Caminho para a prontidão - relatos de uma visita à Gira de Exu

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Caminho para a prontidão: relatos de uma visita1 Raphaelson Steven Zilse2

Conscientizando

Compreendendo que a interpretação existencial é orientada por um determinado ethos e uma determinada visão de mundo, como Clifford Geertz bem expõe,3 para compreender a cultura como construção dessa interpretação, é essencial a tentativa de sua leitura a partir da lógica interna. Assim, para compreender um rito como o desenvolvido e executado pelos participantes do culto de Umbanda, é fundamental ter como ponto de partida não a pergunta “porque alguém adoraria uma entidade associada ao mal, à morte”, mas, antes, a partir de tal lógica interna, “porque alguém não adoraria uma entidade associada ao ‘mal’,4 à morte”. Este breve relatório terá como primeiro ponto a tentativa de clareamento dessa perspectiva interna como pressuposto essencial para a compreensão do ritual observado, para, então, após uma breve descrição do local, iniciar uma descrição narrativa da “gira de exu”, findando com uma breve análise de alguns pontos. Um dos grandes filósofos do século XX, Martin Heidegger, propôs desenvolver uma interpretação da existência humana que conseguisse compreender características da essência do ser que, segundo sua linguagem, é um ser-aí (Dasein). Para ele, este ser-aí é lançado num “mundo” que, antes de significar uma totalidade cosmológica, tem significado existencial, pois direciona a visão de mundo deste ser e toda subsequente interpretação de sua existência. Este ser-aí é, consequentemente de sua inserção no mundo e no “mundo”, um ser-com, alguém que inevitavelmente é comunitário. Este ser é caracterizado pela possibilidade, uma potência interna que o direciona ao viver. Todavia, além destas positivas características, a reflexão deste filósofo, ao lidar com o ser humano, sua existência, e o significado desta para aquele, conduziu-o à questão do fim da existência. A morte, para Heidegger, é a causadora da angst (angústia) humana, aquilo que o perturba no seu mais íntimo e, na realidade, aquilo que

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Relatório de uma visita de campo (ao centro de Batuque e Umbanda do Pai Dejair, em São Leopoldo, RS) apresentado à disciplina Introdução às Ciências da Religião, no Mestrado em Teologia da Faculdades EST (02/2014), sob o Prof. Dr. Oneide Bobsin. 2 Teólogo (FLT), especialista (Lato Sensu) em Filosofia Contemporânea (FACEL), Mestrando em Teologia e História pela Faculdades EST, bolsista CNPq. E-mail: [email protected] 3 GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989, p. 83. 4 Para esta perspectiva religiosa, nenhum espírito é estritamente bom ou mau, mas são espíritos, ou forças, neutros, podendo ser utilizados de acordo com a necessidade ou desejo humanos, este, portanto, direcionando os atos e ações daquele.

o direciona em seu viver, tanto numa tentativa de fuga quanto numa de conscientização desta finalidade natural, tornando, portanto, o ser-aí, inevitavelmente, um ser-para-a-morte. Compreendendo a importância da morte dentro da reflexão acerca do ser humano, o único animal, pelo menos reconhecidamente, que possui a capacidade de voltar sua mente sobre si mesma, numa tentativa de transcender a receptividade de dados externos, construindo sistemas de interpretação, pode-se compreender a sua posição fundamental em qualquer reflexão que busque lidar com o mais íntimo do ser humano, a dimensão que “toca o homem em sua raiz ontológica”,5 aquilo que é “a revelação de seus pensamentos mais íntimos, uma confissão aberta daquilo que secretamente ama”,6 “o capítulo fundamental da antropologia filosófica”,7 a religião. Este tema, contudo, apesar de fundamental, é trabalhado de diversas formas, tantas quantas há religiões, ou, melhor dizendo, por ser uma experiência única e altamente individual, tantas quantas há pessoas existentes, indivíduos de sua própria existência. Dentro do Cristianismo, tradição preponderante no Ocidente, ao longo de sua história, mesmo ao longo da história antecedente, das teologias da qual bebeu, diversas reflexões e respostas foram desenvolvidas e dadas às perguntas existenciais fundamentais, contudo, sempre com algo como essencialmente unificador e ponto de partida fundamental, o monoteísmo. Dentro desta perspectiva, portanto, todo e qualquer desenvolvimento teológico deve necessariamente partir e chegar da e na existência de Deus, de Um Deus, que rege a totalidade criada a partir de seu poder soberano, de forma imediata ou mediada (por seres sobrenaturais, intermediários entre o ser humano e Deus), perspectiva que, como uma lógica de compreensão da totalidade, necessita ser consequente com seus pontos, em especial que, o Deus criador, mesmo sendo um Deus da vida, é aquele que também coordena a morte, o que, todavia, distintamente de Heigegger, não é o fim, contendo nihil, o causador verdadeiro da angst, mas o início de uma nova vida. Assim, pode-se deduzir que uma tradição que parta de outro pressuposto, tenha distintas consequências. Apesar de não se denominar politeísta, a Umbanda, em especial por sua construção a partir da mescla das tradições ocidentais (Cristianismo e Espiritismo) e africanas (Candomblé), possui características que poderiam ser compreendidas como um monoteísmo exclusivamente mediado por seres espirituais, sobrenaturais, que tanto

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ZILLES, Urban. Filosofia da Religião. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2009, p. 6. FEUERBACH, Ludwig. The Essence of Christianity. New York: Frederick Ungar, 1964, p. 11. “The revelation of his most intimate thoughts, the open confession of what he secretly loves”. (tradução própria) 7 ZILLES, 2009, p. 10. 6

influenciam quanto são influenciados por eventos materiais, naturais.8 Dentro desta tradição, apesar de remeter toda a criação a um único Deus, este, em nenhum momento, entra em contato direto com a criação, ou mesmo com os seres humanos, mas possui uma infinidade de intermediários que regem e orientam em todos os âmbitos da existência, e, dentre estes, aquele que mais suscita questionamentos e reflexões, a morte. Assim, dentro desta tradição religiosa (A Umbanda, ramo “abrasileirado” do Candomblé9), há entidades específicas que lidam tanto com a morte em si, quanto com o ambiente circundante, incluindo o pós-morte, e, dentro deste, seu lado “negativo”, oriundo da mentalidade difundida pela tradição cristã da existência de um local, popularmente conhecido como inferno, onde são enviados os espíritos “malignos” e daqueles que não conseguiram, por uma razão ou outra, encontrar seu caminho ao céu. Estas entidades, o mais próximo modo de relação entre o natural e sobrenatural, são os “povos de rua”, que protegem no dia-a-dia dos males que possam ocorrer, que orientam nos caminhos a percorrer, mas que também tratam com a morte no momento da qual deve decorrer. Estes “povos de rua”, como dito pelo Pai Dejair, são lidados especialmente na Quimbanda,10 “a resistência simbólica à ‘morte branca do feiticeiro negro’”,11 e estão sob dois nomes “guarda-chuvas”: exu e pomba-gira. Sob esta perspectiva, vendo o mundo e suas “energias” regidos em todos os níveis por entidades espirituais, compreendendo, em especial, a noção da possibilidade de “agradar” estas entidades, sendo o ser humano angustiado com as questões relativas à morte, pode-se, talvez, compreender a razão pela qual a pergunta feita, sob esta visão de mundo, não seria o “porque alguém adoraria uma entidade associada ao mal, à morte”, mas antes, o “porque alguém não adoraria uma entidade associada ao ‘mal’, à morte”.

Ambientando O terreiro da “religião” – como a tradição umbandista pode ser conhecida internamente – visitado encontra-se no fim de uma rua sem saída, no limiar entre o urbano e a mata, o controlável e o incontrolável, no bairro Feitoria, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. O líder do terreiro é o Pai Dejair, que possui uma relação aberta com as Faculdades EST, e está acostumado a receber turmas da graduação e pós-graduação para conhecer e participar 8

VENDOS, Mario dos. Na Gira do exu: invoking the Spirits of Brazilian Quimbanda. 2. ed. [S.I.]: Nzo Quimbanda Exu Ventania, 2008, p. 28. 9 DROOGERS, André. E a Umbanda? São Leopoldo: Sinodal, 1985, p. 15. 10 VENDOS, 2008, p. 23. 11 DROOGERS, 1985, p. 17.

dos ritos. A casa era estruturada em diversos cômodos onde ocorriam diversos ritos distintos de duas tradições: o Candomblé, que no Rio Grande do Sul é conhecido como Batuque, e que tem por entidades de adoração os Orixás das tradições africanas, e a Umbanda, que cada reunião dirige-se a uma das falanges de entidades (preto-velhos, caboclos, sereias etc.). A reunião presenciada foi desta última, e, mais especificamente, uma reunião da Quimbanda, como invocação dos exus e pomba-giras. Esta reunião, todavia, não foi tradicional, mas foi extraordinária, com iniciações, tendo seus ritos de “corte” (sacrifício), as “feituras”, aos determinados exus e pomba-giras. Estas iniciações tomaram lugar em uma sala especial na frente da casa, pequena, ainda menor pela divisão feita com um bar, mas repleta de imagens (das “feituras” de aves) e vasos (das “feituras” com “quatro patas”, e, segundo o Pai Dejair, mais energizadas), e ela pode ser definida como macabra, sombria, onde predominam as cores preto e vermelho (assim como a iluminação e a pintura do quarto), simbolizando os exus e as pomba-giras em sua relação sensual com a morte, impondo um ar, aparentemente, totalmente contrário à vida, mas, por detrás, orientado justamente pela importância desta. O salão maior, uma construção aglutinada a casa, diferentemente da construção da casa, que se assemelhava a uma casa, parecia um templo cristão, pintado de branco, pode-se dizer similar com as construções mais simples das igrejas pentecostais encontradas nos bairros de uma cidade. Dois distintivos importantes eram que, ao lado do caminho que ligava a rua à entrada do templo, estava um casebre de um cômodo com um altar de vidro, destinado à falange dos “ciganos”, e, acima da entrada do templo, um objeto construído com pedaços de ferro (representando tridentes) soldados a um aro de carro, possivelmente, simbolizando o exu do pai da casa, o “sete encruzilhadas”. Ao entrar neste salão, os olhos eram chamados a observar as paredes brancas – ambiente completamente distinto da sala dedicada aos exus e pomba-giras –, enfeitadas com pinturas dos Orixás africanos, em detalhes precisos que apresentavam suas formas humanas com seus poderes divinos, em suas vestimentas características na relação com suas características divinas, como personificações das forças reguladoras da natureza. Ao lado esquerdo da entrada havia duas fileiras de cadeiras e bancos, todas cheias ao longo da noite, e, ao lado direito, numa entrada profunda como um quarto sem parede de repartição, o “congá”, muito parecido com a estrutura das pirâmides características da América Latina, repartida em níveis, mas escura, como pedra, onde estavam posicionadas as diversas falanges e as imagens representantes destas, estando no meio de tudo uma gruta. Segundo o Pai Dejair, as imagens não são postas de forma hierárquica, não obstante, é interessante observar que na fileira mais alta, estão Jesus no centro (representando Oxalá),

Nossa Senhora da Conceição (Oxum) e Nossa Senhora de Navegantes (Iemanjá), além de outros santos mais populares da Igreja Católica Romana.

Experienciando

Ao cair da noite, estando todos acomodados em seus devidos lugares, visitantes, sentados nas cadeiras e bancos enfileirados, enquanto que as participantes femininas, com seus vestidos armados, predominantemente pretos, mas com tons de vermelho ou outras cores escuras, enfeitadas conforme suas pomba-giras, e os masculinos, com roupas sociais pretas, com alguns enfeites simbólicos de seus determinados exus, estavam posicionados de mãos dadas numa meia lua, de costas para o público, de frente e ao redor do “congá de Umbanda”, ainda com luzes acesas, inicia-se a reunião. Após os avisos das seguintes reuniões, inicia o toque contínuo de um pequeno sino, fazendo todos que estão na sala silenciarem-se, atentos no que ocorrerá, enquanto os participantes na meia-lua, com sua mão esquerda nas costas, e a direita no peito, ouvem o início das preces feitas pelo, ainda, Pai Dejair. As preces são dirigidas às entidades da casa e dos antepassados dos pais e mães de santo do pai da casa, iniciando com o exu do próprio, como já mencionado, o “sete encruzilhadas”, tendo, ao fim de cada uma, o rugir dos tambores no ritmo e canto próprios de cada entidade. Não obstante estar no rito dos exus e pomba-giras, simbolizadores da sensualidade, da marginalidade e da morte, a construção simbólica induz à reverência pelas forças que estão por detrás da vida, trazendo, portanto, esta ao centro das atenções, perceptível também no próximo momento do rito, onde o braseiro é aceso para o “descarrego”, a condição para uma vida plena, “desencruzilhada”, longe do mal, longe da morte. O rito do fumegar continua com os adultos visitantes após as crianças terem passado pelo braseiro, todavia, agora, induzido por uma maior intensidade dos tambores, ou o tinir do sino entre as canções, numa forma de perpetuação do som. O rito é feito com ervas no fogo e óleo nas mãos, assim como com as crianças, dentro da meia-lua, fumegando os pés, as mãos e o corpo, ao girar em torno de si ante a fumaça. Após este momento, o Pai Dejair leva o braseiro aos quatro cantos da sala, preparando o ambiente para o momento sagrado que ocorrerá dentro de poucos instantes, para, então, passar a fumaça pelos participantes posicionados em meia-lua, contudo, com um aroma distinto na fumaça, remetendo, possivelmente, a uma mistura específica para cada público. Ao fim deste momento apagam-se as luzes, escuridão quase completa surge, e, com o silêncio que suscitou (enfatizado com um shush do Pai Dejair), pode-se dizer numa escuridão

audível, claridade emanando apenas de velas acesas nas fileiras das falanges e, numa “intromissão” moderna, de uma luz de emergência. O Pai da casa inicia este novo momento com uma reverência frente ao congá antes de iniciar a música cantada a Oxalá, o Deus supremo, de quem todas as entidades, incluindo os exus e pomba-giras, são meros servos, acompanhada dos batuques e das palmas, num ritmo contínuo, alucinante, enchendo de emoções todos os presentes, deixando-os inquietos por mais que se tente o contrário. Em meio a esta euforia, de participantes e expectadores, externalizada ou internalizada, após canções e canções, ocorre a manifestação do “dono da casa”, e, tomando conta de seu “cavalo”, o exu “sete encruzada” sai do salão, põe seu chapéu e sua capa, e inicia sua cavalgada noite adentro. Dançando, girando, bebendo, fumando, conversando e rindo numa naturalidade explicável pelos presentes, ao serem questionados, como consequência da “prontidão” do Pai, numa sincronia entre o espírito, o “sete encruzilhada”, e seu “aparelho”. Após esta “descida” inicial, outros começaram a se manifestar, e, similarmente ao Pai Dejair, ou melhor, ao “sete cruzada”, saem para se trajar das roupas características de seus exus e pomba-giras, caso já não estejam. Após alguns momentos, quase todos estavam na eufórica manifestação, com copos e até mesmo garrafas inteiras de bebidas destiladas, que, todavia, em congruência com o “povo de rua”, não são para ostentação, mas para o puro prazer barato do “povão”, com marcas simples como “Old Eight” e “Velho Barreiro”, além de cigarros (às vezes os “ajudantes” dos exus, que ficavam segurando seus pertences, carregavam até três maços) e charutos, incessantemente, um atrás do outro, até o fim da noite. Depois de alguns momentos, entrou no salão uma figura totalmente diferente das manifestas até então, pela sua vestimenta (o único com uma capa preta tão exuberante quanto o do “sete cruzada”, mas também, com um cajado, grosso, comprido, maior que o corpo que o utilizava), todavia, mais ainda, pelo seu portar, com uma garrafa de whisky na mão, um andar quase se arrastando, corpo encurvado, olhando para o chão, sem dançar, nem girar, ou fumar, mas apenas vagando, como uma figura completamente desconhecida para quem não reconhecer estas características, mas, não obstante, identificável por dois objetos utilizados, um, na ponto de seu cajado, outro, no fim de uma corrente ao redor de seu corpo, era “exu caveira” que, desde esse momento, até umas duas horas depois, não parou de vagar por todos os lados, nessa sua lentidão, mas tendo todos os caminhos abertos para que ele pudesse passar, sem mesmo levantar sua cabeça. Dentre as pomba-giras estavam presentes a “Rainha das Sete Encruzilhadas”, a dona da casa, a “Maria Padilha”, e outras, mas todas muito bem arrumadas com vestidos armados e chapéus característicos do início do séc. XX, finais do XIX. Ainda no início, quando nem todos haviam incorporado, pode-se perceber que, aqueles que já haviam se manifestado,

cumprimentavam os outros manifestos de forma muito peculiar, como se fossem amigos de longa data que há algum tempo não se viam, conversando e rindo juntos, dançando e trocando de bebidas entre si. As manifestações e danças continuaram dentro do salão principal por algum tempo, em torno de quase uma hora, e, então, seguindo o exu “sete cruzada”, todos foram para fora, dando continuidade ao próximo momento do encontro da noite, momento especial que não ocorre em todas as reuniões, momento ápice desta noite, as iniciações. Continuando o culto pela rua por um breve tempo, logo as cerca de 50 pessoas presentes reuniram-se perante o pequeno quarto dedicado aos simples, mas poderosos, “operários”: os exus. Com os incessantes batuques nos tambores, poucos líderes adentraram a sala repleta de imagens e enfeites que, diante da extensa simbologia para a morte, suscitavam o espanto, desde o mais íntimo até o florescer na pele. Enfileiradas no chão, em frente aos poderosos vasos com os chifres dos animais de quatro patas dedicados às entidades e as armas dessas utilizadas no sacrifício, estavam as entidades personificadas em imagens à espera do sangue que seria derramado, primeiro para a permissão do início do rito, e, então, para os que buscavam um novo nível de união com seus exus e pomba-giras. As oferendas, pratos de comida muito bem apresentáveis (polenta, carne crua e farofa) tinham, espetados no alimento, charutos, tudo conforme a entidade. A primeira a ser reverenciada é a imagem, com mais do que o dobro de tamanho das outras, do dono da casa, o “sete cruzada”, interessantemente, por si mesmo, ao utilizar seu aparelho, o Pai Dejair. Num silenciar dos tambores, após a música do exu rei, o “sete cruzada”, com outros três companheiros ao redor, ele pega uma galinha que segurava, e, enquanto um segura o corpo da ave diagonalmente de cabeça para baixo, o “sete cruzada” pega uma faca, de tamanho considerável, e, tomando controle da cabeça desgovernada e cacarejante, desliza vagarosamente a lâmina, segurada pela mão direita, mas num movimento iniciando no lado esquerdo, pelo pescoço do sacrifício, numa técnica tão eficaz que faz o sangue escorrer equilibrado no fio da faca em direção à estátua que inicia seu banho de sangue, mas que, todavia, é interrompido por um breve momento, quando o sacrificador se abaixa, ergue a cabeça da ave, e, numa tentativa de união entre si e seu exu, vai com sua boca em direção ao pescoço talhado, mas ainda em movimento, e bebe da vida desse animal. Ao fim da queda das últimas gotas de vida que lhe resta, extraída para que a vida humana possa continuar sob a proteção do exu, corta-se a cabeça da ave e põe-na em cima de um pedaço de madeira à frente das oferendas, cujo centro é marcado com o sino do início da cerimônia. Enquanto arruma-se o segundo sacrifício, o primeiro é depenado e suas asas cortadas como preparo para um próximo passo que, todavia, não ocorre antes do sacrifício de mais três aves. A mesma sequência é feita com as outras aves, mas agora, o “sete cruzada”

cede a outro para beber da vida do sacrifício, desta vez, após a cabeça já cortada, e, ao terminarem as quatro vezes, banham suas cabeças em uma tigela que também foi preenchida com o sangue do sacrifício e que é repleta de tridentes, a ferramenta símbolo dos exus. As penas das aves são despejadas acima da imagem banhada em sangue, e, com a aderência do líquido pegajoso, torna-a a ave em si, cuja completude é feita ao serem postas as asas ao lado do prato onde a estátua se encontra e a cabeça da ave à frente. Com esta decoração completa, a imagem é levada à porta e, ao ser erguida perante o público em expectativa, representando a “liberação” pelos exus, mediante os sacrifícios, ouvem-se gritos de alegria e os tambores retomam junto com as danças dos exus e pomba-giras como continuidade à festa do lado de fora da sala, enquanto que, por dentro, inicia-se o rito com o primeiro iniciando. Dando continuidade ao sacrifício, é o “sete cruzada” que continua a cortar, e o primeiro iniciando, segurando a ave, toma lugar no rito, que chega ao ápice no momento em que também bebe do sangue do corte da vida, onde, com a boca ensanguentada, ergue a cabeça e canta ao seu exu, com quem agora possui laços profundos, dançando ao fazer símbolos com as mãos, uma em sua barriga, outra em suas costas. Após isto ocorrer novamente com o próximo iniciando, uma terceira ave é sacrificada para que ambos possam beber dela enquanto suas imagens são decoradas com os elementos de seus sacrifícios, para então, ao som do conto a “exu rei”, findar este momento. Ainda em meio às danças, inicia um novo ritmo, e, enquanto repetidamente cantam “vamos sarava essa rainha, ela é exu mulher”, a rainha da casa, “Maria Padilha”, entra, com sua coroa e cetro, na sala, agora tomada por um ar doce após perfumes serem borrifados, dando início aos ritos de iniciação nas pomba-giras. As pomba-giras se manifestam em ambos os sexos, assim, pode-se ver agora homens, que antes estavam tomados por exus, manifestarem pomba-giras, exteriorizando essas características femininas no falar, no dançar, nas vestimentas, agora com chapéus femininos e leques, e no próprio modo de segurar o cigarro, além de abrirem mão das bebidas tipicamente masculinas, como cachaça e whisky, para beberem champagne, ou melhor, de acordo com o “povo da rua”, o espumante. Após todo este período de “transição”, ocorrendo as manifestações e danças do lado de fora da sala, volta-se para dentro e dá-se início ao ritual de iniciação das pomba-giras que não se restringem à mulheres, havendo homens como iniciandos. Assim como com “exu rei”, o rito inicia-se com a extração e derramamento de “vida” sobre a imagem da “exu rainha”, a dona da casa, conduzido, contudo, pelo “exu cruzada”, e, da mesma forma como antes, cortam-se os pescoços, escorrendo o sangue sobre a imagem feminina. Contudo, ao invés da “exu rainha” beber do pescoço, o sangue é escorrido para dentro de uma garrafa de espumante rosé,

sendo visível a mistura dos líquidos rosa e vermelho numa bebida denominada agora de “batizada”. A imagem, após o sangue de três aves já estarem por sobre ela, é enfeitada com as partes cortadas dos animais, assim como com as imagens anteriores, dando início, agora, ao momento das iniciações. Após uma primeira ser iniciada, segurando o sacrifício, e bebendo a “batizada”, entra uma segunda, bem jovem, que, após o “sete cruzada” deslizar sua faca pelo pescoço da ave, usando um chapéu de dama, cabisbaixa, com os longos cabelos pretos cobrindo os olhos, suga o pescoço cortado da ave enquanto podia-se ver escorrer o sangue de sua boca, transformando-se em pingos e deslizando, como um rio vermelho, através de sua pele branca, por entre seus seios, adentro o vestido negro como a noite, numa cena acidental que, dentro de um rito como esses, serve como um ápice simbólico da consagração daquele corpo à sensualidade religiosa da pomba-gira. A terceira inicianda, diferente de tudo ao seu redor, tem um breve momento que parece de meditação, com os olhos fechados, cabeça baixa, imóvel e num silêncio, que é quebrado pelo início do corte que, dessa vez, esguicha sangue pela imagem, para, então, beber o sangue da vida. Após três mulheres, numa quarta figura feminina de pomba-gira, um homem é o iniciado e, assim como ocorrido até aqui, além de segurar o sacrifício para o abate, bebe de seu sangue. Após mais duas iniciações, de mulheres, canta-se à “rainha do candomblé”: “Iansã que lhe deu força, é a rainha do candomblé, vamos saravá essa rainha, pomba-gira exu mulher”.12 Ao fim do rito feminino, após limpar a sala e levar o resto dos animais sacrificados para a cozinha da casa, para o resto da preparação religiosa, que inclui o tempero do alimento que será consumido, o povo reúne-se em frente à pequena sala dos exus e pomba-giras estendendo-se até a rua, onde continuam por algum tempo os cantos, e, dando início ao fim, “exu caveira” dirige-se para dentro da sala dos exus, vai ao canto, e lentamente, tanto quanto seu andar, escora seu longo cajado na prateleira das imagens. Para estabelecer o fim oficial do encontro, apesar das manifestações continuarem mesmo após, entona-se, por múltiplas vezes: “destranca rua, destranca os meus caminhos, que foi fechado pelo povo pequeninho”.

Refletindo Apesar de, como o Pai Dejair afirmar, na “gira de exu” nada ser proibido, sem dúvida há princípios de comportamento que não são ultrapassados, mostrando que, acima de tudo, este encontro é um encontro religioso, estruturado e bem organizado, mesmo que 12

Apesar de ter sido ouvido no ritual, esta letra foi retirada de um compêndio de “pontos cantados”: VENDOS, 2008, p. 306.

incompreensível para aquele que não busque conhecer o desconhecido, com uma liturgia, hierarquia e distribuição de tarefas. Além disto, a organização é perceptível também no momento das supostas manifestações, onde, mesmo sendo estas altamente individuais, são um individual coletivo, com um propósito e ordem, tornando-as experiências religiosas comunitárias. Estes princípios são perceptíveis nos exus, onde, mesmo sendo espíritos do “povo da rua”, muitas vezes “malandros” e até mesmo ladrões, mostravam respeito, não utilizavam de xingamentos e, mesmo com bebidas na mão, garrafas inteiras, e copos cheios, não bebiam para se embriagar, característica visível na pouca quantidade de vezes em que serviram seus copos e no nível dos destilados que não reduzia muito. Contudo, mais perceptível é nas pomba-giras, que, apesar de toda sensualidade, expressa nas roupas, nos pontos cantados e nos gestos, em nenhum momento ultrapassaram a um nível, pode-se dizer, promíscuo, exibicionista, estando todas as partes íntimas cobertas, mesmo que aqueles corpos fossem, supostamente, meros “aparelhos” para os espíritos das pomba-giras, muitas vezes prostitutas, portanto, sem nenhum vínculo moral com aqueles “cavalos”, mostrando, assim, a influência ética e cultural por detrás dessas “manifestações”.

Referências:

DROOGERS, André. E a Umbanda? São Leopoldo: Sinodal, 1985. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989. FEUERBACH, Ludwig. The Essence of Christianity. New York: Frederick Ungar, 1964. VENDOS, Mario dos. Na Gira do exu: invoking the Spirits of Brazilian Quimbanda. 2. ed. [S.I.]: Nzo Quimbanda Exu Ventania, 2008. ZILLES, Urban. Filosofia da Religião. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2009.

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