Caminhão sem freio?

June 29, 2017 | Autor: F. Chagas-Bastos | Categoria: International Political Economy, Argentina, Economia Política
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SEXTA-FEIRA, 19.09.2014

FABRÍCIO H. CHAGAS BASTOS* Caminhão sem freio?

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Congresso argentino aprovou na madruga de hoje a reforma da Lei de Abastecimento - recurso criado por Perón para controlar a inflação no país por meio da indexação dos preços de bens e serviços no longínquo ano de 1974. O aspecto nocivo ao setor empresarial é evidente. No entanto, descendo à rua, é interessante olhar como a medida bate à porta da classe média argentina. Antes, permitam-me voltar a São Paulo. O professor da USP André Singer, ao pesquisar as mudanças na “alma” do Partido dos Trabalhadores, fala em um petismo sendo engolfado pelo lulismo ao longo dos 12 anos dos governos Lula-Dilma. Correndo o risco da supressão dos detalhes, de modo breve, o que Singer diz é que a figura de Lula trouxe para dentro de si todos os conflitos da sociedade brasileira e com isso deslocou o eixo da disputa eleitoral de um embate esquerda-direita para um entre ricos e pobres. Um aprofundamento do que fora realizado por Getúlio Vargas com as classes sociais do País.

Usando a fôrma de Singer, e olhando a nova medida do governo argentino, o que salta aos olhos é que mesmo em 11 anos de governo (Néstor-Cristina), Cristina Kirchner não conseguiu o amálgama necessário para pacificar os conflitos da sociedade argentina - tal qual Perón havia feito. E, ao não lograr o realinhamento das bases eleitorais do país como fizeram Lula e o PT, Cristina (em fim de mandato) joga com medidas à classe média, tentando garantir terreno para sua sucessão. O cenário é de uma média classe média que foi achatada ao longo da deterioração da economia argentina, em movimento contrário ao que se viu no Brasil. Cerca de 275 mil argentinos vivem em condições de miséria, nas chamadas “villas miséria”, o que corresponde a 10% da população do país. Reformar a indexação dos preços e amarrar mais ainda a inflação é um recurso de curtíssimo prazo, que em pouco tempo poderá ampliar o número de miseráveis. Em comparação, a incorporação das pessoas de baixa renda no Brasil ao mercado resgatou milhões, como mostra o relatório da ONU: desde 1990, os famintos caíram de 14,8% para 1,7% da população. Enquanto na Argentina, se é temerário arriscar que houve uma paralisia do elevador social, é seguro dizer que as medidas do governo são desencontradas, tentando num cabo-de-guerra garantir (ao mesmo tempo) sobrevivência política e parcos avanços de qualidade de vida à população. Sem entrar numa avaliação binária e tosca entre efi-

SEXTA-FEIRA, 19.09.2014

ciência de ‘esquerda’ e ‘direita’ - quase uma reedição do embate comunismo-capitalismo -, e ainda olhando para o esquema que André Singer propõe, parece-me que a Argentina sofre para criar condições para enxergar suas divisões de classe e, com isso, propor políticas de longo prazo que visem o estabelecimento de interesses de cada uma delas. O legado de Perón se dilui: a crise foi tão aguda e estilhaçou a base social argentina de tal maneira, que as medidas erráticas dos Kirchner privilegiam poucos (ora os mais pobres, ora a elite). Diferença sensível ao que vemos no Brasil, onde pobres e ricos ganham - mesmo com o discurso político repolarizado. É interessante notar que ao dobrar a esquina de quase metade da segunda década do século XXI, há um arrefecimento do neopopulismo na América Latina, sem que se percam as figuras dos governos de esquerda do começo da década. Cristina mimetiza com suas medidas populares um Chávez morto. Bachelet volta ao poder no Chile

para aprofundar suas reformas, depois de um governo de direita. Dilma Rousseff sofre um desgaste profundo ao final de seu primeiro mandato. Maduro vive uma crise contínua. Evo e Correa são exceções. As opções com o avançar dos anos escasseiam, as oposições tiveram suas bases sociais corroídas por falta de propostas reais e, hoje, conseguem nada mais que posturas figurativas - as agendas são pasteurizadas, mesmo que com a roupagem do “novo”. Se Ariel Palacios me permitisse, perguntaria sem cerimônia: quando a motorista Kirchner sair, a classe média argentina, comprimida como foi, pode transformar o país num caminhão sem freio?

FABRÍCIO H. CHAGAS BASTOS É PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS (UFGD) E DOUTORANDO EM INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA PELA USP

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