sobre  Caminha,  registou  que  tinha  100  pescadores  que  faziam  as  suas  pescarias  no  mar,  em  alturas  de  Verão  e  perto  de  terra  (até  2  léguas);  e  no  rio,  onde  pescavam  no  Inverno o sável, o salmão e a lampreia. No rio, pescavam todo o ano linguados,  solhas, tainhas e robalos.                                                                      17

 JOSÉ, AGUILAR, 1965: 100   A.D.B. – Livro dos Milagres do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. 1725.  19  AMORIM, MADUREIRA, 2001: 15  20  LOBO, 1991b: 311‐313  18

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4.1.5. Regime de trabalho    Não  é  fácil  caracterizar  o  regime  de  trabalho  de  um  pescador,  muito  menos  quando  se  trata  do  século  XVI,  e  muito  menos  ainda  quando  as  fontes  escasseiam.  Porém,  num  estudo  que  inclui  temas  laborais,  não  podíamos  ignorar questões tão essenciais como os horários e as remunerações. Este item,  mais do que conhecimento, transmite vontade de conhecer, pois as perguntas  são muitas, e as respostas rareiam.  Ainda assim, pela análise da documentação da Confraria dos Mareantes  de Caminha, encontramos algumas referências temporais, em particular a uma  questão essencial, e transversal a vários tempos e espaços: a guarda do preceito  dominical e dos dias santos. Diz‐se, num registo de 1549:  •

“... possam mandar e mandem deyxar as redes qualquer festa, ou 

domingo  que  lhes  paresser  bem  a  todos  os  mestres  das  pinaças  e  a  suas  companhas que as deixem no mar e as possão ir levantar ou domingo ou festa  pella  menhão  muyto  cedo”  e  “as  pescas  que  se  fazem  em  os  dias  domingos  e  festas sam para os ditos efeytos segundo pellos ditos estatutos se comtem”21.  A  centralidade  da  questão,  e  a  tensão  daí  decorrente  reflecte‐se  ainda  num registo de 1621 que explica:   •

“...  de  tempo  im  memorial  a  esta  parte  por  si  e  seus  anteseçores 

custumão  no  tempo  da  pescaria  de  sabeis,  e  lampreas  pescar  em  domingos  e  dias santos nas comjunçons das mares e para não serem obrigados a esperarem  pella missa do dia tem missas particulares que se dizem em tempo conviniente  de modo que nem perdem oubir missa nem a comjunção de sua pescaria e ora o  Reitor  desta  villa  procede  contra  elles  supplicantes  dizendo  que  não  podem  pescar nos dias santos que a igreja manda guardar por resam de travalho, o que  he em grave damno delles supplicantes e de seu remedio que todo depende da  pescaria  principalmente  nesta  monçam  de  sabes  e  lampreas  que  he  a  Sam                                                               21

 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fls. 9 e 11v. 

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Miguel  delles  supplicantes  e  de  que  se  aproveytão  para  todo  o  anno  com  que  remedeam suas familias e porque a dita pescaria ser de arivaçam acontesse em  hua mare dar mais proveyto que em mutas outras”22.  Nada transparece mais deste excerto do que a ditadura do peixe sobre o  pescador.  Falar  dos  horários  destes  homens  exige  conhecer  os  "horários"  dos  cardumes,  ou  seja,  os  calendários  das  diferentes  espécies  piscícolas.  Ficamos,  assim,  a  saber  que  as  alturas  de  “conjunções  de  marés”,  que  proporcionavam  “monções”  de  sáveis  e  lampreias  eram  o  S.  Miguel  deles,  ou  seja,  a  época  de  maior  produtividade;  e  que  por  a  pescaria  ser  de  “arribação”  nem  todas  as  marés  davam  o  mesmo  proveito.  Ora  aqui,  o  social  entra  em  conflito  com  o  natural, pois se todas as marés têm de ser aproveitadas, o pescador não pode  ficar retido pelo cumprimento do preceito dominical.   A  chamada  de  atenção  para  a  obrigação  de  todos  os  fiéis  cristãos  cumprirem o preceito canónico de guardar os domingos e dias santos surge em  numerosas  constituições  sinodais  portuguesas  (54ª  constituição  sinodal  de  Braga de 1477 e a 60ª do Porto de 1496). Porém, a abstenção de trabalhar aos  domingos, apesar de bem fundamentada na prática judaico‐cristã, nem sempre  se  torna  fácil  de  cumprir  para  determinados  ofícios,  sujeitos  a  um  tipo  de  calendários.  Com  efeito,  os  pescadores  são  talvez  o  único  grupo  profissional  cuja actividade está condicionada por ciclos naturais ‐ as marés ‐ e por hábitos  de  determinadas  espécies  (actividade  diurna  ou  nocturna)  e  migrações.  Estas  circunstâncias inevitáveis irão obrigar a diversas reflexões sobre o objectivo dos  dias  de  guarda  ou  sobre  a  abrangência  temporal  do  domingo  e  dias  santos,  servindo também de desculpa para as transgressões nesta matéria (como faltar  à  Santa  Missa  e  fazer  crer  ao  cura  que  se  assistiu  noutra  paróquia,  por  exemplo)23. 

                                                             22 23

 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13.   VENTURA, 1999: 435

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Os  mareantes  de  Caminha  não  são  excepção,  e  a  sua  necessidade  de  justificar a pesca nos dias de festa e domingos é uma constante no seu livro de  acórdãos.  Nas  ordenações  de  1549  estabelece‐se  que,  em  épocas  de  maior  necessidade,  diagnosticadas  pelos  seis  oficiais  da  Confraria  e  pelo  escrivão,  poderiam mandar deitar, a todos os mestres das pinaças e a suas companhas, as  redes  no  mar,  em  dias  de  festa  ou  domingo,  levantando‐as  pela  manhã  muito  cedo, revertendo esta pescaria para os gastos e coisas necessárias da Confraria.  A questão religiosa é resolvida mandando os mordomos dizer uma missa duas  horas antes da manhã, fazendo tanger os sinos para chamar os mareantes24.  Esta excepção é ainda mais alargada pela ordenação que estabelece que,  para  essas  épocas  de  necessidade,  além  dos  lanços  que  os  barcos  saveiros  costumam  deitar  para  a  Confraria  do  Bom  Jesus,  poderiam  mandar  deitar  as  redes em dias de festa e domingos de noite e de dia, assim aos sáveis, como às  lampreias, sardinha e mais peixes25. A salvaguarda desta clara transgressão aos  preceitos  canónicos  está  numa  ordenação  que  diz  que  “...  relativamente  às  pescarias que se fazem aos domingos e festas não sejam obrigados a obedecer  ao  pároco  da  vila,  nem  pagaram  pena  alguma,  pois  para  isso  têm  licença  na  bula apostólica”26.  Esta  questão  irá  prolongar‐se  ao  longo  do  tempo,  e  certamente  deverá  ter suscitado alguns atritos com os párocos locais. Com efeito, e apesar de todas  as  ressalvas  feitas  nas  suas  ordenações  (devidamente  autorizadas  por  licenças  eclesiásticas), em 1621, a Confraria do Bom Jesus reforça ainda este seu direito  fazendo uma petição ao Arcebispo de Braga. D. Afonso Furtado de Mendonça,  por despacho de 2 de Abril de 1621, concede‐lhes a liberdade para pescar aos  domingos ou dias de guarda “... em que acontece marés de monção desde que                                                               24

 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9.  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9 a 9v.  26  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9v a 10. A bula papal permite aos  confrades  que  “...  fiquem  em  posse  pacífica  de  nesses  dias  pescar  e  trazer  o  peixe  para  a  dita  cidade”  (Livro  de  Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fls. 6v a 8).  25

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tenham primeiro ouvido missa em qualquer igreja ou ermida”27.  Nesta petição,  um dos argumentos utilizados pelos pescadores é o de que: “... não pescando,  ficavam os do reino da Galiza que pescão de mistura com elles supplicantes com  o proveito todo, pois no dito reino não são proibidos de pescar nesta monção de  sabes  e  lampreas,  nem  se  pode  proibir  neste  reino  conforme  a  disposição  dos  sagrados cânones que principalmente prilita(sic) neste rio por estar entre reinos  divididos”28.  A validade deste argumento relativiza‐se, porém, quando o confrontamos  com os regulamentos da Confraria de Mareantes de Pontevedra. Com efeito, no  século  XV,  os  deveres  religiosos  dos  confrades  de  Pontevedra  incluíam  os  de  não se pôr no mar nem estar na ria “... desde a sexta de cada semana, posto o  sol,  até  às  segundas  seguintes”,  tanto  pelo  desejo  de  honrar  o  domingo  e  conceder um descanso aos mareantes, como para "sossego" e conservação da  sardinha29.  Como  explicar,  então,  esta  contradição  com  o  argumento  utilizado  pelos  mareantes  da  Confraria  para  convencer  o  arcebispo  a  defender  a  sua  causa?   A verdade é que esta situação evolui no século XVI. A Confraria do Corpo  Santo  recebe  um  privilégio  arcebispal,  em  1545,  autorizando  os  pescadores  a  marear e a realizar fainas de pesca em dias festivos. Mas é necessário fazer aqui  duas  observações:  em  primeiro  lugar,  se  se  trata  de  um  privilégio,  é  porque  a  prática era a proibição da pesca nestes dias, e em segundo lugar, a liberdade é  apenas  concedida  para  pescarias  em  benefício  da  redenção  de  cativos  da  vila,  ou de determinadas finalidades piedosas30.  Percebemos  assim  que  a  pesca  nos  dias  festivos  não  seria  tão  extraordinária,  pela  tendência  do  poder  eclesiástico  para  permitir  a  pesca  nos  dias de guarda com fins caritativos, nomeadamente para doações a hospitais e                                                               27

A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13v.   A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13 a 13v.  29  FILGUEIRA VALVERDE, 1946: 31‐33  30  FILGUEIRA VALVERDE, 1996: 91  28

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confrarias.  Assim  acontece  também  no  caso  dos  pescadores  do  Hospital  do  Corpo  de  Deus  em  Lisboa,  ou  dos  pescadores  da  Ericeira31  e  de  Pontevedra,  onde,  em  meados  do  séc.  XVI,  se  chegaram  a  formar  cercos  com  o  único  objectivo  de  pescar  para  a  Igreja32.  Trata‐se  de  um  direito  particularmente  importante  para  estes  pescadores,  que  se  esforçam  pela  sua  manutenção,  a  julgar  pelas  sucessivas  confirmações  dadas  pelos  arcebispos  de  Santiago  de  Compostela, em 1536, 1543 e 1549, aos mareantes de Pontevedra.  Em  Caminha,  em  1670  um  acórdão  dos  mareantes  esclarece  ainda  que,  “...  se  acazo  acontecer  que  alguns  mareantes  ou  pescadores  forem  lançar  ou  colher redes ao mar ou rio em dias santos de guarda ou domingos que não seja  o peixe de corço combem a saber sardinhas sabeis e lampreas o vigario e oficiais  desta  sancta  comfraria  os  pederam  condenar”33.  Concluindo,  não  deveria  ser  tarefa  fácil  gerir  a  necessidade  de  peixe  com  o  cumprimento  do  preceito  dominical,  o  que  nos  leva  a  questionar  os  critérios  utilizados  para  declarar  as  tais “épocas de necessidade”.  Encontrar  referências  a  rendimentos  obtidos  afigura‐se  ainda  mais  complicado. Estes homens viviam do peixe que capturavam, é certo, mas de que  forma? Vendiam todo o pescado ou apenas uma parte? São pagos em espécies  ou em dinheiro, quando integrados em companhas? Era a actividade rentável?  Desenvolvem  a  pesca  em  regime  de  mono  ou  de  pluriactividade?  Um  facto  transparece claramente, o peso desta actividade seria enorme no universo dos  rendimentos  familiares,  pois  eram  as  pescarias  “...  com  que  remedeam  suas  familias”34.  Uma das ordenações da Confraria de Mareantes estabelece que cada “...  navio e companha a pagar de cada viagem que fiserem huma seixma de todo o 

                                                             31

 VENTURA, 1999: 442   FILGUEIRA VALVERDE, 1946: 31  33  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 22v.  34  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 13.  32

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frete  que  ganharem”35.  Seria  importante  esclarecer  o  significado  da  palavra  “frete” aqui utilizada (ou pelo menos esclarecer se a seixma remete para uma  remuneração em dinheiro ou em pescado).   Em 1789, Lacerda Lobo verificava “... a pouca quantidade de pescado que  fica  livre  ao  pescador  em  recompensa  do  seu  grande  trabalho,  e  perigo.  Chegando ele à praia com o seu peixe (quando o traz) paga, pelo menos, uma  quinta parte de direitos de matança; ficam quatro, das quais duas são para os  proprietários das redes; e das outras duas, uma é sempre para contribuições a  confrarias.  Acha‐se  por  fim,  o  pescador  somente  com  a  quinta  parte  do  seu  pescado, que é vendido a almocreves, por preço muito baixo”36.    4.1.6. Meios de produção: as “artes”    O  estudo  dos  meios  de  produção,  no  contexto  da  actividade  piscícola,  pressupõe o estudo da evolução da tipologia de embarcações e dos aparelhos  de pesca. Para o nosso trabalho interessa conhecer as “artes” utilizadas, quer no  meio fluvial, quer no meio marítimo, por portugueses e galegos. Isto justifica‐se  pela  partilha  de  espaço  por  estas  duas  comunidades,  seja  o  Rio  Minho  ou  o  Oceano  Atlântico,  pelo  que  nos  interessa  averiguar  qualquer  tipo  de  transferência tecnológica.  Como primeira abordagem, analisamos a documentação da Confraria dos  Mareantes,  que  refere,  em  1549,  navios  e  pinaças;  barcos  de  pescaria  e  passagem;  barcas  de  carreto37;  e  barcos  saveiros38.  É  também  referida  a  designação geral de “navio”, a par de nau, navio latino e navio redondo, assim 

                                                             35

A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 10.   LOBO, 1991a: 272  37  “... navios e pinaças e os mais senhorios de todo o barco de pescaria e pasajes e barcas de carreto” e “... que cada  pinaça tragua huma rede gracioza (...) a coal rede sera nova como levarem duas redes novas arreçam (...) onde quer  que  a  dita  pinaça  for  parar  e  desembarquar  em  terra  pera  vender  o  dito  peyxe ou  salgar”.  A.C.B.J.M.C.  ‐  Livro de  Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 8v e 9.  38   “...  alem  dos  lanços  que  os  barquos  sabeiros  estão  em  costume  deyxar  para  a  dita  Comfraria  do  bom  Jezu”.  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9. 36

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como  de  trincados  e  chiolas39.  Paralelamente,  os  frades  da  Ínsua  referem  dois  tipos de embarcações pesqueiras: a dorna (no episódio relatado é utilizada por  galegos)  e  a  pinaça  (claramente  referida  como  o  barco  dos  pescadores  de  Caminha)40.  Das  tipologias  de  embarcações  mencionadas,  destaquemos  a  pinaça,  caracterizada  pela  sua  polivalência  (veja‐se  que  na  documentação  ela  surge  referida  numa  situação  de  transporte,  ainda  que  se  trate  de  uma  embarcação  pesqueira). Com efeito, na Galiza, o barco mais característico para auxiliar nos  cercos e sacadas era a pinaça, apoiada já desde o séc. XV pelo trincado, barco  inseparável do cerco, que desde o séc. XVI se conhecerá também como galeão.  Outra  pequena  embarcação  polivalente  é  o  baixel,  todos  pequenos  navios  mistos  de  vela  e  remo,  de  pesca  e  carga.  Aos  navios  pesqueiros  tradicionais  juntaram‐se, no séc. XVI, a dorna, as zabras e as volantas, barcos que combinam  a temporada de pesca com as actividades mercantis41.  Sabemos  que,  na  Galiza,  as  embarcações  assumiam  a  polivalência  dos  seus  proprietários:  servem  a  pesca,  o  transporte,  e  o  comércio.  Considerando  que os portugueses introduziram na Galiza alguns tipos de embarcações ligeiras  e  especializadas  na  pesca  e  transporte  fluvial  (saveiros,  moliceiros,  barcas  serranas, barcas da neta)42, a transferência de todo o tipo de técnicas e saberes  em ambas as margens do Rio Minho tem de ser seriamente considerada.  O  reconhecimento  feito  por  Lacerda  Lobo,  em  1789,  das  embarcações  utilizadas no Rio Minho, registou lanchas, batéis e catraias43.                                                                 39

  “...  que  todo  o  navio,  assi  nau,  navio  latino  e  navio  rodendo,  trincados  e  chiolas,  e  os  mais  de  navegaçom”.  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 10.  40  “Na era de 1574 a 13 de setembro (...) se perderão sahyndo da Guarda tres dornas em as quaes dornas morreram  10  galegos”  e  “Na  era  do  Senhor  de  1545  (...)  hua  quarta  feira  do  mes  de  junho  (...)  arribou  sobre  a  Imsoa  hua  armada muyto pera ber em mar não acostumado (...) que o disseram os pescadores que das pinaças que passaram”.  A.D.B. – Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha.  41  FERREIRA PRIEGUE, 1998: 80  42  FERREIRA PRIEGUE, 1988  43  LOBO, 1991b: 294 

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As  referências  aos  aparelhos  de  pesca  não  são  tão  expressivas  como  as  anteriores.  Fala‐se  essencialmente  do  trabalho  das  redes,  associadas  a  expressões  como  lanços,  lançar,  e  colher.  Associando  a  esta  documentação  a  descrição de 1538, encontramos ainda a distinção entre dois tipos de rede: “E  isto  é  com  as  redes  grandes,  porque  com  as  pequenas,  que  não  saiem  fora,  pescam  onde  quiserem  e  as  recolhem  nas  barcas.  As  redes  grandes,  que  é  preciso tirá‐las, apenas o fazem no termo e arrogam‐nas com seus pés quando  chegam.”44. E ainda: “... pescam em todo o rio com as suas redes (...) e o peixe  que se ade arogar em terraa e tirar nas redes em terra naom o poder tyrar em  terra senam vam com seu peixe nas redes e o tyraom em o termo desta villa”.   A  pouca  expressividade  destas  referências  contrasta  com  a  riqueza  de  tecnologias que encontramos na bibliografia. Com efeito, em Vila do Conde, em  meados  do  século  XVI,  “conviviam,  no  rio,  açudes  ou  pesqueiras  das  freiras,  chumbeiras,  calçadas,  vargas,  redes  pé  e  tresmalhos.  (...)  Estamos,  assim,  perante  redes  fixas  (açudes,  estacadas  ou  mesmo  "armadilhas"),  redes  de  arrasto (rede pé, chumbeira e calçada) e redes de emalhar (vargas ‐ redes de um  só  pano,  e  tresmalhos  ‐  redes  de  três  panos)”45.  Paralelamente,  quando  chegamos ao séc. XV e XVI, temos já documentada para a realidade galega uma  grande variedade de aparelhos de pesca, desde linhas (barbante com um anzol  na  extremidade,  para  pescar  peixe  miúdo)  e  palangres  (linha  para  pescar  com  anzóis dispostos em espinha; até redes como rascas (redes de emalhar), betas,  volatas,  raeiras,  e  sacadas46.  Na  região  galega,  as  grandes  artes  de  pesca  desenvolveram‐se com as confrarias: o jeito, que pressupunha a participação de  vários sócios para o seu aparelhamento; e a sacada e o cerco, que requeriam o  apoio de grandes barcos para as arrastar e fazer o serviço de carreto para terra  e a partir de terra47.  

                                                             44

 MORENO, 2003: 191‐194   AMORIM, POLÓNIA, 2001: 17  46  CALO LOURIDO, 1996: 16  47  FERREIRA PRIEGUE, 1998: 76‐77  45

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Lacerda Lobo identifica, na comarca do Entre‐Douro‐e‐Minho, o emprego  da  rasca,  para  a  captura  do  rodovalho,  peixe‐prego,  solho‐rei,  e  espécies  de  arraia; da saramona, para as pescadas; do tresmalho; e da zangarelha, utilizada  nas  pescarias  que  se  fazem  perto  da  costa  (pescada,  ruivos,  gorazes,  peixes  galos,  e  todo  os  outros  que  não  podem  escapar‐se  da  malha).  Refere  que  os  pescadores  desta  comarca  não  fazem,  normalmente,  a  pescaria  da  sardinha  com  redes  de  arrastar,  como  nas  outras  províncias,  mas  que  usam  redes  chamadas  sardinheiras.  Regista  ainda  a  utilização  de  anzóis  e  do  espinhel,  quando fazem as pescarias nos lugares pedregosos da costa. Para o Rio Minho  indica o uso da rasca, da rede de pescada, da rede da sardinha, do algarife (rede  de arrastar para os sáveis e salmões), do tresmalho (para os sáveis e salmões),  da  lampreeira,  da  barga  (para  as  taínhas  e  robalos),  e  da  sacada  (rede  de  arrastar)48.  Ainda no que refere a meios de produção, deparamo‐nos, em 1650, com  um  “Acordão  que  se  fes  pera  efeito  de  fazerem  humas  caldeiras  de  emcascar  redes pera o rendimento dellas aver de ser pera a Comfraria (...) se mandassem  fazer humas caldeyras pera se aver de emcasquar e emprestar a toda a pessoa  que  as  quiser  alugar  por  quanto  pera  seu  menisterio  de  pescar  as  alugavão  a  pessoas  que  não  erão  do  mar  e  querião  que  as  ganancias  dellas  pera  a  dita  cappella  rendesse;  por  hoye  estar  tudo  acabado  e  a  cappella  ter  pouco  rendimento pera suas ordinarias ejaa que davão a ganacia a outrem a querião  dar que fosse pera aumento da cappella pella obrigaçam que tinhão a ella por  ser  sua  verdadeira  igreja  e  caza  (...)  e  tenham  grande  cuidado  que  nenhum  pescador alugue caldeyras alheas com penna de cada ves que as alugar pagar  coatro  centos  reis  ou  duas  libras  de  cera”49.  Não  queremos  deixar  de  referir  o  interessante testemunho que este acórdão dá sobre a gestão de um dos meios  de  produção:  as  caldeiras  de  encascar  redes50  que  a  Confraria  decide  ter  para                                                               48

 LOBO, 1991b: 291‐294 e 311‐313   A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 17.  50   Antes,  as  redes  eram  feitas  de  fio  de  linho,  e,  por  isso,  depois  de  prontas,  eram  "encascadas".  Esta  operação  consistia em ferver, num grande pote de ferro, água com cascas de salgueiro durante 12 horas. Em seguida, eram as  49

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seu  próprio  rendimento,  visto  que  até  aí,  quem  lucrava  eram  pessoas  “...  que  não erão do mar”, que as tinham e alugavam aos pescadores.   Mais  uma  vez,  o  testemunho  de  Lacerda  Lobo:  “Em  toda  a  costa  vivem  muitas  pessoas,  que  nunca  foram  ao  mar,  porém  mandam  fazer  redes  para  arrendar aos pescadores. Há outras, que pagam a despesa do barco, ou lancha,  e a companhia obriga‐se a dar‐lhes parte dos lucros do pescado, ou lhes faz uma  consignação para pagamento da dívida”51. Este tipo de testemunhos é essencial  para percebermos qual a relação do pescador com os seus meios de produção.  Mas  de  que  forma  esta  relação  dita  a  prosperidade  ou  precariedade  da  sua  ocupação?  Tradicionalmente,  os  marinheiros  são  vistos  como  donos  ou  co‐ proprietários  de  embarcações  e  artes  de  pesca.  No  caso  das  grandes  artes,  como a do cerco, e tendo em conta a quantidade de barcos grandes e pequenos  que se empregavam nesta ceifa, seria impossível, para as economias da altura,  que uma só pessoa dispusesse de tudo o necessário. O mesmo sucedia com o  aparelho:  cada  marinheiro  contribuía  com  um  ou  mais  panos  de  rede  que,  convenientemente armados, formavam o grande aparelho. Desta forma, tanto a  força de trabalho como os meios de produção eram comuns52.    4.1.7. Produção: o peixe    O  conhecimento  das  espécies  capturadas  é  mais  um  traço  que  importa  juntar  ao  estudo  do  desempenho  laboral  do  pescador  de  Caminha.  Nesse  sentido,  procedemos  a  um  levantamento  das  espécies  mais  referidas  para  a  zona do Minho, presentes, quer nas águas marítimas, quer nas fluviais:                                                                                                                                                                                 redes postas numa gamela de madeira (com  cerca de 1,8m por 90 cm) e sobre elas se lançava a "casca" e eram  dadas voltas até que o líquido fosse totalmente absorvido. Depois de completamente arrefecidas, eram estendidas;  quando secas, estavam prontas a serem "largadas" (lançadas ao mar) e, depois de serem utilizadas cerca de 8 vezes  eram "aladas" (recolhidas), pois estavam mareadas (sujas de sargaço, algas e salitre). Depois eram lavadas em terra  por mulheres, secas, recolhidas, consertadas, e voltavam a ser encascadas. Esta operação do encasque tinha como  função dar mais consistências às redes. In FORTES, 1971: 29  51  LOBO, 1991a: 271‐272  52  CALO LOURIDO, 1996: 18 

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Quadro 4 – Recursos piscícolas  Fonte

Data

Espécies 

Foral manuelino de Caminha53 

1512 

pescada, lagostas , santolas 

Livro de Acórdãos da Confraria do  Bom Jesus do Mareantes, fl. 9v 

1549 

sáveis, lampreias, sardinha 

Livro de Acórdãos da Confraria do  Bom Jesus do Mareantes, fl. 9v 

1549 

sável, lampreia, sardinha 

Livro dos Milagres do Convento  de N. Srª da Ínsua 

1522 

congro 

Livro dos Milagres do Convento  de N. Srª da Ínsua 

1580 

sargo, tainha, negrão, truta mariscada 

Frei Bernardo de Brito54 

séc.  XVI 

sáveis, lampreias, salmonetes, solhos 

Duarte Nunes do Leão55 

1606 

sáveis, lampreias, trutas, ireses, lingoados,  solhos, salmões, relhos 

Livro de Acórdãos da Confraria do  Bom Jesus do Mareantes, fl. 13 

1621 

sáveis, lampreias 

Livro de Acórdãos da Confraria do  Bom Jesus do Mareantes, fl. 22v 

1670 

sardinhas, sáveis, lampreias 

Carvalho da Costa  

1706 

corvinas, solhos, salmões, lampreias, sáveis,  trutas, muges, taínhas, linguados, azevias,  negros, solhas, bogas, escalhos 

Memórias Paroquiais57 

1758 

salmões, sáveis, lampreias 

1789 

pescadas, sardinhas, ruivos, salmão, sável,  lampreia, linguados, solhas, tainhas, robalos,  barbos 

56

58

Lacerda Lobo  

                                                                 53

 DIAS, 1969: 128‐130   BRITO, 1597: 6  55  LEÃO, 2002: 196  56  COSTA, 1868‐1869: 245‐252  57  CARVALHO, 1979  58  LOBO, 1991b: 289‐313 54

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Gostaríamos  de  acrescentar  a  este  quadro  algumas  referências,  de  carácter  casuístico,  mas  que  não  deixam  de  ser  relevantes.  É  registado  no  cartório do convento da Ínsua que  “... na hera de 1548 a dos dias por andar de  janeiro (...) hamanheceo nesta ilha de frente da pista da igreja hua bailea toda  inteira (...) tinha de comprido 14 varas de medir: de hua ponta do rabo a outra  tinha  quatro  varas  hera  cousa  fermosa  de  ver  e  monstruosa”59.  Foi  registada  uma outra baleia em 1582, e referida uma lontra que andaria nas redondezas da  ínsua e aos frades “... lhes dava todos os dias um robalo”60.  Quanto  à  riqueza  das águas  os  frades  da  Ínsua  mencionam,  em  1580,  a  quase inexistência de sargo, sugerindo a sua abundância em tempos anteriores,  que ilustram da seguinte forma: “... a partir daqui nunca mais se viu um sargo e  faltava a pescaria. Causou isto maior admiração por ser até então tão copiosa,  principalmente  os  ditos  sargos  que  se  proviam  com  abundância  os  conventos  vizinhos,  e  ainda  os  povos  destas  vizinhanças,  e  freguesias,  que  nos  ficam  defronte.  Uma  delas  é  São  Paio  de  Moledo,  da  qual  sucedeu  muitas  vezes  levarem  daqui  barcos  carregados  de  peixe,  que  ficava  nos  lagos  ou  camboas,  que  liberalmente  lhe  davam  os  religiosos,  e  com  tal  fartura,  que  para  o  conduzirem da praia para suas casas o levavam em carros. Passaram a consumir  outros  peixes  como  as  choupas,  tainhas,  negrões  e  também  alguma  truta  mariscada”61.  Menos  episódicas  são  as  referências  à  pesca  da  lampreia  pelos  pescadores  de  Caminha,  os  quais  ofereciam  um  destes  peixes  aos  frades,  por  esmola ou promessa.  Em  1758,  as  Memórias  Paroquiais  da  vila  de  Caminha  referem  as  pescarias  de  salmões,  sáveis  e  lampreias,  que  eram  iniciadas  em  Março  e  iam  até meados de Maio, acabando a pesca das lampreias um pouco mais cedo. 

                                                             59

 A.D.B. ‐ Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha.   JOSÉ, AGUILAR, 1965: 28  61  JOSÉ, AGUILAR, 1965, 65‐67 60

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Em  1789,  Lacerda  Lobo  indica  a  pescada  como  sendo  o  peixe  mais  abundante na comarca do Entre‐Douro‐e‐Minho, cujas migrações são seguidas  pelos pescadores. De Novembro a Janeiro a pescada encontra‐se a sul da barra  do Porto, perto da costa, enquanto entre Janeiro e Maio os pescadores se vêem  obrigados  a  subir  a  nordeste  da  barra  do  Porto,  indo  mesmo  até  à  Galiza,  no  sítio do “mar novo”, nos meses de Maio, Junho e Julho. A sardinha seria pescada  em  todo  o  mar,  desde  Maio  a  Setembro,  sendo  porém  em  Janeiro  “a  maior  matança”. Os ruivos pescavam‐se à linha desde Novembro a Janeiro e perto da  costa, sendo necessário ir pescá‐los mais longe entre Abril e Junho. Nos meses  de  Março  e  Abril  os  pescadores  ocupar‐se‐iam  também  com  a  pesca  do  congro62.   Os  pescadores  de  Caminha  fariam  as  suas  pescarias  no  mar  durante  o  Verão, enquanto que no rio pescavam o sável, o salmão e a lampreia durante o  Inverno,  e  linguados,  solhas,  tainhas  e  robalos  todo  o  ano.  Naturalmente,  as  espécies  migrantes,  que  vivem  no  rio  Minho  de  Janeiro  a  Junho,  e  que  são  também as de maior valor ‐ lampreia, salmão e sável ‐ são procuradas em toda a  sua secção fronteiriça63.   Pelo exposto, o pescador de Caminha identifica‐se perfeitamente com os  seus congéneres dos centros piscatórios do noroeste português e do sul galego.  Sujeito ao calendário das diferentes espécies piscícolas, o seu ritmo quotidiano  difere  da  restante  comunidade,  constituindo  um  grupo  laboral  bastante  específico e distinto. A sua complexidade espelha‐se nos diferentes espaços em  que  actua,  originando  especializações  dentro  do  seu  próprio  sector.  Talvez  a  maior originalidade do pescador da vila em estudo consista na partilha forçada  do Rio Minho e dos seus recursos com os pescadores galegos, e na sua gestão.  Da  mesma  forma,  a  ligação  aos  mercados  nos  quais  coloca  o  seu  produto,  o  pescado,  reveste‐se  também  de  algumas  especificidades  que  importam  conhecer.                                                                62 63

 LOBO, 1991b: 289‐313   CAVACO, 1973: 32 

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4.2. Navegação e comércio marítimo    Como  vimos  anteriormente,  grupos  de  pescadores  e  de  marinheiros,  inicialmente relacionados entre si, e ligados à foz de um rio, foram também os  agentes responsáveis pela evolução da projecção marítima e mesmo comercial  do  reino.  Concluímos  também  acerca  da  dificuldade  em  categorizar  estes  homens do mar em sub‐grupos distintos, pelo que continuaremos a analisar o  seu universo laboral como a melhor forma de os conhecermos. Assim, deixamos  agora  de  lado  a  pesca  para  nos  centrarmos  no  comércio  e  na  navegação,  enquanto outras actividades económicas centrais na vila de Caminha.     4.2.1. Enquadramento tributário    “Privilégios  idênticos,  alguns  datando  de  finais  do  século  XIV,  uma  gerência  unitária  até  inícios  de  Quinhentos,  bem  como  estatutos  especiais  detidos no sector da importação ‐ exportação pelos moradores das respectivas  vilas,  fazem  que  não  seja  possível  estudar  isoladamente  as  alfândegas  de  Caminha e de Viana”64. João Cordeiro Pereira define assim um vector essencial  para  a  história  da  alfândega  de  Caminha:  a  relação  umbilical  que  estabeleceu,  desde  a  sua  génese,  com  a  de  Viana  do  Castelo.  Remetendo  para  este  autor  uma  análise  mais  pormenorizada  desta  questão65,  avançaremos  apenas  com  algumas  linhas  que  consideramos  ser  fundamentais  para  a  compreensão  das  dinâmica  mercantis  da  comunidade  em  estudo,  nomeadamente  algumas  proibições e/ou privilégios concedidos pelo poder régio.  O  foral  que  D.  Afonso  III  concedeu  a  Viana  do  Castelo  isentara  os  seus  moradores do pagamento da dízima, excepto das mercadorias que viessem de  França  e  de  terra  de  mouros.  Na  interpretação  de  João  Cordeiro  Pereira,  para  além de se tratar de um forte impulso à mobilização das actividades mercantis,                                                               64 65

 PEREIRA, 2003: 9   PEREIRA, 2003 (especialmente o 1º capítulo “Portos do mar: de Caminha ao Guadiana”).

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que deu frutos nas centúrias seguintes, este privilégio explica o crescimento da  vila e a sua supremacia relativamente à vizinha Caminha. Com efeito, nos finais  da Idade Média, a comunidade apresentava ainda dificuldades em progredir, o  que o poder central tentava colmatar com sucessivos incentivos à atracção de  população  (nomeadamente  o  estabelecimento  de  couto  de  homiziados  para  marinheiros, pescadores e mercadores, por D. João I)66.  Ao  mesmo  tempo,  a  costa  do  Minho  assistia  a  um  forte  movimento  mercantil, no  qual ansiava participar (pois que  “... polla  costa  do  mar  do dicto  logo atravessam muitos navios”67). Consequentemente, em 1392, é concedido o  estatuto de porto franco à vila de Caminha (novamente à semelhança de Viana),  permitindo  a  todos  os  navios  entrar  e  permanecer  sem  pagar  dízima,  costumagem  ou  ancoragem,  nem  nenhum  direito,  salvo  se  descarregasse  a  respectiva  carga:  “...  e  se  alguu  navio  assy  quiser  descaregar  como  dicto  he  stando  no  dicto  porto  franco  mandamos  que  o  meestre  del  e  marinheiros  e  os  mercadores  que  em  elle  trouxerem  suas  mercadorias  e  averes  o  façam  saber  ante ao nosso almoxarife e scripvam da dicta villa de viana ou aquelles que as  dictas  dizimas  e  direitos  ouverem  daver  e  recadar  pera  nos  e  em  nosso  nome  pera  as  hirem  receber  e  poer  em  recado  como  compre  a  nosso  serviço”68.  A  alfândega  de  Caminha  conhecia,  quer  uma  dependência  administrativa  da  de  Viana69,  quer  uma  clara  posição  de  inferioridade  na  criação  de  condições  favoráveis ao trato mercantil. Este desequilíbrio é apenas anulado no tempo de  D.  Afonso  V,  altura  em  que  se  concedem  a  esta  vila,  “...  todollos  outros  privilegios graças e liberdades que temos dadas e outorgadas a dita nossa vila  de  Viana”70.  A  partir  daqui,  Caminha  e  Viana  partilharam  das  mesmas  regulamentações  alfandegárias,  considerando  que,  na  sua  grande  maioria,  consistiram em claros incentivos às trocas comerciais.                                                                66

 PEREIRA, 2003: 10   T.T. ‐ Chancelaria de D. João I, lv. 2, fl. 66 (carta de 1392/04/21), 2ª col.. Publ. in MARQUES, 1988: 72, doc. n.º 53.  68  T.T. ‐ Chancelaria de D. João I, lv. 2, fl. 66 (carta de 1392/04/21), 2ª col.. Publ. in MARQUES, 1988: 72, doc. n.º 53.  69   Apesar  da dependência  orgânica  e  funcional  da  alfândega  de Caminha  relativamente  à  de  Viana  ter  terminado  formalmente em 1504 (a 11 de Junho é passada a primeira carta de juiz da alfândega da foz do Minho ao escudeiro  Pedro Anes do Prado), na prática, a gestão continua a ser comum, com o principais cargos alfandegários a serem  entregues ao mesmo funcionário. PEREIRA, 2003: 16‐18  70  Carta confirmada por D. Manuel I em 02/08/1497. PEREIRA, 2003: 11 67

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Logo  em  1498,  é‐lhes  concedida  autorização  para  poderem  carregar  os  panos  que  da  comarca  de  Entre‐Douro‐e‐Minho  se  remetessem  para  a  ilha  da  Madeira,  anteriormente  um  exclusivo  da  cidade  do  Porto71.  A  subversão  das  facilidades  de  que  usufruíam  é  clara  quando,  em  1521,  é  denunciado  que  os  moradores  dos  lugares  de  Caminha  e  Viana  metiam  muitas  mercadorias  de  Londres,  Flandres  e  de  outras  partes,  de  outras  pessoas,  naturais  e/ou  estrangeiras,  e  os  dizimavam  como  suas.  Como  consequência  ficam  proibidos  “... de levarem as mercadorias que trazem às alfândegas sem primeiro pagarem  dízima”72.   Completemos  este  quadro  com  a  análise  do  contrato  de  arrendamento  das  alfândegas  do  Entre‐Douro‐e‐Minho,  Aveiro  e  Buarcos,  feito  em  1553.  Segundo este, todos os panos de Londres e Inglaterra que fossem às alfândegas  de Viana e Caminha, depois de serem despachados e pagos os direitos, podiam  livremente entrar e serem levados a qualquer dos lugares e portos de mar, sem  serem obrigados a pagar outro qualquer direito. Aos moradores de Caminha era  permitido alealdar suas mercadorias e dinheiros na alfândega de Viana, sendo o  inverso  proibido.  Estas  mesmas  condições  vão  ser  confirmadas  nos  arrendamentos posteriores, nomeadamente nos anos de 1559 a 156273.    4.2.2. Frota    Fazer  o  estudo  das  embarcações  do  porto  de  Caminha  parece  tarefa  impossível,  face  à  ausência  de  qualquer  tipo  de  recenseamento  naval.  Na  verdade, este ponto consiste na reunião de alguns indícios que fomos juntando  ao longo da nossa investigação na esperança de nos aproximarmos da realidade  histórica. 

                                                             71

 T.T. ‐ Chancelaria de D. Manuel, lv. 31, fl. 121v (carta de 1498/02/19), 2º dipl. Publ. in MARQUES, 1988: 482, doc.  n.º 318.  72  A.H.M.P., Reservados, n.º 435. Regimento Geral da Alfândega do Porto, 1521, fl. 44 e 55.  73  A.D.P., Registo de Contos. Arrendamento das Alfândegas do Entre‐Douro‐e‐Minho, Aveiro e Buarcos, 1553/08/18,  fls. 324, 344v, 345v e 347.

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O primeiro consiste numa informação dada pelo poder central, na qual,  D.  João  III  confirma,  em  1525,  numa  confirmação  de  uma  carta  de  1502,  que  autoriza as vilas de Caminha e Valença a poderem carregar as suas mercadorias  em navios da Galiza “... por não terem navios que lhe pera ello comprião”74.   A nível local, uma análise da documentação da Confraria dos Mareantes  de  Caminha  revelou  uma  diversificada  tipologia:  navios,  pinaças,  barcos  de  pescaria, barcos de passagem, barcas de carreto, barcos saveiros, naus, navios  latinos,  navios  rodendos,  trincados  e  chiolas75.  Perante  esta  listagem  é‐nos  permitido concluir sobre a riqueza da frota do porto de Caminha em meados do  século XVI? Em primeiro lugar, não nos podemos esquecer do mimetismo que  verificamos  existir  entre  Confrarias.  Além  disso,  o  facto  de  algumas  embarcações de grande porte serem referidas, pode ser apenas um indício de  que estes grandes barcos eram avistados, ou até mesmo frequentavam a barra  de Caminha, mas não que pertencessem aos mareantes da vila. Um indício disto  mesmo é o espanto com que os frades da Ínsua relatam a presença de grandes  embarcações na foz do Minho76:  ‐ “Em o anno de mil e quinhentos e tres entrou pela barra de Galliza huma  grande e possante nao Portugueza muito carregada e rica”;  ‐  “Na  era  do  Senhor  de  1545  (...)  hua  quarta  feira  do  mes  de  junho  bespera de sam brenabe (...) arribou sobre a Imsoa hua armada muyto pera ber  em mar não acostumado”.  Com  efeito,  no  cartório  deste  convento,  a  única  referência  clara  a  uma  embarcação  de  Caminha  é  feita  em  1548  quando  se  regista  que:  “...  no  mes  dabril  hu  dia  aa  hua  hora  depois  de  meyo  dia  entrando  hua  das  derradeiras  pinaças de Caminha pella barra de galiza, ao longo da ynsoa velha”.   Curiosamente, a documentação produzida em contextos comerciais, que  no  caso  em  estudo  é  exclusivamente  não  local,  regista  a  existência  de                                                               74

 Carta de 1525/11/09. In BRAGA, 1996: 301   A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, passim.  76  A.D.B. ‐ Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. 75

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embarcações  de  maior  porte  e  com  finalidades  mercantis.  Assim,  em  1565,  a  vereação de Baiona regista um aportamento de uma caravela de Caminha77. Os  seguros marítimos de Burgos78 registam mais dois casos:   Æ  em  1568  a  nau  Santa  Cruz  do  mestre  Pero  Gonçalves,  natural  de  Caminha. A nau encontrava‐se fundeada em Caminha e levaria pescado de Vigo  para Cartagena, Alicante e Valência;   Æ  em  1570  o  navio  Nossa  Senhora  da  Nazaré  do  mestre  Pero  Frois,  natural de Caminha, que se ocupava na rota Viana – Brasil.  Um acto notarial de 1579 refere a nau Nossa Senhora da Esperança, do  mestre e piloto Gaspar Dantas, morador em Caminha, aparelhada em parceria  com mercadores de Caminha e de Vila do Conde, para ir à pesca do Bacalhau na  Terra  Nova79.  A  comprovar  esta  vitalidade  está  um  levantamento  da  frota  nacional, feito no ano de 1586, que, apesar de se desconhecer os contornos da  sua realização, tem sido utilizado em outros trabalhos que têm como objectivo  apurar questões semelhantes80.  Quadro 5 ‐ Frota dos portos do Entre‐Douro‐e‐Minho e Aveiro em 1586  Portos 

N.º Navios 

Tonelagem

N.º Caravelas

Tonelagem 

Caminha 



100 a 250 

16 

60 a 100 

Viana 



100 a 200 

12 

50 a 100 

Vila do Conde 



100 a 260 

10 

50 a 160 

Porto 



100 a 150 

13 

50 a 100 

Aveiro 

11 

100 a 150 

15 

50 a 100 

Fonte: British Museum, Biblioteca Sloane, ms. 1026. Publ. in SILVA, 1862‐1972: vol.  III, 536‐537 

                                                               77

 Libro de la fieldad, 1565. Publ in: GARCÍA ORO, PORTELA SILVA, 2003   A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101  79  CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/0996 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 9, fl. 46‐48  80  Nomeadamente por POLÓNIA, 2000: 29‐52  78

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Compreende‐se  que  não  poderíamos  deixar  de  lado  um  levantamento  que  coloca  a  frota  de  Caminha  como  uma  das  mais  expressivas  a  norte  do  Douro,  quer  em  termos  de  número  de  embarcações,  quer  em  termos  da  sua  volumetria. Naturalmente, e por esta mesma razão, não podemos deixar de ter  sérias dúvidas quanto à sua fiabilidade, dado que esta imagem não é, de forma  nenhuma, suportada por estudos relativos aos outros centros portuários. A sua  inclusão  neste  trabalho  serve  apenas  para  recordar  que,  com  a  ausência  de  outras  fontes  de  carácter  mais  sistemático,  como  o  Censo  Naval  de  1552  (essencial  para  um  análise  comparativa),  estamos  muito  longe  de  ter  um  desenho  claro  da  frota  em  análise,  e  que  todas  as  hipóteses  devem  estar  em  aberto.   Juntamos  a  este  quadro  um  recenseamento  feito  na  Galiza  para  uma  data aproximada, 1588, analisado por María del Carmen Saavedra81. Dos vinte e  três portos galegos recenseados, dezasseis não possuíam qualquer embarcação  de grande porte, caracterizando‐se a sua actividade comercial por uma pequena  cabotagem  realizada  em  barcos  de  pequenas  dimensões,  como  pinaças  e  volantes, pelo que os seus homens do mar eram fundamentalmente pescadores  “... que nunca han hecho viaje”. Mesmo no caso de Pontevedra as embarcações  registadas eram zabras de naturais destinadas ao comércio de pescado. Apenas  Baiona,  Teis  e  Corunha  registavam  a  presença  de  barcos  de  maior  tonelagem.  Em  Baiona,  na  maior  parte  dos  casos,  tratava‐se  de  embarcações  de  mais  de  100  toneladas,  e  de  origem  portuguesa.  Na  verdade,  se  nos  apoiarmos,  mais  uma vez, na realidade galega, talvez possamos compreender esta ambiguidade.  Com  efeito,  “a  natureza  do  comércio  galego  explica  a  relativa  escassez  de  barcos  galegos  nas  rotas  comerciais  nacionais  e  internacionais.  A  frota  galega  era de escasso porte, dedicando‐se, essencialmente, à pesca e ao transporte de  mercadorias  para  zonas  próximas,  nomeadamente  as  Astúrias  e  o  norte  de  Portugal”82.                                                                81 82

 SAAVEDRA VÁSQUEZ, 2008: 7   DUBERT, 2000: 266

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4.2.3. Circuitos de navegação e comércio    “São de pescadores as primeiras viagens a relativa distância ‐ do Porto à  Galiza,  da  Pederneira  ao  Algarve,  do  Algarve  à  costa  andaluza.  Viagens  modestas, de pura cabotagem, em que a actividade piscatória e o transporte de  mercadorias  dão  as  mãos  e  assentam  numa  mesma  base”83.  Considerando  a  progressiva  participação  dos  pescadores  na  dinâmica  mercantil  quinhentista,  que tipo de iniciativas esperar da comunidade marítima de Caminha?  Está  bem  demonstrado  que  actividades  económicas  interdependentes  teceram  a  integração  das  regiões  de  Entre‐Douro‐e‐Minho  e  a  Galiza,  desde  o  século  XV84.  Na  acepção  de  Elisa  Ferreira  Priegue,  a  largura  do  rio  Minho  não  constituiu um entrave ao comércio fronteiriço entre a Galiza e Portugal, mas sim  um veículo de comunicação, difícil de controlar pelas autoridades, e objecto de  sucessiva legislação, quer pelos monarcas espanhóis, quer pelos portugueses.   No alvor da época moderna, o movimento de mercadorias entre Galiza e  Portugal  é  caracterizado  por  um  tráfico  muito  diversificado,  modesto  e  pouco  marcado pelo comércio internacional. Com efeito, exceptuando as rotas do sal,  do vinho, do pescado e da madeira, trata‐se de um comércio de raio pequeno,  entre  as  vilas  das  margens  do  Minho,  unidas  por  antigos  privilégios  de  vizinhança e por uma feliz ignorância das barreiras fiscais. Os dois reinos suprem  mutuamente as suas carestias ao ritmo da conjuntura85. Por esse mesmo facto,  o comércio marítimo e fluvial com outros portos dos dois reinos, do estrangeiro  e,  progressivamente,  das  colónias,  constituiu  um  notável  factor  de  desenvolvimento urbano, precoce nos casos de Caminha, Viana e Baiona, e mais  tarde,  Vigo86.  Pelo  menos  desde  o  séc.  XIV  (umas  vezes  confirmada  por  privilégios régios, outras vezes resultado de uma prática imemorial) existia entre  as  vilas  a  prática  da  vizinhança  dupla:  portugueses  e  galegos  desfrutavam                                                               83

 ESPINOSA, 1972: 151   COSTA, 2000: 78  85  FERREIRA PRIEGUE, 1988  86  CAVACO, 1973: 54 84

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indistintamente  do  estatuto  de  vizinhos  nas  vilas  do  outro  lado  da  fronteira,  nomeadamente  entre  povoações  mais  próximas  ‐  La  Guardia  com  Caminha;  Monção  com  Salvaterra;  todos  os  galegos  em  Valença;  os  de  Tui  e  Baiona  em  todo  o  Portugal.  Se  por  um  lado,  Portugal  necessitava  de  madeira,  pescado  e  panos de importação que a Galiza lhe proporcionava; por outro, esta precisava  do  sal  português  e  estava  interessada  nos  produtos  algarvios  e  da  região  lisboeta  ‐  fruta  e  vinho  para  consumo  e  distribuição.  Isto  significava  um  comércio franco que se repercutia duramente nas finanças dos recebedores de  impostos, uma vez que, salvo algumas mercadorias de grande distância (como o  sal), a maior parte do tráfego destas pequenas vilas se fazia com as suas vizinhas  da frente, com as quais se saltavam as barreiras fiscais.   Não  é  de  estranhar  que  os  oficiais  régios  e  senhoriais  do  norte  de  Portugal  estorvem  continuamente  o  movimento  de  galegos  e  portugueses  através  da  fronteira87.  A  comprová‐lo  está  a  apresentação  feita  em  conjunto  pelos  procuradores  de  Viana,  Vila  Nova  (Cerveira),  Valença  e  Caminha,  nas  cortes  de  Lisboa  em  1456:  “Senhor  em  cada  huu  anno  se  carrega  no  rrio  de  minho  pera  frandes  e  pera  aragam  huu  navyo  e  aly  se  ajuntavam  as  mercadorias  de  toda  riba  de  minho  comprando  os  mercadores  da  comarca  a  mayor parte das mercadorias asy as de hua parte como da outra de galiza e as  traziam  a  esta  parte  e  as  carregavam  no  dicto  navyo  e  despois  que  eram  carregadas as davam em rrol ao almoxarife e asy dadas faziam novimento pera  meyo  do  rio  e  ali  tomava  as  outras  mercadorias  que  alguus  galegos  que  as  queriam caregar e seguia sua viagem e ase custumou de sempre atee ora avera  dous  annos  que  gonçalo  afonso  voso  coontador  mandou  que  nenhum  navio  deste reino nom fretasse no dicto rio nem em galiza alguua mercadoria levasse  nele  nem  trouxesse  em  o  que  recebemos  grande  agravo  e  vossas  rendas  e 

                                                             87

 Sobre este assunto ver a obra de José Marques, nomeadamente MARQUES, 1994 e MARQUES, 2004. 

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dizima nom rendem nada praza a vosa alteza mandar husar como se atee quy  husou”88.   Curiosamente,  a  grande  similitude  de  produtos  de  exportação  e  importação  originou,  quer  situações  de  concorrência,  face  aos  mercados  externos,  quer  situações  em  que  galegos  e  portugueses  são  reciprocamente  intermediários  no  comércio  com  o  estrangeiro.  Ambos  se  encontravam  no  Mediterrâneo  em  competição  directa,  desde  finais  do  séc.  XIV  e  ao  longo  de  todo  o  séc.  XV.  Os  portugueses  que  mais  frequentavam  os  portos  levantinos  com  os  seus  pescados  e  couros  eram  os  das  vilas  do  norte:  Caminha,  Viana,  Ponte  de  Lima  e  Vila  do  Conde.  Portugueses  e  galegos  chegam  a  Valência  e  Barcelona  formando  comboios  de  naus  de  um  e  doutro  lado  do  Minho;  as  partidas  fazem‐se  juntas,  sendo  frequente  que  mercadores  galegos  de  portos  com  pouca  capacidade  de  transporte  utilizem  os  serviços  dos  patrões  portugueses89.  Nos  inícios  do  séc.  XVI,  as  ligações  de  Valência  com  Portugal  começam a decair e a chegada de navios a este porto diminuem, no momento  em que os interesses portugueses se viram para o Atlântico, para a exploração  de África e das Índias. Nas ligações com Valência predominam Lisboa, Setúbal e  o  Algarve,  nomeadamente  Lagos.  Os  portos  do  norte  mais  activos  são  apenas  Viana e o Porto, exportadores de couros, peixe salgado e de vinhos90. O estudo  das  apólices  de  seguros  marítimos,  efectuadas  em  Burgos,  permitiu  a  Hilario  Casado  Alonso  obter  uma  mais  completa  imagem  das  relações  comerciais  ibéricas,  no  séc.  XVI:  “Un  primer  ámbito  es  el  que  unía  la  costa  cantábrica  española  com  los  puertos  portugueses,  donde  contamos  com  313  pólizas  por  valor  de  169.650  ducados.  Son  seguros  de  mercancías  cargadas  en  barcos  vascos  y  santanderinos,  más  algunos  de  Oport,  Vila  do  Conde  y  Viana  do  Castelo.  Es  una  imporatante  ruta  de  navegación  de  cabotaje  en  la  que  se  transporta,  sobre  todo,  hierro  vasco  y  manudacturas  europeas  que  eran  redistribuídas desde los puertos españoles hacia Portugal. Allí, según los seguros                                                               88

 T.T. ‐ Chancelaria de D. Afonso V, lv. 36, fl. 197, 2º dipl. Publ. in MARQUES, 1988: 574, doc. n.º 1171   FERREIRA PRIEGUE, 1988  90  GUIRAL‐HADZIIOSSIF, 1986: 19 89

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burgaleses,  eran  intercambiados  por  la  sal  de  Aveiro  o  Setúbal,  y  por  las  especias,  azucares,  colorantes  y  algodones  adquiridos  en  Lisboa,  Viana  do  Castelo y Oporto” 91.     a) Peixe e Sal    É curioso como Portugal, exportador de grandes quantidades de pescado  com as mesmas características, importe tanto pescado galego, e precisamente o  façam as comarcas do Norte, as mais dedicadas à salga. Nos mesmos meses em  que as naus portuguesas saem com as suas sardinhas, congros e pescadas para  o  Mediterrâneo,  navios  galegos  de  pequena  tonelagem  sobem  os  rios,  combinando a venda a bordo e o transporte terrestre e levando o pescado para  povoações  do  interior.  Elisa  Priegue  defende  que  a  pesca  seria  mais  rica  em  águas  espanholas,  pelo  que  os  portugueses  as  frequentavam  desde  muito  cedo92. A salga permitiu aumentar o raio das exportações galegas de pescado e  iniciar o transporte marítimo, pelo este se dirigiu para as costas portuguesas e  do sudoeste peninsular, essencialmente através dos mercadores de Santiago de  Compostela,  Noia,  Muros  e  Pontevedra93.  No  séc.  XVI  os  vizinhos  de  Vigo  e  outros  portos  compravam  a  sardinha  no  mar  por  grosso  e  remetiam‐na  para  Portugal  já  salgada94.  Com  efeito,  o  peixe  é,  juntamente  com  a  madeira,  a  moeda habitual com que os galegos pagam as aquisições de sal na costa norte  portuguesa95.  Em  1539,  o  corregedor  de  Valença  pedia  a  D.  João  III  que  se  fizesse,  nesta  vila,  uma  alfândega  e  outra  na  de  Caminha,  para  melhor  arrecadação  dos  direitos  de  vários  géneros  que  vinham  da  Galiza  para  este  reino, referindo explicitamente o pescado: “... E assim me parece que se devia  fazer  na  vila  de  caminha  que  outro  si  he  duas  léguas  abaixo  de  vila  nova  per  onde  passa  muito  pescado  que  bem  da  galiza  e  não  paga  por  não  ouver  hi                                                               91

 CASADO ALONSO, 2003: 218‐219   FERREIRA PRIEGUE, 1988  93  GELABERT, 1981: 434  94  FANGUEIRO, 1984: 251‐276  95  FERREIRA PRIEGUE, 1988 92

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oficiais  que  arrecadem  os  rendimentos  de  sua  alteza.”96.  Em  1538,  das  embarcações  estrangeiras  fundeadas  em  Baiona,  seis  eram  caravelas  portuguesas carregando sardinha97.   Esta importação massiva de pescado galego tem sido comprovada por  trabalhos relativos a outros centros portuários do noroeste português. Manuel  Fernandes Moreira colocou esta questão: como explicar que, a partir de meados  do século XVI, cinco sextos da sardinha consumida em Viana venha da Galiza? O  investigador  refere,  que  numa  acta  camarária  de  1560,  a  propósito  da  exploração  das  águas  nacionais  por  pescadores  galegos,  o  facto  se  explica  por  haver poucos pescadores e poucos barcos e os galegos serem muitos e ricos98.  A  documentação  municipal  de  Baiona  deu‐nos  a  conhecer  o  circuito  terrestre  do  pescado.  Uma  análise  da  cobrança  da  imposição  sobre  a  sua  compra  nesta  vila  galega,  para  o  ano  de  156599,  permitiu  tecer  as  seguintes  considerações:   Æ  os  compradores  de  nacionalidade  portuguesa  que  adquiriram  peixe  em Baiona são de Monção (6); Caminha (3); Trancoso (1) e Lisboa (1);  Æ  os  três  registos  existentes  para  Caminha  referem‐se  a  mulheres,  enquanto que em todos os outros casos os compradores são homens;  Æ  este  comércio  é  feito,  na  sua  maioria,  nos  meses  de  Janeiro  e  Fevereiro.  Este levantamento, ainda que de resultados lacunares, acaba por atestar  a  realidade  que  já  tínhamos  descrito,  relativamente  a  um  abastecimento  feito  pelas  populações  da  fronteira  junto  das  vilas  pesqueiras  galegas.  Atendendo  à  sazonalidade  da  pesca,  que  atingia  a  sua  maior  actividade,  entre  os  meses  de 

                                                             96

 Carta de 1539/08/08. T.T. ‐ Corpo Cronológico, Parte 1ª, maço 65, doc. 30.    SAAVEDRA VÁSQUEZ, 2008: 6  98  MOREIRA, 1982: 129  99  Libro de la fieldad, 1565. Publ. in GARCÍA ORO, PORTELA SILVA, 2003: 417‐452 97

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Setembro e Dezembro100, é de todo coerente que o pescado seja adquirido logo  nos primeiros meses do ano.   A  documentação  também  nos  informa  sobre  o  circuito  marítimo,  que  assume  uma  dimensão  completamente  diferente  do  terrestre.  Em  Junho,  registou‐se  que  um  homem  de  Baiona  levou  10  milhares  de  sardinha  para  Portugal; e que um comprador de Lisboa adquiriu, em Agosto, uma caravela de  “pescado de pasta” para levar para Sevilha. Novamente, e de forma muito clara,  o circuito marítimo envolve já outros portos de maior dimensão, como Lisboa, e  um outro tipo de rotas, como o abastecimento da Andaluzia.  Curiosamente,  os  seguros  marítimos  efectuados  em  Burgos  parecem  contrariar as considerações acerca da participação quase exclusiva dos grandes  portos  do  sul  (de  Lisboa,  Setúbal  e  do  Algarve)  no  abastecimento  do  Mediterrâneo.  Vejam‐se  os  seguros  aí  realizados  por  mercadores  de  Caminha.  Em 1568, Gregório Felgueira, Pedro da Rocha e Afonso Mendes, residentes em  Caminha,  seguram  uma  nau  carregada  de  sardinha  e  congro,  destinada  a  Cartagena, Alicante e Valência, com origem em Vigo101. Este registo testemunha  a permanência da realidade que Elisa Ferreira Priegue atestara para os séculos  XIV  e  XV.  Segundo  a  autora:  “Parte  das  mercadorias  importadas  da  Galiza  por  Valência  e  Barcelona  chegam  em  naus  portuguesas,  e  vice‐versa”102.  Ou  seja,  apesar  do  porto  de  Caminha  não  constar  da  rota  do  pescado,  os  seus  mercadores participam directamente, efectuando o transporte entre a Galiza e  o Mediterrânico.   Na  mesma  linha  de  acção,  e  apesar  de  termos  constatado  que  o  abastecimento da Galiza com o sal português se fazia, essencialmente, através  do comércio directo com os centros produtores, ou através de Valença, centro  de redistribuição para as localidades galegas do sul103, não podemos, de forma                                                               100

 CASTIÑEIRA CASTRO, 1999: 7‐30   A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101  102  FERREIRA PRIEGUE, 1988.  103  PINTO, 2006  101

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nenhuma,  concluir  acerca  da  ausência  de  Caminha  nesta  importante  rota.  Em  1597 perante a presença de um navio carregado de sal na baía de Caminha, e  estando  vazios  os  alfolins  e  os  vizinhos  da  cidade  e  seu  termo  com  grande  necessidade  do  produto,  mandaram  requerer  ao administrador  de  Pontevedra  que  se  ordenasse  ao  navio  ir  descarregar  a  Tui,  pois  que  aqui  havia  muita  pescaria de sábado e falta de sal104.   Podemos mesmo recuar a 1538, ano em que as notícias de depredações  feitas  pelos  franceses  em  navios  carregados  de  sal,  e  pertencentes  a  mercadores de vários portos, identificam Gabriel Afonso, mercador e vizinho de  Caminha a transaccionar esse produto105.     b) Têxteis     O  comércio  têxtil  entre  Portugal  e  Castela  e  a  importação  massiva  de  panos  do  Norte  da  Europa  constituem  uma  das  mais  importantes  linhas  da  história  económica  ibérica106.  O  movimento  das  alfândegas  do  Entre  Douro  e  Minho (desde Caminha a Aveiro) assinala este movimento comercial, nos quais  se revelam protagonistas, produtos em circulação e espaços de contacto107. Um  dos  seus  vectores  a  destacar  é  a  intensidade  de  tráfico  verificada  entre  estes  portos  do  noroeste  português  e  os  da  Galiza,  envolvendo  a  troca  de  produtos  como o sal, os cereais e o pescado108.   Relativamente ao espaço de fronteira aqui em análise, é perceptível que  também  este  comércio  assume  igualmente  um  carácter  não‐oficial:  um  alvará  régio  de  9  de  Setembro  de  1551  denunciava  que  os  mercadores  ingleses,  combinados com mercadores de Caminha e de Viana, em vez de irem, como era  habitual,  descarregar  as  suas  mercadorias,  nomedamente  panos,  à  cidade  do                                                               104

 LÓPEZ GÓMEZ, 1985: 217   T.T. ‐ Corpo Cronológico, Parte 2ª, maço 221, docs. 85 e 90.   106  Sobre este tema foi feito recentemente um ponto da situação no painel Consumo e Redes de Comercialização  Têxtil  no  Espaço  Ibérico  (Séculos  XV  ‐  XVIII)  do  “XXVII  Encontro  da  APHES  ‐  Globalização:  Perspectivas  de  Longo  Prazo”. Lisboa, 16 e 17 de Novembro de 2007.   107  BARROS, 2007b  108  CASADO ALONSO, 2007  105

108

Porto e às outras alfândegas da comarca de Entre‐Douro‐e‐Minho, aportavam a  Baiona e a outros portos galegos, donde avisavam os vianenses e caminhenses  que  lá  lhas  iam  comprar,  introduzindo‐as  depois  em  Portugal  beneficiando  da  isenção de dízima109. Elisa Priegue identificou também uma outra vertente deste  comércio: a redistribuição que os portugueses faziam na Galiza do excedente de  panos  e  outras  mercadorias  que  traziam  da  Irlanda,  no  torna‐viagem  dos  seus  carregamentos de sal110. Inserida neste circuito, uma nau foi vítima de corso, em  Outubro  de  1537,  quando  transportava  vinho  de  Monção  e  roupa,  desde  Caminha até à Galiza111. A documentação de Baiona atesta esta realidade, mas  no sentido inverso: a procura de têxteis em Baiona, por parte dos portugueses.  Em  1565,  Francisco  Franco  leva para  Caminha  4  panos  de  Londres  e  2  buriéis;  João Rodrigues compra 7 frisetas; e João Lopes compra 2 fardos de frisas, tudo  para abastecimento de Caminha112. Este tráfico apresenta também outra faceta:  o transporte feito por embarcações inglesas e flamengas que prolongam as suas  rotas  desde  Burgos  até  ao  Porto,  Vila  do  Conde  e  Lisboa,  fazendo  escala  ao  longo  da  costa  espanhola  e  portuguesa.  Estas  paragens  não  eram,  por  norma,  meramente  técnicas,  pelo  que  se  aproveitava  para  descarregar,  voltando  a  carregar  com  as  mais  variadas  mercadorias113.  Os  frades  da  Ínsua  assistiram  a  este mesmo movimento mercantil registando que “Em o ano de 1544, no dia da  traladação de Santa Clara (...) emtrou hua nau de ingreses carregada de panos  (...) em véspera de todos os santos do mesmo ano saiu a mesma nau carregada  de vinhos e saindo pela mesma barra (...)”114.                                                                     109

 PEREIRA, 2003: 12   FERREIRA PRIEGUE, 1988  111  FERREIRA, 1995: 349‐365, Apêndice I: Assaltos Franceses (T.T. – Corpo Cronológico, Parte 2ª, maço 220, doc. 32).  112  Libro de la fieldad, 1565. Publ. in GARCÍA ORO, PORTELA SILVA, 2003: 417‐452  113  CASADO ALONSO, 2007  114  A.D.B. ‐ Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha.  110

109

c) Tabuado    O  censo  naval  de  1552  regista  seis  caravelas  de  Esposende  que  transportam  tabuado  de  Caminha  para  Lisboa115.  Quer  as  descrições  corográficas da época116, quer os trabalhos que se debruçam sobre os recursos  florestais117, convergem para uma imagem do Entre‐Douro‐e‐Minho como uma  região abastecedora de espécies, nomeadamente o pinheiro manso, o carvalho  e  o  sobreiro.  Mestre  António  refere,  em  1512,  a  riqueza  desta  região  em  “...  arvores muyto frutiferas e muii grandes, que se faz muita madeira tavoado para  casas  e  para  naos  e  para  caixas  que  dão  tavoado  de  cinco  e  seis  palmos  em  ancho que abasta para a comarqua, e que levão sobre mar para outras partes  muiitas"118.  Quanto  à  região  de  Caminha,  Frei  Miguel  da  Purificação  confirma  que “... Cristelo é toda de carvalhos, sobreiros e pinheiros. Em Moledo, a mata  do  Camarido  era  toda  de  sobreiros  e  pinheiros  que  os  de  Caminha  e  Galiza  cortaram e roubaram”119.   Esta denúncia parece ser corroborada por um acordo feito pela vereação  caminhense,  a  10  de  Janeiro  de  1562,  para  que  não  se  “...  corte  lenha  nem  sobreiros  de  nenhuma  qualidade  (...)  pois  que  o  ano  passado  ouvera  ali  muita  instruição  (destruição)  de  lenha  que  se  cortou”120.  Embora  não  seja  referida  a  causa  de  tanto  corte  de  madeira,  apontamos  o  habitual  aproveitamento  dos  ramos para cestaria e de certos componentes para arcos e tanoaria. Temos de  considerar,  também,  que  as  espécies  referidas,  sobreiros  e  pinheiros,  eram  as  tradicionalmente utilizadas na construção de navios121, pelo que é de ponderar  a  possibilidade  de  a  mata  do  Camarido  ser  uma  fonte  de  abastecimento  para  esta  actividade.  A  fortalecer  esta  hipótese  estão  as  queixas  de  desflorestação  apresentadas  por  centros  portuários  em  contextos  semelhantes.  Refira‐se  o                                                               115

 SOARES, 1989: 296   BARROS, 1919  117  DEVY‐VARETA, 1985: 47‐67 e OLIVEIRA, 1974  118  RIBEIRO, 1959: 441‐460  119  B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543. PURIFICAÇÃO, Frei Miguel da ‐ Descripção da villa de Caminha, fl. 74 e 74v.  120  T.T., Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, lv. 3, fl. 175‐175v.  121  POLÓNIA, 2007a: vol. I, 290  116

110

caso  de  Vila  do  Conde,  no  qual  o  desenvolvimento  da  construção  naval  é  a  explicação apontada muito claramente pela respectiva vereação122.   Na  mesma  altura,  em  meados  de  quinhentos,  o  concelho  galego  de  Viveiro,  queixava‐se  do  "disipado  que estaban  los  montes" devido  ao  corte  de  madeira para exportação123. Não podemos, no entanto, ignorar a possibilidade  de  a  madeira  ser  expedida  a  partir  de  Caminha,  mas  ter  outros  pontos  de  origem,  como,  por  exemplo,  da  Galiza,  funcionando  como  porto  de  escoamento124.    d) Redistribuição e transporte    A análise feita até agora da dinâmica mercantil da comunidade marítima  de Caminha aponta para um raio de acção que se limita ao espaço ibérico. Mas  quais as hipóteses de uma participação mais alargada, nomeadamente ao norte  europeu, e, se esta existe, quais as suas características?   A Burgos, fazer um seguro marítimo, “vai desde o dono de um barco que  segura o casco, a artilharia da embarcação, até ao simples mestre que segura os  apetrechos  de  pesca  ou  mercadoria  miúda.  Mas  são,  fundamentalmente,  comerciantes,  desde  pequenos  mercadores  e/ou  particulares,  até  aos  elementos  das  grandes  dinastias  mercantis.”125.  Sendo  este  o  perfil  dos  contratantes portugueses que surgem nos seguros de Burgos, compreende‐se a  nossa  expectativa  em  obter  um  resultado  positivo  para  a  presença  de  mercadores  de  Caminha.  Um  filtro  feito  a  todo  o  universo  documental  não  tardou em revelar alguns resultados afirmativos. O quadro 6 resume os registos  que foram encontrados para contratantes de seguros, residentes em Caminha, e  cujas mercadorias tinham como destino o norte da Europa. Temos consciência  da  sua  reduzida  presença  quando  comparada  com  outros  portos  do  noroeste                                                               122

 POLÓNIA, 2007a: vol. I, 291   DUBERT, 2000: 265  124  BARROS, 2004a: 511‐513  125  CASADO ALONSO, 2003: 221  123

111

português,  como  o  Porto  ou  Viana126,  mas  não  deixa  de  ser  uma  importante  achega para o nosso estudo.  Quadro 6 – Contratantes de apólices de seguros marítimos em Burgos,  residentes em Caminha (Norte da Europa)  Ano 

Contratante 

Origem

Destino

Mercadoria 

1567 

Pero da Rocha 

Viana do  Castelo 

Antuérpia e  Londres 

açúcar e  algodão 

1569 

Gregório Pita 

Arosa 

Antuérpia 

açúcar e  algodão 

1570 

Gaspar Fernandes  Viegas 

Baiona 

Antuérpia 

‐ 

1570 

Pero d'Oia 

Viana do  Castelo 

Antuérpia 

‐ 

1572 

Gaspar Fernandes  Viegas 

Baiona 

Antuérpia 

açúcar e  algodão 

  Fonte: A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101 

  Os  resultados  que  este  quadro  sintetiza  encaixam  perfeitamente  no  esboço  que  temos  vindo  a  fazer  da  comunidade  marítima  em  estudo.  Em  primeiro lugar, continua a demonstrar uma acção conjunta com os portos que a  rodeiam:  Viana,  Arosa  e  Baiona,  imiscuindo‐se  nas  suas  frotas,  e  participando  nos  seus  circuitos.  Em  segundo  lugar,  ocupa‐se  da  redistribuição  de  produtos  coloniais,  como  o  açúcar  e  o  algodão  brasileiros,  fazendo  o  transporte  destes  até ao norte europeu (nomeadamente, e quase exclusivamente, até Antuérpia).   Manuel Fernandes Moreira identificou alguns mercadores vianenses que  estabeleceram verdadeiras redes de importação, distribuição, e escoamento do  açúcar. Com armazéns e sede em Viana, estes grandes mercadores açucareiros  faziam  chegar  o  produto  até  aos  seus correspondentes  no  norte  da  Europa127.  Comprovadamente,  os  mercadores  de  Caminha  estão  inseridos  nestas                                                               126 127

 CASADO ALONSO, 2003: 223‐224   MOREIRA, 1990: 206‐207

112

dinâmicas  mercantis.  Porém,  a  sua  acção  não  se  esgota  na  redistribuição  de  produtos  brasileiros.  O  mesmo  fundo  documental  regista  um  seguro  feito  em  1570,  pelo  caminhense  Francisco  Pires,  de  uma  carga  de  figos,  para  ser  transportada  entre  o Algarve  e Bilbau.  Este  tipo  de  transporte era realizado  já  em 1536, ano em que uma embarcação de Caminha é vítima de corso quando  transportava  figos  de  Tavira  com  destino  a  Antuérpia128.  Refira‐se  ainda,  em  1524, um outro navio também com origem em Caminha, e cujo mestre era João  de  Caminha.  Desta  vez  o  navio  sofreu  um  ataque  de  corso  na  costa  galega  quando se deslocava às Astúrias para carregar ferro129.  Estas  ocorrências,  ainda  que  casuísticas,  não  deixam  de  fornecer  alguns  apontamentos  sugestivos  quanto  ao  envolvimento  de  mercadores  e  transportadores  de  Caminha  em  circuitos  comerciais  que  integram,  mas  extrapolam, o espaço ibérico.   

  4.2.4. Circuitos transatlânticos     Compreende‐se  agora  que  a  participação  do  grupo  de  mercadores  em 

estudo,  nas  mais  variadas  rotas,  tem  de  ser  seriamente  considerada,  principalmente  em  articulação  com  os  centros  portuários  mais  próximos.  Uma  das principais rotas identificadas por Hilario Casado Alonso foi a do Brasil, que  fazia circular tecidos, alimentos e manufacturas europeias, em troca de açúcar e  algodão  brasileiros130.  Uma  vez  mais  procuramos  mercadores  de  Caminha  envolvidos neste circuito. O quadro 7 apresenta os resultados obtidos:                                                                     128

 FERREIRA, 1995: 349‐365, Apêndice I: Assaltos Franceses (T.T. – Corpo Cronológico, Parte 2º, maço 210, doc. 95)   FERREIRA, 1995: 415‐417, Apêndice III: Maus tratos  130  CASADO ALONSO, 2003: 218‐219     129

113

Quadro 7 – Contratantes de apólices de seguros marítimos em Burgos,  residentes em Caminha (Rota do Brasil)  Ano 

Contratante 

Origem

Destino

Mercadoria

1568 

Gregório Pita; Diogo  da Rocha Palacios e  Pero da Rocha 

Caminha 

São Salvador da Baía 

vinho 

1569 

Gregório Pita e Pero  da Rocha 

São Salvador da  Baía 

Viana do  Castelo/Vigo 

açúcar, algodão e  melaço 

Baía e Porto Seguro 

panos de linho, panos  de Castela e 20  cobertores 

1570 

Pero Frois 

Viana do Castelo 

1570 

Pero Frois 

Viana do Castelo 

Baía e Porto Seguro 

panos de linho,  ferramentas, sedas,  ferro, cobertores de  Castela 

1570 

Pero Frois 

Viana do Castelo 

Baía e Porto Seguro 

vinho e linho 

1571 

Pero Frois 

São Salvador e  Porto Seguro 

Viana do Castelo 

açúcar e algodão 

1571 

Pero Frois 

Porto Seguro 

Viana do Castelo 

açúcar, algodão e pau  Brasil 

1571 

Pero Frois 

Porto Seguro 

Viana do Castelo 

açúcar e algodão 

1579 

Gregório Pita e  Francisco da Rocha  Palacios 

São Salvador da  Baía 

Viana do Castelo 

açúcar e algodão 

Fonte: A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101 

  Novamente,  o  facto  de  a  esmagadora  maioria  dos  seguros  efectuados  não  envolverem  partidas  ou  chegadas  das embarcações  ao  porto  de  Caminha,  não impede a participação dos seus agentes na rota dos produtos brasileiros. A  proximidade a Viana, onde uma maior facilidade de escoamento para os centros  europeus fez que por aqui passasse uma parte do açúcar consumido na Europa,  permitiu  a  Caminha  absorver  o  dinamismo  deste  grande  circuito  mercantil.  “A  residência  dos  mercadores  e  as  parcerias  criadas  para  o  tráfego  e  tráfico  114

brasileiro  questionam  uma  observação  compartimentada  dos  portos”131.  Com  efeito,  a  grande  aceitação  do  açúcar  nos  mercados  internacionais  tornam‐no  apetecível, e provoca a adopção de estratégias que agilizem a sua distribuição.  No Porto, à semelhança do que vimos em Viana, verificou‐se uma organização  de  mercadores  em  torno  deste  comércio132.  De  uma  forma  geral,  os  agentes  mercantis  descolam‐se  do  seu  enquadramento  portuário,  para  se  movimentarem em todos os espaços por onde passa o produto (ou seguirem o  seu  movimento  através  de  correspondentes  e  parceiros  comerciais  estrategicamente colocados).   Se  recuperarmos  as  informações  do  quadro  relativo  ao  norte  europeu  testemunhamos  a  presença  de  agentes  de  Caminha  nas  várias  etapas  da  comercialização  dos  produtos  brasileiros:  vão  buscá‐los  à  origem,  fazem  a  sua  redistribuição  no  espaço  europeu,  e  recolhem  têxteis  e  vinho  que  levam  de  novo  para  o  Brasil.  Desta  forma,  são  também  os  protagonistas  das  ligações  entre  “Portugal  e  os  portos  europeus  de  Bordéus,  Nantes,  Ruão,  Londres,  Hamburgo e Antuérpia. É a troca das especiarias por produtos manufacturados,  sobretudo têxteis”133.  No Livro das navegações e comércio de Viana, testemunho por excelência  do  comércio  marítimo  quinhentista  deste  porto,  encontramos  os  mesmos  produtos  e  proveniências  que  até  agora  temos  enumerado:  panos  do  norte  europeu; açúcar e vinhos da Madeira; pão das ilhas; ferro das Astúrias; sardinha  e fruta da Galiza; bacalhau da Terra Nova; açúcar e algodão brasileiros134. Não  ignorantes  desta  vitalidade,  os  caminhenses  parecem  abarcar  todos  os  seus  sectores.  Em  1523  um  navio  com  origem  em  Vila  do  Conde  é  assaltado  por  corsários,  próximo  de  Viana.  Tinha  estado  nos  Açores  e  dirigia‐se  para                                                               131

 COSTA, 2000: 82‐84   BARROS, 2007b: 33  133  CASADO ALONSO, 2003: 218‐219  134  MOREIRA, 1982: 125‐126 132

115

Inglaterra, tendo os corsários levado dinheiro, pastel, o navio, e um homem de  Caminha  que  foi  “açoutado  e  desorelhado”  por  não  lhes  dizer  onde  estava  o  dinheiro.135 No ano de 1575 João Lopes, mercador e morador em Caminha, faz  uma procuração a seu sobrinho, Francisco de Brito, morador na Ilha da Madeira  para que, em nome dele recebesse todas as dívidas, dinheiro e mercadorias que  aí lhe deviam136. Com efeito, para além do comércio brasileiro, os mercadores  dos portos nortenhos especializaram‐se no das ilhas da Madeira e Açores.   Se assumirmos que os contextos sejam comuns a Entre‐Douro‐e‐Minho, e  baseando‐nos  no  que  está  dito  para  Vila  do  Conde,  para  os  arquipélagos  da  Madeira  e  Açores,  levava‐se  do  reino,  sal,  tecidos  em  peça,  beatilhas,  couros,  linho, estopa, a par de roupas variadas. Da Madeira trazia‐se vinho, conservas,  marmelada e, acima de tudo, açúcar, enquanto dos Açores provinham pastel e  trigo,  para  além  de  ouro,  este  certamente  como  forma  de  pagamento  de  produtos aí vendidos137.  E  para  que  a  lista  de produtos  e  circuitos  se  complete,  em  1579,  Simão  Dias e António Fernandes, mercadores de Caminha, Manuel Dias, mercador de  Vila do Conde e Gaspar Dantas, mestre e piloto, também de Caminha, obrigam‐ se como parceiros no aparelhamento da nau Nossa Senhora da Esperança, com  partida marcada para a Terra Nova, para ir à pesca do Bacalhau138.  Claramente, a vitalidade mercantil de uma comunidade marítima, como  Caminha, ultrapassa em muito o seu espaço portuário. O dinamismo dos portos  do noroeste português assentou na sua complementaridade, e na forma como  coordenaram a sua participação no período da expansão. Esta tese encontra no  comportamento  dos  agentes  caminhenses  mais  um  comprovativo.  Apontamos  para a existência de centros portuários de média dimensão, articulados entre si,  e  em  torno  dos  quais  gravitam  mercadores  de  localidades  costeiras  mais                                                               135

 FERREIRA, 1995: 415‐417, Apêndice III: Maus tratos    CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/0795 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 7, fl 26‐27  137  POLÓNIA, 2007a: vol. II, 59  138  CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/0996 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 9, fl. 46‐48  136

116

pequenas.  Estes  homens  associam‐me  entre  si,  ou  a  mercadores  de  maior  capital,  criando  parcerias  capazes  de  investimento.  A  sua  acção  é  bastante  heterogénea:  ocupam‐se  da  importação  dos  produtos,  da  sua  colocação  nos  mais variados mercados, e até mesmo da sua reexportação.   Relativamente às actividades da comunidade marítima em estudo, tema  deste  capítulo,  concluímos  apelando  à  mesma  imagem  híbrida  com  que  definimos o mareante: ocupação na pesca, desde a rocha ao mar alto; ocupação  no transporte, desde a cabotagem ao longo curso; ocupação no trato mercantil,  desde a vizinha Galiza ao Brasil. Para uma melhor compreensão de todas estas  actividades faltou conhecer a percentagem de homens que nelas se ocupa, e de  que  forma  estas  se  cruzam  e  complementam  entre  si.  Teria  sido  fundamental  perceber quantos são os pescadores e os mareantes envolvidos: em que alturas  se  ocupam  do  transporte?;  são  os  mesmos?;  que  percentagem  da  globalidade  consegue  alcançar  a  actividade  mercantil  de  maior  dimensão?  Por  último,  os  grandes  mercadores,  como  os  envolvidos  no  trato  do  açúcar,  constituem  uma  minoria, actuam exclusivamente em parceria com outros de outras localidades,  ou  chegam  a  ter  mesmo  capacidade  financeira  para  uma  actuação  isolada?  À  falta de indicadores quantitativos, tentaremos conhecer um pouco melhor estes  homens, abordando questões de sociabilidade, nomeadamente aferindo acerca  da sua integração na comunidade mais vasta, a vila de Caminha.  

117

5. Dinâmicas sociais     O  estudo  das  sociabilidades  das  comunidades  marítimas  apresenta  a  mesma  dificuldade  com  que  nos  deparámos  quanto  à  sua  caracterização  socioprofissional.  Se  concluímos  estar  perante  um  grupo  heterogéneo,  naturalmente não podemos contar com um bloco homogéneo do ponto de vista  de  perfis  e  de  práticas  sociais.  Ainda  assim,  tentaremos  abordar  algumas  questões de maior pertinência como o estudo da representação social do grupo;  a  identificação  de  mobilidade,  quer  em  termos  geográficos,  quer  em  termos  sociais;  a  caracterização  de  formas  de  organização  laboral;  e,  por  fim,  a  abordagem ao tema da espiritualidade e da assistência.   

5.1. Elites e hierarquias sociais     Em paralelo com as várias perspectivas através das quais temos analisado  a comunidade marítima de Caminha, importa que se questione a sua projecção  social,  e,  mais  concretamente,  os  espaços  de  elite  em  que  o  grupo,  eventualmente, se terá movimentado. Concordamos com a ideia de que, neste  tipo de estudos uma das questões que se deve colocar “é a de saber se as elites  económicas e sociais de determinado espaço portuário conseguem projectar‐se,  ou não, e com que peso, nos espaços e estruturas de poder”1.  Nas  sociedades  de  Antigo  Regime  a  posição  de  um  grupo  define‐se  a  partir  de  determinados  vectores,  como  o  estatuto  social  (direitos,  privilégios,  isenções,  acesso  ao  poder);  a  organização  socioprofissional  (integração  num  grupo profissional, ocupação na sociedade); a situação material (acesso a bens e 

                                                             1

 POLÓNIA, 2007b 

118

valores  patrimoniais  e  financeiros);  e  a  representação  sociocultural  (aparato  simbólico, auto‐representação)2.  Idealmente,  para  aferirmos  acerca  destes  vectores,  a  análise  da  documentação camarária, que nos informasse acerca do perfil socioprofissional  dos  agentes  do  poder,  seria  a  primeira  etapa  desse  trabalho.  No  entanto,  a  inexistência  desta  documentação  vedou‐nos,  logo  à  partida,  esta  metodologia  de  análise.  Ainda  assim,  encontramos  um  indicador  bastante  pertinente:  em  1567, os mareantes de Viana enviaram ao rei um requerimento no sentido de  obterem autorização para participarem “... no governo da dita villa, igualmente,  como os omens da terra, como se faz em Caminha, Villa do Conde, Porto, Aveiro  e Buarcos”3. A confirmar‐se esta realidade, que no caso de Vila do Conde4 e do  Porto5 está comprovada, podemos aceitar a hipótese de os homens do mar de  Caminha  se  fazerem  representar  no  poder  local  e  participarem  no  governo  da  vila, embora desconhecendo o peso ou o âmbito dessa mesma participação. A  base de recrutamento social das elites do poder local constitui também um bom  indicador.  Nos  inícios  do  século  XVI,  enquanto  que  a  população  de  Viana  era  constituída  por  13%  de  privilegiados6,  em  Caminha  este  grupo  representa  apenas 4% da população7. Neste contexto, para constituir o grupo dos elegíveis  para cargos concelhios, os melhores da terra, seria necessário recorrer a outras  camadas sociais, que não apenas membros da nobreza, abrindo‐se as portas da  vereação a oficiais mecânicos ou de mercancia8.  Perante  um  quadro  de  ausência  documental,  mas  que  indicia  uma  presença  dos  homens  do  mar  em  espaços  de  poder,  tornou‐se  necessário                                                               2

 POLÓNIA, 2004: 4‐5   MOREIRA, 1995: 58  4  POLÓNIA, 2007a e 2005a; PEREIRA, 2006  5   No  caso  do  Porto  a  representação  dos  homens  do  mar  era  feita  através  da  sua  participação  na  “Casa  dos  24”,  grupo composto por dois membros de cada actividade profissional, e que, desde D. João I, tem o direito a estar no  governo do concelho (Cf. BARROS, 2005). No caso de Vila do Conde esta participação é feita directamente através  de  cargos  de  vereação,  tendo  os  homens  do  mar  o  privilégio  de  aí  estarem  representados  em  paridade  com  os  homens da terra.  6 MOREIRA, 1984: 76    7 OLIVEIRA, 1976: 125‐165 8  POLÓNIA, 2005a: 32 3

119

encontrar  outros  espaços  de  elite,  para  os  quais  fosse  possível  obter  informação,  pelo  que  a  análise  do  fundo  documental  da  Misericórdia  de  Caminha  foi  a  etapa  seguinte.  De  carácter  profundamente  elitista,  “as  misericórdias constituíram um dos mais relevantes pólos de poder na sociedade  local”9.  Os  vários  estudos  que  recaem  sobre  estas  instituições  são,  de  forma  geral,  unânimes  em  afirmar  que  o  grupo  que  forma  a  mesa  da  misericórdia  coincide  com  os  indivíduos  que  efectivamente  detêm  o  poder  local,  nomeadamente são os mesmos que constituem a vereação.   A Misericórdia de Caminha teve o seu princípio em 1516. O seu primeiro  compromisso, idêntico ao da Misericórdia de Lisboa, de onde se mandou vir o  traslado, foi confirmado por D. João III em 1537. A sua igreja foi construída em  1551,  com  um  legado  deixado  por  Fernão  Pires  Viegas,  o  Velho.  A  partir  de  1566, a Misericórdia passou a administrar o hospital, que estava sob gestão da  câmara desde 1457, e que tinha como principal função prestar assistência aos  doentes estrangeiros, como os peregrinos, e não aos locais10. Sobre o número e  qualidades  dos  irmãos,  o  compromisso  da  Misericórdia  estabelece  algumas  limitações: não excederá os cem, sendo 50 nobres e 50 oficiais; são excluídas as  pessoas que não residam na vila, as que tenham cometido delito, e as menores  de 25 anos. Quanto aos oficiais mecânicos, tinham de ter tenda, bens próprios,  saber ler e escrever, sendo excluídos os aprendizes e os obreiros.   Um número reduzido de indivíduos, geralmente pertencentes às famílias  mais influentes a nível local, são os que devemos esperar encontrar a ocupar os  cargos de maior relevo, como o de provedor e o de escrivão. Em Caminha, isto  significa que nos vamos deparar com nomes como os: Abreu, Morais, Noronha,  Nóbrega,  Pita,  Rocha,  Soares,  Sousa,  ou  Vale11.  São  também  os  mesmos  que                                                               9

 SÁ, 1996: 136‐142   A.H.M.C. ‐ Notícia do princípio que teve a irmandade desta Santa Misericórdia com algumas cousas mais notáveis  que nela sucederam, 1734, fl. 36.  11   Pero  de  Abreu,  provedor  (1551  a  1553),  André  de  Noronha,  provedor  (1556  e  1557);  Baltasar  da  Nóbrega,  bacharel, escrivão (1578) e provedor (1577); António de Abreu do Vale, escrivão (1586 e 1589) e provedor (1594);  10

120

ocupam  cargos  concelhios  de  relevo,  verificando‐se,  muitas  vezes,  uma  coincidência, ou alternância, entre o cargo de vereador e provedor no mesmo  indivíduo12.   Uma limitação que nos impõe a fonte, mais especificamente, o registo de  irmãos da Misericórdia de Caminha, é o facto de não indicar claramente quais  os irmãos maiores e quais os menores, o que não nos permitiu aferir acerca de  hierarquias,  nomeadamente  entre  ofícios.  Tivemos  que  nos  apoiar  na  divisão  social que está identificada para outros espaços, pelo que será de esperar que  do  grupo  de  irmãos  maiores  façam  parte  os  indivíduos  que,  através  do  cruzamento  feito  com  outras  fontes  documentais,  identificamos  como  sendo  vereadores, escrivães, juizes ordinários, procuradores do número, recebedores  das sisas, recebedores da sisa dos panos, e até mesmo guardas da alfândega13.  Uma outra limitação decorre do facto de a indicação da profissão não constituir  uma  norma,  mas  antes,  um  apontamento  muito  casual.  O  número  de  referências laborais recolhidas demonstra bem a sua pouca representatividade  no universo dos irmãos.                                                                                                                                                                                         Brás Roiz Pita, cavaleiro da Ordem de Cristo e procurador às cortes de Almeirim em 1580, e provedor (1586, 1595 a  1598). In B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543, fl. 31v a 33; e AVILLEZ, 1935: 58‐60 12  Gaspar da Nóbrega, vereador em 1562, escrivão (1558) e provedor (1562 e 1566); Gastão da Rocha, vereador em  1562 e provedor (1575); António Pita da Vale,  procurador do número, escrivão (1564) e provedor (1582 e 1590);  Manuel  Lobo,  escrivão  das  sisas  e  almoxarife  da  alfândega  de  Caminha  e  provedor  (1580  e  1589).  In  B.P.M.P.  ‐  Reservados, Ms. 543, fl. 31v a 33; e T.T. – Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, lv. 3, fl. 175; lv. 39,  fl. 244; lv. 19, fl. 215v; Doações, lv. 20, fl. 339, 339v, e 421 a 422v.  13   Pero  Lopes  Calheiros,  vereador  em  1562;  António  Lobo,  escrivão  e  juiz  ordinário  da  vila  em  1553;  Afonso  de  Crasto, juiz ordinário da vila; Cristóvão Mendes, procurador do número; Gaspar da Fonseca, recebedor das sisas dos  panos  da  alfândega  de  Caminha  em  1591;  Jacome  Pires,  guarda  da  alfândega de  Caminha;  Rui  Novais,  recebedor  das sisas de Caminha. In T.T. – Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, lv. 3, fl. 175, lv. 7, fl. 80, lv. 14,  fl. 472, e lv. 19, fl. 158v; Chancelaria de Filipe I, Privilégios, lv. 17, fl. 443v; A.H.M.C. ‐ Maços de escrituras de prazos,  1532‐1912 

121

Quadro 8 – Ofícios dos irmãos da Misericórdia de Caminha, referidos no  Registos dos Irmãos do Cento  1560

1561

1567

1573

1583 

Mareante 



10 





 

Marinheiro 

 







 

Pescador 

 

 







Mercador 









 

Alfaiate 











Sapateiro 

12 

16 

16 

16 

17 

Barbeiro 











Tanoeiro 





 

 



Cordoeiro 











Barqueiro dos  Frades 







 

 

Ferreiro 

 





 



Carpinteiro 

 



 

 



Tosador 

 

 







Sombreireiro 

 

 







Entalhador 

 

 

 

 



Tendeiro 

 

 

 

 



Pintor 

 

 

 

 



Total 

30 

43 

33 

30 

43 

Total irmãos 

117 

140 

132 

119 

185 

Fonte: A.H.M.C. – Livros de receita e despesa, 1551 a 1594 

  O  quadro  8  sintetiza  a  recolha  feita  de  todas  as  referências  laborais  fornecidas  acerca  dos  indivíduos  que  podemos  considerar  como  sendo  os  irmãos  menores,  ou  seja,  o  grupo  dos  oficiais.  Para  além  de  ajudar  a  uma 

122

aproximação  ao  quadro  socioprofissional  da  comunidade  em  estudo,  permite‐ nos  relativizar  a  representatividade  dos  ofícios  marítimos  no  universo  da  Misericórdia.   Uma  das  primeiras  observações  a  fazer  relaciona‐se  com  o  elevado  número  de  irmãos,  verificado  em  todos  os  anos  analisados,  que  excede  em  muito  o  número  de  cem  que  o  compromisso  estabelece.  Este  fenómeno  é  referido  na  documentação  da  Misericórdia,  na  qual  se  diz  que  não  seriam  aceites  mais  elementos  “... até  se  reduzir a  irmandade  pois  tinham  excesso  de  irmãos”14.  Logo  de  seguida  aponta‐se  como  justificação  a  ausência  de  muitos  deles.  Considerando  o  contexto  socioprofissional  da  comunidade  na  qual  se  insere a irmandade, é natural que este indicador nos sugira um cenário de um  grupo numeroso de irmãos que se ocupa em actividades marítimas, obrigando‐ os muitas vezes a ausências prolongadas. Isto explicaria que se aceitassem mais  irmãos  que  a  centena  estipulada,  visto  que  a  sua  presença  efectiva  difere  do  número  real  de  inscritos15,  e  coloca  em  questão  a  veracidade  da  sua  representatividade expressa no nosso universo de dados.    

Quadro 9 – Homens do mar na Misericórdia de Caminha, referidos no Registos  dos Irmãos do Cento  1560

1561

1567

1573

1583 

Mareante 



10 





 

Marinheiro 

 







 

Pescador 

 

 







Barqueiro dos Frades 







 

 

Total 



13 







Total ofícios 

30 

43 

33 

30 

43 

Fonte: A.H.M.C. – Livros de receita e despesa, 1551 a 1594                                                               14

 A.H.M.C. ‐ Notícia do princípio que teve a irmandade desta Santa Misericórdia com algumas cousas mais notáveis  que nela sucederam, 1734, fl. 4v a 7v.  15   Na  verdade,  este  excesso  de  irmãos  como  forma  de  assegurar  o  cumprimento  das  tarefas,  face  a  um  número  elevado de ausências, verifica‐se também em outras misericórdias. Ver ARAÚJO, 2000: 80‐81

123

Quanto  à  questão  da  representatividade,  cremos,  na  verdade,  poder  afirmar que o número efectivo de mareantes excederia em muito o número dos  registados  como  tal.  Apoiamo‐nos  em  dois  exemplos  de  indivíduos,  cujo  percurso  foi  reconstruído  através  do  cruzamento  de  fontes  documentais.  Gaspar Dantas, irmão da Misericórdia pelo menos entre 1560 e 1583, apesar de  nunca ter referido a sua ocupação, surge, em 1579, numa parceria para a pesca  do  bacalhau  na  Terra  Nova,  como  mestre  e  piloto  da  nau  Nossa  Senhora  da  Esperança16. À sua semelhança, Pero Frois, também irmão entre 1560 e 1583, é  identificado  como  mestre  do  navio  Nossa  Senhora  da  Nazaré  em  157017.  A  sustentar esta ideia está também a coincidência de nomes entre os irmãos da  Misericórdia  e  os  confrades  da  irmandade  dos  mareantes  de  Caminha.  Esta  coincidência  é  sustentada  pela  referência  que  encontramos  em  1594,  quando  um  irmão  da  Misericórdia,  Miguel  Álvares,  no  seu  testamento,  pede  ao  mordomo  da  Confraria  do  Bom  Jesus  “...  que  levem  a  cruz  da  dita  confraria  acompanhando o meu corpo por quanto eu sou confrade da dita confraria”18.  Apesar  destas  considerações,  procedemos  à  análise  dos  números  sintetizados  nos  quadros.  Concluímos  que  o  ano  de  1561  é  o  que  apresenta  o  maior  número  de  referências  laborais,  com  31%  dos  irmãos  com  actividade  registada,  seguido  do  ano  anterior,  1560,  com  26%  de  referências.  Elegemos,  desta forma, estes dois anos como os mais representativos e filtramos os ofícios  marítimos. Em 1560, 20% dos oficiais identificados são marítimos, em 1561 este  grupo  atinge  os  30%.  Curiosamente,  porque  realmente  desconhecemos  as  razões deste fenómeno, nos últimos anos, a par do aumento da diversidade de  ofícios  e  do  seu  número,  os  mareantes  parecem  desaparecer  da  Misericórdia  (de 10 identificados em 1561 passam a apenas 1 em 1567).  

                                                             16

 CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/0996 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 9, fl. 46‐48   A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101  18  A.H.M.C. – Maços de testamentos, 1557‐1749  17

124

Como  o  registo  de  irmãos  constitui  o  único  indicador  deste  declínio  das  actividades marítimas, não pudemos aferir acerca da sua representatividade. Na  verdade,  pode  tratar‐se  apenas,  por  exemplo,  de  uma  exclusão  imposta  pela  Misericórdia,  ou  pela  preferência  de  integrar  elementos  de  outros  grupos  socioprofissionais  em  detrimento  dos  homens  do  mar.  No  entanto,  não  podemos  deixar  de  comparar  com  o  que  está  aferido  para  outros  espaços  portuários.  Em  Vila  do  Conde,  a  partir  das  últimas  décadas  de  quinhentos,  verifica‐se  um  real  decréscimo  de  marítimos  nas  referências  laborais,  quer  na  documentação  da  Misericórdia,  quer  na  documentação  de  carácter  fiscal.  Amélia Polónia aponta como quadro explicativo “os consabidos riscos com que  se  debatem  as  navegações  ultramarinas,  acrescidos  pela  união  dinástica  e  correlativos confrontos com inimigos da coroa espanhola: holandeses e ingleses,  directamente ligados ao incremento do corso e da pirataria. Ataques sucessivos,  percas  de  embarcações,  saques  arruinantes  tornariam,  por  certo,  menos  atractivos  para  a  iniciativa  privada  os  negócios  de  transporte  e  comércio  ultramarino  e,  de  um  modo  geral,  menos  atraentes  as  carreiras  profissionais  ligadas a estas actividades.”19.   Considerando o universo de irmãos e o nosso desconhecimento sobre o  seu  efectivo  perfil  ocupacional,  temos  que  admitir  que  estes  resultados  constituem  mais  um  exercício  estatístico  do  que  uma  representação  da  realidade  histórica.  Acreditamos  mesmo  que,  por  vezes,  as  informações  qualitativas  acabam  por  ser  mais  ricas  do  ponto  de  vista  do  conhecimento  do  que as quantitativas. Senão vejamos: o irmão Domingos Fernandes apresenta‐se  em  1567  e  1583  como  pescador.  Apesar  de  todas  as  limitações  impostas  pelo  compromisso  e  de  todo  o  carácter  elitista  das  misericórdias,  a  de  Caminha  aceita no seu grupo um pescador. Apesar de estatisticamente irrelevante, como  caso  isolado  que  é,  revela‐se  de  uma  enorme  relevância  para  a  compreensão  das  dinâmicas  sociais  específicas  das  comunidades  marítimas.  No  caso  de  Vila                                                               19

 POLÓNIA, 2007a: vol. I, 440 

125

do Conde, será necessário chegarmos a seiscentos para encontrar um pescador  como  irmão  da  Misericórdia,  pelo  que  durante  toda  a  centúria  de  quinhentos  este espaço de elite é‐lhes completamente vedado20.   Igualmente relevante é o testamento de Vicente Gonçalves, marinheiro,  que em 1553 lega uma quantia em dinheiro à Misericórdia, pois “...disse que na  Casa da Índia em Lisboa lhe deviam 3500 reis que lhe ficaram devendo quando  veio  da  Índia  do  seu  serviço  do  ano  de  550”21.  A  Misericórdia,  a  quem  interessava  integrar  indivíduos  com  avultados  legados  que,  após  o  seu  óbito,  ficassem  para  património  da  casa,  encontra  também  no  grupo  dos  marítimos  elementos atractivos.  Um outro grupo de interesse para o nosso estudo é o dos mercadores. Se  numa primeira leitura parecem constituir uma minoria dentro da Misericórdia,  com  apenas  2  registos  anuais,  à  semelhança  do  que  acontece  com  os  ofícios  marítimos,  eles  seriam  em  muito  maior  número.  Mais  uma  vez,  o  cruzamento  com  outros  dados  permitiu‐nos  identificar  mais  11  mercadores  no  grupo  de  irmãos  da  Misericórdia.  Este  processo  permitiu‐nos  concluir  ainda  que,  para  além de serem muito mais numerosos, os mercadores ocuparam muitas vezes  os lugares de maior importância na mesa da Misericórdia, pelo que muitos deles  deveriam  ser  do  grupo  dos  irmãos  maiores,  ideia  sustentada  pelo  facto  de  os  seus nomes serem registados logo a seguir aos das famílias mais nobres.   Apontemos  alguns  exemplos  ilustrativos.  Diogo  da  Rocha  Paços,  mercador  de  grosso  trato,  incorporando  a  rota  do  Brasil  em  156822,  ocupa  o  cargo de escrivão da Misericórdia em 1574. Nesse mesmo ano, a documentação  regista a chegada de uma imagem do Bom Jesus crucificado, colocada no altar  das  chagas  da  Igreja  da  Misericórdia,  e  que  teria  sido  trazida  da  Flandres  por 

                                                             20

 PEREIRA, 2006: 106   A.H.M.C. – Maços de escrituras de prazos, 1532‐1912  22  A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101  21

126

Diogo da Rocha Paços e João de Oia23. Gaspar Fernandes Viegas, identificado na  documentação como fidalgo, foi escrivão em 1551, 1552, 1554 e 1559. No ano  de  1570  encontrámo‐lo  a  reexportar  produtos  brasileiros  para  Antuérpia24.  Afonso Mendes, escrivão em 1567, ocupa‐se, no ano seguinte, do transporte de  pescado  para  o  Mediterrâneo25.  Gregório  Pita  Calheiros,  mercador  envolvido  nos  produtos  brasileiros26,  depois  de  ser  escrivão  em  1568,  chega  mesmo  a  ocupar  o  cargo  de  provedor  em  1574.  Estes  casos  são  bastante  significativos,  pois  também  comprovam,  para  além  da  presença  dos  mercadores  na  Misericórdia, o seu peso e a sua influência, principalmente quando são grandes  mercadores.  Miguel  Álvares,  no  seu  testamento,  em  1594,  apesar  de  não  mencionar a sua ocupação, entre os legados que deixa à Misericórdia, refere “...  1500  cruzados  pouco  mais  ou  menos  entre  móvil  e  raiz  e  dinheiro  que  será  pouco na casa ao presente nalguma mercadoria que está na casa e encomendas  que  tenho  mandadas  por  via  de  Viana  para  Bilbau  e  daqui”27.  Este  mercador  pede que o seu corpo “... seja enterrado numa sepultura que eu tenho na casa  de nossa senhora da misericórdia na capela grande”.    Ainda  sobre  o  grupo  de  mercadores  não  queremos  deixar  de  referir  a  presença  de  três  cristão‐novos  na  Misericórdia.  Henrique  Vaz,  mercador,  apanhado pelo Tribunal da Inquisição em 155728, é solto dois anos depois, pelo  que  em  1560  surge  já  como  irmão  da  Misericórdia.  A  ele  juntemos  os  mercadores Simão Dias29 e Simão Lopes30, cujos percursos nos serão úteis para  o próximo ponto.                                                                   23

 B.P.M.P. ‐ Reservados, Ms. 543, fl. 31.   A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101  25  A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101  26  A.D.P.B. ‐ Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101  27  A.H.M.C. – Maços de testamentos, 1557‐1749  28  T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 2930  29  T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 4514  30  T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 4520 24

127

5.2. Mobilidades geográficas e sociais     Numa 

comunidade 

marítima 

são 

esperados 

determinados 

comportamentos  populacionais  específicos,  nomeadamente  uma  elevada  mobilidade  geográfica  dos  seus  agentes,  que  resulta,  invariavelmente,  em  consideráveis  taxas  de  migração  e  de  casamentos  envolvendo  nubentes  exógenos à comunidade.  Face  à  inexistência  de  fontes  documentais  que  nos  permitissem  aferir  acerca destes fenómenos, nomeadamente de registos paroquiais, mais uma vez  tivemos  que  nos  limitar  a  indicações  casuais,  e  mais  sugestivas  do  que  conclusivas.  Sobre  o  universo  dos  mareantes  não  pudemos  aferir  nada  de  concreto.  Os  notariais  de  Vila  do  Conde  informam‐nos  apenas  que  a  vila  acolhia  alguns  indivíduos  de  Caminha,  como  o  caso  de  Francisca  Gaspar  e  do  seu  marido,  mareante, em 159631; e de João Rodrigues, pescador, e sua mulher, em 158032.  Comprovamos,  desta  maneira,  a  migração  de  marítimos  para  espaços  portuários  relativamente  próximos,  mas  também  apontamos  a  hipótese  de  deslocações  a  grande  distância,  pois  em  1573  o  provedor  da  Misericórdia  de  Vila  do  Conde  regista  que  se  “...  despendeo  com  hum  omem  e  sua  mulher  e  synqo filhos que veo de Caminha e vai pera Lixboa cento e cinquenta reaes”33.  Relativamente à comunidade mercantil, conseguimos reunir mais alguma  informação,  embora  muito  episódica  e  muito  específica  de  determinados  agentes  individuais.  Na  verdade,  o  seu  carácter  biográfico  justifica  que  tenhamos  substituído  os  habituais  gráficos  que  sintetizam  tendências  de  mobilidade e nupcialidade, por um esquema de carácter genealógico, mas que  se torna, igualmente ilustrativo.                                                               31

 CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/1956 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 20, fl. 30‐31v   CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/1063 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 9, fl. 196v‐198  33  POLÓNIA, 2007a: vol. II, 339 32

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  Fig. 19 – Genealogia de Simão Dias.  Fonte: T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 4514 e 5810;  Inquisição de Coimbra, Processo n.º 10073 

  Simão  Dias,  não  sendo  filho  de  um  mercador,  possui,  no  seu  contexto  familiar, fortes relações com o pequeno comércio: um dos seus tios é marceiro e  o outro tendeiro. Todos os seus irmãos abandonam Monção, pelo que três deles  se instalam em Viana (o mais velho segue o ofício do pai, alfaiate, embora dos  outros dois desconhecemos a ocupação) e a irmã vai para Vigo. Simão Dias opta  por  se  instalar  em  Caminha,  onde  exerce  a  sua  ocupação  como  mercador.  A  partir  do  esquema  da  fig.  19  é  bastante  perceptível  a  adopção,  por  três  gerações, do mesmo tipo de comportamento nupcial: Henrique Vaz, mercador,  casa a sua filha com um mercador, que por sua vez, casa a sua filha com outro  mercador.  De  certa  forma,  na  ausência  de  um  descendente  masculino  que  integre o negócio familiar, o casamento do elemento feminino com um membro  do  mesmo  grupo  assegura  a  sua  continuação,  e,  talvez  mesmo,  o  seu  alargamento, através da concretização de eventuais novos contactos.   Relativamente  a  estas  ligações,  é  fundamental  a  mobilidade  verificada  nesta  rede  familiar:  Simão  Dias  possui  contactos  com  comerciantes  em  Viana,  no  Porto,  e  com  o  seu  genro,  mercador  em  Vila  Real.  Para  que  este  esquema  tivesse  realmente  impacto  na  nossa  percepção  das  dinâmicas  sociais  das  comunidades  mercantis,  seria  crucial  verificar  se  estas  ligações  familiares  se  129

concretizam de forma consciente e calculada por parte dos agentes, ou seja, se  a  esta  rede  familiar  realmente  correspondeu  um  aumento  de  ligações  comerciais e uma rede de negócios. Sobre isso pouco sabemos, embora Simão  Dias relate uma ida a Baiona com o seu irmão alfaiate para comprar islandros; e  uma  outra  ida  à  ribeira  de  Viana  para  comprar  pescado  com  um  outro  seu  irmão.  Também  sabemos  que  por  parte  da  sua  mulher  tinha  contactos  na  Galiza, visto que, quando foi apanhada pelo Tribunal da Inquisição, Grácia Vaz  encontrava‐se num porto perto de Santiago, com o intuito de embarcar para a  Flandres ou Inglaterra. Teria andado fugida pela Galiza e Astúrias e acabou por  ser trazida a tribunal pelo seu irmão34.   Apesar  de  não  podermos  aferir  acerca  da  relevância  das  ligações  familiares,  uma  coisa  sabemos  por  certo:  as  ligações  mercantis  de  Simão  Dias  ultrapassavam  as  referidas  até  agora.  Em  1578,  Guilherme  Incol,  inglês,  passa  uma  quitação  a  Manuel  Dias,  mercador  de  Vila  do  Conde,  de  uma  dívida  contraída em Baiona, por Simão Dias, Simão Lopes e António Fernandes, todos  mercadores  de  Caminha35.  Este  Simão  Lopes  era  também  um  cristão‐novo,  residente em Caminha, mas natural de Viana; ia algumas vezes a Braga e Viana  vender suas mercadorias e à feira de São Bento em Caminha36.   Em  1585,  António  Henriques  e  Manuel  Pinheiro,  mercadores  da  vila  de  Trancoso, reconhecem uma dívida a Miguel Rodrigues, mercador, morador em  Vila  do  Conde,  e  a  Simão  Lopes,  que  se  diz  ser  cunhado  do  anterior37.  Um  registo notarial, de 1586, informa‐nos ainda que o já referido mercador de Vila  do  Conde,  Manuel  Dias,  e  Simão  Dias,  estavam  envolvidos  numa  parceria  de  compra e venda de panos de Londres, e de outras mercadorias, que mantiveram  durante anos38. Na mesma altura, à semelhança deste caso, Miguel Rodrigues,                                                               34

 T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 4514 e 5810   CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/0893 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 8, fl. 58v‐60  36  T.T. ‐ Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 4520  37  CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/1238 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr. 38  CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/1440 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 13, fl. 155v‐156  35

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mercador  de  Caminha  reconhece  uma  dívida  de  Jorge  Barreto,  morador  na  cidade de Viseu, por certa quantia de panos e roupa que este lhe comprara39.  As  ligações  verificadas  a  Vila  do  Conde  deverão  ser  reforçadas  com  a  presença  significativa  de  mercadores  caminhenses  neste  espaço  portuário,  presença essa, comprovada por Amélia Polónia40.  Apesar  de  não  nos  ser  permitido  contabilizar  este  tipo  de  ligações,  os  casos  referidos  demonstram,  que  também  Caminha  é  marcada  pela  “grande  mobilidade  populacional,  que  tem  nos  portos  espaços  de  atracção,  que  gere  dinâmicas  sociais  que  são  marcantes,  e  por  vezes  específicas,  de  sociedades  marítimas,  e  que  conduz  a  um  cosmopolitismo  com  significativas  projecções  sociais”41.  Convém agora esclarecer até que ponto toda esta mobilidade geográfica,  assim como o estabelecimento de ligações com novos elementos, se concretiza  em mobilidade social, ou seja, aferir acerca de permeabilidades na comunidade  marítima.  Entendemos,  porém,  considerar  mobilidade  social,  não  no  sentido  habitual  de  ascensão  a  novas  camadas  sociais  através  da  concessão  de  privilégios ou títulos nobiliárquicos, mas sim a mobilidade entre os sub‐grupos  dos homens do mar. Optamos por esta conceptualização, pois apesar de serem  todos marítimos, um pescador não possui o mesmo prestígio, nem apresenta o  mesmo tipo de comportamento que, por exemplo, um marinheiro ou um piloto.  Com efeito, a integração em determinados grupos implica, com frequência, um  distinto  recrutamento  social.  Para  Vila  do  Conde,  Amélia  Polónia  concluiu  que  enquanto os pescadores tendem a fazer um recrutamento endógeno ao grupo,  os  marinheiros  parecem  oferecer  proveniências  sociais  mais  alargadas:  podem  ser  filhos  de  pescadores,  de  artesãos  e  mesmo  de  agricultores,  que  por  uma  questão  de  oportunidade,  prestígio  profissional  e  mobilidade  tendem  a                                                               39

 CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/3384 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 3 sr., lv. 1, fl. 79v‐80v   POLÓNIA, 2007a: vol. II, 133  41  POLÓNIA, 2007b 40

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alimentar o universo da navegação42. Os homens do mar de Caminha parecem  reconhecer estes mesmos princípios de recrutamento: no registo de irmãos da  Misericórdia,  de  Alexandre(?)  Fernandes,  identificado  como  marinheiro,  diz‐se  ser  genro  de  Gonçalo  Roiz,  pescador43.  Em  1580,  João  Rodrigues,  pescador,  e  sua  mulher,  passam  uma  procuração  a  um  mareante  de  Vila  do  Conde,  para  poder receber dos oficiais da Casa da Contratação de Sevilha todos os bens que  tivessem ficado de seu filho, mancebo solteiro, que faleceu vindo das Índias de  Castela na nau de Antão Sanches44.  Uma  outra  dinâmica  social  específica  das  comunidades  marítimas  que  gostaríamos de ver mais bem documentada é a do trabalho feminino.   É consensual a ideia de que o peso do protagonismo feminino, no mundo  do  trabalho,  na  família  e  na  própria  sociedade,  é  grande  em  comunidades  marítimas,  ideia  explicada  pelas  ausências  masculinas,  e  pela  importância  da  complementaridade  de  um  rendimento  adicional45.  Embora  se  revista  de  diferentes características, consoante o grupo marítimo considerado, no mundo  da pesca o trabalho feminino desenvolve‐se em termos de complementaridade  e no próprio âmbito de extracção, transformação e venda do pescado46. É este  tipo  de  trabalho  feminino  que  pudemos  documentar  em  Caminha.  A  documentação municipal de Baiona, que nos deu a conhecer o circuito terrestre  do pescado entre a Galiza e Portugal, identifica os compradores portugueses, no  ano de 1565, da seguinte maneira: 6 homens de Monção; 1 homem de Lisboa; 1  homem  de  Trancoso;  e  3  mulheres  de  Caminha47.  Ou  seja,  enquanto  que  em  Caminha  são  as  mulheres  as  responsáveis  por  este  circuito,  em  Monção,  também uma vila de fronteira, são os homens. Se considerarmos a diferença de  realidades socioprofissionais entre povoações do litoral e do interior, este facto                                                               42

 POLÓNIA, 2007b   A.H.M.C. ‐ Livro de receita e despesa, 1551‐1561, fl. 275  44  CEDOPORMAR/A/a/a/02/001/1063 – Notariais Vila do Conde, 1º cart., 1 sr., lv. 9, fl. 196v‐198  45  POLÓNIA, 2007b  46  AMORIM, 2002  47  Libro de la fieldad, 1565. Publ. in GARCÍA ORO, PORTELA SILVA, 2003: 417‐452 43

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torna‐se bastante compreensível. Com efeito, não nos custa nada aceitar que os  homens  de  Caminha,  ocupados  na  pesca,  no  transporte,  e  no  comércio  marítimos, delegassem nas mulheres o abastecimento feito por via terrestre.    

5.3. Formas de organização laboral    No  que  se  refere  ao  universo  dos  pescadores,  dois  aspectos  o  caracterizam em todas as épocas e em toda a Europa: a interdependência das  actividades e a solidariedade necessária entre os homens, perceptíveis a todos  os níveis. Aos laços da comunidade familiar vêm reunir‐se os da comunidade de  trabalho.  Desta  forma,  os  pescadores,  com  o  aval  dos  poderes  públicos,  dotaram‐se de organizações profissionais reforçadas por confrarias religiosas48.  Elas constituem‐se em associações de leigos que livremente se comprometem a  respeitar  e  a  cumprir  as  normas  associativas  consignadas  por  escrito  ou  meramente consuetudinárias49.   Mas  até  que  ponto  as  confrarias  se  limitam  a  ser  “um  meio  de  participação  mais  intenso  de  um  grupo  de  leigos  na  actividade  eclesiástica,  como  um  estádio  intermediário  entre a  vida  cristã  no  século  e a  vida  religiosa  em  comunidade”?50    Não  são  as  confrarias  bem  mais  do  que  isto?  Apesar  de  libertas  da  fiscalização  e  superintendência  das  autoridades  municipais,  não  poderemos  ver  nelas  uma  forma  de  regulamentação  do  “mester”/“ofício”  de  marear  ou  pescar?  Não  são  elas,  na  verdade,  uma  espécie  de  corporação  de  ofício,  numa  arte  em  que  estas  são,  por  norma,  inexistentes?  Conscientes  da  interdependência  das  suas  tarefas,  as  gentes  do  mar  ganharam  o  hábito  de  deliberar  sobre  o  que  convinha  fazer.  Cedo,  essas  comunidades,  identificadas  por  uma  confraria,  revelam  um  espírito  muito  vivo  de  interdependência  em  todos os aspectos: moral, religioso, e por vezes, disciplinar.                                                                48

 JOURDIN, 1995:177‐181   MARQUES, 1989: 42  50  MARQUES, 1981: 169 49

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Tendo  recorrido  à  documentação  da  Confraria  do  Bom  Jesus  dos  Mareantes para esclarecer matérias de carácter laboral, podíamos ser levados a  pensar  nesta  instituição  como  uma  forma  de  organização  corporativa  da  comunidade marítima caminhense no séc. XVI. Porém, da análise feita aos seus  estatutos e ordenações depreendem‐se mais prescrições de carácter espiritual e  assistencial, do que propriamente laboral. Não negamos que esta encerre em si  uma  forma  de  hierarquia  e  de  regulamentação  social;  porém,  estas  recaem  sobre  os  mareantes  enquanto  confrades,  e  não  enquanto  agentes  profissionais51.   Procurando nessa documentação indícios sobre as formas de organização  e a hierarquia interna do trabalho dos homens do mar, definidas em contextos  essencialmente laborais, obtivemos alguns indicadores significativos. É possível  aferir:   ‐  a  reunião  dos  homens  do  mar  em  companhas  dirigidas  por  um  mestre52;   ‐  a  existência  de  restrições  à  mobilidade  dos  companheiros  pelas  diferentes companhas53;   ‐ o modelo organizativo parece ser comum na pesca no Brasil54;   ‐  a  existência  de  uma  forte  preocupação  com  a  estipulação  de  deveres  inerentes aos cargos de maior responsabilidade, como os de mestre e regedor55. 

                                                            

51   É  também  de  considerar  o  nosso  total  desconhecimento  da  dimensão  desta  Confraria,  e  do  peso  da  sua  representatividade no totalidade dos homens do mar.  52  “... a todos os mestres das pinaças e a suas companhas” (1549). A.C.B.J.M.C. ‐  Livro de Acórdãos da Confraria do  Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9.  53  “... se for cazo que algum companheiro contradisser ao mestre ou a campanha a não queres deyxar suas redes aos  lanços ou aquella que se tras todo o anno nenhum mestre, nem companha nem outros nenhuns mestres o levara  comsiguo sob penna” (1549). A.C.B.J.M.C. ‐  Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes , fl. 9. 54  “... em cada companhia que no brasil possão dar o carguo a hum homem o que lhe pareser de mais conviencia  para  que  da  sua  companhia  cada  escuro  que  fizerem  conta  tirem  sua  esmola  pera  a  dita  comfraria”  (1630).  A.C.B.J.M.C. ‐  Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 16v.  55  “.... sempre o mestre da tal pinaça seja obrigado a dar conta do pescado que a dita rede pescar” (1549).; e “...  assinaram  regedores  dos  marinheiros  Bernardo  Annes  e  os  mais”  (1630).  A.C.B.J.M.C.  ‐    Livro  de  Acórdãos  da  Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 8v e fl. 16v. 

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Confessamos  as  nossas  expectativas  frustradas  em  relação  à  apreensão  do  quotidiano  desta  comunidade  marítima,  aspectos  bem  mais  esclarecidos  pela  documentação  de  confrarias  congéneres  da  Galiza56.  Aqui,  a  origem  e  o  desenvolvimento  das  organizações  confraternais  dos  homens  do  mar  resultou  da  necessidade  de  responder  às  novas  exigência  de  um  sector  piscícola  em  rápida  expansão.  Eram  necessárias  frotas  bem  apetrechadas  e  artes  de  pesca  mais  eficazes;  era  necessário  criar  apoio  legal  e  impulsionar  o  trato  mercantil,  para que se defendessem colectivamente e dessem saída às suas capturas. Nas  regiões  onde  os  pescadores  careciam  destes  recursos,  tornaram‐se  dependentes  de  intermediários  para  os  quais  trabalhavam  e  que  garantiam  o  investimento  e  a  venda  do  peixe.  Noutras,  como  é  o  caso  da  Galiza,  os  pescadores  tinham  já  um  marco  profissional  forte  ‐  a  confraria  ‐  que  assume  estas  funções,  garantindo  a  autogestão  dos  recursos57.  Nada  sabemos  sobre  contextos semelhantes em Portugal.  Ainda  relativamente  aos  homens  que  instituíram  esta  Confraria  em  Caminha,  seria  de  muito  interesse  termos  a  noção  do  seu  número  e  perfil  socioeconómico. O único indicador que, para já, encontramos, foi para o ano de  1670, em que num registo se escreveu: “Irmandade que oye passa de dusentos  e  tantos  irmans”58.  Trata‐se  de  uma  informação  dada  pelo  Frei  Gonçalo  de  Morais,  juiz  conservador  da  Confraria.  Este  dado,  além  de  ser  para  a  segunda  metade do século XVII, terá de ser cruzado com outros números de população  para  o  mesmo  período,  para  lhe  podermos  dar  algum  valor.  Porém,  é  impressionante  a  diferença  que  encontramos  quando  o  cruzamos  com  a  realidade envolvente, ainda que para um período anterior: em 1562 a Confraria 

                                                             56

 A costa galega era salpicada por confrarias que assumiram verdadeiras funções corporativas e de organização do  trabalho dos homens do mar, como demonstra ERKOREKA GERVASIO, 2003: 43‐71  57  FERREIRA PRIEGUE, 1998: 65  58  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 24 a 24v. 

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de  Viana  contava  com  5060  irmãos59  e  Pontevedra  tinha  2000  membros  em  155060.   

5.4. Formas de espiritualidade     Do ponto de vista devocional, a gente do mar, em particular as mulheres,  que  vêem  os  seus  homens  partir  à  aventura,  recorre  particularmente  a  Jesus,  como salvador, e a Maria, mãe de Jesus e Nossa Senhora. Olhando para Cristo,  vêm‐no  como  Senhor  Bom  Jesus,  a  acolher  a  súplica angustiada  e  preocupada  de  mareantes  e  seus  familiares61.  Como  que  obedecendo  a  este  contexto,  os  mareantes  de  Caminha  instituem  uma  santa  confraria  e  irmandade  da  invocação  do  santíssimo  nome  de  Jesus  “...  salvador  e  guiador  de  todas  suas  necessidades e preosperidades pera que nesta vida presente os guie e livre em  todos os perigos”62.   Dedicam  quatro  das  suas  ordenações  à  instituição  de  missas  e  à  regulamentação  da  participação  dos  seus  confrades  nas  festas  religiosas  da  comunidade:  ‐  No  dia  do  Corpo  de  Deus,  quarta‐feira  de  Endoenças  e  dia  de  Páscoa,  sairiam  quatro  dos  oficiais,  ou  quatro  dos  principais  mareantes,  com  as  suas  varas  pintadas  nas  mãos  de  vermelho  e  regeriam  os  confrades,  para  que  se  cumprisse o silêncio63.  ‐  Instituem  três  missas  semanais:  missas  rezadas  às  segundas  e  terças‐ feiras e missa cantada às sextas‐feiras. As missas nas festas de Nosso Senhor e  Nossa Senhora seriam também cantadas.  

                                                             59

  No  século  XVI  esta  Confraria  abriu  as  suas  portas  a  toda  a  população,  pelo  que  este  número  não  representa  apenas o número de mareantes. MOREIRA, 1995: 99  60  Segundo a Descripcíon del Reyno de Galicia de Molina. FILGUEIRA VALVERDE, 1946: 1‐2  61  DIAS, 2002: 280  62  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9v.  63  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 5v. 

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‐ Nas missas cantadas utilizar‐se‐ia a cera da Confraria64.  Para  assegurar  todas  estas  celebrações  elegiam,  anualmente,  cinco  capelães.  E  como  complemento  à  prática  intimista  do  grupo,  elegiam  um  vigário por um ou dois anos, ou perpetuamente, para que “... pregue, confesse  e aconselhe os confrades”65. Em Viana do Castelo, a Confraria do Bom Jesus,  em 1618, celebrava 6 missas semanais de obrigação, incluindo as cantadas. Ao  longo do séc. XVI participava nas procissões da Santa Isabel, Anjo e São João66,  assim como na do Corpo de Deus, procissão que no Porto contava igualmente  com  a  presença  dos  confrades  de  S.  Pedro  de  Miragaia67.  A  vida  religiosa  acrescentava assim às solidariedades profanas a consagração de uma espécie  de mutualismo espiritual68.   

5.5 Formas de assistência     Na  época  moderna,  a  organização  em  confrarias  e  irmandades  dos  homens  que  viviam  de  seus  ofícios,  continuará  a  ser  a  única  forma  de  assegurarem,  a  si  próprios  e  à  sua  família,  o  apoio  material  e  espiritual,  em  situações de pobreza, velhice, invalidez e morte. Se o aplicarmos a um grupo de  risco, como é o dos mareantes, concluiremos rapidamente sobre a importância  da  assistência  fraternal,  que  será  um  dos  vectores  mais  importantes  nas  confrarias  que  surgem  nas  várias  vilas  marítimas.  Este  tipo  de  organizações  tinha, estatutariamente, uma finalidade caritativa em benefício das viúvas, dos  órfãos e dos marinheiros idosos e doentes, e a procura dos corpos dos afogados  a fim de lhes dar uma sepultura em terra69.                                                                64

 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6v.   A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6v.  66  MOREIRA, 1995  67  BARROS, 1991: 53  68  JOURDIN, 1995: 180  69  JOURDIN, 1995: 197‐199 65

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A  vila  de  Caminha  não  é  uma  excepção,  e  falar  de  cooperação  entre  os  marítimos desta comunidade, é falar da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes,  instituída com o objectivo de lhes proporcionar dois níveis de assistência: à alma  e ao corpo.   Ainda assim, nas suas ordenações torna‐se bem evidente que o universos  dos auxiliados ultrapassava a comunidade de mareantes. Em 1549 estipula‐se o  seguinte:  “Todos  asi  junctos  em  comum  e  cada  hum  em  especial  para  aqueles  que agora são e ao diante ão de ser ad perpetuam rey memoriam movidos de  piedade e com entranhas de misericordia e zello de nossa fee catolica e salvação  das  almas  e  pera  os  pobres  não  perecerem  hordenarão  e  instituirão  huma  sancta  comfraria  e  irmandade  a  invocação  da  qual  he  o  sanctissimo  nome  de  jezus  ao  coal  tomão  por  salvador  e  guiador  de  todas  suas  necessidades  e  preosperidades  pera  que  nesta  vida  presente  os  guie  e  livre  em  todos  os  perigos”70.  A  Confraria  era  instituída  para  “...  bem  e  proveyto  de  toda  a  republica, e das almas dos defuntos que prigarem no mar, como dos comfrades,  e  outros  defuntos,  e pobres da tera;  como  os  bens da  dita  Comfraria  são para  gastos,  e  despender  alem  do  sobredito,  para  remediar,  e  asimentar  pessoas  pobres e miseraveis necessitadas do lugar e terra donde esta a dita Comfraria e  de  outras  quais  quer  partes,  que  por  o  mar  e  por  terra  se  ajuntarem  por  ser  emporto donde tanta gente demutas partes acorrem”71.  A  Confraria  assume  assim  funções  caritativas  que  abarcam  toda  a  população  marítima,  incluindo  vizinhos  e  forasteiros.  Paralelamente,  assegura  um  auxílio  específico  à  sua  comunidade  confraternal  estipulando  que  “...  qualquer comfrade desta sancta comfraria que acertar de morrer fora da terra  (...) assi os comfrades absentes como presentes vibos e defuntos queremos que  poçam  gozar  e  serem  participantes  dos  beneficios  e  bens  espirituaes  e 

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 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 9v.   A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 11v. 

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temporaes  desta  sancta  comfraria”72.  Para  tal  afirmam‐se  inspirados  “...  com  aquella de S. Paullo que diz Irmans ajudaibos huns aos outros e assim comprireis  a ley de Christo”, estabelecendo que “... se for cauza que algum Comfrade seja  tam anciozo; e velho em dias; que nada possa ir ao mar, que os seus regedores  que  ao  tempo  forem  desta  santa  Comfraria  do  nome  de  Jezu  repartam  por  somana a cada huma rede do que assi for tam velho que não possa hir ao mar,  para que assim se mantenha e não pareça com necissidade”73.  Se  na  primeira  ordenação  é  assegurada  a  assistência  ao  mareante  em  épocas  de  ausência,  na  segunda  assegura‐se  uma  fonte  de  rendimento  aos  pescadores de idade demasiado avançada para poderem viver do seu ofício.  Logo  na  terceira  ordenação  estabelece‐se  a  eleição  anual  de  dois  mareantes, “os mais caritativos e virtuosos”, para que, quando adoecesse algum  confrade ou pobre, fossem “ver e visitar e prover os ditos emfermos”. Estes dois  mareantes  estavam  também  encarregues  de  se  informar  dos  pobres  envergonhados  e  dos  presos,  para  que  todos  os  domingos  fossem  distribuídas  as esmolas da Confraria74.  O pescador pertence a uma paróquia à qual está ligado, aí nasceu, aí foi  baptizado e aí deseja ser enterrado75. Esta preocupação com a morte, e com a  dignidade do funeral ocupa cinco das ordenações da Confraria, demonstrando a  importância desta questão para o homem do mar. Assim, “... coando acontesser  ir buscar algum corpo de algum defuncto assi dos que se afogar no mar que bem  ter a costa como dos mais defunctos que na villa falesserem” sairiam quatro dos  oficiais,  ou  quatro  dos  principais  mareantes,  com  as  suas  varas  pintadas  de  vermelho e regeriam os confrades, para que se cumprisse o silêncio76. 

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 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6.  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 10v.  74  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 5v.  75  JOURDIN, 1995: 177  76  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 5v.  73

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Cada  ordenação  que  se  segue  descreve  como  será  feito  o  ofício  de  enterramento,  de  acordo  com  o  estatuto  do  defunto,  e  estabelecendo  uma  verdadeira hierarquia da morte:  ‐ se fosse confrade, filho de confrade ou um criado, deveriam informar o  pároco  da  vila  para  que  se  mandasse  dobrar  os  sinos  e  se  juntassem  os  sacerdotes para se proceder ao funeral77;  ‐  se  fosse  cabeceira  dos  confrades,  homem  ou  mulher,  saía  a  cruz  da  confraria, e os confrades levariam cada um o seu círio na mão, procedendo‐se  ao  enterramento,  com  seis  missas  à  custa  da  confraria  (uma  cantada  e  cinco  rezadas);   ‐ se fosse filho de confrade ou criado, sairiam os confrades, levando doze  círios de cera, e mandando dizer uma missa à custa da Confraria78;  ‐  no  ofício  do  enterramento  de  um  confrade,  sendo  cabeceira,  tirar‐se‐ iam somente duas tochas e doze círios. Sendo filho ou criado de confrade tirar‐ se‐iam  quatro  círios  da  cera  da  Confraria  que  ardiam  enquanto  o  corpo  não  fosse enterrado. A cruz apenas sairia com os cabeceiros, excepto se o filho do  confrade  fosse  homem  “que  traga  reçam  ou  ganhe  marinhagem”,  se  tivesse  mais de quinze anos, ou se fosse filha esposada79.  Estava  também  prevista  a  situação  dos  que  faleciam  fora  da  terra,  pelo  que assim que chegasse a notícia, seis governadores deveriam mandar fazer o  ofício  e  dizer  as  missas.  A  sua  vontade  era  a  de  que  todos  os  confrades,  ausentes ou presentes, gozassem dos bens espirituais e temporais da Confraria,  e  tivessem  exéquias  na  terra  de  sua  naturalidade  ou  residência,  independentemente do local do óbito80.  Como  já  referimos,  a  caridade  e  o  auxílio  ao  próximo,  bem  como  a  responsabilidade  de  enterramento  era  comum  nas  confrarias.  A  Confraria  de                                                               77

 A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 5v.   A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6.  79  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6.  80  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 6 a 6v.  78

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Viana  tinha,  também,  a  missão  de  acolher  pobres  e  peregrinos,  dando‐lhes  guarida e funeral, bem como a organização do funeral e respectivos sufrágios de  todos os marítimos de Viana, onde quer que acontecessem, e dos estranhos que  falecessem  no  concelho,  nomeadamente  os  náufragos.  Regista‐se  mesmo  que  “tem  privilégio  para  enterrar  os  mortos  como  as  misericórdias  do  reino  e  hem  especial todos os mareantes”81. Da mesma forma, S. Pedro de Miragaia e a do  Corpo  Santo,  de  Pontevedra,  ocupavam‐se  da  ajuda  mútua  em  alturas  de  necessidade, enterramento dos mortos, e do zelo pela salvação das almas82.  O  instinto  de  solidariedade  das  organizações  confraternais  também  assumia  formas  de  sociabilidade.  Na  segunda  oitava  do  Natal,  dia  de  S.  João,  juntavam‐se  os  oficiais  novos  e  velhos  com  todos  os  mais  confrades,  “...  para  fazer uma consoada caritativamente”83. Da mesma forma, quando se juntassem  os  oficiais  para  fazer  contas,  para  fazer  cera,  ou  “outro  algum  ajuntamento  onesto”  poderiam  consoar  e  beber  uns  com  os  outros  à  custa  da  Confraria.  Também  em  S.  Pedro  de  Miragaia,  os  confrades  tinham  por  hábito  realizar  refeições  em  comum,  nomeadamente  um  banquete  anual  que  era  partilhado  com  toda  a  comunidade84.  Esta  partilha  do  banquete  anual  com  os  pobres,  apesar de não ser referida nas ordenações dos mareantes de Caminha, é uma  constante nas práticas confraternais85.  Apesar  da  pouca  abundância  das  fontes,  os  indicadores  reunidos  permitem‐nos,  de  uma  forma  geral,  categorizar  a  comunidade  de  Caminha  como  marítima.  Do  averiguado  sobre  comportamentos  sociais,  mobilidade  geográfica,  e  religiosidade,  ela  apresenta  as  mesmas  características  identificadas noutros espaços portuários congéneres.  

                                                             81

 MOREIRA, 1995: 101   BARROS, 1991: 74 e FILGUEIRA VALVERDE, 1946: 33  83  A.C.B.J.M.C. ‐ Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes, fl. 7v.  84  BARROS, 1991: 53  85  TAVARES, 1987: 61  82

141

Em  Caminha,  os  homens  do  mar,  nomeadamente  mareantes  e  marinheiros,  assumem  comportamentos  idênticos  aos  dos  grupos  de  elite,  fazendo‐se representar em espaços privilegiados como a Misericórdia, nos quais  exercem  a  sua  influência,  em  função  da  sua  capacidade  financeira.  Exercendo  atracção sobre a comunidade e integrando diferentes grupos socioprofissionais,  a Misericórdia acaba por espelhar as vicissitudes da vila, os seus elementos, e as  suas  hierarquias.  Na  verdade,  a  presença  do  pescador  pode  significar  duas  realidades distintas: a força do grupo é suficiente para se fazer reconhecer pelas  elites, ou o número e o poder económico destas elites é reduzido ao ponto de  fazer baixar o grau de exigência na admissão à irmandade.   Mesmo admitindo uma comunidade com um forte sector piscícola, não  podemos  negar  a  força  do  grupo  de  mercadores  que  demonstra  uma  enorme  visibilidade e influência no governo da vila. Com efeito, a sua grande mobilidade  acaba por ser causa e consequência do estabelecimento de ligações com outros  agentes e portos, sejam estas meramente mercantis, ou se concretizem alianças  familiares.  O  seu  dinamismo  e  o  facto  de  não  parecerem  actuar  isoladamente  sustentam,  uma  vez  mais,  a  importância  da  complementaridade  portuária,  verificada no noroeste português em quinhentos, na qual podemos afirmar que  Caminha se integrou plenamente.  É de referir a presença constante da questão da identidade dos homens  do mar, que se encontra em todos os aspectos abordados, e que mesmo assim  permanece em aberto. É nossa opinião que as permeabilidades, que se podem  aferir  nas  comunidades  marítimas,  podem  ser  a  causa,  ou  até  mesmo  consequência,  da  heterogeneidade  ocupacional  e  das  dificuldades  em  estabelecer  elementos  de  identificação  dentro  do  próprio  grupo.  Ou  seja,  a  mobilidade  que  estes  homens  apresentam  entre  ocupações  não  lhes  permite  identificarem‐se  em  sub‐grupos  estanques.  É  certo  que  tradicionalmente  os  pescadores se assumem como um grupo mais estabilizado e identificável. Não 

142

esqueçamos,  porém, que  muitas  vezes  constituem  a base  de  recrutamento  de  mareantes e marinheiros, que, por sua vez, apresentarão outro tipo de perfis e  comportamentos sociais.   Na  verdade,  em  Caminha,  é  a  heterogeneidade  e  a  ambiguidade  ocupacional que se torna o mais relevante. Com efeito, a própria Confraria de  Mareantes,  nem  se  assume  como  espaço  identitário  de  um  grupo  específico  (pescadores, 

mareantes, 

marinheiros, 

navegadores?), 

nem 

funciona 

prioritariamente  como  uma  corporação  de  ofícios,  funcionando  muito  mais  como  espaço  assistencial  e  de  religiosidade.  Ao  compararmos  com  outras  confrarias,  sejam  as  de  pescadores  na  Galiza  (onde  se  assumiram  como  autênticas instituições de gestão e regulamentação da pesca), ou de mareantes,  como  a  de  Viana  (que  representou  claramente  marinheiros e  mareantes junto  do poder local e central), a ambiguidade da de Caminha parece indiciar alguma  debilidade por parte dos marítimos.   Com  efeito,  pouco  podemos  concluir  acerca  da  sua  representatividade,  quer  dentro  da  vila,  face  a  outros  grupos  socioprofissionais,  quer  no  seu  exterior, face a instituições de poder. Ainda assim, em questões identitárias, a  vivência de uma religiosidade e formas de assistência comuns, parecem ser as  menos controversas. A preocupação em acudir o próximo, os afogados no mar,  ou  os  pescadores  mais  velhos,  ou  até  mesmo  o  simbolismo  e  o  cuidado  na  preparação  da  cerimónia  fúnebre,  parecem  constituir  elementos  de  união  do  grupo.  

143

6. Conclusão    “The  smaller  the  merchant  or  port,  the  less  we  know  of  its  history  or  importance, and that has remained true more or less to the present day”1.   Desde  o  início  do  projecto  que  trabalhamos  com  a  consciência  das  dificuldades  que  lhe  estavam  inerentes,  em  grande  medida  resultantes  da  ausência de fontes documentais. No entanto, as virtualidades da investigação  passam também pela reinvenção de leituras e de métodos de análise. A mais‐ valia do trabalho em História consiste mesmo na reinvenção de percursos, na  reformulação  de  questões,  aproveitando,  de  inúmeras  maneiras  uma  fonte  que  nunca  se  esgota.  Os  percursos  alternativos  que  tivemos  de  percorrer  levaram‐nos  a  contactar  com  documentação  que  de  outra  forma  nunca  teríamos analisado, e que nos surpreendeu pelas potencialidades reveladas. A  primeira, e principal conclusão que retiramos com este trabalho são as mais‐ valias que adquirimos, em termos metodológicos e de conhecimento histórico,  fruto das dificuldades ultrapassadas.  Recuperando  os  objectivos  iniciais  que  guiaram  a  nossa  pesquisa  comecemos  por  concluir  acerca  do  conhecimento  adquirido  sobre  a  comunidade  marítima  de  Caminha.  Acima  de  qualquer  conclusão  explicativa  está a evidência de que este estudo constitui apenas um ponto de partida. O  trabalho que desenvolvemos em termos de identidade do grupo dos homens  do  mar  e  das  suas  questões  laborais  e  sociais,  permitiu‐nos  contactar  com  estudos 

homólogos, 

com 

outras 

perspectivas 

(nomeadamente 

antropológicas),  com  novos  vocabulários  e  conceitos.  Porém,  tentar  seguir  o  percurso  dos  que  não  deixam  escritos  é  ler  nas  entrelinhas;  é  mais  um  trabalho  de  suposição,  do  que  de  constatação.  No  fundo,  mesmo  após  uma  análise  exaustiva  da  documentação  da  Confraria  continuamos  sem  saber                                                               1

 JACKSON, 2001: 3 

144

quem são os “mareantes” do Bom Jesus de Caminha. Pouco mais sabemos de  que  se  trata  de  um  grupo  que  é  híbrido,  heterogéneo,  e  cuja  acção  se  caracteriza, muitas vezes, pelo anonimato. Assim, temos a clara consciência da  ausência de respostas que consideramos essenciais, como, a quantificação da  presença de marítimos na comunidade; a identificação dos pesos diferenciais  de  sub‐grupos  internos:  pescadores/marinheiros/navegadores;  ou  de  que  forma  as  suas  actividades  se  complementam.  Pensamos,  porém,  ter  contribuído  largamente  para  a  compreensão  da  complexidade  que  estas  questões  apresentam  e,  de  uma  forma  mais  específica  e  desenvolvida,  ter  contribuído para o estudo da actividade piscatória no rio Minho do século XVI.  Da mesma forma, as descrições relativas às vivências confraternais, religiosas,  e  de  assistência,  dos  mareantes,  apresentam  uma  enorme  relevância  para  a  compreensão  do  tema  das  sociabilidades  em  comunidades  e  em  sociedades  marítimas.  Sobre a vida local, as questões continuam ainda em aberto. Importaria  aferir  acerca  da  representatividade  da  confraria  na  vida  concelhia,  de  que  forma se relaciona com o poder local e que dimensão tem no município. Ainda  relativamente aos poderes, seria muito pertinente concluir sobre as relações  com  o  poder  central.  O  estudo  das  confrarias  congéneres  da  Galiza  revelou‐ nos  a  riqueza  do  diálogo  entre  os  mareantes  e  a  Coroa.  Desde  cedo,  Pontevedra aufere de variados privilégios que recaem sobre os vários ofícios  marítimos: a pesca, a construção naval e o comércio, que no nosso estudo não  pudemos conferir.   Quanto  à  contextualização  de  Caminha  no  sistema  portuário  do  noroeste,  e  ao  papel  desempenhado  pelos  seus  agentes  nas  dinâmicas  comerciais marítimas, pensamos que a ausência de fontes essenciais para este  estudo não nos impediu de alcançar alguns resultados bastante satisfatórios.  Na verdade, o comportamento dos seus mercadores integra‐se perfeitamente 

145

nos modelos das realidades históricas que têm sido identificadas em estudos  homólogos:  “…  o  tráfego  a  que  assiste  cada  localidade  litorânea  não  é  um  retrato  fiel  da  sua  actividade  marítima.  Migrações  internas,  a  itinerância  dos  homens  de  cabedal,  redes  mercantis  tecem  relações  complementares  entre  cada localidade marítima.”2   A mais importante conclusão a retirar é a de que a vitalidade mercantil  de um centro marítimo não se pode medir exclusivamente pela sua actividade  portuária, mas tem necessariamente que ser complementada pela acção dos  seus  agentes,  muitas  vezes  estranha  à  lógica  do  mercado  local.  Note‐se  o  importante papel redistribuidor representado pelos mercadores de Caminha.  Estes  actuaram  fora  do  raio  de  acção  do  seu  próprio  porto,  escapando  às  limitações tradicionalmente atribuídas a um pequeno porto, e testemunhando  que  “ports  at  heart  were  not  places  but  mercantile  people  in  appropriate  places, providing maritime services”3. Lembremos as conclusões retiradas por  Amélia  Polónia  relativamente  a  Vila  do  Conde:  “Importa  perceber  que  este  universo  de  mercadores  não  actua  isoladamente,  mas  recebe  impulsos  e  acciona  negócios  em  que  actuam  por  vezes  em  parceria  com  mercadores  residentes em áreas exteriores à própria vila. Esta tendência é confirmada pela  presença, nesse porto, de agentes comerciais provindos de uma vasta área de  Entre‐Douro‐e‐Minho,  como  se  pode  atestar  pelas  informações  coligidas  em  registos  notariais.  Aí  encontramos  frequentes  referências  a  estes  indivíduos  como  fretadores  de  embarcações,  credores,  parceiros  em  contratos  comerciais, ou como simples testemunhas de actos públicos.”4  Em  termos  de  hierarquias  portuárias,  Caminha  parece  preencher  os  requisitos  de  um  ”unimportant  port”,  na  acepção  que  lhe  atribui  Gordon  Jackson:  “What  were  unimportant  ports?  Those  with  a  poor  or  backward                                                               2

 COSTA, 2000: 82‐84   JACKSON, 2001: 5‐6  4  POLÓNIA, 2007a: vol. II, 132 3

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hinterland and few external connections; with a small or no share of national  imports  and  exports  and,  contrary  to  expectations,  a  small  share  of  coastal  trade, witch was also dominated by major ports; with exceptions they owned  and  built  few  ships;  they  had  inadequate  facilities  for  larger  ships,  few  warehouses,  no  comprehensive  mercantile  community  or  direct  foreign  linkages, few industries and small populations. In sum they had no opportunity  for self generated trade”5.   Ainda  assim,  Gordon  Jackson  defende  que  era  a  estreita  relação  de  cooperação  que  estes  pequenos  portos  estabeleciam  com  os  de  média  e  grande  dimensão,  a  par  da  sua  articulação  com  hinterlands  mais  ou  menos  vastos, matéria de que não tratámos, que os coloca como peças fundamentais  na  articulação  das  redes  portuárias.  Os  mercadores,  independentemente  da  dimensão do seu porto de acção, colaboraram entre si, fortificando redes de  negócio,  que  actuam,  posteriormente  e  em  articulação,  face  ao  exterior.  “As  associações  mercantis  e  a  mobilidade  geográfica  dos  agentes  retiram,  desta  forma,  operacionalidade  a  uma  abordagem  centrada  isoladamente  em  cada  uma das localidades portuárias”6.   É  nesta  perspectiva  que  entendemos  que  deverá  ser  aferida  a  contribuição deste trabalho, que se apresenta como mais um contributo para  o delinear de um puzzle mais vasto, o do Noroeste português, em articulação  com  universos  que  incluem  circuitos  locais,  regionais  e,  numa  expressão  porventura menor, intercontinentais. 

Este  foi  o  contributo  possível,  que 

cremos ser coerente com o enfoque de um programa académico proposto por  um curso de Mestrado em Estudos Locais e Regionais, em que esta dissertação  se insere. 

                                                             5 6

 JACKSON, 2001: 5‐6   COSTA, 2000: 11‐12, 88

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7. Fontes e Bibliografia    Fontes Manuscritas     Arquivo da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes da Vila de Caminha  Livro de Acórdãos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes  Livro de Estatutos da Confraria do Bom Jesus dos Mareantes    Arquivo Histórico da Misericórdia de Caminha   (incorporado no Arquivo Distrital de Viana do Castelo)  Cota 7.35.1.1 ‐ Livro de receita e despesa, 1551‐1561   Cota 7.35.1.2 ‐ Livro de receita e despesa, 1565‐1570   Cota 7.35.1.3 ‐ Livro de receita e despesa, 1570‐1573   Cota 7.35.1.5 ‐ Livro de receita e despesa, 1582‐1594   Cota  7.36.2.19  ‐  Notícia  do  princípio  que  teve  a  irmandade  desta  Santa  Misericórdia com algumas cousas mais notáveis que nela sucederam, 1734   Cota cx. 23 ‐Maços de testamentos, 1557‐1749   Cota cx. 15 ‐ Maços de escrituras de prazos, 1532‐1912    Arquivo Distrital de Braga   Cartorio muito antigo do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha.  Livro dos Milagres do Convento de Nossa Senhora da Insua de Caminha. 1725.    Arquivo Histórico Municipal do Porto   Reservados, nº 435. Regimento Geral da Alfândega do Porto, 1521    Arquivo Distrital do Porto  Registo  de  Contos.  Arrendamento  das  Alfândegas  do  Entre‐Douro‐e‐Minho,  Aveiro e Buarcos    CEDOPORMAR – Núcleo Informacional “Vila do Conde Quinhentista”   Notariais Vila do Conde  1º cartório, 1ª série, livro 9, fl. 46‐48  148

1º cartório, 1ª série, livro 7, fl. 26‐27  1º cartório, 1ª série, livro 8, fl. 58v‐60  1º cartório, 1ª série, livro 13, fl. 155v‐156  1º cartório, 3ª série, livro 1, fl. 79v‐80v  1º cartório, 1ª série, livro 20, fl. 30‐31v  1º cartório, 1ª série, livro 9, fl. 196v‐198    Archivo Diputación Provincial de Burgos  Consulado, Livros 28, 37, 39, 41, 44, 46, 74, 95, 98, 99 e 101    Biblioteca Pública Municipal do Porto  Reservados,  Ms.  543.  PURIFICAÇÃO,  Frei  Miguel  da  ‐  Descripção  da  villa  de  Caminha.    Torre do Tombo  Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios  Livro 3, fl. 175‐175v  Livro 7, fl. 80, 278  Livro 14, fl. 472  Livro 19, fl. 158v e 215v  Livro 39, fl. 244  Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Doações  Livro 20, fl. 339 a 339v; 421 a 422v  Chancelaria de Filipe I, Privilégios  Livro 17, fl. 443v  Corpo Cronológico, Parte 1ª, maço 65, doc. 30.   Corpo Cronológico, Parte 2ª, maço 221, docs. 85 e 90.  Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 2930, 4520, 4514 e  5810  Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, Processo n.º 10073     Biblioteca Nacional  Reservados, Ms. 8750. MORAIS, Pe. Gonçalo da Rocha de ‐ Grandezas da Villa   de Caminha, 1722. 

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161

8 ‐ Índice de figuras e quadros   

Figuras  Fig. 1 – Linha de evolução da temperatura

28

Fig. 2 ‐ Caminha  

30 

Fig. 3 – Zona do estuário do Rio Minho  

31 

Fig. 4 ‐ Foz do rio Minho 

32 

Fig. 5 – Ínsua de Caminha  

33 

Fig. 6 ‐ O assoreamento no estuário do rio Minho (Setembro de 1994) 

34 

Fig. 7 – Rio Minho (Duarte d’Armas) 

36 

Fig. 8 – Valença do Minho (Duarte d’Armas) 

37 

Fig. 9 – Monção (Duarte d’Armas) 

37 

Fig. 10 ‐ SECO, Fernando Álvaro – Portugallia et Algarbia (“Portugal  Deitado”) (1561) 

42   

Fig. 11 ‐ OXEA, Frey Fernando ‐ Mapa do Reino da Galiza 

43 

Fig. 12 ‐ TEIXEIRA, Pedro ‐ Descripcíon de España y de las costas y  puertos de sus reinos (1634) 

44   

Fig. 13 ‐ BLAEW, William Iansz ‐ De Zeecusten van Galissen Tusschem  de Cabo Finisterre en Camino (1638) 

45   

Fig. 14 ‐ ABERVILLE, N. Sanson ‐ Mapa do Reyno de Portugal (1654) 

46 

Fig.  15  ‐  BRANDÃO,  Gonçalo  Luís  da  Silva  –  Planta  da  barra  de  Caminha e entrada do Rio Minho (1758) 

51   

Fig. 16 – Caminha (Duarte d’Armas) 

53 

Fig. 17 – Caminha: presença de mercadores e pescadores no séc. XVI.  Projecção sobre o actual espaço urbano. 

56   

 

 

162

Fig. 18 ‐ Representação cartográfica da população do norte de  Portugal, segundo o numeramento de 1527/32 

61  

Fig. 19 – Genealogia de Simão Dias 

129 

    Quadros  Quadro 1 ‐ População de alguns portos de Entre‐Douro‐e‐Minho em  1527/32 

60  

Quadro 2 – Actividade pesqueira – Enquadramento legal. Alguns  exemplos  

73   

Quadro 3 – Fiscalidade sobre a pesca em Caminha 

77 

Quadro 4 – Recursos piscícolas 

93 

Quadro 5 ‐ Frota dos portos do Entre‐Douro‐e‐Minho e Aveiro em  1586 

100   

Quadro 6 ‐ Contratantes de apólices de seguros marítimos em Burgos,  residentes em Caminha (Norte da Europa) 

112   

Quadro 7 – Contratantes de apólices de seguros marítimos em  Burgos, residentes em Caminha (Rota do Brasil) 

114   

Quadro 8 – Ofícios dos irmãos da Misericórdia de Caminha, referidos  no Registos dos Irmãos do Cento 

122   

Quadro 9 – Homens do mar na Misericórdia de Caminha, referidos no  Registos dos Irmãos do Cento 

123 

     

 

163

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