Caminhar entre duas casas: cotidiano e processo de uma residência artística

June 4, 2017 | Autor: Glayson Arcanjo | Categoria: Walking (Art), Cotidiano, Arte contemporáneo, Lugar, Desenho
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Caminhar entre duas casas: cotidiano e processo de uma residência artística Glayson Arcanjo de Sampaio, Estratégias Expositivas do Desenho em Arte Contemporânea, UNICAMP-UFG.

RESUMO O presente texto se dá como uma narrativa surgida de processos desenvolvidos em residência artística. Ambienta o leitor ao contexto da residência, focando nas relações entre artista e lugar, e estipulando como trajeto principal o espaço compreendido entre duas casas: a casa-morada (edifício Copan) e a casa-ateliê (casarão Phosphorus). Busca, ao percorrer o espaço entre as casas, ativar por meio do ato de caminhar e de um corpo que se percebe e percebem as coisas a sua volta, as escolhas feitas, através do uso do dispositivo fotográfico para coleta de dados da paisagem na cidade. Entremeados ao texto, apresenta desenhos, breves notas e séries de fotografias que são resultantes de um trabalho paralelo realizado em ateliê. PALAVRAS-CHAVE Casa, Cotidiano, Processo, Fotografia.

ABSTRACT This text can be read as a narrative emerged from developed processes in artistic residence. It sets the reader into the context of residence, focusing on the relationship between artist and place, and establishing as main path the space between the two houses: the house-dwelling (Copan building) and the house-studio (Phosphorus mansion). In order to go through the space between the houses, this text is an attempt to turn through the act of walking and a body that is noticed and notices things around it, the choices made by the use of photographic device to gather information on the city landscape. Drawings, brief notes, and series of photographs as the result of a parallel work in studio are interspersed in the text. KEYWORDS House, Everyday life, Process, Photography.

1. As duas casas e o olho celeste Cheguei a São Paulo pelo terminal rodoviário. De lá, segui para a estação do metrô, entrando no trem, no sentido Portuguesa-Tietê, com destino a estação da Sé. Ao sair da estação, caminhei a pé pelas ruas Irmã Simpliciana e Venceslau Brás, chegando a um casarão de 1890, localizado à Rua Roberto Simonsen, número 108. Era 24 de junho, primeiro dia na Residência Phosphorus1. 1

A Residência Phosphorus é um programa voltado para artistas que possuam práticas multidisciplinares com interesse em realizar processos que dialoguem com a casa, o entorno urbano, a arquitetura e outros aspectos da região central de São Paulo. Em 2014, foi realizado, com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura - Programa de Ação Cultural - 2013, através do edital nº 24/2013, o "Concurso de Apoio a Projetos de Espaços Independentes Vinculados às Artes Visuais no Estado de São Paulo". O

Phosphorus é um espaço para experimentação e criação artística situado nas dependências deste casarão do século XIX, sendo que a casa, após passar por pequenas reestruturações, conta, hoje, com ambientes destinados à realização de trabalhos individuais e coletivos, residência artística e exposição, sala de estudos, biblioteca, cozinha, jardim e escritório. Nomearei tal lugar por casa-ateliê. Nos dias que se seguiram, nos meses de junho, julho e agosto, fiquei instalado em um quarto no apartamento 221, no 22° andar do bloco C do edifício Copan, localizado na Avenida Ipiranga, 200. A este lugar nomearei casa-morada. Ao habitar duas diferentes casas e avistar a cidade do interior destas moradas, percebo o quão dispares estas vistas se tornam pelo simples fato de estarem atreladas às experiências visuais (e sensíveis) que, cotidianamente, buscamos construir. Ao observar a paisagem das janelas e exercitar distintas extensões do visível (o desenho da cidade, a localização de ruas, a comparação das dimensões dos edifícios, etc.), passo a criar relações espaciais com o que vejo. Este exercício de qualificação do espaço pode ser entendido como um dos modos de compreensão do lugar em que vivemos; do lugar onde nos encontramos. A ideia de extensão passa a ser visível ou sensível: a distância vista ou distancia percorrida; o território e a geografia, a natureza e a construção. Se pensarmos na cidade contemporânea, ao menos a que nos acostumamos a viver, a especialização dos espaços, chamemos de lugares, é o que passa a dar sentido à vivencia. A espacialidade então pode ser um conceito moldado pelo modo como nos relacionamos com o espaço. Se entre dois lugares, eu tenho uma montanha ou um edifício, eu nomeio este entre como natural ou artificial, qualificando-o. A espacialidade seria uma condição deste entre, ou uma interpretação deste vazio. (SPADONI, 2009, p. 16)

Do interior da casa-morada, a visualização espacial revelava a paisagem de um horizonte longo e profundo preenchida por aglomerações geométricas e cromáticas das centenas arranha-céus. Michel de Certeau (1994) aproxima a visão da cidade, a partir do ponto de vista elevado do observador, à de uma cidade-panorama, onde a olharíamos com um olhar totalizante, sendo este a materialização contemporânea do olho celeste renascentista que, através das invenções da perspectiva e das vistas panorâmicas, criou ficções da cidade por meio das representações pictóricas em perspectiva.

programa teve 156 inscritos e 4 tiveram suas propostas selecionadas: Glayson Arcanjo, Janaína Wagner, Daniel Albuquerque e Márcia Granero.

Figura 1. Cidade vista pela janela da casa-morada (Copan). Fotografia do autor.

Já na casa-ateliê era possível visualizar das janelas laterais e frontais; mais próximas ao nível da rua, um luxuoso prédio com suas inúmeras janelas ainda fechadas e a área de serviços do prédio vizinho em reforma e que ocupado por trabalhadores da construção civil exibia roupas estendidas em diversos varais.

Figura 2. Vista da janela da casa-ateliê (Phosphorus). Fotografia do autor.

2. O caminhar e os jogos dos passos Desde o primeiro dia da residência artística fotografei determinadas situações percebidas no trajeto compreendido entre as duas casas. Mas como organizar as informações vistas na paisagem, de modo que a imagem gerada pela câmera fotográfica pudesse transmitir algo da “minha experiência de estar ali, pudesse incorporar a cena diante de mim?” (SHORE, 2012, p.152) E como responder, através de soluções formais, questões vinculadas à nosso tempo? Quando eu estava fazendo a foto do cruzamento do Beverly com La Brea, pensando onde exatamente ia posicionar minha camera para dar sentido a todas as variações visuais que estava tentando coordenar, percebi que, enquanto me debatia com os fatos visuais a minha frente, estava lhes

impondo uma organização pictórica realmente clássica. (...) Aquilo me perturbou. Eu estava impondo uma solução do século 17 a um problema do século 20. Era uma solução formal elegante, mas não expressava a forma e a pressão desta época. (...) me dei conta de que estava impondo uma organização que vinha de mim e de coisas que eu tinha aprendido. Não era algo que realmente brotava da cena diante de mim. (Ibidem, p.152)

Ao sair do interior das casas e caminhar pelas ruas, avenidas, praças e bairros da cidade, busco outros meios para incorporar a paisagem a minha frente. É por este caminhar que tentarei expressar as pressões e formas dos tempos atuais, na tentativa de capturar o que brota das cenas cotidianas vividas na região central de São Paulo durante os dois meses de uma residência artística. Mas haveria grandes diferenças entre observar a cidade do alto, pela janela, e observar a cidade caminhando por suas ruas? O deslocamento pela cidade permite extrapolar os limites casa e perceber seu entorno. Permite que meu corpo chegue até a rua, atravesse as divisões dos bairros, as divisas dos setores e da região. Ao caminhar, passo a observar a paisagem urbana, as diferenças na arquitetura, o modo como pessoas se deslocam e interagem com os espaços. É uma interação não só em relação ao outro, pois o caminhar tem possibilitado que meu corpo se (re)organize a cada nova situação vivenciada. Durante a residência, a rotina de caminhar a pé pela Avenida Ipiranga, passar pela Sete de Abril, atravessar o Anhangabaú, a Praça do Patriarca, as Ruas Direita, Floriano Peixoto, XV de Novembro, e a Praça da Sé permitiu a incorporação de elementos da paisagem da região central de São Paulo: prédios, ocupações, ambulantes, showzinhos, performers, estátuas vivas, músicos; deparar com moradores de rua, passar pelos pedintes e por manifestações; esbarrar com estacionamentos lotados, movimentos de lutas por moradia, protestos com a polícia, com ações de desocupação e reintegração de posse de prédios, etc. O caminhar se liga aos passos. Certeau nos dirá que são os “jogos dos passos que moldam os espaços” e “tecem os lugares” (CERTEAU, 1994, p.176) Em primeiro lugar, se é verdade que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de possibilidade (por exemplo, por um local onde é permitido circular) e proibido (por exemplo, por um muro que impede prosseguir), o caminhante atualiza algumas delas. Deste modo, ele tanto as faz ser como aparecer. Mas também as desloca e inventa outras, pois as idas e vindas, as variações ou as improvisações da caminhada privilegiam, mudam ou deixam de lado elementos espaciais. (Ibidem. p. 177-178)

Evidenciada pela presença de um corpo por tais espaços e a passagem por trajetos possíveis, passei a coletar imagens das coisas que brotavam a minha frente.

3. As fachadas e outras vistas aéreas Tornaram-se mais frequentes a realização de fotografias de edifícios em desuso ou desocupados e também os ocupados por movimentos por moradia popular, que se proliferavam na região central. Ao detectar tal interesse, seguiramse esforços direcionados a encontrar modos de entrar no interior destes edifícios. Entretanto, diante uma proibição2 para entrar nos interiores nos prédios, tal veto acabou gerando o desvio necessário para olhar para fora da casa, a partir da coleta fotográfica de situações visuais, envolvendo fachadas, janelas, placas, letreiros, faixas, grafites, cartazes, e tudo o mais que se misturava às propagandas e outras informações visuais “aéreas” percebidas nas partes externas dos edifícios ocupados.

Figura 3. Imagem construída por sobreposição e edição de fotografias coletadas. Fotografia do autor.

A postura corporal dos pedestres e turistas que passam diariamente pelo centro parece se repetir no corpo que fotografa. Assim olho para cima, e repito o corpo que busca alcançar, com a visão, o ponto mais alto dos arranha-céus. Por não contar com o recurso “zoom” da câmera a necessidade de aproximar-me do objeto a

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Mas para entrar em qualquer um desses edifícios, uma negociação precisa acontecer (o que pode ser uma conversa, indicando as reais intenções em entrar no local). Na busca por um responsável em um dos prédios ocupados, encontrei a Sra. Ângela, síndica da ocupação número 5, que me recebeu na porta de entrada, ouviu minhas intenções, viu as fotografias e desenhos de trabalhos anteriores, mas ressaltou que não poderia autorizar a entrada de qualquer pessoa não cadastrada como moradora antes de uma reunião com a coordenação do movimento. Retornei em dias posteriores, outras três vezes, até me dar conta da impossibilidade da entrada.

ser fotografado (edifício) me colocava na cena e no jogo da produção da própria imagem. Após serem coletadas, as imagens passaram por processos de edição; sofreram distorções, cortes, emendas; foram remontadas digitalmente e impressas em papel. As impressões serviram de base para produção de uma série de outras imagens transferidas para papel carbono. Estas surgem como uma espécie de sobrevida, ou, ao menos, abrem a possibilidade da imagem (arquivo) da câmera fotográfica do celular, por meio de processos posteriores, serem deslocadas para outros suportes, meios e espaços de exibição.

Figura 4. Transferências de imagem e exposição na janela do Phosphorus. Fotografia do autor.

4. Notas finais para um processo aberto Sinalizei, em negrito, no decorrer deste texto, sequencias de palavras definidas como notas de processo. Juntamente com o procedimento do caminhar e da coleta, transferência e exposição das fotografias, essas notas permitem ampliar as possibilidades narrativas da imagem a partir dos elementos observados na paisagem da cidade. O desejo de dar nomes às coisas e às relações entre tais coisas; entre operações e ações que se constituíram no decorrer do processo, revelaria aspectos peculiares de meu próprio cotidiano e do cotidiano da cidade, através da paisagem e das experiências vividas e assimiladas com a minha passagem por ela3.

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Rua Roberto Simonsen. 1. Antiga Rua do Carmo. Seus primeiros nomes foram Rua de Santa Teresa e Rua da Boa morte. 2. Uma das mais antigas da cidade faz parte da fundação inicial e recebeu as primeiras construções arquitetônicas de São Paulo. Residência. 1. Casa. 2. Lugar para se viver; local de morada. 3. Definição um pouco confusa quando se trata da minha própria, já que pareço residir em várias e ao mesmo tempo não ter nenhuma, entre elas: residência Phosphorus (casa-ateliê); apartamento 22, bloco B, no Copan (casa-morada), residência em Campinas (para

Referencias CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. Residência Phosphorus 2014 (publicação impressa da residência). São Paulo: Phosphorus, 2014. SPADONI, Francisco. Espacialidade. In: Ecos urbanos 8ª Bienal Internacional de Arquitetura. São Paulo: SENAC São Paulo, 2009. SHORE. Stephen. Forma e pressão. In: Revista ZUM nº3. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012.

Glayson Arcanjo de Sampaio é artista visual. Professor do curso de Artes Visuais da FAV-UFG. Doutorando da pós-graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UNICAMP. Mestre em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG (2008). Investiga o Desenho e seus processos partindo da elaboração de estratégias poéticas que se dão na escolha, negociação, entrada e permanência em espaços desabitados, em desuso ou em demolição para produzir ações, desenhos, fotografias e vídeos. cursar o doutorado em andamento); residência nas cidades por onde passei anteriormente (casa-Goiânia e casaUberlândia). Primeira casa, na Rua Silvianópolis nº13 com Rua Oligisto em Belo Horizonte (casa-infância), etc. Ocupação. 1. Luta por Moradia Popular. Luta por Moradia Digna. Movimento Popular Paulista. Frente de Luta por Moradia. Movimento dos Sem Teto do Sacomã. Movimento de Ocupação de Espaços Públicos Ociosos. 2. Ocupação número 5. Faixa. 1. Pedaço de pano, tecido, lona, plástico, que recebe pintura com tinta contendo frases, nomes, siglas, indicações de protesto, convocações ou anúncios. Placa. 1. Idem às faixas, porém feitas de outros materiais como madeira, latão ou zinco. Às vezes são reutilizadas, como as placas produzidas pelo programa Minha Casa Minha Vida, e cobertas por tinta, tem apagado todos os dizeres anteriores, menos a presença de um logotipo da Caixa, como indicativo de um utópico financiamento. Janela. 1. Artefato utilizado para permitir ou bloquear a entrada de luz e ar em vãos feitos nas paredes dos prédios. 2. É percebida em grande número nos prédios antigos da Sé. 3. Quando chegamos, praticamente todas se encontravam fechadas. Com o passar dos dias, paulatinamente, as janelas, uma-a-uma começaram a se abrir. Estando abertas, são muito usadas para dependurar roupas. Também são uteis para trocar conversas com os vizinhos, fumar, espiar o movimento da rua e da janela do prédio da frente. Fachada. 1. Diz-se da parte exterior de determinado espaço arquitetônico. 2. É à frente. Possuem elementos decorativos, grades, volutas, janelas lindíssimas. Atualmente está repleta de faixas, roupas, antenas, placas. 3. Quando a parte externa não condiz com a interna. Nos prédios ocupados, é possível ver através das janelas abertas, que a estrutura dos prédios pode estar comprometida, os tetos de gesso estão caindo e anunciam o perigo de ruína de paredes e pisos. Vizinho. 1. O da esquerda, um prédio do fim do século XIX em reforma. 2. O da direita um prédio também do mesmo período e onde funciona uma encadernadora, loja de carimbos e placas. 3. Os de frente, dois prédios ocupados por movimentos por moradia. Reforma. 1. Sempre se reforma a fachada dos prédios, mas quase nunca seu interior. 2. Quando alguma ocupação é mal sucedida, os ocupantes são retirados do local pela polícia, trata-se de uma desocupação. Em alguns casos, o dono do prédio abandonado, com receio de novas ocupações vende o imóvel. O comprador põe em prática um plano “infalível” de reforma para novo uso do imóvel adquirido, salvo exceções, em geral, é um plano de transformá-lo em restaurante ou em estacionamento. Habitar. 1. Minha tentativa de ficar o maior tempo possível dentro dos imóveis que permitiram a entrada. A partir desse permanecer instaurar alguns pequenos instantes, desenhos, ações que podem ou não ser registrados; podem ou não ser mostrados posteriormente. 2. Os moradores das ocupações habitam os cômodos dos prédios, no centro da cidade, por estes estarem desabitados e por esperarem que, com sua permanência no local, possam ganhar uma morada futura. Reintegração. 1. Recebi no dia 21 de agosto, diretamente das mãos do Capitão Fernando Ferreira, uma carta informando sobre a ação de retirada, no dia 09 de setembro de 2014, das famílias que estão vivendo em todos os 5 prédios ocupados nas ruas Roberto Simonsen e Floriano Peixoto. 2. “Devido à grandeza do evento, o acesso de veículos será restrito aos envolvidos na operação e o fluxo de pessoas será controlado em áreas, certo que devemos contar com aproximadamente 10 caminhões e diversos carregadores o que certamente irá mudar a rotina do local e impedir a passagem de outros veículos não autorizados”.

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