Caminhava sob o chicote do senhor, agora o enfrenta:o conceito de revolta em Albert Camus

July 4, 2017 | Autor: L. Couto Rogoski | Categoria: Albert Camus, Arte, Niilismo, Liberdade, Revolta
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Caminhava sob o chicote do senhor, agora o enfrenta: o conceito de revolta em Albert Camus Larissa Couto Rogoski e Robson da Rosa Almeida1

Resumo: O conceito de revolta descrito e discutido pelo filósofo Albert Camus em sua obra O homem revoltado. Conceito de revolta vislumbrado em suas nuances explicativas e relacionais que ampliam o olhar sobre o tema transformando-se, sem vertigem, em um reconhecimento do direito de igualdade e conseqüente busca pela liberdade total do(s) homem(ns). Em ressonância com a literatura (poesia e romance) Camus não forma um conceito unidimensional, mas o oposto. A noção de liberdade como fim de todo desejo/anseio de revolta do homem que a coloca em movimento está no fim desejado, e não alcançado, de acordo com o que argumenta o filósofo, mesmo afirmando um niilismo do qual não é possível ignorar ou renunciar. A negação do real em busca do direito de igualdade é a pronúncia primária do conceito de revolta explicitado por Camus. A partir da negação do homem que se revolta apresentam-se as formas que a revolta tomará em sua busca por uma mudança que visa a unidade e a reconciliação do mundo. De acordo com estas noções, o presente texto compromete-se com o conceito de revolta em Camus e suas relações aproximativas com o niilismo, a liberdade e as artes. Palavras-chave: Albert Camus; Revolta; Liberdade; Niilismo; Arte. Abstract: The concept of revolt described and discussed by the philosopher Albert Camus in his book The rebel. Concept of revolt glimpsed in its explanatory and relational nuances that expand the view on the subject becoming without vertigo, a recognition of the right to equality and the consequent search for total freedom ( s ) male (s ). In resonance with the literature (poetry and romance) Camus does not form a unidimensional concept , but the opposite . The notion of freedom as the end of all desire / longing revolt of the man who puts in motion is the desired end, and not achieved, according to the philosopher argues that, even claiming a nihilism which can not ignore or waive . The denial of the real in search of the right to equality is the primary pronunciation of the concept of revolt explained by Camus . From the denial of man who rebels present the ways that the revolt will take in their quest for a change seeks unity and reconciliation in the world. According to these notions, the present article is committed to the concept of revolt Camus and their approximate relationships with nihilism, freedom and the arts. Keywords: Albert Camus ; Revolt ; Freedom ; Nihilism ; Art . 1. Introdução

O presente artigo assume o conceito de revolta a partir do pensamento de Albert Camus. Tomando como ponto de partida a obra O homem revoltado, definir-se-á o conceito central já explicitado e a implicação no conceito de liberdade formulado em consonância com

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Mestrandos PPG Filosofia PUCRS.

a revolta. O que está pressuposto ao afirmar que “o homem que caminhava sob o chicote do senhor agora o enfrenta”?

2. A revolta: ondas que, estagnadas, se tornam violentas

Que é a revolta senão a afirmação de um direito estendido a toda a humanidade sem exceções? Que é um homem revoltado senão aquele que assevera afirmativamente a este direito reivindicando-o por meio do ato de revoltar-se? O homem revoltado é este sujeito que diz não ao ato abusivo de outro ao mesmo tempo em que diz sim ao seu direito de insurgir contra, ou seja, há uma dialética d(n)a revolta que assegura o próprio ato de revoltar-se. De acordo com o que afirma Albert Camus (1913-1960) em sua obra O homem revoltado, “a revolta não ocorre sem o sentimento de que, de alguma forma e em algum lugar, se tem razão” (1996, p. 25). Camus pretende anunciar seu conceito de revolta de acordo com a asserção “o revoltado, no sentido etimológico, é alguém que se rebela, (...)contrapões o que é preferível ao que não o é” (1996, p. 26). Apresentado deste modo, a revolta é dada como um movimento do sujeito que se revolta e ao se revoltar assume a percepção de que há algo identificável no homem, algo intransponível e irrenunciável, um direito estendido a todo homem e que lhe assegura o direito a revoltar-se contra outro homem, mesmo este possuindo direitos iguais aos seus mas, por vezes momentaneamente, lhe impede a realização plena deste direito comum. Neste movimento de revolta rejeita-se a ordem humilhante ao exigir o tratamento igualitário, tornando, assim, o respeito um bem supremo. Somente neste movimento da revolta é que o direito se revela, sendo este movimento causado e constitutivo da tomada de consciência do dito bem supremo extensível a todos. A revolta não é somente a recusa, mas a exigência do tratamento igualitário, sendo esta admitida pelo revoltado ao perceber sua identificação com o outro que o humilha. Este respeito que lhe é devido a partir do movimento de reconhecimento nutrido pela revolta é um bem supremo que se admite pelo direito de todo homem à sua liberdade. Nas palavras de Camus(1996, p. 27),

Em última instância, ele aceitará a derradeira derrota, que é a morte, se tiver que ser privado desta consagração exclusiva a que chamará, por exemplo, de sua liberdade. Antes morrer de pé do que viver de joelhos.

Nestes parâmetros, de levar ás últimas instâncias a revolta, o homem revoltado necessita tomar propulsão em algo que o sustente, afinal, a luta que coloca a vida à preço deve

ser uma luta que valha o peso a pagar. Qual luta é maior do que aquela que se faz em uníssono? Sendo assim, o respeito e a liberdade, como anteriormente afirmado, são direitos de todos e todos podem (quiçá devem) revoltarem-se por estes bens supremos, portanto, o que assegura ao homem revoltado que sua luta por seu direito é também um direito que lhe é devido é a afirmação de buscar efetivar algo que está sendo-lhe privado de modo impróprio, pois se todos possuem um direito x e revoltar-se como meio de alcançar a efetivação deste direito lhe é um direito de igual modo, o direito x não é contingente. O movimento de revolta suscitado pela tomada de consciência de seu direito é um movimento não-egoísta, pois mesmo sendo um homem revoltado que se insurge contra o algoz ele o faz pelo bem comum que deveria estar efetivado a todo homem. Não é o caso de todo homem ser escravo ou ser senhor, mas de todo homem, escravo e senhor, serem somente respeitados e livres. Segundo escreve Camus (1996, p. 28),

O escravo se insurge, por todos os seres ao mesmo tempo, quando julga que, em face de uma determinada ordem, algo dentro dele é negado, algo que não pertence apenas a ele, mas que é comum a todos os homens, mesmo àquele que o insulta e o oprime, pertencentes a uma comunidade preparada2.

Este bem comum de que fala Camus retira o indivíduo de sua suposta solidão dandolhe uma razão para agir. Razão esta que somente se faz presente para o indivíduo informado de seus direitos. Esta razão que é o bem comum, contudo, para Camus, é algo que transcende o homem particular, pois há uma solidariedade imposta pela consciência coletiva de que a liberdade, p. ex., é um bem comum do qual nenhum indivíduo pode ser privado e que todo homem pode reivindicar. Este algo que transcende o indivíduo é um valor preexistente que vai de encontro às filosofias puramente históricas onde o valor é conquistado ao fim de uma ação. A afirmação de Camus, portanto, necessita do aceite da premissa de que existam valor preexistentes. Sobre o assunto transcreve-se as palavras de Camus (1996, p. 33),

A revolta é o ato do homem informado, que tem consciência de seus direitos. Mas nada nos autoriza a dizer que se trata apenas dos direitos do indivíduo. Pelo contrário, parece efetivamente, pela solidariedade já assinalada, que se trata de uma consciência cada vez mais ampla que a espécie humana toma de si mesma ao longo de sua aventura.

A aventura a que se refere Camus é uma “aventura de todos”, um sentimento compartilhado, o mal de um homem que se torna peste coletiva - há somente um coração no

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A saber, Camus fala de uma comunidade preparada como sendo uma comunidade das vítimas que une carrascos e vítimas, mesmo o carrasco não estando ciente disto.

homem revoltado que pulsa e jorra seiva para todos que dela necessitam. Ou, como diria Camus (1996, p. 35), “eu me revolto, logo existimos”.

2.1 Recusa e exigência: arte e revolta

A revolta é recusa do açoite e exigência de igualdade. A arte é recusa do mundo e exigência de unidade. Camus afirma que a arte, assim como a revolta, é “fabricante de universos”, o artista refaz o mundo em um movimento de implícita recusa do mundo dito real, mas não recusa total, há algo que não se desfaz, o que há, então, é uma contestação. Contestação que se dá na efemeridade do mundo, há algo que o homem deseja possuir, mas que lhe escapa, neste efêmero a arte aprisiona em unidade o que não se degrada, “o amante frustrado pelo amor poderá finalmente contemplar as cariátides gregas para apoderar-se daquilo que, no corpo e no rosto da mulher, sobrevive à degradação” (CAMUS, 1996, p. 294). A arte conduz às origens da revolta, pois, ao tentar dar forma a um valor, uma transcendência viva nasce. Mesmo na arte realista há uma opção, um recorte do real que dá significação ao artístico, não existe imaginário puro, todavia. Sobre o ato de criação Camus afirma que ele recusa um aspecto da realidade ao mesmo tempo que afirma outro, não deve haver afirmação ou negação absoluta. Sobre a relação estreita da revolta com a arte, Camus (1996, p. 317) afirma:

A arte, pelo menos, nos ensina que o homem não se resume apenas à história, que ele encontra também uma razão de ser na ordem da natureza. Para ele, o grande Pã não está morto. Sua revolta mais instintiva, ao mesmo tempo em que afirma o valor e a dignidade comum a todos, reivindica obstinadamente, para com isto satisfazer sua fome de unidade, uma parte intacta do real cujo nome é a beleza. Pode-se recusar toda a história, aceitando, no entanto, o mundo das estrelas e do mar. Os revoltados que querem ignorar a natureza e a beleza estão condenados a banir da história que desejam construir a dignidade do trabalho e da existência.

3. Liberdade sob o sol e a história

Se pudéssemos caracterizar o pensamento de Camus esta tarefa seria um tanto ingrata e incorreria em generalizações injustas como p. ex. o já lugar comum de denominá-lo existencialista. Isso implicaria em esquecer toda a sua discussão travada em O mito de Sísifo com os existencialistas Sartre e Jaspers. Muito menos tachá-lo como um escritor marxista dada também toda sua discussão em O homem revoltado. O que não quer dizer, de forma alguma, que ele não traga em si os traços de ambas as escolas, existencialista e marxista,

embora lhes façam críticas. Mas se pudéssemos fazer uma aposta, talvez a melhor, seria denominá-lo simplesmente um pensador mediterrâneo. É imprescindível, para entender Camus e o que ele quer dizer com liberdade, compreender o que significa esse pensamento mediterrâneo em meio as correntes já citadas. O pensamento mediterrâneo pode ser traduzido nesta passagem: “Para corrigir uma indiferença natural, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol. A miséria impediume de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na história; o sol ensinou-me que a história não é tudo”.3 A liberdade que irradia dessa frase não pode ser explicada facilmente, mas desdobrada para conquistar uma significação aproximada. Sol, miséria e história, sem essas três palavras o pensamento mediterrâneo de Camus não faz sentido, muito menos a liberdade. Falar em liberdade dispensando o contexto material é algo nonsense e que está muito em voga em nossos dias. Camus não se furtou a tal indagação e demonstra os descasos do poder e as consequências que a miséria tem em seus mais variados aspectos, como p. ex. na morte e no amor. O amor e a morte são luxos que a miséria desconhece sua dignidade. “A pobreza prepara melhor para a morte silenciosa do que para essa disposição que a felicidade demanda”4. Benjamin dizia que até o mais estulto dos homens tem algo a comunicar na hora de sua morte, que ela lhe vem a iluminar toda sua vida de um só golpe. Camus discorda, nem todo homem tem algo a dizer, acostumado com esse mito de Sísifo infernal, “do trabalho inútil e sem esperança”, “levantar-se, bonde, quatro horas de escritório ou fábrica, refeição, bonde, quatro horas de trabalho, refeição, sono, e segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo”, depois disso, nem mesmo a morte que confere autoridade a todos lhe consegue ressuscitar uma vida tão sem sentido e absurda. A vida não é sem sentido em si, nem a miséria algo natural, por isso Camus, para desviar desse erro, cita a frase de Louis Guilloux “a verdade desta vida não é que morremos, mas que morremos roubados”5. Com relação ao amor, um tema demasiado amplo em Camus para os nossos limites modestos, diz ele que “o excesso de pobreza encurta a memória, retém a energia das amizades e dos amores. Quinze mil francos por mês, a vida na fábrica, e Tristão não tem nada a dizer a Isolda”6. Nem poliamor, nem monogamia, eis os limites imposto pela miséria, limites físicos e espirituais, nos quais qualquer menção a nossa liberdade na democracia é um escárnio e uma total deformação de seu conceito, o amor é um luxo para quem não tem nem tempo nem energia para fruí-lo. 3 Camus, Albert. O Avesso e Direito. Op. Cit. Pág. 18. 4 Camus, Albert. A inteligência e o cadafalso. Op. Cit. Pág. 56. 5 Camus, Albert. A inteligência e o cadafalso. Op. Cit. Pág. 57. 6 Camus, Albert. A inteligência e o cadafalso. Op. Cit. Pág. 59.

Camus vai ainda mais longe em suas análises, a pobreza da miséria pode ser ofuscada por uma ainda maior que é a sua causa: a divisão entre o trabalhador e o criador. Não se trata aqui de uma guerra schmittiana amigo-inimigo. Diz Camus “não se trata de escravo contra senhor, mas também do homem contra o mundo do senhor e do escravo7”. Na verdade, o silêncio do miserável diante da amada e da morte não é por causa do trabalho em si, mas por causa do seu trabalho alienado da criação e da coação de fazer algo externo a sua vontade. O jovem Marx dos Manuscritos econômico-filosóficos não discordaria dessa análise, em muitos trechos, podemos ver que Camus crítica antes uma certa apropriação do materialismo histórico, principalmente aquela que fazia coro aos defensores da já extinta União Soviética e sua política produtiva: “A sociedade da produção é apenas produtiva, não criadora” 8. Camus não cai em nenhum tipo de cilada unilateral, o que fazia dele um daqueles livres pensadores a quem é alvo de crítica de todos os setores, direita e esquerda. Sua crítica não se limita, em seu tempo, ao comunismo, fazendo das democracias liberais a salvação da liberdade, como a citação acima atesta ou mesmo quando diz que “o mundo hoje é definitivamente uno, mas sua unidade é a do niilismo”9, ou seja, as diferenças entre o comunismo soviético e as democracias liberais tanto europeias quanto a norte-americana não passam de uma variação do mesmo imperativo da produção pela produção. Quando Camus fala de história, está dialogando especificamente com o que ele chama de Ideologia alemã. Nessa ideologia alemã, podemos identificar um amontoado de correntes das mais heterogêneas entre si, do idealismo de Hegel ao materialismo de Marx. Nisso, Camus oscila, não de forma inconsciente, entre a negação e a afirmação da história: “São enfim, aqueles que sabem, no momento desejado, revoltar-se também contra a história que a fazem progredir”10. Camus, então, antevê a necessidade de crítica qualquer divinização da história como uma teleologia. Isso conduziria a justificação das injustiças, diz Camus: “a história por si só não oferece nenhuma fecundidade. Ela não é fonte de valor, mas ainda de niilismo. Pode-se ao menos criar um valor contra a história unicamente no plano da reflexão eterna.? Isso é o mesmo que ratificar a injustiça histórica e a miséria dos homens. 11” O niilismo, ao contrário do que um leitor apressado de Camus pode pensar, e talvez algumas obras, como O mito de Sísifo, facilitaram essa leitura, é um elemento provisória, histórico, e não absoluto. Se por um lado, Camus crítica a divinização da história, por outro lado ele irá

7 Camus, Albert. O homem revoltado. Op. Cit. Pág. 327. 8 Camus, Albert. O homem revoltado. Op. Cit. Pág. 313 9 Camus, Albert. O homem revoltado. Op. Cit. Pág. 313 10 Camus, Albert. O homem revoltado. Op. Cit. Pág. 347. 11 Camus, Albert. O homem revoltado. Op. Cit. Pág. 386.

igualmente se insurgir contra o anti-historicismo, o que para ele é somente uma variação do mesmo fenômeno niilista Um conceito de liberdade a-histórico seria abstrato e exterior aos homens para Camus. Isso vem a dar no mesmo que o historicismo, ambas em sua visão sistemática e abstrata confluem para uma história onde o homem é subsumido nela ou como um mero exemplar de um conceito a-histórico. A única forma possível de falar de história, segundo Camus, seria a “dos arrependimentos e das possibilidades”. A história seria, por seu turno, a história dos fracassos, um continuum. Vimos até agora um pensamento com muitos traços em comum com o marxismo e o existencialismo, mas nada que desse a Camus aquela coloração característica do pensamento mediterrâneo. Só surge uma distinção radical quando Camus, ao invés de amaldiçoar este mundo por sua falta de sentido, se maravilha “pela luz e pelo esplendor dos corpos12”. Qual o significado, então, do sol que nem mesmo a história e a miséria são capazes de anular sua forca? Em primeiro lugar, e talvez o fato mais notável, seria chamar atenção para uma filosofia tropical, em que nós brasileiros, mentes colonizadas, sempre achamos um contrasenso e que seriamos um dos mais felizes beneficiários. Camus vem, por conseguinte, nos dar a boa nova “encontram-se muitas injustiças no mundo, mas existe uma da qual nunca se fala, que é a do clima. Fui, durante muito tempo, um dos beneficiários dessa injustiça, sem o saber13”. Esses homens tributários de tal injustiça, os homens do norte, sonham “com outra terra onde o pão e o céu sejam leves14”. Desta feita, o fundamento geográfico da história universal de Hegel é posto de cabeça para baixo e o dito “todos buscamos ao norte” perde seu sentido. Essa é apenas uma das consequências, a outra é o que significaria falar em uma “ética solar”? Primeiro, ela teria que lidar com esse mundo sem esperança, em que, ao contrário do norte, não se precisa buscar a luz. Camus chama a atenção para a fugacidade desse mundo da superfície que iria “desaparecer e que era preciso amá-las desesperadamente15”. Tomar consciência disso é o primeiro passo, para Camus, de descobrir a cultura. “Era preciso que me lembrassem o mistério e o sagrado, a finitude do homem, o amor impossível, para que eu pudesse um dia voltar para os meus deuses naturais com menos arrogância16”. Esse salto para a cultura pode ser despertado tanto por um romance como por meio desse reconhecimento do sofrimento do Outro: “quando se chegou a conhecer os subúrbios industriais, fica-se

12 Camus, Albert. A inteligência e o cadafalso. Op. Cit. Pág. 120. 13 Camus, Albert. O Avesso e Direito. Op. Cit. Pág. 20. 14 Camus, Albert. A inteligência e o cadafalso. Op. Cit. Pág. 121 15 Camus, Albert. A inteligência e o cadafalso. Op. Cit. Pág. 120 16 Camus, Albert. A inteligência e o cadafalso. Op. Cit. Pág. 122

manchado para sempre […] e responsável por sua existência17”. Aqui se compreende a conciliação entre o sol, a história e a miséria, em que até o homem mais feliz morador destes trópicos perde sua naturalidade e não pode mais se chamar de feliz sem sentir culpa pelos Outros, o sofrimento do Outro desperta sua responsabilidade. O pensamento mediterrâneo de Camus beira ao hedonismo que só consegue se desvencilhar deste por meio da cultura. Essa fruição da natureza estabelece sua diferença com aquilo que Camus denomina de ideologia alemã. A ideologia alemã, segundo Camus, trava um combate contra a natureza enquanto o pensamento mediterrâneo busca a conciliação:

A Europa sempre existiu nessa luta entre luz e sombras. Ela só se degradou ao renunciar a essa luta, eclipsando o dia pela noite. A destruição desse equilíbrio dá belos frutos hoje em dia. Privados de nossas mediações, exilados da beleza natural, achamo-nos novamente, no mundo do Antigo Testamento, espremidos entre faraós cruéis e um céu implacável. 18

A luz do Mediterrâneo, para Camus, é a única via realmente distinta da ideologia alemã, com sua perspectiva anti-colonialista e contra a visão da natureza como mera matériaprima para ser transformada pela indústria, com sua inerente condução para autodestruição da sociedade. O belo natural passa a ser, não só objeto de admiração, mas de pré-figuracão de uma possível sociedade justa. É nesse contraste entre história e natureza que surge o relampejar de algo distinto da mesmice. “Os revoltados que querem ignorar a natureza e a beleza estão condenados a banir da história que desejam construir a dignidade do trabalho e da existência”19.

3.1 Liberdade absoluta e liberdade relativa

Os contornos da liberdade foram até aqui traçados através de sua relação com a natureza, com a história e com a miséria. Da natureza, não podemos fazer o que bem entendermos, a relação não é de dominação, mas de admiração, fruição Da história, temos de nos emanciparmos de suas leis que coagem as nossas potencialidades sem cairmos ao mesmo tempo numa natureza humana imutável ou numa concepção abstrata de sociedade. Da miséria, o fim da sociedade de classes, da separação entre trabalhador e criador, por fim, o homem como criador e não mais reprodutor. De todos esses princípios já emerge uma concepção de liberdade relativa em oposição a liberdade absoluta. Mas o que torna central a 17 Camus, Albert. O Avesso e Direito. Op. Cit. Pág. 20-21. 18 Camus, Albert. O homem revoltado. Op. Cit. Pág. 344. 19 Camus, Albert. O homem revoltado. Op. Cit. Pág. 317.

dicotomia entre liberdade relativa e absoluta é, para Camus, o limite imposto ao assassinato, que é ao mesmo tempo o limite da revolta. O assassinato como limite da liberdade e da revolta é também um limite para o próprio Estado. Mesmo o criminoso, mesmo em legítima defesa, o assassinato, seja por meio da pena de morte do Estado ou a luta revolucionária de guerrilha, o assassinato, nunca, para Camus, poderá ser justificado. “Pode-se acreditar que, mesmo reconhecendo o caráter inevitável da violência, admitiam contudo que ela é injustificada20”. Porém, Camus se antecipa às possíveis consequências de hipostasiar essas conclusões, por isso, afirmará que, assim como a liberdade é relativa, a não-violência também será: “A não-violência absoluta funda negativamente a servidão e suas violências21”, ou seja, a não-violência absoluta assemelha-se ao condenado de O processo de Kafka, “de uma sujeição tão canina que […] se poderia deixá-lo vaguear livremente pelas encostas, sendo preciso apenas que se assobiasse no começo da execução para que ele viesse”. Com isso, Camus não quer dizer que, p. ex., alguém numa situação de perigo se submeta a morte iminente, mas que, de todo caso, seu ato, por mais inevitável que seja, o de defesa, nunca poderá ser justificado.

4. Me revolto, logo nós existimos

Por último, nada poderia ser mais representativo dessa ética solar que uma virada da liberdade individual do “eu existo” para a do “nós existimos”, que, como vimos, já estava préfigurada nessa responsabilidade despertada pela injustiça causada no Outro, como diz Calderón Rodríguez:

La otredad implica para Camus la aceptación del otro como "sujeto" y, por la solidaridad, esa otredad es elevada a un plano filosófico y se somete al concurso ideológico, opuesta como está a la premisa cartesiana de "Je pense donc je suis" (Pienso luego soy), bajo una propuesta adversa, que, además de parodiarla, la contradice "Je me révolte donc nous sommes". (Me rebelo luego somos).22

O que permite essa “solidariedade dos grilhões”? Para Camus, é tanto a consciência da própria servidão como o sofrimento do Outro, que são ao mesmo tempo as raízes da revolta e da arte. Camus fala muito em suas obras e ensaios sobre os segredos, que da vida é raro alguém que tenha a felicidade de encontrar um ou dois deles. Podemos ver, sem dúvida, que 20 Camus, Albert. O homem revoltado. Op. Cit. Pág. 200. 21 Camus, Albert. O homem revoltado. Op. Cit. Pág. 334. 22 Calderón Rodríguez, Luiz António. Albert Camus: la vigencia de la utopía. Op. Cit. Pág. 119.

os que ele nos quer herdar é justamente essa liberdade advinda do sol e esse despertar de nossa revolta por meio do sofrimento dos outros. Pois, enfim, para Camus, justiça e liberdade não são uma dicotomia, mas condição recíproca de existência “nenhum homem considera a sua condição livre, se ela não é justa ao mesmo tempo, nem justa, se ele não se acha livre23”.

Referências

Calderón Rodríguez, Luiz António. Albert Camus: la vigencia de la utopía. Manizales, Colombia: Universidad de Caldas, 2004. Camus, Albert. A inteligência e o cadafalso. Rio de Janeiro: Record, 1998. Camus, Albert. O Avesso e Direito. 6 edição Rio de Janeiro: Record, 2007. Camus, Albert. O mito de Sísifo Camus, Albert. O homem revoltado. 9 edição Rio de Janeiro: Record, 2011. Camus, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1996.

23 Camus, Albert. O homem revoltado. Op. Cit. Pág. 334.

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