CAMINHANDO: O CAMINHAR COMO PRÁTICA SOCIOESTÉTICA ESTUDOS SOBRE A ARQUITETURA MÓVEL - WALKING: THE WALKING AS A SOCIAL AESTHETIC PRACTICE AND MOVABLE ARCHITECTURE STUDIES

Share Embed


Descrição do Produto

CAMINHANDO O CAMINHAR COMO PRÁTICA SOCIOESTÉTICA ESTUDOS SOBRE A ARQUITETURA MÓVEL

Reitora Carmen Lúcia de Lima Helfer Vice-Reitor Eltor Breunig Pró-Reitor de Graduação Elenor José Schneider Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Andréia Rosane de Moura Valim Pró-Reitor de Administração Jaime Laufer Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento Institucional Marcelino Hoppe Pró-Reitor de Extensão e Relações Comunitárias Angelo Hoff EDITORA DA UNISC Editora Helga Haas COMISSÃO EDITORIAL Helga Haas - Presidente Andréia Rosane de Moura Valim Angela Cristina Trevisan Felippi Felipe Gustsack Leandro T. Burgos Olgário Paulo Vogt Vanderlei Becker Ribeiro Wolmar Alípio Severo Filho

Avenida Independência, 2293 Fones: (51) 3717-7461 - Fax: (051) 3717-1855 96815-900 - Santa Cruz do Sul - RS E-mail: [email protected] - www.unisc.br/edunisc

Celma Paese

CAMINHANDO O CAMINHAR COMO PRÁTICA SOCIOESTÉTICA ESTUDOS SOBRE A ARQUITETURA MÓVEL

Santa Cruz do Sul EDUNISC 2015

Celma Paese 1ª edição 2015

© Copyright:

Direitos reservados desta edição: Universidade de Santa Cruz do Sul

Editoração: Clarice Agnes, Julio Mello Capa: Denis Ricardo Puhl (Assessoria de Comunicação e marketing)

P126c

Paese, Celma Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel / Celma Paese. - Santa Cruz do Sul : EDUNISC, 2015. 125 p. : il. 1. Arquitetura. 2. Arquitetura urbana. 3. Nomadismo. 4. Mobilidade urbana. I. Título.

CDD: 720

Catalogação: Bibliotecária responsável - Edi Focking CRB 10/1197

À FAMILIA CAMINHANTE

SUMÁRIO PREFÁCIO Eduardo Rocha

|9

1 PARA VOCÊ, CAMINHANTE

|11

2 A CONQUISTA DO CAOS 2.1 Arquitetura móvel

|13 |21

3 A CIDADE 3.1 Permeabilidades 3.2 Mudanças

|33 |33 |38

4 VANGUARDAS 4.1 Homo Sacer

|47 |58

5 SITUAÇÕES EM UMA NOVA BABILÔNIA 5.1 L’Archipel Influential 5.2 Arquitetura móvel nos anos

|69 |79 |87

6 CIBERESPAÇO

|97

7 SOMOS TODOS NÔMADES

|106

NOTAS

|108

REFERÊNCIAS

|118

PREFÁCIO

Q

uando me sentei para escrever estas notas, na cidade de Pelotas, tentei me recordar: quando encontrei pela primeira vez com Celma Paese? Não lembro ao certo, mas seguramente foi nos corredores da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em alguma sala de aula, nos corredores ou tomando um cafezinho. Mas lembro bem quando Fernando Fuão apresentou-me o texto da dissertação de mestrado em Arquitetura no PROPAR/UFRGS de Celma Paese: “Caminhando: Nomadismo, cidade e arquitetura”, que dá origem a esse livro “Caminhando - o caminhar como prática socioestetica”. Nunca mais me separei desse escrito e de Celma Paese. Sempre é referência nos estudos sobre a experiência de cidade na contemporaneidade, o indico para muitos pesquisadores, estudantes, professores, artistas, filósofos e todos aqueles sensíveis e caminhantes usuários das cidades. O texto anda com o leitor sobre os diversos conceitos relacionados ao caminhar e seus tempos de espera e errância transformando a cidade desde relações de proximidade e experiência até distanciamento causado pelos usos de ciberespaços. Dentre errantes e nômades nos encontramos no texto com vários artistas, escritores ou pensadores que praticaram errâncias urbanas, errâncias voluntárias e intencionais. Aqueles que erraram sem

objetivo preciso, mas com a intenção de errar. Errar tanto no sentido do vagabundear quanto da própria efetivação do erro (de caminho, de itinerário, de percurso). “Caminhar significa liberdade. [...] Porém, até que ponto hoje existe essa liberdade?”1. Talvez só possamos ser livres na cidade contemporânea, experimentando algo como o nomadismo e a errância dos jogadores de paintbal ou nos saltos dos praticantes de parkour, mas também experimentando os mundos virtuais. Diferente das viagens turísticas, das falsas rupturas. Os nômades não viajam, são imóveis dentro de um determinado território. Nômades e nomadismo são conceitos que dizem respeito a uma forma de territorialidade específica, caracterizada pela mobilidade e dispersão geográfica e que se realiza sob o princípio da errância, o que é – como bem lembram os situacionistas – totalmente distinto da viagem turística. A viagem para o nômade é o tempo da plenitude de sua territorialidade. Para ele, seu acampamento é sempre provisório, um lugar prestes a ser abandonado. Assim, quanto mais forte o nomadismo de certo grupo cultural, menor seu tempo de permanência em um acampamento. Tal fato confere apenas aos territórios por onde realiza sua deriva – sejam eles desertos de gelo ou de areia, atravessados por esquimós ou beduínos, ou então florestas ou estepes – o espaço peculiar que dá sentido pleno à sua territorialidade.

Se nossas vidas são definidas e constituídas por entrelaçamentos entre afetos e as inteligências, do cérebro com o corpo, do espaço físico com o virtual e dos corpos com a arquitetura, o cami-

10

Celma Paese

nhar em todas as suas formas é a busca obsessiva da satisfação total, do amor absoluto, ou até da falsa satisfação na matéria. Através do ritual de errância eterna, o amor é consagrado como potência da constituição do mundo, essa modalidade de ocupação espacial que movimenta os corpos, até o encontro perfeito.2

Caminhar com Celma Paese no “Caminhando - o caminhar como prática socioestetica” é experimentar a cidade no sentido da experiência nômade e sensível. A experiência do caminhar como potência criadora de vida. Capaz de criar nossos próprios mundos durante a leitura. Eduardo Rocha3 Pelotas, inverno de 2015.

Na contemporaneidade podemos aproximar-nos também dos grupos sociais que adotam formas de nomadismo metropolitano, como ciganos, circenses, vagabundos (isto é, pessoas que recusam a ideologia do trabalho, preferindo a precariedade de uma vida errante à submissão de seus corpos e espíritos livres) e mendigos (ao menos no sentido original, daqueles que fizeram a opção pela vida de mendicância). Ainda que com outras formas, a adoção de práticas nômades pode estar também presente em certos grupos sociais tipicamente urbanos – como é o caso dos punks com sua deriva pela metrópole ou dos michês e prostitutas realizando a deriva “homoheterossexual” pelo centro das cidades. __________ NOTAS 1 PAESE, Celma. Caminhando: nomadismo, cidade e arquitetura. Porto Alegre: PROPAR/UFRGS, 2006. p.163. 2 PAESE, Celma. Caminhando: nomadismo, cidade e arquitetura. Porto Alegre: PROPAR/UFRGS, 2006. p.160. 3 Arquiteto e Urbanista, Especialista em Artes, Mestre em Educação, Doutor em Arquitetura e; atualmente professor e pesquisador na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal de Pelotas.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

1 PARA VOCÊ, CAMINHANTE

O

caminhar estabeleceu, através da história, as bases das relações do homem com o espaço: apesar de não o construir, o caminhar muda a sua significação. Quando um ser humano caminha em um território, as diferentes percepções e sentimentos que brotam durante o percurso constituem uma maneira de modificar o significado da paisagem: a caminhada muda culturalmente o significado do espaço percorrido e, consequentemente, o próprio espaço. No princípio era o caos e, ao penetrá-lo, o homem modificou o significado do espaço e concretizou sua primeira obra de arquitetura simbólica: o caminho. Muitos caminhos foram percorridos desde então, e o espaço no entorno modificado. Neste livro pesquiso os diversos conceitos relacionados ao ato de caminhar, como o nomadismo, o errar, o migrar e o sedentarismo, que muitas vezes são vistos de maneira equivocada. O estudo do modo que esses conceitos se relacionaram - e ainda se relacionam - com a construção da identidade da cidade ocidental e a sua arquitetura procura responder questões sobre as transformações que ocorreram através dos tempos, até o advento do movimento eletrônico e do ciberespaço. O restabelecimento do caos primordial nessa dimensão faz pensar como essa realidade influencia na leitura espacial humana e como a nossa caminhada continuará no futuro. A pesquisa partiu da busca de respostas para questionamentos pessoais sobre o movimento de caminhar e a sua relação com a leitura e a escrita da

11

cartografia da cidade pelo indivíduo. A partir desses questionamentos foram desenvolvidos os estudos dos conceitos de nomadismo e de sedentarismo; as diferenças entre Homo Ludens e Homo Faber e as maneiras como o movimento nômade e o sedentário acontecem nos espaços e tempos e suas respectivas manifestações na arquitetura. Em um terceiro momento, o estudo buscou saber como a cidade se desenvolveu e sobre as maneiras que o caminhar foi utilizado como instrumento de ler e escrever o espaço urbano durante a sua formação, e ainda quais as relações entre os caminhantes e a cidade contemporânea. A última parte do texto fala sobre os rumos que o nomadismo e o sedentarismo tomaram até o presente. O surgimento do ciberespaço e o nomadismo eletrônico abrem os questionamentos sobre as perspectivas futuras. Os textos Situacionistas – inspiradores deste trabalho – falam de temas que mantêm um grau de atualidade surpreendente, principalmente quando vem em mente A Sociedade do Espetáculo, obra de Guy Debord, obra que fundamenta, até hoje, muitas atitudes e posicionamentos da sociedade ocidental e sua relação com o entorno. Textos de arquitetura, filosofia, sociologia e história, produzidos no Século XX, assim como clássicos da literatura ocidental foram importantes referências para mostrar as várias formas de representação do caminhar. O livro foi organizado em cinco capítulos que procuram fazer uma breve análise socioestética do caminhar através da história. O primeiro capítulo coloca a análise dos conceitos de homem e espaço nômade e sedentário e as relações que esses estabelecem com o espaço, o tempo, o movimento e a arquitetura. A arquitetura móvel é também aqui definida e exemplificada. O segundo capítulo analisa as razões e o processo de formação da cidade clássica e

12

Celma Paese

sua posterior transformação em cidade aberta, com a ascensão do humanismo e o surgimento da grande cidade, durante a revolução industrial. O terceiro capítulo trata da primeira metade do Século XX e das transformações ocorridas no caminhar e como essa ação foi utilizada e desenvolvida pelas vanguardas na leitura da cidade. Em um segundo momento, o surgimento do paradigma espacial do campo e sua inserção na cidade de hoje, são aqui analisados. O quarto capítulo abrange o período pós-guerras, as preocupações com os padrões de habitabilidade e as novas tecnologias que surgiam juntamente com oportunidades de consumo jamais vistas: com o Plano Marshall e o advento do American Way of Life, a Europa passou a questionar valores sociais e culturais e, consequentemente, a maneira de ler o espaço e a cidade. O Ciberespaço, o mais novo paradigma espacial da atualidade, e a renovação da experiência espacial e sensorial que essa dimensão propõe à humanidade é o tema do quinto e último capítulo desta obra. Em algumas passagens, o texto está permeado de percepções pessoais, fruto da vivência desta eterna errante urbana que, por possuir uma insaciável fome de descoberta, cartografa a cidade caminhando, sempre descobrindo diferentes maneiras de ler e de escrever o seu território. Espero que a leitura desta obra incite o curioso que existe dentro de você. Boa caminhada!

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

2 A CONQUISTA DO CAOS “Quanto mais eu lia, mais convencido ficava de que os nômades foram a manivela da história, nem que fosse apenas pelo fato de todos os grandes monoteístas terem emergido do mundo pastoral...” Bruce Chatwin

N

o início dos tempos do homem na Terra, o ato de caminhar tinha o sentido exploratório. Quando não havia o que comer, os seres humanos obrigavam-se a ampliar suas fronteiras, construindo relações com novos espaços. Caminhando, os primeiros humanos desbravaram continentes, delimitaram fronteiras, territórios e lugares. Caminhando, o homem penetrou no território do caos, aprendeu a lidar com o espaço e tomou consciência da possibilidade de habitar a Terra. A primeira interferência espacial do homem foi o caminho; nesse momento surgiu a arquitetura, herança do caminho do errante e da evolução do nômade.

A separação primordial da humanidade entre nômades e sedentários resultou em duas maneiras de viver diferentes e, consequentemente, de dois modos de pensar e conceber o espaço. Careri1 afirma que existe uma maneira generalizada de pensar que os sedentários – habitantes das cidades de hoje – são considerados os arquitetos do mundo, enquanto os nômades – habitantes do deserto e de espaços abertos – são considerados os antiarquitetos. Porém, as coisas não são tão simples assim. A primeira separação entre nômades e sedentários ocorreu quando

13

surgiram as primeiras comunidades de base agrícola. Nesse momento, o Homo Ludens deu espaço ao surgimento do Homo Faber. O Homo Ludens é aquele que constrói um sistema de relações entre a natureza e a sua vida, estabelecido a partir de sua passagem pelos caminhos pré-determinados ou desenhados por ele, explorando, aventurando-se e brincando com o espaço, vendo este como um objeto de especulação intelectual e intuitiva, definindo seu próprio sistema de valores simbólicos e estéticos de acordo com os territórios percorridos. O historiador holandês Huizinga2 descreveu o Homo Ludens como um homem que usufruiria condições de vida excepcionais, que teria a possibilidade de criar uma realidade diferente da usual para escapar às suas insatisfações pessoais e se isolaria da convivência com os seres comuns, condenados à luta pela sobrevivência, pois não haveria possibilidade desses entenderem o seu mundo. O Homo Sapiens representa a junção de duas categorias: o Homo Faber e o Homo Ludens. O Homo Sapiens tem a oportunidade de deixar aflorar o Homo Ludens que vive dentro dele quando consegue tornar independente a capacidade de trabalho do ganho material. Essa liberação, por sua vez, depende de como ele lida com os valores do Homo Faber. O Homo Ludens de hoje surge quando é possível utilizar a criatividade na vivência do espaço que habita como um lugar para viver aventuras. Essa oportunidade se concretiza quando as necessidades básicas já não são mais uma preocupação. O espaço é então ressignificado com uma nova codificação simbólica, determinada a partir das sensações que surgem das experiências vividas como Homo Ludens, de maneira solitária ou nos encontros que se sucedem. Careri3 exemplifica as naturezas opostas dos Homo Ludens e Homo Faber na cultura ocidental

14

Celma Paese

através da história dos irmãos bíblicos Caim e Abel. Se a história dos irmãos bíblicos for analisada em termos arquitetônicos constata-se que ela demonstra a ambiguidade entre as duas maneiras de ver e interagir com o espaço. Caim e Abel ilustram a maneira que os sedentários e nômades constroem seu espaço. Caim seria o Homo Faber, o que trabalha e se apropria da natureza, com a finalidade de construir um novo universo artificial. Seu objetivo é ter. Seu contraponto, o Homo Ludens, representado por Abel, é aquele que joga e constrói um sistema de relações efêmeras com a vida e a natureza. O seu propósito é ser. O uso distinto dos espaços é determinado pelo diferente uso do tempo, que se define pela sua relação com o trabalho. Abel andava pelos campos, pastoreando seus animais, tinha tempo para a contemplação e a aventura, estabelecendo uma relação lúdica com o tempo. Caim, no final do dia, estava fatigado de tanto cuidar de sua lavoura, dedicando-se a aperfeiçoar a relação tempo-produção, portanto Faber. Em resumo, as duas grandes famílias nas quais se divide a humanidade, até hoje desenvolvem experiências espaciais diferentes sendo que a família do Homo Faber, a da caverna e do arado, cava o seu espaço do solo; a família do Homo Ludens, a da tenda, se move através da superfície da Terra, procurando não deixar traços. Para o nômade, a relação lúdica com o tempo determina que ele viva o espaço através do constante movimento. Para o homem sedentário, acontece ao contrário: o tempo que investe no trabalho é que determina o espaço onde vive e como o vive. O conceito de tempo circular e linear e o sentido de orientação que cada um determina, podem ajudar a entender esses processos. Fuão4 afirma que o tempo circular é característica dos povos primitivos e o tempo linear é a ca-

racterística de nossa sociedade sedentária. No tempo circular, as referências espaciais mudam muito pouco em relação ao tempo, assim como em relação à cultura. As formas arquitetônicas são constantes, demarcando um lugar. Os nômades podem facilmente ler o espaço criando sua própria noção de tempo através do tempo que levam para acessar os marcos que lhe servem como referência espacial em um caminho. Já no tempo linear, que é uma característica da nossa sociedade sedentária, as referências espaciais mudam constantemente, apesar de gradualmente, causando desorientação. Quando nos damos conta, precisamos de placas de sinalização para nos orientar. As constantes mudanças do espaço sedentário através do tempo aprisionam quem tenta desesperadamente buscar reconhecer e entender suas mutações. O processo contrário acontece nos caminhos nômades, que incitam ao devaneio da alma. O espaço sedentário é denso, sólido e consequentemente cheio, enquanto o espaço nômade é fluido, aberto e vazio. Deleuze e Guattari5, falam sobre as naturezas opostas dos nômades e sedentários. Para os autores, o espaço nômade distribui os homens sem partilhas e fronteiras, formando um espaço liso, um infinito desabitado (figura 1). O espaço nômade é imprevisível: um deserto onde a orientação é difícil, como um imenso oceano onde os únicos marcos reconhecíveis são as pegadas deixadas no caminho, um sinal móvel e evanescente. Ali o nômade habita e se distribui, mantendo esse espaço como seu princípio territorial. Por isso é falso definir o nômade pelo movimento. Ele é, antes de tudo, aquele que não se move. Enquanto o migrante abandona um meio ingrato, o nômade é aquele que não parte, o que insiste e inventa o nomadismo como resposta ao desafio de enfrentar o deserto. Certamente o nômade se move, mas sempre sentado, como os beduínos. Sua paciência é infinita. Seu movimento é extensivo

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

15

Figura 1 - Pastores nômades da etnia Khamseh

Habitam entre as montanhas Zagros e o Golfo Pérsico, movimento que acontece anualmente em busca de pastagens. O espaço nômade é o infinito desabitado. Fonte: .

e a velocidade é intensiva. O movimento é o caráter relativo de um corpo, a velocidade, ao contrário, é o seu caráter absoluto de um corpo cujas partes irredutíveis preenchem um espaço liso, como um turbilhão6 que pode surgir de um ponto qualquer. O mar serve como exemplo de espaço liso onde o fleet in being (movimento de turbilhão) se coloca claramente. Só o nômade tem um movimento absoluto, ou seja, uma velocidade. É nesse sentido que o nômade é desterritorializado. Ele constrói sua relação com a terra como simples suporte para estabelecer um espaço de localização e não de território. O espaço sedentário, ao contrário, é denso e estriado por muros e caminhos cercados, onde seus habitantes são distribuídos em um espaço fechado, de maneira que haja um controle de comunicação entre as partes. O espaço do nômade se localiza entre

dois espaços estriados: o da floresta, com suas verticais de gravidade das vegetações formando eixos cartesianos; o da agricultura com os marcos ortogonais dos campos cultivados. Isso significa que o espaço liso é controlado por esses dois limites, determinando que ele exerça uma função de comunicação entre ambos, ou, ao contrário, que o espaço liso se volta contra o espaço estriado, corroendo a floresta por um lado ou traçando desvios por entre os campos cultivados. Se essas ações forem vistas em forma de espaço global relativo, implica que os caminhos que comunicam cidade e campo são determinados e limitados por esses componentes, assim como os eventos e intercâmbios comerciais. Deleuze e Guattari7 afirmam que é vital para qualquer Estado vencer o nomadismo e controlar as migrações a fim de fazer valer uma zona de direito

16

Celma Paese

por todos os caminhos que atravessam seu território. Para um controle eficiente da zona de direito são necessários existir trajetos fixos, com direções determinadas que limitem a velocidade e regulem os vetores de deslocamento, possibilitando medir os movimentos relativos aos sujeitos e objetos. As migrações e intercâmbios culturais e religiosos dos primeiros nômades durante as trajetórias intercontinentais do paleolítico foram os primeiros movimentos em que ocorreu a velocidade absoluta. Até hoje, essas caminhadas podem ser encontradas nas expressões ritualísticas e religiosas dos povos primitivos e tradições antigas, porém, não necessariamente mantendo a velocidade absoluta. A evolução da civilização dos índios Guaranis, desde o início da sua tradição da Terra sem Mal até os dias de hoje, ilustra o processo de sedentarização que venceu aos nômades8, enquanto essa sociedade milenar é descaracterizada a favor de sua absorção pela sociedade do homem branco. Os Guaranis desenvolveram uma religião baseada na busca da Terra sem Mal, o arquétipo de paraíso em sua tradição sincrética, na época em que eram índios guerreiros e habitavam as florestas entre o litoral do Brasil e o Chaco paraguaio, muito antes de serem subjugados pelos europeus e de se tornarem prisioneiros da agricultura. Desde esses tempos remotos, os Karaís, seus profetas errantes, iam de tribo em tribo pregando incansavelmente a busca da Terra sem Mal: um espaço de vida coletiva sem demarcação territorial, onde as convenções sociais e as sucessões de gerações dos homens não mais existiriam. Essa crença, que subsistiu no desejo coletivo dos Tupis de ontem, ainda vive nos Guaranis de agora, porém de maneira bem diferente do que no princípio.

Garlet9 referindo-se à mobilidade do grupo Garani Mbyà, que até hoje pode ser encontrado em toda a região Sul do Brasil, falou sobre essa evolução e as perspectivas que hoje se apresentam para os Mbyàs a fim de darem continuidade à sua civilização e preservarem o que resta de sua cultura. Tanto Garlet quanto Clasters10 consideraram que o impacto mais recente sobre o território dos Guaranis, que tem forçado mudanças contínuas dentro de seu próprio território até hoje, foi consequência do que aconteceu no final da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870). Desesperados e exilados em seus próprios territórios, os índios renunciaram ao confronto armado pela posse de terras, estratégia adotada por mais de dois séculos, e passaram, a partir dessa época, a mudar-se constantemente. Com o contato com o homem branco também vieram as doenças desconhecidas até então. Portanto, nesse período da história, eles não se moveram pelo instinto migratório do povo. O contato interétnico, que foi imposto pelos colonizadores, e as suas consequências, provavelmente foram interpretados, a partir da fundamentação mítica, como indícios do fim do mundo. O mal estava, definitivamente, instalado sobre a terra. Assim, foram em busca de lugares onde pudessem encontrar tranquilidade, evitar confrontos e preservar sua cultura. Neste momento, o conceito de território também passou a ser reconsiderado e tornou-se cada vez mais amplo e segmentado. A princípio, sua expansão se dava para leste, cada vez mais longe do que eles conceituavam como sendo o Centro do Mundo (Yvy Mbyte) original. Esse Centro do Mundo era descrito como sendo redondo como um prato. Através de vários círculos concêntricos, o território expandia-se, sendo o Rio Paraná o limite do primeiro círculo e o Rio Uruguai o do segundo. O maior e mais desafiador dos limites era ParaGuachu (mar). A maioria dos dirigentes religiosos afirmava que, atravessando o mar, encon-

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

trariam uma ilha paradisíaca. Eles também tinham a certeza de que encontrariam o local onde seu antepassado Kechuita atravessou o mar e, então, também poderiam cruzá-lo. Mas, segundo os próprios Mbyá alertavam, o mar não é para todos cruzarem.11 Para Carlos Rodrigues Brandão12, os Guaranis não esperavam, como outros povos, a vinda de uma divindade que os guiasse. Eles acreditavam na redenção coletiva do grupo, ao alcançar seu ideal. A partir da chegada do homem branco, a ideia da Terra sem Mal se foi desenvolvendo, tanto em nível espacial quanto socialmente. Portanto, o primeiro momento de nomadismo dos Guaranis buscaria apenas um lugar geográfico real na floresta, uma terra de fartura e livre dos brancos, como no princípio de sua história. Reconhecida a impossibilidade de concretizar esse ideal, esse espaço natural e social é deslocado para o plano etéreo de realização religiosa, para além dos limites do mundo terreno próximo. Em um terceiro momento, há um novo deslocamento: a procura de uma terra fora do mundo e da sociedade. Nesse espaço, os lugares não são marcados e as relações sociais são abolidas, assim como o tempo. A intenção desses constantes deslocamentos é uma busca interior ao retorno ascético do modo de ser dos antigos, ainda que isso tenha que ser feito aqui mesmo, entre os brancos e sob seu poder. Aqui, o imaginário profético Guarani repete o de outras tradições: o paraíso existe aqui, fora do poder opressor do outro e da lógica do outro, através do cultivo da cultura da tribo; o paraíso existe além do mundo que o outro domina; o paraíso não existe a não ser no interior, dentro do coração do homem subjugado, que se liberta sem se fazer libertado, através de si mesmo. O conceito de Terra sem Mal foi evoluindo com o tempo e hoje admite uma distância ideoló-

17

gica impossível de ser transposta no mundo físico. Brandão13 coloca que, a partir da destruição de suas matas, as dificuldades dos Guaranis viverem seus destinos coletivos de maneira sublime foram aumentando. O resultado foi a busca de expansão de horizontes através do abandono do sedentarismo e a volta ao nomadismo, estilo de vida dos antigos Guaranis, que viviam nas florestas virgens, antes dos colonizadores. Fugindo dos males da sociedade do homem branco, que prenunciam o final dos tempos, os Guaranis abrem um espaço de transcendência e, a busca da Terra sem Mal passa a ser o resgate ético de um povo. A Terra sem Mal também passa a ser uma representação do paraíso, um lugar da absoluta abastança e de realização plena do desejo de um povo de caçadores, onde o milho cresce sozinho e as flechas alcançam espontaneamente a caça. Uma terra de opulências e lazeres infinitos. O caminho para essa Terra se dá através da destruição da sociedade que obriga o homem a ser servo do próprio homem. Não há uma cidade celestial a construir ou a encontrar, mas sim um lugar onde a vida dos homens possa ser coletiva, sem distinção social. Garlet14 afirma que uma dinâmica interativa e harmoniosa entre natureza e cultura é necessária para que se estabeleça a ligação entre os homens e deuses. Com os Mbyás ela é estabelecida a partir da hora da escolha do lugar a ser ocupado, através dos sonhos que são considerados premonitórios quando o lugar é desconhecido, e de sondagem quando buscam a avaliação do lugar que encontram. O principal fator a avaliar é a proximidade da sociedade do homem branco na região em relação ao espaço escolhido a fim de avaliar o potencial da intervenção que sofrerão. Outro fator que determina a identificação de um local como apropriado, são as espécies vegetais encontradas. Estas possuem valores simbólicos e práticos, fundamentais em várias circunstâncias de

18

Celma Paese

vida do grupo. O momento de abandonar o local é quando alguma catástrofe ou conflito ocorre, sempre um prenúncio do desastre final. Para os Mbyás, qualquer lugar é apenas mais uma escala na caminhada que leva ao seu destino coletivo. Suas energias estão voltadas para o que chamam do país do não-Um, onde não existe sociedade, isto é, trabalho, infelicidade e poder. Garlet15 questiona a natureza nômade deste grupo, por acreditar que seus movimentos caracterizam-se pela circularidade. Porém ainda é possível observar nos Mbyás certas características dos povos nômades tradicionais, como os do deserto. O movimento de circularidade ao qual Garlet se refere, é uma característica dos povos nômades. Em outro momento de sua história, os Mbyás poderiam ser considerados migrantes, porém, seus critérios de ocupação espacial têm conexão com os dos nômades: Eles também vão e vêm pelo mesmo caminho e estabelecem-se em locais determinados há gerações, caracterizando um movimento circular que, nesse caso, acontece porque os espaços escolhidos, que correspondem às suas necessidades culturais de ocupação, têm sido constantemente retomados por diferentes grupos familiares. Através da circularidade é possível maximizar o potencial existente sobre o território escolhido e viver de acordo com o modo de ser tradicional. É preciso lembrar que territórios com as características geográficas apropriadas para os assentamentos estão cada vez mais raros. Portanto aqui se estabelece a diferença entre os nômades e os Mbyás, que não podem ser considerados um povo livre. Os Mbyás estão cada vez mais acuados, absorvidos e descaracterizados pela sociedade do colonizador, da qual não desistem de se livrar. Vítimas de uma sociedade que os absorve cada vez em maior número, os Mbyás são dizimados pela busca de condições de vida que consideram melhores e pela sedu-

ção por valores estranhos à sua cultura, colocando-a em perigo de extinção. Outro exemplo de povo nômade primitivo que utiliza o caminhar com fundamentação ritualística são os aborígines australianos que desde os tempos remotos cultivaram a tradição de buscar a identidade com seu ser primordial através do Caminho dos Sonhos. Chatwin16 descreveu o sentido da tradição do Caminho dos Sonhos para este povo. Os aborígines até hoje acreditam que, em um tempo mítico dos primórdios da Criação, animais totêmicos deixaram rastros que formaram caminhos através do continente australiano. Esses rastros são invisíveis e imateriais. Até hoje, a maneira de materializá-los é através de cantos que os jovens aborígines precisam entoar ao mesmo tempo em que refazem esses caminhos, em uma iniciação na tradição de seus antepassados. Chatwin17afirma que, para entender o conceito de Tempo dos Sonhos, é preciso entender esse tempo como se fosse o tempo do Gênesis. A diferença entre o Gênesis e o Tempo dos Sonhos é que no Tempo dos Sonhos os próprios antepassados criaram a si mesmos a partir do barro, milhares deles, um para cada espécie totêmica, enquanto no Gênesis, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. Ao percorrerem o Território caminhando, cada um dos antepassados criou um canto que é sua identidade. Esses cantos tornaram-se meios de comunicação entre tribos distantes, criando uma identidade temporal e territorial; tanto um mapa quanto um orientador direcional. Quem tem esse conhecimento sempre poderá encontrar um caminho através do país. Os Rastros dos Cantos podem ser visualizados como um espaguete de Ilíadas e Odisseias, retorcendo-se de um lado para outro, onde cada episódio é um caminho. Ao perguntar para um aborígine por algum marco

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

espacial na paisagem ou na mata: “Qual é a história ali?” ou “O que significa?” a resposta poderá ser Canguru ou Periquito ou Lagarto, dependendo do antepassado que percorreu o caminho que cruza por aquele marco espacial que pode também ser chamado de ícone. Para os aborígines, as linhas e passagens determinadas pelos Rastros dos Cantos pertenciam a cada um dos percursos e era o lugar que não era preciso pedir.18 Os versos dos cantos eram considerados a própria escritura do território (figura 2).

19

Figura 2 - Caminhos dos cantos da língua Warlpiri, Austrália

Dando existência ao mundo pelo canto, os antepassados foram poetas no sentido original da poesis como ‘criação’.19

Até hoje, ao sair em walkabout, expressão que significa percorrer o caminho de seu antepassado, o aborígine faz sua jornada ritual e, seguindo as pegadas de seu antepassado cantando as estrofes sem mudar uma palavra ou nota, ele recria a própria criação da Terra. Esses caminhos também caracterizavam as rotas de comércio, pois os cantos, e não as coisas eram o meio principal de troca. Era permitido trocar e emprestar os cantos, só não vender ou livrar-se deles. Os limites dos territórios eram determinados pelo final dos versos. Chatwin20 comparou a iniciação dos aborígines com a iniciação dos meninos ciganos. Antes de serem iniciados, os ciganos devem memorizar os cantos de seu clã, os nomes de parentes e ainda uma infinidade de números telefônicos internacionais. Existem ainda outras semelhanças entre povos tão diferentes. Além de ambos considerarem seu mundo como um território de caça, tanto para os ciganos como para os aborígines, o termo carne é usado para designar sedentário.

O walkabout dos aborigenes australianos é formado por um itinerário cantado onde eles seguem o caminho dos seus antepassados, recriando a criação da espécie totêmica com a qual se identificam. Fonte: CARERI, Francesco. Walkscapes: walking as an aesthetic practice. Barcelona: Gustavo Gili, SA, Barcelona, 2002, p. 45.

20

Celma Paese

Apesar das tentações da sociedade do homem branco, os Mbyás e aborígines até hoje acreditam no movimento como sinal de que ainda há vida. A Terra para eles deve existir primeiro como um conceito de mente, para depois se materializar através do ritual da criação. Os movimentos dos povos aborígines se identificam, também, com o movimento dos pastores nômades primitivos em termos de representação de trajeto. Em grego, nomos significa pasto e um nômade se deslocava de um pasto para outro. A fim de controlar os percursos dos rebanhos, os pastores nômades precisaram criar os primeiros símbolos de referência espacial. Na verdade, esses símbolos de referência espacial apareceram bem antes dos gregos. Os menires começaram a demarcar eventos nos caminhos do Paleolítico, a fim de impor certa ordem no entorno e sinalizá-lo. Nesse momento da história, a humanidade já começava a estabelecer certo estriamento no espaço. Careri21 contextualizou a passagem do espaço vazio ou liso, para o espaço cheio ou estriado com o surgimento desses primeiros caminhos e o preenchimento do entorno vazio por certo número de espaços cheios. Uma das primeiras funções do menir foi ser o marco que determinava um espaço ritualístico no caminho.22 A jornada, que era cheia de eventos, histórias e mitos, encontrou um espaço de representação para ela nos contos de viajantes e lendas, que eram ritualizadas em torno da pedra plantada no chão. Surgiu o espaço ao redor do menir. Quando os menires eram dispostos em grupos bem definidos e ritmados, além de determinar uma direção delimitavam um lugar onde no seu centro se poderia dançar, rezar, ou simplesmente caminhar. Surgia a primeira arquitetura com um espaço simbólico complexo.

As transformações dos caminhos e espaços vazios do Paleolítico em trilhas e estradas deram continuidade à organização espacial no Neolítico, onde surgiram vilas vizinhas aos campos cultivados, que mais tarde se transformariam em cidades. Os elementos simbólicos de referência desses caminhos foram conservados e transferidos para dentro dos espaços internos, como nos espaços dos templos egípcios. Apesar de serem conhecidos como uma civilização sedentária, os egípcios conservaram em sua arquitetura, grande parte do simbolismo cultural Paleolítico, que Careri assim descreve: O nascimento do primeiro volume no espaço foi representado na cultura Egípcia pelo mito de Benben, a primeira pedra que emerge do caos, um monólito que representa a petrificação vertical do primeiro nascer do sol, também conectado com o simbolismo dos menires, dos obeliscos e das pirâmides. O nascimento do espaço interno, por outro lado, é conectado com o conceito de Ka, o símbolo do eterno vagar, uma espécie de espírito divino que simboliza movimento, vida, energia e também representa a memória das perigosas migrações do Paleolítico. O símbolo que representa Bebem, é um monólito cônico com a ponta luminosa, o de Ka, um ser humano com os dois braços abertos para cima, semelhante á um tridente, provavelmente representando o ato de transmissão da divina energia no culto ao sol.[...] Ka é um dos símbolos mais antigos da humanidade, e porque é frequentemente encontrado em muitas civilizações diferentes, distantes umas das outras, podemos su-

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

por que seu significado era compreendido pelos diferentes povos errantes que cruzaram os continentes a pé, durante o período Paleolítico.23

Na arquitetura egípcia, o menir foi transformado em volume e o caminho em espaço interno, configurando colunas e corredores de passagem. Podemos supor que as primeiras construções sagradas nasceram sob as bênçãos de Ka. Uma das construções egípicias mais espetaculares, a Grande Sala Hipóstila de Karnak, é uma espécie de caminho entre duas enormes colunatas paralelas que recorda a organização espacial ritmada dos caminhos demarcados por menires. O paisagismo e as primeiras cartografias tiveram uma origem comum, o caminho percorrido. Os menires e marcos do percurso eram conectados entre si nas primeiras representações cartográficas, por linhas formando vetores, que representavam o espaço de ir e vir, como nas representações cartográficas do walkabout dos Caminhos dos Sonhos dos aborígines. Um dos primeiros mapas de representação encontrados é o de Val Caminica, no norte da Itália (figura 3). Este mapa, que data de 10.000 anos atrás, foi encontrado esculpido em uma rocha. O mapa representa o sistema de conexão entre eventos e caminhos que era utilizado no dia a dia de um povoado Paleolítico. Nele, até hoje é possível identificar representações de marcos geográficos, cenas de homens em plena atividade, zonas para animais e campos cultivados. Os vetores que ainda ligam os eventos são os mesmos que encontramos nos mapas dos Situacionistas.24 Os mapas que os nômades usam até hoje utilizam uma representação de linguagem semelhante: um vazio conectando marcos como lugares sagrados, oásis, boas pastagens e lugares que

21

mudam rapidamente, refletindo a relação entre o vazio e o espaço denso, sempre representando caminhos que em breve serão apagados pelo vento. Os vetores, trajetos entre dois pontos, são onde acontece a essência do nomadismo, a vida em comunidade, que goza de autonomia e direção própria e abriga toda a consistência do evento. Nas cidades, o espaço nômade pode ser identificado no caminho em si, que é a Cidade Nomádica, que é o espaço de ir e vir. As formas de linhas sinuosas desenhadas pela sucessão de corpos em movimento fazem dos pontos de partida e chegada serem menos importantes que o espaço do caminho, onde acontece a vida em comunidade. Porém, os caminhos da Cidade Nomádica são diferentes do caminho do nômade. Na Cidade Nomádica, o caminhante tem a liberdade limitada de determinar sua rota a partir dos desenhos dos caminhos pré-existentes que permeiam a Cidade Estática, um espaço estriado onde a comunicação entre os habitantes é regulada por marcos espaciais e edifícios. 2.2

Arquitetura móvel

“O máximo potencial do ser humano pode ser alcançado através da completa cooperação entre todos os homens.”

Buckminster Fuller Para o nômade, os vastos lugares abertos onde ele transita são familiares e o retorno é planejado. Sua vida é esse intermezzo. Para o sedentário, os caminhos que ele percorre na cidade tomam o lugar do caminho do nômade e, em seu habitat, a arquitetura passa a ser adaptável, trazendo, através da tecnologia,

22

Celma Paese

Figura 3 - Bedolino, Val Camonica, Itália

Um dos primeiros mapas a representar um sistemas de rotas. Gravado em uma rocha de Val Camonica, norte da Itália, tem a idade aproximada de 10.000 anos. O mapa representa um sistema de conexões de eventos da vida cotidiana de um povoado paleolítico. Nele pode-se identificar cenas de homens trabalhando, escadas, animais, campos cercados, casas e palafitas. Fonte: Mariano Pallotina. Alle origine della cittá europea. Quasar, Roma, 1985.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

a mobilidade para os espaços sedentários. Quanto mais móvel e adaptável a arquitetura do homem sedentário se torna, mais ela cumpre sua função de refletir a evolução da tecnologia espetacular. Na definição de Friedman25, a arquitetura móvel é a que se adapta ao habitante e ao lugar, ao invés do habitante adaptar-se a ela. Ela pode operar com a convertibilidade de suas formas, através de abrigos temporários, desmontáveis e reutilizáveis. Outra maneira é a convertibilidade espacial das superfícies e espaços utilizados, sem a mudança das estruturas que sustentam as construções, como plataformas e as redes de comunicação e infraestrutura. Portanto, a cidade ideal contemporânea é a que atende às necessidades dos seus habitantes e se adapta às transformações espetaculares propiciadas pela tecnologia a fim de gerar conforto. Aproveitando-se das facilidades geradas pela tecnologia, os habitantes da cidade ideal adquirem cada vez mais liberdade para o lazer. Fácil de ser identificada, a arquitetura móvel adapta-se às necessidades de seus habitantes e pode ser efêmera, ao atender a uma finalidade específica. Ela muda facilmente de forma, estilo, estrutura e muitas vezes de lugar. Eclética por natureza, ela se propõe a servir ao homem, ao contrário da arquitetura estática, que exige a adaptação de seus habitantes. Sendo um meio de comunicação dos desejos humanos, portanto ferramenta de coexistência, a natureza da arquitetura não é pacífica, pois o ato de construir é formalizar os desejos de quem a utiliza. A capacidade de adaptação das condições estáticas de uma construção é limitada e o limite é identificado quando os habitantes não mais se sentem à vontade nela, tornando-se antinatural, pois na natureza, tudo se adapta, através de uma evolução contínua. Friedman lembra que a arquitetura móvel foi concebida para um mundo rico ao mesmo tempo em

23

que hoje, ela deve adaptar-se a uma realidade cada vez mais pobre. Friedman propôs, assim, o que Frei Otto26 proporia nos anos 70: que o arquiteto assumisse o papel social de gerar espaços que servissem ao homem e às suas necessidades cada vez mais mutantes e urgentes, ao invés de criar novas necessidades. Construir de uma forma adaptável eficiente e realmente econômica em termos de custo e benefício significa fazer a arquitetura servir às necessidades dos que vão utilizá-la através da atividade construtiva. A questão é compreender a maneira pela qual o movimento da adaptabilidade acontece na vida dos seres urbanos de hoje e como os recursos tecnológicos disponíveis devem ser aplicados, com o objetivo de serem facilitadores das adaptações necessárias que são exigidas com o tempo, e não ao contrário. Infelizmente, a verdadeira adaptabilidade que ocorre através das técnicas construtivas, hoje, carece de sentido por ser às vezes antieconômica ou não interessar aos que criam novas necessidades através da tecnologia. Para Frei Otto27 o fascínio que a adaptabilidade da arquitetura dos primitivos exerce, hoje, sobre os arquitetos, dá-se porque aqueles povos utilizavam de maneira apropriada as tecnologias disponíveis a fim de satisfazer as necessidades das pessoas. Em diferentes culturas os desafios são semelhantes quando se trata de criar abrigos leves, flexíveis e fáceis de transportar, como as tendas beduínas, os Yurt mongóis e as tendas-casaco dos pastores bascos em que a arquitetura adapta-se continuamente aos limites de tolerância do corpo humano. Uma construção de adobe ou uma tenda trazem muito mais conforto a seus habitantes do que um edifício de vidro e concreto que precisa de tecnologias como climatização, iluminação artificial e elevadores para tornar esse tipo de arquitetura confortável

24

Celma Paese

em termos de habitabilidade. Portanto, é necessário admitir que não é por falta de desenvolvimento tecnológico nos sistemas construtivos que a arquitetura de hoje não exerce a mesma função de conforto e habitabilidade. A utilização das tecnologias que hoje se propõem a resolver os problemas gerados pelas técnicas construtivas utilizadas atualmente é fruto da sociedade do consumo espetacular que exige cada vez mais rapidez e renovação a fim de girar capital, tornando a arquitetura cada vez mais pluralista e a geração de sucatas cada vez mais intensa. Não existe nenhuma arquitetura adaptável ideal, o que existe são arquiteturas mais ou menos estáticas e mais ou menos adaptáveis. Apesar desses limites em termos de renovação, a verdadeira adaptabilidade na arquitetura deveria se propor a melhorar a qualidade de vida de quem a utiliza, de maneira economicamente acessível a todos. Além das construções adaptáveis dos povos primitivos, outras categorias de arquitetura também podem ser consideradas móveis e adaptáveis. As construções com grandes vãos em altura e extensão, que permitem uma maleabilidade espacial através de estruturas independentes; a arquitetura transformável com suas áreas cobertas formando tendas e as construções leves para grandes eventos: a arquitetura móvel dos trailers que permitem a mudança de lugar; as casas móveis, as pré-fabricadas que, apesar de fixas, mudam de lugar facilmente e adaptam-se a qualquer terreno e ainda podem ser aumentadas de tamanho com facilidade. Existe uma outra faceta da tecnologia que, apesar de servir a interesses econômicos, apresenta inegável contribuição no desenvolvimento das técnicas construtivas. A introdução de novos materiais substituindo o aço, como o fiberglass, nylon e outras fibras artificiais foi a chave da evolução da arquite-

tura móvel no século XX. Hoje, as casas relocáveis utilizadas por vítimas de desastres naturais, por militares e trabalhadores migrantes, os painéis que organizam um espaço por tempo limitado e as futuristas paredes de plasma propiciam recursos que agregam cada vez mais mobilidade à arquitetura. As casas móveis foram um fértil campo de pesquisa tanto na teoria quanto na prática da arquitetura. Em 1920, Le Corbusier escreveu sobre uma indústria de aviões francesa que poderia ser facilmente transformada em uma fábrica de casas móveis no estilo do então na moda e até hoje famoso Ford Modelo T: prenunciando um tempo onde o pré-fabricado dominaria a indústria da construção civil, escreveu em L’Espirit Nouveau28 que, para construir uma casa, não seria possível mais esperar pelo lento processo da construção convencional, pois as casas deveriam ser erguidas de uma só vez, e fabricadas por máquinas como as que fabricavam os carros da Ford e aviões. A ideia das casas móveis não se concretizou naquele momento, porém, houve experiências com projetos para a produção de habitações em série, como o projeto de habitação da Ville Radieuse, de 1930 (figura 5). O objetivo era usar métodos racionais de produção para moradias populares, a fim de facilitar a produção em série dessas moradias. A proposta consistia em faixas de habitações, com as divisórias internas maleáveis respeitando as diferentes necessidades dos habitantes. Frampton29 considera a Ville Radieuse como um exemplo típico da arquitetura para a Era da Máquina. Corbusier utilizou como referência o projeto de Eugène Hèrnand de 1903, de Boulevar à Redans. A Ville Radieuse consistia em um apartamento flexível, de um único pavimento e extensão variável, e suas divisórias eram leves, sem a preocupação com a acústica, mas sim com a mo-

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

bilidade do espaço. Algumas das divisórias internas corriam sobre trilhos e, quando fechadas, transformavam-se em quartos; quando abertas, surgia uma área de lazer para as crianças, dando continuidade à sala de estar. A cozinha e o banheiro eram reduzidos a um mínimo. O espaço, tão eficiente quanto o de um vagão-leito de um trem europeu, ainda possuía as fachadas vedadas e um ar-condicionado eficiente, invocando o culto às novas tecnologias. Frampton30 considera o projeto da cidade da Ville Radieuse como uma evolução do projeto de Corbusier da Ville Contemporaine, de 1922, sua primeira concepção de cidade para a Era da Máquina. Corbusier propôs as faixas de habitações como parte da composição de um projeto urbanístico de uma ci-

25

dade sem classes, onde abandonou o modelo urbano centralizado e avançou para um conceito teoricamente limitado, que se ordenava a partir de um espaço dividido por zoneamento de funções. A concepção humanista e antropomórfica de espaço da cidade havia se transformado em espaços de setores isolados, cada um com uma função, que se expandiriam independentemente. A Ville Radieuse levou o conceito de cidade desenvolvido na Ville Contemporaine à sua conclusão lógica. As vias de acessos, colocadas sobre pilotis, transformavam o espaço entre os edifícios em um grande parque, onde o pedestre circularia livremente. A proposta urbana da Ville Radieuse seria questionada mais tarde pelos Smithsons31, quando na concepção do conceito de Cidade Cluster.

Figura 5 - Le Coubusier, Ville Radieuse Le Corbusier e Jeanneret, Ville Radieuse, 1931. Projeto de uma unidade com cinco quartos. Fonte: FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 216.

26

Celma Paese

Contemporâneo às ideias de Le Corbusier, porém com uma maneira de pensar arquitetura como parte de um universo sinergético, o arquiteto norte americano Buckminster Fuller também defendia a ideia de utilizar linhas de produção ociosas da indústria aeronáutica para a produção de casas. Para Fuller, esse tipo de mão de obra serviria perfeitamente em nível tecnológico para tal tarefa. Fuller foi um dos principais renovadores da maneira de pensar sistemas construtivos no século XX. Além de arquiteto, Fuller era filósofo, professor, investigador, cartógrafo e economista. Kultermann32 afirma que esse amplo universo de conhecimentos possibilitou ao arquiteto estudar muitas questões relacionadas ao meio ambiente e às possibilidades de adaptabilidade das técnicas construtivas às necessidades dos seres humanos, bem antes de serem questionadas corriqueiramente. Para Kultermann, a declaração feita em 1927 por Fuller – “O máximo potencial do ser humano pode ser alcançado através da completa cooperação entre todos os homens.”33 – resume sua maneira de pensar, que transcende, em muito, o campo da técnica e da construção. Buscando uma total adaptabilidade do habitat às necessidades humanas, Fuller34 desenhou em 1927 a Casa Dymaxion, uma estrutura circular suspensa por cabos de aço em um mastro de 20 metros de altura contendo as tubulações, que possibilitava girar a habitação conforme a posição do sol. Suas principais preocupações ao desenvolver a Dymaxion foram: a redução do espaço do design das casas e que essas estruturas portáteis pudessem ser instaladas em regiões inóspitas e não dependessem das condições do terreno. Fuller acreditava que o desenvolvimento das sociedades globais do futuro estaria ligado à evolução da tecnologia. O arquiteto era um visionário e

devotou sua vida a responder às questões que envolvem a viabilização da sobrevivência da humanidade no Planeta Terra. Duarte35, ao descrever a linha de pensamento de Fuller, coloca que ele estava interessado nas mudanças que ocorreriam no espaço habitado quando o desenvolvimento da tecnologia propiciaria ao homem tornar-se um ser em constante movimento, que fosse capaz de escolher suas direções em uma série de possibilidades, através do conhecimento global do saber. Os temas principais de Fuller eram a mobilidade, a poluição, a reciclagem, as fontes de energia finitas e a sociedade global e focava sua pesquisa nas possibilidades de racionalizar o uso de energia a fim de equilibrar o seu uso, pois entendia o universo como um sistema de equilíbrio energético. Fuller não pretendia organizar a aldeia global, mas sim dar liberdade aos indivíduos para que trocassem experiências e relações produtivas nos diferentes pontos da Terra. Ao abandonar seus estudos em Cambridge para lutar na Primeira Guerra, entre 1917 a 1919, Fuller desenvolveu a sua maneira de pensar, interativa, em relação ao mundo, e algumas de suas ideias básicas sobre como a arquitetura poderia colaborar em seus propósitos, o levaram a começar a estudar a formação geométrica dos elementos da natureza. Quando Fuller concluiu que a formação geométrica básica dos elementos parte do triângulo, portanto um sistema coordenado de vetores que se estabilizam entre si, ele começou a explorar o tetraedro, onde três triângulos formam um quarto e, em seu ponto de vista, o menor denominador comum do universo. Aqui, surge a linha de pensamento que Fuller desenvolveria durante toda a sua obra: o conceito de sinergia.36 Em Manual de operação para a espaçonave Terra , Fuller nos coloca que, enquanto o homem se 37

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

imaginou um ser terrestre e pedestre, sem considerar sua capacidade de interagir com outros meios que não fosse a terra firme, limitou-se a 10% da superfície terrestre, sendo que só 25% desse território era próprio ao seu sustento. Até há bem pouco tempo, apenas os aventureiros do mar tinham uma consciência mais abrangente do mundo. Mais recentemente ainda, cerca de 99,9% da humanidade começou a ter consciência dos problemas e fatos que ocorriam no mundo, depois da invenção do telégrafo e do rádio. Cada ser humano, até um século atrás, não conhecia mais do que um milionésimo da superfície terrestre. Essa visão regional favoreceu o pensamento especializado e compartimentado, propiciando o controle através de instituições como a nação e a soberania. Se Fuller for comparado a MacLuhan38 que coloca o surgimento da escrita como um instrumento para a formação das nações, a visão do primeiro é ainda mais abrangente, ao diagnosticar que a falha está na concepção de visão espacial da humanidade, que Fuller considerava uma espécie de confinamento, impedindo a total adaptabilidade ao mundo. Fuller achava que era preciso o homem dar-se conta das mudanças sociais e tecnológicas que ocorriam, processo na verdade infindável e que se tornou cada vez mais acelerado através da história do Século XX. O importante seria o homem entender sua dinâmica a fim de adaptar-se de forma que a tecnologia conviesse aos interesses de toda a humanidade. Portanto, em lugar da compartimentação, a visão global dos processos daria margem à conscientização do sistema global do universo, que Fuller traduziu em sua arquitetura em estruturas geodésicas, compostas por um conjunto de tetraedros que ele considerava como elemento geométrico mínimo de ordenação da natureza. O conjunto de tetraedros compõe espaços semelhantes à forma da Terra. Fuller acreditava que, quando essas interligações fossem identificadas, o

27

universo seria compreendido pela humanidade. Foi preciso a guerra de 1940 para que os projetos de Fuller fossem postos em prática. Requisitaramno para desenvolver o projeto da Dymaxion para que fosse utilizada pelo exército do Pacífico e no Golfo Pérsico. Depois, em 1946, uma indústria de aviões fabricou em série uma versão simplificada da Casa Dymaxion, com o nome de Wichita House39. Concebida dentro da mesma técnica de montagem das peças de avião, e com as mesmas ferramentas, a Wichita House, em alumínio e aço, era suspensa por um mastro central e ancorada no terreno por cabos. Formada por sete tubos de aço, o mastro de 6,60 metros de altura não pesava mais que 32 quilos e podia suportar o peso da casa e  mais 120 pessoas. Porém, após a guerra, ao contrário do que pensava Fuller, o interesse dos industriais não se encaminhou em direção à industrialização da construção. A produção da Wichita House foi abandonada. Fuller, então, empreendeu o desenvolvimento das estruturas geodésicas que o iriam tornar conhecido: os domus (figura 6) geodésicos são redes poliédricas de estruturas de aço, recobertas de elementos metálicos, de matéria plástica ou mesmo de papelão, permitindo recobrir superfícies consideráveis sem pilares. Eles remetem diretamente, se bem que sob outra forma, ao mesmo princípio utilizado no Palácio de Cristal de Paxton. Curiosamente, seu domus geodésico mais famoso foi feito também para uma exposição temporária: o domus geodésico executado para a Expo’67 em Montreal, Canadá. Durante longo tempo, estas cúpulas foram unicamente experimentais. O primeiro edifício não provisório de Buckminster Fuller foi o domus em alumínio das fábricas Ford em Dearborn (1953): medindo 28,4 metros de envergadura e pesando 8,5

28

Celma Paese

Figura 6 - Primeira página da patente americana do domus geodésico

toneladas, este edifício foi montado em trinta dias. Em 1958, Fuller construiria para a Union tank car company, em Baton Rouge, na Lousiana (figura 7), seu primeiro grande domus de 117 metros de diâmetro, bem maior que os palácios gigantes das exposições do século XIX. Mas Fuller confessava muito mais ambição, e seu sonho era construir um domus que recobriria a parte central de Manhattan, cujo diâmetro teria 3,2 quilômetros e altura de 1600m em seu centro. Fuller40 também se preocupou com a construção de moradias econômicas, que ofereceriam o maior conforto possível, e com a habitação transportável de urgência, e desenvolveu, com os estudantes da Universidade de Cornell, projetos de cúpulas, como a chamada Pinha de 12,2 metros de diâmetro, realizada em chapas de compensado; a cúpula chamada de Iglu, em folhas de alumínio ondulado, pesando 90 quilos; e a cúpula Geoespaço, em painéis de papelão. Fuller desenvolveu seus domus geodésicos para que esses fossem implantados em diferentes regiões do mundo, independente das diferenças de clima e terreno. As suas cúpulas geodésicas foram construídas desde em regiões desérticas até o Polo Sul, onde uma estação de pesquisa foi abrigada por mais de dez anos dentro de uma delas.

Fonte: KANH, LLoyd. Cobijo. Madri: H. Blume ediciones, 1973, p. 87.

Lembrando que o triângulo, com um mínimo de troca de energia, forma um sistema de forças equilibradas, e que um grupo de três dessas formas geométricas formam o tetraedro, o desenvolvimento desse sistema para formas poliédricas, em que todos os elementos de uma estrutura geodésica trabalham ao mesmo tempo, propicia surgir estruturas que podem ser imensas e, ao mesmo tempo, com um mínimo de massa em relação a uma construção convencional. Construído de cima para baixo em movimen-

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

to circular, desenvolvendo-se ao redor de um mastro central, o Domo Geodésico, pela sua integridade de forças, pode ser construído com materiais baratos, como bambu, papel e sarrafos de madeira. Até o final dos anos 70, Fuller foi incansável ao desenvolver seus projetos, muitos em várias versões, como no caso das cúpulas. Ele atribuía ao arquiteto e ao designer a responsabilidade de pensar seus projetos e produtos com a interação das forças estruturais entre os outros elementos artísticos e técnicos, a fim de atingir uma unidade sinergética. De forma similar às ideias de MacLuhan, Fuller concebe o mundo como uma extensão das funções humanas. Ao buscar a unidade sinergética, a humanidade poderia atingir uma capacidade global interativa de relação com o mundo. Através do avanço das tecnologias de informação, o homem obteve uma visão global do território de ação da arquitetura, como Fuller havia previsto. Aspectos subjetivos da arquitetura, como os desenvolvidos por Fuller, propiciaram ampliar e

29

transformar a abrangência desse território e desenvolver uma nova estética própria dos tempos de hoje. No período de 1933 a 1934, Fuller desenvolveu o projeto do carro Dymaxion, juntamente com Starling Buggs. Concebido no mesmo estilo aerodinâmico do Airstream41 de Wallace Byan, recém-lançado na época e um ícone, até hoje, no mundo dos trailers. Os trailers começaram a surgir nas estradas americanas durante os anos 20, quando o automóvel era relativamente barato. Nessa época, o uso do trailer popularizou-se e surgiu um novo tipo de viajante pioneiro doméstico, que descobriu o prazer das viagens curtas. Siegal 42considera os trailers descendentes diretos das Casas Conestoga, carroças cobertas com lonas que são vistas sempre em filmes de western, utilizadas pelas famílias que colonizaram o oeste dos Estados Unidos no séc. XIX. No início, as Costenoga foram produzidas para distribuir mantimentos e mercadorias na nova fronteira, depois

Figura 7 - Domus geodésico para a Unio Tank Car Company

Fonte: LYNTON, Norbert. Arte Moderna. In: O mundo da arte. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Brittanica do Brasil Publicações Ltda, 1978, p. 141.

30

Celma Paese

rapidamente foram equipadas devidamente e convertidas em residência para essas famílias de colonizadores. Trailers como o pioneiro Aerocar de Glenn Curtis e o Airstream de Wally Byam evocavam a sensação de liberdade das viagens, ao combinar as linhas do trem e do avião. A Wally Byam’s Airstream Imcorporated iniciou sua produção de trailers em 1936 (figura 8), começando uma nova era da liberdade de locomoção da própria casa nos Estados Unidos. Com aparência aerodinâmica o Trailer Airstream43, todo em aço, havia sido desenhado para cruzar o ar como um bólido. Dentro dele, toda a comodidade de uma casa à disposição. Byam costumava viajar com grupos que, no início, faziam viagens curtas. Porém, logo em seguida, caravanas foram organizadas em viagens maiores através do continente

americano, chegando no seu auge a cruzar o oceano para a Europa e África. Essas cidades de lata, que podiam durar apenas algumas horas em um espaço desabitado, até hoje fazem parte da cultura americana. E assim pregava Byam:

Figura 8 - Trailer Airstream, 1936

Fonte: WBCCI Airstream Club http://www.akronwbcci.com/history.asp.

Não pare, continue andando. Pegue seu trailer e vá para o Canadá ou baixe para o velho México. Aventure-se para a Europa, se você pode pagar ou vá para o Mardi Gras. Viagem para algum lugar que você ouviu falar onde você possa pescar ou caçar ou coletar pedras ou só para ficar olhando para o céu. Encontre o final de alguma estrada no interior. Veja o que tem além da próxima montanha, e depois da outra e da outra. 44

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

O trailer representava liberdade, nem que fosse temporária, por algumas horas ou dias. O importante era pegar a estrada. Talvez, com o fomento do espírito nômade desde os anos 20, não seja de se admirar o surgimento da Geração Beat e de sua fome de On the Road no ventre do país do espetáculo. A fome de mundo é a essência do nômade. Em qualquer tempo e lugar. Vinte e cinco anos depois, Clark Cortez45 combinou o veículo original com um chassi de ônibus, e surgiu o Motorhome. Inicialmente desenhado para ser um escritório móvel, ele rapidamente transformou-se em mais uma opção de casa móvel de lazer. Ainda nos anos trinta, algumas experiências de ônibus adaptados a residências móveis já existiam. Com a Grande Depressão, a necessidade de as pessoas mudarem-se rapidamente para onde havia trabalho, fez a produção dos trailers tornarem-se massiva. Com a Segunda Guerra, a produção foi basicamente desviada para as zonas de conflito e defesa, ao mesmo tempo em que seu uso se popularizava em campus universitários. Mais tarde, nos anos 60 e 70 o culto à casa móvel chegaria a seu ápice, com o Movimento Hippie. Baseados nas ideias do Airstream e do Motorhome, o grupo Archigram46 desenvolveu o projeto do Free-Time Node, que se resumia em uma estrutura que poderia acoplar vários trailers, utilizando o conceito de cápsulas, onde as redes de água e eletricidade são acessadas através da estrutura central e infláveis pneumáticos auxiliariam a aumentar o espaço periférico, se necessários. Como já foi dito, a arquitetura móvel é muito mais do que uma solução efêmera para problemas temporários. A arquitetura móvel esteve sempre presente na história do homem, ela está ligada ao instinto do nômade que existe em todo o ser humano, pro-

31

vendo o desejo de estabilidade de um lugar para ficar nem que ele seja temporário e longe de casa. Apesar das críticas de que muitas vezes a arquitetura móvel não propicia uma solução economicamente viável e acessível a todos, com os recentes avanços da tecnologia da comunicação e os novos materiais e técnicas construtivas, a arquitetura móvel faz surgir novas possibilidades espaciais que suprem as mais diferentes necessidades. Rolando, inflando, expandindo, multiplicando e circulando, a arquitetura móvel hoje se torna cada vez mais livre e flexível. Siegal47, arquiteta americana que dedica seu trabalho ao desenvolvimento de projetos de trailers e outros espaços móveis, afirma que nem toda a arquitetura móvel é necessariamente projetada para a sobrevivência; quando uma sociedade amadurece cultural e ideologicamente, a arquitetura móvel passa a surgir em performances públicas, servindo à arte, à história e ao espetáculo. Quando Guy Debord escreveu, em a Sociedade do Espetáculo, que a cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade espetacular48, ele certamente estava antecipando o surgimento dos espetaculares circos do rock de hoje, como os projetados pelo arquiteto britânico Mark Fischer em seu Stufhis Studio, para grupos como o U2, Pink Floyd e os Rolling Stones.49 Modelo de arquitetura móvel espetacular, os circos de rock itinerantes de hoje certamente tiveram como ancestral direto os antigos teatros desmontáveis italianos, chamados mansiones, que andavam itinerantes se apresentando nas piazzas das cidades italianas, durante o Renascimento. O Teatro Del Mondo, (figura 9) de Aldo Rossi, produzido para navegar pelos canais durante a Bienal de Veneza de 1979, pode ser considerado uma arquitetura móvel elevada ao status de manifestação artís-

32

Celma Paese

tica. Considerada por Montaner50 a obra mais poética de Aldo Rossi, ela é também a mais próxima do mundo da analogia. Erguido sobre uma barcaça de aço e estruturado com o mesmo material e todo fechado e coberto em madeira compensada e pintada, teve seu design inspirado nos antigos pavilhões flutuantes que navegavam atados entre si pelos canais de Veneza do séc. XVI, durante as festas barrocas. Obra que tem a intenção de referendar os monumentos que definem a memória de Veneza, o Teatro tem a feliz possibilidade de se deslocar e se situar, temporariamente, ao lado dos monumentos que recria.

A arquitetura móvel, como veículo facilitador de experiências e atividades na área social, não limita suas possibilidades ao terreno da arte e muito menos da habitação. O Office of Mobile Design (OMD), da americana Jennifer Siegal, desde 1998 trabalha utilizando o recurso do trailer como meio de integração, educação e conscientização de comunidades e indivíduos. O OMD, apesar de ser uma empresa que se desenvolve dentro de uma sociedade onde o espetáculo é a base, prova que quanto mais uma sociedade busca a estabilidade, mais ela se torna móvel a fim de possibilitar o intercâmbio de experiências.

Figura 9- Croquís do Teatro Del Mondo de Aldo Rossi

FONTE: https://s3.amazonaws.com/qconassets-production/images/provas/920/Imagem%20010.jpg

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

O OMD criou o projeto da Portable House51 com o objetivo de atender as necessidades de pessoas de baixa renda que necessitem mudar-se rapidamente de um lugar ao outro. Lembrando o conceito dos abrigos e habitações nômades tradicionais, a Portable House (figura 10) adapta-se a qualquer entorno, mudando a sua orientação, dimensão e posição, a fim de se acomodar às necessidades de seus habitantes. É uma alternativa econômica e ecologicamente correta, pois busca atender necessidades de moradia de pessoas que não têm renda o suficiente para uma habitação convencional. Um módulo de serviço no centro da planta – que contém o banheiro e a cozinha – separa a área de dormir da área de estar. Quando o aumento de espaço é necessário, ele ocorre a partir da estrutura da sala, que pode ser expandida retirando uma parede cega e acoplando a outro módulo. Quando agrupados, os módulos podem criar espaços externos comuns de convivência, sendo as possibilidades de multiplicação espacial, a partir dos módulos, infinitas.

33

O Mobile Eco Lab52 é um projeto institucional concebido em conjunto com o Hollywood Beautification Team, grupo de cidadãos que tem como objetivo restaurar a integridade do bairro de Hollywood, em Los Angeles. Focado na ecologia, o Mobile Eco Lab (figura 11), é um espaço utilizado para conscientizar o público infantil da importância de proteger e salvar o Planeta. O espaço é um módulo semelhante ao da Portable House, com engrenagem de trailer, que pode ser acoplado a um carro ou caminhão. Ele é todo construído com madeira de reflorestamento, vidro e metal reciclados. Como uma tenda de circo, o Mobile Eco Lab anda pelas escolas da região, com o objetivo de ser um lugar de integração, de diversão e de descoberta.

Figura11 - Mobile Eco Lab Figura 10 - The Portable House

Fonte: SIEGAL, Jennifer (Ed.). Mobile: the art of portable architecture. New York: Princeton Architectural press, 2002, p. 109, 112 e 121.

Fonte: SIEGAL, Jennifer (Ed.). Mobile: the art of portable architecture. New York: Princeton Architectural press, 2002, p. 109, 112 e 121.

34

Celma Paese

É uma sala de aula móvel, focada na ecologia. Quando o trailer chega no pátio da escola, uma das crianças puxa uma escada acoplada na carroceria. Servindo como alavanca, ao alcançar o chão, ela abre uma porta que dá acesso ao interior, onde elas podem desfrutar de um laboratório de informática, vídeos descrevendo o ciclo de crescimento das plantas e árvores e workshops educativos de como cuidar das plantas. Outro trabalho, visando a comunidade, é o Portable Construction Training Center.53 Ele foi desenhado pelo OMD em conjunto com o escritório Pugh+Scarpa e o Woodbury University Design/ Build Students. Esse centro de treinamento localizado em um trailer tem a missão de ajudar as comunidades carentes da região de Venice, L.A., a construir suas próprias moradias com uma tecnologia barata e ao seu alcance. O objetivo é treinar as pessoas das comunidades, juntamente com os estudantes, a desenvolver projetos de habitação e construí-los.

A estrutura é formada por trailers e carrocerias de caminhão, que estacionam ao redor da praça central da cidade, formando um conjunto que convida os habitantes à integração com o evento. Hoje são cada vez mais comuns as casas e os espaços públicos tornarem-se elementos arquitetônicos deslocáveis e de localização impermanente. Imigrantes que movem suas vidas a países desconhecidos em busca de estabilidade, culturas nômades milenares, automóveis que levam vidas e recursos a lugares longínquos, cidades que se movem em direção ao campo a fim de expandir-se. Esses fatos fazem o espírito nômade ser a essência da fome de mudança, inerente ao ser humano.

Figura 10 - Mobile Event City architecture

O espaço se resume a um grande salão móvel, com divisórias flexíveis e uma grande varanda externa. Os materiais e ferramentas necessárias são postas ao alcance dos alunos e membros da comunidade onde o trailer está no momento, para desenvolverem os projetos propostos. Autônomo, flexível e perfeitamente operável, o PCTC é uma alternativa para o aprendizado de técnicas construtivas. Provavelmente inspirada no Living City do Grupo Archigram, a Mobile Event City Architecture54 (figura 12) é um projeto do OMD que tem como objetivo levar a diferentes comunidades materiais e recursos de conscientização sobre doenças como a AIDS, câncer de mama e difusão de causas como a fome no mundo.

Fonte: SIEGAL, Jennifer (Ed.). Mobile: the art of portable architecture. New York: Princeton Architectural press, 2002, p. 109, 112 e 121.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

3 A CIDADE 3.1 Permeabilidades [...] a pior de todas as políticas é sitiar cidades muradas, porque a preparação de couraças, abrigos móveis e vários implementos de guerra tomará três meses inteiros; e a construção de acessos diante das muralhas levará mais três. O general, incapaz de conter sua irritação, quererá atirar seus homens ao assalto como formigas, tendo como resultado o assassinato de um terço de seus soldados, com o agravante de que a cidade continuará incólume. São esses os efeitos desastrosos do cerco.[...] Sun Tzu – A arte da guerra

C

omo já foi visto, os espaços nômades e sedentários possuem naturezas opostas e, apesar das permeabilidades que ocorrem, suas funções e necessidades permanecem diferentes. A zona neutral de conexão entre eles pode ser considerada uma zona de passagem, que Careri55 ilustra utilizando o exemplo do Shael.

Na região do Sahara, os pastores nômades e os agricultores sedentários necessitam negociar uns com os outros e, para isso, ambos os grupos se encontram no Sahel. Termo de origem árabe que pode significar costa ou fronteira, o Sahel é a denominação da borda meridional do Sahara, e toma forma de zona intermediária quando o mercado, onde acontece o intercâmbio entre os pastores nômades e os

35

agricultores sedentários ali acontece. O Sahel, além de território de passagem entre o deserto e a floresta funciona como espaço de equilíbrio entre ambas as civilizações. Esses espaços de passagem não são exclusividade dessa região do Mundo Árabe. Se considerarmos que as cidades de hoje surgiram a partir do fomento do comércio, estas zonas intermediárias podem ser consideradas como embrião de expansão das mesmas. Conte56, em seu estudo sobre a crise do feudalismo e o surgimento do capitalismo moderno, comentou as ideias do também historiador Pirenne, sobre a formação das cidades. Na Idade Média, a cidade formou-se a partir desses espaços intermediários, onde as caravanas de mercadores itinerantes se reuniam a fim de levar mercadorias de uma corte para outra. Esses mercadores desenvolveram a função de elo entre as economias. Eles foram estabelecendo-se aos poucos nesses pontos por motivos de ordem geográfica ou de defesa, criando seus mercados fixos. Esses comércios estabeleceram-se sobre as ruínas de velhas cidades romanas, onde as muralhas foram reconstruídas; em torno de mosteiros, onde usufruíam o privilégio de imunidade, ou ainda nas terras de uns senhores feudais, que concediam aos comerciantes imunidades, privilégios políticos e proteção das muralhas, em troca de facilidade de crédito e pagamento de dízimos. Aos poucos essas estruturas foram crescendo de importância, devido ao volume de tráfico. Porém, as muralhas nem sempre significaram segurança. Elas não impediram que os gregos fossem atrás de Helena, quando esta fugiu com Páris, príncipe de Troia. A Guerra de Troia, que durou dez anos, foi retratada por Homero em seu poema a Ilíada, uma das maiores obras poéticas clássicas da humanidade juntamente com a Odisseia, que retratou em poema a saga da volta para casa de Ulisses, depois de vencer vários perigos no caminho. Ulisses, depois de con-

36

Celma Paese

seguir com sua astúcia que os gregos transpusessem as muralhas de Troia, em sua volta para casa, perdeu todos os companheiros e sobreviveu graças à sua sagacidade. Ulisses representa o arquétipo do homem que deve adaptar-se às situações adversas e inesperadas de um mundo em constante mutação. Ele tinha o compromisso de aprender a lidar com o inesperado. Representava o modelo de marujo e comerciante do século VII a.C., ao mesmo tempo em que também encarnava o primeiro homem do estado moderno. Ambos deviam saber adaptar-se por inteiro, usando a astúcia e o bom senso, a um mundo cada vez mais complexo. A adaptabilidade e a vitória de Ulisses às adversidades não foi tão gloriosa quanto parece: no famoso episódio das sereias, Ulisses ordenou a seus homens que, ao aproximarem-se da ilha onde elas habitavam, o amarrassem fortemente ao mastro do navio sem tapar os ouvidos, a fim de poder escutar o canto famoso e tentador. Para garantir que seus homens não sucumbissem à tentação, tapou os ouvidos de seus homens com cera de abelha, para vedá-los. Em a Filosofia cinza, Tiburi57 analisa a resistência à sedução, ao desejo e à transgressão que é representada pela resistência de Ulisses ao canto das sereias. A atitude descrita acima questiona até que ponto nosso herói sabia lidar com o imprevisível. Ele saiu derrotado de sua vitória, quando usou o silêncio dos marujos e aprisionou ao mastro o corpo aflito em ser devorado. Prendendo seu corpo, o herói negou sua natureza, preferindo a proteção dos grilhões do silêncio. Fez o jogo das aparências, fingindo que não há corpo e desejo. Analisado por esse viés, talvez o arquétipo de Ulisses possa ser comparado ao do Homo Faber de hoje, que faz o jogo de aparências que lhe convém, a fim de justificar suas escolhas, que muitas vezes negam sua natureza primordial de ser que nasceu livre

sobre a terra. A atitude em relação a seu corpo demonstrou essa decisão: mesmo sem ter essa consciência, o Homo Faber prende seu corpo ao mastro do navio de sua vida. Suas atitudes o mantêm preso a um estilo de vida que o obriga a buscar diariamente uma falsa satisfação pessoal no círculo vicioso do trabalho e consumo, base de sustentação de nossa sociedade do espetáculo. Ainda citando Tiburi58, o silêncio tem, para nosso prisioneiro, o papel de grilhões, do que está ausente, do que não pode ser dito, que deve ser negado. É a linguagem do não dito. O silêncio, aqui, é a figura ambígua que esconde e mostra, une os mundos do linguístico com o não linguístico, o das letras com o do espírito e do verbo com o da carne. Foucault59 afirmou que as relações sociais que as muralhas ajudavam a sociedade a estabelecer no mundo clássico eram de segregação explícita. Elas podiam ser comparadas aos grilhões de Ulisses. As cidades escorraçavam para fora das muralhas o que as incomodava: a guerra, a fome, a peste e o que consideravam ser a loucura... Expulsando os loucos para fora dos muros, deixavam que esses corressem pelos campos distantes, quando não os confiavam a mercadores peregrinos. Os loucos eram considerados como perdidos e, quando expulsos, purificavam de suas presenças as cidades de origem. Nuremberg, na Alemanha, registrou um grande número de loucos, dos quais mais da metade foram escorraçados. Outra maneira de lidar com eles era encarcerá-los e colocá-los em antigos hospitais para leprosos. O costume de segregar a loucura, cultivado em todo o ocidente, encontrou na Alemanha a mais curiosa dessas técnicas: a Narrenschiff (figura12) ou a Nau dos Loucos.60 Foucault a descreveu como um estranho barco que deslizava ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos. Supostamente

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

Figura 12 - Hieronimus Bosch, Narrenschiff (1500)

37

naus de peregrinação, essas embarcações que assombraram a imaginação popular na primeira parte da Renascença, eram navios altamente simbólicos: representavam os insanos buscando o resgate da razão. Durante os séculos XIV e XV, o recurso da Narrenschiff foi largamente utilizado e, frequentemente, as cidades europeias viam essas naus dos loucos atracarem em seus portos. Confiar o louco aos marinheiros era a maneira mais segura de ter certeza de que eles não ficariam vagando indefinidamente entre os muros da cidade, uma fortaleza visível da ordem e segregação, símbolo que tomou a forma do castelo de nossa consciência. Para Foucault61, os loucos seriam dessa maneira, entregues ao mundo, onde ficariam à deriva, vagando em um mar de mil braços, entre terras que não lhe podem pertencer. Como no início da história do homem, a nave, juntamente com seus passageiros insanos, poderia ser vista como apenas mais alguns caminhantes consumando seu ritual de passagem em rotas até então inexploradas, definindo novas cartografias. Essas cartografias da deriva mental talvez possam ser consideradas como o reflexo no inconsciente coletivo das cartografias que estavam a se concretizar com os navios que viajavam à deriva nos oceanos durante as Grandes Navegações. Careri62, ao definir o termo “deriva”, no sentido de “vagar sem direção e ao sabor das águas, nos lembra de que ele também tem o significado náutico que remete ao elemento construtivo das embarcações, a parte engrossada e alargada da quilha que torna possível seguir as correntes, a fim de aproveitar a energia das mesmas e fixar uma direção”. O racional e o irracional, o consciente e o inconsciente se encontram no termo deriva.

Fonte: JANSON, H. W. História de la pintura. Madrid: Editorial Labor, 1964, p. 87.

Na verdade, a passagem que aconteceu a partir da figura da loucura medieval, definiu uma divisão clara e fatal. Foucault63 constata que, até então, quan-

38

Celma Paese

do se falava em loucura, a tragédia e a crítica andavam de mãos dadas. Com o tempo, essa divisão passa a ser cada vez maior, criando um vazio intermediário que nunca mais seria preenchido. As figuras da visão cósmica (o trágico) e da moral (a crítica) iriam separar-se cada vez mais, abrindo uma fissura que jamais voltaria a ser preenchida. De um lado, haverá uma Nau dos Loucos cheia de rostos furiosos que aos poucos mergulha na noite do mundo, entre paisagens que falam da estranha alquimia dos saberes, das surdas ameaças da bestialidade e do fim dos tempos. Do outro lado, haverá uma Nau dos Loucos que constitui, para os prudentes, a Odisseia exemplar e didática dos defeitos humanos. [...] De um lado Bosch, Bruegel [...] e todo o silêncio das imagens. É no espaço da pura visão que a loucura desenvolve seus poderes.64

E qual o destino daqueles que continuavam vagando, em busca talvez de si mesmo, ou de alternativas para manter a liberdade da razão, buscando essa unidade perdida? Talvez alguns deles possam ser encontrados na figura do andarilho, aquele que Nietzsche65 definiu bem mais tarde, já no Séc. XIX como o que busca a liberdade da razão. Cabe aqui citá-lo, como exemplo daqueles que estavam fora dos muros, vivendo sua tragédia pessoal e solitária. Apesar de não ser viajante por natureza, ele procura preservar sua liberdade da razão a fim de manter os olhos abertos para tudo que se passa no mundo. Por esse motivo, não prende seu coração em nada singular e encontra suas alegrias nas mudanças da transitoriedade. Em algumas noites, a fim de descansar de suas andanças, talvez ele

não encontrasse pouso na cidade que supostamente o abrigaria, pois suas portas estariam fechadas. Estas portas só se abririam pela manhã quando, abaixo de sol incandescente, entraria na cidade e se depararia com muito mais equívocos, sujeiras, enganos e inseguranças do que fora das portas o reino da crítica. Buscando outras regiões e dias, vislumbraria na nova paisagem de névoa matutina, musas dançando que o inspirariam a continuar seu solitário caminho. Mais tarde, na sua tranquilidade d’alma, passeando pelos bosques, encontraria por entre as folhagens coisas boas e claras, presentes dos espíritos da floresta que, como ele, ás vezes gaiatos ou meditativos, são andarilhos e filósofos.66 Já no século XX Bey67 referendou o Andarilho de Nietzche como aquele que talvez fosse o precursor da Deriva Situacionista. Bey também nos lembrou que a autossuperação fez parte da essência nietzscheniana. No andar do andarilho, os mapas de peregrinação e os lugares sagrados eram substituídos por lugares que marcaram pelas experiências e aventuras vividas. Experiência semelhante viveu Thoureau, escritor e filósofo americano que desenvolveu e definiu a ideia de Desobediência Civil, que tanto influenciou Ghandi. O andarilho e filósofo Henry David Thoureau (1817-1862), que buscava a liberdade que o contato com a natureza poderia oferecer, também é um precursor de experiências e pensamentos que dariam frutos bem mais tarde: Thoureau seria um dos grandes inspiradores do Movimento Hippie. Desejo dizer uma palavra em nome da natureza, em nome da liberdade absoluta, em nome da amplidão, que contrastam com a liberdade e a cultura das cidades — no sentido de considerar o homem como um

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

habitante da natureza, ou parte e parcela dela, e não como um elemento da sociedade. Desejo fazer uma exposição vasta e, se puder, a farei enfática, pois existem muitíssimos campeões da civilização: Não só o ministro e as congregações das escolas mas todos vós a tomareis em consideração. 68

Com palavras e atos, Thoureau nos mostrou um total comprometimento com a prática do caminhar e com a natureza. Marcus69 afirmou que Thoureau nos chamou a todos para um contato cada vez mais profundo com a natureza, colocando o caminhante em um tipo de limite, quando o intima para uma ética no caminhar e, consequentemente para uma ética na busca e uso do conhecimento adquirido com o progresso. Através da entrega de todo o seu ser penetrou profundamente naquele universo selvagem que tanto o fascinava. Thoureau considerava o caminhar um ato político. Para isso, ao caminhar, encarnava o Andarilho Errante, aquele que procurava resgatar os valores honrados dos Cavaleiros Andantes de outrora. Ele considerava o Andarilho como um indivíduo que se assumia como uma espécie de quarto estado, além da Igreja, País e Povo e assim propunha uma autonomia de pensamento longe do senso comum. As mentes que até hoje se abrigam no senso comum da crítica não teriam coragem de ser tomadas por esse espírito do andarilho. Cervantes mostrou em Don Quixote, através de uma narrativa trágica e jocosa das andanças de seu personagem, esse clássico confronto entre a tragédia e a crítica. Para Dom Quixote, a aventura o motivava a viver, assim como para Brancaleone70, personagem da película de Monicelli, que ambientou na Baixa Idade

39

Média, em plena crise do feudalismo, caracterizada pela trilogia guerra, peste, fome; uma aventura que focalizou a decadência das relações sociais no mundo feudal, a ascensão do poder da Igreja Católica, o cisma do Oriente e a presença dos Sarracenos na Europa. Nessa época, entre o século XI e XIII, as Cruzadas representaram mais um golpe para o feudalismo, pois seu objetivo de conquistar Jerusalém e reunificar a Igreja não foi alcançado. Para Deleuze e Guattari71, a história das Cruzadas está atravessada por uma espantosa série de variações e direções e, o propósito de alcançar os lugares santos muitas vezes parece mais um pretexto. Ao mesmo tempo, seria um equívoco julgar que os cruzados foram movidos apenas pela cobiça e fatores econômicos. Essa dualidade é justamente o que dá origem à variabilidade de direções quebradas, cambiantes desse movimento onde a religião tomou o papel de uma máquina de guerra que induziu à liberação de uma formidável carga de nomadismo na qual o migrante e o nômade se deslocaram e se confundiram com o sedentário. A pulsão migratória que se originou do movimento humano iniciado nas cruzadas continuou no processo da expansão ultramarina das Grandes Navegações. Nesses movimentos, fundamentou-se o modo de ser conjunto da maioria das culturas e sociedades europeias em algum momento de suas existências, quando não passou a caracterizar a sua essência. Assim aconteceu com Portugal. Segundo Mafessolli72, Luiz de Camões cantava em Os Lusíadas a importância do mundo vasto e da função dinâmica da exploração para seu povo. Voltado geograficamente para o oceano, o povo português foi sempre atraído pelo longínquo. Seu grande império de outrora testemunhou esse espírito aventureiro. A palavra saudade, que até hoje expressa uma nostalgia

40

Celma Paese

simultânea de um país aventuroso e de um futuro que achará sua plena expressão na concretização das potencialidades legadas por um tal passado, talvez tenha sua origem nesse amor pelo que está longe. 3.2 Mudanças Tem havido muito poucas concepções espaciais ao longo de toda a evolução humana. Cada uma delas abrangeu extensos períodos de tempo. Contudo, dentro de cada uma dessas épocas, muitas variações e transições se realizaram, pois as relações com o espaço encontram-se sempre em estado de suspensão e as transições fluem e refluem entre si. S. Gideon

Com as mudanças econômicas impostas pelas cruzadas, o declínio do feudalismo e as grandes navegações, o mundo assistiu a uma expansão sem precedentes. O processo da queda das muralhas73 foi mais uma das consequências da ascensão da nova sociedade humanista. O caminhante passou a investigar a cidade que, sem limites determinados passou a crescer vertiginosamente. A concepção espacial de uma época é o registro psíquico daquela sociedade. Giedion74 afirma que houve muito poucas concepções espaciais ao longo de toda a evolução humana. Cada uma delas abrangeu extensos períodos de tempo. Contudo, dentro de cada uma dessas épocas, o homem satisfez suas necessidades imperiosas dando uma expressão gráfica à sua posição perante o seu espaço. Em outras palavras, a legibilidade do espaço sempre significou poder sobre o espaço.

Propiciar transparência e uma leitura fácil do espaço urbano foi uma das maiores batalhas do Estado Moderno. O que interessava ao Estado era obter um controle regulador sobre as comunidades. Afinal, não podiam mais deter o crescimento com muros. As medidas antropomórficas e a estrutura circular, como da maioria das cidades muradas, interessavam quando serviam de escudo às comunidades contra a curiosidade e intenções hostis de intrusos e, acima de tudo, contra as imposições de inimigos mais fortes do que elas. Agora que eles não mais existiam, esse tipo de espaço não ajudava no controle. É importante lembrar que, nos estados pré-modernos, a cobrança de impostos era muito pouco diferente do roubo e pilhagem e o recrutamento dos soldados semelhante à captura de escravos. Baumam75, em seu estudo sobre o processo da globalização, afirmou que o surgimento da tridimensionalidade na representação espacial no Séc. XV foi um passo decisivo no longo caminho para a concepção moderna de espaço. A invenção da perspectiva por Brunelleschi e Alberti definiu essa visão de espaço como uma verdade absoluta. Até então, o olho do observador era o ponto de partida e o único ponto de referência para a localização de objetos no espaço. O que mudou com a perspectiva é que o olho do observador tornou-se um “olho humano enquanto tal”, portanto impessoal. Tafuri76 considera o momento histórico da revolução da representação promovida pelos humanistas toscanos no Século XV como a própria revolução da arte moderna. Quando Brunelischi institucionalizou um código linguístico e um sistema simbólico baseado no confronto supra-histórico com o que ele chama de grande exemplo da Antiguidade, e Alberti, não conformado com o historicismo mítico, passou a explorar racionalmente a estrutura daquele código

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

de representação em seus valores sintáticos e emblemáticos, esboça-se a primeira tentativa de atualização dos valores históricos como tradução de um termo mítico para o tempo presente da história moderna, traduzindo significados arcaicos para mensagens revolucionárias e de palavras antigas para ações civis. A invenção da perspectiva, além de um resgate dos valores da Antiguidade Clássica, reconheceu a relatividade subjetiva dos mapas de até então, ao mesmo tempo em que neutralizou o impacto dessa relatividade. Qualquer observador, colocado naquela posição, passou a ver as relações espaciais entre os objetos exatamente da mesma forma. Assim, ficou fácil saber em qual ponto o espaço seria mais legível, fato que significava ver além da vista comum. Os caóticos mapas pré-modernos foram substituídos por cartografias mais práticas e legíveis, codificadas para serem lidas por todos e, ao mesmo tempo, hierarquizou os espaços. Os objetos arquitetônicos passaram a intervir nas estruturas simbólicas das cidades medievais que, até então, eram baseadas em um conjunto de formas, que podem ser chamadas de uma narração contínua. A autossuficiência simbólica e construtiva dos mesmos irradiava a vontade de renovar a ordem vigente. Porém, é preciso lembrar que o objetivo maior e velado dos poderes de Estado ao apoiarem essa revolução na representação espacial, foi de obter controle sobre seus territórios. Em relação às cidades não foi diferente. O novo urbanismo propunha cidades fáceis de serem controladas e, para isso, utilizou a perspectiva em larga escala. Pesavento77 afirma que a nova concepção de cidade aberta traduziu o processo de transformação capitalista do mundo junto com a renovação cultural do Iluminismo, sempre apoiada no movimento e na diversidade. Junto com a emergência da cidade aberta, como prática e conceito, também surgiram duas

41

visões contraditórias: por um lado a Cidade como espaço de fomento das artes e ciências, encontro e realização da vida civilizada. Por outro lado, a cidade maldita, a Babilônia moderna onde todos os vícios e ameaças à saúde e à moral convivem entre si. A abertura das muralhas transformou as cidades em espaços públicos onde todos os cidadãos, teoricamente, passam a ter livre acesso e trânsito. A cidade não era mais aquele espaço fechado que acolhia e protegia os “escolhidos” dentro dos muros, mas sim daqueles que conseguiam chegar e mapear seu território, da maneira que fosse mais conveniente para si. Era possível visitá-las, passar por elas, morar ou deixá-las, a qualquer hora, dia e noite. As transformações sociais aconteceram rapidamente. A produção literária imediatamente refletiu essa nova realidade, em obras como Les nuits de Paris, de Rétif de la Bretonne e nos textos de Sébastien Mercier em Le Tableau de Paris. Ambos retrataram a Paris daqueles tempos. Na obra de Mercier está retratada a Paris diurna, enquanto a noturna é encontrada em Rétif.78 Ambos os autores inauguraram uma nova maneira de representar a cidade na literatura: escreveram sobre a cultura popular e deram ênfase ao cotidiano ao descrever os movimentos constantes, descontínuos e desordenados da grande cidade embrionária e seus labirintos mutantes, acabando por eliminar todo e qualquer vestígio aparente da ordem feudal restante. Rétif, que se intitulava o “espectador noturno”, prenunciou o flâneur, que nasceu oficialmente com Baudelaire, graças a Haussmann, e atravessaria o séc. XX. Seus encontros refletiram um universo simbólico, mas principalmente, o moralismo em relação àquele universo cosmopolita, que Bretonne

42

Celma Paese

comparou a um monstro que engolia o velho, através da constante renovação, inaugurando o culto ao efêmero. O universo surrealista também foi antecipado em Rétif quando, através dos personagens, manifestou a sede por descobrir o novo universo que se desdobrava à sua frente em um mergulho profundo na cidade que dormia, a fim de desvendar seus segredos.79 Personagens como o violador de sepulturas, os primeiros trapeiros, descoladores de cartazes e o trouveur, que se assemelhava ao chiffoneur quando agregava valor aos objetos encontrados, como também fariam mais tarde os surrealistas. Pesavento80 descreve o trouver como uma figura curiosa, que se antecipava à guarda municipal e recolhia os objetos perdidos em lugares públicos, guardando-os para si. Sua sobrevivência era garantida quando, ao ler a sessão de achados e perdidos do jornal, encontrava os donos dos objetos e os devolvia, em troca de recompensas. Portanto, como os surrealistas, o olho do trouver ia além das aparências do objeto em si. A leitura da Cidade cresceu e desenvolveu-se junto com ela. Certamente as grandes mudanças urbanas promovidas por Haussmann no Séc. XIX, com o apoio do então Imperador Napoleão III incentivaram as caminhadas urbanas, que recém-começavam. Pesavento81 afirma que um dos principais motivos que levaram Haussmann a promover tais mudanças foi o saneamento da cidade. No Séc. XVIII, Paris era uma cidade com passagens estreitas e labirínticas, forçando a proximidade de tudo e todos que por ali circulavam. Os transeuntes, que se encontrassem, só conseguiam passar abraçados em algumas ruas mais estreitas e o ar não circulava dentro das típicas casas de quatro andares. Além disso, o lixo se aglomerava pelas ruas, tornando a cidade fétida e putrefata. Esta proximidade forçada fazia as pessoas clamarem por

mudanças urgentes. Assim como os contrastes sociais e ideias, o ar e as pessoas deviam circular livremente. Haussmann tornou a cidade habitável: abriu os boulevards, a fim de tornar o espaço legível e organizado, passando a garantir o controle do crescimento urbano que concretizou em sua administração. Portanto, como já foi colocado anteriormente, pode-se supor que, no início, o planejamento urbano tinha a intenção explícita de substituir as muralhas. Nesse caso, o objetivo jamais seria alcançado com tais mudanças. Benjamin82 descreveu em “Haussmann ou as barricadas” as intenções do Artista Demolidor em tornar Paris uma cidade legível e segura em caso de guerra civil; com essa intenção ele executou duas alterações urbanas: alargou as avenidas para impedir que barricadas fossem erguidas e providenciou que os traçados das novas avenidas estabelecessem um caminho mais curto entre os quartéis e os bairros operários. É sabido que as barricadas ressurgiram logo em seguida, com o movimento da Comuna de Paris, mais fortes e seguras do que nunca. Mais tarde, na Segunda Guerra Mundial e em 1968, elas seriam erguidas exatamente nos mesmos pontos dos Boulevards. Perante tais fatos, cabe lembrar que, para o povo, o ideal de Haussmann, além de progresso, também significava liberdade. Segundo Bauman83, os sonhos de um espaço urbano perfeitamente transparente também foram uma rica fonte de inspiração e coragem para os líderes políticos da Revolução Francesa. Para os seus teóricos, a revolução era, antes e acima de tudo, uma audaciosa, decidida e competente empresa de arquitetura e construção, pronta a concretizar, nos terrenos destinados a cidades perfeitas, os projetos nascidos nas noites insones sobre essas pranchetas utopistas. Bauman84 citou Bronislaw Baczko, como um dos principais apoiadores dessas ideias. Backzko dissecou magistralmente suas ideias utópicas de uma estrutura social mais justa, que seria

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

conquistada através de um espaço urbano perfeitamente legível em sua análise sobre o projeto da Cidade chamada Liberdade, publicado no 12 de Floreal do ano V da Revolução Francesa pelo geômetra e topógrafo F. L. Aubry, que tinha o propósito de ser o esboço da futura capital da França revolucionária. No início, Haussmann tornou Paris uma cidade estranha aos próprios parisienses. Desapropriou e demoliu bairros inteiros. Conseguiu empurrar os pobres para a periferia, quando os aluguéis começaram a aumentar vertiginosamente. Assim, o saneamento da Grande Cidade começou excluindo as minorias. Passear pela cidade se tornaria uma constante também entre as camadas mais sofisticadas da população. Surgia a figura do flâneur, que Pesavento85 define como o amante da Paris animizada: ele consegue percorrê-la, observando os mínimos detalhes sem perder a visão de conjunto. Na primeira metade do século XIX, mais precisamente a partir dos anos 40, quando Paris86 e Londres já eram consideradas grandes metrópoles e garantiam um certo anonimato a seus habitantes, era moda classificar os diferentes tipos físicos relacionando-os com a função social do indivíduo. As physiologies passaram, com o tempo, a ser o estudo das características externas que se correlacionam às internas, desvendando os caminhos que nos levam à raiz e à essência das coisas e pessoas. O flâneur explorou e consagrou essa prática, já ensaiada por Réstif. Todos observavam os tipos que desfilavam pelas ruas das grandes cidades, a fim de exercitar seus talentos investigatórios. Os folhetins, singelos cadernos de bolso que eram consumidos em larga escala, foram gêneros literários muito populares na época. Neles, os escritores enumeravam as diferentes physiologies87, formando uma espécie de almanaque que

43

mais parecia uma lista de mercado. Na verdade, essa prática não se diferenciava do mapeamento dos espaços a fim exercer poder sobre eles. Dos elegantes do foye da ópera aos trapeiros, ninguém escapava. Em 1841 haviam sido listadas 76 fisiologias. Depois de listar os tipos que circulavam pelas ruas, as fisiologias passaram a dedicar-se à cidade em vários horários e situações. Segundo Pesavento88, o espaço urbano de Paris daquela época era qualificado segundo o perfil de determinados tipos sociais: as ruas podiam ser belas ou feias, honestas e criminosas e também podiam ser reconhecidas pelas profissões que lá se estabeleciam. Essas designações mostravam uma Cidade decadente e outra aristocrática ao mesmo tempo em que mostravam certa assimetria social na ocupação do espaço. O flâneur transitava livremente em ambos os territórios. A fim de legitimar sua vagabundagem, tomou para si o papel de detetive. Tentando justificar seu papel social, ele observava e explorava tudo o que acontecia e surgia, nos caminhos que cruzavam as grandes cidades. Ele utilizava as referências dos folhetins sobre as physiologies como pretexto para exercer sua botânica no asfalto, onde observava a tudo e a todos e buscava rastros dos seus moradores nos sinais que deixavam no caminho. Histórias de detetives, como O Homem na Multidão de Poe, que Baudelaire traduziu para o francês e que inaugurou o gênero literário das histórias de detetives, não tinham como puro objetivo uma narrativa policial: nas palavras de Benjamin89, elas também introduziram a narrativa científica, a cosmogonia e a exposição de fenômenos patológicos. O Homem da Multidão mostrou essa curiosidade que as physiologies despertavam90 na época e o

44

Celma Paese

surgimento oficial da flânerie na literatura. O autor propôs uma construção lógica de texto ao mesmo tempo em que retratou o flâneur em toda sua essência. O flâneur era para Poe alguém que não se sentia seguro em sua própria sociedade. Por isso ele procurava a multidão e a utilizava como esconderijo e entregava-se ao véu de fantasmagorias da cidade, como um jogador que transformava o tempo em ópio e buscava integrar-se nela através da investigação das physiologies. Em Poe, perseguido e perseguidor se confundiam no mesmo personagem – o flâneur. Ao narrar na primeira pessoa a aventura do observador que segue um velho, Poe descreveu toda a trajetória do flâneur: que começou explorando a cidade como alguém que não fazia parte dela, porém estava lá “de passagem” e exercendo sua botânica no asfalto91 – o botânico é apenas um explorador da floresta que classifica sua flora, não um ser nativo – até quando assumiu o que Benjamin92 chamou de “sua configuração final”, explorando a casa comercial – sua última grande molecagem93 – as passages, onde o flâneur finalmente “sentiu-se em casa” e assumiu a rua como lar. O Homem na Multidão já continha diversos elementos que se relacionam ao tema da passante, que mais tarde Baudelaire explorou em seu famoso poema homônimo. Nascimento94 afirmou em seu artigo sobre essa temática, que seria válido questionar se o texto de Poe não teria servido como fonte de elaboração de À une passante de Baudelaire, pois o “roteiro” do soneto é montado com os seguintes ingredientes: um homem que se encontrava numa rua movimentadíssima. “A rua ensurdecedora à minha volta urrava” (“La rue assourdissante autour de moi hurlait/”), diz o primeiro verso do poema via passar, na multidão anônima, uma majestosa mulher que

vinha sozinha, trajando luto, portanto criatura que era considerada proibida para o observador golpeado por seu olhar (ele não ousaria abordar uma desconhecida atingida pela dor da morte). Os olhares de ambos se cruzaram, entretanto nenhum dos dois ousou dirigir-se ao outro; a passante sem nome não pode, portanto, ser detida. Aquele foi o primeiro e último encontro entre ambos, que seria, em seguida, transmutado em escritura. Isso talvez faria do conto de Poe um elemento constitutivo da proto-história do mito da passante, de evidente dimensão urbana, que poderia ser relacionado a uma outra dimensão da mitologia literária de Paris: a da “fervilhante cidade” (la fourmillante cité). Certamente, foi a partir da dimensão demográfica da grande cidade que surgiu o tema “dos que estão passando”. Encruzilhada de destinos e lugar permanente de passagem, a grande cidade acrescentou uma considerável dose de perturbação à maneira de como se construíram as topologias da modernidade desde o final do século XVIII quando surgiu este tema: A passante desconhecida (que também pode ser o passante) que reteve por um ínfimo instante o olhar do poeta em meio à multidão, momento que só foi possível pela lei geral da fugacidade que governou a vida das grandes aglomerações urbanas. A figura dos passantes sempre foi um arquétipo do efêmero e, consequentemente, da morte. Afinal, na grande cidade, até hoje estamos todos sempre celebrando algum enterro. Tudo isso se relaciona, aliás, com o próprio vocábulo “passante”, formado em francês, como de resto em todas as línguas neolatinas, a partir de um verbo do qual uma das acepções possíveis é “morrer”: no caso do francês há, por exemplo, a expressão y passer, “morrer”, o verbo trépasser, “falecer”, e o substantivo trépas, “passagem, morte, falecimento” (tendo o acréscimo do prefixo latino “trans” ocultado um pouco a raiz, no caso dessas duas).

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

A cena do encontro de Poe com o velho também foi simultaneamente o primeiro e último encontro; que, assim como o do poeta com a passante, esse encontro imediatamente transmutou-se em escritura; enfim, pode-se falar de proibição – mesmo que não seja no sentido estrito em que a mesma apareceu no soneto de Baudelaire – do passante em relação ao observador, que fez questão de não se deixar ver pelo homem que ele nomeou “O Homem na Multidão”. Outra relação possível é a “rua ensurdecedora”, que aparece tanto no soneto como no conto, com toda evidência de referência à grande cidade e à fascinação do observador, que estava experimentando a sensação de ter escapado à morte, por um ser desconhecido que brota repentinamente em meio à multidão. Isso é óbvio no que diz respeito ao narrador-criador de Poe, convalescente que exibia seus elos com a morte. A passante de Baudelaire também trazia referências explícitas de sua relação à morte: ela estava toda vestida de negro (e sua dor era majestueuse, sua mão, fastueuse, palavras que rimam com tueuse, isto é, “a que mata”). O “eu”, do soneto de Baudelaire, não seria também de certa maneira o de um convalescente? Ele estava crispado como um extravagante, o que quer dizer que, de um modo ou de outro, teria sido atingido por uma espécie de loucura... ou talvez doença? Na verdade, esse “eu” lírico confessou beber nos olhos da passante o céu lívido em que brota o furacão “A doçura que fascina e o prazer que mata”95 ao mesmo tempo em que essa mulher, apesar de majestueuse, restituiu o Poeta, mesmo por um instante, à vida, como se fosse um relâmpago. Para Benjamin96, a multidão amedrontava a Poe, ao mesmo tempo em que, para Baudelarie, ela era refúgio. Já Pesavento97 considerou Baudelaire muito instintivo para se identificar com o tipo de estrutura literária que Poe propôs em sua obra; o Poeta identificava a multidão como um desafio que dá mar-

45

gem à heroicidade. Na época de Baudelaire, o flâneur já vivia a decadência e, consequentemente, uma crise de identidade: não mais pertencia à burguesia ao mesmo tempo em que ainda não havia definido qual era seu papel social. Ao buscar a multidão como asilo, mimetizou-se e entregou-se a ela prazerosamente, buscando a compensação de muitas humilhações: Multidão, solidão: termos iguais e conversíveis para o poeta diligente e fecundo. Quem não sabe povoar a sua solidão também não sabe estar só em meio a uma multidão atarefada.O passeador solitário e pensativo encontra singular embriaguez nessa comunhão universal. Aquele que desposa facilmente a multidão conhece gozos febris, de que estarão privados para sempre o egoísta [...] e o preguiçoso.98

Benjamin99 considerava que o flâneur alcançou sua relevância histórica com o surgimento das passages, que o abrigava do vento e da chuva. Um guia ilustrado de Paris em 1852 descrevia as passages como vias cobertas de vidro e revestidas de mármore onde estavam estabelecidas as mais elegantes lojas comerciais, formando um mundo em miniatura que recebia luz do alto, onde a aventura estava ao alcance das mãos, como se fosse um paraíso. Segundo Pesavento100 era nas passages que tudo acontecia: a novidade, as novas tecnologias do entretenimento. Curiosamente, todas foram concebidas a partir da ilusão de ótica, gerando fantasmagorias, fenômeno próprio a uma civilização que sabia esconder o que não era conveniente, mas também mostrava o que interessava. Além da ilusão, as facilidades da vida burguesa em uma grande cidade, como sanitários públicos, gabinetes de leitura, restaurantes,

46

Celma Paese

cafés e prostitutas, ali eram também encontradas. Nesse microcosmo, a aventura estava ao alcance da mão, os encontros aconteciam, os corpos se roçavam. Esse jogo de acontecimentos era tudo o que o flâneur buscava. Brincar por entre os labirintos de mercadorias nas casas comerciais era apenas um pretexto para estar lá. Benjamim101 afirmava que, o que ele na verdade buscava, era estar entregue à mesma ebriedade das mercadorias, buscando uma mão em cuja casa gostaria de se aninhar, antes que fosse tarde... Neste momento da história, o flâneur já vivia a decadência que Baudelaire descreveu em a Perda da auréola, na obra Pequenos poemas em prosa, onde usou a metáfora da Perda da auréola para mostrar o que aconteceu quando a aristocracia desceu de seu trono e se misturou à plebe, como o flâneur, quando se deu conta de sua decadência. Quando se entregou aos prazeres mundanos, o herói descobriu as delícias de ser um simples mortal. Aqui, mais uma vez, o flâneur escondeu-se na multidão: ele já não podia mais andar em paz pelas ruas como promeneur, pois os credores já o perseguiam e a doença já batia à porta. A rua e a multidão tornou-se para ele cada vez mais um refúgio, ao mesmo tempo aprendeu a transformar a necessidade em virtude. Assim, o bebedor de quintessências assumiu mais um papel quando se mimetizou com a bohème e assumiu o arquétipo de seus personagens. Quando foi indagado se gostaria de ter a auréola de volta, recusou-se veementemente a procurá-la, pois, daquele caminho, não haveria mais volta: Ah! Não. Estou bem assim. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me entendia. Depois, alegra-me pensar que talvez algum mau poeta encontre a auréola e com ela

imprudentemente se adorne. Fazer alguém feliz, que prazer! E sobretudo um feliz que me fará rir! Pense no X, ou no Z! Xi! Como será engraçado!102

Marx comenta que, na época de Baudelaire, a bohème incluía “toda uma massa confusa, desintegrada e flutuante.”103 Benjamin104 analisou a personalidade de Baudelaire a partir de sua relação com o inequívoco. O Poeta se dedicava à insurreição e à crítica, desde que tivesse contra quem conspirar. A sua existência era incerta, sem uma atividade fixa, com a única certeza de ser encontrado nas tabernas. Assim como o flâneur, também caberiam no conceito da bohème outros personagens, como Guy Debord: no início dos anos 50, ao invés de estar em alguma escola superior respeitável junto com a “elite”, preferia estar do outro lado da rua em algum boteco, evitado pelos estudantes de respeito, bebendo e projetando derivas com seus companheiros da Internacional Letrista. A cidade para Debord e seu grupo, era um terreno fértil para exercer o modus vivendi que se propunham: a aventura de fazer da existência uma arte. Admirável foi constatar com o tempo, a inegável influência dessas ideias no pensamento da segunda metade do Século XX. Para Baudelaire, a bohème, além de ter se tornado um meio familiar, era uma de suas fontes de inspiração, como no exemplo já citado da Perda da auréola e no seu grande poema, o Vinho dos trapeiros105, escrito nesse tipo de ambiente. Os assuntos que Baudelaire106 abordou no texto, como o imposto sobre o vinho, eram discutidos publicamente entre os frequentadores da bohème. Para Benjamin107, com este imposto o camponês provou o bouquet do governo, que fez o habitante mais humilde da cidade ser obrigado a buscar vinho barato na periferia.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

Chamado de vin de la barriére (vinho das barreiras) era exibido pelos operários, segundo o chefe de polícia, H.A. Fréger, com arrogância e altivez, simbolizando todo o seu prazer, o único que lhes era concedido. Aos trapeiros, o prazer do vinho barato era o único que lhes restava. Esta narcose lhes permitia sonhar com um futuro de vingança e dominação de seus algozes. A valorização do lixo, a partir do surgimento de novos processos industriais, fez aumentar o número dos catadores de trapo. Benjamim108 registrou que o trapeiro (chiffoneur) já garantia, naquela época, seu sustento com a reciclagem. Considerado uma figura fascinante para os primeiros pesquisadores do pauperismo urbano, esses se perguntavam até onde chegaria a miséria humana. Prenunciando o catador de hoje, o chiffoneur também ficava grisalho batalhando; e as forças de repressão em geral, já naquele tempo, não o deixavam em paz. Nascimento109 relacionou o tema dos resíduos industriais com os temas da morte e modernidade. Esses temas começaram a aparecer relacionados no Séc. XVIII, chegando ao Séc. XX, sempre com a mesma atualidade. O descolador de cartazes e o recolhedor de garrafas quebradas de Rétif encontravam-se na mesma condição social dos catadores de reciclados de hoje. O que mudou foram os tipos de resíduos e o número de pessoas que vivem do lixo; universo que conheceu uma expansão vertiginosa com a ascensão do estado burguês moderno, que hoje impressiona pela capacidade de geração de sucata. Os descartáveis urbanos, rapidamente transformados em amontoados de fragmentos, são um convite ao colecionador. O elo de ligação entre o dejeto e a errância estabeleceu-se com a consciência de que a cidade é um universo de objetos descartáveis, onde os poetas encontram alimento para sua alma e os cata-

47

dores para seus estômagos. No decorrer do século XX a pobreza e a miséria tornaram-se realidades cada vez mais presentes no cotidiano urbano. Os personagens que vagam pelas ruas das metrópoles de hoje, mapeando seu território buscando o encontro possível com formas de sustento e abrigo, são os herdeiros desses primeiros miseráveis. A figura do trapeiro em Baudelaire demonstra que a miséria nas ruas das grandes metrópoles do primeiro mundo é uma realidade que sempre existiu. Para cada uma dessas cidades, os desabrigados buscam soluções para sobreviver e se abrigar através da reciclagem das sobras de nossa cultura industrial, utilizando imaginação e criatividade. Os moradores de rua são marcados pela vulnerabilidade, sofrimento físico-psicológico e pela resistência constante à exclusão. Sua arquitetura de sobrevivência passou a formar uma cidade paralela e móvel que reflete toda a sua tenacidade e determinação de sobreviver. Segundo Loschiavo110, a experiência de mergulhar vertiginosamente nas sombras movidas pela necessidade e construir abrigos frágeis, de design espontâneo, que convivem nas ruas com a “arquitetura oficial”, fez que os desabrigados influenciassem no conceito e dinâmica das grandes cidades, dividindo sua estrutura formal e transformando espaços públicos em lares. Na maioria dos casos, a solução para essas pessoas não está no assentamento deles em casas da arquitetura dita convencional, mas sim em uma política eficiente de inclusão social, oportunizando dignificar seu papel na sociedade.

48

Celma Paese

Figura 13 - Umberto Boccioni, Força de uma rua (1911)

4 VANGUARDAS “Contra tudo o que seria de esperar, já me perguntava a mim mesmo se me não teriam apercebido, para me arrastarem no mais maravilhoso dos caminhos sem fim.” André Breton

Ainda no início do Século XX, o caminhar foi assumido pelas vanguardas como forma de ação estética. As propostas Dadaístas utilizavam o andar como forma de representação da cidade da banalidade. O mérito histórico do Dadaísmo foi ter desferido um golpe mortal nos conceitos tradicionais de cultura, o que aparece na estrutura de todos os movimentos culturais que o sucederam, suscitando o surgimento de novas expressões e conceitos de arte a partir da negação do que havia até então. Careri111 relaciona a exploração do banal pregada pelo Dada com o início da aplicação das investigações freudianas sobre o inconsciente da cidade, que seriam desenvolvidas mais tarde pelos Surrealistas e Situacionistas. Essas leituras e representações tiveram origem na cidade Futurista (figura 13), apesar do Movimento somente ter concretizado uma sofisticada representação dos novos espaços urbanos e seus eventos, sem penetrar no terreno da ação. Para eles, a exploração da cidade pelos sentidos não era considerada uma ação estética em si, mas sim inspiração para criações posteriores, e a liam como um espaço que havia perdido qualquer possibilidade de visão estática, atravessado pelos fluxos de energia

Fonte: LYNTON, Norbert. Arte Moderna. In: O mundo da arte. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Brittanica do Brasil Publicações Ltda, 1978, p. 87.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

e turbilhões de massas humanas, com automóveis a toda velocidade, com luzes e ruídos que geravam a multiplicação dos pontos de vista perspectivos e metamorfoses espaciais constantes. As ideias Surrealistas foram desenvolvidas no contexto do entreguerras na Europa. Nomes importantes do Movimento estiveram ligados diretamente ao Conflito, como Breton112, na época estudante de medicina e atendente em um hospital psiquiátrico do exército francês, onde tomou contato com as doenças e traumas psicológicos causados pela guerra. Ao mesmo tempo, Breton entrou em contato com as teorias de Freud e seus estudos sobre o subconsciente e os sonhos, o que desencadeou todo o processo do movimento Surrealista. A Primeira Guerra Mundial também foi o momento em que, pela primeira vez,

49

a humanidade tomou consciência de um conflito de tamanhas proporções através dos meios de comunicação como a imprensa e o telégrafo. No início dos anos vinte, os Dadaístas organizaram uma série de “excursões-visitas” a lugares que definiam como “banais” na cidade de Paris, quando o caminhar foi assumido pela primeira vez como uma manifestação de antiarte. Em 14 de Abril de 1921, às 15 horas, caía uma chuva fina. O grupo Dada marcou um encontro de seus membros em frente à igreja de Saint-Julien-le-Prauve (figura 14). A primeira excursão aos “lugares banais da cidade” configurou a primeira intervenção estética urbana consciente do grupo; ela foi divulgada e documentada, inclusive com fotografia pela imprensa da época. Careri113 lembra que essa intervenção foi recordada mais tarde por

Figura 14 - Excursão visita Dada à Saint-Julien-le-Pauvre

Fonte: CARERI, Francesco. Walkscapes: walking as an aesthetic practice. Barcelona: Gustavo Gili, SA, Barcelona, 2002, p. 77.

50

Celma Paese

André Breton como um fracasso generalizado: “Não bastou passar das salas de espetáculo para o ar livre para acabarem, de uma vez, as voltas do Dada sobre si mesmo”. Apesar dessas palavras, essa “Primeira Excursão”, mais tarde, foi considerada pela história como a mais importante operação Dada porque esse primeiro readymade urbano foi a transição entre a representação do movimento, típico do Futurismo, e a construção de uma ação estética; além de essa visita ter sido o ato de abertura da Grande Saison Dada, uma saison de atos públicos que tinha como objetivo dar uma nova energia ao grupo que passava por um período de brigas e discordâncias internas, ela foi o primeiro passo para várias excursões, deambulações e derivas que atravessaram o Século XX. Depois dessa primeira excursão, os outros passeios jamais se concretizaram: nas palavras de Careri114, apesar dos Dadaístas terem considerado os espaços seguintes inúteis, o “ritual de passagem” para as explorações Surrealistas havia se concretizado. Os Surrealistas, com suas deambulações estavam ainda mais distantes do manifesto Futurista. Viviam os espaços urbanos que pareciam banais e buscavam os seus territórios velados, além da vista. Breton e seus amigos abandonaram todas as utopias tecnológicas do Futurismo e, inspirados na psicanálise, passaram a ver a cidade como um objeto que incitava a descoberta de seus labirintos inconscientes, através do mergulho em suas águas profundas, talvez sem entenderem totalmente a dimensão do que estavam fazendo... A deambulação – termo que contém a essência da desorientação e do abandono ao inconsciente – é a prática que nasce junto com o Surrealismo. Para Breton ela era:

O automatismo psíquico puro pelo qual se propõe a exprimir seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.115

A deambulação, que nasceu da escrita automática, foi transposta pelos surrealistas para o ato: o fruto desse passeio foi o Primeiro Manifesto Surrealista, já citado, texto que tornou o Surrealismo definitivo como movimento. Careri considerou esse momento como a transição definitiva do Dadaísmo para o Surrealismo. Três meses depois da visita Dada, em maio de 1924, o grupo Dadaísta de Paris organizou outra intervenção em um espaço real. Desta vez, ao invés de escolher um lugar na cidade, o plano era promover uma jornada errática em um vasto território natural. Esta Voyage foi a materialização do lâchez tout de Breton, um autêntico caminho iniciático que assinalou a passagem definitiva do Dada para o Surrealismo. Neste período o Dada começava a despertar cada vez menos entusiasmo [...] Neste delicado momento, Louis Aragon, André Breton, Max Morise e Roger Vitrac organizaram uma deambulação em campo aberto pelo centro da França. [...] O grupo decidiu sair de Paris e pegar um trem até Blois, uma pequena cidade escolhida ao acaso no mapa, e prosseguir a pé até Romorantin. Breton recorda o que chamou de ‘deambulação a quatro’, conversou e caminhou durante vários dias se-

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

guidos como uma ‘exploração até os limites entre a vida consciente e a vida sonhada’. Na volta da viagem ele escreveu a introdução a Poisson Soluble, que mais tarde se converteria no Primeiro Manifesto do Surrealismo, onde apareceu a primeira definição da palavra Surrealismo: ‘Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.’ A viagem, empreendida sem finalidade e sem objetivo, se converteu em uma experiência de escrita automática em espaço real, um passeio literário/rural, impresso diretamente no mapa do território mental.116

As deambulações começaram a acontecer em espaços abertos como bosques e campos, que chamavam ao lúdico e ao onírico e mostravam o desejo dos praticantes de voltarem às origens, resgatando o arquétipo dos caminhos primitivos na infância do mundo. As deambulações propunham alcançar um estado de hipnose através do caminhar, onde o controle da ação era perdido, quando a mente entrava em contato com o inconsciente do território onde o espaço surgia como um elemento ativo e vibrante, organismo vivo com caráter próprio que penetrava na mente de maneira profunda, invocando imagens de outros mundos onde o sonho era confundido com a realidade e o ser era transportado a um estado de inconsciência que tornava o ego abstrato. Assim como a excursão-visita Dada, a viagem ao campo Surrealista aconteceu também somente uma vez. Trocando o romântico cenário do campo

51

pela cidade, as deambulações urbanas tornaram-se uma das práticas mais frequentes dos Surrealistas, a fim de investigar profundamente as partes inconscientes da cidade. Através da prática da deambulação, a cidade revelou-se como espaço de sobreposição enquanto é percorrida. Os Surrealistas buscavam uma ressignificação da percepção espacial, onde a relação entre os objetos e imagens era revista a partir das percepções e ideias que surgiam durante esse processo inconsciente e automático, deixando-se levar pelo Hasard, que em francês significa acaso objetivo. Essas práticas faziam com que situações como encontros ocasionais, tanto com pessoas como com objetos sempre tivessem um significado implícito. Os objetos encontrados sempre assumiam, de certa maneira, o papel de readymades, abrindo possibilidades de poderem ter vários significados, dependendo da situação do encontro e do estado de espírito. Cidade117 afirma que esse processo foi retratado, em o Camponês de Paris, de Louis Aragon, quando o autor fez surgir uma analogia entre a percepção do imaginário Surrealista e o espírito romântico, encontro que só foi possível acontecer pelo cenário desse romance documental ser a cidade. Nele, Louis Aragon descreveu a agonia das passages, este espaço urbano fascinante, e a experiência de deambulação em um parque público à noite, onde literalmente a realidade confunde-se com o sonho. O Camponês de Paris pode ser considerado uma espécie de guia do maravilhoso cotidiano da época, que podia ser descoberto no inconsciente da cidade moderna. Paris era vista pelo autor como um grande mar de líquido amniótico, onde elementos cresciam e se transformavam espontaneamente através dos passeios intermináveis, encontros, jogos coletivos e objets trouvés. Explorando o recurso do acaso inconsciente, Aragon faz com que o leitor seja

52

Celma Paese

induzido a mergulhar cada vez mais neste mar de descobertas inesperadas.

Figura 15 - Passage de L’Ópera, Galeria do Barômetro

Nascimento118, ao escrever a introdução do Romance, na edição utilizada, comentou que, se nos perguntarmos qual foi a força irresistível que emanou do texto de Aragon para inspirar Walter Benjamin a escrever sua obra inacabada “Paris, capital do século XIX”, talvez possamos compreender que o interesse da Paris surrealista de Aragon ia além da esfera da intersecção entre real e imaginário, sem, entretanto negá-la. Quando, no primeiro capítulo de O Camponês de Paris, o autor descreveu a agonia da Passagem da Ópera diante de sua iminente destruição para ceder espaço à nova Boulevard, Hausmann em 1924, essa intenção passou a ficar clara. As duas galerias da Passage de L’Opéra, a do Barômetro (figura 15) e a do Termômetro, inauguradas em 1821, foram concebidas como parte da Academia Real de Música, o nome provisório da Ópera de Paris. Elas serviam de passagem aos atores, atrizes, músicos e frequentadores. Quando, em 1873, o antigo teatro foi destruído por um incêndio, o atual Teatro da Ópera, projetado por Garnier, foi construído e inaugurado em seguida e, apesar de ter sobrevivido ao fogo, a antiga passagem perdeu seu movimento e tornou-se decadente. Na década de 20, a passagem abrigou, no bar Certa, turbulentas reuniões dos Dadaístas e Surrealistas, assim como o salão do barbeiro Gélis-Gaubert, que era responsável por cabeleiras famosas como Balzac e Breton. Quando Aragon conheceu a passagem, ela abrigava um conjunto de lugares insólitos, transformados em um santuário ao culto do efêmero, uma paisagem fantasmática dos prazeres e das profissões malditas. A princípio, o capítulo da Passagem da Ópera foi publicado no ano de sua destruição (1924) em folhetim, pela Revue Européenne, dirigida então por

Fonte: .

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

Phillippe Soupault.119 O texto de Aragon descreveu, com detalhes, desde as lojas e seus objetos até as estranhas figuras que frequentavam a passagem em seu tempo de agonia, como se fosse um inventário minucioso. Por toda essa diversidade de tipos e situações, ficou claro porque Aragon sentiu-se á vontade de lançar mão do recurso da collage para empregar abundantemente a descrição das placas comerciais e outros tipos de inscrições quando atribuiu a estes objetos cotidianos uma função poética. A Passagem da Ópera era um túnel duplo, com uma porta ao norte para a rue Chauchart e duas portas ao sul para o boulevard. A ocidental, a do Barômetro, era ligada à oriental, a do Termômetro, por duas travessas, uma pertinho da boulevard e outra na parte setentrional da passagem. Além dos estabelecimentos comerciais e de serviço do primeiro andar, tinha-se a opção de frequentar a casa de tolerância que havia se instalado no primeiro andar da passagem, cuja única claridade, que penetrava, era a luz do prazer. Já no segundo andar encontra-se um hotel. Este era simples, com quartos de teto baixo, água quente e fria e eletricidade. Alugavam-se os insalubres cômodos por mês ou semana, a preços razoáveis. Dois companheiros de Aragon moravam naqueles meublés do segundo andar: Marcel Noll, recém-chegado de Strasbourg, de onde trouxe “grandes faculdades de desordem” e Charles Baron, mais conhecido como Baron, o boxeador, irmão do poeta Jacques Baron e também poeta. Um duplo sistema de escadas e portas que levavam a lugares misteriosos, permitiam aos frequentadores do meublé circularem ou saírem discretamente, longe da passagem. A narrativa continuou documental, onde o Autor procurava descrever a percepção de cada espaço, de cada personagem e de cada sensação. O texto, cheio de metáforas, conduzia cada vez mais

53

ao inconsciente do espaço agonizante, transpondo o leitor a uma Paris de espaços móveis e labirínticos, como se fosse um oceano. A metáfora da água, já não era nova na literatura, quando se tratava de ilustrar o espaço de uma grande cidade. Prenunciando os surrealistas, ainda no século XIX, Thomas de Quincey descreveu a Oxford Street como um grande mediterrâneo120, quando profetizou em “Confissões de um comedor de ópio”, que poderia perder-se de sua amada na turba da grande cidade. O sentido de amplidão e densidade, que De Quincey utilizou no texto, era semelhante ao dos Surrealistas, que mapeavam a cidade como se estivessem vagando através de um líquido amniótico que sugeria uma atmosfera de sonho. Mais tarde, no mesmo Séc. XX, a metáfora da água continuaria uma constante nos mapas da Deriva Situacionista. Durante a descrição do passeio, Aragon buscou ilustrar o sentimento de revolta dos habitantes da passagem perante a destruição iminente.121 Sinais de luta e protestos eram encontrados em toda a parte, nos cartazes das vitrines e nas conversas. O café Petit Grillon, lugar de encontro entre amigos e outros nem tanto, estava vendendo seu material de bar, pois a indenização proposta não era o suficiente para continuar o negócio em outro lugar. Na vitrine do comerciante de selos, dois papéis estavam fixados, que contavam uma breve história: no primeiro estava escrito “fechado por motivo de doença” e mais abaixo outro “fechado por motivo de luto”. O comerciante de vinhos da Galeria do Barômetro, orgulhoso de ser fornecedor oficial do Duque de Orléans, colocou um cartaz entre dois rótulos que informavam o preço de liquidação do vinho do Porto e do champanhe, com os seguintes dizeres:

54

Celma Paese

Em virtude de uma desapropriação que é uma verdadeira espoliação (tanto para mim quanto para o bairro) deixando-me na impossibilidade de estabelecer-me novamente em outro lugar vejo-me obrigado a ceder meu capital.122

A utilização da collage como recurso de leitura de objetos do cotidiano, atribui valor poético a eles através da subversão dos sentidos. A collage criou aqui uma espécie de fenda que transportou o leitor do real ao onírico e revelando o insólito cotidiano. Este tipo de olhar do autor sobre o urbano o fez criar uma ligação com o meio tão visceral quanto ao do rústico camponês com a terra, apesar do estranhamento permanente dessa comparação, o que justificou o título O camponês de Paris. As collages, a hipnose, as deambulações, os textos coletivos e os encontros inesperados com objetos mágicos eram processos onde o acaso objetivo, ou hasard, costumava manifestar-se. Esse recurso que foi adotado pelos Surrealistas como meio para o reconhecimento, até então inconsciente, do desejo, que era manifestado de forma consciente. E assim, descreve-se a agonia da Passagem da Ópera, um grande ataúde de vidro, onde o eterno jogo de amor e morte presidido pela “libido que, nos dias de hoje, elegeu como templo os livros de medicina e vagueia agora seguida pelo seu cãozinho Sigmund Freud.123 Nas passages, nos clarões que iam da claridade do sepulcro à sombra da volúpia, eram também encontradas as jovens deliciosas com seus movimentos de quadris e um sorriso penetrante. Esse passeio solitário se desenrolou da loja de bengalas, no café Certa e na loja de variedades ao fundo do corredor – que vendia desde meias de seda a preservativos –passan-

do pelo mueblé intermediário e o hotel do segundo andar. O passeio terminou no Teatro Moderno, “uma mistura de imitação decadente do Scala de Berlin e bar de prostíbulo”.124 Este lugar teve seu breve tempo de glória, assim como a passage e seus personagens. Agora só restam as sombras. Esses cenários foram próprios para ilustrar a agonia de uma época: o que restou foi “o espírito caindo na armadilha das redes que se arrastam sem volta em direção ao desenlace de seu destino, o labirinto sem Minotauro”,125 que tinham como certeza o seu fim, em um abismo sem volta. Da deambulação solitária pela passagem, Aragon partiu para a descrição de sua expedição noturna, juntamente com Breton e Noll ao parque Buttes-Chamont. Os três amigos chegam ao parque “quase que por acaso”: Tomar um táxi pareceu-nos então mais fácil do que tomar uma resolução. Noll, sempre assombrado por coincidências recentes, deu inteiramente ao acaso o endereço de Lion de Belfort[...] quando André Breton propôs ir para o parque Buttes-Chaumont, que sem dúvida estava fechado.126

Talvez o estado de espírito dos três companheiros possa ser imaginado, no instante em que constataram que a porta do parque estava aberta. Um deles, Noll, jamais tinha vindo a este lugar, para o qual fora levado após um dia de superstições, inquietude e tédio, num brusco sobressalto imaginativo que seus dois amigos ainda incentivaram, devido aos propósitos que reforçavam em relação a esse jardim. Quando escolheu o Parque, Aragon se reportou ao oposto do primeiro capítulo do Romance:

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

uma grande pedreira artificial em um jardim na periferia, alto e devassado. O Parque, que foi obra em vida de Haussmann, era localizado em um monte na periferia da cidade, antigo local de moinhos de vento na Idade Média e tornou-se o primeiro pulmão da cidade, em um lugar que antigamente havia se transformado em depósito de lixo. As diferentes altitudes e as escavações foram sabiamente utilizadas e, inclusive, configuraram um lago, alimentado pelo canal St. Martin. Dele surgiu uma enorme massa de rochedos de mais ou menos 50m, parte natural, parte artificial. Existiam duas pontes que atravessavam o lago e conduziam aos rochedos: A primeira era grande e de tijolos, conhecida por Ponte dos Suicidas e a segunda, suspensa. Na primeira, foi colocada uma grade, pois era comum os transeuntes se matarem, até mesmo os passantes que não tinham tomado essa decisão, mas que o abismo de repente tentava. Outra imagem que marcou a memória do passeio dos três amigos foi o Belvedere – parecia inacreditável que se podia ir à noite ao Belvedere – o Belvedere e o lago com sua inverossímil diversidade dessa construção de pequenos vales de água viva: Os altos postes de gás comprimido que iluminam o parque formavam grandes rastros sulforosos nessa dúbia noite em que se alongavam os troncos das árvores. Alguns garotos de boné saíram do parque e distanciaram-se, sem cantar. Entramos com o sentimento da conquista e a verdadeira embriaguez da disponibilidade de espírito. 127

O parque foi descrito minuciosamente pelo autor, com todas as características geográficas. Relacionada com percepções, a leitura acabava fican-

55

do saturada e criava uma espécie de desnorteamento, que lembrava a ideia de passeio por um labirinto.128 Os Surrealistas consideravam o labirinto um elemento arquitetônico iniciático que ligava para sempre a quem atingisse seu centro, quando o iniciado era introduzido em seus mistérios e ficava ligado a ele pelo segredo. Símbolo ligado à figura da noite, o labirinto é também ligado ao caminho para a penetração no inconsciente. A descrição do Parque por Aragon era tão precisa que se tornou vaga: o Poeta detalhou todos os setores do parque com precisão, a ponto de descrever a forma vista de cima, seus limites, eixos e detalhes dos acessos. Depois de utilizar o excesso de informação para causar um saturamento nada inocente ao leitor, Aragon129 começou a mergulhar no inconsciente do lugar e descreveu as sensações que a noite trouxe ao tomar conta do grande jardim e assumiu que ela é, entre as forças naturais, a mais reconhecida por seus poderes e mistérios em todos os tempos. Portanto, não foi à toa que o autor escolheu a noite130 para seu passeio no parque: assim como no primeiro capítulo, ele descreveu com precisão os usos e costumes que ocorreram durante o dia na Passagem da Ópera, guardando a noite para o relato dos encontros fantásticos, como o com sua musa sereia que habitava o mar de bengalas, um dos personagens entre tantos outros que encontrou em seu mergulho noturno no labirinto do inconsciente da cidade. O mergulho profundo no Parque ocorreu também na noite e mostrou mais uma vez o gosto dos Surrealistas pela sedução da descoberta quando evidenciou o equívoco, o dissimulado e o secreto em espaços aparentemente banais da cidade. A cidade oculta Surrealista podia ser tanto a noturna quanto a subterrânea, mas sempre possuiu suas próprias relações espaciais, luz e topografia. As ambiências lembravam as partes de um corpo feminino velado,

56

Celma Paese

prestes a ser despido, na escuridão da noite... A imaginação do autor confundiu-se com as ondulações do terreno e se mimetizou com o grande jardim que era revelado de maneira cada vez mais profunda, junto com a sombra que emergia com o inconsciente do lugar e tomou conta enquanto a noite reinou e revelou o que o sol encobria. As metáforas fantásticas, característica do surrealismo, conduziam ao mundo dos sonhos, reino do inconsciente ao mesmo tempo em que brincavam com a realidade e envolviam o leitor cada vez mais em percepções subjetivas. Este recurso de linguagem era inocente quanto a descrição exaustiva do parque. O texto incitava a sentimentos e sensações que eram abrigo e cúmplice dos desejos secretos dos frequentadores noturnos do parque. Aqui, a cidade se revelou mais uma vez como espaço de sobreposição. Esse recurso ajudou a formar um campo de interpretação aberto, fazendo a leitura do imaginário se tornar um processo individual. Em Nadja131 e O Amor Louco132, ambos de Breton, esse processo também aconteceu pelo mesmo motivo, porém dando ênfase às percepções surgidas au hasard durante os encontros com pessoas e objetos, nas deambulações urbanas. As sucessões de fatos, objetos e situações eram pistas que levavam Breton a reconhecer, pouco a pouco, os sinais que o conduziram a seu destino pessoal, sempre com a cidade como pano de fundo. Tudo isso ocorreu a partir da percepção do inconsciente da cidade que se revelava através da sucessão de fatos, imagens e sensações... Nas obras de Breton, para quem busca olhar pelo viés do urbano, a relação com a cidade é encontrada em todos os objetos citados. Nadja, assim como O Amor Louco, foi uma

obra de caráter autobiográfico onde Breton viveu Paris e buscou a resposta sobre quem era aquela mulher sedutora, desconcertante e de alma livre, que mais se parecia com os espíritos do ar que algumas práticas de magia podiam utilizar momentaneamente, mas jamais os aprisionar... Nadja pronunciava frases oraculares e, quando não conseguia mais se expressar dessa maneira, lançava mão, compulsivamente, do recurso do desenho. Em Nadja o poeta buscava o seu grande amor, aquele que só encontraria anos mais tarde. Os fatos e encontros relatados detalhadamente em forma de diário descreviam os encontros entre ambos, onde situações muito intensas e perturbadoras sempre aconteciam. Após vários encontros au hasard, frases perturbadoras e performances sedutoras, restou ao poeta a certeza de que ele estava impossibilitado de amá-la. A loucura pouco a pouco tomou conta da vida de Nadja e culminou com o seu internamento em um asilo qualquer onde ela acabou seus dias. Esse fato causou em Breton um tremendo mal estar, porém, ainda assim, atendeu a seu pedido insistente e escreve um livro sobre ela, escolhendo um título simbólico e profético: segundo Breton, o significado de Nadja em russo é “o começo do começo da esperança, e somente o começo.133 Em Nadja ressurgiu todo o clima da passante de Baudelaire, ou como já foi dito, do passante de Poe. A personagem novamente agregava os elementos do encontro surpreendente e incerto, consolidando o mito da Passante. O tema da morte aqui novamente está presente, ligado à grande cidade: os encontros eram efêmeros e au hasard. Ela poderia aparecer em um café, como adorável vagabunda, ou andando pelas ruas em bico de pés, como a personagem de O Amor Louco.134 Nessa obra, Breton continuou a buscar seu

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

amor em cada figura feminina que cruzava em seu passeio sem fim na noite de Paris do entreguerras e, em suas deambulações solitárias, continuava a penetrar no inconsciente das ruas da cidade que dormia até que, depois de uma de suas buscas inúteis pela noite inteira, lembrou-se de titubeantes anotações que havia guardado fazia algum tempo e se deparou com a mulher sem rosto e sem sombra, personagem de Girassol, poema que dedicou ao amigo Pierre Reverdy.135 Breton tinha a certeza de tê-lo escrito entre maio e junho de 1923, portanto na época que escreveu Nadja. Nesse momento, deu-se conta, que Girassol não passou de mais uma peça que o inconsciente lhe pregou. As dúvidas de Breton sobre o sentido desse poema só foram respondidas onze anos depois de tê-lo escrito, na ocasião do encontro com a passante que andava em bico de pés no Les Halles, ao final do verão, enquanto carregava uma valise

57

cheia de sonhos em frascos de sais. Poema escrito de modo automático, ele idolatrava o girassol, a flor que se move acompanhando o sol, como se fosse seu espelho. Em maio de 1934 finalmente a encontrou, em uma mesa de bar, escrevendo. Foi quando lhe dirigiu a palavra pela primeira vez. Dona de uma beleza estonteante que hipnotizou o poeta, tornando-se a mais pura manifestação material de seus desejos. Marcaram um encontro para mais tarde, à meia noite, no Café dos Pássaros, em Montmatre. Conduzidos pelo vento, deixaram o café e, continuando o passeio alcançam as ruelas de Les Halles. O “ar de quem dança”, que esta mulher se apropriava ao “andar em bico de pés”, ao lado do poeta, é importante de ser definido como o oposto do “ar de quem nada” (figura 16), que surgia quando ela mergulhava na piscina do bordel136 onde trabalhava, fato que Breton e seus

Figura 16 - O ar de quem nada

Fonte: Andre Breton - O Amor Louco - Lisboa: Edestampa, 1987. p.2 Foto de Andre Breton

58

Celma Paese

amigos testemunharam muitas vezes. Na verdade ela, na maioria das vezes, parecia alguém que nadava debaixo d’água. Esta complexa figura, concentrava os poderes dos seres “prestes a aparecer”, sem que o poeta tivesse ideia do que poderia esperar desta mulher. Quanto mais calada e secreta, mais perigosa ela se tornava. Ainda assim, o poeta declarou no poema que não é joguete de nenhuma força sensorial ao mesmo tempo em que admitia estar disposto a se deixar ludibriar pelo desejo e se entregar ao amor que sentia por aquela mulher que, sem face e sem sombra, poderia ser tantas outras. A caminhada continuou com ambos caminhando devagar e lado a lado, passando pelas portas dos bares de final de noite, pelos caminhões que descarregavam mercadorias. Prosseguiram pelo quarteirão dos alquimistas, até a Torre de Saint-Jacques, que o Poeta descreveu como “cambaleante como um girassol”. Passaram pelo Hotêl de Ville e atravessaram o Sena na altura de Notre Dame, até que novamente o vento manifestou sua vontade e os conduziu ao Cais das Flores, à beira do rio. As floristas descarregavam vasos de plantas e armavam suas barracas, oferecendo um espetáculo lúdico que o remeteu aos prados da infância, onde havia um caminho perdido insinuando-se na direção dos braços daquela mulher, que um dia finalmente apareceu.137 O desespero de este momento mágico acabar confundiu-se com a esperança, em uma paisagem mutante cuja descrição servia de espelho do coração. A valorização do imaginário que aparece nas inusitadas descrições de paisagens familiares faz a conexão com o acaso objetivo que brota do inesperado, como o já profetizado encontro com a mulher esperada, onze anos depois. Também, pouco antes de encontrar seu objeto supremo de desejo, Breton colocou o leitor em contato com o universo

dos objetos simbólicos em seu passeio no Mercado das Pulgas, junto com Giacometti, onde encontrou o elmo mágico e a colher de pau, que para Breton tomou a forma de um sapato. Esses objects trouvées jorraram como faíscas inesperadas de um amontoado de lixo e cumpriam a missão de desvendar outra realidade, até então inconsciente para os dois amigos, que os elegeram objetos de seus desejos. Para Breton138 o acaso era a forma da necessidade interior se manifestar, ao abrir caminho através do inconsciente humano concretizando-se no tempo e espaço devidos; portanto os objetos não existiam como realmente são e os mais banais, quando observados em seus traços construtivos, ofereciam, segundo Breton, a lembrança dos nossos objetos de desejo. A tensão entre a espera e a descoberta, o desejo e a realização resolveu-se no momento em que aconteceu o encontro, que, tanto fazia se fosse o com a colher-sapato de Cinderela ou com a amada. Breton observou que nesse momento a sensação de tempo era imediatamente abolida. Mais uma vez aqui apareceu o momento do hasard, que sempre ocorreu sob o signo da espontaneidade, da indeterminação, do imprevisível ou até mesmo do inverossímil. As manifestações dos desejos inconscientes incitavam o leitor a envolver-se em uma espécie de líquido amniótico, onde tudo crescia e se transformava espontaneamente: os passeios intermináveis, os encontros e objetos que tomam um significado além do existente sugeriam figuras que faziam surgir ideias de mapas desenhados, sempre associados à imagem da cidade líquida. Careri 139afirmou que esse clima era encontrado também nos mapas do próprio Breton, que os desenhava com os lugares que não gostava de frequentar em branco, os que o atraíam em negro e o restante em cinza, que representaria as zonas que se alternavam entre os sentimentos de

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

atração e repulsão. A intenção era representar as variações de percepções subjetivas e os impulsos que sugeriam o percurso do ambiente urbano. Breton comentava que o processo de passagem da subjetividade à objetividade seria como as lições de pintura de Leonardo: ele incitava os seus alunos a copiar quadros dos velhos mestres conforme eles percebiam, refletindo a maneira de ser de cada um. Essa lição ainda não era compreendida naquela época, porque ali estaria a solução, muito superior a qualquer técnica e resumida à própria inspiração, que abre a possibilidade de entendimento de todos os domínios, não só da pintura. Os mapas Surrealistas foram o prenúncio do que foi chamado mais tarde pelos Letristas e Situacionistas de L’Archipel Influentiale, representação da cidade em mapas que traduzem as sensações causadas pelas diversas ambiências, representação gráfica das derivas psicogeográficas. O nome sugere a ligação com a água, encontrada na representação gráfica que Debord, principal articulador intelectual da Internacional Situacionista adota para seus primeiros mapas, em forma de arquipélago. A cidade Surrealista, e suas representações, mudariam a maneira de ver o cotidiano urbano. Mesmo que no início essas ideias parecessem revolucionárias, o tempo mostraria que Breton e seus amigos seriam bem sucedidos em suas experiências, influenciando, de diversas maneiras, as representações do urbano até hoje. Para Careri140, a cidade Futurista, da velocidade e das mudanças rápidas e constantes, foi transformada pelos Dadaístas em um lugar público onde era possível provocar a cultura institucional, apontando o banal e o ridículo, desmascarando a farsa da cidade burguesa. Os Surrealistas deixaram de lado o niilismo Dada e se encaminharam para um projeto mais oti-

59

mista. Utilizavam os fundamentos da nascente psicanálise e se lançaram à superação da negação dadaísta com a certeza de que algo se escondia ali dentro, indo além do território da banalidade e explorando os territórios inconscientes, buscando explorar o mundo em sua totalidade, ao invés de negá-lo. A investigação surrealista propôs a exploração da cidade como se fosse a mente humana: a cidade revelou-se para o além do visível, através da investigação psicológica da relação dos habitantes com a cidade. A cidade surrealista produziu e concentrou territórios a serem explorados todos os dias, de maneira diferente, onde se sentir perdido permitia ter a sensação do maravilhoso cotidiano e utilizaram o simples ato de caminhar como instrumento de explorar e reconhecer as zonas inconscientes da cidade; através da exploração do simbólico, buscavam encontrar elementos que representassem o que era impossível de encontrar nas representações tradicionais. Os Situacionistas acusaram os Surrealistas de não terem levado até às últimas consequências as potencialidades do projeto Dadaísta. Eles o retomaram, e buscaram a arte sem obra nem artista, coletiva e revolucionária, tudo isso combinado com a prática do caminhar na cidade. 4.1 Homo Sacer “Tudo o que é político é biopolítico. O conceito de “autonomia do político” é, consequentemente, ideologia pérfida e mórbida. No pós-moderno, sua impotência (ineficácia) é total.” Antonio Negri

Na década de 30, enquanto assistia o florescimento de movimentos culturais de vanguarda, como

60

Celma Paese

o Surrealismo na França, a Europa não tinha consciência do que estava por vir. Hitler destruiu países inteiros como a Polônia, sitiou e invadiu cidades como Paris e Amsterdã. Em nome da superioridade da raça ariana, dizimou milhares de pessoas de “origem impura”, como deficientes físicos e mentais, ciganos, gays e judeus, sendo esse último, o extermínio mais conhecido e divulgado. Giorgio Agamben141, descreve o desenvolvimento da biopolítica moderna, nos mostrando como começou e até que ponto hoje chega a relação de manipulação do poder soberano com o vínculo oculto que mantém com a vida natural, não politizada: o Homo Sacer, aquele ser humano que pode ser morto impunemente por não ter gestão sobre o direito de preservação da própria vida, é a chave desse vínculo. Agamben142 descreve como o Reich NacionalSocialista inaugurou a era da biopolítica moderna, integrando, com seu programa, a purificação da “superior” raça ariana, a política com a medicina. Através da gestão calculista da vida, o Reich descolou a política do humanitário. A decisão de tutela e preservação da vida tornou-se parte de um processo mais complexo e ambíguo do que existia até então: assumindo uma postura de preservação e cuidados com o “corpo biológico da nação”, Hitler e seus aliados distorceram para seus próprios fins os conceitos científicos relacionados à genética. Considerando que a herança biológica é um destino, os cientistas do Reich justificavam que com a solução final eles seriam os senhores deste destino e tornou a polícia um agente executivo dentro da ordem política. Para eles, a tutela da vida é também a luta contra o inimigo. Em 1942, o Institut Allemand de Paris, publica Etat et santé (“estado e saúde”), com a finalidade de informar aos “aliados” franceses a política do Reich sobre saúde e eugenética. Em sua introdução, lê-se o

seguinte: A revolução nacional – socialista [...] deseja fazer apelo ás forças que tendem à exclusão dos fatores de degeneração biológica e à manutenção da saúde hereditária do povo. Ela almeja, portanto, fortificar a saúde do conjunto do povo e eliminar as influências que prejudicam o desenvolvimento biológico da nação. Os problemas tratados neste livro não se referem a um único povo; ele levanta problemas de importância vital para toda a civilização europeia.143

Lendo essas palavras, compreende-se de que premissa Hitler partiu para justificar o absurdo que propunha. Para ele é indiscernível: eugenética e ideologia, a tutela da saúde e tutela do inimigo, assim como o papel da política e da polícia. O poder totalitário consagrou a política como um estado de exceção, que articulou e uniu a vida com política como iguais em uma terra de ninguém, onde toda a vida torna-se nua e sacra, podendo ser, a qualquer momento, sumariamente eliminada. A fim de proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raça os nazistas, aos poucos, colocaram várias minorias que eles julgavam intragáveis em uma situação-limite, onde a proteção jurídica não fazia mais sentido e onde todos os direitos e expectativas desapareceram. A partir da Primeira Guerra Mundial [...] o nexo nascimento nação não é mais capaz de desempenhar sua função legitimadora no interior do Estado-nação, e os dois termos começam a mostrar seu próprio insuturável

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

deslocamento. Junto com o transbordar, no cenário europeu, de refugiados e apátridas [...] o fenômeno mais significativo [...] é a introdução, na ordem jurídica de muitos estados europeus, de normas que permitem a desnaturalização e a desnacionalização em massa dos próprios cidadãos. A primeira foi em 1915, na França, com relação a cidadãos naturalizados de origem ‘inimiga’; em 1922 o exemplo foi seguido pela Bélgica, que revogou a naturalização de cidadãos que haviam cometido ‘atos antinacionais’ durante a guerra; em 1926, o regime facista expediu uma lei análoga que dizia respeito aos cidadãos que se haviam mostrado ‘indignos da cidadania italiana’, em 1933, foi a vez da Áustria, até que as leis de Nuremberg sobre a ‘cidadania do Reich’ e sobre a ‘proteção do sangue e da honra alemães’ impeliram ao extremo este processo.144

Baseados nas leis de Nuremberg, os nazistas destituíram o povo judeu, ciganos, os gays e aos poucos outras minorias de seus direitos de cidadãos, transformando-os em cidadãos de segunda classe quando declaram que só o cidadão de raça ariana comprovada seria um cidadão a título pleno, até que os destituíram de todo e quaisquer direito e, sempre visando a “solução final”, os enviaram aos campos de concentração. Como se não bastasse, ao final da guerra, essas pessoas, não tendo mais para onde ir, ficavam vagando sem rumo, muitos nem sequer sabendo onde estavam. Alguns, além de ficar vagando no território, vagavam em si mesmos, pois nem a razão lhes havia restado. Outros eram colocados em campos de refugiados espalhados pela Itália, França e ilhas do Mediterrâneo, como Chipre. Os que tiveram mais sorte conseguiram emigrar para o novo

61

mundo; os mais sensatos, antes de estourar a guerra, os mais desesperados, logo depois de seu final. O extermínio dos hebreus na Alemanha nazista adquire, sob esta luz, um significado radicalmente novo. Enquanto povo que se recusa a ser integrado no corpo político nacional (supõe-se de fato, que toda assimilação sua seja, na verdade, somente simulada), os hebreus são representantes por excelência e quase o símbolo vivo do povo, daquela vida nua que a modernidade cria necessariamente no seu interior, mas cuja presença não mais consegue tolerar de modo algum. E na lúcida fúria com que o Volk alemão, representante por excelência do povo como corpo político integral, procura eliminar para sempre os hebreus, devemos ver a fase extrema da luta intestina que divide Povo e povo. Com a solução final (que envolve, não por acaso, até mesmo os ciganos e outros inintegráveis), o nazismo procura obscuramente, inutilmente liberar o cenário político do Ocidente desta sombra intolerável, para produzir finalmente o Volk alemão, como povo que preencheu a fratura biopolítico original (por isso os chefes nazistas repetem tão obstinadamente que, eliminando hebreus e ciganos, eles estão, na verdade, trabalhando também para os outros povos europeus). Parafraseando o postulado freudiano sobre a relação entre Es e Ich, se poderia dizer que a biopolítica moderna é regida pelo princípio segundo o qual ‘onde existe vida nua, um Povo deverá existir’; sob condição, porém, de acrescentar imediatamente que

62

Celma Paese

este princípio vale também na formulação inversa, que reza ‘onde existe um povo, também existirá vida nua’. A fratura que se acredita ter preenchido eliminando o povo (os hebreus, que são seu símbolo) se reproduz assim novamente, transformando o povo alemão em vida sacra votada à morte e em corpo biológico que deve ser infinitamente purificado (eliminando doentes e portadores de doenças hereditárias). 145

Agamben considera o campo de concentração como um nómos do moderno. Seus habitantes são fadados a sobreviver em um espaço de exceção, sem ordenamento e de localização deslocante. No campo de concentração, toda a forma de vida e seus direitos podem ser capturados sem sobreaviso, impunemente. A fissura entre o humanitário e o político é aqui instaurada, promovendo o descolamento entre os direitos do homem e os direitos do cidadão. A entrada no campo significa a definitiva exclusão da comunidade civil. Colocadas no mais absoluto espaço biopolítico, o direito à vida de seus habitantes não pertence mais a cada um, mas ao governante. O campo é um espaço onde o ordenamento sem localização passa a ser uma localização sem ordenamento. O sistema político não ordena mais as formas de vida e todas as normas podem ser virtualmente capturadas. Nesse momento, o campo passa a existir como matriz oculta da biopolítica de hoje e se estabelece como paradigma espacial biopolítico do ocidente, lugar que antes era ocupado pela cidade. Agamben146nos ensina a reconhecer essa situação: a cidade transforma-se em campo quando, em um espaço determinado, o sistema político não ordena mais as formas de vida e suas normas jurídicas. A cidade passa a conter em seu interior uma si-

tuação espacial de localização deslocante, onde todas as formas de vida e todas as normas de sobrevivência podem virtualmente ser capturadas. O processo de ordenamento da vida no estado-nação entra em um processo de deriva onde esse não mais funciona e devemos estar preparados para novas e delirantes definições de normas para garantir a sobrevivência da vida urbana. Por não haver possibilidade de retorno à política clássica, no campo, cidade e casa são indiscerníveis, e a possibilidade de distinção entre corpo biológico e corpo político, entre o que é comunicável e mudo e o que é comunicável e dizível, é tolhida para sempre. A vida torna-se nua, sem qualquer mediação. Essa realidade, hoje, se encontra no terceiro mundo, de maneira velada nas ruas de grandes cidades, periferias urbanas e favelas; ou em si, como em campos de refugiados e campos de prisioneiros de guerra. O ACNUR147, órgão oficial das Nações Unidas de ajuda aos refugiados, estima mais de 17.000.000 refugiados em todo o mundo. Só no Brasil existe oficialmente mais de três mil refugiados, a maioria vinda da África e de países Latino-Americanos. Todos foram expulsos de seus países por guerras civis, perseguições políticas, ideológicas e religiosas, violências étnicas e tribais e outras violações graves de direitos humanos. Fugiram de seus países de origem e realizaram verdadeiras façanhas para chegar ao destino escolhido. Hoje, a figura do refugiado é o limite que põe em crise definitiva esses conceitos e, já não podemos imaginar até onde irá esse processo. O caos é o nómos da vida dessas pessoas. As organizações humanitárias envolvidas não podem fazer nada mais do que tentar entender o processo da vida sacra e tentar garantir sua sobrevivência, isolando-a. Ao mesmo

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

tempo, são obrigadas a manter a contragosto, certa “cumplicidade” com as forças que deveriam combater, pois não têm o poder de reverter o quadro. Quem são os refugiados que estão verdadeiramente fugindo da perseguição e quais estão fugindo da fome? Todas as opções são válidas. Mas certamente, a primeira grande questão é a sobrevivência. A invasão do Tibet pela China em 1959 é uma situação que até hoje persiste. Os sobreviventes fugiram em massa, buscando exílio na Índia. Quando atravessavam a fronteira, eram abrigados pelo governo em campos de refugiados, como o de Missamari, em Assan, no nordeste do país, onde as condições que encontraram poderiam ser comparadas a de um campo de extermínio. Mesmo assim, era o que tinham, para buscar uma transição para melhores condições de vida. Chagdug Tulku Rimpoche (1930-2003), Lama budista Vajrayana, esteve em Missamari durante oito meses ao exilar-se na India, quando fugiu do Tibet em 1957, durante a invasão chinesa, antes de exilar-se nos Estados Unidos. Posteriormente, morou e faleceu em Três Coroas, no Brasil. Ele assim descreve as condições de sobrevivência que encontrou, em sua autobiografia: Missamari fica à beira de um rio, numa planície arenosa que foi atingida por bombardeios na Segunda Guerra Mundial. Para acomodar o afluxo de refugiados, o governo indiano construiu fileiras de barracas de bambu e cada uma abrigava sessenta pessoas. Não havia saneamento e a água estava contaminada. Desinteria amebiana se espalhou pelo campo, e os tibetanos, exaustos, famintos, doentes do coração e atordoados

63

pelo calor abrasador, morriam ás centenas. As fogueiras crematórias adjacentes ao campo queimavam constantemente, abastecidas por quinze ou vinte corpos por dia. Na mortalha tecida pela doença e pela morte, os sobreviventes falavam sem parar em voltar à sua terra natal ou, impotentes, sobre o lugar para o qual poderiam ser enviados na Índia. O governo indiano fornecia ao campo porções de arroz, lentilha, carne e, algumas vezes por semana, leite em pó, queijo e tomates. A maioria de nós não sabia o que fazer com os tomates e pilhas deles, vermelhas e apodrecidas, espalhavam-se pelo campo. Também pouco sabíamos, como povo das montanhas que vivia em um ambiente relativamente livre de germes, como enfrentar a temperatura ardente e as doenças que encontramos”. 148

A busca por melhores condições de vida no Primeiro Mundo também ajudou a fomentar o fenômeno do tráfico de seres humanos. Os traficantes recebem grandes quantias de dinheiro para transportar os migrantes por distâncias às vezes enormes – da China à Grã-Bretanha, por exemplo. É um mundo ilegal que não traz nenhuma certeza a essas pessoas. Muitas vezes eles são largados em locais diferentes do prometido. Os governos dos países desenvolvidos tendem a ver as pessoas que chegam ilegalmente às suas portas como uma ameaça. Segundo a BBC149, a Austrália tem um programa para receber um número limitado de imigrantes legais. Os ilegais são recolhidos em centros de detenção como o de Woomera, que fica isolado no meio de um deserto. Países como o Irã e a Tanzânia também recebem um grande nú-

64

Celma Paese

mero dessas pessoas e, só na Tanzânia, existem mais de 500.000 vivendo nas zonas fronteiriças.

ambiência de fazer inveja a muitas cidades sitiadas por guerrilheiros.

Perante essa realidade e as outras já vistas, estabelece-se como fenômeno os seres humanos fragmentados em duas partes, que Agambem150 assim classifica em seu estudo: a primeira, o Povo, cidadãos incluídos no sistema social, gozando de plenos direitos biopolíticos; a segunda, o povo, os carentes, ignorantes e excluídos, sem esperança de uma inclusão social plena, simples seres humanos. A interpretação do significado do termo povo se deve ao fato de que, em todas as línguas europeias modernas, este termo pode ser usado como sinônimo de minoria, indicando os pobres, deserdados e excluídos. Miséria e exclusão são categorias eminentemente políticas, ou melhor, biopolíticas e espaciais. Portanto, as soluções das questões espaciais que envolvem esse novo aparteheid com que convivemos em nosso tempo, também são de responsabilidade dos arquitetos.

A manipulação da incerteza é a essência e o desafio primário da luta pelo poder e influência dentro de qualquer estrutura. A favela é uma comunidade com sua organização própria, onde o poder paralelo tem uma situação opaca em relação ao poder oficial e suas variáveis de ação e comportamento são uma incógnita para esses. Portanto, não é possível imaginar uma figura estranha à “comunidade” entrar de favela ou circular pela periferia sem colocar sua vida em risco.

Um exemplo, dos mais conhecidos, é o que acontece no Rio de Janeiro. A “Cidade Maravilhosa” só honra seu título se vista como no Samba do Avião. O Rio virou uma cidade bem diferente dos tempos românticos da Bossa Nova. O poder paralelo dos traficantes e máfias urbanas ditam suas próprias leis nas favelas e vizinhanças, como na Rocinha, uma ilha de miséria, consequência da ignorância, no meio da cidade. Os espaços antropomórficos, típicos das favelas, servem de escudo para proteger a população da invasão e imposição da ordem por intrusos com “poderes superiores”, como a polícia. Os invasores se sentem desorientados e perdidos, em um local onde as referências espaciais são desconhecidas para eles. Como já foi dito, o espaço da cidade de hoje, ao contrário, é previsível e mapeado a fim de facilitar o controle. Aqui, o feitiço vira contra o feiticeiro: quando o exército dos traficantes desce o morro, gera uma

O modelo Panóptico (figura 17) do poder moderno, analisado por Foucault151, apoiava-se em Figura 17 - Panóptico desenhado por Benthan em 1791

Fonte: .

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

suposições semelhantes: os supervisores ocultos da torre central do edifício em forma de estrela são invisíveis aos observados, porém esses são totalmente visíveis aos primeiros. Apesar do Panóptico ser um espaço artificial, a semelhança aqui é encontrada pela situação de controle que o poder paralelo tem do espaço da cidade, mapeado e legível, o que não acontece com o espaço da periferia, ilegível e imprevisível para o poder oficial por sua constante mutabilidade.152 Ao se deparar com as consequências de anos de exclusão e sofrimento, o medo e a culpa, o vazio e o desespero tomam conta daqueles que se sentem ameaçados. Para se protegerem, passam a habitar bunkers urbanos, utilizando as chamadas tecnologias de segurança como aliadas. Roger Burrows153, nos chama atenção para o processo de exclusão que ocorre em nossa sociedade dualista. Formado por novos sincretismos culturais resultantes da exclusão provocada pela fissura social e o número crescente de empobrecidos na população mundial, tem como resultado o rezoneamento das cidades. Curiosamente, o autor utiliza o termo Brazilianization154 para nomear os fenômenos sociais da polarização, que há tempos deixaram de ser exclusividade do terceiro mundo. Cidades globalizadas, como Los Angeles e São Paulo, são o local onde a nova e nomádica elite global emergente habita. Esses habitantes globais residem e trabalham nos grandes centros financeiros, administrativos e profissionais, que garantem a circulação de dinheiro e a manutenção do espetáculo. Muitas vezes, nem mesmo sua nacionalidade é fixa. Paralelamente, acontece cada vez com maior intensidade o sucateamento industrial acompanhado do aumento do nú-

65

mero de migrantes e imigrantes, em busca de melhores condições de vida em centros urbanos maiores155. O inchamento das cidades e a falta de absorção desses trabalhadores pelo mercado fazem essas pessoas ficarem cada vez mais encurraladas no círculo vicioso do empobrecimento e da miséria. Não tendo para onde ir, ficam à mercê dos acontecimentos, prisioneiros do acaso. Sabemos que não precisamos ir muito longe para assistir a esse triste espetáculo: olhando para baixo de marquises, dentro das estruturas dos viadutos e nos buracos urbanos das grandes cidades, há sempre alguma família ou grupos de pessoas morando clandestinamente, em condições tão precárias que se tornam inimagináveis. Para aqueles que ainda acreditam na ilusão do desenvolvimento, cabe garantir uma segurança aparente para seus espaços públicos e privados, e também a seus bens de consumo, a fim de dar continuidade a sua vida espetacular. A tecnologia do apartheid começa a ser utilizada como aliada no final dos anos 80, disfarçada de tecnologia de segurança. Herança da Guerra Fria e do Fordismo, essa tecnologia que a princípio servia a agências de “inteligência”, como a CIA e a KGB, foi transplantada para nosso dia a dia. Prática que começou nas metrópoles do primeiro mundo a fim de evitar atos terroristas, ela disseminou-se com rapidez também para cidades como Rio, São Paulo, Cidade do México, Lagos e Buenos Aires, a fim de evitar a violência urbana consequente da exclusão social. Esse fenômeno acabou por culminar com a total falta de privacidade da mobilidade individual, atendendo aos interesses daqueles que detêm o poder territorial. A função explícita dessa parafernália tecnológica é intimidar atos marginais que ameaçam a integridade dos transeuntes. O problema é que esses aparelhos não servem somente a esses interesses: o

66

Celma Paese

fomento do medo, através das rápidas mudanças tecnológicas e ofertas de aparelhos de segurança cada vez mais sofisticados, garantem grandes lucros aos seus fabricantes, garantindo o controle de tudo e de todos. Além disso, o processo de polarização social também é incentivado. Esse último é o objetivo, maior e velado, dos que utilizam essas tecnologias, assim fomentando o processo virulento de aumento da fratura biopolítica que divide as populações do terceiro mundo em incluídos e excluídos.156 Garantir essa segurança nos centros financeiros e comerciais das grandes cidades envolve cada vez mais processos de exclusão, compartimentação e fechamento. Nessas áreas nobres das cidades, a privatização cresce através de investimentos, onde os espaços antes eram públicos. O espaço é controlado, através das novas e velhas tecnologias. Calçadas são removidas, o tráfego de pedestres é deslocado. São determinados pontos de acesso seguros e controlados para a área poder ser rapidamente fechada, se necessário. Câmeras de vídeo são rotinas e todos os movimentos são monitorados. Burrows157 chama esse fenômeno de “mall–ification”: processo no qual as ruas e áreas públicas são cobertas e fechadas, para tornarem-se shoppings virtuais, onde o acesso é regulado e as ações espionadas pelos novos agentes de controle social. Espaços públicos com acesso controlado, edifícios inteligentes, portas eletrônicas e guardas bem armados complementam a eficiência dessa arquitetura que serve ao apartheid. Esses lugares, de onde a população menos favorecida é banida, também lhes são inviáveis economicamente. Infelizmente, essa tem sido a trajetória da arquitetura: servindo ao espetáculo, exclui uma multidão de pessoas dos serviços que são garantidos pelos direitos adquiridos com o exercício da cidadania. Mas não podemos esquecer que essa tecnologia serve aos ideais biopolíticos de nossa sociedade,

quando se torna claro que o princípio do campo aqui está sendo aplicado: a obsessão pelo desenvolvimento coincide com o projeto biopolítico de produzir um povo sem fraturas. Os campos de excluídos, que se formaram a partir do apartheid, são lugares onde a criminalidade e a violência, associadas ao tráfico de drogas, acontecem como forma de governo e hierarquização espacial. Essas zonas sofrem eventuais intervenções do controle social oficial, tanto em nível físico quanto tecnológico, com o propósito de garantir a segurança das áreas onde habitam os demais. Nesse circulo vicioso, a tentativa de inclusão é um jogo de vale-tudo: O contato é dado por tarefas eventuais, que forçam uma certa miscigenação, como trabalhos domésticos e temporários, ou mesmo a venda de drogas e muambas. Espetáculos “circenses”, venda de mercadorias e pedido de esmolas em sinaleiras, não podem ser esquecidos. Também não dá para evitar falar nos pequenos assaltos, furtos, sequestro-relâmpago e carros “emprestados”. A sobrevivência e o abrigo dessas pessoas são garantidos pela indústria de reciclagem das sucatas geradas por nossa sociedade de plástico, que os catadores recolhem. Como já foi dito, valorização do lixo como meio de sustento já chamava atenção na Paris de Baudelaire. A partir do surgimento de novos processos industriais, o número de catadores de trapo foi aumentando. Benjamin158 cita os trapeiros como figuras fascinantes para os primeiros pesquisadores do pauperismo urbano. Garantindo já naquela época o sustento com a reciclagem, os observava e se perguntava até onde iria a miséria humana. Com certeza, não tinham ideia de quanto a vida se tornaria cinzenta nos tempos que se seguiriam. Nesses tempos em que o Brasil Cinza se revela, usando uma expressão de Tiburi159, os excluídos só

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

conseguem a inclusão nos matizes cinza da fumaça dos veículos das metrópoles alucinadas, que convivem indiferentes com suas faces desesperançadas e abatidas. Neste Brasil cinza, a cor de nossas cidades não deve ser confundida com a do asfalto: esse cinza é a cor dos sonhos, que se esvaíram no fogo da esperança que não vingou. O que resta, é um futuro de concreto e túmulo e, aos melancólicos, vestirem-se de cinza para passarem despercebidos. Nossa identidade cultural arquitetônica – apesar de nós negarmos – também tem tudo a ver com a cor cinza. Fuão160 nos chama atenção que deveríamos saber ver identidade no provisório definitivo das paredes à espera do reboco que nunca virá, nas telhas de Brasilit e nas esquadrias de ferro baratas da arquitetura cinza

67

das populações menos favorecidas. O provisório-definitivo, também deve ser reconhecido nas situações de exceção. Loschiavo161 nos mostra como a arquitetura móvel de seus abrigos interfere no perfil urbano das grandes cidades de hoje (figura 18). Essa arquitetura de papel e plástico configura uma cidade paralela e nomádica, sobreposta à cidade estática tradicional, de vidro e concreto. As referências espaciais estáticas desses nômades urbanos são os galpões de reciclagem de lixo, onde garantem seu sustento com as sobras recicláveis e os abrigos municipais. Andam de um lado para o outro da cidade, sempre carregando seus abrigos móveis nos carrinhos, catando sucatas.

Figura 18 - Catadora com seu carrinho-casa

Fonte: .

68

Celma Paese

E assim, as ruas acabam se tornando lares ao mesmo tempo em que os lares se tornam ruas quando essas pessoas são expostas constantemente à repressão e violência descabidas.

a sua frente em minutos e evita o confronto com o mundo exterior. Percorrer a cidade para eles é navegar pelo oceano do medo, que leva de um porto seguro a outro.

Todos eles, meninos de rua, jovens e velhos sem-teto, ladrões, espancados, pobres e tantos outros, representam uma ameaça aos cidadãos que gozam de cidadania plena. Marginalizados pelas condições de sobrevivência em que se encontram, graças ao apartheid tecnológico gerado pela conduta biopolítica de hoje, essas pessoas não veem chance de mudar sua situação: vivem excluídos da esperança. São negados, a eles, os meios mínimos para isso, como educação, habitação e saúde. Se os incluídos se sentem ameaçados, com medo de assaltos e violência, a recíproca é verdadeira: em nome da segurança, esses excluídos são condenados a andar em círculos nesse espaço de localização deslocante. O campo surge por entre os muros das cidadelas da tecnologia e seus habitantes aguardam, a qualquer momento, a execução de uma espécie de pena de morte velada, sem ritual prévio.

Em Cidades Fantasmas, Fuão162 chama atenção justamente para essa retenção e repressão espacial sobre os corpos incentivada pelo uso da tecnologia, que faz com que o confinamento em nossas casas se torne cada vez maior, consagrando um tempo em que TVs e computadores substituem janelas. Não é a toa que a proliferação da violência urbana interessa aos banqueiros e às grandes empresas da comunicação e informática. Quanto mais perigosas e feias as ruas se tornarem, mais estaremos confinados e pagando pelo uso da energia e por eletrodomésticos que possibilitam a comunicação virtual com nossos semelhantes. Hoje, os cabos e fios desempenham as mesmas funções das ruas, quando precisamos deles para acessar informações e nos encontrarmos.

As áreas residenciais focam-se cada vez mais na privatização espacial, diminuindo ou elitizando os espaços públicos. Na verdade, é uma maneira de se protegerem dos bolsões de miséria que literalmente os cercam. Condomínios dentro de muros, com seguranças, garantindo um acesso restrito, aparecem cada vez mais, lembrando as velhas cidades muradas da Idade Média, porém com uma diferença: os muros hoje cruzam a cidade ao invés de cercá–la. Quando é necessário, o acesso físico dessa população das cidadelas aos parques temáticos espetaculares do reino do efêmero – os shoppings – é feito por meio do automóvel. Cada vez mais essas pessoas procuram que seus bens de consumo venham a eles, garantindo sua chegada através do sistema de delivery, que assegura a concretização de quase tudo

A comunicação entre as cidadelas através do universo paralelo do ciberespaço isola essas pessoas em suas ilhas de paz aparente e, cada vez mais, elas precisam de computadores para chegar a quem lhes interessa. As comunidades que se formam nessa dimensão criam novos espaços de troca de informações e ideias. Consequentemente, aparelhos e dispositivos exercem o poder e o controle sobre esses dados e ao nível de acessibilidade e mobilidade dos frequentadores. Esse é o papel dos bancos de dados: determinando o nível de mobilidade de cada um, garantem que nenhum intruso, sem a credibilidade adequada, invada um espaço que não lhe é de direito. Todos os instrumentos de controle do Estado agora estão disseminados em pequenos fragmentos de controle na rede. Os próprios vigiados, os residentes locais do ciberespaço, são os voluntários que vigiam o acesso dos demais.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

69

Assim, surge outro mecanismo de poder: o Sinóptico proposto por Bauman.163

só reproduz, em outra dimensão, a grande fissura social do ocidente.

Complementar do Panóptico, que tinha uma função local e de imobilização de seus súditos, o Sinóptico é, por natureza, global e faz com que todos vigiem a todos.

A separação entre humanitário e político que hoje vivemos, retrata a fase extrema de descolamento entre os direitos do homem e do cidadão. Para Agambem166, o projeto democrático-capitalista de eliminar os pobres através do desenvolvimento só consegue reproduzir no interior de seu sistema os excluídos, além de transformar em vida nua toda a população do Terceiro Mundo. Prenunciando uma era de grandes mudanças sociais, a fissura não passará impune. O humanitário separado do político reproduz o isolamento da vida sacra sobre o qual se baseia a soberania e, o campo passa a ser o paradigma biopolítico para o qual não se encontra solução, tornando-se urgente o seu reconhecimento como uma realidade espacial. Espaço habitado por seres humanos, o campo coloca em cheque a relação entre os conceitos homem-cidadão, estado-nação e nascimento-nacionalidade, para que sejam urgentemente revistos.167 A guerra civil que divide povos e cidades da terra, só terá seu fim quando surgir uma política capaz de fazer as contas com essa cisão biopolítica fundamental do Ocidente.

No ciberespaço, banco de dados é o instrumento utilizado para essa seleção, separação e exclusão e determina a mobilidade dos que utilizam a rede. A elogiadíssima interatividade acontece na verdade one-way: a rede é para os escolhidos, que têm permissão de interagirem com seus recursos.164 Já no mundo dos excluídos do ciberespaço, os papéis se invertem e os locais observam, pela TV e outros meios de comunicação de massa, a elite global movendo-se nesse espaço inacessível. Aqui, como nunca foi visto na história, muitos vigiam poucos. Os locais se desprendem ao menos espiritualmente de suas localidades e, transportados ao ciberespaço, ligam-se à rede extraterritorial de comunicação para observar aos poucos globalizados que lhes interessam. O Panóptico forçava as pessoas à posição de vigiados. Já no Sinóptico, as pessoas são seduzidas à vigilância. Os residentes do ciberespaço vigiam através dos critérios de acessibilidade e esses são vigiados pelos habitantes da terra através dos meios de comunicação de massa. Vistos como entidades que não são “desse mundo” de locais, são admirados e cobiçados, determinam gostos, usos e costumes – uma realeza que guia, em vez de mandar: no exercício do poder, a vigilância substitui o espetáculo. Os ecos dos encontros dos segregados e separados na terra com essas entidades, através de transmissões de TVs que vem do céu, reverberam globalmente, abafando os sons locais que refletem nos muros desse mundo. Nesse momento, a solidez dos impenetráveis presídios da terra é revelada e reforçada.165 O ciberespaço

Já que a luta de classes existiu desde sempre, a saída é a busca de uma política que seja forte e inteligente o suficiente, que promova a rearticulação entre natureza e cultura. De alguma maneira temos de aprender a conviver neste mundo de tempo e espaço de diferenças. O fim da guerra biopolítica, que divide as cidades e povos da terra, significa a eliminação do campo como seu paradigma e, finalmente, a luta de classes terá seu final. Prenunciando uma era de grandes mudanças sociais, a fissura não passará impune. Somente quando conseguirmos decifrar o significado da vida pura, a política espacial será mudada e os limites impostos

70

Celma Paese

até então serão transgredidos. Nós arquitetos, profissionais capacitados em gerar soluções espaciais, devemos procurar conscientizar-nos dessa realidade, fazendo nossa parte na busca de soluções viáveis para este grande fantasma sócio-espacial do nosso tempo, o campo. Espaço que cada dia separa mais o humanitário do político, ele nos coloca em xeque em relação à postura que hoje assumimos na geração, promoção e preservação do espaço de viver. Ao buscar soluções para essa realidade, a arquitetura se tornaria um agente de libertação do sofrimento de muitos.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

5 SITUAÇÕES EM UMA NOVA BABILÔNIA “É preciso que eu me perca no mundo para que o mundo exista e eu possa transcendê-lo.” Jean-Paul Sartre

N

o pós-guerra, as preocupações com os padrões de habitabilidade tomaram forma a partir das novas tecnologias que surgiam e das oportunidades de consumo jamais vistas.

71

trica. Os planos deveriam ser vistos de uma maneira mais subjetiva, sem se prenderem tanto a índices e medidas. O resultado seriam soluções urbanas mais humanas e abrangentes. Imaginavam a cidade como uma malha móvel e fechada, onde as novas estruturas seriam agregadas conforme a necessidade e aspirações de seus habitantes. Portanto, o Cluster171 é uma estrutura que se organiza com fluência e dinamismo, que permite agregar novas estruturas e unidades para seu crescimento. Tudo isso faria o Cluster crescer respeitando os desejos dos habitantes.

Para Alison e Peter Smithson, arquitetos britânicos, mobilidade era o conceito chave para as novas propostas de planejamento urbano daquele tempo, tanto no sentido social quanto organizacional. No ensaio Mobility168, os arquitetos colocaram o carro como o símbolo máximo dessa época e principal instrumento agregador do sistema viário que formava a estrutura da Cidade Cluster.

Para os Smithsons, a sensação de liberdade que os habitantes buscam com os automóveis nas grandes cidades deve ser respeitada e cultivada. Para isso, um competente sistema viário, onde novas e velhas estruturas se integrariam às novas necessidades, seria o primeiro passo. Isso faria da cidade uma extensão das pessoas como elas sonhavam ser: livres para ir e vir. Com os trailers, não poderia ser diferente. O trailer abriu possibilidades de a habitação tornar-se barata e prática. Essa ideia também foi cultivada e aplicada no Reino Unido, e discutida pelos Smithsons em um ensaio no final dos anos 50.172

A palavra Cluster foi utilizada pela primeira vez no X CIAM, em 1956 em Dubrovinick, quando os Smithsons eram membros TEAM X. A princípio sua função era substituir grupos de conceitos como casa, rua, distrito, cidade ou ainda quadras, povoado, cidade que naquela época, estavam muito carregados de implicâncias históricas.169

A transitoriedade da época obrigava as pessoas a procurar trabalho onde houvesse e os novos meios de comunicação que começavam a aparecer faziam a realidade de carregar a própria casa tornar-se cada vez mais viável. A ideia de “casa mínima”, contida no espaço dos trailers, também mostrava o desejo de liberdade da população.

A ideia de Cidade Cluster parte do princípio de que a cidade deveria se preocupar em ser mais maleável e menos geométrica. Os Smithsons170 consideravam que as ideias da Ville Radieuse de Corbusier ainda eram sonhos válidos, porém com algumas mudanças para a nova realidade que se apresentava, de uma sociedade mais complexa e menos geomé-

A crítica dos Smithsons aos locais onde os trailers eram instalados era a falta de estrutura. As comunidades que se formavam contavam com poucos recursos práticos de higiene e conforto, além da horripilante aparência estética. Surgia uma comunidade disforme, por falta de planejamento e organização. A função dos arquitetos seria reconhecer

72

Celma Paese

as necessidades sociais e psicológicas dessas novas comunidades, reavaliar e reciclar as estruturas disponíveis. Seria necessário aliar edifícios permanentes com infraestrutura a fim de resolver os problemas que se apresentavam. Acreditavam que existiam outras maneiras de viabilizar essas novas aspirações habitacionais. A partir dessa ideia, desenvolveram uma tipologia habitacional utilizando o conceito de cápsula173, que, mais tarde, seria também desenvolvido por outros arquitetos, como o Archigram e os Metabolistas. Na França do pós-guerra, a Internacional Situacionista era um grupo formado por jovens intelectuais que criticavam duramente o cotidiano da França Pós II Guerra Mundial. Para eles, o cotidiano francês era dominado pelo espetáculo, pela passividade e pela alienação da sociedade. Jappe174, ao contextualizar esse momento histórico, considera que as rápidas e profundas mudanças que a França sofreu nas décadas de 50 e 60 mostraram claramente os motivos que levaram esses jovens a questionarem os valores impostos em seu país pelo Plano Marshall. Em 1955, foram construídos em Sarcelles os primeiros grandes conjuntos habitacionais, que se propunham a ser “habitações de aluguel moderado” e que, mais tarde, se espalhariam por todos os subúrbios franceses. Além disso, o consumo de eletrodomésticos, a primeira transmissão de TV em 1953, e o aumento do número de estudantes secundários eram referenciais que mostravam a profunda mudança social que estava ocorrendo subitamente na vida dos franceses, que literalmente viram chegar seu país à modernização capitalista em tempo recorde. Os jovens da I.S., que cresceram vendo seu país ser invadido, destruído e pilhado pelos nazistas, tornaram-se adultos muito rápido em um contexto onde a sobrevivência era a prioridade. Muitos deles

tinham – como parte do seu cotidiano – testemunhado atrocidades contra seres humanos, em nome da faxina étnica promovida pelo regime de Hitler. Buscavam desesperadamente reconstruir suas identidades e mostrar ao mundo quem eles eram. O Doutor em Nada, Guy-Ernest Debord (1931-1994), era o principal mentor intelectual da I.S. Nas palavras de Jappe175, Debord era avesso às instituições, ele não se intitulava artista, intelectual ou ativista político. Basta dizer que, enquanto a futura elite preparava sua carreira na École Normale Superieure, onde Sartre havia sido um de seus mais brilhantes alunos, o jovem Debord preferia frequentar os botecos evitados por todo o estudante respeitável, a alguns passos dali. Nesse cenário, ele começou uma trajetória que deveria levá-lo também a exercer certa influência sobre o mundo. Teoricamente, Debord deveria estar do outro lado da rua. Vindo de uma família da elite francesa, teve uma educação que lhe proporcionou uma cultura sólida. Tinha como modelos Lautréamont – que havia sido elevado pelos Surrealistas ao supremo exemplo do homem que contesta os valores burgueses – e o pré-dadaísta Arthur Cravan. Debord não tinha a pretensão de dedicar sua vida a nenhuma arte em específico ou a algum estudo universitário e, influenciado pelo Dada e o Surrealismo, pretendia que as ideias voltassem a ser perigosas. Nasceu em 28 de Dezembro de 1931 em Paris e, até se suicidar em 1994, produziu livros, manifestos, textos, filmes, ideias e movimentos. Duro crítico da sociedade francesa do pós-guerra, que se curvava ao espetáculo do desenvolvimento proporcionado pelo Plano Marshall, buscou em sua juventude resgatar uma identidade que viu ameaçada com a invasão da cultura americana na Europa. Herdeiro do Dada e do Surrealismo, também foi o mais duro dos críticos dessas ideias. Debord, além de dar forma à Internacional Situacionista, levou a França, junta-

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

mente com Jean-Paul Sartre, apesar de abominá-lo publicamente, ao movimento estudantil de 1968, o maior levante popular desde a Comuna de Paris, e também auge e marco do começo da decadência da I.S. Os membros da I.S. acreditavam que a real satisfação dos desejos humanos só seria alcançada por situações criadas pela consciência desses, tendo a cidade como cenário. Radicalmente contra o funcionalismo abstrato proposto pela Carta de Atenas, a I.S. pretendia inovar a apropriação da cidade e propôs a apropriação e uso dos territórios através da participação ativa de seus habitantes através da prática da Deriva, um jogo cheio de aventuras. Tudo para a I.S. era arte e acreditavam que todos os elementos para uma vida livre estariam presentes na cultura e na técnica existentes, o que importava era ser criativo o suficiente para identificá-los e mudar seu sentido, de maneira conveniente a seus objetivos.176 Estas ideias, surgidas nos anos 50, desencadearam todo um processo onde o lugar da arte era contribuir para um novo estilo de vida, onde a aventura é o que importa. Nas palavras de Debord, aventureiro é quem faz as aventuras acontecerem, não mais aquele a quem as aventuras acontecem.177 Jappe178, um dos mais respeitados biógrafos de Debord, considera a afirmação acima contida em um dos números da revista Letrista Potlacht179, como o resumo de toda a doutrina de Debord. Querem elevar a vida ao que a arte prometia, intensificando as sensações causadas pelas situações do cotidiano ao nível da criação artística, criando um novo urbanismo de ambiências apaixonantes. Jappe180 afirma que as décadas de entre guerras na França foram marcadas por uma notável efervescência cultural, ao contrário dos tempos após a Liberação de 1945: após um breve momento de eu-

73

foria o clima cultural e político passaram a ser cinzentos, como tardes chuvosas de outono, e sem perspectivas de novidades. O Surrealismo tornou-se um movimento decadente, absorvido pela publicidade, pela arte comercial e pelo direcionamento espiritualista de alguns membros. Apenas fora da França ele inspirou de forma indireta alguns grupos, como o COBRA, nos Países Baixos, e outros, na Dinamarca. Nesse cenário surgiram os Letristas, liderados por Isadore Isou181, que se dedicavam a resgatar ideias do Dada e dos primeiros surrealistas, fazendo pequenos escândalos e contestando a cultura convencional. O objetivo era levar até o fim a destruição da obra artística. Isou já pregava muitas ideias que caracterizariam Debord e a I.S.: ele e seu grupo tinham a convicção de que tudo deveria ser destruído para ser reconstruído não mais pela economia, mas pela criatividade generalizada. Debord juntou-se ao grupo, porém por pouco tempo. Em 1952, Debord entrou em conflito com Isadore Isou, deixou os velhos letristas e fundou, nesse mesmo ano em Aubervilliers, a Internacional Letrista.182 Com certeza aqueles jovens, alguns franceses, outros vindos da África, Bélgica, Holanda e Rússia, que em torno de 1952 se intitulavam da Internacional Letrista, bebiam exageradamente e projetavam andanças sistemáticas chamadas derivas, só se deram conta do que provocaram na ordem do mundo anos depois. Todos eles tinham em torno de vinte anos. Publicavam revistas mimeografadas, onde discutiam ideias revolucionárias para as artes. A I.S. não era um movimento isolado. Na época, a Europa via vários grupos do gênero surgindo, que discutiam literatura, cinema e artes plásticas. Tentavam preencher a lacuna provocada pela II Guerra, resgatando e revendo conceitos que as Vanguardas da primeira metade do

74

Celma Paese

século haviam discutido. A importância da I.L. foi justamente o questionamento desses valores e reconhecer, nesses novos fenômenos, os dados de base para uma nova revolução baseada na luta de classes. E o grande questionamento do Grupo era: “Estes novos meios servirão para a realização dos desejos humanos?”183 Naqueles anos, o capitalismo continuava a desenvolver suas forças produtivas e a distribuir seus resultados de modo não equitativo, como no passado. Insatisfeitos com a nova realidade e o futuro que vislumbravam, não achando graça nas meras opções consumistas que a ordem social lhes oferecia e, convencidos que suas obras permaneceriam na história, os Situacionistas decidiram romper com todos esses valores que abominavam e “[...] ao invés da vida morna que a sociedade lhes oferece, fundam sua epopeia em busca da paixão e da aventura”.184 Jappe185 chama atenção para o conceito-chave da construção do pensamento de Debord e seu grupo, o de “construção de situações”, que não podia ser realizado a partir da afirmação de dogmas, mas sim pela busca e experimentação. Para isso, a construção consciente de novos estados afetivos era alcançada através da organização coletiva de uma ambiência, criada através de um jogo de acontecimentos. A superação da arte é a ideia principal, pois acreditam que toda a técnica artística depois de inventada reduz seus utilizadores a meros imitadores. Nesse momento surgiu o conceito de Decomposição186 que era o processo pelo qual as formas culturais tradicionais destruíam a si mesmas quando apareciam meios superiores de domínio da natureza, que permitiam e exigiam construções culturais superiores. Todo o Urbanismo Unitário187 baseava-se nesse Conceito.

Essa teoria visava uma recriação global da existência através do emprego conjunto de artes e técnicas. Assim como a arte experimental era uma maneira de criticar as expressões artísticas consideradas convencionais, o Urbanismo Unitário era a proposta para mudar a maneira que as cidades destruídas pela II Guerra estavam sendo reconstruídas. Denominador comum de Cosio d’ Arroscia, o Urbanismo Unitário, abriria caminho para a nova civilização do lazer. Gilles Ivain escreveu em 1953 o texto Em Formulário para um novo Urbanismo188, expondo a Teoria do Urbanismo Unitário. Para esse novo urbanismo, a arquitetura era a maneira mais simples de articular tempo e espaço, modulando a realidade e fazendo sonhar e influindo na satisfação dos desejos humanos. No futuro, a arquitetura mudaria o tempo e o espaço se tornando, através da técnica, uma forma de conhecimento e ação. Essa proposta, ao contrário da arquitetura estática que tentava em vão integrar novos mitos com a ciência, a fim de criar cenários sem ligação com o entorno e já mortos, buscava criar novos cenários moventes. A técnica, quando utilizada a favor dessas ideias, permitiria que a arquitetura se tornasse mutante, através da interação de seus habitantes, que a modificariam segundo sua vontade. Essa civilização móvel experimentaria mil maneiras de modificar a vida em cada ambiência, revelando seus desejos e criando novos. Sendo um conceito mutante, essa nova visão de tempo e espaço nunca terminaria de ser formulada, pois a ambiência daria a liberdade de dar vazão à realização dos desejos, tornando as possibilidades infinitas. Os edifícios simbólicos representariam os desejos, forças e acontecimentos, passados, presentes e futuros e apareceriam novos motivos para a paixão, através da ampliação e da revisão dos significados das velhas instituições, como a religião, a psicanálise, e velhos mitos, a favor da arquitetura.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

Essa cidade, que reuniria ambiências como um jardim chinês habitado ou uma reunião arbitrária de castelos, grutas, lagos e pontes, seria o estágio barroco do urbanismo e seus bairros teriam funções subjetivas, como para ser feliz, para se assustar, para viver em paz, para amar. A principal atividade de seus habitantes seria a Deriva Contínua, que mudaria a paisagem de hora em hora e levaria os habitantes a um completo desarraigamento. Em poucos anos, a Cidade dos Cenários Moventes se tornaria a capital intelectual internacional do mundo e, reconhecida como tal, atrairia tantas pessoas quanto lugares destinados a jogos banais, como Mônaco e Las Vegas. Esse interesse pelo urbanismo surgiu a partir do interesse dos letristas pela Psicogeografia, o efeito que cada ambiência poderia ter nos diferentes estados de espírito: Piranesi era psicogeográfico nas escadas. Claude Lorraine era psicogeográfico nos palácios e no mar. O carteiro Ferdinand Cheval é psicogeográfico na arquitetura. Arthur Cravan é psicogeográfico na deriva acelerada. Jacques Varché é psicogeográfico na indumentária. Luís II da Baviera era psicogeográfico na realeza. Jack o Estripador era provavelmente psicogeográfico no amor. Saint-Just é um pouco psicogeográfico na política.(O terror é desorientador) André Breton é ingenuamente psicogeográfico no encontro. Madaleine Renieri é psicogeográfica no suicídio.(ver “Gritos a favor de Sade”)

75

Finalmente, Pierre Mabille na recopilação de maravilhas, Evariste Gallois é na matemática, Edgar Poe na paisagem, e na agonia Villier de L’Isle Adam.189

O grande jogo da Deriva Psicogeográfica pretendia transformar a vida cotidiana, com o objetivo de desnudar a cidade de maneira divertida. Algumas sugestões de ambiências ajudariam na prática desses jogos, como a abertura dos acessos aos telhados de Paris à noite para servirem de caminhos; ou o metrô continuar aberto depois do último trem, com uma iluminação de luzes débeis e intermitentes, para servir de passagem subterrânea; a destruição dos museus e a distribuição das suas obras de arte pelos bares, e assim por diante.190 Para haver total imersão no jogo da Deriva Psicogeográfica e manipular os sentimentos dos habitantes em um determinado espaço, induzindo ao estranhamento e desorientação através da criação de situações, seria necessário utilizar o afastamento: Debord191 chamava o afastamento de “A linguagem fluida da anti–ideologia”; sua proposta era a apropriação e reorganização de elementos pré-existentes e buscava uma desvalorização de cada elemento autônomo – que podia chegar a perder seu sentido original - e o reorganizava em um novo conjunto, dando novos sentidos a cada um. Os quadros de Jorn, os filmes de Debord e o texto da Sociedade do Espetáculo, talvez sua maior contribuição para o entendimento de como funciona a nossa sociedade até hoje, onde várias citações clássicas são distorcidas, são exemplos da estética do afastamento. Para Debord a noção de espetáculo refere-se ao modo alienado como a sociedade vivencia a cidade, em função da forma como a imagem dos elementos urbanos são percebidas. Segundo o autor, o

76

Celma Paese

espetáculo não reflete a sociedade em seu conjunto, mas as imagens são estruturadas segundo os interesses de uma parte da sociedade. A separação é o alfa e o ômega do espetáculo. [...] A origem do espetáculo é a perda de unidade no mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno revela a totalidade dessa perda: a abstração de todo trabalho particular e a abstração geral da produção como um todo se traduzem perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração.[...] O espetáculo nada mais seria do que o exagero da mídia, cuja natureza, indiscutivelmente boa, visto que serve para comunicar, pode ás vezes chegar a excessos.192

Em A Sociedade do Espetáculo193, Debord afirmou que os fundamentos para o espetáculo seriam a incessante renovação tecnológica, o seccionamento de ideias e a fusão econômica-estatal. Em 1967, Debord distinguia duas formas de espetáculo: a concentrada e a difusa. A primeira destacava o culto às ditaduras, comum na época nos regimes totalitaristas da Europa oriental, como domínio ideológico garantido através da fusão econômica-estatal. A segunda instiga ao consumo de mercadorias, promovendo a renovação tecnológica para satisfazer um mercado geralmente encontrado em sociedades de democracia burguesa do tipo tradicional, como os Estados Unidos. Em 1987, Debord constata que existe uma terceira forma de espetáculo, o espetacular integrado que tende a se impor mundialmente. Cita como exemplo a França e a Itália que, segundo ele, possuem as seguintes características históricas comuns: papel importante de partidos e sindicatos

de esquerda na vida política e intelectual, fraca tradição democrática, longa monopolização do poder por um único partido governamental, necessidade de acabar com a contestação revolucionária surgida de repente. A sociedade modernizada até o estágio do espetacular integrado se caracteriza pela combinação de cinco aspectos principais: a incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo. Portanto, o progresso da técnica tornaria possível a superação e evolução dos conceitos da estética desde que colocados em uso de maneira adequada. Assim, os Situacionistas procuraram elevar a vida ao que a arte prometia e buscaram uma nova maneira de viver e não apenas descrever essas ideias. Em 1959, Debord publicou a Teoria da Deriva na revista Belga surrealista Les Levrés Nues194 descrevendo a técnica da Deriva e sua prática: Debord195 declara que o conceito de Deriva está indissoluvelmente ligado ao conhecimento dos efeitos do reconhecimento das possibilidades psicogeográficas de um lugar (figura 19). Para isso, os praticantes da Deriva renunciavam, por um certo tempo, às suas atividades e companhias habituais, para entregarem-se às situações do terreno escolhido e aos encontros produzidos pelas variáveis psicogeográficas, que são as várias ações diretas das ambiências sobre a afetividade, como os microclimas e marcos urbanos que venham a encontrar em um determinado espaço. Na verdade, a Deriva era muito mais do que uma técnica de rápida passagem e sim um comportamento lúdico-construtivo a fim de sentir as variáveis psicogeográficas e seus efeitos nas várias ambiências. As variáveis, que delimitavam os territórios psicogeográficos, eram determinadas pelos pontos fixos e seus habitantes, definindo o tempo

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

Figura 19 - Cartaz Situacionista divulgando uma deriva Psicogeográfica

Fonte: CARERI, Francesco. Walkscapes: walking as an aesthetic practice. Barcelona: Gustavo Gili, SA, Barcelona, 2002, p. 93.

77

e a natureza da prática em cada zona. Os obstáculos e atrações do terreno escolhido, elementos que determinam a análise ecológica de cada ambiência, como os microclimas, pontos de atração física e elementos de morfologia social, eram os determinantes para as situações de encontro que ocorrem durante o tempo de deriva. A contradição da Deriva encontrava-se em seu praticante conseguir conhecer e ter domínio das variáveis psicogeográficas, causadas pelos cortes no tecido urbano para poder calcular as reais possibilidades de sua prática. Portanto, a Deriva só poderia ser praticada em sua plenitude em terrenos já conhecidos, embora seja uma atitude de exploração e descoberta de possibilidades em uma ambiência. O acaso na Deriva196 era colocado como um fator tão importante quanto a observação psicogeográfica, sendo que o progresso da ação era medido conforme consegue-se avançar através desses fatos, criando circunstâncias favoráveis para a continuidade do percurso e não deixando que a descoberta de atrações psicogeográficas fixasse o sujeito ou o grupo derivante em torno de eixos habituais onde andariam em círculos e fixariam hábitos, degradando o prazer dessas ações para necessidades, impedindo a realização de desejos autênticos que só são possíveis de serem identificados com o controle de seu próprio ambiente e de todos os meios materiais e intelectuais, tornando possível converter todas as atividades produtivas em jogo. Sendo assim, toda a ação se tornaria uma aventura.197 Debord criticou as deambulações surrealistas que ocorreram em campo aberto, limitando as chances da ocorrência de situações ocasionais típicas do espaço urbano e definiu a Deriva como o polo oposto de tais aberrações, pois considerava que deambular em campo aberto era naturalmente depressivo. Debord citou como exemplo a deambulação de 1923,

78

Celma Paese

que começou, como já descrevemos anteriormente, em uma cidade escolhida ao acaso e seguiu pelo descampado. Com essa afirmação, Debord ignorou textos surrealistas importantes como O Camponês de Paris de Aragon, Nadja e O amor louco de Breton, de caráter essencialmente urbano. Usou198 o exemplo de gerinos em um aquário circular para ilustrar a importância do isolamento de influências de guias externos na experiência. Debord considerava os gerinos bem mais livres do que os Surrealistas, pois estes, no aquário, poderiam ser independentes uns dos outros, livres, em seu meio, tanto social quanto sexualmente; e utilizou esse exemplo para justificar a prática da Deriva em grandes cidades industriais, uma ambiência em transformação constante cheia de possibilidades e significados, onde cada indivíduo tem a possibilidade de identificar suas reais necessidades, criando seu jogo particular. Ele considerava que o caráter urbano da Deriva em contato com as possibilidades e de significações que as grandes cidades transformadas pela indústria proporcionavam tinha relação com a experiência proposta pela frase de Marx: “Os homens não veem nada em torno de si que não seja o próprio rosto, tudo lhes fala dele mesmo. Até a paisagem é algo vivo”.199 Se Debord buscava responder a Marx através da Deriva, sua teoria servia para justificar sua busca pessoal: apesar das duras críticas aos Surrealistas, essa dimensão tornou-se implícita em toda a sua obra quando buscou através das situações de jogo identificar-se com as diversas ambiências onde esses jogos eram propostos, enxergando a si mesmo em cada prática. Debord ainda recomendou que a Deriva devia ser praticada em pequenos grupos de não mais do que duas ou três pessoas para a prática não se frag-

mentar em derivas simultâneas e que essas estivessem no mesmo estado de consciência para haver a possibilidade de troca de experiências que ajudassem a chegar a conclusões objetivas. A duração média do exercício era de um dia, sendo este período calculado como o intervalo entre um período de sono prolongado e outro. O único horário não recomendado para sua prática era o final da madrugada. A prática consecutiva de vários períodos seguidos de Derivas, como quatro a cinco dias consecutivos, poderia dificultar a concentração dos praticantes na atividade, assim como estes esquecerem as sensações experimentadas nos primeiros períodos em deferência aos últimos, pelas novas condições objetivas de comportamento que fossem aparecendo. As condições climáticas variáveis seriam bem-vindas, com a exceção das chuvas prolongadas que tornariam a Deriva proibitiva. O campo espacial da Deriva seria determinado a partir das possíveis atividades a serem desenvolvidas em um terreno e seus resultados afetivos desorientadores. Esses aspectos nunca ocorrem em estado puro por apresentarem diferentes interferências pessoais e de ambientes. Para haver um ponto de partida bastante claro e facilitar a desorientação pessoal, uma das práticas que os Situacionistas sugeriram foi o uso do táxi, comentado por Michele Bernstein: [...] se durante uma deriva toma-se um táxi, seja para um destino certo, seja para um trajeto de vinte minutos na direção oeste, é sinal de que a busca é de uma desorientação pessoal. Se o que importa é a exploração direta de um terreno, aciona-se a pesquisa de urbanismo psicogeográfico.200

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

O campo espacial da Deriva começava no ponto de partida estabelecido e nunca iria além de uma cidade e seus subúrbios, sendo determinado um mínimo de um bairro ou quarteirão. Em casos extremos, o mínimo seria uma deriva estática que ocorresse em uma estação de trens, por exemplo. Depois de estabelecido o campo espacial, as linhas de penetração eram determinadas pelo estudo de mapas convencionais, ecológicos ou psicogeográficos, podendo esses ser modificados ou melhorados durante a prática. No caso de bairros desconhecidos ou nunca percorridos, cada um intervém à sua maneira. Em o Encontro Possível, outro tipo de prática de Deriva, a importância do campo espacial é mínima em relação à desorientação proposta. Um exemplo dessa prática é determinar que um praticante da Deriva ou um grupo se dirija a um local pré-determinado, onde talvez esta pessoa encontre ou receba o telefonema de alguém que não conhece, que apareça ou não. O importante é prestar atenção e observar o entorno, que talvez possa dar novas pistas para o jogo de situações proposto. Isso pode ocorrer a partir de uma conversa com um desconhecido ou um telefone público que toca. No jogo do Encontro Possível o importante é prestar atenção nas possibilidades de encontro, inesperadas, que se tornam quase que infinitas. Debord ainda escreve que esse estilo de vida também inclui criar algumas situações consideradas inusitadas e de má reputação como a exploração dos prédios em demolição, andar de carona sem rumo por Paris em uma greve de transporte com o objetivo de aumentar a desorientação, ou ainda vagar por subterrâneos e catacumbas fechadas ao público. Todas as sensações causadas por essas situações são as causadas pelas experiências de Deriva descritas acima, sendo que, o que poderia ser escrito sobre elas

79

seriam apenas senhas para esses jogos. As lições da Deriva permitem estabelecer os primeiros levantamentos das articulações psicogeográficas de uma cidade moderna. Além do reconhecimento de unidades de ambiência, de seus componentes fundamentais e de sua localização espacial, percebem-se os principais eixos de passagem, as saídas e defesas. Chega-se à hipótese central de plaques tournantes psicogeográficas. Medem-se as distâncias que separam de fato duas regiões de uma cidade, distâncias bem diferentes da visão aproximativa que um mapa pode oferecer. É possível estabelecer – com a ajuda de velhos mapas, fotos aéreas e derivas experimentais – uma cartografia influencial que falta até o momento, e cuja incerteza atual, inevitável até que se efetue um imenso trabalho, não é pior que a dos primeiros portulanos e com uma diferença: não se trata de delimitar exatamente continentes duráveis, mas de mudar a arquitetura e o urbanismo.201

Assim, mais uma vez é citado um objetivo para a aplicação dessa teoria: redesenhar a cidade, a partir da análise das cartografias existentes e da utilização de cartografias influenciais, criadas a partir de derivas. Os diferentes microclimas, ambiências e bairros residenciais da cidade não estão devidamente definidos e são rodeados de zonas de fronteira que se estendem em maiores ou menores graus. As mudanças que seriam propostas ajudariam a diminuir essas zonas até sua supressão completa através da prática de jogos que manifestariam a ação direta de cada ambiência sobre a afetividade dos participantes. O

80

Celma Paese

gosto pela deriva também possibilita explorar todos os tipos de labirintos gerados pela arquitetura, mesmo os mais inesperados, como a Deriva no interior de um apartamento. A Deriva não tinha o objetivo de ser arte em si, mas sim de criar situações de arte. A psicogeografia seria uma prática geográfica afetiva e subjetiva que se propunha a cartografar as diferentes ambiências psíquicas provocadas pelas caminhadas urbanas que eram as derivas situacionistas. Debord negava terminantemente ser herdeiro dos surrealistas, mas é impossível ignorar sua ligação com ideias que Breton prenunciou quando, ainda nos anos 20 e 30 do Séc. XX desenhava mapas que exprimiam suas percepções subjetivas dos trajetos de suas deambulações, como já foi colocado no capítulo anterior deste trabalho. Em 1996, Doran202 escreveu um artigo na revista Architectural Design sobre a aplicação das ideias da Deriva em uma jornada através das “Zonas Mortas” da terra, revelando o potencial de uma “Arquitetura de Transgressão”, documentando os espaços vazios entre as cidades. Doran começou sua experiência em Singapura, um lugar que define como não apropriado para essa prática. Este lugar representa a ideologia da produção, habitado por uma sociedade onde o experimental e o imprevisível estão ausentes. Assim, ao invés de praticar a Deriva, ele foi fazer compras. Ao chegar ao shopping escolhido, um edifício de cinco andares com uma galeria vertical, observou que era monitorado desde a sua chegada por uma câmera que o seguia. Ao passear pelos corredores, Doran notou que a maioria daquelas pessoas não estava exatamente comprando mercadorias, mas sim,

concentrando-se no grande atrium central, observando-se. O grande Mall era, na verdade, um grande playground sexual. O principal marco espacial do lugar era o atrium central, lugar onde a grande transgressão era cruzar de um lado a outro, momento em que todos observavam uns aos outros. Alguns se encontravam e logo desapareciam, outros ficavam. Esses eventos, não reconhecidos como uso oficial do espaço, eram os que faziam esse espaço tomar forma, estrutura. Uma arquitetura de constante Deriva, de transgressão. Nos anos 90, quando Doran trabalhava como repórter de arquitetura em Tel Aviv, foi à apresentação do novo plano de desenvolvimento da cidade. O arquiteto desse novo plano, falava da existência de Zonas Mortas na cidade. Resolveu visitá-las no mesmo dia e chegou à conclusão de que elas eram muito mais excitantes do que a descrição feita anteriormente. A área consistia em um velho porto, uma área para feiras abandonada, uma usina de eletricidade e uma vila Palestina, em ruínas, entre o mar e o estuário do Rio Há’ Yarkon. Praticando a Deriva nessa área, essa Zona Morta revelou muito mais do que a história não escrita até então, invalidando o que o mapa oficial havia exposto: os moradores da vila eram squatters203 e alguns descendentes dos antigos habitantes, com direitos legais sobre as casas habitadas. A praia não tinha fiscalização alguma e, durante o dia, era um lugar de prática do nudismo. À noite, crianças lá brincavam e faziam fogueiras. A antiga feira, no seu exterior, era usada para a prática e comércio de sexo e, em alguns dos pavilhões, aconteciam raves204. Uma ponte abandonada era usada para a pesca. Havia vegetação por toda a parte, mas claro, nenhum jardim.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

Essa era a dita Zona Morta da cidade oficial, que estava a apenas 500 metros dali. A Arquitetura da Transgressão havia tomado conta do local, que fora ignorado deliberadamente pelos planejadores oficiais da cidade. Seus ocupantes estavam ali, contestando toda e qualquer metodologia de design urbano: os squatters, os pescadores, as prostitutas e seus clientes, as crianças, os ravers. A Arquitetura da Transgressão vai muito além do método, ela surpreende. Doran205 encontrou os squatters por todo o mundo, invariavelmente em áreas de transgressão, nas grandes cidades: Uma das mais antigas comunidades de invasores, que persiste até hoje, é Christiania. Em 1970, um grupo de anarquistas, ativistas locais e hippies, invadiram antigos barracões do exército, abandonados, no centro de Copenhagen. Hoje, Christiania é a segunda atração turística do país. Com um governo baseado nos moldes anarquistas, é uma vila residencial onde se misturam todas as etnias, idades, classes sociais e tendências sexuais. No pavilhão Holandês da Bienal de Arquitetura de Veneza de 1996, o velho porto de Amsterdã foi descrito como um lugar abandonado, que seria reciclado, a partir de um plano oficial, para uso da comunidade local. Na verdade, essa reciclagem já é uma realidade: além de uma zona de artes e diversões inusitadas, o porto abriga comunidades muito animadas de squatters, que muitas vezes modificam os espaços dos galpões de maneiras inesperadas e divertidas, são prostitutas e pessoas que moram nos barcos ancorados por ali. Em Chicago, a Maxwell Street e seus arredores, sempre teve uma existência movimentada: já foi um gueto judeu e de negros. Berço do jazz eletrôni-

81

co é um lugar de destruição construtiva nos últimos 20 anos. Os squatters locais transformam a paisagem das ruas, criando jardins e obras de arte coletiva. Existe um plano oficial para a demolição da área. Em contraste com as cidades ocidentais, os squatters asiáticos invadem terras, não edifícios. Eles constroem pequenas casas, criando assentamentos que lembram pequenas vilas residenciais. Em Kuala Lapur, entre o New World Hotel e o Hotel Renaissence, existem uma dessas vilas. Está estabelecida no local há 30 anos, quando a área ainda não era construída, e hoje se encontra em uma área supervalorizada. Em Bangkok, os squattes constroem a 60 centímetros da linha de trem, que passa por lá duas vezes por dia. Em Nova York, no Lower East Side, 700 lotes abandonados entre edificações pertencentes à Prefeitura foram invadidos e transformados pelos moradores do bairro em jardins e hortas, praças e locais para exposições de arte e performances. Em 1997, ignorando o que já estava feito, o prefeito Giuliani resolveu colocar as áreas à venda. A atriz Bette Midler comprou 400 desses lotes, para preservar a iniciativa. No West Side de New York existe uma linha de trem elevada abandonada que também foi transformada em jardim. Quando Doran perguntou a uma velha senhora das redondezas como poderia chegar ao jardim, ela disse que era proibido, mas que adoraria que aquele lugar fosse transformado em jardim ao invés de ser demolido... Em Pequim, apesar do desenvolvimento planejado e do plano diretor rigoroso, Doran encontrou esses “jardins transgressores” em um local improvável, na sua área mais industrializada, ao sul da cidade. Nessa área havia uma vila, que foi vendida para um construtor que faliu, e a área acabou voltando para as mãos da prefeitura. Nos últimos tempos, esse espaço está sendo utilizado para plantar árvores

82

Celma Paese

e verduras pelos operários das fábricas vizinhas. Esses fatos incitam ao estranhamento do espaço da cidade, assim como o filme Encontros e Desencontros206. No filme, Bill Murray e Scarlett Johansson fazem o papel de dois americanos que se hospedam no mesmo hotel em Tóquio e têm em comum a insônia e o estranhamento: aterrisam naquela cultura quase que por acaso, embrenhando-se no labirinto da busca da própria identidade. Para eles, naquele momento, o mundo todo é estranho. Estar no Japão é só um pretexto para detonar o processo. Estão perdidos no fuso horário, na cultura, no idioma, e precisando com urgência encontrar a si mesmos. Construir situações significa produzir novas possibilidades de explorações de territórios que mostram outras opções de viver e habitar. Tudo o que você precisa é se perder na sua própria cidade. 5.1 L’Archipel Influential Em 11 de Junho de 1954 na Galerie du Passage, os Letristas inauguraram a exposição das 66 metagrafias influenciais que tinham a intenção de concretizar representações dos espaços subjetivos das Derivas. Careri207 lembra que A Teoria da Deriva se propôs a “descrever uma cartografia influencial que até então não haveria existido”, que já havia sido antecipada nos estudos de André Breton e que nessa mostra começava a se concretizar. As metagrafias influenciais de Gil J. Wolman eram colagens de imagens e frases recortadas de jornais. Em contrapartida, a de Gilles Ivain era uma planta de Paris com fragmentos sobrepostos de ilhas, arquipélagos e penínsulas recortadas de um mapa mundi. Os outros lugares estavam em

toda a parte, incluindo Paris. Três anos mais tarde, em 1957, como documentos preparatórios para a fundação da Internacional Situacionista, Asger Jorn e Guy Debord prosseguem com seus livros Fin de Copenhagen e Memórias a direção das metagrafias. As manchas informais de Jorn simulam a costa dinamarquesa povoada por símbolos de consumo, enquanto os esboços de Debord, a meio caminho entre as memórias e amnésias urbanas, parecem trilhas de deriva que atravessam fragmentos da cidade. Guy Debord novamente deu a forma final dessas ideias, elaborando sua síntese: Guide Psicogeográpique de Paris208 (figura 20), que foi o primeiro mapa psicogeográfico Situacionista assinado por ele. Aparentemente parece um mapa que se distribui para turistas, mas com a característica de incitar o usuário a perder-se, usando o imaginário do turismo e dispondo, em um grande vazio, fragmentos de ilustrações de monumentos e centros históricos sendo indicada sua conexão por um pontilhado de flechas, unindo as unidades de ambiência. Sua intenção é que a exploração da cidade deve passar pela experiência subjetiva de sentir cada lugar a partir das sensações que este induz em cada um. No mesmo ano, Debord publicou mais um mapa, The Naked City: Illustration de l’hypothèse des plaques tournantes em psychogéographic209 (figura 21), que talvez seja a melhor e mais famosa ilustração do pensamento urbano situacionista, a melhor representação gráfica da psicogeografia e da deriva, e também um ícone da ideia de Urbanismo Unitário. Sua estrutura é semelhante ao Guide Psicogeográphique e é composto por vários recortes do mapa de Paris em preto e branco, que são as unidades de ambiência, e setas vermelhas que indicam as ligações possíveis entre essas diferentes unidades. Entre elas, o vazio representa a amnésia urbana, propõe que a unida-

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

83

Figura 20 - Guide Psicogeográphique

Fonte: CARERI, Francesco. Walkscapes: walking as an aesthetic practice. Barcelona: Gustavo Gili, SA, Barcelona, 2002, p. 107.

84

Celma Paese

Figura 21 - The Naked City, 1957, Guy Debord, mapas psicogeográficos

Fonte: CARERI, Francesco. Walkscapes: walking as an aesthetic practice. Barcelona: Gustavo Gili, SA, Barcelona, 2002, p. 107.

de da cidade só pode ser resultado da conexão das lembranças fragmentadas. A cidade forma uma paisagem psíquica construída ao redor de buracos: há partes inteiras esquecidas ou deliberadamente eliminadas, com a finalidade de construir, nesse vazio, infinitas cidades possíveis. As unidades estão colocadas no mapa de forma aparentemente aleatória, pois não correspondem à sua localização no mapa da cidade real, mas demonstram uma organização afetiva desses espaços ditada pela experiência da deriva. As

setas representam essas possibilidades de deriva. O título do mapa, The Naked City, também escrito em letras vermelhas, foi tirado de um film noir americano homônimo. O seu subtítulo, Ilustration de l’hypothèse des plaques tournantes, fazia alusão às placas giratórias (plaques tournantes) e manivelas ferroviárias responsáveis pela mudança de direção dos trens, que sem dúvida representavam as diferentes opções de caminhos a serem tomados nas derivas210.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

Aragon já fazia referência a Paris como sendo um imenso oceano de líquido amniótico onde formas de vida surgiam espontaneamente, assim como as ilhas e continentes já existiam nas metagrafias de Gilles Ivain. Mas a figura de referência do arquipélago só aparece claramente nos mapas de Debord, assim como muitos dos termos utilizados fazem referência a ele como as placas flutuantes, as ilhas, as correntes, os vórtices, e, sobretudo o termo Deriva. As ideias da Deriva Situacionista tomaram forma nos projetos para a Nova Babilônia do arquiteto holandês Constant. Careri211 afirma que, enquanto nos mapas de Debord a cidade era um arquipélago, nos de Constant os pedaços se juntaram e formaram um grande campo para a Deriva. No texto “Outra cidade para outra vida”212, Constant contextualizou suas ideias sobre urbanismo a partir das teorias da IS. Suas ideias aproveitavam todas as possibilidades que as cidades existentes ofereciam para corresponder á uma nova dinâmica de vida, onde os comportamentos estão em constante mudança. Sua proposta é a socialização, opondo-se ao modelo modernista de cidade jardim com torres isoladas que separam seus habitantes. Ao visitar um campo de nômades numa terra que pertencia a Pinot-Gallizio, Constant encontrou um aparato conceitual completo com o qual sentiu ser possível refutar as bases sedentárias da arquitetura funcionalista e dar continuidade à conceituação do Urbanismo Unitário. No momento em que começou a trabalhar no projeto para os ciganos de Alba, ele rapidamente estava apto a imaginar a cidade designada para uma nova sociedade nomádica. As séries de modelos que construiu até meados de 1970 representavam a visão de um mundo que, depois da revolução, seria habitado pelo Homo Ludens. Este, livre da escravidão do trabalho, poderia explorar e, ao mesmo tempo, transformar a paisagem circundante em um grande trabalho coletivo do Urbanismo

85

Unitário onde os espaços iriam além da arquitetura, as novas sociedades nômades do futuro assumiriam a cidade como um grande playground de situações dos desejos humanos. Nessas sociedades, o conjunto de todas as artes construiria uma ambiência em que seus habitantes redescobririam o prazer de construir seu próprio lugar de habitar e viver. Em 1959, no Stedelijk Museum, Amsterdam, a IS apresentou o projeto de transformar algumas salas em labirintos com uma Deriva simultânea pela cidade, prenunciando a apresentação de Constant da Nova Babilônia, baseada nos princípios do labirinto mutante: O labirinto como concepção dinâmica do espaço, oposto à perspectiva estática. Mas também e, sobretudo, o labirinto como estrutura de organização mental e método de criação.213 Em 5 de março de 1959, o diretor do museu aprovava, com restrições214, o plano definitivo. Os Situacionistas transformariam as salas 36 e 37 do museu em um labirinto projetado pela seção holandesa da IS e variando seu percurso entre 200 metros e 3 quilômetros. O teto tinha o pé direito variando de 5 metros a 1, 22 metros. Procurando misturar características climáticas internas e externas haveria efeitos especiais como chuva, vento e neblina. Também haveria intervenções sonoras e provocações como portas que se abririam e fechariam sozinhas, aumentando as ocasiões de perder-se. Haveria também “obstáculos puros” como um túnel de pintura industrial de Pinot-Galizio e paliçadas desviadas de Wyckaert. Ao mesmo tempo, três dias de Deriva sistemática ocorreriam com dois grupos simultâneos que a praticariam na zona central de aglomeração da cidade. O percurso seria feito a pé ou de barco, dormindo nos hotéis do caminho. Os grupos se comunicariam com walkie-talkies, ainda havendo um

86

Celma Paese

caminhão-rádio, onde Constant, o líder da Deriva, acompanhado da equipe de cartografia, anotaria as trajetórias e daria eventuais instruções que fossem necessárias. Também caberia a Constant a preparação da experimentação de alguns locais e acontecimento secretamente dispostos. Perante as restrições impostas pelo diretor, a IS declinou da oportunidade e adotou em abril outro projeto de labirinto, de autoria de Wyeckaert, profundamente modificado do projeto original, mas que deveria ser edificado em um terreno vago, na área central de uma grande cidade, a fim de ser ponto de partida de Derivas. Mas esse acidente de percurso não desanimou Constant que dentro de muito breve, no mesmo museu, faria sua apresentação histórica do projeto da Nova Babilônia. Na revista Architectural Design215, o historiador da arquitetura Mark Wingley descreve o momento em que, em 1960, Constant escolheu revelar sua visão de uma Nova Babilônia para uma plateia no Stedelijk Museum em Amsterdam. Uma apresentação forte, com inúmeras imagens e planos acompanhados por uma trilha sonora ambiente, enunciaram uma figura assustadora e muito realística de um urbanismo a ser inteiramente consumido. A própria descrição de Wingley evidencia a atmosfera instigante das ideias que envolveriam um novo tipo de experiência de cidade, e apresenta-se a Nova Babilônia: 20 de dezembro de 1960. 8:15 da noite. Amsterdam. Uma sala apinhada no Stedelijk Museum espera pelo artista de 40 anos Constant Nieuwenhuys. Um projetor de slide e um grande gravador estão atrás da plateia. Constant entra, fica em pé em frente às máquinas, e descarrega uma apresentação de meia hora sobre ‘urbanismo uni-

tário’. O tom é militante. Todos se tornam arquitetos, praticando um ‘urbanismo unitário’ sem fim e de total abrangência. Nada será fixo. O novo urbanismo existe no tempo, é a ativação do temporário, do emergente e do transitório, do mutável, do volátil, do variável, do imediatamente satisfatório. Um vínculo intimador do desejo e do espaço produzirá um novo tipo de arquitetura para uma nova sociedade. O conferencista anuncia que tem uma particular visão sobre sua inquieta arquitetura, um projeto ‘imaginário’ chamado ‘Nova Babilônia’, que ele revelará mais adiante. Enquanto isso, a platéia ouve uma análise do impacto psicológico do desenvolvimento urbano. [...] À medida em que o mundo se torna uma única cidade vasta e em explosão, gradualmente a população tem menos e menos lugar para onde se mover, uma nova relação entre espaço e psicologia é exigida: ‘o que nós perdemos em espaço geométrico devemos recuperar em forma de espaço psicológico’. Uma forma especial de pesquisa deve ser desenvolvida, uma ‘psicogeografia’ das influências inconscientes da atmosfera urbana. [...] Alguns detalhes do projeto começam a emergir. Nova Babilônia deve ser uma cidade coberta, suspensa muito acima do chão em enormes colunas. Todo o tráfego de automóveis é isolado no plano do chão, debaixo de onde trens e fábricas totalmente automatizadas estão enterrados. Enormes estruturas de diversos níveis, de 5 a 10 hectares de área, amarradas juntas numa corrente que se espalha sobre a paisagem. Esta ‘expansão sem fim’ do espaço interior é iluminada artificialmente e com

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

ar condicionado. A seus habitantes é dado acesso a poderosos recursos de criação de ambiência para construir seus próprios espaços quando e onde eles desejarem. As qualidades de cada espaço podem ser ajustadas. Luz, acústica, cor, ventilação, textura, temperatura e umidade são infinitamente variáveis. Andares móveis, partições, rampas, pontes e escadas são usados para construir ‘autênticos labirintos das formas mais heterogêneas’ em que o desejo interage continuamente. [...] A luz se apaga. A sala é preenchida por um estranho barulho ininteligível. Uma enorme planta de arquitetura é projetada na parede. Ela mostra uma rede de estruturas retangulares longas, finas, ziguezagueando como dominós através de uma paisagem laranja coberta por um vermelho amorfo e borrões verdes. A rede situa-se no topo de uma teia ainda mais intrincada de linhas pretas que correm para todas as direções com o que parecem ser curvas bem onduladas de alta velocidade. [...] As interseções se multiplicam. Tudo está conectado. [...] As qualidades dos espaços particulares permanecem obscuras; somente um senso geral de diversidade num mais ou menos regular mas labiríntico sistema pode ser percebido. A imagem está lá só por um segundo. Outra planta aparece. É obviamente o mesmo projeto – uma vista mais aproximada. Lâminas grosseiras deram lugar a linhas precisamente medidas. Os espaços são mais complexos, estendendo-se em sua organização do completamente aberto ao densamente embrulhado, com labirintos. Até o tipo do labirinto varia.

87

[...] Depois que mais de 100 imagens foram mostradas, a última repentinamente evapora e a luz retorna. A plateia ainda está piscando quando um grito isolado de ‘Bravo’ é ouvido. Mas na extensão da discussão que se segue, há protestos. Nova Babilônia pode ser o caminho libertador do futuro, ou pode com a mesma facilidade ser uma prisão do prazer do pesadelo High Tech. De qualquer forma, é um choque.216

Em junho de 1964, quatro anos depois da apresentação do Stedelijk Museum, a revista AD publica um artigo de Constant, proveniente de uma palestra conferida no ICA de Londres, onde é possível perceber uma notável mudança de rumo de seus pensamentos, que agora expressavam uma nova preocupação com a importância do jogo na cultura, numa referência ao Homo Ludens de Huizinga.217 Nesse artigo, Constant comentava os problemas da cultura de massa a partir do início do século XX, na nova era da relação produção-trabalho. Ele então chamou a atenção para o fato de que, em teoria, não haveria ação reproduzível que não possa ser feita pela máquina, e por tal razão, a única atividade que permaneceria livre da automação era o ato da imaginação. Dentro da nova lógica estabelecida de trabalho e uso do tempo livre, Constant218 pergunta como os homens do futuro utilizarão suas energias ilimitadas. Assim, ele compara o Homo Ludens de Huizinga ao Homo Ludens do futuro, a quem se dirige a Nova Babilônia: se antes o homem teria que viver sem contato com outros como única forma de manter a nova realidade que havia escolhido – e assim era reconhecidamente diferente de quem continuou sua vida “utilitária” normal – ao contrário, o Homo Ludens do futuro seria um homem comum, um tipo

88

Celma Paese

normal de ser humano que, no seu jogo existencial, construiria a realidade que ele desejasse. Isso significaria uma verdadeira revolução do comportamento social, em que as pessoas não estariam forçadas a produzir e trabalhar quando não o quisessem, sendo livres para circular, mudar de ambiente e expandir sua área, numa nova relação com o espaço, agora tão livre quanto sua relação com o tempo. Nesse sentido, Nova Babilônia representa o contexto em que o Homo Ludens do futuro deverá viver, uma vez que somente um ambiente baseado não na utilidade, como têm sido as cidades até então, poderá corresponder às diferentes necessidades e à criatividade de cada um. As características de um cenário favorável a tal mudança de comportamento social que Constant propõe são as da flexibilidade, mutabilidade e movimento. Por isso é importantíssimo entender que a Nova Babilônia pode ser estruturada em qualquer lugar (figura 22): Na Nova Babilônia, a urbanização consiste em um sistema coerente de unidades cobertas que chamo de setores, entre os quais há grandes espaços verdes abertos, onde ninguém mora e onde nenhuma edificação deve ser encontrada. Este sistema em rede é ilimitado e poderia, teoricamente, cobrir toda a superfície da Terra. Por causa do uso intensificado que é feito do espaço, cada campo individual de atividade praticamente não possui limites. O setor em si – cujas dimensões são muito maiores do que as das construções que hoje existem – é um sistema espacial de níveis que deixam o nível do chão livre para o tráfego rápido e intenso. No topo dessa estrutura deverão existir aeroportos ou heliportos para assegurar a pas-

sagem rápida para grupos de setores em outras partes do mundo. Os pisos dos setores são primariamente vazios. Eles representam uma espécie de extensão da superfície da Terra, uma nova pele que cobre e multiplica seu espaço de viver. O caráter não funcional dessa construção tipo playground faz qualquer divisão lógica dos espaços íntimos sem sentido. Ao invés disso, nós devemos pensar numa disposição quase caótica dos espaços menores e maiores, que são constantemente reunidos e separados devido aos elementos da construção móvel estandardizada como paredes, pisos e escadas. Assim o espaço social pode ser adaptado a qualquer necessidade de mudança de uma população em constante mudança enquanto passa por um sistema de setores. Não estaria em questão nenhum padrão de vida fixo, uma vez que a vida em si seria um material criativo. [...] a vida na Nova Babilônia deveria ser essencialmente nomádica. 219

Constant também estuda a questão do espaço em relação ao movimento que é gerado a partir de seu uso: No reino do Homo Faber o espaço é estático, este não pode perder tempo em deslocamentos porque precisa utilizá-lo ao máximo na produção. Ele valoriza cada vez mais o espaço, na medida em que alcança este objetivo. Segundo Constant, “por este motivo, todas as concepções urbanísticas, até o presente, partem da orientação.”220 Fazendo um estudo a partir do labirinto, onde segundo Constat, “[...] a essência mesma do labirinto é circunscrever no menor espaço possível o mais completo emaranhamento de veredas e retardar assim a chegada do viajante ao cen-

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

89

Figura 22 - Constant, Paris Nova Babilônia

Fonte: ANDREOTTI, Libero; COSTA, Xavier (Ed.). Situacionistas, arte, política e urbanismo. Barcelona: Museu D’Art Camtemporani de Barcelona, ACTAR, 1996, p. 87.

90

Celma Paese

tro que deseja atingi”.221 Constant define que um labirinto estático é um espaço onde a desorientação é perseguida conscientemente, os espaços são percorridos uma única vez, rapidamente, não havendo a possibilidade de mudança. Alguns labirintos mais sofisticados possuem armadilhas, como caminhos sem saída e pistas falsas, mas segundo o autor “ [...] existe somente um único caminho correto, que conduz ao centro. Este labirinto é uma construção estática que determina os comportamentos.”222 Por esse motivo, torna-se um jogo previsível. No reino do Homo Ludens, onde atividades lúdicas são elaboradas a partir da manifestação da criatividade das grandes massas, o espaço estático é incompatível com as constantes mudanças de comportamento que acontecem em uma sociedade sem trabalho. O espaço muda conforme os desejos de seus habitantes, porque ele se converte em um objeto de jogo [...] aventura e exploração.223 Não existindo a necessidade de deslocamentos rápidos, o espaço pode ser mais rico e mutante, com os usos intensificados, favorecendo a desorientação, tornando-o mais dinâmico. Portanto, em uma sociedade lúdica, a urbanização tenderá automaticamente ao caráter do Labirinto Dinâmico. Constant assim define o Urbanismo Unitário, conceituando Labirinto Dinâmico.224 A liberação do comportamento exige um espaço social, labiríntico, e, ao mesmo tempo, continuamente modificável. Não haverá um centro que se deve chegar, mas muitos centros em movimento. Não se tratará mais de extraviar-se no sentido de ‘perder-se’, mas no sentido positivo de ‘encontrar cami-

nhos desconhecidos’. O labirinto muda de estrutura com a influência dos extravios. É um processo ininterrupto de criação e desestruturação o que chamo de labirinto dinâmico.225

Não se conhece nada sobre labirinto dinâmico. Entende-se que não se poderá prever ou projetar um processo dessa natureza se, ao mesmo tempo, não se pratica, onde é impossível a sociedade conservar seu caráter utilitarista. A criação e a recreação continuam nos modos de comportamento que requerem a construção e reconstrução infinita de seu design. 5.2 Arquitetura móvel nos anos 60 Os anos sessenta proclamaram a revolução na comunicação, dando os primeiros passos para a era da informática226. Também descobriu a introspecção corporal, valorizou a vida em comunidade, a vida ao ar livre. As casas eram para dormir, foi quando surgiram as primeiras células e cápsulas de morar. Os espaços públicos eram lugares para viver e sonhar. A rua tinha um papel fundamental nas relações sociais, com espaços onde a vida pública era fomentada e o culto ao trailer um símbolo do novo nomadismo. O movimento Hippie, principalmente nos Estados Unidos faria o “trailer-way-of-life” tomar forma de uma maneira nunca esperada (figura 23 e 24). E nada mais seria o mesmo. Os jovens americanos, que no início dos anos 60 já tinham uma educação que incitava à liberdade de expressão, foram crescendo, tornando-se críticos e contestadores. No intento de mudar o mundo, criaram uma sociedade baseada na paz, amor e arte:

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

inspirados em filósofos como Thoureau227, juntaram à cultura Beat e Situacionista o rock e os blues, acrescentaram as drogas, trocaram o preto pelas cores do arco-íris, a cultura pela contracultura, o ateísmo pela religião oriental. E assim surgiu o movimento Hippie, que tinha a intenção de acabar com todos os sentimentos e atos ruins que cobriam o planeta Terra. Aqueles jovens acreditavam que o sonho existia. Fatos como a primeira grande Reunião das Tribos Hippies, em São Francisco, Califórnia, mais exatamente no Golden Gate Park no início do verão de 1967, e a Grande Marcha ao Pentágono, em novembro do mesmo ano, protestando contra a Guerra do Vietnã, foram fatos que marcaram aqueles tempos. Também os grandes festivais de rock, como Monterrey Pop e Woodstock não podem ser ignorados228. Para MacLuhan229 os meios de comunicação são formas artísticas que têm o poder de impor, assim como a poesia, seus próprios pressupostos. Os novos meios de comunicação, como o rádio, a TV, o cinema, as histórias em quadrinhos, remodelam, à sua vontade, o que resta do mundo antigo e os filhos do homem tecnológico respondem com prazer à poesia dos novos meios. Na arquitetura, uma das manifestações mais importantes dessas mudanças, está na obra do Grupo Archigram. O Archigram teve como influência marcante na formação de suas ideias a cultura Beat. O inconformismo com o American Way of Life, foi o que desencadeou o movimento cultural que marcou o final dos anos 50 nos Estados Unidos e preparou a contracultura da década seguinte. No meio universitário inglês, as ideias de Jack Kerouack e seus contemporâneos passaram a influenciar grupos de vanguarda como o Archigram. Esse inconformismo

91

Figura 23 - Comunidade Hippie em Sun Fair, Califórnia

Fonte: SIEGAL, Jennifer (Ed.). Mobile: the art of portable architecture. New York: Princeton Architectural press, 2002, p. 12.

Figura 24 - Comunidade Hippie em Red Rock, Nevada

Fonte: KANH, Lloyd. Cobijo. Madrid: H. Blume ediciones, 1973, p. 90.

92

Celma Paese

com o modo de vida massificado e a busca da autenticidade, baseada na expressão dos desejos individuais chamou a atenção do grupo230 e sua arquitetura móvel. Cabral, em sua tese de doutorado, nos chama atenção para essa influência: Archigram não compartilhou a ira beat com relação à barganha da afluência, e como visto, tampouco condenava a sociedade de consumo. Não obstante, Archigram estava identificado com esse tipo de inconformismo ancorado sobre a contestação dos modos de vida, e pela reivindicação de uma autenticidade baseada na expressão da personalidade e dos desejos individuais. A crítica ao modelo tecnocrático da organização da sociedade, que se converteu em alvo de ataque dos movimentos radicais e da contracultura nos anos sessenta, era em grande medida uma tentativa de colocar outra vez a tecnologia a serviço de finalidades humanas.[...] Para Archigram, nomadismo e arquitetura móvel estão também dominados por esta polarização entre indivíduo e sistema tecnocrático, em que o âmbito privado emerge como cenário de interesses e campo de prova para tentativas de controle sobre a tecnologia e superação das restrições tecnológicas. [...] A atração de Greene pela literatura beat [...] reforça esta maneira de entender o nomadismo que dá espaço, a um certo tipo de ambiguidade em relação à civilização técnica, que reside em aceitar toda a prótese mecânica, e pensar que seja possível, ao mesmo tempo, rejeitar a ordem e os ritmos que a máquina estabelece e impõe

sobre esta mesma civilização. [...] O dilema entre progresso e nostalgia é próprio da maneira como o nomadismo emergiu como problema na cultura da modernidade, ora percebido como busca voluntária e libertação, ora como desterro. As respostas do Archigram, como sempre, foram receptivas com respeito a outras interpretações, dentro e fora do âmbito da arquitetura, e não necessariamente apontam para um caminho único.231

O Archigram via a arquitetura tradicional como obsoleta. Em um mundo onde o computador começava a surgir, juntamente com a conquista espacial, com a telecomunicação via satélite, com os eletrodomésticos e com a robótica, a arquitetura deveria ser parte dessa nova realidade. Para o Archigram, o nomadismo estava inserido em seu modus vivendi: fãs do Rock’and Roll, manifestação artística nômade por natureza, eles estiveram em Woodstock e no show dos Rolling Stones no Hyde Park. Andavam pelo Reino Unido, divulgando suas ideias de uma maneira peculiar, como se tudo fosse uma grande ópera. Para eles, mobilidade significava liberar a arquitetura de uma localização fixa. Idolatravam o carro e o trailer como elementos auxiliares ao jogo da liberdade, profetizando um tempo onde essas próteses tornariam possíveis um nomadismo contínuo ao redor da Terra. Hans Hollein, em comentário sobre o Grupo no livro editado por Peter Cook232, nos fala da importância do Archigram na renovação da linguagem arquitetônica. Quando eles surgiram, o pensamento arquitetônico criado pelos modernistas estava estagnado e a linguagem arquitetônica carente de renova-

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

ção. O que atraiu Hollein em relação ao Archigram foi justamente o grupo utilizar todos os recursos gráficos disponíveis da época para comunicar o que era arquitetura. Assumindo plenamente o papel da arquitetura como meio de comunicação às últimas consequências, criaram uma nova maneira de ver e pensar arquitetura através do entendimento das transformações que estavam ocorrendo no mundo. Era a hora de voltar a discutir ideias e não objetos. A Plug-in City de Cook233 foi desenvolvida a partir do seguinte questionamento: o que aconteceria se uma cidade pudesse ser programada e estruturada para uma constante mutação arquitetônica? Ela é a colagem de diferentes propostas desenvolvidas entre 1962-64. É o desenvolvimento da ideia da Living City234, que pregava uma mutação constante através da convivência, objetivos e situações criadas pelos habitantes. Ligada também à proposta da Plugin Capsule235 de Chalk. Ela é formada por uma megaestrutura, onde as Plug-in Capsules seriam acopladas, formando um conjunto. Como as cápsulas do arquiteto metabolista Kisho Kurokawa. Proposta para a habitação do Homo Movens236, a cápsula de habitação se propunha a satisfazer todas as necessidades de trabalho, cultura e lazer do habitante, sem este ter necessidade de deixá-la. Para Kurokawa237 e seu grupo, a palavra metabolismo significava, em um sentido amplo, crescimento e câmbio. Mais especificamente, ela adquire significado em dois níveis diferentes do processo: o metabolismo biológico, que se refere ao câmbio e intercâmbio de substâncias dentro de um organismo, e o metabolismo energético, que é a expressão teórica desse processo. O crescimento de um sistema vivo significa o aumento de volume de suas formas elementares e sua metamorfose. Em termos de arquitetura, esse último

93

é o momento que os diferentes sistemas se intercambiaram nas cidades, formando, junto com as redes de informação, uma nova ordem espacial. Hoje – e cada vez mais – esses movimentos e mudanças são rápidos e gerais, tendo como exemplo: as redes de informação e as mudanças que ocorrem no sistema viário. Kurokawa propunha o planejamento das cidades com base no entrelaçamento de movimentos orgânicos espaciais e temporais. Nesse movimento de expansão de estruturas urbanas e de informação, a arquitetura estaria presente através de módulos espaciais e temporais. Seu projeto final são cápsulas de habitação, unidades arquitetônicas-informacionais que as pessoas poderiam locomover livremente, sem a necessidade de deixá-las para satisfazer suas necessidades de trabalho, cultura e lazer. O conjunto formaria grandes estruturas em torres, onde elas estariam encaixadas por tempo indeterminado. Quando houvesse necessidade de locomoção, guindastes, trens e caminhões as transportariam para outros centros. Segundo Duarte238, Kurokawa considerava as cápsulas como a revolta individual contra a massificação urbana; com elas as pessoas poderiam ter livre movimento e possibilidade de ação e de reconfigurar os espaços urbanos de acordo com seus interesses imediatos. As cápsulas seriam unidades arquitetônicas-informacionais mínimas que transitariam entre as diversas esferas temporais e espaciais da urbanidade global. Isozaki239 coloca que, ao contrário do Archigram, os Metabolistas identificaram rapidamente seu movimento com as ideias que atendiam aos interesses econômicos dos órgãos responsáveis pelo desenvolvimento urbano, deixando-se manipular pela política governamental vigente. Apesar de terem renovado a linguagem, negaram a necessidade de um questionamento sobre a cultura arquitetônica

94

Celma Paese

da época. As megaestruturas da Plug-in City poderiam estar em qualquer lugar. Essa estrutura seria a via de acesso e o local dos serviços que atenderiam a todas as necessidades. As cápsulas tinham a sofisticação ergonômica de uma cápsula espacial e, ao mesmo tempo, o melhor do housing design in a box. A Walking City (figura 25) foi comparada a uma máquina de guerra pelo International Times: ela tinha seu corpo mutante e reprogramável, além das unidades acopláveis às pernas telescópicas que, ligadas ao solo e/ou ao mar, poderiam transportar bens e mantimentos. Para seu autor não era nada disso: Ron Heron a considerava uma máquina de aparência amigável, que se movia lentamente pelo mundo. Na verdade, Walking City240 aflorava nas mentes toda uma memória de figuras da ficção científica quanto

imagens reais de plataformas petrolíferas e submarinas. Frampton 241se refere á Walking City como um leviatã e a compara ao Glomar Explorer de Howard Hugues que surgia para resgatar tanto homens quanto objetos depois de um cataclisma. O autor ainda a compara à megaproposta de Fuller que pretendia erguer uma cúpula geodésica de aço gigantesca no centro de Manhattan, a fim de formar uma barreira contra a poluição que também poderia ser utilizada como escudo para precipitações radioativas na improvável possibilidade de um ataque nuclear não atingir o alvo. Na verdade, o que o Archigram queria, era questionar os valores das ideias de arquitetura pregadas até então. Vendo por esse viés, tanto o Grupo quanto Fuller realmente estariam conectados em sua

Figura 25- Grupo Archigram, The living City in Bournemonth (1968) and The Wakking City (1964)

Fonte: COOK, Peter (Ed.). Archigran. New York: Princeton Architectural Press, 199, p. 92 e 49.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

fundamentação ideológica. Com certeza, o trabalho de Fuller influenciou o Archigram. Apesar de não haver uma preocupação ecológica explícita, como no trabalho de Fuller, é clara a influência do projeto da Casa Dimaxion da concepção das cápsulas da Living City e no Living Pod. Ron Herron242 considera que o mais importante da época dos experimentos da Plug-in City, Walking City e suas cápsulas, foi a reavaliação dos valores estabelecidos em arquitetura. A Living pod e a arquitetura mutante das propostas da Plug-in e Walking City representam o caminho do meio entre soluções tecnológicas e o que realmente importa para resolver as necessidades pessoais de cada um. Transformar a limitação formal em liberação mecânica começou a se tornar mais simbólica do que necessária. Talvez representando o conflito entre o desejo de manifestar, construir, experimentar e sua materialização. Partindo dos paradigmas dos trailers e casas pré-fabricadas, a Living Pod lembra em conceito e imagem o módulo lunar: uma cápsula com partes “satélites” trabalhando dentro, que também podem trabalhar fora. Na Mobile Village, ela é ao mesmo tempo casa e veículo – elástica e estática – tornando-se grande e pequena. Cabral243 considera que, de todas as arquiteturas nômades do grupo, a Living Pod, (figura 26) de David Greene, é a que melhor expressa a tensão entre mobilidade como parte de uma tradição modernista. O Living Pod também pode ser considerado uma crítica latente ao modo de vida que a cultura tecnocrática buscou promover em seu discurso pelo progresso. O Pod ainda resume, de maneira radical, o conceito do que é arquitetura móvel para Yona Friedman que, como já foi visto, a definia como uma arquitetura que

95

se adapta ao habitante no lugar onde ela está e não força o habitante e o lugar a adaptar-se a ela. O Living Pod se propunha a ser uma unidade habitacional híbrida autossuficiente, nela acoplada toda a facilidade tecnológica de vanguarda e ergonomicamente correta, com o espaço interno para múltiplos usos e ainda podendo se transformar em um trailer, possibilitando sentir-se em casa na lua ou qualquer parte. Para Cabral244, no Pod se coloca a ideia de que se estaria em casa inclusive na lua, e que já não se estaria em casa em parte alguma. A ironia que sugere o Living Pod de Greene poderia ser a tentativa de manejar o dilema entre um discurso progressista que supõe a aceitação de todo um novo imaginário fornecido pela tecnologia e, ao mesmo tempo, alguns fantasmas que perseguem o homem da era atômica, habitante de “um mundo que de alguma maneira parecia estar explodindo”.245 Separar-se desse mundo seria uma questão de tempo. Contando com o apoio da Graham Foundation of Advanced Studies in Art, de Chicago, o Archigram desenvolveu, em abril de 1969, o projeto da Instant City246, que resumiu as ideias desenvolvidas em diversos projetos anteriores do Grupo. A ideia é uma travelling metrópolis247, que se estabelece por um tempo em uma comunidade. Ela também integrava a ideia de um circo, o que propiciava a troca de experiências. Instant City (figura 27) era arquitetura como entretenimento e aprendizado ao mesmo tempo, em que trazia o ambiente urbano para quem morava fora das grandes cidades. Apesar de terem consciência de que a conexão entre as culturas através das redes de informação era uma questão de tempo, o grupo tinha consciência de que as pessoas que moravam fora das metrópoles sentiam-se cada vez mais frustradas por terem

96

Celma Paese

Figura 26 - Grupo Archigram, The living Pod

Figura 27 - Instant City

Fonte: COOK, Peter (Ed.). Archigran. New York: Princeton Architectural Press, 199, p. 51.

Fonte: COOK, Peter (Ed.). Archigran. New York: Princeton Architectural Press, 199. p. 52.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

acesso restrito às novidades e aos diferentes aspectos da vida contemporânea. A metrópole crescia e a reação dos que estavam à margem era de cada vez mais frustração, pois não viam suas vidas integradas a esse progresso. Instant City surgiu como uma proposta que conectaria as cidades entre si em uma grande e única metrópole no momento que o evento estivesse ocorrendo. Tendo como ponto de partida propostas para um mundo conectado e integrado pela informação, esse trabalho em escala urbana desenvolvia a ideia de conectar diversas culturas através da TV. O projeto tinha uma fundamentação teórica baseada nas novas tecnologias. O hardware seria o design arquitetônico propriamente dito e o software seria o estudo dos efeitos da informação e programação dos ambientes. Instant City era um laboratório experimental urbano, que funcionaria como uma TV, conectando as pequenas cidades do interior às metrópoles através de sistemas audiovisuais, TVs, unidades móveis como caminhões e carros, iluminações cênicas, estruturas pneumáticas e alguns guindastes. Para o Archigram, nomadismo ia muito mais além do que a ideia de andar de um lugar para outro248: o Grupo coloca dentro do conceito de nomadismo o movimento dos satélites e suas possibilidades tecnológicas e as pessoas que pensam livremente, que acreditam na continuidade do movimento da existência mesmo plugados a um sistema já existente. Ao mesmo tempo em que o sistema existe como estrutura, o nômade está pronto para transgredi-lo. Outros grupos também questionaram a validade do pensamento arquitetônico da época. Entre eles, o grupo italiano Superstudio. Dotado de grande carga poética, os projetos do Grupo estiveram situados entre o campo da arquitetura e das artes visuais. O Superstudio foi fundado em 1965 em Florença,

97

Itália, por dois arquitetos radicais – Adolfo Natalini e Cristiano Toraldo di Francia – que se conheceram durante o curso de arquitetura na Universidade de Florença. Mais tarde, Alessandro e Roberto Magris e Piero Frassinelli também foram acolhidos no Grupo. A relação do grupo com a cidade de Florença, onde o grupo continuou vivendo e trabalhando depois de se formarem, foi de crítica ao trabalho desenvolvido pela municipalidade: O papel do arquiteto e do designer é de entender e compreender o processo histórico, a fim de reavaliar os caminhos tomados pelo movimento modernista e o pesadelo que ele ajudou a conceber [...] Em Florença, uma cidade onde as contradições arquitetônicas são evidentes, esta reavaliação se torna necessária a fim de preservar símbolos históricos. (Neste momento uma pessoa puxa as cortinas de passado esquecido de ser representado).249

Na época dessa crítica, Di Francia considerava que o passado em sua cidade estava sendo escondido “por trás de uma cortina de alterações místicas”. Superstudio fazia parte do avant gard do pensamento arquitetônico na época. O Grupo acreditava em arquitetura como desígnio. Desde sua primeira aparição, em 1966, na exposição Superarchitecture, em Pistoia, desafiaram as ortodoxias modernistas que tinham dominado pensamento arquitetônico durante décadas. Questionavam a habilidade da arquitetura para mudar o mundo para melhor e a fé ilimitada na tecnologia expressa por grupos como o Archigram. Durante os doze anos de existência do Grupo,

98

Celma Paese

o tema central seria sua desilusão com os ideais modernistas. No início – dinâmica e renovadora – para eles essa doutrina havia se tornado obsoleta nos anos 60. Em lugar de ver a arquitetura como uma força benevolente, os sócios de Superstudio culparam a arquitetura modernista de ter agravado os problemas sociais e ambientais do mundo. A frustração política da época, como já foi falado neste trabalho, era evidente. A resposta de Superstudio era desenvolver seus “Anti-Projetos”: temas que também apareceram em outros grupos radicais.250 Em 1969, o Superstudio desenvolveu o Monumento Contínuo, trabalho mais conhecido do Grupo: um vigamento aparentemente infinito de uma grade preta e branca se estendia pela superfície da terra. Era uma crítica do Superstudio aos absurdos do planejamento urbano contemporâneo. O grupo criou fotografia-colagens mostrando a grade envolvendo a Costa Rochosa, Coketown e Manhattan. Em 1970, Superstudio deu vida à grade na coleção de design de mobiliário Neutral Surface, fabricada pela companhia italiana Zanotta. Projetada em formas geométricas e revestidas de plástico laminado, tradicionalmente associadas com cafés baratos e aos anos 50, as peças da Coleção eram uma crítica funcional do Grupo à desilusão política. Durante o início dos anos 70, Superstudio fez uma série de filmes que pretendem elevar a consciência do impacto ambiental negativo de arquitetura quando esses temas ainda não eram corriqueiros. Em 1972 o grupo expôs seu trabalho fora da Itália, na exposição de design italiano The New Domestic Landscape, no MOMA de Nova York. O trabalho radical de Superstudio foi mostrado ao lado dos trabalhos de outros designers importantes, como Marco

Zanuzo e Richard Sapper. Durante o mesmo ano, o Superstudio desenvolveu uma proposta surrealista para inundar Florença. A proposta era represar o Rio Arno submergindo o centro de cidade, com exceção da cúpula da catedral. A intenção era fazer uma paródia ao movimento de preservação dos centros históricos. O pensamento de Superstudio tem se mostrado mais duradouro que o próprio grupo. Suas peças de mobiliário ainda estão em produção na Zanotta. Suas colagens e desenhos foram adquiridos para as coleções permanentes do Centro Georges Pompidou, em Paris, e do MOMA, de Nova Iorque. As suas teorias radicais sobre o impacto ambiental de arquitetura, as consequências negativas de tecnologia e a inabilidade dos políticos para resolver problemas sociais complexos, hoje são assuntos atuais. Montaner251considera que a evolução do pensamento do Superstudio deu-se por ter iniciado com propostas radicais que tomavam as propostas tecnológicas como referências conceituais e críticas, seguindo para um caminho onde a arquitetura tomou o papel de valor simbólico, histórico e cultural. Sua obra referenda elementos da literatura, filosofia, ciência, pintura e fotografia e sempre evoluiu através de propostas artesanais e com valores pessoais expressados de maneira singular e original. O que foi feito da Nova Babilônia? Como enfocar essas ideias no mundo de hoje, onde muitos pensadores dão adeus às utopias e às possibilidades de uma transformação radical em nossa sociedade? A história mostra que as ideias de Constant devem ser analisadas dentro do contexto histórico de sua época, que acreditava na possibilidade de existir um futuro de sociedade socialista, com recursos abundantes e máquinas que supririam a necessidade

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

do trabalho braçal, que propiciariam tempo livre de sobra para todos se divertirem e sonharem. Hoje os rumos tomados foram outros e o que Careri chama de Transurbanidade é o viver a Cidade Nomádica, que surge quando os seus habitantes se movem por entre os espaços fractais da Cidade Estática com seus espaços urbanos policêntricos, alguns buracos nas ruas, espaços com carência de identidade, muros que circundam condomínios e alguns bairros com ruas arborizadas. Porém, se o Homo Ludens, que existe dentro do Homo Sapiens, deixar o Homo Faber em casa e se propuser a praticar o jogo do Andare al Zonzo (andar sem rumo), modo de caminhar que provoca a mudança do olhar em relação ao entorno, as potencialidades lúdicas e a predisposição a jogos interativos com os espaços urbanos serão potencializadas e, sem a hipertecnologia e as megaestruturas propostas por Constant, a Nova Babilônia surge nos mares do Zonzo, mais precisamente naqueles espaços sem identidade, que interligam um centro urbano a outro: ao dar chance ao olhar de enxergar o incomum nesses vazios os mais diversos encontros têm chance de acontecer, através do jogo da nomádica trasurbância. Os corredores da Nova Babilônia surgem, na busca de novas propostas e posturas em relação a espaços que parecem perdidos. Vendo por esse viés, pode-se considerar que a Cidade Nomádica vive em osmose com a Cidade Sedentária, alimentando a esperança dos que se recusam a deixar de buscar maneiras diferentes de ver o mundo, ou mesmo de aqueles a que as condições de vida os obrigam. Na cidade perdida do nômade, encontra-se a chance da renovação, proposta pela Nova Babilônia.

99

100

Celma Paese

6 CIBERESPAÇO “O Outro Mundo se assemelha, por um de seus aspectos, a essa pintura em close-up da floresta, e por isso ela me transporta e faz-me ver uma obra de arte transfigurar-se em algo mais – em algo além da arte”. Aldoux Huxley

A

palavra Ciberespaço foi vista pela primeira vez em 1984 no romance de ficção científica Neuromancer, escrito por Willian Gibson, a fim de designar o universo das redes digitais que formavam as novas fronteiras econômicas e culturais. Nesse cenário, batalhas entre multinacionais e conflitos mundiais desenvolviam-se e alguns personagens eram capazes de entrar fisicamente nesse espaço de dados para viver todos os tipos de aventura. O Ciberespaço de Gibson tornou concreto o mundo móvel da informação, normalmente invisível. O termo foi adotado pelos criadores das redes digitais. Dimensão que para Constant e o Archigram não passava de um sonho de ficção hoje permeia a todos de alguma maneira, em pouco tempo passou a ter uma influência inegável na vida de todos os seus frequentadores, que se tornaram personagens de um mundo virtual, onde os caminhos se desdobram em um tecido labiríntico e abstrato. O Ciberespaço é um meio que interage socialmente através das possibilidades abertas pela codificação digital. De um modo geral, o espaço simboliza o meio – exterior ou interior – no qual todo ser se move, de maneira individual ou coletiva. No sentido de situação de um objeto, que pode ser um marco arquitetô-

nico, um corpo, ou acontecimento, o espaço simboliza um conjunto de coordenadas ou de indicações que constituem, em conjunto, um sistema móvel de relações que partem desse ponto, que passa a irradiar sua influência para o entorno, dando sentido ao espaço onde se localiza. Portanto, o espaço é o lugar dos acontecimentos possíveis. MacLuhan, já nos anos 60, vislumbrava o caminho da sociedade eletrônica e alertava que o espaço aos poucos não mais seria o mesmo. Para o autor, tanto a noção de tempo visual e segmentariamente medido, como o espaço enquanto visual, uniforme e fechado, desapareceriam na era eletrônica da informação instantânea. Nesse mundo essencialmente nômade, onde os conceitos de trabalho não mais seriam os mesmos, a vida em sociedade se voltaria para o conhecimento e a busca do entendimento dos processos criativos. O aparecimento do alfabeto na Grécia difundiu o uso da moeda, desenvolveu a pólis e, principalmente, fez surgir a democracia: Ao difundir-se a leitura, todos poderiam conhecer as leis e discuti-las. Algo semelhante aconteceu com as mídias audiovisuais do Séc. XX. Elas ajudaram a emergência de uma sociedade do espetáculo que subverteu as regras do jogo tanto na política quanto no mercado. Mais recentemente houve a integração de todos esses recursos, que se tornaram interativos. Esse fenômeno só ocorreu pelo uso do computador e com o surgimento do Ciberespaço. A interatividade virtual tornou-se um elemento essencial para as mudanças necessárias à evolução humana. As transformações tecnológicas das últimas décadas recriaram os conceitos sobre espaço e habitat, que formam a base da arquitetura. A sinergia e a globalização criaram um mundo onde todos os eventos relacionam-se tecnologicamente. Segundo

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

McLuhan252, as comunicações de massa são extensões dos mecanismos de percepção humana, imitadores de seus modos de compreensão e discernimento do mundo. Com o Ciberespaço não poderia ser diferente: o computador tornou-se extensão do corpo humano quando possibilitou ao homem acessar, habitar e transitar pelo Ciberespaço, um meio que passou a agir socialmente. Ele tornou-se objeto de fascínio, desejo e narcose. É o que Mcluhan253 chamou de extensão de nós mesmos e utilizar uma tecnologia como extensão de nós mesmos implica em adotá-la. Fisiologicamente, quem a utiliza é modificado por ela ao mesmo tempo em que passa a encontrar sempre novas maneiras de modificar essa tecnologia. Em Cibercultura254, um relatório que foi solicitado ao filósofo Pierre Lévy pelo Conselho Europeu para analisar as implicâncias sociais das novas tecnologias, o Filósofo chegou à conclusão de que o mundo vive mais uma revolução cultural, tão intensa ou maior que a dos anos 60. Para Lévy, o surgimento do Ciberespaço conduziu o mundo a uma realidade onde não existe mais a separação entre continente e conteúdo. Segundo Fuão255, o espaço deixa de ser ‘bruto’ quando alguém lhe dá significado. A maneira que organizamos nossa experiência sensorial em relação a seus centros e limites é que determina o significado e dimensão espacial de um território. Nesse momento uma vívida relação de proximidade entre o físico e o sensível é promovida. O que dá sentido ao Ciberespaço são as comunidades, que formam uma megacomunidade que é a protagonista do processo social de inteligência coletiva em que vivemos, configurando um novo meio que pode colocar em sinergia e interfacear todos os dispositivos de criação, informação, gravação, comunicação e simulação. A perspectiva da digitalização

101

geral das informações tornou o Ciberespaço o principal canal de comunicação e suporte de memória da humanidade. O Ciberespaço pode ser comparado ao espaço físico do nômade por ser de natureza lisa. Os seus frequentadores são personagens de um mundo onde os deslocamentos acontecem entre um ponto e outro na velocidade da luz, portanto em um tempo infinitamente menor que no tempo físico. Na dimensão do Ciberespaço, os limites e perímetros do espaço físico não existem. O ponto de partida continua sendo o corpo físico do viajante que pode ser considerado um centro, sendo que cada ponto virtual acessado é também o centro de um evento que pode ser o elo para vários outros eventos que acontecem em um tecido labiríntico que se desdobra por entre as múltiplas possibilidades de acessos. Lévy256 definiu esse processo como “efeito Moebius”. Como acontece com a figura geométrica homônima, nas relações ciberespaciais os lugares e tempos se misturam e as passagens do interior ao exterior, e vice-versa, não ficam claras e, em várias ocasiões, o privado e público se misturam, assim como o próprio e o comum, o subjetivo e o objetivo. Leão257, em seu livro sobre esse Labirinto Virtual identificou três identidades no Ciberespaço: a primeira, a arquitetura propriamente dita, gravada nos discos do sistema e nas redes. A segunda é a interpretação do percurso a partir da leitura do viajante. A terceira acontece com as conclusões que o viajante tira no final do percurso. Muitas vezes ela é formada de percepções efêmeras, ilusórias, confusas e disformes. O imprevisível é a regra nesse espaço intermediário entre matéria e infinito, porém, as possibilidades que a dimensão da hipermídia viabiliza só são vislumbradas quando o viajante toma consciência da

102

Celma Paese

existência da complementaridade organizacional de opostos, como o simples e o complexo, o rigor e a liberdade, a mobilidade e a imobilidade, a solidez e o abstrato. Os diferentes processos, mentais e corporais, agora também podem ser vividos nesse espaço multidimensional. As reações corporais ainda continuam individualizadas, apesar da interação propiciada pelos vários recursos de som e imagem e, o que existe são os intercâmbios de sensações. Para Lévy,258 a interatividade corporal entre os indivíduos manifesta-se nos três princípios fundamentais que surgiram desde o começo da ocupação e crescimento do ciberespaço: a interconexão, a criação das comunidades virtuais e a inteligência coletiva. Com a interconexão, a Cibercultura aponta para um futuro de telepresença generalizada, onde a humanidade se tornará um contínuo sem fronteiras e todos os seres estarão mergulhados no mesmo oceano de informações, interagindo entre si. Quando alguém se virtualiza, torna-se não presente, desterritorializado e uma tangente é tomada em relação ao espaço físico-geográfico e à temporalidade do relógio do espaço físico. A sincronização substitui a unidade do lugar e a interconexão, a unidade do tempo. Aqui, a cibercultura aponta para uma sociedade de telepresença generalizada, onde os veículos de informação não estariam mais no espaço e sim o espaço se tornaria o canal interativo. Portanto, a virtualização tem a função de ser uma ponte para o futuro. As comunidades virtuais fazem parte de um processo que Lévy259 chamou de reinvenção da cultura nômade, não por uma volta ao paleolítico nem às antigas civilizações de pastores, mas fazendo surgir um meio de interações sociais onde as relações

se configuram com um mínimo de inércia. As comunidades virtuais surgem a partir de interesses comuns, atitude usual no mundo físico. A diferença é que as dificuldades geográficas não existem nesse meio. Nem por isso, o virtual é ilusório, ele produz efeitos. A imaginação, a memória, o conhecimento e a religião são maneiras e abandono da presença corporal bem antes do surgimento das tecnologias digitais e bem conhecidas em nossa cultura. Longe de serem frias, as relações virtuais on-line não excluem emoções fortes, além disso, as responsabilidades individuais e a opinião pública, assim como seus julgamentos continuam existindo no Ciberespaço. Portanto, esse meio é apenas complementar a relações e encontros no espaço físico. Ele também mais uma vez toma forma de um agente do futuro, quando se compra em uma loja virtual, ou um contato profissional é alinhavado. Assim como as drogas ajudam a suportar as dores da vida, as comunidades virtuais do Ciberespaço, também têm sua serventia como tal: seus usuários não precisam necessariamente se expor, podendo adotar a persona que interessa, andar e viver como convier em um universo impalpável. A inteligência coletiva representa a perspectiva espiritual e finalidade última da cibercultura. Por ser seu depositário, o Ciberespaço talvez só represente uma tecnologia que auxilie a atingir a inteligência coletiva. Lévy260 lembra que o ideal de inteligência coletiva foi defendido por nomes como Tim Bernes (inventor da World Wide Web) e, ainda nos anos 60, por Engelbart (inventor do mouse e das janelas de interface atuais). Todos reconhecem que a melhor maneira de utilizar o Ciberespaço é colocar em sinergia os conhecimentos de todos que estão conectados na rede. Para todos esses pensadores, a grande questão é como a inteligência coletiva irá evoluir no futuro. Será que todos se tornarão um neurônio de

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

um megacérebro planetário? Ou o futuro constituirá uma infinidade de comunidades virtuais nas quais cérebros nômades se associam para produzir e compartilhar conhecimento? A segunda possibilidade hoje parece ser a mais concreta. A multiplicação das possibilidades espaciais transformou a todos em um novo tipo de nômade que, em vez de seguir linhas de errância em uma extensão determinada, salta de uma rede a outra, ou seja, de um sistema de proximidade ao seguinte. O corpo se torna meio ao entregar-se à onda energética da hipermídia, onde o movimento, a passagem e a velocidade, acrescentado aos limites da alteridade biológica, vive a subjetividade completa e, o universo sensível é enriquecido, sem a imposição dos limites físicos. Ao se deslocar através do corpo sensível, que se multiplica e adquire novas velocidades, o viajante interage com espaços que se metamorfoseiam e se bifurcam continuamente, transpondo o limite do intercâmbio de informação que existe no espaço físico. Deleuze e Guattari261 definem esse fenômeno como parte do que chamam de nomadismo psíquico: o nômade passa a ser o dono do movimento absoluto, como nas viagens espirituais. Os nômades psíquicos são guiados pelo desejo e pela curiosidade. São errantes, em busca de aventuras e novas experiências. Esse grupo de nômades engloba, no espaço físico, artistas e intelectuais e turistas. Também podem ser incluídos aqueles que “viajam” demais, como os filósofos e usuários de drogas alucinógenas. Todos, de alguma maneira, estão inseridos nesse grupo: andando de carro, vendo TV, no cinema, nas férias... Aliás, nunca foi tão fácil viajar. O número de turistas que circulam hoje na época de férias é maior do que o número de homens que se punham a caminho nas grandes invasões. O uso de veículos de locomoção e

103

de meios de comunicação, como os telefones, nunca foram tão importantes para a sociedade, tanto socialmente quanto economicamente. Como já foi dito, a virtualização não substitui a mobilidade física. Ao contrário: ela é um instrumento gerador de possibilidades futuras. Desde seu surgimento, a intensidade e quantidade de movimento físico aumentaram barbaramente, assim como as possibilidades de intercâmbios de presenças. O Ciberespaço talvez possa ser comparado a um espelho do mundo físico de hoje. O jovem Narciso tomou seu reflexo na água por outra pessoa, e sua extensão embotou de tal maneira sua consciência que ele tornou-se servomecânico da própria imagem. Ao lembrar o mito de Narciso, Mcluhan262 chamou a atenção do fascínio que o homem tem por qualquer extensão de si mesmo em qualquer material que não seja dele próprio. Ao tornar-se servomecanismo de sua imagem prolongada no espelho, tornando-se um sistema fechado, o mundo tornou-se fascinado pelo Ciberespaço: lá é possível encontrar, por ser um espaço em formação, as primeiras tentativas dos mapeamentos territoriais que aconteciam com a Terra, antes de ela ser totalmente explorada e conhecida. Ao mesmo tempo, em termos sociais, as grandes organizações comerciais mundiais de hoje, as minorias, os bandos e as famílias, lá estão representados. Como o Ciberespaço, as cidades se tornam cada vez mais policêntricas. Aqui, é difícil saber quem imita quem. Nas periferias e zonas nobres, essas últimas cada vez mais muradas, as ilhas de habitação e serviços flutuam em um grande oceano cada vez mais carente de identidade, que tende a se tornar um grande vazio. Os habitantes urbanos pouco utilizam as praças e ruas como espaços públicos. Os Shoppings, postos de gasolina e, em al-

104

Celma Paese

guns casos, estações de transporte já os substituíram. Alguns parques privados, ou mesmo algum espaço vazio na periferia talvez sirva como uma zona pública de lazer para terem algum contato com a natureza. Provavelmente esses espaços vazios, sem identidade definida, já são consequências da cultura da hipermídia. O virtual talvez possa ajudar a humanidade a continuar a cumprir o seu destino comum. Nesta era onde o bando retoma sua importância através das comunidades virtuais e tribos urbanas, o trabalho sedentário se extingue dando lugar à coleta de informações, lembrando o pescador e o caçador do paleolítico. O Ciberespaço é o lugar dessa coleta abundante, onde todas as informações estão disponíveis. O nômade que percorre esses caminhos provavelmente os considere bem mais interessantes do que os pontos de chegada e partida, como acontece na dimensão física. Podemos dizer que, com o advento do Ciberespaço, a sociedade está se tornando cada vez mais nomádica. O Ciberespaço foi o que extinguiu para sempre as distâncias entre continentes, mentes e conteúdos. Consequentemente, com a cultura da informação globalizada, que interliga tempo, espaços e funções, coloca a especialização de funções em rota de extinção. Teoricamente, é tudo muito lindo: hoje, todas as pessoas têm acesso à multiplicidade cultural em lugares que nunca seriam acessados se não houvesse o recurso da rede. Como já foi dito, existe o outro lado da história: apesar da cultura globalizada, é necessário que haja cada vez mais cuidado com a preservação da diversidade cultural. O sedutor reino espetacular, junto com o lifestyle do consumo, está ao alcance em qualquer lugar do planeta, para quem puder comprar.

Carter263 analisa a importância de explorar as oportunidades oferecidas com os novos recursos tecnológicos da informática e da comunicação para ajudar no desenvolvimento urbano e na regeneração econômica de nossas cidades. Buscar maneiras de esses recursos tornarem-se acessíveis democraticamente a todos os cidadãos é um dos cernes dessa questão. Na verdade, toda essa tecnologia só está à disposição de uma “aristocracia da informática”. E o jogo do Sinóptico de Bauman afirma a interatividade Ciberespacial como um fenômeno one-way e a democracia digital como uma rara exceção, inclusive no primeiro mundo. A filtragem de informação também é vista claramente nesse contexto. Duarte264 compara a filtragem com a figura de Tarzan, que determinou na sociedade ocidental que tem acesso à mídia, todo um conceito de imagem de um aborígene africano. Com o tempo, as ideias de Mcluhan de interatividade e intercâmbio de culturas entre os povos através das novas mídias mostraram-se mais interessante do que verdadeiras. O que é visto na mídia é filtrado por quem capta as imagens a serem distribuídas através de canais pagos que chegam para quem também pagou para ver. O que é de interesse é divulgado. É preciso tomar consciência de que, se não for encontrado um meio de todas as pessoas, de alguma maneira, terem acesso às novas estruturas da tecnologia e da informação e se beneficiarem delas, o resultado é o reforço e o aumento da fissura social, tendo a tecnologia como coadjuvante. A exclusão digital traz à luz, mais uma vez, os monstros que os nossos sistemas econômicos criaram, os seres humanos que ficam à margem desse processo. As manifestações dessa classe de excluídos são encontradas no Ciberespaço na figura dos hackers e os que andam à margem dos bancos de dados. Com

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

um domínio diferenciado desse espaço, eles se movimentam com o objetivo de transgredir normas e padrões, criando mundos virtuais paralelos. Basta alguma habilidade e conhecimentos de informática. Esse fenômeno é citado por Hankin Bey na teoria das Zonas Autônomas Temporárias. Wilson265 descreve como os piratas e corsários do século XVIII montaram uma “rede de informações” que se estendia ao redor do mundo e que, mesmo sendo primitiva e voltada para negócios cruéis e ilícitos, era muito eficiente e funcionava de forma admirável. Essas comunidades autossuficientes e à margem do poder oficial, que viviam conscientemente fora da lei e estavam determinadas a continuar assim, hospedavam pessoas de diversos países ligadas a esse tipo de negócio, e se chamavam Zonas Autônomas. Eram localizadas em ilhas e acidentes geográficos, que proporcionavam esconderijos remotos e secretos para seus membros. Nelas, os navios podiam ser abastecidos com água e comida e os resultados das pilhagens eram trocados por artigos de luxo e de necessidade. Enfim, tudo o que fosse necessário para dar continuidade às navegações e estripulias em alto mar era encontrado nas Zonas Autônomas. Inspirado nas Zonas Autônomas Piratas, Bey266 desenvolveu uma teoria sobre Zonas Autônomas Temporárias (TAZ). Para Bey, as TAZ podem existir tanto no mundo físico com ter sua equivalência no ciberespaço. Na verdade, Bey considera que só formalizou a inevitável tendência de as pessoas juntarem-se em grupo para buscar a liberdade e não esperar por ela em um futuro utópico. Para ele, a questão é como essa liberdade é maximizada: criar uma TAZ é ter uma reação em relação às atividades compulsórias e opressivas, como o trabalho e os estudos, é uma saída para a nossa sociedade, em que, segundo as palavras do próprio filósofo, a velocidade e o feiti-

105

chismo da mercadoria criaram uma unidade tirânica e falsa. Bem diferente de declarar apenas uma antipatia teórica. Em entrevista à revista High Times Magazine, Hakin Bey contou como vive e definiu os conceitos de TAZ e Terrorismo Poético: High Times - Hakim, de onde você é? Hakim Bey - Bem, a informação padrão (que é tudo o que falo) é que eu era um poeta da corte de um principado sem nome do norte da Índia, que eu fui preso na Inglaterra por um atentado anarquista a bomba e que eu vivo em Pine Barrens, Nova Jersey, em um trailer da Airstream (tradicional marca americana de trailers). Quando venho a Nova York fico num hotel em Chinatown. High Times - O que é Zona Autônoma Temporária? HB - A Zona Autônoma Temporária é uma ideia que algumas pessoas acham que eu criei, mas eu não acho que tenha criado ela. Eu só acho que eu pus um nome esperto em algo que já estava acontecendo: a inevitável tendência dos indivíduos de se juntarem em grupos para buscarem a liberdade. E não terem que esperar por ela até que chegue algum futuro utópico abstrato e pós-revolucionário. A questão é: como os indivíduos maximizam a liberdade sob as situações nos dias de hoje, no mundo real? Eu não estou perguntando como nós gostaríamos que o mundo fosse, nem naquilo em que nós estamos querendo transformar o mundo, mas o que podemos fazer aqui e agora. Quando falamos sobre uma Zona

106

Celma Paese

Autônoma Temporária, estamos falando em como um grupo, uma coagulação voluntária de pessoas afins não hierarquizadas, pode maximizar a liberdade por eles mesmos numa sociedade atual. Organização para a maximização de atividades prazerosas sem controle de hierarquias opressivas. Existem pontos na vida de todos que as hierarquias opressivas invadem numa regularidade quase diária: você pode falar sobre educação compulsória, ou trabalho. Você é forçado a ganhar a vida, e o trabalho por si só é organizado como uma hierarquia opressiva. Então a maioria das pessoas, todos os dias, tem que tolerar a hierarquia opressiva do trabalho alienado. Por essa razão, criar uma Zona Autônoma Temporária significa fazer algo real sobre essas hierarquias reais e opressivas - não somente declarar antipatia teórica a essas instituições. Você vê a diferença que eu coloco aqui? No aumento da popularidade do livro, muitas pessoas se confundiram com esse termo e usaram ele como um rótulo para todo o tipo de coisa que ele realmente não é. Isso é inevitável, uma vez que o próprio vírus da frase está solto na rede (para usar metáforas de computadores). Se as pessoas usam erroneamente ele ou não isso não é tão importante, porque o significado está incrustado no termo. É como um vírus verbal. Ele diz o que significa. HT - Você pode explicar o terrorismo poético? HB - Por terrorismo poético eu entendo ações não violentas em larga escala que podem ter um impacto psicológico compará-

vel ao poder de um ato terrorista - com a diferença que o ato é uma mudança de consciência. Digamos que você tem um grupo de atores de rua. Se você chamar o que você está fazendo de “performance de ruas”, você já criou uma divisão entre o artista e a audiência, e você alienou de si mesmo qualquer possibilidade de colidir diretamente nas vidas diárias da audiência. Mas se você pregar uma peça, criar um incidente, criar uma situação, pode ser possível persuadir as pessoas a participar e a maximizar sua liberdade. É uma estranha mistura de ação clandestina e mentira (que é a essência da arte) com uma técnica de penetração psicológica de aumento de liberdade, tanto no nível individual quanto social.267

Bey268propôs duas intervenções de terrorismo poético no ciberespaço, através de duas posturas distintas de TAZ, a partir das ideias expostas em seu livro. A primeira intervenção pode ser chamada de um “Quinto Estado”, uma postura que Bey define por neopaleolítica, pós-situacionista ou ultraverde, propondo comunidades baseadas no conceito de bando que se colocam contra a mediação e a Internet e que habitam e se movimentam no espaço físico de preferência clandestino e não mapeado. A segunda são as comunidades dos ciberpunks utópicos, futuros libertários, hackers da realidade e seus aliados, que veem a Internet como um passo adiante na evolução da humanidade e acreditam que os efeitos malignos da mediação e controle na rede possam ser superados depois da liberação dos meios de produção. Essas comunidades acredi-

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

tam no paleolitismo psíquico que permeia todo o ciberespaço através das comunidades virtuais, legais ou não, e lembram que a TAZ precisa de hackers e afins para existir no ciberespaço. Porém, repudiam a cibergnose que é a tentativa de transcender o corpo através da instantaniedade e da simulação. Apesar da ascensão da família nuclear, o bando nunca deixou de existir. Bey269 lembra que a volta ao modelo paleolítico de bando também está ocorrendo no mundo físico e palpável, com as relações sociais voltando cada vez mais ao bando. No Paleolítico, o homem se organizava em bandos, com o objetivo de explorar novos territórios, visando suprir suas necessidades para garantir a sobrevivência. Portanto, o paleolitismo psíquico no Ciberespaço pode ser considerado um sinônimo do conceito de comunidade virtual. Para a busca de espaços e o consequente mapeamento das TAZ em espaços de diversas naturezas, é necessário que haja algum método estabelecido. A sugestão de Bey270 para os bandos é que eles utilizem o método da psicotopologia. Esse método facilita o processo e assegura uma certa prevenção contra aqueles que são contra a ideia de TAZ. Segundo Bey, a psicotopologia é a arte de submergir em busca de potenciais TAZ. Esses espaços se desdobram por dentro das dimensões fractais, invisíveis às cartografias oficiais. A psicotopologia serve para pesquisar, localizar e desenhar os mapas desses espaços potenciais, na escala 1:1 a partir da percepção do espaço na mente humana. Na verdade, esse mapeamento 1:1 não pode controlar o território mapeado, por ser idêntico a ele, mas pode sugerir ou indicar, através de gestos, suas características. A psicotopologia para acontecer precisa de uma rede de informações, sendo válida a utilização de todo e qualquer recurso de comunicação

107

disponível. A questão é a abertura e horizontalidade da estrutura de informação e não o tipo de tecnologia envolvida. Na verdade, todos os que acessam e navegam pelo ciberespaço praticam a psicotopologia. A técnica pode ser comparada às derivas psicogeográficas dos Situacionistas, pela grande carga de percepção abstrata utilizada. A diferença é a escala e o meio: a psicotopologia, quando praticada no espaço físico, pode abranger um território bem maior que a cidade, como um continente inteiro. No ciberespaço, ela se torna ainda mais abstrata, pois acontece em um espaço virtual e liso. Hoje, o universo abstrato do Ciberespaço foi agregado como verdade espacial do mundo. Qual será o próximo passo nessa caminhada? Mcluhan271 coloca a acumulação de pressões e irritações grupais como o caminho para a invenção e inovação de contrairritantes. A guerra e o temor da guerra sempre foram considerados os grandes incentivadores do desenvolvimento tecnológico e a cidade murada é exemplo. O desenvolvimento tecnológico é necessário para minimizar o impacto da cultura invasora. Nesse momento, as maiores energias sociais são liberadas e nascem as mais avançadas tecnologias. O campo de concentração firmou-se como um paradigma espacial no século XX. Não é coincidência o seu surgimento quase que simultâneo com o Ciberespaço: A fim de continuar caminhando, o homem necessitou criar uma nova dimensão que proporcione a liberdade de ir e vir. Embora relativa, hoje, essa liberdade é bem mais ampla no Ciberespaço do que na dimensão física – e bem menos arriscada. Portanto, a questão de algo tornar-se essencial vem sempre como consequência de suprir uma

108

Celma Paese

necessidade. A humanidade sempre buscou o aprimoramento da comunicação como uma maneira de superação das distâncias espaciais objetivas, como de uma cidade a outra, assim como as subjetivas, como o cumprimento do destino, individual e coletivo ou a busca de si mesmo. Em Alma Vênus272, ao falar sobre o destino, Antonio Negri o define como um tecido contínuo, formado a partir do conjunto das ações do homem. O autor parte do princípio de que nada é pressuposto a não ser as mudanças no meio ambiente, continuamente modificado por nós. Eticamente, somos o mundo que materializamos, através do nosso destino comum. O mundo é recriado a cada momento, quando o papel do tempo e do espaço no tecido do destino é localizado. Essa renovação acontece através da liberdade, condição essencial para existir vida, expressa na natureza do cosmos e na produção de subjetividade que formam a constituição afetiva do ser. Para expressá-la, utilizamos diferentes linguagens, como a palavra, as artes visuais e a arquitetura. A fim de manifestar os modos de interpretação do espaço através dos tempos, a arquitetura é utilizada como linguagem. Para saber ver a arquitetura, é preciso ter consciência da natureza da constituição espacial e temporal do lugar em que ela nasce. O tempo é o movimento que produz a inovação dos seres individuais, através das gerações. O conjunto comum de todas essas singularidades é a constituição temporal do mundo. Nas palavras de Negri273, essa constituição temporal deve ser o amor. Através dele é agregado no espaço o acúmulo das experiências construtivas do ser, que são depositadas lá, através dos tempos, desde sempre. O amor também pode ser considerado a constituição espacial do

mundo. O amor e suas manifestações espaciais formam a potência da vida, nas figuras da geração e da cooperação que, juntas, reúnem e multiplicam todas as potencialidades singulares em um mundo comum. O eterno torna-se cada vez mais produtivo e o dilema entre materialismo e inovação é desfeito. Se nossas vidas são definidas e constituídas por entrelaçamentos entre os afetos e as inteligências, do cérebro com o corpo, do espaço físico com o virtual e dos corpos com a arquitetura, o caminhar em todas as suas formas é a busca obsessiva da satisfação total, do amor absoluto, ou até da falsa satisfação na matéria. Através do ritual de errância eterna, o amor é consagrado como potência da constituição do mundo, essa modalidade de ocupação espacial que movimenta os corpos, até o encontro perfeito. Desde suas formas mais primitivas, quando os primeiros caminhos foram abertos pelo homem, em busca dos primeiros encontros, a arquitetura organizou os espaços e concretizou através dos tempos a expressão das diferentes possibilidades de constituições espaciais do mundo.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

109

dar em vão.

7 SOMOS TODOS NÔMADES

S

er nômade é manifestar a mais pura fome de mundo. Sensação conhecida de todo o curioso, a fome de mundo é o prazer que nasce quando nos entregamos à aventura de descobrir e explorar. Não necessariamente precisa-se saber o que se busca, nem mesmo andar por algum lugar desconhecido. O importante é entregar-se ao que também pode ser chamado de fome de descoberta. O nomadismo leva o homem a percorrer caminhos e espaços, em busca dos encontros possíveis.

Ao transferir-se para os caminhos da cidade, o nomadismo consagrou-se na figura do flâneur, que encarnou a alma do errante urbano. O flâneur mimetizou-se definitivamente com a cidade e, ao conquistar a cidade como seu playground, acabou conquistado. As narrativas de Poe, Baudelaire e tantos outros, iniciaram a prática de utilizar a cidade como suporte para manifestações artísticas e, já no Século XX, as Vanguardas consagraram essa prática. Cada um dos Movimentos celebrou, à sua maneira, a cidade como o habitat da tecnologia, do contemporâneo, da rebeldia. As representações urbanas dos Futuristas foi o primeiro passo. A cidade da banalidade Dada e, logo em seguida, a cidade além da vista dos Surrealistas, foi abrindo o caminho para as Derivas Situacionistas. Esses últimos se encarregaram de lembrar que os caminhos percorridos não passam de um espelho. Espelho que levou a mais importante revolução de costumes do século XX, que a crítica tentou intimi-

É ilusão pensar que a Deriva nasceu com Debord. O filósofo apenas deu nome à prática que ajudou a desenvolver a essência da identidade do homem urbano. A Deriva consagrou o caminhar como um ato político. Ou melhor, biopolítico. Afinal, os movimentos de 1968, que juntaram definitivamente ética, arte e política, aconteceram porque todos resolveram caminhar, por acreditar no sonho de poder mudar o mundo. Nessa época as casas móveis também se consagraram como estilo de vida. Os trailers e motorhomes, até hoje, proporcionam momentos de liberdade de ir e vir, a quem busca a sensação de estar on the road, sem perder a casa de vista. Os trailers e motorhomes podem ser habitat ou veículo de trabalho. Porém, nunca perdem a sua essência de proporcionar a possibilidade de mobilidade. O caminhar significa liberdade. O movimento do nômade tradicional, que vive o intermezzo dos caminhos, é semelhante ao do nômade urbano que anda nos caminhos da cidade nomádica, a viver os encontros possíveis. Porém, até que ponto hoje existe essa liberdade? Com a disseminação da violência urbana, as ruas e espaços públicos das grandes cidades lembram um campo de concentração, uma realidade que hoje se estabeleceu como paradigma espacial biopolítico do Ocidente. A consequência é a manipulação da incerteza do direito à preservação da vida. A fissura entre o humanitário e o político transformou a todos em estrangeiros e, na maioria das vezes, é difícil reconhecer lugares que outrora eram familiares. Quando menos se espera, surgem as mais diversas barreiras tecnológicas que têm o propósito de exercer controle sobre o espaço.

110

Celma Paese

Ironicamente, os mais vulneráveis à violência são aqueles que mais precisam de ajuda da suposta sociedade democrática. Excluídos da civilização tecnológica, essas pessoas confirmam a miséria e a exclusão como categorias biopolíticas dos tempos de hoje. Essas pessoas muitas vezes não têm onde morar. Constroem seus lares de arquitetura espontânea com as sucatas que sobram da sociedade de plástico. A pobreza, que aos poucos toma conta do mundo, faz a sedutora ilusão do espetáculo revelar sua verdadeira natureza. Quanto mais o homem torna-se sedentário dentro da realidade que o obriga a isolar seu habitat das ruas, mais cresce a sua necessidade de movimento. A consequência é a arquitetura tornar-se cada vez mais móvel. A tecnologia, apesar de não estar ao alcance de todos, mostrou que muito do imaginário do passado hoje é possível. A arquitetura, que hoje infla, rola, anda e se expande, oferece infinitas possibilidades de espaços, cada vez mais mutantes. Dentro de bunkers urbanos também há movimento. O caminho continua, de maneira diferente. O caminhar é instrumento de renovação. A fim de dar continuidade à sua jornada, o homem buscou encontrar outra dimensão espacial para continuar seu caminho. O Ciberespaço, um espaço não mapeado, onde o caos existe como no princípio, é a resposta à falta de liberdade de ir e vir. Será que mais uma vez será através do caos que o homem conseguirá restabelecer o surgimento do novo? No princípio, estabelecer um certo controle sobre o caos, era o objetivo. Saída para o devaneio da alma do Homo Ludens, viajar pelo Ciberespaço significa liberdade para a mente, que se desprende do corpo buscando novas sensações, encontros e possibilidades. No Ciberespaço, as possibilidades de troca de informações e de encontros, ainda são infinitas. O

Ciberespaço, por sua natureza abstrata, coloca em xeque todos os modos de leitura espacial que surgiram até hoje. Será que conseguimos hoje imaginar até que ponto irá essa revolução espacial? A leitura espacial continuará a mesma? Porém, até hoje nada substituiu as emoções dos caminhos da Cidade Nomádica. O nômade urbano traça sua cidade no dia a dia. No trajeto aparentemente sempre igual, a experiência é sempre diferente, pois a sucessão dos encontros e eventos dos caminhos não se repete. O nomadismo traz a liberdade de explorar, ampliar horizontes e de poder voltar para casa, com a sensação gratificante de ter saciado mais uma vez a fome de mundo. O caminho, onde a vida acontece, é o palco das descobertas e da renovação do possível, da quebra e da criação de paradigmas. Caminhando, o homem recria seu mundo todos os dias e reinventa possibilidades. Percorrendo os caminhos da Nova Babilônia, tudo é possível.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

uma vida nômade em viagens e aventuras que relatou em vários livros. Entre eles está O Rastro dos Cantos.

NOTAS 1

2

3

4

5

111

17

CHATWIN, Bruce. Op. cit., p. 22, 23 e 24.

18

Idem, p. 83, 84 e 86.

19

Ibidem, p.25.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000.

20

CHATWIN, Bruce. Op. cit., p. 81.

21

CARERI, Fancesco. Op. cit., p. 50.

[...] Caim acusou Abel de extrapolar seus limites e, como todo mundo sabe, o matou, condenando – se á condição de eterno vagabundo pelo seu pecado de fraticídio: “Quando lavrares, não terás seus frutos e, andarás por ela, fugitivo e errante”. - CARERI, Francesco; op. cit., p 30.

22

Idem, p. 56 e 57.

23

CARERI, Francesco. Op. cit., p. 60, 61 e 62.

24

Os Situacionistas serão estudados no capítulo 4 deste trabalho.

25

FRIEDMAN, Yona. La arquitectura móvil. Barcelona: 1978, Editorial Poseidon, p. 29, 37, 38, 43 e 45.

26

OTTO, Frei et al. Arquitectura adaptable. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli,1979, p. 128 e 130.

27

Idem, p. 129.

28

SIEGAL, Jennifer (Ed.). Mobile: the art of portable architecture. New York: Princeton Architectural Press, 2002, p.19.

29

FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo:Martins Fontes, 2000, p.215 e 216.

30

Idem, p.217 e 218.

31

Os Smithsons e o conceito de Cidade Cluster serão estudados no capítulo 4 deste trabalho.

32

KULTERMANN, Udo. La arquitectura contemporânea. Barcelona: Editorial Labor S.A., 1969, p. 77.

CARERI, Francesco. Walkscapes-Walking as an aesthetic practice. Barcelona: Gustavo Gili, SA, Barcelona, 2002, p. 34 a 36.

FUÃO, Fernando F. O sentido do espaço, em que sentido, em que sentido? Arquitexto, PROPAR-UFRGS, n. 3–4, 2004. DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 51, 52 e 53.

6

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Op. cit., p. 29.

7

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Op. cit., p. 59.

8

Idem, p. 57.

9

GARLET, Ivori José. Mobilidade Mbyá: história e significação. Porto Alegre, PUC-RS: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Mestrado em História Ibero-Americana. 1997.

10

CLASTERS, Hélene. The Land-Without-Evil: TupíGuarani prophetism. Chicago: University of Illinois, 1995, p. 3 e 4.

33

Idem, p. 80.

11

GARLET, Ivori José. Mobilidade Mbyá: história e significação. Porto Alegre: PUC-RS: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Mestrado em História Ibero-Americana, 1997, p. 54.

34

RAGON, Michel. Em direção a uma outra arquitetura – técnicas novas: Buckminster Fuller e os Domus Geodésicos. Livro eletrônico: , p.257.

12

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Somos águas puras. Campinas: Papirus, 1994, p. 287.

35

DUARTE, Fabio. Arquitetura e tecnologias de informação. São Paulo: FAPESP: Editora da UNICAMP, 1999, p. 80.

13

Idem, p. 296 e 297.

36

14

GARLET, Ivory José, op. cit., p. 156.

15

idem, p. 188.

16

CHATWIN, Bruce. O rastro dos cantos. Companhia das Letras, São Paulo: 1996. Bruce Chatwin (1940-89) era um promissor especialista em arte moderna da Sotheby’s em Londres quando decidiu abandonar a carreira para seguir

Segundo o Dicionário Houaiss, Sinergia deriva do grego synergía, cooperação < sýn, juntamente com érgon, trabalho. É definida como o cooperação, coesão, trabalho. Coesão dos membros de um grupo ou coletividade em prol de um objetivo comum.

37

FULLER, Buckminster. Manual de operação para a espaçonave Terra. Brasilia: Universidade de Brasília, 1985, p.12.

112 38

Celma Paese

McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Editora Cultrix, 1974, p.104.

39

RAGON, Michel. Op. cit. p. 258.

40

64

FOUCAULT, Michel. Op. cit. p.27.

65

NIETZSCHE, Friederich. Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 118.

RAGON, Michel. Op. cit. p. 259.

66

NIETZSCHE, Friedrich. Op. cit. p. 118 e 119.

41

.

67

42

SIEGAL, Jennifer. Op. cit. p.20.

BEY, Hakim. TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2001, p.73.

43

. Site consultado em 27 de Outubro de 2006.

68

44

Site consultado em 27 de Outubro de 2006.

THOUREAU, H. David. Walden ou A vida nos bosques – inclui A desobidiência civil. São Paulo: Ed. Aquariana Ltda. 2001, p.1.

69

MARCUS, Andrew Todd, Introduction. On Thoureau, Walking, & Nature. Theresholds 26 – denatures. Cambridge, MA: Massachussets Institute of Technology, 2003, p.5.

70

MONICELLI, Mario. L’Armata Brancaleone. Look filmes, Itália, 1965.

45

Site consultado em 27 de Outubro de 2006.

46

CABRAL, Claudia. Grupo Archigram - Uma fábula da técnica. Tese de Doutorado. Barcelona: UPC, 2001, p. 163

71

47

– site consultado em 27 de Outubro de 2006

DELEUZE, Giles; GUATTARI, Félix. Op. cit., p. 26, 56 e 57.

72

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1977, p. 126.

MAFESSOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. São Paulo: Record, 2001, p.52.

73

Segundo Sandra Pesavento, quando as velhas muralhas de Paris foram transformadas em depósito de lixo, Luís XII resolveu criar terraços sobre elas. O espaço, que antigamente serviu para operações de artilharia, transformou-se com o desuso em local de passeio para a população. Provavelmente, ele não imaginava que esses terraços evoluiriam para os grandes boulevards Mas foi só com Luis XIV, já no Séc. XVII, que os muros foram destruídos e Paris ganhou, no lugar do fosso, um grande cinturão verde para deleite de seus habitantes e uma área para a construção de mansões. Uma dessas áreas é a que hoje se localiza o bairro central do Marais. Em torno de 1675, já se têm notícias do que se pode chamar de estudos urbanísticos, para a abertura das primeiras boulevards. Luís XV, depois de uma frustada tentativa de reerguer as muralhas, prosseguiu com a construção da fabulosa Place Royale, que seria a futura Place de La Concorde. Apesar disso, Paris ainda mantinha a sua estrutura circular original, em forma de casca de noz.- Ver PESAVENTO, Sandra. O imaginário da cidade. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002, p. 35, 36 e 37

74

GIEDION, Siegfried. Concepção espacial na arte pré-histórica. Ver em CARPENTER, Edmund; MAcHULAN, Marshall (Ed.). A revolução na comunicação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980; p. 96 e 97.

75

BAUMAN, Zigmunt; Globalização – as consequências hu-

48

49

SIEGAL, Jennifer. Op. cit., p.79 a 89.

50

MONTANER, Josep Maria. Depois do movimento moderno – Arquitetura da segunda metade do século XX. Barcelona: 2001, Editorial Gustavo Gilli, p. 191 e 192 .

51

SIEGAL, Jennifer. Op. cit., p. 110 a 111.

52

SIEGAL, Jennifer. Op. cit., p. 112 a 113.

53

SIEGAL, Jennifer. Op. cit., p. 116 a 117.

54

SIEGAL, Jennifer. Op. cit., p. 120 a 127.

55

CARERI, Francesco. Op.cit., p.40.

56

CONTE, Giuliano. Da crise do feudalismo ao nascimento do capitalismo. Lisboa: Editorial Presença, 1976, p.43 e 44.

57

TIBURI, Márcia; Filosofia cinza – a melancolia e o corpo nas dobras da escrita. Porto Alegre: Escritos, 2004, p. 35 e 36.

58

Idem, p. 36 e 37.

59

FOCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 9,10 e 11.

60

FOUCAULT, Michel. Op. cit, p. 10.

61

FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 9.

62

CARERI, Francesco. Op. cit., p. 104 e 108.

63

FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 27, 28 e 29.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

que ele está sempre no meio dela. Esse desconhecido é o flâneur.” – BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 76.

manas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 36, 38 e 39. 76

TAFURI, Manfredo. Teorias e História da Arquitectura. Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 36.

77

PESAVENTO, Sandra. Op.cit., p.38 e 40.

78

Vindo da província, Bretonne retratou uma Paris das camadas mais baixas da sociedade pré - revolução, enquanto mapeava a cidade em seus passeios. Declarou-se só na capital imensa, que devorou os arredores cultivados, convertendo-os em ruas estéreis. – Ver PESAVENTO, Sandra; op. cit, p. 42.

91

“[...]Sem as passagens, dificilmente a flânerie poderia ter alcançado sua relevância.[...] Nesse mundo o flâneur está em casa[...] a passagem ocupa uma posição intermediária entre a rua e o interior de uma residência[...] A rua se torna moradia para o flâneur, que está tão em casa entre as fachadas das casas quanto o burguês entre as suas quatro paredes.”Ibidem, p. 66.

93

Ibidem, p.39. NASCIMENTO, Flavia. Passantes: de Poe & Baudelaire a Mac Orlan (passando por Aragon, Breton, Restif,Zola). Revista Agulha – Revista de Cultura, São Paulo – Fortaleza, julho/agosto de 2006. - . “ciel livide où germe l’ouragan,/ La douceur qui fascine et le plaisir qui tue” – Ver BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 344 e 345.

As crônicas noturnas retrataram tipos como violadores de sepulturas, prostitutas, trapeiros e até mesmo o descolador de cartazes e o recolhedor de garrafas quebradas, que viviam da venda de seus restos, prenunciando os catadores do Séc. XX.

94

80

PESAVENTO, Sandra. Op.cit., p. 50.

95

81

PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p. 41, 43 e 46.

82

BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 41 e 42.

83

BAUMAN, Zigmunt. Op. cit., p. 45 e 46. BAUMAN, Zigmunt. Op. cit., p. 45 e 46.

85

PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p. 65.

86

Paris irradiava cultura. Era a materialização da civilização, da novidade e da informação. Todos os tipos de pessoas e atividades se entrecruzavam em suas ruas e seu povo se caracterizava pelo que se chamaria de “urbanidade” de atitudes. Primeiramente, é necessário estabelecer a dimensão do anonimato ou do “engano do olhar” de quem observa a multidão das ruas. Esta nova “entidade” trazida pelas grandes cidades tornar-se-á, na pena de seus escritores, tanto local de refúgio quanto símbolo da solidão do indivíduo na grande metrópole. – PESAVENTO, Sandra, op. cit., p. 59 e 60.

87

BENJAMIN, Walter. Op. cit., p 65.

88

PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p 61.

89

BENJAMIN, Walter. Op. cit., p 71.

90

“A famosa novela de Poe, O homem na multidão, é como uma radiografia de história de detetive. Nela desaparece o material de enchimento que configura o crime. Só resta a armação: o perseguidor, a multidão e um desconhecido que organiza o seu percurso através de Londres de tal modo

Idem, p. 66.

92

79

84

113

96

BENJAMIN, Walter. Op. cit., p.39, 77, 82 e 94.

97

PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p.101.

98

BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p. 39.

99

“As passagens, uma nova invenção do luxo industrial” diz em 1852 um guia ilustrado de Paris [...] “ao lugar predileto dos perambuladores e fumantes, ao picadeiro de tudo quanto é métier imaginável.”- Benjamin cita Von.Gall, Ferdinand. Paris and seine Salons, v.2. Oldenburg, 1845, p.22 – BENJAMIM, Walter. Op. cit., p. 66.

100

Como microcosmos da sociedade capitalista, elas são a fantasmagoria perfeita de uma sociedade que exibe aquilo que cabe ser dado a ver (o mundo da circulação de mercadorias, sua faceta de beleza e sedução) e ocultar o que deve permanecer escondido (a esfera de produção do trabalho operário). Imagens transfiguradoras do real, encarnando em sí a capacidade de fetichização do mundo, as passagens se apresentam como fantasmagorias que, como representação, se colocam no lugar do real e a ele substituem com vantagem. [..]Como espécie de ruas internas, ao abrigo do vento e da chuva, elas oportunizam a flânerie e o footing pelas boutiques, com suas vitrines iluminadas. – Ver PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p.87.

114

Celma Paese

101

BENJAMIN, Walter. Op. cit., p.82.

102

BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p. 112.

103

MARX, Karl. Os 18 de Brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo: Martins Fontes, 1976, p. 80.

104

BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 44.

105

BENJAMIN, Walter. Op.cit., p. 50.

106

Segundo Bolle, com o poema Vinho dos trapeiros servindo como eixo, Benjamin quer demonstrar como a história social se articula enquanto expressão de sentimentos, mentalidade e consciência de classes. Neste ponto de sua obra, ele mostra um Baudelaire que quer mostrar os gestos de revolta das classes miseráveis e, ao mesmo tempo, o cinismo das classes abastadas. - BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: Editora da Universidade, 2000, p. 75 e 76.

107

O imposto sobre o vinho era aplicado nas cidades com mais de 4.000 moradores “O vinho permite, a esses deserdados, sonhos de vingança futura e de uma futura dominação” – BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 50 e 51.

108

BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 51 e 52.

109

NASCIMENTO, Flavia; Notas sobre o mito literário de Paris: de Restif aos surrealistas. Revista Agulha – Revista de Cultura, São Paulo – Fortaleza, Junho de 2002 - .

110

LOSCHIAVO, Maria Cristina. Architecture, homelessness and the transformation of our society. Human Layer London Project, Casagrande Laboratory – Finland, 2005.

111

CARERI, Francesco. Op. cit., p. 78 e 70.

112

< h t t p : / / w w w. a l g o s o b r e . c o m . b r / b i o g r a f i a / l e r. asp?conteudo=50&Titulo=André%20>. Consultado em 20 de setembro de 2006.

113

CARERI, Francesco. Op. cit., p. 66 e 69-70.

114

dem, p. 78 e 70.

115

BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

116

CARERI, Francesco. Op. cit., p. 79.

117

CIDADE, Daniela. A cidade revelada: a fotografia como prática de assimilação da arquitetura. Dissertação de Mestrado: PROPAR – UFRGS, 2002, p. 95 e 105.

118 NASCIMENTO, Flavia. Introdução ao “O camponês de Paris” de Louis Aragon.Ver em: ARAGON, Louis. O camponês de Paris. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.25 e 26. 119 NASCIMENTO, Flavia. Op. cit., p. 21 e 23. 120 DE QUINCEY, Thomas. Confissões de um comedor de ópio, Porto Alegre, LP&M, 2002, p. 61. 121 “O boulevard Haussmann já chegou, hoje, a rue Laffite”, dizia outro dia L’ Intransigeant. Apenas alguns passos do grande roedor e, engolido o bolo de casa que o separa da rue Lê Pelletier, ele virá descentrar a moita que atravessa com sua dupla galeria a Passagem da Ópera, para ir dar obliquamente sobre o boulevard dos Italianos. [...] Vamos sem dúvida assistir a uma perturbação dos modos da flânerie e da prostituição, através desse caminho que tornará maior a comunicação entre os boulevards e o bairro Saint-Lazare, pode-se pensar que perambularão aí novos tipos desconhecidos que participarão das duas zonas de atração entre as quais hesitarão suas vidas, tipos que serão os intermediários principais dos mistérios de amanhã.” – ARAGON, Louis. Op. cit., p. 45. 122 Idem, p. 58. 123 ARAGON, Louis. Op. cit., p. 63. 124 Idem, p.134. 125 Ibidem, p.136. 126 Ibidem, p.159. 127 ARAGON, Louis. Op. cit., p.163. 128 O labirinto é, essencialmente, um entrecruzamento de caminhos, dos quais alguns não têm saída e constituem, assim, impasses; no meio deles é mister descobrir a rota que conduz ao centro dessa bizarra teia de aranha. [...] O labirinto seria uma combinação de dois motivos: o de espiral e o da trança, e exprimiria uma vontade muito evidente de representar o infinito sob os dois aspectos de que ele se reveste na imaginação do homem: isto é, o infinito eternamente em mutação da espiral, que, pelo menos teoricamente, pode ser pensado como sem fim, e o infinito eterno retorno figurado pela trança. Ver CHEVALIER, Jean – Dicionário dos símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995, p. 530 e 532. 129 “A noite de nossas cidades [...] é um monstro imenso de lata, perfurado mil vezes por punhais[...] Assim, nos jardins públicos, o mais compacto da sombra confunde-se com uma espécie de beijo desesperado do amor e da revolta. [...] E de-

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

pois, a noite desce e os parques se levantam. Como balança um homem que adormece no trem, e sua mão pende, e logo este grande corpo que esquece a velocidade do vagão vai se dobrar á imobilidade do sonho, assim a moralidade urbana repentinamente vacila sob as árvores”. – ARAGON, Louis. Op. cit., p. 166 e 167. 130

A noite para os gregos, era filha de Caos e a mãe do Céu (Urano) e da Terra (Gaia). Em todas as culturas, é símbolo de passagem. Ela simboliza o tempo de gestação, o início do dia, momento que convém á purificação do intelecto. Entrar na noite é entrar no indeterminado, onde se misturam pesadelos e monstros, as ideias negras. É a imagem do inconsciente que nos sonhos se liberta. Entrar na noite é entrar no indeterminado, onde se misturam pesadelos e monstros, as ideias negras. Como todo o símbolo tem duplo sentido, o das trevas, onde fermenta o vir a ser, é o da preparação do dia, onde fermenta a luz da vida. - Ver o vocábulo Noite em: CHEVALIER, Jean. Op. cit., p. 639 e 640.

131

BRETON, André. Nadja. Santiago, Chile: Fondo de Cultura Econômico, 2000.

132

BRETON, André. O amor louco. Lisboa: Editorial Estampa, 1971.

133

134

BRETON, André. Nadja. Econômico, 2000, p. 53.

Santiago: Fondo de Cultura

BRETON, André. O amor louco. Lisboa: Editorial Estampa, 1971.

135

Idem, p. 74 e 75.

136

O nome da mulher a quem Breton encontrou não é dito em O Amor Louco. Sabemos, através dos biógrafos, tratar-se de Jacqueline Lamba. Sua fotografia publicada no livro, retratando-a de corpo inteiro de modo pouco nítido e embaçado, tornando irreconhecível seu rosto, permitindo apenas entrever sua nudez, pois essa amada inominada foi fotografada debaixo da água, mergulhando. Ela mergulhava, mas não no oceano, em um lago ou piscina. Artista de cabaré, um de seus números era esse, do mergulho visto através da parede de vidro de um aquário. É possível que Breton, ao escolher, dentre as muitas de que dispunha, a foto que a mostra quase vulto, sugestão mais que forma de mulher, quisesse apresentá-la como ser de outra espécie, criatura de outro elemento.

137

“Todas as flores, mesmo as que se mostram menos exuberantes nesse clima, se empenham em conjugar esforços

115

para me proporcionarem uma sensação totalmente nova. Límpida fonte, aonde vem se refletir e dessedentar a vontade de arrastar comigo um outro ser, desejo meu de percorrer a dois - e já que antes ainda me não fora possível fazê-lo o caminho perdido ao sair da infância, o caminho que entre prados se insinuava, rodeando de bálsamos aquela mulher ainda desconhecida, a mulher que um dia haveria de me aparecer. Sereis vós, finalmente, essa mulher? Só hoje, enfim, deveríeis aparecer?” – BRETON, André. Op. cit., p.69. 138

BRETON, André. Op.cit., p.115.

139

CARERI, Francesco. Op. cit., p. 86.

140

CARERI, Francesco. Op. cit., p. 86 a 88.

141

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.

142

“[...] Não se compreende a política nacional-socialista (e, com ela boa parte da política moderna, mesmo fora do terceiro Reich), se não se entende que ela implica o desaparecimento da distinção entre os dois termos: a polícia torna-se então política, e a tutela da vida coincide com a luta contra o inimigo.” – AGAMBEN, Giorgio. Op. cit., p.154.

143

AGAMBEN, Giorgio. Op. cit., p. 154.

144

Idem, p.b138 e 139.

145

Ibidem, p. 185 e 186.

146

Ibidem, p.182, 183 e 193.

147

ACNUR: Alto comissariado das Nações Unidas para refugiados - www.acnur.org

148

RIMPOCHE, Chagdug. O Senhor da Dança: a autobiografia de um lama tibetano. Porto Alegre: Makara, 2005, p.172 e 173.

149



150

AGAMBEN, Giorgio. Op. cit., p. 181 a 186.

151

“O Panóptico de Benthan [...] O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel, no centro uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel, a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas tem duas janelas, uma para o interior, correspondendo as janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse as células de lado a lado.[...]” – FOCAULT, Michel. Vigiar e punir. São Paulo: Vozes, 1977, p.177 a 180.

152

BAUMAN, Zigmunt. Op. cit., p. 41 e 42.

116 153

Celma Paese

BURROWS, Roger. Virtual culture and social science fiction. In: LOADER, Brian D. (Ed.): The Governance of Cyberspace- politics, technology and global restructuring. London: Rotledge, 1997, p. 38 a 45.

em SMITHSON, Alison and Peter, op.cit., p.128 a 134. 172

SMITHSON, Alison and Peter, op. cit., p. 114 a 127.

173

Em 1956 os Smithsons apresentam a Casa do Futuro, na exposição “This is Tomorrow” patrocinada pelo Daily Mirror. – SMITHSON, Alison and Peter. Op. cit., p. 114 a 127.

174

JAPPE, Anselm. Guy Debord. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 75 e 76.

154

Idem, p. 38.

155

BURROWS, Roger. Op. cit., p. 39.

156

Idem, p. 41.

157

Ibidem, p. 41.

175

JAPPE, Anselm. Op. cit., p. 67 a 69.

158

BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 52.

176

159

TIBURI, Márcia. Op. cit., p. 46 e 48.

160

FUÃO, Fernando. Cidades fantasmas. Porto Alegre: Arquitexto n.1, PROPAR-UFRGS, 2001, p. 2.

JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade – Internacional Situacionista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p.11 e 85.

177

JAPPE, Anselm. Op. cit., p. 83. Idem, p. 83.

LOSCHIAVO, Maria Cristina. Op. cit., p. 2.

178

162

FUÃO, Fernando. Op. cit., p. 12 a 22.

179

163

BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

164

BAUMAN, Zigmunt. Op. cit., p. 59.

165

Idem, p. 58, 59, 60 e 61.

166

AGAMBEM, Giorgio. Op. cit., p. 186.

167

Agambem comenta, que a tese de Aaron Arendt, deve ser urgentemente levada a sério, pois liga os destinos dos direitos à aqueles do Estado-nação moderno, de modo que o declínio e a crise destes implicam necessariamente o tornar-se obsoleto daqueles. – AGAMBEM, Giorgio. Op. cit., p. 140 e 141.

168

O potlatch é uma cerimônia com caráter festivo, no decurso da qual um chefe oferece ostensivamente uma quantidade enorme de riquezas a um rival, para humilhá-lo ou desafiá-lo. A prática do potlatch foi encontrada um pouco por todo o lado nas tribos primitivas, sob formas variadas. Os etnólogos observaram que o potlatch consiste muitas vezes numa destruição espetacular de enormes riquezas. O potlatch atraiu profundamente os surrealistas e as correntes da vanguarda artística revolucionária como negação da troca mercantil, fundamento das sociedades modernas, e como expressão do Dom desinteressado que propicia o estabelecimento de relações humanas livres. Ver em: BADERNA Coletivo. Situacionistas: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Livros, 2002, p.123.

SMITHSON, Alison & Peter. Ordinarienes and light: mobility. Urban theories 1952-1960 and their application in a building project 1963-1970. Cambridge, Massachussets: The M.I.T. Press, 1970, p. 144 a 153.

180

JAPPE, Anselm. Op. cit., p. 73.

181

Líder dos Letristas e nasceu na Romênia em 1924. Propõe, através do Letrismo em 1946 uma renovação cultural completa em toda a civilização. Debord o encontra pela primeira vez em 1951, no Festival de Cannes. – Idem, p. 69.

182

O grupo de Debord tem a intenção de unir crítica social de inspiração marxista à ação e acusavam os Letristas de serem demasiado artistas. De 1952 a 1954 o novo grupo letrista publicou o periódico Internationale Lettriste, e de 1954 a 1957, 29 números de Potlatch. O repúdio ao trabalho, uma vaga aspiração revolucionária e a afirmação da sua subjetividade através da cultura, os tornam semelhantes aos primeiros surrealistas, apesar de serem mais rudes e negativos, porém muito mais sinceros [...] Debord evoca este período no filme In girum imus nocte et consumimur igni – tradu-

161

169

MONTANER, Josep Maria. Depois do movimento moderno: Arquitetura da segunda metade do século XX. Barcelona: 2001, Editorial Gustavo Gilli, p. 72.

170

SMITHSON, Alison & Pater, op. cit., p. 128 a 134.

171

O primeiro projeto dos Smithson utilizando o conceito de Cidade Cluster foi o de Golden Lane (1951-1952), baseado nas ideias da Unité d’Habitation de Corbusier em Marseille. Um aspecto importante do projeto é a noção de Cidade Flexível. O projeto de Golden Lane era um piloto para desenvolver técnicas e esquemas que inclusive poderiam ser utilizados para revitalizar áreas antigas ou já existentes.- Ver

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

117

ciudad, Libero Andreotti, Xavier Costa. Barcelona: Museu D’Art Contemporani de Barcelona: ACTAR, 1996, p. 47.

zido para o português como movemo-nos numa noite sem saída e somos devorados pelo fogo – produzido no mesmo ano. – JAPPE, op. cit., p. 68, 69, 70, 72 e 78.

201

DEBORD, Guy. Em: JACQUES, Paola. Op. cit., p. 91.

183

Idem, op. cit., p. 76.

202

184

Idem, p. 77.

185

Ibidem, p. 81.

DORAN, Gil. A Global Derive. In: BORDEN; McCREERY. Architectural Design: New Babylonians. UK: Wiley Academy, 2001, p. 50 a 53.

186

Faz-se a distinção entre a fase antiga da decomposição, demolição efetiva das velhas superestruturas – que cessa por volta de 1930 – e uma fase de repetição, que prevalece desde então. O atraso da passagem de decomposição para as construções novas está ligado ao atraso existente na liquidação revolucionária do capitalismo. – JACQUES, Paola. Op. cit., p. 66.

203

Invasores urbanos.

204

Festas de música eletrônica.

205

DORAN, Gil. Op. cit, p. 53 a 57.

206

COPPOLA, Sofia. Lost in Translation (Encontros e desencontros). Estados Unidos: Produção de Sofia Copolla e Ross Katz, 2003.

207

CARERI, Francesco. Op. cit., p. 102 e 103.

208

Idem, p. 107.

187 188

Idem, p. 101. IVAIN, Giles. Formulário para um novo urbanismo. Em: JACQUES, Paola. Op. cit., p. 67 a 73.

189

ANDREOTTI, Libero; COSTA, Xavier. Op. cit., p. 42.

190

Sem assinatura. Projeto para embelezamentos racionais da cidade de Paris. Em: ANDREOTTI, Libero; COSTA, Xavier. Op. cit., p. 56 e 57.

209

???????????????

210

JACQUES, Paola Berenstein. Breve histórico da Internacional situacionista. Arquitextos: texto especial 176, abril 2003. Disponível em: .

211

CARERI, Francesco. Op. cit., p. 110. Constant. Outra cidade para outra vida. Em: JACQUES, Paola. Op. cit., p. 115 e 116.

191

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1977, p. 170.

212

192

DEBORD, Guy. Op. cit., p. 20, 21, 23 e 171.

213

193

Idem, p. 172 e 173.

194

DEBORD, Guy-Ernest, Teoria da Deriva. Em: JACQUES, Paola Berenstein. Op. cit., p. 87 a 91.

FUÃO, Fernando F. O sentido do espaço, em que sentido, em que sentido?. Porto Alegre: Arquitexto n.3-4, PROPARUFRGS, 2004, p. 12 a 22.

214

As restrições: 1- Os bombeiros de Amsterdã estariam de plantão durante a exposição. 2- Nem toda a verba seria fornecida pelo museu e a IS teria que buscar esta verba em outras instituições. CONSTANT. Die welt als labyrinth (o mundo como labirinto). Em: JACQUES, Paola. Op. cit., p. 118 a 120.

215

WINGLEY, Mark. The great urbanism game. Em: BORDEN, Ian; McCREERY, Sandy. Architectural Design: New Babylonians. UK: Arch: Wiley Academy, 2001, p. 9 a 20.

216

WINGLEY, Mark. Op. cit., p. 9 a 11.

217

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000.

195

Idem, p. 87.

196

Ibidem, p. 87.

197

Neste ponto, Jappe cita Marx: Tal visão – alguns se surpreenderão com isto – é muito próxima da de Marx, tão amiúde acusado de ”fetichismo do trabalho”. Marx lembra a composição musical como exemplo de uma atividade que combina o aspecto lúdico com uma aplicação séria. (Cf. Principes d’une critique de l’économie politique, in Oeuvres, vol II, op. cit., p. 289). Ver em JAPPE, Anselm, op. cit., p.167.

198

DEBORD, Guy-Ernest. Em: JACQUES, Paola, op. cit., p. 88.

199

Idem, p. 88.

200

BERNSTEIN, Michele. A Deriva em Kilometros. Em: Teoria de la Deriva e outros textos Situacionistas sobre la

218

WINGLEY, Mark. Op. cit., p. 13.

219

WINGLEY, Mark. Op. cit., p. 14.

220

CONSTANT. Em: ANDREOTTI, Libero; COSTA, Xavier,

118

Celma Paese

do coletor de impostos e acaba sendo aprisionado quando se recusa a pagar o tributo devido. Sai da cadeia, no dia seguinte, quando um benfeitor ou benfeitora (provavelmente sua tia Maria) paga a dívida exigida por lei. Para Thoureau, pagar os impostos seria um ato imoral porque significaria contribuir com um governo que patrocinava empreitadas injustas e desumanas como o projeto escravocrata e a guerra imperialista contra o México. Assim, o seu ato de desobediência civil tornava-se não apenas justificável, mas moralmente necessário e indispensável para o cidadão consciente de valores éticos desrespeitados, no caso, tanto pelo Estado como pela maioria da população em dia com seus tributos. Criticando a política imperialista Norte-Americana, o texto é de uma atualidade surpreendente. Durante todo o texto, Thoureau colocou claro sua posição de não aceitar ser manipulado por um governo que é elástico, feito borracha, para conseguir a concretização de seus interesses e, além disso, manipula seu povo a favor destes. Muito semelhante a novembro de 1967, quando aconteceu a grande Marcha ao Pentágono, em protesto contra a Guerra do Vietnã, que foi um dos maiores confrontos entre estudantes e a força militar americana.

op. cit., p. 163. 221

CHEVALLIER, Jean. Op. cit., p. 52.

222

CONSTANT. Op. cit., p. 157.

223

Idem, p. 157.

224

Ibidem, p. 158.

225

Ibidem, p. 158.

226

Hobsbawn reconhece o ano de 1968 como um ponto decisivo na história do século XX. Nos chama atenção para indicadores, como o fato da indústria francesa, no ano de 1965, ter produzido pela primeira vez mais calças femininas do que saias e o número dos caóticos seminaristas romanos declinar visivelmente. Levis triunfou, assim como o rock, símbolos da geração que queria mudar o mundo. HOBSBAWM, Eric. Tempos interessantes: uma vida no Século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.290. E aonde tudo isto levou? Em política, a geração de 1968 funcionou bem em serviços públicos e institutos de pesquisas. Outros se refugiaram na vida acadêmica. Na verdade, o que realmente mudou o mundo nos anos 60, foi a revolução cultural. O sistema tentou devorar os Hippies, mas o mundo nunca mais seria o mesmo: na medida em que ia absorvendo todas as novas ideias, o próprio sistema também se modificava, consolidando uma das maiores revoluções culturais da história. Filhos dos Beats e Existencialistas, os jovens dos anos 60 foram pais dos Punks, Rockers e tantos outros movimentos de contestação do sistema no final do século XX. Acreditaram serem capazes de parar uma guerra, levarem a imaginação ao poder e enfrentar ditaduras. Também fizeram que suas ideias continuassem presentes, até hoje, dentro de cada um que se permita sonhar e acreditar na realização de seu sonho. Uma nova moral, uma nova ética e novos valores haviam sido cultivados na cabeça das pessoas, graças a eles.

227

Thoureau também acreditava no sonho. Precursor da luta ecológica que viria a tomar proporções mundiais na segunda metade do Século XX, Thoureau, como falamos anteriormente, influenciou, com suas ideias, toda a filosofia do movimento Hippie, prenunciou o Anarquismo e inspirou o movimento de resistência passiva, detonado por Ghandi, a fim de concretizar a independência da Índia. Para Gandhi, A Desobediência Civil, considerada por muitos a obra mais importante de Thoureau, tornou- se seu evangelho político: Em uma tarde de julho de 1846, Thoureau recebe a visita

Já Walden é um ensaio sobre a relação do homem com a natureza. Nesta obra, descreve a passagem do tempo, dos homens e estações, á margem do Lago Walden. Enquanto caminha, observa e, ao mesmo tempo em que faz descrições pragmáticas, quase que técnicas de muitas situações, também descreve homens e criaturas de maneira poética, utilizando metáforas fascinantes, como quando um Cervo bebendo água em seu poço é descrito como o Cervo de Brama, o Deus Hindu. Outras vezes, quando não estava caminhando, principalmente nos tempos de inverno, se coloca a escutar as impressões de sons e luzes que lhe chegam daquele mundo selvagem que o rodeia, entregando-se á pura contemplação. THOUREAU, H. D.; Walden : inclui “A desobediência civil”. São Paulo: Ed. Aquariana Ltda., 2001, p.12. 228

O World’s Frist Human Be-in reuniu mais de 20 mil jovens, vindos de todas as partes do mundo, que rumaram até São Francisco para cantar, dançar e tomar ácido, coberto de contas e flores. Para esta reunião psicodélica compareceram também Timothy Leary, o papa do LSD, o poeta beat Allen Ginsberg, além de outros novos gurus. No final daquele verão, a cidade tinha sido invadida por um total de 100 mil

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

Flower Children, que exigiam da prefeitura comida, casa e assistência médica. São Francisco virou a capital Hippie, o que acabou atraindo milhares de turistas e, como sempre acontece, tudo aquilo virou um espetáculo de consumo fácil. “Para aproveitar aquele ano em São Francisco era preciso estar permanentemente usando alguma droga, de preferência LSD.”(HOBSBAWN, Eric; Op.Cit., pp 280) Na mesma época, em junho, acontecia em Monterrey, próximo de São Francisco, o Monterrey Pop. Era o primeiro grande festival de rock. Eric Hobsbawn considera o rock o símbolo mais importante dos anos 60. O Rock começou a conquistar o mundo no final dos 50 e abriu um profundo fosso entre as gerações anteriores e as pós-55. Por esse motivo, os festivais de rock como Monterrey e Woodstock são tão importantes, para entender esta época, quanto às revoltas estudantis de 68 e o Movimento Hippie. Monterrey Pop gerou o êxodo das tribos para Monterrey, consagrou Jimmy Hendrix e Janis Joplin como astros pop, além de contar com outras grandes presenças como o The Who e The Mammas and the Papas. Era o Califórnia Dream’in. Outros festivais se seguiram, mas o maior de todos foi Woodstock: realizado no fim de semana de 15 a 17 de agosto de 1969, um mês depois de o homem ter pisado na lua. O evento se chamava Woodstock Music & Art Fair, subtitulado Primeira Exposição Aquariana. Seu slogan “três dias de paz e música” logo foi modificado para “três dias de paz e amor”. Woodstock foi como a cerimônia de consagração da Contracultura. Aqueles que tiveram o privilégio de viver o festival de perto saíram em estado de graça. O Festival foi a antevisão da utópica sociedade que os Hippies propunham. 229

230

MAcLUHAN, Marshall. A revolução na comunicação. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1980, p. 220. O Archigram surgiu a partir de alguns estudantes de arquitetura e urbanismo que se reuniram para publicar uma revista ilustrada de caráter contestatório e provocativo, também denominada Archigram. Um nome que vem da junção entre as palavras “architecture” e “telegram”. A ideia era lançar uma publicação que fosse mais simples e mais ágil que uma revista  comum e que tivesse a instantaneidade de um telegrama. Esta publicação mesclava projetos e comentários sobre arquitetura com imagens gráficas, cuja referência vinha do universo pop da TV, do rádio e das histórias em quadrinhos, como os space-comics, por exemplo. A linguagem utilizada na programação visual da revista era a da bricola-

119

ge, através da justaposição de desenhos técnicos, artísticos, fotografias, fotomontagens e textos. Com esta publicação eles instauraram uma crítica irônica e radical às convenções e aos procedimentos estabilizados. Os questionamentos levantados em seus artigos eram uma reação contra a obviedade e a monotonia no processo de representação e de criação arquitetônica. SILVA, Kretli da Silva. Redescobrindo a arquitetura do Archigram. Arquitextos, p.1. Disponível em:< www.vitruvius.com.br>. 231

CABRAL, Claudia. Grupo Archigram: uma fábula da técnica. Tese de Doutorado. Barcelona: UPC, 2001, p. 180.

232

COOK, Peter (Ed.). Archigram. Princeton: Princeton Architectural Press, 1999, p. 6.

233

COOK, Peter. Op. cit., p. 36 a 44.

234

Idem, p. 18 a 23.

235

Ibidem, p. 44 e 45.

236

O Homo Movens para os Metabolistas é aquele que habita cápsulas de habitação que se locomovem livremente quando necessitam satisfazer as necessidades de trabalho, cultura e lazer de seus habitantes, sem precisar deixá-las. – DUARTE, Fabio. Arquitetura e Tecnologias de Informação. São Paulo: FAPESP: Editora da UNICAMP, 1999, p. 75.

237

KUROKAWA, Noriaki. Dos sistemas de metabolismo. Em: La Arquitectura metabolista. Buenos Aires: Cuadernos Summa N.20: Nueva Visión, 1969, p. 16 e 18.

238

DUARTE, Fabio. Op. cit., p. 75.

239

COOK, Peter. Op. cit., p. 3.

240

CABRAL,Claudia. Op. cit., p. 210.

241

FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 343.

242

COOK, Peter. Op. cit., p. 48 a 55.

243

CABRAL, Claudia. Op. cit., p.181.

244

CABRAL, Claudia. Op.cit., p.181 e 182

245

Idem, p.182

246

COOK, Peter. Op. cit., p. 86

247

Living city andou pelo interior da Inglaterra, pela área de Los Angeles e, posteriormente foi apresentada na documenta de Kassel, na Alemanha. – Idem, p. 86

248

COOK, Peter. Op. cit., p. 74.

249



-

120

Celma Paese

Acesso em: 20 ago. 2006. 250

251

Como o também florentino Archizoom, de Andrea Branzi, Gilberto Corretti, Paolo Deganello, Dario e Lúcia Bartolini e Massimo Morozzi, também fundado 1966.O primeiro projeto importante deles também foi expressar a insatisfação com o pensamento modernista na mesma Superarchitecture em Pistoia, Itália. Um ano depois, em Modena, mostraria um trabalho conjunto. . MONTANER, Josep Maria. Depois do movimento moderno: arquitetura da segunda metade do século XX. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 2001, p. 223.

264

DUARTE, Fabio. Arquitetura e Tecnologias de Informação. São Paulo: FAPESP: Editora da UNICAMP, 1999, p.72.

265

WILSON, Peter Lamborn. Utopias piratas: mouros, hereges e renegados. São Paulo: Conrad, 2001.

266

BEY, Hakim. TAZ-Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2001, p. 15.

267

BEY: .

268

BEY, Hakin. Op. cit, p. 12.

269

Idem, p .23.

270

O importante é ir à busca de espaços – geográficos, sociais, culturais, virtuais e imaginários enfim, de qualquer natureza – com potencias para a implantação de TAZ. Dessa maneira o mapa psicotopológico não será uma abstração visando o controle de um território pelo Estado, mas sim mais um recurso para preservar a existência das zonas autônomas.- Ibidem, p. 22 e 23.

252

CARPENTER, Edmund; McLUHAN, Marshall. Revolução na comunicação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980, p. 219.

253

McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Editora Cultrix, 1974, p. 64.

254

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 92 e 93.

271

255

FUÃO, Fernando F. O sentido do espaço: Em que sentido, em que sentido?. Arquitextos 3 – 4: Porto Alegre, RS, UFRGS, 2004, p.12.

McHULAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Editora Cultrix, 1974, p. 65.

272

256

LÉVY, Pierre. O que é virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996, p.24.

257

LEÃO, Lucia. O labirinto da hipermídia: arquitetura e navegação no ciberespaço. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 46, 64, 65 e 70.

NEGRI, Antonio. Kairós, Alma Vênus, Multitudo: nove lições ensinadas a mim mesmo. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p 102, 148, 150 e 151.

273

“A primeira dimensão fundamental da experiência do mundo é o tempo: o amor deve, portanto, ser a constituição temporal do mundo”. Ver NEGRI, Antonio. Kairós, Alma Vênus, Multitudo: nove lições ensinadas a mim mesmo. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.148.

258

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999, p.127 a 130.

259

LÉVY, Pierre. O que é virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996., p.20 e 21.

260

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 131.

261

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 52 e 53.

262

McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Editora Cultrix, 1974, p. 59.

263

CARTER, Dave. Digital democracy or Information aristocracy?. Em: LOADER, Brian D. (Ed.): The Governance of Cyberspace- politics, technology and global restructuring. London: Rotledge, 1997, p. 136 a 152.

REFERÊNCIAS

BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: Editora da Universidade, 2000.

AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

BORDEN, Ian; McCREERY, Sandy. New Babylonians. UK: Architectural Design: Wiley Academy, 2001, p. 9 a 20.

ARAGON, Louis. O camponês de Paris. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Somos águas puras. Campinas, SP: Papirus, 1994.

ANDREOTTI, Libero; COSTA, Xavier (Ed.). Teoria de la deriva y otros textos situacionistas sobre la ciudad. Barcelona: Museu D’Art Comtemporani de Barcelona, ACTAR, 1996.

BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. São Paulo: Ed. Brasiliense,1985.

ANDREOTTI, Libero; COSTA, Xavier (Ed.). Situacionistas, arte, política e urbanismo. Barcelona: Museu D’Art Comtemporani de Barcelona, ACTAR, 1996.

BRETON, André. Nadja. Santiago, Chile: Fondo de cultura econômico, 2000. BRETON, André. O amor louco. Lisboa: Editorial Estampa, 1987.

BADERNA Coletivo. Situacionistas: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Livros, 2002.

CABRAL, Claudia. Grupo Archigram: uma fábula da técnica. Tese de Doutorado. Barcelona: UPC, 2001.

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. Tradução José Fernandes Dias. São Paulo: Editora Cultrix, 1995.

BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976.

CARERI, Francesco. Walkscapes: walking as an aesthetic practice. Barcelona: Gustavo Gili, SA, Barcelona, 2002.

BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1999. BEY, Hakim. TAZ: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2001.

CARPENTER, Edmund; McLUHAN, Marshall (Ed.). Revolução na comunicação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980. CHATWIN, Bruce. O rastro dos cantos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

BENJAMIN, Walter. Textos de Walter Benjamin. Tradução: Flavio R. Kothe. São Paulo: Àtica, 1985.

CHEVALLIER, Jean; GHEERBRANDT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José

122

Celma Paese

Olympio, 1995. CIDADE, Daniela. Autópsia da cidade.Arquitexto, PROPAR-UFRGS, n. 1, 2001. CIDADE, Daniela. A Cidade Revelada: a fotografia como prática de assimilação da arquitetura. Dissertação de mestrado. PROPAR – UFRGS, 2002. CLASTERS, Hélene. The Land-Without-Evil: TupíGuarani prophetism. Chicago: University of Illinois, 1995. CONSTANT, Neo-Babylone. In: Architectures Fantastiques. L’Architecture D’ Aujourd’Hui Jun/Jul 1982. CONTE, Giuliano. Da crise do feudalismo ao nascimento do capitalismo. Lisboa: Editorial Presença, 1976. COOK, Peter (Ed.). Archigram. New York: Princeton Architectural Press, 1999. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1977. DEBORD, Guy. Panegírico. São Paulo: Conrad, 2002. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. DUARTE, Fabio. Arquitetura e tecnologias de informação. São Paulo: FAPESP: Editora da UNICAMP, 1999. FOCAULT, Michel. Vigiar e punir. São Paulo: Vozes, 1977.

FOCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978. FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo:Martins Fontes, 2000. FRIEDMAN, Yona. La Barcelona: Poseidon, 1978.

arquitectura

móvil.

FUÃO, Fernando. Cidades fantasmas. Arquitexto, Porto Alegre: PROPAR-UFRGS, n.1, 2001. FUÃO, Fernando. Canyons. Porto Alegre: Ed. do Autor, 2001. FUÃO, Fernando F. O sentido do espaço, em que sentido, em que sentido? Arquitexto, Porto Alegre: PROPAR-UFRGS, n.3-4, p. 10 a 35, p. 12 a 22, 2004. FULLER, Buckminster. Manual de operação para a espaçonave Terra. Brasilia: Universidade de Brasília, 1985 GARLET, Ivori José. Mobilidade Mbyá: história e significação. Porto Alegre: 1997, PUC-RS: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-Mestrado em História Ibero-Americana. GARZON, Eugenio. La Ciudad Acústica. Paris: Lês Livre Libre, 1926. GIBSON, Willian. Neuromancer. São Paulo, Ed. Aleph, 2004. HOBSBAWM, Eric. Tempos Interessantes: uma vida no Século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. HOMERO. A Odisseia. Guanabara: Ed. Matos Peixoto, 1964.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

123

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000.

bolismo. Buenos Aires:1969. Ediciones Nueva Visión. Cuadernos Summa N.20 -Nueva Visión- La Arquitectura Metabolista.

HUXLEY, Aldous. As portas da percepção e o céu e inferno. Porto Alegre: Ed. Globo, 1979.

KULTERMANN, Udo. La arquitectura contemporânea. Barcelona: Editorial Labor, 1969.

JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade e a Internacional Situacionista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

LEÃO, Lucia. O labirinto da hipermídia: arquitetura e navegação no ciberespaço. São Paulo: Iluminuras, 1999.

JACQUES, Paola Berenstein. Breve histórico da Internacional situacionista. Arquitextos: texto especial 176. Disponível em: , abril 2003. JAPPE, Anselm. Guy Debord. Petrópolis: Vozes, 1999. JANSON, H.W. Historia de la pintura. Madrid: Editorial Labor, 1964. JUNG, Carl Gustav e após sua morte, M.L. Von Frantz. O Homem e seus Símbolos. Tradução Maria Lucia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. KANH, Lloyd. Cobijo. Madrid: H. Blume ediciones, 1973. KEROUAC, Jack. On the road (Pé na estrada). Porto Alegre: LP&M, 2004. KRETSCHMER, Ernest. Constituición y Carácter. Tradução José Sole Sagarra. Barcelona: Ed. Labor S.A., 1954. KUROKAWA, Noriaki. Dos sistemas de meta-

LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. LÉVY, Pierre. Cybercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. LÉVY, Pierre. O que é virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996. LYNTON, Norbert. Arte Moderna. In: O mundo da arte. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Brittanica do Brasil Publicações Ltda, 1978. LOADER, Brian D. (Ed.). The Governance of Cyberspace: politics, technology and global restructuring. London: Rotledge, 1997. MAFESSOLI, Michel. Sobre o Nomadismo: vagabundagens pós-modernas. São Paulo: Record, 2001. MARCUS, Andrew Todd. (Introduction.) On Thoureau, Walking, & Nature. Theresholds 26 – denatures. Cambridge, MA: Massachussets Institute of Technology, 2003. MARX, Karl. Os 18 de Brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo: Martins Fontes, 1976. McHULAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem (underestanding media).

124

Celma Paese

São Paulo: Editora Cultrix, 1974. McHULAN, Marshall. A revolução na comunicação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2000. MONTANER, Josep Maria. Depois do movimento moderno: arquitetura da segunda metade do século XX. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 2001. NASCIMENTO, Flavia. In: Revista Agulha: revista de cultura. Notas sobre o mito literário de Paris: de Restif aos surrealistas. São Paulo – Fortaleza: junho de 2002. Disponível em: . NASCIMENTO, Flavia. In: Revista Agulha: revista de cultura: Passantes: de Poe & Baudelaire a Mac Orlan (passando por Aragon, Breton, Restif, Zola). São Paulo – Fortaleza: julho / agosto de 2006. Disponível em: . NEGRI, Antonio. Kairós, Alma Vênus, Multitudo: nove lições ensinadas a mim mesmo. Rio de Janeiro: DP&A, 2003 NIETZCHE, Friederich. Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1983. OTTO, Frei et al. Arquitectura adaptable. Barcelona: Gustavo Gilli, 1979.

PESAVENTO, Sandra. O imaginário da cidade. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002. POE, Edgar Alan. O homem na multidão. São Paulo: Cultrix, 1968. RAGON, Michel. Em direção a uma outra arquitetura. E-book. Disponível em: 2006. RIMPOCHE, Chagdug. O senhor da dança: a autobiografia de um lama tibetano. Porto Alegre: Makara, 2005. ROWBOTHAN, Sheila. Promise of a dream: remembering the sixties. New York: Verso, 2001. RUSSEL, Bertrand. Elogio ao ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. SADLER, Simon. The Situationist City. Cambridge: The MIT Press, 1998. SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997. SIEGAL, Jennifer (Ed.). Mobile: the art of portable architecture. New York: Princeton Architectural press, 2002. SILVA, Marcos Sólon Kretli da Silva. Redescobrindo a arquitetura do Archigram. Arquitextos, 2006. Disponível em: . SMITHSON, Alison&Peter. Ordinarienes and light: Mobility. Urban theories 1952-1960 and their application in a building project 1963-1970. Cambridge, Massachussets: The M.I.T. Press,1970.

Caminhando: o caminhar como prática socioestética - estudos sobre a arquitetura móvel

TAFURI, Manfredo. Teorias e História da Arquitectura. Lisboa: Editorial Presença, 1988. TIBURI, Márcia. Filosofia cinza: a melancolia e o corpo nas dobras da Escrita. Porto Alegre: Escritos, 2004. THOUREAU, Henry David. Walking: a little book of wisdom. New York: Harper Collins Publishers, 1994. THOUREAU, H. David. Walden ou a vida nos bosques: inclui A desobidiência civli. São Paulo: Ed. Aquariana Ltda., 2001 TZU, Sun. A arte da guerra. Rio de Janeiro: Record, 1983. URIS, Leon. Exodus. Rio de Janeiro: Record, 1958 VELLOSO, Rita de Cássia Lucena. O cotidiano selvagem: arquitetura na Internationale Situationniste. Arquitextos, 2003. Disponível em: < www.vitruvius. com.br> WIGLEY, Mark; PINDER, David. New Babylonians: Architectural Design. local: data ???, jun./2001. WIGLEY, Mark. Constant’s New Babylon: the hyper-architecture of desire. Rotterdam, Witte de With, Centre of Contemporary Art, 010 Publishers, 1998 WILSON, Peter Lamborn. Utopias piratas: mouros, hereges e renegados. São Paulo: Conrad, 2001.

125

Sites: Entrevista de Hankin Bey: . Site consultado em 2006. TRAILER AIRSTREAM. . Site consultado em 2006. WBCCI Airstream Club. . Site consultado em 2006. SUPERSTUDIO. . Site consultado em 2006. Filmografia: MONICELLI, Mario. L’Armata Brancaleone. Itália: look filmes, 1965. COPPOLA, Sofia. Lost in Translation (Encontros e desencontros). Estados Unidos: Produção de Sofia Copolla e Ross Katz, 2003.

Formato Mancha Tipografia Papel Número de páginas Tiragem Impressão e Acabamento Ano

21 x 21cm ..... Minion Pro offset 75 g/m2 (miolo) Supremo 250g/m2 (capas) 126 500 Gráfica Editora Pallotti 2015

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.