Caminhos da Pesquisa em Artes Cênicas - Anais do II Seminário de Pesquisa do PPGAC/UFOP -

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Descrição do Produto

Editor Saulo Ribeiro e Marcos Ramos Projeto Gráfico, Diagramação e Capa Gustavo Binda Produção Editorial Gustavo Binda Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)



Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação



e doDepartamento de Artes Cênicas do Instituto de Filosofia,



Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (2.:



2015 : Ouro Preto, MG)

S471a

Anais do II Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-



Graduação e do Departamento de Artes Cênicas do



Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade



Federal de Ouro Preto /Elen de Medeiros, Ricardo Gomes



(Org.). - Vitória, ES : Cousa,2016.230 p. ; 21 cm



220 p. ; 21 cm



Inclui bibliografia.



ISBN: 978-85-6374-670-2



1. Teatro - Congressos. 2. Teatro - Brasil - Historiografia. 3.



Teatro (Literatura) - Técnica. 4. Performance (Arte). 5. Artes



cênicas. I. Medeiros, Elen de, 1979-. II. Gomes, Ricardo,



1966-. III. Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-



Graduação e do Departamento de Artes Cênicas do Instituto



de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de



Ouro Preto (2. : 2015 : Ouro Preto, MG). IV. Título.



CDU: 792(81)

IMPRESSO NO BRASIL | PRINTED IN BRAZIL |2016| Todos os direitos desta edição reservados à Editora Cousa Editora Cousa | Escadaria Serrat, 28 Centro Histórico, Vitória-ES | CEP 29.015-610 www.cousa.com.br | facebook.com/editoracousa

Caminhos da pesquisa em artes cênicas Anais do II Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto PPGAC | DEART | IFAC

Universidade Federal de Ouro Preto Reitor: Prof. Dr. Marcone Jamilson Freitas Souza Vice-Reitora: Profa. Dra. Célia Maria Fernandes Nunes Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Fábio Faversani Pró-Reitor Adjunto de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Alberto de Freitas Castro Fonseca Diretor do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura: Prof. Dr. Cesar Maia Buscacio

Departamento de Artes Cênicas Chefe de departamento: Profa. Dra. Neide das Graças de Souza Bortolini Professores: Acevesmoreno Flores Piegaz, Aline Mendes de Oliveira, Berilo Luigi Deiró Nosella, Bruna Christófaro Matosinhos, Carolina Bassi de Moura, Davi de Oliveira Pinto, Éden Silva Peretta, Elen de Medeiros, Elisa Toledo Todd, Elvina Maria Caetano Pereira, Ernesto Gomes Valença, Frederick Magalhães Hunzicker, Geraldo Otaviano, Luciana da Costa Dias, Marco Flávio de Alvarenga, Neide das Graças de Souza Bortolini, Ricardo Carlos Gomes, Rogério Santos de Oliveira, Rufo Herrera, Wilson Pereira de Oliveira.

Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas Coordenador: Prof. Dr. Ricardo Gomes Vice-coordenadora: Profa. Dra. Elen de Medeiros Professores permanentes: Aline Mendes de Oliveira, Davi de Oliveira Pinto, Éden Silva Peretta, Elen de Medeiros, Elvina Maria Caetano Pereira, Ernesto Gomes Valença, Luciana da Costa Dias, Neide das Graças de Souza Bortolini, Ricardo Carlos Gomes, Rogério Santos de Oliveira. Professores colaboradores: Berilo Luigi Deiró Nosella (UFSJ), Melissa da Silva Ferreira (UDESC - pós-doutoranda PNPD-CAPES).  

II Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas

Comissão organizadora e científica: Elen de Medeiros, Ernesto Gomes Valença, Luciana da Costa Dias, Ricardo Carlos Gomes. Comissão executiva: Andréa Sannazzaro, Carolina de Pinho Barroso Magalhães, Frederico Caiafa, Letícia Issene.

Anais do II Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas

Organização: Elen de Medeiros Ricardo Gomes Revisão: Elen de Medeiros Frederico Caiafa Arte gráfica: Éden Peretta Colaboração: Andréa Sannazzaro Apoio: PROPP UFOP CAPES FAPEMIG Ministério da Educação  

APRESENTAÇÃO

Em sua segunda edição, o Seminário de Pesquisa do Programa de PósGraduação em Artes Cênicas do DEART/IFAC/UFOP traz como tema os Caminhos da pesquisa em Artes Cênicas. O evento fez parte das atividades do PPGAC, aprovado pela CAPES em outubro de 2013 e cujas atividades acadêmicas tiveram início no primeiro semestre de 2014. Com a realização do encontro, esperamos que o cruzamento das pesquisas e das práticas artísticas propiciem aos participantes a descoberta de novos caminhos das artes cênicas, incorporando um diálogo entre o fazer e o pensar. Os textos completos dos autores de oficinas, demonstrações e comunicações realizadas durante o encontro, que aqui se apresentam, são fruto do crescimento e amadurecimento do curso, que se direciona a um fortalecimento de suas atividades na cidade de Ouro Preto, abrangendo pesquisadores de múltiplas cidades e estados do Brasil. Dessa forma, com grande satisfação, reunimos aqui a reflexão de trabalhos de pesquisa desenvolvidos em âmbito nacional na área de artes cênicas, percorrendo inúmeras maneiras de pensar a nossa área. Agradecemos a todos pelo esforço e pelo apoio para a realização do seminário e a viabilização de seus anais. Elen de Medeiros Ricardo Gomes

Sumário Mostra de processos Trabalhar sobre si mesmo Adriana da Silva Maciel............................................................................................11 Processos de criação do espetáculo Habemus Corpus Luiz Carlos Costa Sarto ............................................................................................16 Oficinas Corpo sonoro: o ritmo como instrumento para a criação cênica Tábatta Iori............................................................................................................24 Comunicações Segundo o Arena – o épico e o coringa em Arena conta Zumbi e Tiradentes Suttane Queiroga Hoffman ......................................................................................30 O político e o popular: uma análise sobre o CPC da UNE Letícia Gouvêa Issene ..............................................................................................34 Arena e Show Opinião, aproximações estéticas da cena política Everton da Silva José ..............................................................................................40 Aproximações entre o coringa do Teatro do Oprimido e o Bufão Sarah Reimann Oliveira ..........................................................................................48 As faíscas de uma fogueira: o processo de modernização do teatro brasileiro às vistas da função dramaturgo Phelippe Celestino ..................................................................................................56 Salvação em uma vereda – Jorge Andrade na perspectiva de Antunes Filho João Paulo Oliveira .................................................................................................61 O palhaço e seu duplo Eduardo Santos ......................................................................................................65 José de Alencar e seus demônios familiares: ideias fora do lugar e homoerotismo Gustavo Moreira Alves .....................................................................................71 Da tela ao palco: pintura, teatro e revolução no Brutus de Jacques Louis David Flávia Giovana Dessoldi ...........................................................................................79 Por uma encenação da comédia nacional: Martins Pena e o vislumbre da cena para além do texto Andréa Sannazzaro .................................................................................................86

O conceito de espectador teatral em Bertolt Brecht Edilaynne Paula de Lima ..........................................................................................93 Imaginação: da imagem ao jogo no desenvolvimento humano Thiago Carvalho Meira ............................................................................................97 Teoria e prática do espectador teatral: o conceito de espectador em Stanislávski Cristina da Silva Norberto ......................................................................................105 Das peles em processo: a construção do espetáculo Oración da Repertório Artes Cênicas e Cia. Antonio Apolinário da Silva ....................................................................................113 Design cênico: cenografia como habilitação nos cursos de Design Letícia Braga Corrêa ...............................................................................................120 Ocupação cênica e co-habitação teatral Daniel Marcos Pereira Mendes ...............................................................................126 Uso despropositado do corpo: matrizes da dança Butô nos escritos de Tatsumi Hijikata Bárbara de Souza Carbogim ....................................................................................135 Les ballets C de la B: poéticas transviadas no teatro-dança Fernanda Bacha Ferreira ........................................................................................140 O movimento no território do corpo sensível e do corpo poético Carmem Machado ..................................................................................................147 O limiar na preparação do criador intérprete Carolina de Pinho Barroso Magalhães .....................................................................155 Irrupções do real: a presença do corpo como documento na cena teatral Roberto Alexandre ................................................................................................163 A po-ética do afeto na criação cênica Elton Mendes Francelino .......................................................................................168 Minha vida seria ficção se não fosse realidade: procedimentos de criação e narrativas performáticas multimídia Luciana Ramin .......................................................................................................176 O ator-provocador de si-mesmo: quando o treinamento é a própria cena Ana Paula Gomes da Rocha .....................................................................................182 Manual de desobediência cênica: ações obscena [s] nas ruas Frederico Caiafa ....................................................................................................187 A paisagem sonora como provocação à construção corpo-mulher Thaiz Cantasini ....................................................................................................195 Corpo desembestado: o devir-animal, “As ondas” de Virgínia Woolf e suas afecções Matheus Silva .......................................................................................................203 Encenação: marcas de territorialização Paulo Ricardo Maffei de Araújo ...............................................................................211

Mostra de processos

TRABALHAR SOBRE SI MESMO Adriana da Silva Maciel Universidade Federal de Ouro Preto

É sabido que tanto para Jerzy Grotowski (1933-1999) quanto para Constantin Stanislávski (1863-1938), grandes mestres do teatro, seus escritos sobre o trabalho do ator não deveriam ser lidos como “receitas”, pois se baseiam em experiências práticas, sendo um tipo de knowledge how1, que contém em si questões que só serão entendidas pelo próprio fazer. De acordo com Campo (2012), o que parece realmente importar, para além dos exercícios e técnicas praticados por esses dois pedagogos do teatro e descritos nas bibliografias, é o “trabalho sobre si mesmo”. Segundo Quilici, a ideia de um “cuidado de si” existe desde a Antiguidade. Através do pensamento disseminado pelos gregos e romanos buscava-se o autoconhecimento do ser, da alma, por meio de uma cultura que acreditava no vínculo direto entre o conhecimento e a modificação da própria existência (QUILICI, 2015). A epiméleia heautoû, “cuidado de si”, como aponta Foucault, refere-se às atitudes em relação ao mundo, às formas de lidar consigo perante os próprios pensamentos, bem como ao modo de encarar e estar atento para o que se pensa e o que se passa no pensamento. Além disso, entendia-se também as ações que seriam utilizadas para o próprio ser, no sentido da transformação de si (FOUCAULT, 2006). Ações essas que tinham como pano de fundo a ideia de que se deveria cuidar de si, pois cuidar de si mesmo era bom, racional e benéfico para a alma. Durante certa época dizia-se da razão como característica dada ao ser humano pela natureza e necessária de ser cumprida através do cuidado de si. Como podemos observar em Apuleu: [...] pode-se, sem vergonha nem desonra, ignorar as regras que permitem pintar e tocar cítara; mas saber “aperfeiçoar a própria alma com a ajuda da razão” é uma regra “igualmente necessária para todos os homens (APULEU apud FOUCAULT, 2002, p. 53)

Entretanto, como aponta Quilici, em determinado momento da história do Ocidente, houve uma modificação na lógica desse pensamento e a “construção do conhecimento se desvinculou de um processo de modificação da própria existência” (QUILICI, 2015, p. 105). Todavia, muitos artistas inspirados em uma nova forma de fazer teatral, acabaram por ampliar as necessidades de suas técnicas ao modo de existência de seus praticantes (QUILICI, 2015). Em relação à atuação teatral, podemos apontar as práticas realizadas por Stanislávski e Grotowski como uma retomada dessa perspectiva do cuidado de si em um âmbito artístico. Stanislávski busca, por meio de uma certa relação ética com o teatro, mudanças no 1 Na epistemologia entende-se por Knowledge how o conhecimento adquirido pela prática, como andar de bicicleta, falar etc. Entende-se Knowledge that como o conhecimento que pode ser adquirido por fatos e transmitido por proposições, ex: No dia 11 de setembro houve um atentado às torres gêmeas (FANTL, 2010).

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comportamento do ator refletidas em práticas consideradas ideais para se fazer um bom teatro. Ele discorre sobre isso ao afirmar que o ator não deve se atrasar, deve lutar contra sua presunção, intrigas, não levar o abatimento para os ensaios, refletir sobre o trabalho, etc. (STANISLÁVSKI, 1997). Para Foucault (1998), a ética relaciona-se à ideia que o indivíduo faz da moral, no sentido da criação de um significado pessoal que irá compor sua conduta perante si mesmo. Ou seja, a apropriação, o significado que o indivíduo faz da moral. Já a moral está relacionada ao conjunto de valores e regras de ação proposto por uma organização social a um indivíduo. Nesse contexto, a “prática de si” surge como uma consequência da ação moral, ou da “elaboração de uma ética”. Desta forma, para ser moral, o sujeito tem que ser ele próprio objeto da prática moral (sujeito ético), agindo sobre si mesmo (FOUCAULT, 1998). A ética, para Stanislávski, acaba por dialogar com estes preceitos do cuidado de si de Foucault. O ator deveria ter uma atitude ativa perante si mesmo ante as novas experiências teatrais propostas. Pensando ainda nas atitudes sobre a própria existência, podemos entender o trabalho sobre si de Stanislávski também como uma forma de autoconhecimento artístico e pessoal, no sentido do ator se perceber em relação à sua prática; trabalho este que deve realizar-se durante toda sua vida como uma forma de se auto-pesquisar. O pensamento de Stanislávski sobre o trabalho sobre si mesmo não era claro desde o início, foi se consolidando ao longo dos anos. Nas experiências artísticas da juventude, nem sempre felizes, uma das situações que o perturbavam era o fato de não possuir uma técnica para a arte do ator, algo que o ajudasse a estimular sua criatividade, a “viver” em cena; pois a simples imitação de outros atores não o satisfazia enquanto artista (STANISLÁVSKI, 1989). Podemos nos arriscar a dizer que um dos primeiros passos para a busca por uma técnica talvez tenha sido a percepção de Stanislávski, de uma perspectiva mais ativa sobre si mesmo. Deus lhe deu tudo para o palco, para Otelo, para todo o repertório de Shakespeare (Meu coração quase saltou de susto quando ouvi estas palavras) Agora é a sua vez. Precisa de arte. Mas ela vem, é claro [...] Ao dizer essa verdade, ele tratou logo de enfeitá-la de cumprimentos. [...] Mas onde e como aprender arte, e com quem?” inquiri. [...] Mm-a! Se você não tem a seu lado um grande mestre em que possa confiar, posso recomendá-lo apenas um mestre”,- respondeu-me o grande artista. [...] “Quem, então? Quem, então?” – Insisti. [...] “Você mesmo” –, concluiu com o famoso gesto do papel de Kin (STANISLAVISKI, 1989, p. 226). A partir do momento em que percebe que seria ele próprio o seu mestre, Stanislávski utiliza-se de suas experiências como material para o desenvolvimento de sua pesquisa, bem como de sua forma de reflexão. Quilici aponta o “trabalho sobre si” de Stanislávski como uma possibilidade do ator entender sua arte de forma mais ampla. Como exemplo ele cita a busca pelo “estado criativo” que Stanislávski faz em sua pesquisa (QUILICI, 12 |

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2015). O “estado criativo” seria para Stanislávski o momento em que o ator se encontra em um nível de concentração mental e física no qual toda sua atenção volta-se para o momento presente da ação que realiza como personagem (STANISLÁVSKI, 1989). Segundo Quilici é através desta busca por esse estado que o mestre russo desenvolve toda sua técnica, que lida primeiramente com uma percepção de si. O ator terá que primeiramente desenvolver a percepção do ser humano e entendê-la em si mesmo; por exemplo: como age uma pessoa que espera um encontro amoroso? Além disso, deve também desenvolver a compreensão de como expor este material através da ação cênica. Isto irá requerer um estudo minucioso também da vida da personagem. Desta forma o ator utiliza-se de sua vida de forma a contribuir com sua arte, a arte do ator (QUILICI, 2015). Grotowski traz em sua prática outras perspectivas do “trabalho sobre si”. Segundo ele afirma, durante sua trajetória artística, passou da fase que ele define como Arte como apresentação – momento em que realizava seu trabalho tendo como objetivo a criação de espetáculos, focados na perspectiva do espectador – ao momento que ele denominou Arte como veículo, cujo trabalho artístico não se destinaria ao espectador, mas à pesquisa pessoal daquele que age, o atuante. Estas fases são consideradas por ele como elos de uma mesma cadeia, pontos extremos de uma mesma corrente. A extremidade do espetáculo começa com o elo do espetáculo, passando pelo elo dos ensaios, seguindo pelo elo dos ensaios que não são totalmente para o espetáculo. Na sua trajetória, a transição entre esses momentos ou “elos” da corrente das artes performativas surge a partir de mudanças de perspectiva na pesquisa com seus colaboradores atores/ atuantes (GROTOWSKI, 2012). Na Arte como apresentação ou Teatro dos espetáculos, o elo dos ensaios que não são totalmente para o espetáculo, ganha perspectivas de atuação diferentes dos outros elos, e pode ter a função de pesquisa profunda para os atores, pois seu objetivo imediato não é o espectador, mas a investigação pessoal do ator sobre si próprio. Para Grotowski, esses ensaios poderiam significar para o ator uma aventura, um rico processo de descobertas. Um lugar especial para lidar com suas dificuldades, limites, desafios. Um espaço para o ator trabalhar sobre si mesmo de forma séria e profunda (GROTOWSKI, 2012). Podemos citar como exemplos deste terceiro elo as metodologias utilizadas por Grotowski em Dr. Fausto e O Príncipe Constante. Em Dr. Fausto, que estreou em 1963, Grotowski utiliza-se da personagem como uma forma do ator se pesquisar, intimamente, chegando por vezes ao seu limite psíquico. Através desse procedimento, o ator poderia, por exemplo, fazer uma espécie de autoanálise na qual, por meio de uma analogia com o personagem mostraria em cena sua “verdadeira” personalidade, sem o que Grotowski chama de “máscara social”, ou seja, aquele modo de ser construído em consonância com alguns jogos sociais. Nessa fase, no Teatro Laboratório, o corpo era visto como a principal fonte de bloqueios e por isso o ator deveria trabalhar de forma a controlá-lo e dominá-lo, para que sua psique fosse liberada. Já em O Príncipe Constante, de 1965, há uma busca pela aceitação do corpo, que não é mais enxergado como única fonte de bloqueios ou aspectos negativos. Corpo e psique ganham o mesmo

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status rumo à ideia de “ato total”,2 no qual não haveria mais o conflito entre o físico e o psicológico e o ator se exporia completamente (LIMA, 2012). Continuando e radicalizando os modos de trabalho sobre si iniciados na “aventura dos ensaios”, o mestre polonês desenvolve no trabalho denominado Teatro das fontes, no qual ator vai de encontro a algo que está para além de si, no sentido transcultural. Entretanto, para Grotowski era preciso ir mais além, pois no Teatro das fontes havia a tendência em se fixar apenas nas forças vitais, corporais e instintivas, que estariam apenas no que ele chama de plano horizontal (GROTOWSKI, 2012). Grotowski chega a outro nível de compreensão da arte na fase denominada, Arte como veículo, na qual utiliza-se das “artes rituais” como um dos mecanismos para o processo transformação do performer, “abrindo modalidades de consciência e de ação desconhecidas do homem comum” (QUILICI, 2015, p. 85). Segundo Quilici é nessa aproximação com as artes performáticas que fica clara a diferença quanto à função do trabalho sobre si em Stanislávski e Grotowski. Para ele, quando Grotowski se aproxima da performance, não é o trabalho do ator sobre si mesmo que está à serviço da arte, como em Stanislávski, mas a arte que está a serviço do trabalho que o performer deve fazer sobre si mesmo, ou seja, no trabalho do ator de Grotowski, o foco da pesquisa, torna-se a mudança da percepção da consciência sobre si mesmo. Essa perspectiva do trabalho sobre si torna-se ainda mais diferente, talvez profunda, quando Grotowski passa a se utilizar de práticas que não se encontram apenas no âmbito teatral, através dos cantos rituais por exemplo, pois essas práticas já carregam em sua essência propriedades para a modificação dos estados de consciência (QUILICI, 2015). Podemos pensar que, apesar das diferenças de contexto, a busca de uma transformação de si é fator comum tanto trabalhos de Grotowski quanto Stanislávski. Talvez, o que tenhamos de mais interessante nesse conceito, que aproxima-se do “cuidado de si” de Foucault no que tange o trabalho sobre a própria existência, seja o surgimento da pergunta que fazemos para nós mesmos em relação ao “como”. Como trabalhar sobre si mesmo? E a transposição dessa pergunta para o fazer artístico do qual fazemos parte. Como podemos trabalhar sobre nós mesmos no teatro? Que tipo de perspectiva este pensamento pode proporcionar para o ator? Quais implicações técnicas? Um discernimento sobre a própria prática? Consciência de si perante uma ação no presente? Por quê queremos trabalhar sobre nós mesmos? Ao nos fazermos estas perguntas, outras perspectivas parecem surgir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMPO, Giuliano & MOLIK, Zigmunt. Trabalho de voz e corpo de Zygmunt Molik – o legado de Jerzy Grotowski. São Paulo: É Realizações, 2011. FANTL, Jeremy. Knowledge How. In: ZALTA, Edward N. The Stanford Encyclopedia 2 Para mais informações sobre o Ato Total cf. LIMA (2012, p. 314).

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of Philosophy (Fall 2014 Edition). Stanford: Stanford University, 2014. Acessado em: http://plato.stanford.edu/archives/fall2014/entries/knowledge-how/ (05/09/2015). FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 2 – o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998. FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 3 – o cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2002. GROTOWSKI, Jerzy. Da companhia teatral à arte como veículo. In: RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. São Paulo: Perspectiva, 2012. LIMA, Tatiana Motta. Palavras praticadas – o percurso artístico de Jerzy Grotowski, 1959-1974. São Paulo: Perspectiva, 2012. QUILICI, Cassiano Sydow. O ator-performer e as poéticas da transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015. STANISLÁVSKI, Constantin. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso creador de la encarnación. Trad. Salomón Merecer. Argentina: Quetzal, 1997. STANISLÁVSKI, Constantin. Minha vida na arte. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:

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PROCESSOS DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO HABEMUS CORPUS Luiz Carlos Costa Sarto (Du Sarto) Universidade Federal de Ouro Preto

O processo criativo que estamos gerindo, no qual diretor teatral/cênico, ainda está em construção, mas já passou por algumas etapas de trabalho propostas para seu desenvolvimento como obra artística. Pretendemos ao final desta investigação processual finalizar o trabalho prático desta pesquisa como um espetáculo cênico chamado Habemus Corpus, que reune várias linguagens da cena como: a dança, o canto, as artes plásticas e o teatro. Para um melhor entendimento de nossa pesquisa, relatarei brevemente parte de nossos processos iniciais de trabalho ligados ao desenvolvimento de princípios técnicos corpo-vocais e a presença cênica do ator. A partir desta etapa de desenvolvimento técnico criativo, pudemos perceber a indicação de alguns apontamentos para a criação futura e estabelecer conexões entre a técnica e o tema escolhido para o trabalho durante os ensaios processuais do espetáculo que nos dispomos a realizar. A princípio, para a construção de tal espetáculo, nos propusemos a pesquisar acerca da temática da liberdade e “experienciar” este tema em nossos corpos enquanto artistas da cena. Digo em nossos corpos por acreditar que o diretor é um elemento presente e constante durante os processos e que se seu corpo não estiver ativo e provocador durante os ensaios ele pode não conseguir levar os atores à atmosfera que considera necessária ao criar durante a ação. Dessa forma, falarei do lugar do diretor, em função de como realizei os processos de construção dos ensaios e também de como participei destas atividades criativas ativamente. Nossa primeira tarefa foi a de entender como os corpos dos atores, que a princípio já muito imbricados de técnicas variadas do fazer teatral, respondiam ao trabalho em sala de ensaio. No início trabalhamos somente com quatro atores, mas, atualmente, são sete atores devido a necessidades do próprio processo. Buscamos um trabalho técnico que nos permitisse não somente ganhar resistência física, mas também que já estivesse ligado ao tema liberdade. Também lemos alguns textos relativos ao tema, nos deixamos afetar pelo texto dramatúrgico “Liberdade, Liberdade”, de Millôr Fernandes, e também recolhemos algumas imagens e obras artísticas aproximadas ao tema. Criamos um banco delas que tem aumentado a cada novo dia e nos influencia no criar. O trabalho técnico proposto se colocou a partir de relações que tenho construído em referência ao trabalho do ator e sua presença cênica. Presença no sentido de estar pleno para a cena, consciente de seus corpos como lugar da ação e preparado para vivenciar diferentes estados de relação com os outros atores. Neste processo, nosso trabalho de aquecimento é bastante voltado para o corpo do ator como sendo um corpo de Homem árvore, enraizado ao chão e equilibrado, ligado 16 |

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ao ar que o rodeia, sempre expandindo sua presença a partir de uma raiz que o põe de pé e um ar que o sustenta vivo. O ar também foi uma de nossas descobertas, a ligação que fizemos entre o tema liberdade e estar vivo vem neste processo produzida por muitos exercícios de corpo-voz, voltados para o perceber/sentir a respiração e em como ela traz situações de presença e transformação da corporeidade em expressão ativa do ator. Chegamos a realizar exercícios, por vezes exaustivos, e a criar sequências inteiras de aquecimentos do corpo para cena, para a presença. Além de diretor teatral, sou, também, ator e me interesso pelo trabalho técnico/ criativo do corpo expandido do ator em cena sempre pronto para o agir. Este trabalho técnico, no sentido de preparação atoral, então, é realizado por mim junto aos atores em pesquisa por horas a fio para que entendamos como nossos corpos podem estar livres e preparados, cenicamente, a partir da técnica que escolhemos para trabalhar. Vemos o desenvolver destas técnicas em nossos corpos no dia a dia de trabalho e na repetição dos exercícios e ações que fixamos como importantes para este estado corporal. Realizo estes exercícios por vezes juntos dos atores até que eles entendam a base de execução e depois os deixo experimentar, improvisar e entender em seus corpos como isto se dá ou então explico o que desejo e deixo apenas que eles criem o exercício a partir de seu entendimento individual/coletivo. A vivência inicial destas técnicas é de suma importância e por vezes sua primeira realização é quase um be-á-bá de como deve ser este ou aquele movimento, qual a relação que meu corpo propõe para tal ação e/ou como devo me comportar junto ao grupo para que a dinâmica do ensaio se dê de maneira coletiva e profícua à pesquisa teatral/ cênica para a obra a ser criada. Percebemos também que a repetição e a seleção de exercícios para praticar cotidianamente é que nos leva ao êxito da investigação junto ao tema escolhido para o processo. Pois ao irmos entendendo em nossos corpos as sistemáticas das práticas técnicas criativas vamos também entendendo como nosso grupo de trabalho se comunica e realiza melhor seu processo de investigação e criação. Estes são exercícios adaptáveis e propõe a experimentação como guia para a ação. Focamos, então, nossos aquecimentos para a presença cênica dos atores em: técnicas de equilíbrio/desequilíbrio do corpo em relação ao chão e ar, enraizamento da base corporal do ator, percepção da coluna vertebral e da respiração como motes para um estado elevado de presença física. Destacamos o processo de exploração da voz, que também é entendida por nós como corpo, desde a fase do somente respirar dos atores e depois foi se expandindo para a voz falada. Iniciamos também um trabalho com cantos diversos trazidos para experimentação vocal. Estes cantos são cantos aprendidos em oficinas de corpo-voz já realizados por mim e que são transformados pelos atores durante o trabalho técnico criativo, pois eles foram se apropriando destes cantos a seu modo e hoje todos cantam-os em uníssono. Algumas frases vocais surgidas dentro do espaço de ensaio também foram apropriadas pelo grupo e hoje cantamos conjuntamente assim como os cantos trazidos e transformados no espaço de ensaio. Meu papel como diretor nesta fase do trabalho é, além de indicar questões técnicas | 17

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em relação ao corpo dos atores e sugerir quebras de seus limites para experimentação, possibilitar, oferecer ou acionar experimentações nas quais o grupo todo chegue a um lugar de presença e relação comuns. Eu demonstro o exercício, o aplico e libero para que os atores o transformem ou executem da maneira que lhes for necessária. E ao mesmo tempo os próximos exercícios a serem realizados pelos atores em processo é dinamicamente influenciado por como os atores se apropriam destas técnicas. Nesta fase, também, foi meu intuito descobrir como esclarecer onde desejava chegar com dado exercício a partir do pensar cênico dos atores. Chamo de pensar cênico o modo como cada ator se relaciona com o conteúdo técnico artístico experienciado. Alguns atores entendem mais os exercícios explicados por imagens, outros por verem alguém realiza-lo, outros por sensações físicas explicadas e pretendidas com a atividade. Portanto, realizamos alguns exercícios por várias vezes com pontos de intenção diferentes. Chamo pontos de intenção às válvulas do despertar do corpo e de construção dos exercícios pelos atores. A partir dos princípios apresentados acima como objetivos técnicos destaco alguns dos exercícios técnicos criativos que nos foram bastante úteis e produtivos durante a fase técnica de criação. Aquecimento pessoal informal - Com o desenvolver do processo de criação, até mesmo o aquecimento pessoal inicial que era realizado livremente pelos atores no espaço e possuía conversas informais e informações sobre o processo discutidas tomou formas coletivas. Este aquecimento tinha como base a intenção de um despertar da percepção do corpo para o trabalho, que realizado sempre pelas manhãs bem cedo se fazia num adentrar o espaço de ensaio anterior às atividades pretendidas nos dias de processo. Através dele, os atores aquecem de acordo com suas necessidades pessoais. Também alguns pedidos foram realizados por mim de que os atores aqueçam muito seus joelhos, tornozelos e a voz enquanto se preparam, através de exercícios específicos e espalhados pelo aquecimento como um todo. Estas áreas corporais são muito utilizadas quase que exaustivamente durante os ensaios por causa das bases físicas dos atores e seus impulsos para saltos. Este momento de início, que parece quase sem importância, atualmente já traz os atores para um lugar de concentração e já propõe certa atmosfera de criação e contato entre os integrantes. Aquecimento pessoal ou ação ritual – Os atores criaram um aquecimento pessoal ritual que serviu como dispositivo para pensarmos o corpo com foco deste trabalho. E também para minha primeira observação dos corpos dos atores em ação/reação e relação criativas. Posteriormente chegamos à conclusão de que este aquecimento era desnecessário em relação a nossas expectativas junto da criação e, portanto, foi retirado de nossa prática. Restam dele hoje alguns resquícios técnicos propostos pela cultura corporal técnica dos atores em seu fazer teatral, e observados em seu aquecimento inicial individual anterior às atividades criadoras do processo de fato. Tornou-se um aquecimento pré-expressivo, se assim podemos dizer. Saudação ao sol – Uma sequência de exercícios corporais do Yoga para alongamento, relaxamento, concentração e percepção do corpo como uno. Este exercício além de alongar partes posteriores do corpo era nosso start na percepção dos atores de que 18 |

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estávamos em jogo, o ensaio e sua atmosfera de jogo começavam a se instaurar. Sempre fizemos três no início das atividades do processo. E aos poucos adequamos a esta sequência a voz e respirações expressivas. Base neutra – O corpo fica de pé com os pés paralelos, coluna e quadris encaixados e prontos para acionar o movimento a qualquer momento. A respiração ajuda na concentração e na percepção do corpo no instante em que ele pausa nesta posição. Enraizamento homem árvore – O ator com os pés paralelos se coloca em base neutra e puxa fios pelo seu corpo para cima e para baixo, os de baixo saem pelo períneo e o puxam para o chão e os de cima o elevam às nuvens pelo topo da cabeça. Os pés se abrem como raízes pelo chão e o resto do corpo se abre a partir dos ossos como desenhos de nuvens no céu até que os fios são cortados. Este processo se reinicia por várias vezes até o ator perceber os vetores que elevam seu corpo e os pesos reais de suas partes corporais. É um exercício extremamente imagético, mas que promove a abertura de regiões corporais e possibilitam melhor circulação de ar e de sangue pelo corpo. A princípio ele traz muita tensão, mas depois começa a se transformar em algo mais orgânico e busca mais à leveza e expansão do que à tensão e dor. A percepção do ator de seu estado corporal é bastante intensa neste exercício e como ele foi praticado cotidianamente pelo grupo em todos os ensaios instaurou a base do corpo do ator para todos os movimentos realizados em cena. Exercício corrida do vento – Este exercício tem como forma o estímulo de sopros de ar no corpo do ator a partir do movimento de sua coluna vertebral que o levam a se movimentar até chegar a um movimento de deslocamento do corpo todo e trajetória pelo espaço. Ele se inicia lento e vai se potencializando até a chegada a uma corrida sem descanso que aumenta seu ritmo até o corpo do ator não mais querer e pausar em base dos pés enraizados no chão. O processo se reiniciava por muitas vezes e ao correr o ator chegava ao estado emocional de se sentir livre ao correr sempre pra frente como se fosse conquistar algo e na hora em que o corpo não mais quisesse, ele livremente parava. Também tinha como objetivo desligar os canais de percepção “racionalizantes” do ator, aqueles que o impedem de criar por medos ou preocupações. O realizamos de modo individual e coletivo. Koshi – Um exercício no qual o ator trabalha a imagem de uma bolinha de aço envolvida em algodão no centro de seu corpo e caminha. Partindo da base do ator e do centro do corpo como centro de atenção e distribuição de energias o koshi trazia ao ator percepção de si no espaço e de seu corpo como parte do todo. Além, claro, de reforçar a base dos atores ao caminhar e agir. A voz também era presente nestes exercícios e aos poucos foi crescendo. Intenção corpo-vocal – Aquecimentos com músicas vocalizadas que vão se transformando em ações corpo-vocais e estabelecendo uma relação entre voz e movimento. Estes exercícios foram feitos ao longo dos processos e chegamos a resultados bastante interessantes quanto ao lugar dos atores como cantores em trabalho, em ação física e também houve avanços do grupo em relação em relação à harmonia e ritmo musicais a partir da livre expressão da voz falada e cantada. | 19

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Paredão – Os atores se colocavam dispostos em uma grande parede, quase que prontos para serem fuzilados e encaravam o espaço com o corpo presente e em base neutra do corpo. Utilizamos este momento para realizar variações entre um exercício e outro. Era um local de contemplação e readequação de energia durante os processos. Ventosas – Os atores realizavam trajetórias deitados pelo espaço a partir de seus corpos presos ao chão imageticamente por um ímã, um desejo de sair mas impedido por uma atração do corpo ao plano baixo. O ator deveria se deslocar pelo espaço. Este exercício necessitava de grande força física e trazia memórias dos atores sobre prisões e opressões vividas. Caminhada do guerreiro – Caminhada meditativa juntando respiração e movimentos dos pés ao andar em base e pra frente. Meditação ativa. O ator se colocava frente a seus medos imageticamente no caminhar. Vento interno – O ator caminhava pelo espaço como se seu corpo fosse vento e golpeasse para todos os lados. O ar como espaço de movimento era a imagem desta trajetória. Encher-se e esvaziar-se e assim deslocar era a meta.3 Respiração exaustiva – Trabalhamos muitas dinâmicas de respiração, leves fortes, intensas, apneias, todas elas voltadas para o movimento corporal e dando rítmica a sensações e ações dos atores. Criamos um vocabulário delas com movimentos e ações fechadas para que os atores pudessem improvisar a partir delas e criar situações além de aquecer o corpo com um todo. Técnica vocal Ponto, reta, curva e trajetória – Os atores criam estes movimentos Ponto, Reta, Curva – os desenhando com as mãos pelo espaço, porém sua coluna desde a até seus membros guiam as trajetórias que realizam. Aos poucos introduzimos a voz e assim os atores emitiram vogais nos tempos e ritmos dos desenhos criados pelo espaço. Estes exercícios trabalham o corpo como uno e partes e coloca o ator em conexão do movimento/fala/trajetória pelo espaço. Saltos – Trabalhamos variados tipos de saltos. Saltos com pliê, saltos no corpo do outro ator, saltos coletivos, saltos individuais, saltos para cima, para os lados todos baseados em encaixes corporais. Os saltos nos trouxeram a experiência do movimento contrário ao enraizar. Pensar o ar como espaço motor para o corpo e sua dilatação como corpo cênico. Exercícios de aquecimento 1 2 3 – Uma sequência que trabalhamos tanto de maneira coordenada pela direção como de maneira livre pelos atores. Passos: Andar, saltar, correr, Base neutra, Chão (rolar por ele), Basquete (gritar o nome e bater as palmas das mãos de outro ator no ar pós a corrida, exercícios plásticos para o corpo (Trabalho com torções e oposições de partes corporais a partir de movimentos circulares que partiam do centro do corpo e se expandiam para as extremidades). Esta sequência tem um poder de aquecimento enorme junto ao grupo. A energia de todos os integrantes se eleva rapidamente em apenas cinco minutos com esta prática. É um potente dispositivo de presença para o corpo em movimento. E também por seu caráter de experimentação e afetação das ações do outro no mesmo espaço por influência de movimento com o 3 Por vezes três estes últimos três exercícios (Ventosas, caminhada do guerreiro, vento interno), apontados cima, foram realizados em um deslocamento variado e conjunto de acordo com as preferências dos atores durante a atividade.

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tempo foi se transformando na porta de entrada para a improvisação dos atores em conjunto. Improvisações temáticas – Por vezes todos estes exercícios acima possibilitaram atividades de variações e improvisações de sequências de modo autoral pelos atores. As ideias eram sempre explorar tais técnicas e não fixar como algo engessado. Deixamos o grupo decidir as dinâmicas de ação e sua permanência em nosso trabalho de acordo com a prática e a experimentação, repetidas durante todos os processos. A partir da temática liberdade e das conversas, discussões e desejos dos atores sobre o tema levei também textos e objetos que me remetiam ao tema e os atores experimentaram muitas ações e improvisações com a manipulação de tais elementos. Ex: facas, cordas, elásticos, baldes, água, tecidos. Criação dramatúrgica atoral – Cotidianamente, a partir de momentos do ensaio, ou ações durante as improvisações sempre me despertavam temas e eixos criativos que eram instigantes e que eu repassava aos atores em forma de pedidos de textos autorais. Muitas temáticas eram tratadas e relacionavam-se com nosso mote criativo. Estes textos possivelmente, após uma seleção prévia, integrarão o espetáculo produzido por este processo. Por vezes estes textos pedidos tinham temáticas individuais e por vezes coletivas. Seus gritos – Pedi aos atores que escolhessem questões que lhes tocam para trabalharmos individual e coletivamente acerca do tema liberdade e em Ação criativo. Estas questões partem dos atores e chegam á mim e assim vamos debulhando uma a uma dentro do processo. Elas se tornam novas instigações e princípios ativos externos para o trabalho com o processo. Elas alimentam nosso conteúdo de pesquisa teórico do processo e ao mesmo tempo o prático que se afeta delas e se recria. Todos estes exercícios são praticados por nós diariamente em espaço de ensaio, e vão adquirindo variações e novas maneiras de abordagem para melhor garantir a eficiência de nosso desejo enquanto criadores para a cena. O processo se expande e suas técnicas também adquirem mais vivacidade e organicidade se transformando junto dele. Como já praticamos estes exercícios há um determinado tempo de trabalho, eles se tornaram uma linguagem de comunicação bastante apreendida entre os integrantes do grupo. Em alguns momentos eu introduzo um exercício enquanto diretor e os atores depois desenrolam os outros que lhe vêm durante a criação sequencialmente. Em outros ensaios os próprios atores já começam estes exercícios sozinhos e eu só ajudo a criar a atmosfera e ritmo necessários para seu aprimoramento e de vez em quando vamos o ensaio todo criando e recriando estes exercícios conjuntamente, os atores e eu, mas de qualquer forma basta alguém iniciar algum deles ou requisitar sua iniciação que eles se dão de maneira extremamente natural e dinâmica. Em relação a esta fase técnica do trabalho, ela nos acompanhará até o fim do processo, pois a partir das descobertas feitas a partir de nossas experimentações e dos aprimoramentos futuros de tais técnicas, acreditamos que desta linguagem criada nos ensaios a partir de exercícios técnicos-corporais derivará a estética e as relações entre os atuantes deste processo, originando e desenvolvendo o material expressivo para o | 21

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espetáculo proposto. Percebemos além da ligação de uma fase de construção do processo criativo a outra, a relação da memória de um dia de prática a outro e assim vamos conectando um conteúdo ao outro sempre em função de entender e expressar melhor nossa criação fase a fase. Os textos que lemos, as vivências que adquirimos, as situações que nos afetam e nossas buscas enquanto artistas são também material constante de renovação do processo criativo e dos focos que damos a nossas práticas em sala de ensaio. O tema liberdade nos cerca de todos os lados e todo o conteúdo levado ao processo por mim como diretor está intimamente ligado, mesmo que não conscientemente mas localizado no sensível, à temática proposta pelo grupo e aos pedidos dos atores em relação a seus gritos e buscas dentro do processo, assim como suas necessidades técnicas de execução durante o agir. Por vezes, uma flor me traz a sensação de liberdade como indivíduo e por vezes ao pedir ao ator que transforme seu corpo em flor durante o processo criativo geramos ali, juntos, todo um compêndio de conexões e toda uma relação de tempo espaço criativo que só será compreendida no desenvolver do processo em seu cotidiano de intenso trabalho de repetição, transformação e reflexão coletivos. Fase a fase nosso processo criativo tem se constituindo, e eu como diretor, ao criar conjuntamente com os atores, e também ao ser propositor da ação que movimenta os ensaios vou percebendo a constituição deste imenso Ato criador como um Ato consciente do diretor e completamente transmutável em sua construção a partir de sua origem, e no desenrolar de suas aplicações práticas como processo criativo em constituição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006. FLASZEN, Ludwik y POLLASTRELLI, Carla. O teatro laboratório de Jerzy Grotowsky: 1959 - 1969. Trad. Berenice Raulino. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007. OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, Editora Vozes, 1989. RICHARDS, Thomas. Trabajar con Grotowski sobre las acciones físicas. Barcelona: Alba Editorial, 2005.

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OFICINAS

CORPO SONORO: O RITMO COMO INSTRUMENTO PARA A CRIAÇÃO CÊNICA Tábatta Iori Universidade Federal de Ouro Preto

Introdução A oficina intitulada “corpo-sonoro: o ritmo como instrumento para a criação cênica” foi elaborada a partir das pesquisas teórico-práticas do projeto de iniciação científica “Grotowski e Dalcroze: a música como instrumento para a presença do ator”, orientado pelo Prof. Dr. Ricardo Gomes. O objetivo do encontro prático, que teve o total de quatro horas divididas em dois dias, foi de promover uma sensibilização corporal através de exercícios rítmicos e corporais que desenvolvem a coordenação motora, a escuta, o olhar, a respiração, a concentração e a união entre voz e corpo, buscando afinar a percepção entre movimentação e musicalidade. Em um segundo momento, foram propostos exercícios para criação de personagens e cenas através do ritmo musical. Para a elaboração da oficina uniu-se as experiências e a prática teatral da artistaestudante junto ao projeto de Iniciação Científica que investiga a musicalidade como uma ferramenta para a preparação do ator e o desenvolvimento de sua presença cênica. Como referenciais teórico-práticos, aborda o método da euritmia de Jaques Dalcroze e o conceito de treinamento físico-vocal presente na pesquisa de Jerzy Grotowski. Pesquisa também a possibilidade de interação entre esses dois métodos de trabalho. A pesquisa ainda está em sua fase inicial, em que realiza um estudo teórico sobre a euritmia de Dalcroze e o treinamento do ator em Grotowski, com ênfase em seus aspectos rítmicos e musicais; posteriormente serão elaborados e experimentados exercícios práticos que propiciem ao ator-estudante-pesquisador um trabalho sobre si mesmo que utilize a musicalidade como instrumento de pesquisa. Finalmente, será elaborada uma sequência de exercícios e uma aula-espetáculo, além de um artigo, com o intuito de compartilhar os resultados alcançados. Outro ponto fundamental para a proposição de diálogo entre Grotowski e Dalcroze é o entendimento do trabalho do ator/performer como um trabalho sobre si mesmo que busca o autoconhecimento. Há também na pesquisa de ambos a centralidade do corpo, por meio da superação de seus bloqueios e limites. Esta é uma questão fundamental para a didática da oficina, acreditando que o mais importante no treinamento do ator é a entrega e a pesquisa sobre si. A oficina No primeiro dia do encontro, focamos apenas nos exercícios para desenvolvimento da musicalidade e da união entre música e ação, entre som e movimento e entre corpo e voz como provocadores de estados psicofísicos que propiciem uma presença cênica plena. Iniciamos com uma meditação para concentrar o corpo no tempo presente e 24 |

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aflorar a escuta, logo depois foi proposto um pranayama – acreditando que a música, o teatro e a vida iniciam pela respiração –, exercício do yoga útil para limpeza nasal e para igualar a entrada de ar em ambas as narinas. Baseando-se na divisão em quatro partes do trabalho de Jacques Dalcroze, retirados da apostila escrita por Iramar Rodrigues (2014) em uma oficina de musicalização através do método Dalcroze, a primeira parte desenvolve o corpo e sua elasticidade, através de exercícios de recondicionamento físico. Como era uma oficina de pouco tempo, a pesquisadora propôs através de uma música a livre movimentação corporal com o propósito de aflorar a escuta e unir a improvisação de movimentos para desenvolver a criatividade junto à movimentação corporal livre para aquecimento e alongamento do corpo. Neste momento, também trabalhou-se o olhar para o outro e a voz, ferramentas que neste encontro foram mais difíceis de desenvolver com os participantes. A segunda proposta foi a execução do exercício vocal “apito de navio”, em que busca-se um som interno, com a abertura da parte de trás da boca (similar a um bocejo), com intuito de perceber como o som pode afetar muitos lugares do corpo; como o som e o corpo são as mesmas coisas; pesquisar essa sensação do som que percorre o corpo e o que ela me traz e também investigar como a abertura da boca influencia na qualidade do som. A pesquisadora observou que este exercício é complexo para pouco tempo de oficina, o ideal seriam mais horas para alcançar o início de uma percepção. A experiência, porém, foi interessante, pois deu oportunidade a quem se interessou de continuar investigando e houve relatos positivos afirmando que foi um exercício novo que levou a novas descobertas pessoais. A segunda parte desse mesmo dia inicial, em consonância com os estudos da didática de Dalcroze, foi o momento chamado pela pesquisadora de “educação da mente”, quando foram aplicados jogos para desenvolver a ação e a reação, a escuta, a motricidade, coordenação e dissociação de movimentos, a coordenação motora e principalmente a capacidade de união entre som, corpo e voz. Para isso, utilizou-se a percussão corporal, baseada no método do grupo Barbatuques (RUGER, 2007): primeiramente os alunos marcharam no lugar de acordo com um compasso, depois a artista-estudante propôs uma frase musical simples para os participantes imitarem. Quando todos estavam executando o exercício juntos, aos poucos e simultaneamente, dava-se o comando de atenção e exploração de algumas articulações como os joelhos, a cintura, os braços, a cabeça, os olhos etc. Com o ritmo mais orgânico e o corpo mais desbloqueado, andaram pelo espaço ainda com a frase musical, explorando a voz e diferentes planos espaciais. Neste momento a pesquisadora observou que mesmo errando, quando iam-se acumulando funções como vocalizar e abaixar executando a frase percussiva corporal, ninguém perdia o pulso interno dado pelo ritmo, todos voltavam na mesma cadência rítmica. Após essas improvisações de movimentos junto com esse código rítmico dado pela batida de “peito, estala, palma (pausa de 1 e 2 tempos)”, a proposta foi o jogo de flechas, em que um passava para o outro essa frase, primeiro respeitando a pausa de 2 tempos, depois, brincando com a voz e movimentos sem a pausa. Este último exercício descrito, | 25

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foi importante para explorar a reação orgânica do corpo, sem dar lugar ao raciocínio. Fica evidente neste processo, o quanto instintivamente o corpo é musical e inteligente para resolver certos desafios rapidamente. Para finalizar esta parte, a pesquisadora propôs que fossem baixando a sonorização até sua finalização, e ao terminar, que fechassem os olhos e observassem o estado em que o corpo estava; o que havia mudado; se ainda podiam sentir internamente o pulso daquele ritmo e, principalmente, se sentiam-se mais vivos/ativos. Na finalização, executou-se um exercício em duplas, com variações, que tinha a finalidade de ampliar a escuta, a concentração, auxiliar na coordenação motora e aflorar a criatividade. Um dos alunos da dupla mantinha um palito na palma da mão aberta e voltada para cima, enquanto o outro mantinha uma de suas mãos próxima e paralela a essa mão. Ao mesmo tempo, mantinham as outras mãos ligadas por uma fita adesiva. O objetivo era não deixar cair o palito e ao mesmo tempo não dobrar a fita. As duplas se movimentaram, com os alunos desafiando-se e explorando a voz em diferentes planos espaciais. A um certo momento, o jogo mudou, e o objetivo passou a ser deixar a fita dobrada e não esticada e o palito também podia cair, possibilitando mais imagens e brincadeiras. A pesquisadora, que havia aprendido e praticado esse exercício na oficina de musicalização pelo método Dalcroze citada anteriormente, notou que houve muitos pontos positivos e possibilidades de criar. Para fechar este primeiro dia, junto com uma música, os alunos exploraram novamente a mesma frase musical que praticaram anteriormente, mas agora, de acordo com a batida proposta pela música. No final deste dia, foi pedido aos participantes, que durante 15 minutos, observassem uma pessoa, reparando em seu andar, seus gestos, seu olhar, sua fala e principalmente sua respiração. No segundo dia, iniciou-se com a meditação e com um exercício unindo a respiração com a movimentação: na inspiração pausa e na expiração movimentar-se, observando as partes do corpo que necessitam ser alongadas e exploradas. Relembraram a frase musical estudada e rapidamente a exploraram caminhando e usando a voz e movimentações. Foi perceptível a evolução e a organicidade que cada participante adquiriu de um dia para o outro. Iniciando o processo de criação de personagem através do ritmo, foi pedido que os participantes lembrassem-se da pessoa que observaram e a imitassem. Após uns minutos experimentando o corpo da personagem, a pesquisadora indicou que pausassem, e elaborassem um ritmo pensando em todo aquele corpo, não só seu andar, mas sua forma e seu ritmo de respiração. Depois da elaboração do ritmo, cada participante executou, para todos observarem, primeiro o ritmo e depois a imitação da pessoa. Interessante que o relato de quem observava foi de que era um processo mágico, pois depois que a pessoa apresentava o ritmo criado, quando ela andava como o personagem, o ritmo ficava na cabeça de quem observava e era nítido ver no corpo do outro a frase musical apresentada. Foi observado também os diferentes caminhos percorridos para criar o ritmo: alguns fizeram, de fato, a marcação do andar; outros pelo ritmo da respiração; outros o contra-tempo do andar, etc. Conclui-se, portanto, que 26 |

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existem infinitas possibilidades de criação rítmica através de um corpo e que, assim, não existe certo ou errado. Com o ritmo e o corpo dos personagens elaborados, os participantes puderam brincar entre fazer apenas o ritmo, apenas caminhar, ou tentar fazer os dois ao mesmo tempo. Depois, com o ritmo internalizado no corpo, reagiam ao som do bater de palmas da oficineira: com uma palma se cumprimentavam com som, com duas palmas se cumprimentavam sem som. O exercício foi proposto para assimilação do corpo e do ritmo, para criação de gestos e outras possibilidades com o personagem e de interação entre as figuras criadas. Na observação da pesquisadora, era nítido quando alguém perdia o ritmo interno, pois aparecia no corpo. Para finalizar, foram criadas algumas cenas improvisadas. Dois personagens se encontravam, primeiro se cumprimentavam, depois se assustavam e iam embora. Inicialmente foi feito livremente, sem fala, ou apenas com gramelô, pedindo que deixassem o mais claro possível porque se cumprimentavam e porque se assustavam. Depois de mais clareza na cena, a pesquisadora deu para cada figura segundos de entrada e segundos de saída; por exemplo: a figura número 1 entra em 10 segundos e sai em 5 segundos, e a figura número 2 entra em 5 e sai em 10 segundos, tendo a liberdade de ficarem em cena o quanto tempo quiserem. Interessante que na maioria das vezes, esses códigos impostos deram mais dinâmica para a cena, além de ser um excelente exercício de assimilação e educação mental, pois necessita estar atento ao jogo cênico, ao ritmo interno e aos segundos de entrada e saída. Este exercício foi baseado na teoria de Meyerhold, que acredita que o ator precisa de códigos em seu treinamento para que obtenha uma técnica eficaz, porém, tem que ser capaz de improvisar dentro dos códigos impostos (PICON-VALLIN, 1989). Para fechar a oficina, explorou-se mais um pouco da frase musical principal estudada, até deitarem no chão e observarem o próprio corpo e sua evolução. Análise e conclusão Este encontro prático foi de extrema importância para a pesquisa, pois, observando e fazendo com o outro, muitos questionamentos concluem-se e muitos outros surgem. A estudante acredita que muito da evolução da oficina e também de sua pesquisa veio pelo estudo de como desenvolver a prática, ou seja, sua didática, ponto também essencial nas pesquisas de Jacques Dalcroze. Relatou-se em conversa final da oficina, da importância da afirmação logo no início do encontro de que não é necessária iniciação nem prática musical para participar e sim apenas entrega e pesquisa em si mesmo, pois, muitos afirmaram que têm um bloqueio com ritmo e música. Porém, no desenvolvimento da oficina, sentiram-se à vontade e puderam explorar aspectos pessoais que jamais imaginavam serem capazes. Um aspecto também importante para os participantes foi da pesquisadora, sempre que possível, também participar dos exercícios, deixando-os também mais livres para criarem. Uma dificuldade que a artista-estudante encontrou foi de estimular o olhar e a interação entre eles no início. Apenas seus comandos não surtiam muito efeito, e o | 27

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olhar é muito importante para o desenrolar do encontro, pois é o ponto crucial para iniciar uma escuta corporal. Um ponto interessante para ser pensado e proposto nas próximas práticas. No exercício de criação do ritmo musical através da imitação do corpo, quando a pesquisadora participou de uma oficina e fez pela primeira vez, primeiro ela criou o ritmo antes de imitar o corpo da pessoa observada, e neste encontro ela propôs que os participantes imitassem primeiro o corpo da pessoa e depois criassem o ritmo. Ela observa que o caminho de imitar primeiro o corpo pode limitar a criação do ritmo, pois muitos foram pelo ritmo físico, do andar e do mover dos braços, e não tanto pelas questões internas do personagem como: respiração e estado emocional. Em outra oficina ministrada pela pesquisadora, ela fez o caminho contrário, e realmente ocorreram mais variadas possibilidades rítmicas. Todas as propostas do encontro partiram do treinamento pessoal da atrizpesquisadora, e foi muito interessante observar essa prática em corpos distintos, concluindo que a musicalidade é capaz de trazer estados psico-físicos para o trabalho teatral, sendo uma importante ferramenta para o desenvolvimento corporal e pessoal, que influencia diretamente no trabalho do ator, auxiliando na integralidade entre mente, corpo e espírito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS PICON-VALLIN, Beatrice. A música no jogo do ator Meyerholdiano. In: Le jeu de l’acteur chez Meyerhold et Vakhtangov. Paris: Laboratoires d´études théâtrales de l´Université de Haute Bretagne. 1989. Tradução de Roberto Mallet. RODRIGUES, Iramar. Apostila: A rítmica de E. Jaques Dalcroze. Instituto Jaques Dalcroze. Genebra. pp. 22-23. Apostila utilizada na oficina de musicalização fornecida pelo Festival Internacional de Música da UFSM-julho 2014 (mimeo). RUGER, Alexandre Cintra Leite. A percussão corporal como proposta de sensibilização musical para atores e estudantes de teatro. Dissertação (Mestrado em música). São Paulo, Unesp, 2007.

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COMUNICAÇÕES Teatro e política

Segundo o Arena - o épico e o coringa em Arena Conta Zumbi e Tiradentes Suttane Queiroga Hoffmann Universidade Federal de Ouro Preto

Embora elementos épicos tenham sido utilizados em diferentes momentos da história do teatro, quando pensamos no termo “teatro épico” somos remetidos a Bertolt Brecht, justamente porque em sua linguagem cênica, desenvolvida a partir dos anos 1920, sua concepção de “épico” encontra-se mais bem discutida e, a partir de então, tornou-se símbolo do teatro moderno ocidental. Segundo Rosenfeld (1985), antes de tudo, para além das questões técnicas, o teatro e a teoria de Brecht devem ser compreendidos a partir do contexto histórico geral. Brecht começou a usar o termo “teatro épico” quando, em 1926, se opôs ao termo “teatro aristotélico” ao compreender que o cunho narrativo de sua obra só se completava no palco. Essa oposição veio do desejo de apresentar um teatro fora das regras aristotélicas, e que a sociedade e os conflitos do seu tempo fossem retratados no palco. Diante disso: […] a forma épica é, segundo Brecht, a única capaz de apreender aqueles processos que constituem para o dramaturgo a matéria para uma ampla concepção do mundo. O homem concreto só pode ser compreendido com base nos processos dentro e através dos quais existe. E esses, particularmente no mundo atual, não se deixam meter nas formas clássicas (ROSENFELD, 1985, p. 147).

Ainda segundo Rosenfeld, uma das razões para deixar de lado o termo “drama épico” liga-se ao cunho didático do teatro brechtiano: a intenção de apresentar um palco que seja capaz de esclarecer o público sobre a sociedade. Um “palco científico” que, além de transformar a sociedade, seja capaz de motivar essa ação transformadora. Daí então, a proposta de ampliar o épico ao teatro como um todo. O teatro épico tem como pressuposto um ambiente capaz de instigar o pensamento crítico através do debate, para isso, apresenta uma série de técnicas que proporcionam o distanciamento, entre essas técnicas está à comicidade. Para produzir o riso é necessário distanciar-se daquilo que o provocou, o que, por sua vez, possibilita a análise crítica do que é apresentado no palco. A teoria do distanciamento é, em si mesma, dialética. O tornar estranho, o anular da familiaridade da nossa situação habitual, a ponto de ela ficar estranha a nós mesmos, torna nível mais elevado esta nossa situação mais conhecida e mais familiar. O distanciamento passa então a ser a negação da negação; leva através do choque do não conhecer ao choque do conhecer. Trata-se de um acúmulo de incompreensibilidade até que surja a compreensão (ROSENFELD, 1985, p. 152). 30 |

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Nesse sentido, o ciclo Arena conta... ao tratar de temas históricos, aproxima-se do seu presente e discute questões sociais e políticas. Esteticamente, para atingir tal objetivo, apropria-se de novos elementos, como é o caso do Sistema Coringa, que não se estruturam em forma linear, mas que se organizam em torno de uma narrativa promovendo assim o afastamento crítico em relação aos personagens. O Teatro de Arena de São Paulo, fundado em 1953 por José Renato, teve como inspiração a estrutura norte-americana de teatro sem proscênio, em que a área de encenação é circular, central. O desejo do Arena era o de encenar peças genuinamente brasileiras, com a ideia de atingir públicos de diversas classes sociais, tendo assim, sua história estética e suas experimentações inscritas dentro da história política que envolvia o Brasil daquele período. O repertório de peças nacionais disponíveis parecia possibilitar poucas perspectivas além das convencionais comédias de costume ou dos dramas de gabinete. O que levou o grupo a promover experimentalmente um concurso de adaptação de contos para o teatro. O que se esperava era, dessa forma, encontrar textos brasileiros de interesse e ao mesmo tempo acessíveis para produção (BETTI, 2013, p. 178).

Além da busca por textos nacionais, o Arena tinha como proposta a continuidade e ampliação do processo de renovação do teatro brasileiro, e para isso esboçava uma proposta política direcionada para o popular e o nacional. Sem ter atingido, de fato, tal objetivo, já que tinha como público jovens da classe média e universitários. As novas dramaturgias propostas pelo Arena apontavam para uma participação mais incisiva nas lutas políticas radicalizando suas perspectivas de trabalho. No panorama teatral brasileiro da segunda metade do século XX, o Teatro de Arena - por suas características de grupo fechado e de companhia estável e de repertório - foi talvez o único grupo política, estética e ideologicamente revolucionário nas atividades que desenvolveu, sobretudo de um repertório voltado para as discussões da realidade do país e por jamais esconder, muito particularmente a partir do final dos anos 1950 e início dos anos 1960, sua opção por uma estética de esquerda, marxista (ALMADA, 2004, p. 22).

As peças que compõem o corpus da nossa investigação se comprometiam com a referência à história brasileira presente nos livros, e exaltavam, na tentativa de uma organização coletiva com fins revolucionários, heróis brasileiros a partir de um olhar contestador, recriando momentos delicados do Brasil como símbolo da luta pela liberdade num momento de repressão. Contava com uma vasta produção musical, que tratava a história do brasileiro em uma perspectiva mais acessível, levando a platéia a se envolver com o debate sobre o passado. | 31

Caminhos da pesquisa em artes cênicas

Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes são obras que mantêm um intenso diálogo com o seu momento histórico, possuindo elementos que permitem uma investigação a respeito da década de 60 pós-golpe, permeados por questões temáticas como a luta pela liberdade, justiça, democracia, igualdade. Além disso, são textos criados de forma coletiva, entendendo a arte como instrumento de luta, capaz de interferir nos processos sócio-políticos. Dentre os musicais criados pelo Teatro de Arena, Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes tinham como proposta fundamental a destruição das convenções teatrais que se constituíam como obstáculos ao desenvolvimento estético do teatro daquele momento, além de uma proposta de teatro político. Boal estabelece novas convenções em que se confirma a ideia de inserir no teatro épico novos elementos empáticos através de uma perspectiva naturalista. Engajado com uma arte política o Teatro de Arena, que já trabalhava com textos que continham este teor, passa a dar mais enfoque a repressão à luta armada, à supressão da liberdade, amparando-se, para isso, em episódios históricos do Brasil. Em Arena conta Zumbi, que teve sua estreia em 1956, desenvolve-se uma nova prática, que mais tarde seria trabalhada por Boal no Teatro do Oprimido, denominada: Sistema Coringa, proposta cênica de desvinculação do ator da personagem. Através do coringa, o espectador pode se distanciar da cena e observá-la criticamente, sem que isso o impeça de identificar-se com o herói central. O coringa é o narrador, criador de uma “realidade mágica”. Mantém-se mais próximo do público que dos personagens. O Sistema Coringa, que começa então a ser delineado, se consolida mais tarde em Arena Conta Tiradentes. Com o novo sistema, a teoria de Boal se afasta, apenas parcialmente, da teoria de Brecht, por fazer uma junção dos níveis típico e particular. Mas não se afasta no tocante à empatia das concepções brechtianas, mesmo lançando mão de recursos diferentes e por integrar, num contexto artístico moderno, elementos estilísticos do teatro tradicional. Na perspectiva dramatúrgica e cênica, o Arena dá um passo importante na direção do épico com a formulação do Sistema Coringa. Apesar disso, a criação desse sistema acabou por distanciar Boal das concepções épicas do teatro brechtiano. O Coringa parece funcionar bem no que diz respeito ao distanciamento proposto por Brecht, da crítica e do didatismo, mas entra em choque com a função protagônica, colocada em cena por Boal, por esta atenuar os elementos distanciadores e provocar a empatia. É necessário entender que nesse âmbito de pesquisa sobre o Teatro de Arena de São Paulo, a questão não é unicamente sobre a apropriação que faz do épico, mas se trata especialmente de um momento histórico pelo qual o teatro brasileiro passava, um momento de ruptura social e estética e de grande repressão. A história do Teatro de Arena atravessou vinte anos da história do Brasil e nada mais natural que nesse período o grupo buscasse orientar-se estética e politicamente de acordo com os ideais de grupo naquele momento. É fundamental destacar a importância que teve o denominado teatro de resistência no Brasil, que usou a arte como arma, procurando levar teatro ao povo sem temer as forças de repressão. 32 |

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Diante disso, podemos encarar a proposta estética delineada em peças como Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes como tributária de uma forte ideologia política, articulada com um tempo histórico. Assim, ao se apropriar de aspectos caros ao teatro épico brechtiano, evidencia-se uma perspectiva de cunho político; ao mesmo tempo em que, ao se distanciar de certa forma dessa configuração de cena, buscando uma identidade própria, o Sistema Coringa desenvolve uma nova concepção, a que nos deteremos na pesquisa aqui prevista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMADA, Izaías. Teatro de arena: uma estética de resistência. São Paulo: Boitempo, 2004 BETTI, Maria Silvia. A politização do teatro: do Arena ao CPC. In: FARIA, João Roberto (dir.). História do teatro brasileiro: do moderno às tendências contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2013. pp. 175-194. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1985.

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O POLÍTICO E O POPULAR: UMA ANÁLISE SOBRE O CPC DA UNE Letícia Gouvêa Issene Universidade Federal de Ouro Preto

Este trabalho tem tomado como premissa os textos teóricos, assim como entrevistas e depoimentos, constituintes de uma metodologia de análise, cunhada por Raymond Williams em seu livro intitulado Drama em cena (2010). Uma das possíveis utilidades desta análise crítica será, finalmente, propor uma discussão concreta sobre as relações texto e cena no teatro proposto e praticado pelo Centro Popular de Cultura da UNE. As dramaturgias cepecistas buscavam a utilização de gírias cotidianas e culturais para realizar essa transição entre texto e cena, para criar uma aproximação com as camadas sociais as quais pretendiam alcançar. A encenação da peça Eles não usam BlackTie (1958) e Chapetuba Futebol Clube (1959) trouxe o debate em torno da dramaturgia popular e nacional, proporcionando o surgimento de diferentes concepções e experiências teatrais. O caminho para um teatro que abordasse temas sociais estava sendo trilhado por alguns dramaturgos, mas a questão do contato com o grande público ainda gerava insatisfação entre os artistas. Um dos principais objetivos do Centro Popular de Cultura constituía-se em combater a imposição ideológica da classe dominante sobre a massa populacional. Dentro das pesquisas acerca da curta e significativa existência do CPC, entre 1961 a 1964, nos é permitido visualizar em sua trajetória, que em seu tempo, mesmo se deparando com muitos entraves e divergências ideológicas, o CPC, levou informações e protestos que serviram de início para a tomada de uma consciência crítica a respeito da situação vivenciada pela classe marginalizada. O teatro engajado do Centro Popular de Cultura buscava levar o espectador a refletir a partir de seus próprios sentimentos, costumes e hábitos. Em encontros comuns na casa de Carlos Estevam Martins, um dos diretores do CPC, Vianinha e Leon Hirszman costumavam discutir e avaliar a cerca da seguinte questão: o que fazer para conquistar outro tipo de público, diferente daquele que o Teatro brasileiro de comédia (TBC) e o Teatro de arena, estavam acostumados. Como conquistar um público popular? Algo novo começa a ser apontado para a cena brasileira, um teatro que pudesse contribuir para a conscientização do povo, ou seja: o Novo neste momento passava a ser O Povo. O pensamento até então vigente era: “popularizar a arte para chegar ao povo”. As práticas do CPC retratavam os conflitos partidários, as teorias revolucionárias, o encargo tributário, a dependência estrangeira, o descaso do governo, a reforma universitária, o analfabetismo, a ausência de consciência política, entre outras vivências do povo brasileiro. Por meio de suas ações é possível compreender um período em que a utopia consistia em politizar as massas populares pela arte, sonho este impedido pelo golpe em 1964. Os cepecistas estabeleceram diálogos de reivindicação e resistência, estimulando a consolidação do teatro nacional. De acordo com Miliandre Garcia de Souza (2007), com dois anos de experiência, o CPC concluiu sua primeira fase de ação cultural, 34 |

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registrado no relatório de 1963: “universitários foram mobilizados e escreveram, representaram, representaram, debateram, fizeram exposições, formaram-se e formaram, conheceram as limitações objetivas para os movimentos de culturalização, adaptaram seus meios aos seus fins” (MERQUIOR, 2007, p. 49). Marilena Chauí é perspicaz ao identificar nos estudantes, artistas e intelectuais o público alvo do CPC. A crítica Grande parte das análises acerca da fortuna crítica do Centro Popular de Cultura concentra-se no argumento de que o CPC não cumpriu com a sua principal e única finalidade, isto é, levar à conscientização das massas, fazer arte para e com o povo. Nas apresentações em sindicatos, clubes de subúrbios, favelas e ruas, o CPC, esbarrava na mesma dificuldade que afligia no passado os propósitos do Teatro Paulistas dos Estudantes (TPE) e o Teatro de Arena (TA). Em suma, no fundo o teatro a serviço do povo não chegava às massas. Não havia uma comunicabilidade significativa com o público alvo. Peças foram encenadas, porém, em sua maioria das vezes, o público se constituía por estudantes que possuíam afinidade com o movimento de esquerda; em apresentações em favelas, havia somente as crianças da comunidade, e em alguns casos, sem nenhum quorum. Para salientar tais críticas, a cultura cepecista, embora solidária às reivindicações das classes populares, não era considerada cultura orgânica daqueles setores. Lembro-me de uma festa no Largo do Machado. Do outro lado da praça, tinha um pessoal com um berimbau que conseguiu muito mais público que a gente. E olha que nós estávamos lá com aquela carreta cheia de luz, som, o diabo... Quando voltamos de lá, tivemos uma sessão de autocrítica que foi pesada. Eu acabei com a vida dos caras. Falei: “Não é possível uma coisa dessa, fazer um troço popular que está numa linguagem que não atrai o povo. Tem algum troço errado aqui.” Estava sofisticado demais, tinham que baixar o nível de sofisticação. Essa foi a grande luta que eu sempre travei lá. Porque eu, como não era artista, via aquilo por outro ângulo. O pessoal de vocação artística queria fazer coisas de valor estético...4 (BARCELLOS, 1994, pp. 89-90).

A aliança entre teatro e povo era o que todos pretendiam sedimentar, mas por motivos e sob formas diversas, o povo perpassa por personagens principais nos textos desde o teatro de Arena até o CPC, mas na realidade, o público, isto é, o povo, se encontra ausente. Essa limitação não era exclusividade do CPC. Na perspectiva de Miliandre Garcia Souza (2007), Osmar Rodrigues Cruz, em seu artigo, considerava que essa “renovação ficou entre os teóricos do palco, entre as elites, não alcançou o público do futebol ou do cinema.” (CRUZ apud SOUZA, 2007, p. 38). A arte era vista como um instrumento para se alcançar a nova sociedade, para se fazer a justiça social, através do esclarecimento do povo. A arte revolucionária não passava de uma utopia. Paulo F. Alves Pinto (1957, p. 182) afirmava que “embora a linguagem dessa peça seja 4 Depoimento de Carlos Estevam Martins à Jalusa Balellos em 1994.

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universal e alcance os mais desencontrados ambientes, há uma categoria de espectadores que não poderá atingi-la, por razões meramente materiais(...).” Em referência à peça Eles não usam Black-tie, apresentada no Teatro de Arena, com 512 apresentações em 40 cidades, número expressivo para época e, posteriormente, apresentada na fase do CPC, em sindicatos e com um número significativo de público. A crítica ao CPC ainda é vigente. Edélcio Mostaço (in: PARANHOS, 2012, p. 162) faz uma censura ao CPC: “Sabemos que a postura artística hegemônica nesse momento, na subsunção do centro popular de cultura (CPC), enfatiza proposições ligadas ao realismo, ao catecismo e à mobilização orientada das plateias”. Ainda sobre a perspectiva de Mostaço (Idem, p. 164), o pesquisador afirma a forte influência que o CPC tinha no seu período de existência: “Sem muito espaço de atuação ao longo daqueles anos, em razão do contexto artístico dominado pelo apelo popular do CPC”. Esta afirmação é referente ao espaço em que Hélio Oiticica, eventualmente, não estabeleceu naquele momento, em que o espaço cultural havia sido contaminado pelas ideias do CPC. Os próprios membros do CPC eram os mais críticos em relação à produção na década de 60. Vianinha revisitava a todo momento as dificuldades acerca da recepção com os espectadores. Carlos Estevam Martins, que possuía embates ideológicos com Vianinha, tecia várias críticas, entre elas: A dificuldade não estava em montar espetáculos que pudessem ser levados à massa: a dificuldade estava em entrar em contato com o povo, uma vez que não existiam estruturas de conexão entre o grosso da população e os grupos culturais politizados que queiram sair fora dos circuitos elitistas. Não tínhamos uma sociedade civil desenvolvida o bastante para oferecer associações ou organizações populares que fossem vividas e frequentadas pela população (MORAES, 2000, p. 120).

É preciso salientar que era o início de uma dramaturgia essencialmente nacional e popular, que tinha como caráter refletir o Brasil através de suas manifestações mais autênticas. Uma dramaturgia e as formas de encenação que iam se adequando de acordo com as necessidades. De acordo com Décio de Almeida Prado (2009), o palco e a rua eram veículos preciosos a quem desejassem ministrar à “massa trabalhadora” (expressão de Vianinha): “Se o povo provavelmente pouco mudou nesse período, o teatro, por influência dele, mudou muitíssimo.” Dentro do CPC o discurso político continha profunda valorização, pois em parte acreditavasse que ele atingiria a todos igualmente, podendo, inclusive, servir como um instrumento de ação política futura a partir da conscientização do espectador. A arte era vista como um instrumento para alcançar a nova sociedade, através do esclarecimento do povo. A questão estética ficava em segundo plano. As montagens no CPC tinham o intuito da eficácia política. Isso pressupõe que o processo de sensibilidade e mobilização pode acontecer se o espectador estiver diretamente envolvido com o conteúdo apresentado, pois o teatro, neste momento, estará apenas dando uma visibilidade a mais àquilo que já vem sem construído internamente por quem assiste a obra teatral. No entanto, se o conteúdo 36 |

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está definitivamente distante da realidade do seu receptor, o conteúdo apresentado não muda e não sensibiliza, ou seja, não transforma aquele que vê o espetáculo teatral. Na perspectiva gramsciana, o popular na cultura significa, portanto, a transfiguração expressiva de realidades vividas conhecidas, reconhecíveis e identificáveis, cuja interpretação pelo artista e pelo povo coincidem. Essa transfiguração pode ser realizada tanto pelos intelectuais “que se identificam com o povo” quanto por aqueles que saem do próprio povo, na qualidade de seus intelectuais orgânicos. Gramsci se situa, portanto, quase no antípodas de um Brecht (CHAUÍ, 1983, p. 17).

CPC: Ligas camponesas, teatro nos sindicatos e CPCs Com ou sem razão, no que diz respeito ao alcance da produção Cepecista, a intelectualidade era consciente da atuação limitada da entidade, voltada para e com os universitários. Assim, uma redefinição da sua participação fazia-se necessária. Afinal, como chegar às massas atuando tão somente para e com estudantes, artistas e intelectuais? Como traduzir um pensamento político para uma obra de arte? Esse engajamento pode se dar sem que se percam as condições de arte? O relatório do CPC registrou a preocupação com a reduzida atuação entre universitários e buscou aprofundar e estender a atuação entre outros grupos sociais, sobretudo, entre as classes populares, rurais e urbanas. Entender o espaço geográfico de atuação do CPC, juntamente com a construção da dramaturgia, nos parece uma boa opção para discutimos possíveis desdobramento na estratégia política em questão. Para Diógenes André Vieira Maciel (2004), a falta de conexão entre nacional e popular reside no fato dos intelectuais não se articularem com o povo, ainda que acidentalmente. Uma experiência estética interessante foi o teatro camponês, que nos permite uma reflexão crítica da produção artística e política do CPC dentro de comunidades, e um possível desdobramento para a dramaturgia e uma reflexão sobre o contato com público popular. A dramaturgia neste caso está relacionada com o espaço social. Cada espaço social possui sua estrutura própria de relações que contribuem para uma visão de mundo, para uma identidade social. Essas identidades, por sua vez, se caracterizam por estilos de vida diferentes. Para Pierre Bourdieu (2012), o espaço pode ser utilizado como ferramenta entre forças desiguais em que se manifestam a cultura popular. É necessário perceber a necessidade de uma comunidade para então assim conseguir um diálogo efetivo. Não bastava somente popularizar a arte para chegar às massas, era necessário entender às classes trabalhadoras: os operários, as ligas camponesas, a favela, em suma, todas as informações sobre suas situações, sobre suas condições de lutas, sobre as aspirações de um povo, ou seja, suas identidades. Vianinha acentuou a necessidade de o teatro não estar mais no âmbito literário, mas sim no real. Esse entendimento entre a percepção popular e a encenação acontece quando se desenvolveram as ligas camponesas no Rio de Janeiro, liderada pelo ator popular Joel Barcelos.

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Caminhos da pesquisa em artes cênicas Os primeiros espetáculos que foram feitos na área rural foram fracassos lamentáveis. Diante disso, Joel Barcelos teve a feliz inspiração de rejeitar os textos prontos e exteriores à realidade do local, sugerindo que o grupo chegasse ao local da apresentação uns dias antes e se dedicasse a estudar os problemas e os tipos humanos mais característicos do local; cada ator elegia um tipo, e o grupo montava um texto em que aparecessem estes tipos com os nomes ligeiramente alterados, e os problemas que a população do local enfrentava. Isso funcionou otimamente (MARTINS, 1980, p. 2).

Carlos Estevam Martins (1980) afirma sobre outra atividade interessante desenvolvida pelo CPC: a inclusão da literatura de cordel, que veio possibilitar os primeiros contatos com as plateias populares. Pressupõe-se que esta forma se afirmava um ponto de partida interessante de se colocar conteúdos políticos dentro de formas de cultura popular. A literatura de cordel, por sua vez, é um veículo que permite ao povo participar da vida do país, debater a realidade, expressar suas necessidades e anseios. O cordel retrata tradições, costumes, lendas e acontecimentos, traz consigo todo um conjunto de manifestações artísticas e culturais e políticas. No Paraná, o uso de teatro de bonecos permitiu a entrada do CPC em favelas, e um possível diálogo com o povo. No decorrer dos anos, Vianinha revisou suas ideias sobre a Cultura Popular e sobre as condições de difusão da produção artística do CPC. A transformação na dramaturgia brasileira provocada concretamente pelas peças de Gianfrancesco Guarnieri e de Oduvaldo Vianna Filho foram, portanto, o produto de consciências intensamente desenvolvidas e introduziu elementos radicalmente distintos dos até então vigentes na arte cênica brasileira. Pressupõe-se que começava a se afirmar a opinião de que o diálogo com o público brasileiro se fortalecia na medida em que eram postos em cena a linguagem popular, os costumes, os problemas e sua forte crítica. Considerações É extremamente útil promover uma reflexão crítica acerca da trajetória artístico-política cepecista interrompida pelo golpe militar de 1964. O CPC teve uma ação múltipla, uma visão audaciosa e surpreendente para sua época, um movimento multiplicador cujas obras se destacam e refletem até nossos dias. Sendo assim, podemos afirmar que a multiplicidade de ideias acerca do engajamento teatral tomara o CPC como objeto de estudo que reproduzia um teatro panfletário, e que não se afastou programa radical do Teatro de Arena. Marilena Chauí considerou que todos os títulos apresentavam pedagogia autoritária, pois: Nenhum dele traz um único documento, um único depoimento (salvo o de Julião sobre as ligas camponesas) onde o próprio povo fale, nem mesmo um único texto que pudesse se considerado uma fala nacional. Desejos, ideias, modos de ser práticas, ações, aspirações, tudo é imputado ao povo e à nação. Sem que nenhum deles apareça de viva voz (SOUZA, 2007, p. 38).

Sabe-se que a UNE-Volante foi um estrondoso sucesso de propagação dos CPCs pelo país, do Rio Grande do Sul a Manaus, cerca de duzentas assembleias estudantis foram 38 |

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precedidas ou encerradas pelo movimento do CPC. Na Bahia, cinco mil jovens lotaram a concha acústica de teatro Castro Alves. Paulo Pontes, em um encontro com Vianinha, também não resistiu às propostas irreverentes de fazer um teatro popular, o que daria início ao CPC na Paraíba. Os autos encenados durante a passagem da UNE-volante por Curitiba apressaram a criação no Paraná. O diretor teatral e jornalista Luiz Carlos Maciel relata sua experiência com a formação do CPC em Salvador: O projeto de cultura popular era entusiasmante. Foi uma coisa que pegou as pessoas pela possibilidade de participação. Havia uma grande identidade de propósitos com ideia de um teatro popular. Eu me lembro de que, num contato rápido que tivemos com o Vianinha, ele nos insuflou a fazer o CPC na Bahia, dizendo que era fundamental abrir frentes, tocar a coisa (MORAES, 1998, p. 139).

Ao todo, 12 CPCs foram fundados e registrados nos estados; no Rio, núcleos espalharam-se por faculdades e sindicatos. Em São Paulo, Chico de Assis e Augusto Boal colaboraram para a formação do núcleo do CPC de Santo André, constituído basicamente por operários metalúrgicos. Com este último citado, podemos fazer um questionamento crítico: um grupo de operários, que teve influência cepecista e gerou o CPC de Santo André, contou com participação ativa dos mesmos: os operários gerenciavam, dirigiam e atuavam no CPC de Santo André. Com base nesse estudo podemos questionar: com três anos de existência, isto é, um período curto para um projeto revolucionário e um projeto na produção teatral brasileira, o CPC falhou com seu objetivo de levar o teatro às plateias populares, levando em consideração os primeiros contatos com as ligas camponesas? Encerrada a UNE-volante, estavam dados os primeiros passos para a consolidação do CPC até ali. Vianinha expunha a palavra de ordem fora a mobilização de quadros. Faltava dar expressão social ao movimento. Com o Golpe de 64, o CPC não pôde dar continuidade ao seu projeto. Porém, acredita-se que o teatro popular já havia se disseminado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. BERLINK, Manoel T. O Centro Popular de Cultura da UNE. Campinas: Papirus Livraria Editora, 1984. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 16. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. CHAUÍ, Marilena de Souza. O nacional e o popular na cultura brasileira. Seminários. São Paulo: Brasiliense, 1983. DAMASCENO, Leslie Hawkins. Espaço cultural e convenções teatrais na obra de Oduvaldo Vianna Filho. Trad. Iná Camargo Costa. Campinas: UNICAMP, 1994. GARCIA, Silvana. Teatro da militância: a intenção do popular no engajamento políti| 39

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co. São Paulo: Perspectiva, 2004. GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão: vanguarda e subdesenvolvimento: ensaio sobre a arte. Rio de janeiro: José Olympio, 2002. LIMA, Eduardo Luís Campos. O Auto dos 99% - O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE) e a mobilização estudantil. In: Revista Crioula. n.10. São Paulo: USP, 2011. MARTINS, Carlos Estevam. Depoimento. In: Arte em Revista. vol. 2, nº 3, março/1980, pp. 77-82. MACIEL, Diógenes André vieira. Ensaios do nacional popular no teatro brasileiro moderno. João pessoa: editora universitária/UFPB, 2004. MERQUIOR, José. Guilherme. Notas para uma teoria da arte empenhada. Movimento, Rio de Janeiro n. 9 mar. 1963. In: SOUZA, Miliandre Garcia. Do teatro militante à música engajada: a experiência do CPC da UNE (1958-1964). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. MORAES, D. de. Vianinha, cúmplice da paixão. Uma biografia de Oduvaldo Vianna Filho. Rio de Janeiro: Record, 1998. MOSTAÇO, Edélcio. O sol do novo mundo: Hélio Oiticica e o quase teatro ambiental. In: PARANHOS, Kátia Rodrigues (org.). História, teatro e política. São Paulo: Bointempo, 2012. PARANHOS, Kátia Rodrigues (org). História, teatro e política. São Paulo: Boitempo, 2012. PEIXOTO, Fernando (org.) O melhor teatro do CPC da UNE. São Paulo: Graal, 1989. PEIXOTO, Fernando. (org.) Vianinha: teatro, televisão e política. São Paulo: Brasiliense, 1983. pp. 90-95. PINTO, Paulo F. Alves. Eles não usam black-tie. In: Revista Brasiliense. n. 16. São Paulo: Brasiliense, mar./abr. 1957. pp. 179-182. PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. SOUZA, Miliandre Garcia de. Do teatro militante à música engajada: a experiência do CPC da UNE (1958-1964). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. SOUZA, Miliandre Garcia de. A questão da cultura popular: as políticas culturais do CPC (Centro Popular de Cultura) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Revista brasileira de História. vol. 24, n. 47. São Paulo, 2004. pp. 127-162. VIANNA FILHO, Oduvaldo. Do Arena ao CPC. In: PEIXOTO, Fernando, (org.) Vianinha: teatro, televisão e política. São Paulo: Brasiliense, 1983. pp. 90-95. VIANNA FILHO, Oduvaldo. Chapetuba Futebol Clube. In: MICHALSKI, Yan (org.) Teatro de Oduvaldo Vianna Filho: vol. I. Rio de Janeiro: Ilha, 1981. pp. 79-207. VILLARES, Rafael de Souza. O nacional-popular no teatro do CPC da UNE: a visão de Oduvaldo Vianna Filho, Carlos Estevam Martins e Ferreira Gullar. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas). Campinas, IA/Unicamp, 2010. WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2010. YAN, Michalski (org). Oduvaldo Vianna Filho. Rio de Janeiro: Ilha, 1981.

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ARENA E SHOW OPINIÃO, APROXIMAÇÕES ESTÉTICAS DA CENA POLÍTICA Everton da Silva José Universidade Federal de Ouro Preto A considerar-se Este artigo propõe uma revisão histórica do Grupo Teatro de Arena com o propósito de compreender o espetáculo Show Opinião, provocando assim a visibilidade de alguns aspectos presentes na estética e na política de ambos. Para tal empreitada, como forma de aproximação entre o Arena e o espetáculo em apreensão, atina-se para três pontos fulcrais na produção cultural deste grupo, sendo eles: o contexto político e estético em relação à proposta espacial em Arena; novos membros do TPE, com foco sobre o processo de Oduvaldo Vianna Filho e de Augusto Boal; e o Seminário de Dramaturgia. As três chaves de leitura, enquanto caráter investigativo e aproximativo entre tais propostas, a do Grupo Teatro de Arena e a do espetáculo Show Opinião, dirige-se não em busca de analisar historicamente verdades pré-dispostas e já exacerbadas sobre ambos os objetos. Antes, preocupa-se, por meio desses fluxos, em tecer possíveis aproximações que saltam aos olhos, ou tratar da compreensão de determinadas características/potencialidades que possam residir entre elas. Das contribuições Em vista de tomar compreensão do teatro brasileiro em sua modernidade, percebem-se algumas potencialidades no surgimento do Arena enquanto grupo e também da elaboração de seu trabalho cênico em outros espaços cênicos. Nesse sentido, faz-se expressivo o surgimento dos respectivos estudos realizados sobre práticas em espaços cênicos configurados como arena, observando que o primeiro estudo nas crônicas teatrais brasileiras sobre este espaço ocorreu em 1951, no I Congresso Brasileiro de Teatro, com os respectivos autores: Décio de Almeida Prado, Gustavo Mateus e José Renato Pécora. Este último foi fundador do Teatro de Arena em 1953 e também diretor do experimento cênico da dramaturgia Demorado Adeus, de Tennessee Williams, realizado por alunos da Escola de Arte Dramática de São Paulo (EAD). Tal realização é tratada como fato inaugural da estética em arena no teatro brasileiro e, também, enquanto proposição de estudo “sistemático” sobre a produção cênica na configuração espacial em arena (MOSTAÇO, 1982). Quando Mostaço se refere a este texto dirigido por José Renato atenta-se para o desenvolvimento e a procura de uma nova proposta estética que abordasse novas relações e desafios ao trabalho do ator. Nesse sentido, compreende-se que, a princípio, o foco dos trabalhos do Arena se dedicava a uma proposta de realização estética e: A primeira ideia foi quebrar a caixa geométrica e treinar os atores em novas relações espaciais. A inserção desse tipo de dramaturgia num palco em arena propõe um duplo desafio: as personagens devem existir como “reais” e a comunicação emocional do texto acontece quando os atores obtêm essa concreção (LIMA, 1978, p. 31). | 41

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Compreende-se assim que o foco dos alunos da EAD se voltava a uma finalidade de modificação espacial, que advinha de uma tradição de encenações em palcos “à italiana”. Nesse sentido, o foco puramente estético de ruptura com os espaços instituídos, assim como as novas propostas de expansão no campo do trabalho do ator, age sobre o véu da proposta estética, valendo-se de uma política da cena, a qual procura ampliar mecanismos e maneiras de realização cênica. Todavia, infere-se, com a fundação do Grupo Teatro de Arena, que, além de propor essa “nova” proposição estética, também se inseriu com um alinhamento de características referente à política do espaço, apresentando-se em relação ao deslocamento do espetáculo cênico do edifício teatral, como no Museu de Arte Moderna de São Paulo, no qual foi realizada a estreia do Arena e de seu primeiro espetáculo, chamado “Esta noite é nossa”, de Stanford Dickens, e, ainda, nos seus dois primeiros anos ao realizar apresentações em clubes, sindicatos e escolas, produzem uma proposta cênica que transita entre estética e política cênica. Essa perspectiva apresenta que mesmo com a busca do Arena, nos seus dois primeiros anos (sendo que de 1953 a 1955 o grupo não possuiu uma sede), de desenvolver uma estética, as suas ações foram ocasionadas por forças financeiras ou mesmo inconscientes. Nesse sentido, vê-se que “por enquanto o interesse primordial do grupo era fazer teatro, como ideal artístico e como profissão” (LIMA, 1978, p. 34), o que privilegia as acepções estéticas. No entanto, nesse ideal artístico e de profissionalização o Arena levantou uma perspectiva de trabalho não mais vinculada às práticas teatrais anteriores no cenário do teatro brasileiro (em relação ao TBC – Teatro Brasileiro de Comédia), e com estes deslocamentos, em si espaciais, trouxeram um posicionamento estético que se projetou sobre o político. Dos novos integrantes O segundo ponto em relação ao Arena debruça-se sobre as modificações que ocorreram, principalmente, com a aquisição de uma sede e em seguida com a entrada de novos integrantes ao núcleo permanente do grupo. A sede trouxe novos desafios e mudanças significativas, que se deram em âmbito positivo e negativo. Esta pesquisa considera positivo o grupo ter realizado propostas culturais e inter-relacionais com outras artes, propondo no hall de entrada um espaço para exposições e apresentações musicais, além de favorecer apresentação de grupos amadores nos chamados “Teatro das segundas-feiras”. Como negativo, considera-se a perda de mobilidade, mobilidade que havia guiado o grupo em seus dois primeiros anos. Isso pode ser percebido como uma modificação em relação à ideologia do grupo, que não mais coloca em foco ir aos locais de origem do público, o que era entendido como grande potência em detrimento do teatro estável. [...] a proposta do Arena, antes de 1954, de consolidar uma posição artística e seguir até o local de origem de público inédito, era um passo adiante do teatro estável. Idealmente essa proposta mantinha as conquistas do teatro estável no que diz respeito

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP à ideologia do espetáculo e à qualidade artística das produções. Na prática, ampliava o alcance dessa proposta introduzindo não apenas a necessidade de conseguir um público, mas a necessidade de um novo público (LIMA, 1978, p. 36).

Assim, com a aquisição da sede, a potência que o grupo ganhou por não ser estabelecido em um local definido e de desenvolver tal deslocamento em busca de um novo público é realinhada para outras necessidades que não mais confluíram para a busca desse novo público, mas que permearam a estabilidade do grupo e, também, modificações significativas na sua presença como grupo profissional. A partir da aquisição da sede o grupo irá ter maiores preocupações com a cultura nacional e com a fomentação de um teatro que não seria apenas espaço para a apresentação de espetáculos, mas também de outras expressões artísticas. No ano de 1956, o Arena desenvolveu uma parceria com o TPE (Teatro Paulista do Estudante), grupo formado por estudantes e que pensavam o teatro como instrumento político (BETTI, 2013). O TPE foi um grupo formado por estudantes filiados à militância política do Partido Comunista Brasileiro, fundado em 1955 pela iniciativa de amadores ligados à União da Juventude Comunista. Além de Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) e Gianfrancesco Guarnieri, o TPE neste período era composto por Vera Gertel, Diorandy Vianna, Raymundo Duprat e Pedro Paulo Uzeda Moreira. Tais “integrantes haviam elegido o teatro como instrumento de uma tarefa partidária auto assumida, sem objetivo de profissionalização teatral” (BETTI, 2013, p. 176). Nesse sentido, observa-se que o TPE trazia consigo uma proposta na qual o teatro era apenas um meio para a ação partidária. A proposta de parceria se deu com o convite aos tepeístas para realizar figurações nos espetáculos do Arena e, em contrapartida, eles poderiam se apresentar no “Teatros das segundas-feiras”. No entanto, alguns deles foram levados a se profissionalizar e passaram a ser membros permanentes do Arena. Dentre estes, os que mais contribuem para esta investigação são Vianinha e Guarnieri. Com a entrada destes novos membros sugere-se uma intersecção entre os anseios estéticos e culturais, estes que já vinham se construindo ao longo da trajetória do Arena, em conjunção com os aspectos políticos e ideológicos trazidos pelos tepeístas mencionados. Um fator a ser sublinhado e que corrobora para a influência que os tepeístas passaram a exercer no Arena, enquanto cunho ideológico político, se encontra em 1957, quando estes enviaram uma tese para o II Festival de Teatro Amador, que se deu em São Paulo. Mostaço apresenta um trecho desta tese favorecendo a compreensão destas influências: [...] a necessidade do teatro assumir um papel mais ativo na conjuntura cultural, observando que os problemas da cultura não vivem independentemente de problemas políticos e econômicos. Um povo entorpecido é um povo que na passividade se entrega à rapina e à escravidão. Um povo entorpecido é o que não ama, não quer, não luta. E a cultura destinada a entorpecer um povo é aquela que se desliga desse mesmo povo, que se desvencilha de seus sentimentos, paixões e aspirações, é a que foge dele, é a que se abstraindo do humano, deturpa e entorpece (MOSTAÇO, 1982, pp. 28-29). | 43

Caminhos da pesquisa em artes cênicas

A partir de tal colaboração, infere-se nos anseios políticos e culturais dos tepeítas um forte aliado para o projeto estético e político que o Arena desenvolveu nos anos que se seguiram. Procurou-se, por meio de espetáculos bem construídos, tangenciar práticas que discutiam a cultura nacional. Tal apreensão pode ser observada nas dramaturgias de “Eles não usam black-tie”, de Guarneri, e de “Chapetuba Futebol Clube”, de Vianinha, peças que foram encenadas pelo grupo e contribuíram a um desenvolvimento do campo estético e do campo político do fazer teatral. Outro integrante de extrema relevância às atividades do Arena foi Augusto Boal. Este retornou dos Estados Unidos ao Brasil, após ter feito cursos de dramaturgia e de encenação, e logo é apresentado ao Grupo Teatro de Arena tornando-se membro permanente e, brevemente, realizando a direção do espetáculo “Homens e Ratos”, de John Steinbeck. Nesse período, Boal começa a desenvolver propostas de cursos de formação tanto na perspectiva dramatúrgica quanto em relação ao campo da interpretação, o que contribui diretamente para os anseios culturais do Arena. Nesse sentido, Lima diz que: [...] a aprendizagem norte-americana de Augusto Boal conseguiu uma boa comunicação com o público brasileiro. Os elogios mais enfáticos foram feitos ao tratamento da psicologia da personagem e, naturalmente, à alta dose de realismo atingido pelo trabalho do novo diretor com os recursos da arena (LIMA, 1978, p. 41).

Com a entrada dos tepeístas e de Augusto Boal, percebe-se que o Arena começa a ter outras propostas no que diz respeito à realização da prática teatral e como um fomentador cultural das práticas teatrais. Mais uma vez as propostas do Arena continuam a se modificar e se (re)construir, visto que, com as propostas de dinamização da sede como um centro cultural, marcou-se, novamente, um deslocamento das coordenadas de suas práticas. Este deslocamento ocorre em propósito de atribuições e interesses do grupo que começaram a pensar “uma função mais definida do grupo nas condições globais de produção da arte” (LIMA, 1978, p. 42). Nesse viés, vemos algumas preocupações surgirem: a questão da produção de uma dramaturgia nacional e a formação de atores. Nesta pesquisa, enquanto breve investigação, procura-se não adentrar as peculiaridades do campo da formação do ator, e sim, a seguir, perceber as potencialidades advindas com o Seminário de Dramaturgia, alocado nestas reflexões como fonte para uma apreensão do Show Opinião. Do Seminário de Dramaturgia A proposta do Seminário de Dramaturgia se inicia a partir da seguinte expressão: “Se não há uma dramaturgia adequada, é preciso inventá-la” (BOAL apud LIMA, 1978, p. 43). Tal relação se dá pela percepção do grupo de que no Brasil, até então, havia pouca dramaturgia de cunho nacional, que fosse pensada e produzidas dramaturgias sobre o contexto do brasileiro. Nesse sentido, o Seminário de Dramaturgia permeia uma preocupação política enviesada por uma necessidade de produção dramatúrgica brasileira, 44 |

II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP

na qual contivesse em pauta de proposições as questões pertinentes à cultura brasileira. O Seminário de Dramaturgia é precedido por dois eventos importantes: o primeiro, um concurso de dramaturgias, que ocorre pela perspectiva de saber se a dramaturgia existente era adequada ou não para expressar a história do Brasil em meados da década de 1950 (LIMA, 1978). O segundo evento se dá a partir do sucesso da peça “Eles não usam Black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, estreada em fevereiro de 1958. Esta peça foi um sucesso tanto de público, quanto de crítica, e trouxe potencialidade para a proposta do Seminário de Dramaturgia, que viria a ter início em abril do mesmo ano da estreia dessa peça. Nessa conjuntura o Arena toma a seguinte perspectiva em torno da reflexão sobre a escrita dramatúrgica e da produção de textos brasileiros: Os “Seminários de Dramaturgia”, inaugurados em 1958, são uma resposta do Arena a sua própria perplexidade. Nesse momento os membros do grupo assumem positivamente a necessidade da mudança de uma dramaturgia nacional, não apenas no terreno da crítica. Resolvem que compete ao Arena na sua totalidade, atores, diretores, cenógrafos a responsabilidade pela criação de uma infra-estrutura para aquilo que desejam realizar em cena (LIMA, 1978, p. 44).

Com isso, o grupo toma partido em desbravar o campo da produção de sua dramaturgia, a ser composta pelos próprios integrantes do grupo. O Seminário de Dramaturgia virá como provocação para um pensamento dramatúrgico envolvido na perspectiva de levar situações do povo e da cultura brasileira aos palcos, sendo que tais aspectos já estão contidos na proposta dramatúrgica de Guarnieri e também no sucesso de sua realização cênica, dando potência à perspectiva tanto da escrita dramática pelos próprios integrantes do grupo como, em certos aspectos, determinaram os rumos que o Arena seguirá em seus espetáculos nos anos seguintes. O que pode ser frisado é que o Arena, a ponto de ser fechado pela crise financeira em que passava, ganha força com “Black-tie” para seguir e também de que maneira seguir, tomando o ponto de vista dos acontecimentos nacionais e que “é dessa história, ‘enquanto acontece’, que o grupo vai extrair os textos que precisa para reanimar um trabalho que estava próximo um ponto de estrangulamento.” (LIMA, 1978, p. 45). Nesse viés, vê-se nos seminários uma proposta clara de construção dramatúrgica a partir de um prisma dos acontecimentos nacionais. Tal compreensão ocorre a partir do primeiro texto realizado e discutido no seminário e que foi montado pelo grupo, “Chapetuba Futebol Clube”, de Vianinha. Escrita ainda em 1958, trazia em suas questões um tema bem próximo dos brasileiros: o futebol, principalmente em relação à Copa do Mundo, ocorrida no ano de composição da peça. Por estar tão recente na conjuntura nacional no período, isso revela um posicionamento do grupo no sentido de que o Arena passou a investigar a vida cotidiana do país por um viés de escrita denominado de “nacionalismo crítico”. Essa perspectiva coloca o Arena em outro deslocamento, sendo ele o de trazer o cotidiano do povo brasileiro em relação às perspectivas culturais, políticas e sociais. | 45

Caminhos da pesquisa em artes cênicas

Assim, pode-se interpretar como os anseios do grupo desde seu princípio, e com os novos integrantes, assumiu tanto a busca por uma política teatral, tal como a proposta de uma reformulação na construção cênica nacional. Do Show Opinião O continnum histórico, para encarregar-se de uma possível reflexão sobre o Show Opinião, é dirigido aqui enquanto apreensão de um fluxo estético e político, que se fazem presentes nas manifestações que antecederam a produção deste espetáculo, o que se propõe tendo em vista a participação de Vianinha e Augusto Boal como figuras importantes em sua produção. Não se pode deixar de perceber o afastamento de Vianinha do Arena e passando a desenvolver ações no CPC da Une (Centro Popular de Cultura), no qual se percebe que o campo estético é minimizado em relação ao campo político. Vianinha irá dizer a esse respeito, posteriormente, que entre as produções do Arena e do CPC existiu uma diferença fundamental, que era: o Arena propunha uma produção cênica que entrelaçasse o campo estético e campo político, ao passo que o CPC detinha maior relevância política e pertinência ideológica (FILHO, 1999). Assim, embora o foco deste trabalho não adentre nas propostas teatrais do CPC, entende-se que elas foram também componentes do fluxo criativo para a realização do Show Opinião, principalmente por grande parte de seus realizadores estarem envolvidos nas práticas ou mesmo nas discussões do CPC. Como recorte, essa perspectiva de continuum do Arena encaminha-se da seguinte forma: a espacialidade (política e estética), a perspectiva de propulsão cultural enviesada por Vianinha e Boal, e as contribuições relacionadas à perspectiva de uma dramaturgia nacional. No Show Opinião, vemos uma espacialidade que se configura em arena ou em semicírculo. Sua estreia efetuou-se no Shopping Center Copacabana, da rua Siqueira Campos, no dia 11 de dezembro de 1964, em uma realização do Grupo Opinião em parceria com o Teatro de Arena (KÜHNER, 2001). Nesse sentido, vemos na produção do Show Opinião a participação do Arena, especialmente pela direção ter sido realizada por Augusto Boal. Assim, o que se verifica em relação à espacialidade é uma proposta de proximidade entre audiência/público e os respectivos intérpretes, sendo eles: João do Vale, Nara Leão e Zé Kéti. Todos vindos da área musical, não eram atores por excelência. A relação espacial suscitada por meio dessa proximidade favorece uma ação que coloca o público diante de sujeitos reais e que no Show tecem seus testemunhos e canções. Acerca das propostas políticas e estéticas, pode ser observado que o Show estava intimamente alinhado a uma perspectiva contra o Golpe Militar ocorrido meses antes de sua estreia, e que grande parte da fortuna crítica acerca do espetáculo o observam enquanto uma manifestação de engajamento e que não valorizam, ou não colocam em observação, a sua composição estética. Nesse sentido, o que se tenta aqui aproximar são os posicionamentos em relação à encenação e à dramaturgia que, antes de serem políticas e engajadas, possibilitam uma leitura de sua dramaturgia. A proposta de dramaturgia é composta por Vianinha, Paulo Pontes e Armando Costa (1965), embora eles não se apresentem como dramaturgos do Show, mas como organizadores. 46 |

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Segundo consta, eles são organizadores dos testemunhos, dos dizeres, dos diálogos dos intérpretes, fazendo com que houvesse um trabalho de construção dramatúrgica coletiva, não objetivando a criação de personagens ou de uma “história”, mas organizam os discursos a partir das memórias e das canções dos intérpretes, construindo assim um texto teatral a muitas mãos. Nesse sentido, pode-se levantar uma perspectiva percursora já presente nas ações do Seminário de Dramaturgia, e também frisando as questões do cotidiano do brasileiro lá proposto. Como exemplo, a proposta de escrita dramatúrgica coletiva, a escrita de testemunhos e não de personagens fictícias, uma dramaturgia composta por fragmentos e que não narra uma história e a representa, mas antes traz em sua forma fragmentária a potência de representação do povo brasileiro pelos intérpretes que presentificam em cena os testemunhos de suas trajetórias. Nessa conjuntura, as práticas sugeridas do Grupo Teatro de Arena acerca da espacialidade, de Vianinha e Boal, e das discussões e propostas dramatúrgicas, tornam-se faíscas que, envoltas nesse continuum histórico, fomentaram a potencialidade presente nas questões estéticas do Show. Com a brevidade desse estudo, o que se estabelece aqui é uma possibilidade de chave de leitura em aproximação de uma percepção de continuidade num processo de formação do teatro brasileiro, de um teatro que valorizou a cultura nacional, os seus meios de fazer e de se realizar tanto no plano político como das propostas que colocaram em intersecção o campo ideológico e o campo estético. E, ainda, como chave de leitura, procurou-se ver aquilo que permanece à sombra em grande parte das pesquisas, a sua potência estética presente na composição do teatro político.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BETTI, Maria Silvia. A politização do teatro: do Arena ao CPC. In: GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto (org.). História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas. 2.v. São Paulo: Perspectiva/ SESCSP, 2013. COSTA, Armando et al. Opinião: texto completo do “Show”. Rio de Janeiro: edições do Val, 1965. KÜHNER, Maria Helena; ROCHA, Helena. Opinião: para ter opinião. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. LIMA, Mariângela Alves de. História das idéias. In: VARGAS, Maria Thereza; GUIMARÃES, Carmelinda; LIMA, Mariangela Alves de (org.). Dionysos – especial Teatro de Arena. Rio de Janeiro, MEC/DAC-Funarte/SNT. 24.n., pp. 31-63, out., 1978. MOSTAÇO Edélcio. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982. VIANNA FILHO. Oduvaldo. Vianinha: teatro, televisão, política. Seleção, organização e notas de Fernando Peixoto. São Paulo: Brasiliense, 1999.

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APROXIMAÇÕES ENTRE O CORINGA DE TEATRO DO OPRIMIDO E O BUFÃO Sarah Reimann Oliveira Universidade Federal de Goiás

Segundo Augusto Boal (2008), sistematizador das técnicas do Teatro do Oprimido, o Teatro do Oprimido é teatro na acepção mais arcaica da palavra: todos os seres humanos são atores, porque agem, e espectadores, porque observam. No Teatro do Oprimido, o público é convidado a entrar em cena e propor alternativas para o problema apresentado na peça, se caracterizando como espect-ator/atriz. O Teatro do Oprimido surgiu nos anos de 1970 e atende, em especial, a necessidade de que o teatro seja ferramenta para a revolução. A maioria das técnicas do Teatro do Oprimido são sistematizadas em contexto hispano-americano, durante o exílio de seu pensador, Augusto Boal. O Teatro do Oprimido parte do princípio de que todos(as) podem fazer teatro, inclusive os atores e as atrizes. Essa afirmação realça sua característica popular e de transformação social, pois o Teatro do Oprimido evidencia as qualidades teatrais do ser humano. O Teatro do Oprimido possui seis modalidades: o Arco-Íris do Desejo, o Teatro Fórum, o Teatro Imagem, o Teatro Invisível, o Teatro Jornal e o Teatro Legislativo. O Teatro Imagem dá suporte à multiplicação das técnicas de Teatro do Oprimido a partir da priorização do corpo e da imagem para a comunicação. O Teatro Imagem pressupõe falar através do corpo o que se quer dizer, dispensando o uso da palavra mesmo que esta seja extremamente importante para desenvolver os mecanismos corporais imagéticos e de possibilidades motoras. O principal meio de atuação da modalidade é a imagem e as construções que ela gera; a modalidade perpassa por todas as outras, ou seja, é um caminho em comum a ser seguido. A forma mais conhecida e praticada do Teatro do Oprimido é o Teatro Fórum. A peça de Teatro Fórum surge a partir de uma opressão compartilhada por um grupo por analogia ou por identidade. Ao longo de um processo que engloba jogos e exercícios, a percepção social e artística dos(as) participantes é aprimorada e, por vezes, reconstruída. O grupo se encontra e percebe uma opressão partilhada coletivamente ou se une para discutir uma opressão específica. O trabalho feito se baseia na construção de uma cena-fórum, na qual será exposto e discutido o tema escolhido pelo grupo. A peça de Teatro Fórum não tem um final, ela é “inacabada”; os finais serão propostos pelas intervenções do público. O Teatro do Oprimido usa histórias reais dos(as) participantes de modo que elas sejam generalizadas para apresentar uma opressão que é comum. Todos os tipos de teatro fazem misturas da ficção e da realidade em algum nível, porém a mistura no Teatro do Oprimido é especialmente importante, pois suas encenações estão diretamente ligadas à reflexão das ações opressoras do dia a dia. O Teatro Fórum atua por meio de jogos e exercícios sistematizados por Boal; os jogos, em sua maioria, não foram inventados por ele, mas repensados de acordo com os 48 |

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objetivos do Teatro Fórum. Os jogos são divididos em cinco categorias: sentir tudo que se toca (diminuir a distância entre sentir e tocar); escutar tudo que se ouve (diminuir a distância entre escutar e ouvir); ativando vários sentidos (desenvolver os vários sentidos ao mesmo tempo); ver tudo o que se olha (ver tudo aquilo que olhamos); memória dos sentidos (despertar a memória dos sentidos). As categorias foram criadas para serem seguidas em sequência e ativarem as partes do corpo e da mente aos poucos, porém, algumas vezes, se faz necessário alterar a ordem de acordo com as necessidades de cada grupo envolvido no trabalho. Os exercícios, além da criação de cenas para a peça-fórum, têm como objetivo a “desmecanização” do corpo, especialmente, o social. Os espect-atores/atrizes são espectadores que irão se tornar atores/atrizes; serão convidados(as) a entrar em cena para propor alternativas às opressões apresentadas. Eles(as) se revezam entre assistir e atuar na peça. Boal traçou um plano geral para sistematizar a conversão do(a) espectador(a) em ator/atriz dividido em quatro etapas: a) conhecimento do corpo: conjunto de exercícios que permite ao espectador conhecer o próprio corpo, suas limitações e possibilidades; b) tornar o corpo expressivo: sequência de jogos para que o indivíduo explore formas de expressão com o corpo sem a fala; c) o teatro como linguagem: prática de construção do teatro para a comunicação; d) teatro como discurso: “formas simples em que o espectador-ator apresenta o espetáculo segundo suas necessidades de discutir certos temas ou de ensaiar certas ações” (2009, p. 189). Augusto Boal acreditava que os(as) espectadores(as) de teatro estavam se tornando assistentes passivos das obras teatrais que traziam puro entretenimento e prazer, por isso, precisavam ser subvertidos(as). Da mesma forma, o estudioso Flávio Desgranges vê as condições da formação de público no Brasil; o público não é provocado a refletir sobre o tema da obra de arte, mas receber informações culturalmente irrelevantes. De acordo com Desgranges (2003), a formação do(a) espectador(a) foi bastante proposta e refletida pelo teatrólogo Bertolt Brecht no teatro épico; essa foi uma das contribuições para que Desgranges escrevesse seu livro Pedagogia do espectador. No Teatro Fórum os(as) espectadores(as) são subvertidos(as) e se tornam atores/atrizes, eles(as) não ensaiam soluções em cena, mas possibilidades, alternativas. Ao simular possíveis estratégias de opressão, o(a) espect-ator/atriz está construindo um repertório de luta. Eles(as) não têm de ser convencidos(as) a intervir em cena de maneira forçada, os(as) espect-atores/atrizes precisam se sentir convidados(as) para tal, porém é real que quando o público não se identifica com o tema surgem empecilhos e é a mediação entre a cena e o público resolverá os empecilhos surgidos. A sessão de Teatro Fórum funciona da seguinte maneira: uma cena-fórum é apresentada no teatro, na rua, no campo de futebol, na sala de uma casa ou escola etc., quando a apresentação se “encerra” (o final da cena-fórum é dado pelos(as) espect-atores/atrizes), os(as) espect-atores/atrizes são questionados(as) a respeito do que viram em cena. A partir de suas respostas, se dá o debate político em relação às opressões apresentadas na obra. Nesse momento, a plateia é incitada a pensar em outros caminhos para as cenas vistas. Quando alguém se propõe a falar uma alternativa é interrompido(a) e convidado a mostrar a alternativa cenicamente, ou seja, entrar no lugar | 49

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do ator ou da atriz que faz a personagem oprimida (porém pode acontecer de algum espectador pedir para entrar no lugar de alguma personagem opressora na situação, caso isso aconteça o pedido deve ser cedido e, após, a intervenção precisa ser avaliada, afinal, é mais provável que as personagens oprimidas busquem por mudanças do que as opressoras), porém com outra proposta cênica. Quem faz a mediação entre a peça e o público é o(a) coringa. O(a) coringa é o(a) diretor(a) da peça de Teatro Fórum, multiplicador(a) das técnicas do Teatro do Oprimido e o mediador(a) entre o público e a cena de Teatro Fórum. O(a) coringa precisa desenvolver habilidades improvisacionais, afinal a presença do(a) coringa está suscetível a intervenções de opiniões do público, ações, movimentos e enfrentamentos que não são previstos para o fórum, e, por vezes, as reações são de natureza adversa à proposta do Teatro Fórum. As habilidades improvisacionais serão usadas sempre que o roteiro de sua atuação for atravessado por situações imprevistas que são recorrentes quando lidamos com seres humanos, teatro e política. A desestabilidade corporal do(a) coringa desconstrói a imagem de alguém que sabe de tudo, afinal ele(a) não deve ser prepotente, é necessário que ele(a) esteja aberto as proposições do público mesmo que elas sejam contraditórias ao tema da obra de Teatro Fórum. Inocente ou imparcial? Os(as) praticantes de Teatro do Oprimido têm de evitar que o(a) coringa seja inocente, ele(a) precisa ser imparcial; ter conhecimentos da obra, mas não se posicionar explicitamente a favor ou contra às situações propostas. Na atuação do(a) coringa a dualidade certo/errado precisa desaparecer e dar espaço a um lugar sem fronteiras, no qual as alternativas sugeridas no Teatro Fórum possam ser analisadas sem juízo de valor. Ele(a) não pode ser fixo em sua gestualidade; a primeira referência de sua movimentação está na figura inserida no Sistema Coringa do Teatro de Arena de São Paulo. O Teatro de Arena se constituiu como grupo em 1953, na cidade de São Paulo, e em 1955 se instalou na sede localizada no centro da capital. O grupo foi formado por estudantes da Escola de Arte Dramática (EAD) da USP que se interessavam pela forma de teatro em arena. Dentre eles estava José Renato Pécora, Sérgio Britto, Gianfracesco Guarnieri, e Augusto Boal: O Teatro de Arena de São Paulo construiu uma proposta de trabalho marcada por um ineditismo, na cena brasileira, tanto em seus aspectos estéticos, quanto temáticos. Esteticamente, o palco em arena possibilitou profundas transformações cenográficas, interpretativas, como também na relação palco/plateia. No que diz respeito à dramaturgia, o Teatro de Arena se notabilizou por introduzir na cena brasileira peças que retratavam o cotidiano das camadas populares, com um nítido conteúdo político e social (SILVA, 2008, p. 14).

O Sistema Coringa é um sistema fixo de dramaturgia e encenação desenvolvido por Augusto Boal e praticado no Teatro de Arena. O Sistema rompe bruscamente com a estética naturalista e realista até então usada pelo grupo e se opõe à construção da 50 |

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arte que integra e defende a ideologia das classes dominantes. Além disso, possui qualidades econômicas usadas para enfrentar a crise financeira pela qual passava o grupo; o Sistema era economicamente mais viável, ele é mais uma alternativa para o teatro nacional de resistência. O Sistema Coringa tem como base quatro técnicas: a desvinculação ator/personagem; o ecletismo de gênero e de estilo; a narração coletiva; e a música como suporte de conceitos. Todos(as) podem fazer qualquer personagem, não há mais a fixação de um papel por ator ou atriz. Assim, o conjunto de artistas poderia ser menor, e as personagens seriam desenvolvidas arrevesadamente. O ecletismo estilístico veio para quebrar com as construções realistas/naturalistas que o Teatro de Arena até então usava. A música, além de ser usada como maneira de climatização de um espetáculo, aqui continha as pretensões políticas e ideológicas da obra. E, por fim, o elemento da narração coletiva servia de fio condutor para a ação dramática, proporcionando aos(as) artistas da peça outra forma de dialogar com o público e expor e/ou explicar algo do enredo. A narração coletiva é fortalecida com a função do(a) coringa. Coringa é o sistema que se pretende propor como forma permanente de fazer teatro – dramaturgia e encenação. Reúne em si todas as pesquisas anteriores feitas pelo Arena e, neste sentido é súmula do já acontecido. E, ao reuni-las, também as coordena, e neste sentido é o principal salto de todas as suas etapas (BOAL, 2009, p. 262).

Com o objetivo de aprimorar a dinâmica do(a) coringa e do Teatro Fórum podem ser usadas algumas características do Sistema Coringa como propõe a autora Mady Schutzman (2006). O Teatro Fórum emprestaria do Sistema a rotatividade dos atores e atrizes entre as personagens; o recurso faz prevalecer o gesto social que pode se configurar como o atributo mais importante de um papel. O(a) coringa do Sistema Coringa é polivalente, todas as possibilidades teatrais são atribuídas à sua função; em cena ele(a) desenvolve qualquer tipo de mediação que for necessária para o prosseguimento da obra. A flexibilidade da figura no Sistema pode ser importada para o(a) coringa no Teatro Fórum; a flexibilidade gerará outras formas de relação com os(as) espect-atores/atrizes. O que aconteceria se revitalizássemos os princípios básicos do Sistema Coringa com a prática contemporânea do TO? O que aconteceria se o coringa do TO fosse mais parecido com o curinga do Sistema Coringa? E se o ativismo fizesse uso de piadas e coringas de todo tipo, incluindo, palhaços, tricksters e coringas das cartas dos baralhos de tarô e jogos? Pensando na estrutura de piadas e coringas que incorporam piadas, vivem a piada (em comparação a apenas contá-la), estou buscando uma abordagem alternativa para a oposição política, uma forma indireta de resistência; estou buscando uma abordagem para a opressão que primeiro se mostre, e depois, descarregue o soco do humor (SCHUTZMAN-CRUZ, 2006, p. 134).5

5 Todas as traduções do inglês para o português feitas no artigo são de minha autoria.

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A empatia é importante para gerar conflitos políticos nos(as) espect-atores/atrizes que não podem estar completamente confortáveis, eles(as) precisam estar acomodados em seus lugares na plateia, mas não se sentir acomodados(as) em relação ao assunto da obra de Teatro Fórum. Para isso, se faz necessário que aconteça um bom debate entre o público e a cena apresentada; além disso, é necessário que o(a) coringa faça uma boa condução do fórum. O que é um bom debate e uma boa condução? Todas as modalidades do Teatro do Oprimido buscam o debate político e estético das opressões sociais; um bom debate é aquele em que os(as) espect-atores/atrizes se intrigam com as cenas apresentadas e sentem a necessidade de investigar alternativas para a luta contra a opressão em cena. O bom debate pressupõe que os(as) espect-atores/atrizes sintam segurança na condução do(a) coringa e estímulos para que participem. E a boa condução? A boa condução possui doses de teatralidade e reflexão; a teatralidade que irá trazer o olhar do(a) espectador(a) a um acontecimento teatral e a reflexão que levará o público a questionar o que foi visto em cena. Josette Féral (2002) afirma que a teatralidade é um conceito, prioritariamente, associado ao teatro, porém a autora atesta que a teatralidade é encontrada em outros lugares da vida cotidiana; ela é a criação de um espaço distinto, um espaço ficcional. O(a) coringa precisa “conduzir” as intervenções de modo que elas possam ser claramente visualizadas pelo público, mas ele(a) não interfere nas opiniões do (a) espect-ator/atriz. Quais são as características do(a) coringa contemporâneo(a) e suas necessidades em cena? O jogo é a chave para a atuação do(a) coringa. Jogando com o público, o(a) coringa ganha mais possibilidades de envolvimento e criação. Se não há jogo, o intuito de se utilizar o teatro como ferramenta de transformação social e política, de certa forma, se perde. Se há a escolha pelo teatro para lutar e questionar as relações de opressão na sociedade, este recurso deve ser usado. A atuação do(a) coringa precisa de novas formas de criação e relação que envolvam o jogo e a teatralidade. Para o aprimoramento da coringagem os corpos e proposições do bufão, um(a) palhaço(a) com origem na Idade Média e no Renascimento, que usa formas irônicas e de deboche em sua atuação, podem ser úteis. O bufão é o espírito carnavalesco na vida cotidiana, segundo Mikhail Bakhtin, ele está na fronteira entre o permissivo e o não-permissivo, carrega consigo a crítica à humanidade através do sub-humano. É, por excelência, uma figura grotesca e traz a ligação com a mãe-geradora terra e as capacidades fisiológicas humanas. Suas origens estão ligadas também à cultura cômico-popular, na qual sua aparição é mítica e burlesca. Por trás dessa máscara corporal, a risada provocada surge em diferentes graus de intensidade, e, parece, que a ridicularização do “feio” e “anormal” é reveladora de grandes verdades. Os bufões têm como característica marcante, especialmente, em tempos próximos a sua origem, deformações corporais. O corpo deles é engrandecido, com corcundas, seus rostos assimétricos, etc. As deformações físicas, apesar de parecerem opções estéticas são originalmente mais obscuras de serem explicadas do que o surgimento do bufão. Essa característica, que permeia figuras demoníacas que ilustram as histórias populares, é enraizada nele, pois seu espírito jocoso surge da convergência dos mistérios da humanidade, principal52 |

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mente, aqueles ligados ao terreno da vitalidade transbordante. Na história da cultura, a imagem do bufão esteve associada à gozação, ou seja, à comicidade grosseira. Ainda assim, sua origem é obscura, entende-se o bufão como uma profissão ligada a uma máscara cômica, que parece estar sempre inseparável do ator ou atriz que a pratica, como se a profissão de bufão fosse também um modo de vida, como uma carreira hereditária dentro de uma família. Muitos dos bufões que praticavam suas chocarrices, onde é que estivessem, possuíam essas características que se tornaram atributos estéticos sob o olhar de uma geração de espectadores(as) e artistas. Os bufões e bobos são as personagens características da cultura cômica da Idade Média. De certo modo, os veículos permanentes e consagrados do princípio carnavalesco na vida cotidiana (aquela que se desenrolava fora do carnaval). Os bufões e bobos [...] não eram atores que desempenhavam seu papel no palco [...]. Pelo contrário, eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida. Como tais, encarnavam uma forma especial de vida, ao mesmo tempo real e ideal. Situavam-se na fronteira entre a vida e a arte (numa esfera intermediária), nem personagens excêntricos ou estúpidos nem atores cômicos (BAKHTIN, 2013, p. 7).

É possível que o (a) coringa faça uso das formas estéticas do bufão em cena. O caráter político das duas práticas também é de muita relevância para a pesquisa, especialmente, pela crença na transformação social através do teatro. Os bufões têm a qualidade de improvisar e promover o jogo cênico com qualquer estímulo dado a eles, possuem qualidades corporais que desafiam a percepção fixa do público e o levam a ver a obra com ambiguidade crítica. A poética do bufão pode ser usada para a construção de outras possibilidades teatrais para o(a) coringa. O(a) coringa precisa fazer parte da ação dramática, sua formação e construção deve partir de princípios ideológicos e práticos de formação teatral. Propõe-se aqui, o uso de princípios da formação teatral a partir da máscara do bufão. A formação do ator e atriz através da máscara do bufão pede um alto grau de teatralidade e aprofundamento no espírito do jogo do(a) artista. O trabalho corporal nas oficinas e exercícios da bufonaria desenvolvem a complexidade física dessa personagem e, ao mesmo tempo, o olhar crítico pautado na comicidade. Atualmente, a máscara bufonesca é ligada ao engajamento político, as críticas socais são ações conscientes dos atores e atrizes que fazem uso da máscara. Por isso, a opção pela teatralidade do bufão para a formação do(a) coringa do Teatro do Oprimido é uma alternativa (diversas outras podem ser usadas, mas aqui proponho esta) que propicia o uso do cômico através da disposição corporal e do desvelamento das opressões.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKTHIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: François Rabelais. 8a ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2013. | 53

Caminhos da pesquisa em artes cênicas

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. 11a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. BOAL, Augusto. Stop: c’est magique. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980. BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. 9a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. BOAL, Augusto. Técnicas latino-americanas de teatro popular. 3a ed. São Paulo: Hucitec, 1988. DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003. FÉRAL, Josette; BERMINGHAM, Ronald P. Theatricality: the specificity of theatrical language. In: SubStance. Issue 98/99. Wisconsin, 31.v., 2-3.n., 2002. pp. 94-108. FERNANDES, Sílvia. Teatralidade e performatividade na cena contemporânea. In: Repertório, Salvador. n. 6, pp. 11-23, 2011. GAZEAU, A. Historias de bufones. Madrid: Miraguano Ediciones, 1995. LOPES, Elizabeth Silva. A blasfêmia, o prazer, o incorreto. In: Revista do Departamento de Artes Cênicas ECA/USP. São Paulo, v.5, n.1, p. 9-21, 2005. LOPES, Elizabeth Silva. Ainda é tempo de bufões. Tese (Doutorado em Artes Cênicas). Escola de Comunicações e Artes, USP, 2001. SCHUTZMAN, Mady; CRUZ, Jan Cohen. Joker runs wild. In: A Boal Companion: dialogues on theatre and cultural politics. Londres: Routledge, 2006. SILVA, Anderson de Souza Zanetti da. A estética da subjetividade rebelde na poética teatral do oprimido. Dissertação (Mestrado em Artes). Instituto de Artes de São Paulo, UNESP, 2008.

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Texto-cena no teatro brasileiro

AS FAÍSCAS DE UMA FOGUEIRA: O PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO DO TEATRO BRASILEIRO ÀS VISTAS DA FUNÇÃO DRAMATURGO Phelippe Celestino Universidade Federal de Ouro Preto

A fim de compreender as origens do que se mostra contemporaneamente como dramaturgo, fez-se necessário um estudo que remontasse aos primórdios da escrita dramática no teatro brasileiro. Como observar as práticas dramatúrgicas que se delineiam atualmente? Elas possuem rastros históricos? Pode-se deduzir que haja uma continuidade e formação da função dramaturgo na história do teatro brasileiro? Esse dramaturgo contemporâneo que escreve corpo a corpo com a cena e cada vez mais se orienta e se aproxima da criação da sala de ensaio, se desterritorializando do convencional gabinete, está vinculado a alguma prática remota dentro do histórico da dramaturgia nacional? Para tal, deve-se, antes de tudo, deixar claro que, mesmo com os recorrentes debates e polêmicas que disso insurge, durante muito tempo talvez não tenha havido um autêntico teatro brasileiro, ou seja, um Teatro do Brasil, mas sim um Teatro no Brasil. Há ainda uma vertente da crítica teatral que defende a produção de Martins Pena e A hegemonia de companhias estrangeiras associadas a autores igualmente estrangeiros, corresponde a boa parte dos eventos cênicos que se localizam desde as montagens da Companhia de Jesus no século XVI até os espetáculos que inauguraram o Teatro Municipal do Rio de Janeiro em meados da primeira década do século XX. Essa presença constante e maciça de artistas estrangeiros teve um resultado: “O fenômeno criou uma falsa percepção da produção da cultura nacional como de um fato intimamente ligado à presença de artistas estrangeiros em nossos palcos” (VANNUCCI, 2012, p. 296). De todo modo, acentuadas as dificuldades da Primeira Guerra Mundial, o trânsito de companhias vindas do continente europeu diminui consideravelmente, e é nesse início de século que esta tradição começa a se transformar, resultando ao teatro brasileiro seus primeiros suspiros em busca de uma suposta autenticidade. Sobre essa estranha predileção do público brasileiro para com o teatro estrangeiro, veja: Nos últimos trinta anos do século XIX, o teatro brasileiro viveu uma satisfação paradoxal: por um lado, contou com o brilho de espetáculos realizados por grandes artistas italianos e franceses; por outro, não viu surgir um grande intérprete para o drama ou a criação de uma dramaturgia com as mesmas características daquela que era representada em cena. Como observou Décio de Almeida Prado, “a concorrência que os elencos estrangeiros, os melhores do mundo latino, faziam aos nacionais era devastadora”. Quando os artistas europeus chegavam ao Rio de Janeiro, as companhias dramáticas que não tinham o seu próprio teatro eram 56 |

II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP obrigadas a viajar para o interior à procura de outras praças, ou porque ficavam sem espaço para atuar, ou porque, caso conseguissem algum, não tinham público suficiente para o pagamento das despesas. Rigorosamente, só permaneciam no Rio de Janeiro as companhias dramáticas especializadas no chamado teatro ligeiro – operetas, mágicas e revistas de ano – que sempre teve o seu público fiel. Assim, outra consequência perversa deu-se no terreno do repertório. Enquanto os artistas europeus representavam comédias julgadas refinadas, tragédias de Shakespeare e dramas modernos de Dumas Filho ou Sudermann, os artistas brasileiros encenavam peças ligeiras de produção nacional ou portuguesa – sem contar as traduções do repertório julgado de segunda categoria – dirigidas ao grande público que queria se emocionar com o dramalhão ou se divertir com a farsa e o teatro musicado (VANNUCCI, 2012 p. 295).

Além disso, há de fato um impulso proveniente da instauração da Primeira República, que nos anos findos do século XIX, instala no Brasil um sentimento em busca de uma nacionalidade original e autêntica. Isso corrobora, por exemplo, para que importantes artistas e críticos do ofício teatral dessa época passem a requerer e defender um ideário em torno de um projeto artístico, estético e ideológico para a consolidação de um “verdadeiro” teatro nacional, e como exemplos se pode citar Arthur Azevedo, Machado de Assis, José Veríssimo, Araripe Júnior e Sílvio Romero. Por outro lado, esse teatro nacional advogado pelos críticos e intelectuais estava vinculado necessariamente com textos teatrais de caráter sério, compostos de assuntos referentes à moral e à psicologia humana. Em meio a isso, surgem diversas contradições e antagonismos de ordem estética e principalmente ideológica. E, assim, tem-se de um lado o consagrado teatro ligeiro, e do outro o teatro dito “sério”, cada qual com as suas singularidades e características intrínsecas. A separação dos espectadores entre ricos e pobres, literatos e analfabetos, evidencia uma das particularidades da vida teatral da época. Artur Azevedo, em suas crônicas teatrais, dividia os espectadores em dois grupos distintos, denominados por ele de “público” e “sociedade”. Por meio da leitura das crônicas, depreendemos que do “público” faziam parte os frequentadores regulares do teatro musicado e popular, cujos gêneros principais eram as revistas, as mágicas e as operetas. Na “sociedade”, incluíam-se os espectadores da elite, presentes, principalmente, nas apresentações de companhias estrangeiras, nos festivais amadores e em raras encenações de peças “sérias” brasileiras por grupos profissionais (NEVES, 2006, p. 20).

Vê-se, então, que direcionar os olhos para os primeiros escritores teatrais brasileiros é campo movediço e, de certo modo, insensato, mas nem de todo fracassado. Primeiramente, como mapear uma produção dramatúrgica que não se viabiliza na própria prática teatral nacional desenvolvida nos palcos? Há nesses primeiros momentos uma continuidade da prática da escrita dramática capaz de sustentar uma conjuntura estética? De modo a formar uma identidade dramatúrgica própria desses escritores que produziram para o teatro brasileiro? | 57

Caminhos da pesquisa em artes cênicas

Martins Pena se destaca como escritor dramático, e talvez possa ser considerado o primeiro dramaturgo brasileiro. Mas, depois dele, e ainda no século XIX, há outro escritor que se destaque no panorama nacional? Vale ressaltar a produção de Arthur Azevedo, que extrapola o texto e conquista a cena e o comércio cultual. Mas essas produções, por se trataram de comédias, não correspondem ao que os intelectuais proclamavam como teatro nacional. Tem-se, portanto, um impasse, que impossível de ser dissolvido, alimenta ainda mais a discussão acerca do teatro no século XIX e início do século XX. A noção de nacionalidade, tal como a de popular, sempre esteve em pauta e dificilmente alguém a tenha solucionado, pois, numa cultura como a nossa, dotada de hibridismos, fusões e mestiçagens, a noção de pureza se confunde na medida em que se aproxima da noção de originalidade. Além disso, sabe-se de antemão que por mais que haja um estatuto que configure a dramaturgia como arte literária, há outro que a proclama como arte exclusivamente teatral. Atrelado a isso, tem-se em conta que durante muitas décadas a escrita dramática se restringia, em quase sua totalidade, a escritores literários: o drama – não a dramaturgia – era um gênero ramificado da literatura. Alguns fogem à regra, como o supracitado Arthur Azevedo, pois suas criações almejavam acima de tudo o palco. Mas, devido ao estigma depositado sobre o teatro ligeiro – semelhante àquele depositado sobre a comédia de costumes de Martins Pena –, a prática teatral de Azevedo se vincula exclusivamente como meio de entretenimento e instrumento de mercado, em funcionamento apenas para o lucro monetário. E, Mesmo aqueles que procuravam levantar a bandeira do teatro nacional e resistir um pouco à onda dos sucessivos gêneros musicais e ligeiros, como Dias Braga e Artur Azevedo, cediam ao inconteste veredicto do público depositado nas bilheterias dos teatros (MENCARELLI, 2012, p. 266).

Então, percebe-se logo que se tratando da função dramaturgo, este período concernente à virada do século corresponde a muitos paradoxos e poucas resoluções, pois se há uma camada de escritores teatrais voltados às necessidades econômicas e de público e assim se submetem à produção ligeira estigmatizada, há outra que atrelada à noção de supremacia e primor literário busca a plenitude da arte literária como objetivo maior que se sobrepõe até mesmo a necessidade da realização cênica. A invasão nos palcos, que atendia um público heterogêneo, mas tinha certamente nessa massa e negociantes e imigrantes estrangeiros uma parcela significativa de seu público, foi vista com muito maus olhos pelos contemporâneos que apostavam no desenvolvimento de um teatro nacional, com dramaturgia, temática e realização nativas. Uma geração de escritores que se dedicou à dramaturgia como parte de seu projeto de criação de uma literatura nacional foi aos poucos se afastando dos palcos. Nas décadas finais do século XIX, a tensão criada por essa internacionalização crescente vai ser mencionada em praticamente todas as

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP análises que se ocupam do teatro no Rio de Janeiro, apontada sempre como uma das causas do que teria sido a decadência do teatro nacional. Em célebre artigo de 1873, Machado de Assis faz um retrato desalentador do cenário teatral carioca, onde há o predomínio do cancã, da cantiga burlesca ou obscena, da mágica aparatosa, “tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores”. Tratava-se da afirmação de gêneros que investiam na espetacularidade e nos múltiplos textos da cena, falando para outros sentidos que não o do juízo moral: a cenografia mirabolante das mágicas, a performance bem-humorada e transgressiva das canções e das coreografias (MENCARELLI, 2012, p. 254).

Não há valores certos ou errados, mas o que sem dúvida se sobressai a tudo isso é o fato de que reside nessa época as origens da transformação daquele que escreve literatura dramática para aquele outro que escreve para teatro. Muitos autores da comédia musicada estavam interessados, acima de tudo, na realização cênica de seus textos. Por meio desses depoimentos e das rubricas, detentoras de um verdadeiro universo de informações sobre a cena, podemos perceber que esses autores estavam absolutamente comprometidos com a prática teatral. Ao indicar detalhadamente um cenário, ao descrever um figurino, ao orientar a movimentação e os estados de ânimo dos personagens, as rubricas refletem a presença do autor em cena, como regente de uma escrita que só se compreende como escritura cênica, na medida em que só se completa inteiramente no espetáculo, com a assistência de seu público (CHIARADIA, 2003, p. 159).

A desvinculação da dramaturgia da literatura é ainda muito recente quando olhamos para o nosso passado histórico, e a sua emancipação e conquista de autonomia se dão em movimento entrelaçado ao surgimento da encenação. O gesto de independência que a encenação provoca nos elementos diversos da cena incide na afirmação da cena como evento autônomo, que prescinde, por exemplo, do texto. A partir do momento que se compreende a cena como instância máxima de realização da arte teatral, compreende-se também as particularidades e singularidades do texto teatral, que antes de estarem submetidas aos parâmetros da literatura, estão submetidas aos parâmetros do teatro. Portanto, como uma primeira consideração sobre esta pesquisa em desenvolvimento, e tendo em vista a comunicação realizada no evento que intitula essa compilação, supõe-se que talvez possa haver nessa virada do século a construção dos princípios da função dramaturgo como aquele sujeito que cria para a cena. Tendo em conta os fatores cênicos, sociais e estéticos que perpassam as produções teatrais da virada do século, percebe-se que posteriormente, dramaturgos tais como Roberto Gomes e João do Rio, e outros desse momento, irão se atentar com mais vigor para a cena e a sua realização.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHIARADIA, Filomena. Em revista o teatro ligeiro: os “autores-ensaiadores” e o “teatro por sessões” na Companhia do Teatro São José. In: Sala Preta. n. 3. São Paulo, USP, 2003. pp. 153-163. MENCARELLI, Fernando Antônio. Artistas, ensaiadores e empresários: o ecletismo e as companhias musicais. In: FARIA, João Roberto (dir.). História do teatro brasileiro, volume I: das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva/ Edições SESCSP, 2012. VANNUCCI, Alessandra. Artistas dramáticos estrangeiros no Brasil. In: FARIA, João Roberto (dir.). História do teatro brasileiro, volume I: das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva/Edições SESCSP, 2012. NEVES, Larissa de Oliveira. As comédias de Artur Azevedo: em busca da história. Tese (doutorado em Teoria e História Literária). Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2006. PEIXOTO, Níobe Abreu (org.). João do Rio e o palco: página teatral. São Paulo: Edusp, 2009.

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sALVAção EM UMA VEREDA: JORGE ANDRAde na perspectiva de Antunes Filho João Paulo Oliveira Universidade Federal de Ouro Preto

Se nos remetemos ao teatro brasileiro moderno, imediatamente se destacam à nossa vista alguns nomes da dramaturgia nacional, símbolos da modernidade do texto teatral, e autores de projetos estéticos diferentes e diferenciados. Seriam esses nomes: Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Ariano Suassuna, Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho, Plínio Marcos, dentre outros que compõem um amplo rol do século XX. Todos eles, cada qual à maneira, propuseram uma poética própria, composta por uma linguagem dramática particularizada e que, dentro de um conjunto, auxiliaram na consolidação de nossa modernidade teatral. Ao considerarmos essa produção, podemos observar que grande parte dela se centra a partir da década de 1950 – salvo Nelson Rodrigues, cujas atividades se iniciaram no início da década de 1940 – e, segundo observa Décio de Almeida Prado (1996), o que acompanha os dramaturgos neste momento é uma perspectiva voltada ao nacionalismo, pautado especialmente por seus posicionamentos políticos e proposta dramatúrgicas. O crítico considera, ainda, que as peças originadas sob tal prisma vão fazer com que se volte o olhar à realidade brasileira imediata. Dentre tais nomes, um de destaque especialmente no Estado de São Paulo por sua própria relação histórica, Jorge Andrade será, aqui, um dos pontos que compõem o eixo central de investigação. Paulista de Barretos, e filho de fazendeiros, Jorge Andrade toma relevo no panorama do teatro brasileiro com sua proposta de construção dramatúrgica estreitamente alinhada à história brasileira, sem que isso cause prejuízo à composição dramatúrgica e à estruturação moderna de suas peças. Jorge Andrade reconduz-nos a São Paulo. Se existe alguma coisa para ressaltar em seu ciclo de dez peças, Marta, a Árvore e o Relógio, seria a diversidade de temas e o aproveitamento pessoal das mais variadas influências. Ele próprio, de resto, indicou suas raízes literárias, dependurando no escritório de Vicente, autor teatral e alter ego, fotografias de Ibsen, Tchekhov, O’Neill, Arthur Miller e Bertolt Brecht. Se adicionássemos o Sófocles de Antígona e o Tennessee Williams de Um Bonde Chamado Desejo, obteríamos o elenco completo dos dramaturgos – entre os romancistas apenas Dostoiévski participa de sua galeria de retratos – que o ensinaram a pensar o teatro e a entender os homens. Mas, na verdade, o centro de sua dramaturgia é ele mesmo – e por extensão o Brasil. As experiências e vivências pessoais formam o núcleo de uma reflexão que se foi dilatando através da geografia e da história até construir um painel como não há outro pela extensão e coerência em nosso teatro (PRADO, 1996, p. 91). | 61

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O autor do ciclo “Marta, a Árvore e o Relógio” desenvolve, inspirado em sua particularidade, uma estrutura moderna com uma problematização nacional, o ciclo do café e decadência patriarcal são alguns dos exemplos temáticos que acompanham sua trajetória dramatúrgica. Jorge Andrade se tornou conhecido em 1955 pela estreia de “A Moratória”, pelo Teatro Maria Della Costa, dando visibilidade ao trabalho do autor, o que o fez ser convidado para integrar ao núcleo de dramaturgos do Teatro Brasileiro de Comédia/TBC, espaço até então reservado para grandes nomes da dramaturgia mundial, como Pirandello, Molière, Arthur Miller, Strindberg, Tchekhov ente outros. A peça que compõe o corpus de nossa investigação, “Vereda da Salvação”, foi escrita em entre 1957 e 1963, e representa, para Décio de Almeida Prado, um amadurecimento do autor por assumir posicionamentos críticos mais articulados e minimizar as influências de sua infância presente em outras obras. Em “Vereda da Salvação”, pela primeira e última vez, ele vai ao outro extremo da escala encenando a tragédia das populações marginalizadas, isoladas econômica, social e moralmente. Desprezando os tons cômicos frequentemente associados às culturas caboclas ou sertanejas, ele ilumina por intermédio de um caso específico as complexas causas, individuais e coletivas, que levam um agrupamento de pessoas, guiadas por um chefe fraco e improvisado, cuja loucura é encarada como visão profética, a querer abandonar a terra, a largar os seus poucos bens materiais e a sacrificar filhos, para atingir o céu e a bem-aventurança pela via mais direta, simplesmente alçando voo, como os anjos que já julgam ser (PRADO, 1996, pp. 92-93).

Vereda da Salvação traz à tona uma visão crítica a partir de um caso de fanatismo religioso acontecido em 1955 na cidade mineira de Malacacheta. O agrupamento, residente nas terras da fazenda São João, acreditava na possibilidade de um demônio de Catulé e sacrificaram quatro crianças e alguns animais que pudessem estar tomados por este espírito em plena Semana Santa. Provocado por esse acontecimento, Jorge Andrade utiliza o fato para desenvolver a quinta obra do ciclo. Na peça, de dois atos, temos duas posições: o de Dolor e Joaquim, mãe e filho, enfadados pelas andanças, acreditam e encorajam os residentes das terras tomadas a acreditarem em uma “terra prometida”; e do outro, o casal Manoel e Artuliana, que vivem um caso, o que gera a gravidez da jovem e a perspectiva de oficializar o casamento. Acreditando nas palavras de Joaquim, seus seguidores são tomados por bençãos e realizam atos para a chegada aos céus. O conflito crescente entre os lados se torna tão agravante que isso gera inúmeros crimes entre os agregados, incluindo a morte de uma criança e o aborto de Artuliana. Antunes Filho, o segundo nome a compor o conjunto de análise, possui importante papel para a história do teatro brasileiro, considerando como ponto de equilíbrio com a obra dramatúrgica de Jorge Andrade, a fim de que se possa estabelecer uma intrínseca 62 |

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relação texto-cena. O encenador tornou-se um dos principais nomes do teatro contemporâneo ao desenvolver seu método teatral voltado para o treinamento do ator no final da década de 70. A partir da apropriação da obra literária do modernista Mário de Andrade, leva para os palcos o espetáculo “Macunaíma”, responsável pela abertura dos palcos para a cena contemporânea. Antunes funda, na década de 80, o Centro de Pesquisa Teatral/CPT, idealizado na formação de atores e técnicos, e em parceria com o grupo Macunaíma encena diversos espetáculos importantes para o Brasil, partindo de obras de Nelson Rodrigues, Shakespeare e Guimarães Rosa. Continuando sua pesquisa estética e após três décadas da primeira montagem de “Vereda da Salvação” pelo TBC, em 1964, Antunes Filho debruça-se novamente na obra de Jorge Andrade e reencena com o grupo Macunaíma/CPT uma nova versão do texto, o que possibilita um outro olhar à peça, outra visão política e outra fase da história do Brasil: De modo que não há como questionar a existência de um espaço certo no tablado para uma obra e um autor do naipe de Jorge Andrade. E que assim o é, provou-o Antunes Filho. Primeiro por ter apresentado a potencialidade de Vereda da salvação em duas leituras diferentes. E não há dúvida de que a mais recente mostrou a força poética e dramática à luz da teatralidade de hoje, de Jorge Andrade (GUINSBURG apud NAZÁRIO, 2012, p. 65).

A nova encenação de Antunes Filho traz figuras mais humanizadas para cena, possibilitando uma familiarização com as personagens e até mesmo com a música sertaneja dilacerando o final da peça. A cenografia de J. C. Serroni segue o mesmo processo dos atores com um “falso realismo”, propondo contradições e evitando o naturalismo. Para tanto, há de se considerar que o espetáculo de Antunes Filho é resultado de um trabalho de pesquisa realizado ao longo de algumas décadas, desde a criação do Centro de Pesquisas Teatrais – CPT, ligado ao SESC/SP. Em seu método, Antunes Filho, trabalha a desconstrução de uma voz e corpo cotidiano através de exercícios que envolvem desde a cultura oriental à espiritualidade, caminhando para um processo de expansão intelectual, envolvendo a ética e função social do artista. É a partir desse recorte da história do teatro brasileiro do século XX, e da relação que se estabelece entre texto e cena no espetáculo “Vereda da Salvação”, levado aos palcos por Antunes Filho em 1993, inicia-se uma investigação da estrutura do texto moderno e da encenação contemporânea. A pesquisa, portanto, se projeta a fim de possibilitar uma análise do processo estético de “Vereda da Salvação” a partir da dramaturgia de Jorge Andrade e da composição de cena por Antunes Filho. Nesse confronto entre o texto e a cena, como se configuram as linguagens de um e de outro? Ou seja, partindo do pressuposto de que Jorge Andrade, enquanto dramaturgo moderno e possuidor de uma linguagem própria, de que forma Antunes Filho se apropria de tal linguagem para compor sua própria na concepção do espetáculo, | 63

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desenhando assim sua poética de cena? Por fim, como confluência das poéticas individuais, pretende-se compreender em que medida uma linguagem se alimenta da outra, ao mesmo tempo em que se distancia da referência dramatúrgica para compor uma obra de arte autônoma.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Jorge. Marta, a árvore e o relógio. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. MILARÉ, Sebastião. Hierofania: o teatro segundo Antunes Filho. São Paulo: Edições SESC/SP, 2010. NAZÁRIO, José Carlos Aparecido. Jorge Andrade, a história e o teatro paulista: um momento de renovação. In: Pitágoras 500. vol. 3. Out. 2012. pp. 54-68. NAZÁRIO, José Carlos Aparecido. Tempo e memória no teatro de Jorge Andrade: uma leitura... Tese (Doutorado em Teoria e História Literária). Campinas, Unicamp/IEL, 1997. PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1996.

Referência Videográfica: Vereda da Salvação (vídeo). CPT – Centro de Pesquisa Teatral. São Paulo: SESC/SP, 1993/1994.

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O PALHAÇO E SEU DUPLO Eduardo Santos Universidade Federal de Ouro Preto

O riso que ele tem é um riso aparvalhado, Que só misérias encobrem, um riso desgraçado, O palhaço, sou eu!!! (Heinrich Heine) Neste artigo, busco o diálogo entre as leituras e reflexões realizadas na disciplina Imagens no vazio: estudo acerca da literatura e teatralidade e a minha pesquisa Atrás do nariz vermelho: concepção e recepção de um palhaço brasileiro, com o intuito de percorrer o caminho de construção do ser palhaço, através de uma aproximação conceitual. A referida disciplina foi oferecida, pela professora Neide das Graças de Souza Bortolini, no primeiro semestre de 2015, para a segunda turma do Programa de Pós-Graduação do DEART/UFOP. Traçou-se um estudo dos possíveis percursos da linguagem no exercício do pensamento da construção da imagem, a partir da perspectiva da literatura de Jorge Luis Borges, João Guimarães Rosa e Ítalo Calvino, e da dimensão filosófica em torno dos conceitos de representação, Michel Foucault, e simulacro, de Gilles Deleuze; da análise da teatralidade baseado em Marvin Carlson, Josette Féral e Ronald P. Bermingham, e dos estudos sobre o vazio do crítico de arte e filósofo Georges Didi-Huberman. A pesquisa que desenvolvo, sob a orientação de Davi de Oliveira Pinto, percorrerá o seguinte caminho: primeiro apresentará um panorama histórico sobre o palhaço; segundo uma abordagem conceitual em torno do ser palhaço; terceiro a partir de entrevistas com o Sr. Teofanes Silveira (Palhaço Biribinha) problematizaremos os conceitos levantados, destacando a fala dos pesquisadores sobre o conceito de palhaço e a do artista, a respeito de si mesmo enquanto palhaço; quarto envolverá o grupo de Teatro Comunitário, dirigido por mim, no Teatro Paço do Mestre, em Mariana/MG, através de entrevistas após uma apresentação do Palhaço Biribinha com o intuito de compreender a recepção do Palhaço pelo espectador. Por fim, apresentarei as conclusões tiradas do percurso. Dentre as várias leituras realizadas durante a referida disciplina selecionei os capítulos “Representar” e “O homem e seus duplos” do livro As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas”, de Michel Foucault, e do apêndice “Simulacro e filosofia antiga, Platão e o simulacro”, do livro Lógica do sentido, de Gilles Deleuze. Duas obras monumentais de pensadores que influenciaram os estudos sobre as ciências sociais, as artes e o pensamento filosófico contemporâneo ocidental do século XX. “Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento [...]” (FOUCALT, 1985, prefácio). Esta frase me chamou a atenção: um livro que nasce do riso, de um riso perturbador. Esse riso perturbador é o que me interessa o riso que faz pensar. Com relação a Deleuze, ao reverter o platonismo, o que | 65

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chama a atenção é a sua busca no pensamento pré-socrático para a abordagem sobre a cópia. Segundo o pensador, “a cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro, uma imagem sem semelhança” (DELEUZE, 1974, p. 263). Enquanto no pensamento platônico a cópia é degradada e deve ser afastada, para Deleuze é necessário fazer emergir essas cópias degradadas, fazer emergir a diferença pela própria diferença. O espetáculo Palhassada musicada, da turma do Biribinha, apresentado no Circo Escola Piolim, durante o Festival Anjos do Picadeiro em 2008, causou em mim um riso perturbador e me fez pensar sobre a diferença. Entra o mestre de pista,6 seguido pela trupe de palhaços com seus instrumentos musicais levantando a plateia ao som da música “tem boi na linha, tem, tem, tem, tem boi na linha Catarina vai de trem meu bem, meu bem...”. Ao pisar no picadeiro, o mestre de pista, neste dia magistralmente representado por Biribinha, começa com um aquecimento da plateia, fazendo uma brincadeira musicada de pergunta e resposta. O mestre de pista falava a frase e o público repetia o final: “eu vivia em romaria” e o público “ia, ia, ia”; o mestre: “passei em Aparecida” e o público: “ida, ida, ida” quando o mestre disse: “passei por Barra funda”. Antes do público responder, uma voz no meio da plateia responde em alto e bom tom: “bunda, bunda, bunda”. A gargalhada é geral, mas logo o sujeito é repreendido pelo mestre de pista, que retoma a brincadeira. Fica um constrangimento no ar. Segue o mesmo compasso, mas ao final de cada deixa, o sujeito, parecendo bêbado, solta sua voz dissonante com as palavras de baixo calão. Causando na plateia gargalhadas, e também indignação. A situação fica tão constrangedora que é solicitada a presença dos seguranças, que tentam arrancar o inconveniente da plateia. Começa um bate-boca entre o artista, mestre de pista, e o bêbado que de tudo faz troça. De repente, o mestre de pista, palhaço Biribinha, diz: “Mas rapaz você até parece com o Linguiça, meu antigo partner7 que saiu pro mundo afora e nunca mais ouvi falar dele”. E para surpresa geral, o bêbado responde: “Mas sou eu Biribinha, o Linguiça.” E nesse momento, aqueles que acreditavam ser o bêbado uma pessoa do público, percebem a “presepada” e começam a rir. Mas a “cereja do bolo” é guardada para o final desse número. Biribinha chama o Linguiça para o picadeiro e começa a perguntar sobre suas roupas de palhaço, seu sapato, seu chapéu, e Linguiça diz que perdeu tudo, que tornouse um andarilho e que ficou sabendo do show e quis entrar para brincar. Biribinha pergunta: “mas não sobrou nada daquela época?” Linguiça coloca a mão no bolso e retira o nariz vermelho e diz: “sobrou apenas isto.” Biribinha diz: “mas isso é tudo, isso é tudo”. A plateia, entre o pranto e o riso, aplaude e assim iniciou-se o espetáculo. Quando nos referimos às artes da cena um conceito sempre nos persegue o da representação, seja para refutá-lo ou para validá-lo. Segundo Foucault: Até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. [...] E a representação — fosse ela festa ou saber — se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar (FOUCAULT, 1985, p. 23). 6 7

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Apresentador do espetáculo circense. Partner é um artista ajudante no circo.

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Se essa ideia de “teatro da vida ou espelho do mundo” já não é mais válida, então qual é o papel do sujeito/artista frente ao mundo contemporâneo? Se ele não o representa mais e tampouco ao mundo que o rodeia, que tipo de arte ele cria? A questão não está mais na ideia de representação, mas sim como o sujeito pensa o outro e o mundo que o cerca. Nas palavras da professora Deisy Turrer8, “a diferença é radicalmente o outro, toda vez que eu estou vendo o outro, eu falo do outro, eu estou falando de mim mesmo.” Então a concepção Kantiana de sujeito em que o sujeito “é o eu penso consciência ou autoconsciência que determina e condiciona toda atividade cognoscitiva: Em todos os juízos sou sempre o sujeito determinante da relação que constitui o juízo”. Esse sujeito será estilhaçado, tornando-se um desconhecido, que para Foucault. [...] o homem é também o lugar do desconhecimento – deste desconhecimento que expõe sempre seu pensamento a ser transbordado por seu ser próprio e que lhe permite interpelar a partir do que lhe escapa. [...] a questão não é mais: como pode ocorrer que a experiência da natureza dê lugar a juízos necessários? Mas sim: como pode ocorrer que o homem pense o que ele não pensa [...] (FOUCAULT, 1985, 339).

Se o homem é ao mesmo tempo esse ser do pensamento e da experiência, um ser paradoxal que tenta compreender aquilo que lhe escapa, como é possível através do pensamento racional compreendê-lo? Não é possível mais pensá-lo somente a partir da razão, até o período clássico ocidental foi atribuído ao cogito a possibilidade de compreensão do mundo objetivo, negando os sentidos, conferindo à sensibilidade o lugar da não-verdade, do erro, mas a partir do pensamento moderno ocidental, séculos XVIII e XIX, este pensamento é questionado. Temos então uma chave importante para compreender o palhaço no pensamento contemporâneo, ele é esse duplo do homem impensado, esse irracional que vem à tona de diversas maneiras. Destaco uma em especial, que é através da máscara, a menor máscara do mundo9 – o nariz do palhaço. Experiências como a da canadense Sue Morrison, na oficina O clown através da máscara, metodologia de trabalho desenvolvida por Ricardo Pochincko (clown canadense), criada a partir da junção da tradição europeia do clown com o entendimento dos índios norte-americanos sobre o xamã ou o clown sagrado. Nesse processo são confeccionadas 06 (seis) máscaras, que estão relacionadas com as “direções do ser”. “Segundo Sue Morrison, os índios dizem que quando uma pessoa se defronta com todas as direções do seu ser a única coisa a ser feita é rir do próprio ridículo” (PUCCETTI, 2000, p. 82). As máscaras não são semelhantes ao sujeito, pois são confeccionadas fora do rosto e de olhos fechados. O que atribui a criação da máscara um aspecto ritualístico, tornando-se ponto crucial para pensarmos o duplo, o palhaço e o sujeito, lugar onde eles confrontam-se e unem-se através de uma ativação do não pensado. O ritual da confecção de 8 Professora do Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Aula realizada no dia 11 de abr. de 2015 no IFAC/UFOP sobre a Reversão do platonismo, de Gilles Deleuze. 9 Termo utilizado na oficina “Mergulho na menor máscara do mundo”, oficina oferecida por Ésio Magalhães, Palhaço Zabobrim, Barracão Teatro, no festival de Inverno Ouro Preto/Mariana, 2006.

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cada máscara neste contexto é a passagem de um mundo da consciência para um mundo da não consciência, uma imersão em si mesmo que será exteriorizado pela máscara. A partir desse impulso de dentro para fora é que se tornará possível, a máscara funcionar como uma lupa que aumenta tanto os defeitos quanto as virtudes. O nariz vermelho, tão popularmente conhecido, é pois uma máscara que de acordo com Tiche Viana é uma expressão cênica e não apenas um adereço: A máscara mostra o que lhe acontece e o espectador poderá compreender como isto lhe afeta, através de suas relações físicas. Podemos então afirmar sem medo de errar, que uma máscara precisa estar em relação a alguma coisa ou alguma outra máscara para que o espectador possa se inserir no universo imaginário que ela propõe.10

A máscara “não pensa sobre si mesma”, é um objeto, não possui um caráter psicológico, ela age e mostra o que lhe acontece. Cria seu mundo imaginário. E é através desse movimento que se desvela o impensado humano, agir sem pensar, ou transformar o pensamento em ação. Colocar a máscara significa revelar-se e não esconder-se. O palhaço através da máscara revela-se: o bobo e o sábio, o maltrapilho e o almofadinha, o elegante e o deselegante, o malandro e o trabalhador, o ingênuo e o malicioso, o idiota e o esperto, o atarantado e o orientado, o bêbado e o sóbrio, o desajustado e o ajustado, o sujo e o limpo, o fraco e o forte, o feio e o bonito, o grotesco e o sublime, com o intuito de troçar, brincar, divertir, refletir e também de nos emocionar. Sem nenhum juízo, o palhaço ri da espécie humana. Ri de suas fraquezas. O palhaço é o duplo que habita o sujeito, “o outro que é o mesmo”, “o múltiplo no uno”, sugere uma subversão a esse mundo idealizado que impõem um modelo de beleza, através de um discurso busca tornar igual a diferença, é necessário submergir essa diferença e não tomá-la como algo negativo que deve ser somente aceito. Ela tem o direito de existir, conforme a colocação de Deleuze: [...] fazer subir os simulacros, afirmar seus direitos entre os ícones e as cópias. O problema não concerne mais à distinção Essência-Aparência ou Modelo-Cópia. Essa distinção opera no mundo da representação; trata de introduzir a subversão neste mundo “crepúsculo dos ídolos”. O simulacro não é uma cópia degradada ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução (DELEUZE,1974, p. 140).

Essa degradação reflete algo positivo não só como somos, mas no que podemos nos transformado: distorcidos, grotescos e risíveis. O palhaço assume a diferença e é a partir dela que olha para o mundo e o vira ao avesso. Voltando a cena do palhaço Biribinha, no Circo Escola Piolim, relatada no começo deste trabalho, percebo a crítica aos hipócritas que, com suas condutas elegantes e 10 VIANNA, Tiche. Dramaturgia da máscara. Disponível em: . Acesso em: 20 de setembro de 2015.

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civilizadas, não aceitam o outro que está fora desses padrões. Confirmei essa postura quando assisti a apresentação pela segunda vez, no Festival de Palhaços em Mariana, no ano de 2013. Sabendo o que iria acontecer, observei atentamente o público. As pessoas ficaram realmente incomodadas com o bêbado, como se ele estivesse no lugar errado, atrapalhando a apresentação do artista. Esse número, de forma primorosa, demonstra a relação do sujeito ao expor o seu duplo, o palhaço. O artista era o bêbado, um louco que estava na plateia, com sua zombaria trouxe a felicidade e a indignação, fazendo emergir das sombras à diferença pela própria diferença. O palhaço então, na sua marginalidade, vagueia ao sabor das experiências, possui em si a junção do poeta e do louco. O poeta faz chegar a similitude até os signos que a dizem, o louco carrega todos os signos com uma semelhança que acaba por apaga-los. [...] estão ambos nessa situação de “limite” – postura marginal e silhueta profundamente arcaica – onde suas palavras encontram incessantemente seu poder de estranheza e o recurso de sua contestação. Entre eles abriu-se o espaço de um saber onde, por uma ruptura essencial no mundo ocidental, a questão não será mais a das similitudes, mas a das identidades e das diferenças (FOCAULT, 1985, p. 65).

Essa ruptura a que se refere Foucault é o lugar onde eu acredito viver o artista em seu ofício e em seu duplo: o palhaço. Esse poeta/louco que cria mundos imaginários, cuja presença estabelece um vínculo direto com a experiência vivida, provocando a reflexão. Esse desajuizado que é capaz de descortinar o véu das relações humanas, expondo os defeitos de quem é socialmente respeitado. A árdua jornada de fazer rir e pensar é expor-se ao dizer o que muitos pensam, mas não têm coragem de expressar publicamente. É essa coragem que fortalece o poeta/louco, palhaço que habita o sujeito, que não se pensa, faz e do impensado faz-se em ação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. CASTRO, Maria Alice Viveiros. O elogio da bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1985. PUCCETTI, Ricardo. O clown através da máscara - uma descrição metodológica. In: Revista do LUME. n. 3. Campinas: Unicamp, 2000.

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Teatro do século XIX

JOSÉ DE ALENCAR E SEUS DEMÔNIOS FAMILIARES: IDEIAS FORA DO LUGAR E HOMOEROTISMO Gustavo Moreira Alves Universidade Federal de Ouro Preto

Com as revoluções burguesas que se iniciam na segunda metade do século XVIII, a organização social se transforma drasticamente. Entre os agentes desta transformação estão as instituições que inventam o termo “homossexual”. Pense-se no “passo a frente em relação aos métodos da Inquisição” (TREVISAN, 2007, p. 174), quando se deixa de temer a Deus e passa-se a temer o médico: a higienização burguesa. Nela, tem-se a medicalização e a moralização do sexo. Antes das revoluções burguesas, as práticas homoeróticas tinham longevo e rico histórico, inclusive entre figuras como Papa Júlio III (1487-1555), Henrique III de Valois (1551-1589), Jaime I da Inglaterra (1566-1625) e Frederico II da Prússia (1712-1786)11, mas o termo “homossexual” nem sequer existia. “[...] não se tinha nem se podia ter a noção de que existe uma “personalidade” ou um “perfil psicológico” comum a “todos os homossexuais”, como acreditamos hoje em dia” (COSTA, 1992, p. 12). A partir do momento em que a burguesia ascende ao poder, de todas as possibilidades de “orientação sexual”, que incluem a preferência por determinados atos, certas zonas ou sensações, tipos físicos, frequência com que se pratica, relações de idade ou poder, número de participantes etc., logo uma, o gênero do objeto de desejo, surgiu como categoria de organização e discriminação. Até então, a sodomia era apenas um ato, não “uma espécie de androginia interior, um hermafroditismo da alma” (FOUCAULT, 1988, p. 43). Depois de então, a sexualidade passa a ser tratada como fundamental para a identidade do indivíduo. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é”, como fala Foucault em História da sexualidade, “uma espécie” (Idem, p. 44). Aos que não seguem a norma ou se desviam do ideal [...] diz Freud, é reservada a posição de objeto do desejo de destruição da maioria que em nome da norma ideal outorga-se o poder de atacar ou destruir física ou moralmente os que dela divergem ou simplesmente se diferenciam. É o mecanismo da rivalidade em torno do ‘narcisismo das pequenas diferenças’ [...] (COSTA, 1992, p. 19).

Nas diferenças, exclui-se do outro a possibilidade de amor. Ou se dá a esse outro um “amor que não ousa dizer seu nome”. O amor, esse dito em alto e bom som, em outros tempos não foi exclusivo da conjugalidade entre homem e mulher. Além disso, por muito tempo, o amor não era condição sine qua non para o casamento e para a aristocracia. Isso demora a ser superado mesmo pela sociedade burguesa, matrimônio exigia “igual11 TRACCO. Disponível em: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/conheca-monarcas-gaysgovernaram-antes-surgimento-conceito-homossexualidade-737262.shtml>. Acesso em: 18 de out. de 2015.

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dade etária, social, física e moral” entre os pares que se uniam, nem sempre a etária aparecendo como desejável, como atesta Mary Del Priore em História do amor no Brasil, livro que na mesma página traz alguns interessantes adágios da sabedoria popular do século XVIII: “Seja o marido cão e tenha pão”, “Mais quero o velho que me honre, que o moço que me assombre”, “Antes velha com dinheiro que moça com cabelo.” (DEL PRIORE, 2012, p. 24). Com a igualdade social, por outro lado, a coisa era mais séria. No Brasil, ainda de acordo com Del Priore, negros chegavam a ser proibidos de se casarem com nobres (Idem, p. 26). Nem a Igreja acreditava no amor eterno que hoje se idealiza antes do casamento: os cônjuges deviam se unir por dever, “para pagar o débito conjugal, procriar e, finalmente, lutar contra a tentação do adultério” (Idem, p. 28). Tudo isso vai mudando quando a burguesia aos poucos domestica o amor. Em nossa cultura, toda linguagem amorosa, que é essencialmente a linguagem do amor romântico, foi imaginariamente rebatida sobre o casal heteroerótico. Da primeira “paquera” até o altar e depois ao berçário, tudo que podemos dizer sobre o amor está imediatamente associado às imagens do homem e da mulher. Estamos longe do século XII, onde monges, bispos, fidalgos letrados e trovadores usavam indistintamente a mesma gramática para cantar o amor a Deus, o amor entre homens e o amor pela Dama. Hoje, quando um homossexual sente amor por outro homem, torna-se, querendo ou não, um intruso [...] (COSTA, 1992, p. 93. Grifo do autor).

O termo homoerotismo é defendido por Costa em A inocência e o vício como preferível a homossexualismo ou homossexualidade, porque não surgiu da intenção de moralizar o sexo ou de se fazer qualquer medicalização, não carrega uma intenção preconceituosa autônoma e promove uma expansão da noção de sexualidade (Idem, p. 11). Falar-se-á um pouco mais sobre cada um dos três motivos da preferência terminológica, começando pelo porquê do surgimento do termo homossexualismo na higienização burguesa, esse momento de exercício do controle em nome da ciência. Antes, leia-se um trecho de Devassos no paraíso, de João Silvério Trevisan: Com o advento de doutrinas pragmáticas, liberais e positivistas ligadas à Revolução Francesa e Americana, por um lado, e à Revolução Industrial, por outro, foram surgindo novos articuladores das malhas de um poder mais sutil, mais científico. Como agentes especializados desse controle rigorosamente dividido em categorias, aparecem primeiro os higienistas, depois os médicos-legistas e os psiquiatras [...] (COSTA, 1992, p. 171).

Como a sociedade burguesa precisava de filhos mais sadios para o futuro das fábricas, do Estado e da pátria, o lar tinha de se modernizar, preenchendo-se de prescrições científicas. Corpo, sexualidade e emoções eram controlados a partir de modelos de conduta moral, devendo funcionar de forma higienizada, dentro da família. Mesmo as relações extraconjugais deviam ser barradas, para que assim se evitasse a proliferação de 72 |

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doenças sexualmente transmissíveis. Libertinos, solteirões e homossexuais eram condenados, como diz Trevisan, como desertores do “supremo papel de homem-pai” (2007, p. 173). O homossexualismo, obviamente uma ameaça, era podado já na infância: a higiene médica tratava de colocar os meninos para, por exemplo, fazerem exercícios que evitassem a “efeminação”. É claro que aos adultos também se aplicavam tratamentos ilógicos: “ou o homem seguia os preceitos da higiene ou se desvirilizava” (Idem, p. 174). O segundo ponto defendido para preterir termos homossexualismo e homossexualidade diz respeito à linguagem. Como diz Jurandir Freire Costa, [...] somos aquilo que a linguagem permite ser; acreditamos naquilo que ela nos permite acreditar e só ela pode fazer-nos aceitar algo do outro como sendo familiar, natural, ou pelo contrário, repudiá-lo como estranho, antinatural e ameaçador (COSTA, 1992, p. 18).

Afinal, o que é um homossexual? O termo foi inventado em 1869, na Alemanha, pelo médico austro-húngaro Karl Maria Kertbeny. Alguns anos depois, o médico brasileiro Viveiros de Castro expôs o quadro de comportamento desses seres que apresentavam uma alteração psíquica chamada “efeminização”: Têm como as mulheres a paixão pela toilette, dos enfeites, das cores vistosas, das rendas, dos perfumes. (...) Depilam-se cuidadosamente. (...) Designam-se por nomes femininos, Maintenon, princesa Salomé, Foedora, Adriana Lacouvrer, Cora Pearl etc. São caprichosos, invejosos, vingativos. (...) Passam rapidamente de um egoísmo feroz à sensibilidade que chora. Mentira, delação, covardia, obliteração do senso moral, tal é o seu apanágio. A carta anônima é a expressão mais exata de sua coragem. Não seguem as profissões que demandam qualidades viris, preferem ser alfaiates, modistas, lavadeiros, engomadores, cabeleireiros, floristas etc. Seu ciúme é um misto de sensualidade em perigo, de amor próprio ferido. Narram-se casos de pederastas que em acesso de raiva ciumenta dilaceram a dentadas o ventre ou arrancam a pele do escroto ou do membro de seus camaradas (CASTRO apud TREVISAN, 2007, p. 179).

Outro brasileiro higienista, Pires de Almeida, constatou “o insistente gosto dos pederastas pela cor verde” e “a inaptidão de mulheres e uranistas para assobiar”, com a ressalva de que “só não conseguem assobiar os pederastas passivos” (Idem, p. 180). Observe-se como uma fala de O demônio familiar, do dramaturgo brasileiro José de Alencar, do século XIX, vai ao encontro desse pensamento: “PEDRO (baixo) - Rapaz muito desfrutável, Sr. moço! Parece cabeleireiro da Rua do Ouvidor!” (ALENCAR, 2015, p. 18). Isso reforça o aburguesamento forçado num contexto em que não lhe cabe, corroborando a hipótese de que a influência europeia invadia o Brasil inadequadamente em níveis para além dos das artes: normatizar modos de se vestir, fazendo condenação de perucas e maquiagens, tinha mais a ver com a desqualificação de uma aparência aristocrática. | 73

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Classificar um homossexual de acordo com sua aparência pode até soar absurdo nos dias de hoje. O psicanalista Jurandir Freire Costa, contemporâneo deste artigo, vai questionar o que ainda não é visto assim: Um verdadeiro homossexual é aquele que só se sente atraído e só se relaciona sexualmente com homens? [...] e aqueles que se sentem atraídos por homens mas por uma outra razão nunca mantiveram contatos físicos dessa natureza? São falsos ou verdadeiros homossexuais? E os que se sentem sensualmente atraídos por homens mas só têm relações físicas com mulheres? E os que só sabem ou só podem sentir-se atraídos ternamente por homens mas não têm nenhuma atração física particular por eles? E os que se sentem atraídos por homens só na fantasia mas preferem claramente, de todos os pontos de vista, relações afetivo-sexuais com mulheres? E, finalmente, os que se sentem atraídos por partes do corpo masculino mas que não querem, não gostam e não pretendem relacionar-se com homens porque têm muito mais prazer no contato amoroso-sexual com mulheres? O que são? (COSTA, 1992, p. 29).

Com todas essas condutas e desejos, todos tão diferentes uns dos outros, por que acreditar que exista um traço único, uniforme e suficiente para delimitar a identidade sexual, social e moral de uma pessoa? Homoerotismo, ao contrário de homossexualismo ou homossexualidade, é um traço comum de todos os homens. Por isso, não há sentido em chamar alguém de homoerótico. Homoeróticos podem ser as pulsões, os comportamentos, as relações etc., não os seres. É justamente aí que está a terceira argumentação utilizada para defender o termo homoerotismo no lugar de homossexualismo e homossexualidade: Homoerotismo é uma noção mais flexível e que descreve melhor a pluralidade das práticas ou desejos dos homens same-sex oriented. [...] interpretar a idéia de “homossexualidade” como uma essência, uma estrutura ou um denominador sexual comum a todos os homens com tendências homoeróticas é incorrer num grande erro etnocêntrico. [...] a noção de homoerotismo tem a vantagem de tentar afastar-se tanto quanto possível desse engano. [...] exclui toda e qualquer alusão à doença, desvio, anormalidade, perversão etc. [...] nega a idéia de que existe algo como “uma substância homossexual” orgânica ou psíquica comum a todos os homens com tendências homoeróticas. [...] o termo não possui a forma substantiva que indica identidade (COSTA, 1992, p. 21).

O homossexual é diferente do ser com necessidade homoerótica: homoerotismo não tem a ver com identidade de gênero, mas com sexualidade. Pelo que diz Jurandir Freire Costa, perceba-se que homoerotismo expande a noção rasteira de sexualidade que se tem com o binarismo hétero e homossexual. Nada obstante, vale pensar que o homoerotismo ainda se funda no binarismo de sexo criticado por Butler, autora que, defendendo a ideia 74 |

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de que a construção da identidade é variável (2003, p. 23), fala a favor de uma política feminista que derrube uma noção estável de gênero. “[...] não há razão para supor que os gêneros também devam permanecer em número de dois” (Idem, p. 24), ela diz. Da mesma forma que Jurandir Freira Costa questiona o que é um “homossexual”, Judith Butler se pergunta o que é, afinal, o “sexo”: “ele é natural, anatômico, cromossômico ou hormonal? [...] Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero” (Idem, p. 25). [...] colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas. Essa produção do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do aparato de construção cultural que designamos por gênero (Idem, ibidem. Grifos da autora).

A questão mereceria uma discussão que não caberia neste artigo, mas cumpre chamar atenção para o fato de que se por um lado a luta por direitos civis necessita ser afirmativa, por outro [...] não basta inquirir como as mulheres [ou os membros da comunidade LGBT] podem se fazer representar mais amplamente na linguagem e na política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por indermédio das quais busca-se a emancipação (BUTLER, 2003, p. 19).

Voltando ao foco deste trabalho, o Brasil não viveu a transição para a sociedade burguesa da mesma forma que o Velho Mundo. Por aqui, ainda depois da Revolução Francesa, muito mais do que pai de família, o patriarca era o senhor de escravos, capatazes e aparentados. Como atesta o historiador Sérgio Buarque de Holanda, “o escravo das plantações e das casas, e não somente escravos, como agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-famílias” (HOLANDA, 1975, p. 49). O poder desse pater-famílias na própria terra refletia-se na política: muitos senhores se envolviam diretamente nos negócios públicos. Isso fazia com que a população branca, livre e sem propriedade vivesse o que o mencionado historiador chamava de ideologia do favor, sendo beneficiada pelo pater-famílias de maneira que sentia-se ela também a classe dominante. O trabalho, espécie de desonra e índice de vergonha, era feito pelos escravos. Outra especificidade brasileira, para além da desvalorização do trabalho, consistia no fato de os laços familiares dessa organização serem mais fortes do que a ordem burocrática, a ponto de afetarem o convívio social. Tudo isso vai de encontro a uma tentativa de europeização, ou, em outras palavras, de aburguesamento do brasileiro. Obviamente essa tentativa irá se frustrar, uma vez que as ideias vindas do Velho Mundo vão ser usadas “fora do lugar”, para usar a expressão do crítico Roberto Schwarz. | 75

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Nesse contexto brasileiro, pensando-se ainda nas “ideias fora do lugar” de Schwarz, “[...] um latifúndio pouco modificado viu passarem as maneiras barroca, neoclássica, romântica, naturalista, modernista e outras, que na Europa acompanharam e refletiram transformações imensas na ordem social” (SCHWARZ, 2000, p. 25). Nesse mesmo contexto, José de Alencar escreveu uma peça romântica chamada O demônio familiar, em que tenta instaurar as mesmas normatizações burguesas para o drama, como se a organização nuclear da família, reduzida a pai-mãe-filhos, fizesse todo o sentido para o Brasil daquele tempo. Nas palavras do crítico Décio de Almeida Prado, “O demônio familiar é [...] uma longa reflexão sobre a sociedade brasileira, com o fim de eliminar-lhe as contradições, de unificá-la socialmente e moralmente” (PRADO, 1993, p. 343). O tom moralizante de Alencar, burguês fora de lugar, exigente de uma prioridade ao efeito moral em detrimento da finalidade cômica, remete ao normativo Discurso sobre a poesia dramática, do filósofo francês Diderot (1986). Percebe-se isso na seguinte parte do texto “A comédia brasileira”, publicado pelo escritor romântico brasileiro em jornal da época: Estava no Ginásio e representava-se uma pequena farsa, que não primava pela moralidade e pela decência da linguagem; entretanto o público aplaudia e as senhoras riam-se, porque o riso é contagioso; porque há certas ocasiões em que ele vem aos lábios, embora o espírito e o pudor se revoltem contra a causa que o provoca. Este reparo causou-me um desgosto, como lhe deve ter causado muitas vezes, vendo uma senhora enrubescer nos nossos teatros, por ouvir uma graça livre, e um dito grosseiro; disse comigo: “Não será possível fazer rir, sem fazer corar?” [...] Não achando pois na nossa literatura um modelo, fui buscá-lo no país mais adiantado em civilização, e cujo espírito tanto se harmoniza com a sociedade brasileira: na França (ALENCAR, 2004, pp. 100-101; 105).

Iná Camargo Costa dá força a essa imagem de um José de Alencar moralista, que pensava a forma dramática na esteira de Diderot. Havia, segundo a pesquisadora, um tipo de comédia considerada de bom gosto pela elite da qual dramaturgo julgava fazer parte: Trata-se da chamada “alta comédia” ou, para usar o conceito mais preciso de Luckács, da comédia dramática – o verdadeiro ideal de nossa intelectualidade oitocentista, que desejava introduzir no Brasil um importante melhoramento da vida moderna francesa: o teatro burguês em suas duas vertentes, o drama – ideal máximo com o qual todos, sem exceção, sonharam – e sua versão bem humorada (final feliz), por assim dizer mais leve, que é a “alta comédia” [...] (COSTA, 1998, p. 127).

Repare-se, assim, que José de Alencar tenta trazer ao Brasil ideias que, pelo menos de forma direta, não dizem respeito a seus conterrâneos. A question d’argent (do francês, “questão do dinheiro”), por exemplo, concerne a uma disputa ideológica entre burgueses e aristocratas. Na Europa há a mulher que era obrigada a se casar por dinheiro – muitas vezes moralmente obrigada, para livrar a família da miséria –, o que 76 |

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se observa com clareza nos romances de Jane Austen. No Brasil o amor romântico até poderia, na mesma época, ser libertador para a mulher, mas não nasce de uma demanda política, como acontece no Velho Mundo. Com a ideia fora do lugar de desenvolver um teatro moralizante, com um riso pudico não muito brasileiro, contestando a question d’argent, José de Alencar escreve O demônio familiar e acaba por deslizar na esteira da higienização burguesa e discursar contra o homoerotismo. Observe-se: AZEVEDO - Decerto!... Uma mulher é indispensável, e uma mulher bonita!... É o meio pelo qual um homem se distingue no grand monde!... Um círculo de adoradores cerca imediatamente a senhora elegante, espirituosa, que fez a sua aparição nos salões de uma maneira deslumbrante! Os elogios, a admiração, a consideração social acompanharão na sua ascensão esse astro luminoso, cuja cauda é uma crinolina, e cujo brilho vem da casa do Valais ou da Berat, à custa de alguns contos de réis! Ora, como no matrimônio existe a comunhão de corpo e de bens, os apaixonados da mulher tornam-se amigos do marido, e vice-versa; o triunfo que tem a beleza de uma, lança um reflexo sobre a posição do outro. E assim consegue-se tudo! (ALENCAR, 2015, p. 20).

Alencar discursa contra a question d’argent, mas aí no sentido de evitar o casamento por interesse que geraria a relação homoerótica de transferência – pensando-se no homem que usa a mulher com quem se casa para no fundo no fundo se aproximar de outros homens. Para corroborar a linha de raciocínio, há outras obras com casos semelhantes. Poder-se-ia citar o conto José Matias, de Eça de Queirós, mas aqui vale a pena um exemplo que deixe a questão mais explícita: a novela A confissão de Lúcio, de Mario de Sá Carneiro, autor simbolista, de um período pouco posterior a José de Alencar. A fala é de Ricardo, que por meio de Marta consegue consumar sua relação com Lúcio: – Sim! Marta foi tua amante, e não foi só tua amante… Mas eu não soube nunca quem eram os seus amantes. Ela é que mo dizia sempre… Eu é que lhos mostrava sempre! Sim! Sim! Triunfei encontrando-a!… Pois não te lembras já, Lúcio, do martírio da minha vida? Esqueceste-o?… Eu não podia ser amigo de ninguém… não podia experimentar afetos… Tudo em mim ecoava em ternura… eu só adivinhava ternuras… E, em face de quem as pressentia, só me vinham desejos de carícias, desejos de posse – para satisfazer os meus enternecimentos, sintetizar as minhas amizades… Um relâmpago de luz ruiva me cegou a alma. [...] – Ai, como eu sofri… como eu sofri!… Dedicavas-me um grande afeto; eu queria vibrar esse teu afeto - isto é: retribuir-to; e era-me impossível!… Só se te beijasse, se te enlaçasse, se te possuísse… Ah! mas como possuir uma criatura do nosso sexo?… Devastação! Devastação! Eu via a tua amizade, nitidamente a via, e não a lograva sentir!… Era toda de ouro falso… | 77

Caminhos da pesquisa em artes cênicas Uma noite, porém, finalmente, uma noite fantástica de branca, triunfei! Achei -A… sim, criei-A!… criei-A… Ela é só minha – entendes? – é só minha!… Compreendemo-nos tanto, que Marta é como se fora a minha própria alma. Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos. Somos nós-dois… Ah! e desde essa noite eu soube, em glória soube, vibrar dentro de mim o teu afeto – retribuir-to: mandei -A ser tua! Mas, estreitando-te ela, era eu próprio quem te estreitava … Satisfiz a minha ternura: Venci! (CARNEIRO, 2015, pp. 16-77).

A ideia de Ricardo não difere muito da ideia de Lúcio: por meio de Marta, enquanto se relacionam sexualmente com ela, ambos se sentem realizando-se fisicamente com os outros homens dela, o que está escancarado no texto. Enfim, enquanto Alencar trata o demônio [familiar] do homoerotismo como o amor que de fato não ousa dizer seu nome, Carneiro encontra uma maneira de dizê-lo. Nelson Rodrigues, para além de Carneiro, diz em “O beijo no asfalto” tal nome e ainda aponta para os motivos pelos quais esse nome não pode ser dito, provocando distanciamento, reflexão, possibilidade de transformação. É disso que se trata a dissertação que ora se desenvolve.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, José de. O demônio familiar. Disponível em:. Acesso em: 18 de out. de 2015. CARNEIRO, Mário de Sá. A confissão e Lúcio. Disponível em: . Acesso em: 18 de out. de 2015. COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992. COSTA, Iná Camargo. Sinta o drama. Petrópolis: Vozes, 1998. DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. DIDEROT, Denis. Discurso sobre a poesia dramática. Trad. L. F. Franklin de Matos. São Paulo: Brasiliense, 1986. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque; J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora, 1975. PRADO, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Perspectiva, 1993. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2000. TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2007.

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DA TELA AO PALCO: PINTURA, TEATRO E REVOLUÇÃO NO BRUTUS DE JACQUES LOUIS DAVID Flavia Giovana Dessoldi Centro Universitário Belas Artes de São Paulo

Introdução Inúmeros acontecimentos históricos, políticos e sociais levaram à Revolução Francesa em 1789, entre eles destaca-se a participação popular e a contribuição do campo das artes em suas mais variadas linguagens. A pintura transformou-se num veículo de propagação dos ideais burgueses e teve grande influência sobre a população. Dentre os artistas desse período, Jacques Louis David destaca-se tanto por suas obras quanto pela posição política que assumiu durante a Revolução. Uma de suas pinturas mais famosas “J. Brutus”, primeiro cônsul, de volta à sua casa, após ter condenado seus dois filhos, que haviam unido-se aos Tarquínios

Figura 1- O Juramento dos Horácios (1784). Óleo sobre tela. Museu do Louvre – Paris. Fonte: Wikimedia Commons. | 79

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e tinham conspirado contra à liberdade romana. Os lictores trazem seus corpos para que ele lhes dê sepultura (1789). Essa obra contribuiu para o engajamento político no período por trabalhar com ideias que mobilizavam os cidadãos franceses que sofriam com o absolutismo de Luís XVI. Através da análise dessa obra, é possível estabelecer suas relações com a montagem da peça teatral Brutus, de Voltaire, encenada em 1790 pela Comédie Française, tendo como intérprete do personagem principal, o ator Talma, que consagrar-se-á no mesmo período de David. A partir dessa nova relação que se estabelece entre duas linguagens artísticas, será realizado um estudo a respeito de como o teatro foi transformado em uma ferramenta de mobilização das massas na França no século XVIII e as contribuições da Revolução para a formatação de um novo sistema de criação artística e teatral. David, um pintor visionário Jacques Louis David, considerado o pintor da Revolução Francesa, contribuiu com mais do que sua pintura. Tido por alguns pesquisadores como o criador da moderna propaganda visual, conseguiu atingir a população francesa letrada e iletrada com sua obra que tinha como objetivo promover a salvação moral e tornar a arte muito mais do que um instrumento de prazer: na perspectiva de David, a arte deveria ser capaz de transformar simples homens em cidadãos corretos.

Figura 2 - Deem uma esmola a Belisário (1781). Óleo sobre tela. Museu de Belas Artes - Lille. Fonte: Wikimedia Commons. 80 |

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David estudou em um período em que o destino da arte se tornara uma preocupação pública. Com a morte de Luís XV em 1775, Luís XVI assume o trono e, no campo das artes, o gosto pela seriedade passa a predominar. A obra de David marcou o apogeu do Neoclassicismo através de pinturas históricas com fundo moralista. David ganhou um ateliê no Louvre como membro da Academia após realizar o quadro “Dêem uma esmola a Belisário” (1781) (Figura 2). Em 1785, David expôs O “Juramento dos Horácios” (Figura 1), também, uma encomenda da corte que tornou-se uma espécie de revolução na arte de seu tempo. A partir de então, David assume uma nova postura enquanto pintor: a escolha de seus temas visava algo que estava além dos desejos da corte. Um quadro, exposto no Salão de 1789, será o primeiro quadro de David a ter uma relação direta com a Revolução Francesa. Mesmo sendo uma encomenda real, assim como as duas obras acima citadas, e apesar dessa temática subversiva já ter sido trabalhada por David, Brutus assumirá de forma muito mais incisiva as críticas à monarquia e a nobreza. Brutus, padroeiro da Revolução O quadro em questão (Figura 3) leva o longo título de “J. Brutus, primeiro cônsul, de volta à sua casa, após ter condenado seus dois filhos que se haviam unido aos Tarquínios e tinham conspirado contra a liberdade romana. Os lictores trazem seus corpos para que ele lhes dê sepultura”, necessário para que seja possível compreender o significado da obra. Sobre o tema retratado, trata-se da fundação da República romana. Lucius Ju-

Figura 3 - Os lictores devolvendo a Brutus os corpos de seus filhos (1798). Óleo sobre tela. Museu do Louvre- Paris. Fonte: Wikimedia Commons. | 81

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nius Brutus é o primeiro cônsul de Roma e descobriu que seus filhos conspiravam para a restauração da monarquia dos Tarquínios. Brutus, cujo dever era defender a República, não hesita em colocar os interesses de Roma à frente de seus laços familiares e ordena a execução de seus próprios filhos. No quadro, Brutus encontra-se sentado à esquerda, seu rosto na penumbra, rígido e impassível. Com relação à postura de Brutusé interessante observar que Winckelmann (1975, p. 53), discorrendo sobre obras gregas, afirma que “quanto mais calma é a atitude do corpo, tanto mais apta está para mostrar o verdadeiro caráter da alma”. A única parte de seu corpo que denota de forma mais evidente algum tipo de emoção são os pés, o pé direito sobre o esquerdo: detalhe que David emprestou do Isaías pintado por Michelângelo na Capela Sistina. A divisão de seu corpo entre a luz e a escuridão pode ser analisada como uma divisão das posições sociais assumidas por Brutus: enquanto cônsul romano, no espaço público, e enquanto pai, no espaço privado. Do lado direito, a mãe, as irmãs e uma serva estão em prantos. Não é a primeira vez que a mulher representa a emoção irracional na obra de David. Entre Brutus e a esposa, uma coluna e uma cadeira vazia sintetizam o rompimento familiar. Na penumbra, próximo a Brutus, um emblema de Roma interpõe-se entre o pai e os corpos dos filhos mortos. Jean Starobinski (1988, p. 73) chamará o drama de “Brutus” de “versão pagã do sacrifício de Abraão”, considerando a ausência do anjo que, na passagem bíblica, deteve o golpe do personagem que ia sacrificar o próprio filho. Próxima às mulheres, uma mesa, coberta com uma toalha cor de sangue, sobre a qual vemos um cesto de costura que contém tecidos, linhas e uma tesoura – o símbolo de Átropos, a Parca responsável por cortar o fio da vida. Apesar do início do quadro datar de antes dos eventos de 1789, o projeto sofreu mudanças sob o impacto dos acontecimentos que marcaram o inicio da Revolução aprofundando seu viés antimonárquico. A partir deste quadro, a ação de David como artista estará cada vez mais associada à política de sua época. Durante os anos seguintes, David se tornaria deputado da Convenção Nacional onde teve assento no “Comitê de Segurança”, destacando-se também por sua interferência nos meios artísticos: será um dos principais responsáveis pelo fechamento da Academia de Pintura e Escultura. A obra de David atende às finalidades de “agradar e instruir” que as artes deveriam ter, através do pincel do artista que: “Deveria legar ao pensamento mais do que tenha mostrado aos olhos. O artista conseguirá isso desde que aprenda, não a dissimular suas ideias sob o disfarce de alegorias, senão a dar-lhes a forma de alegoria” (WINCKELMANN, 1975, p. 70). O Brutus de David, ao relacionar-se com o Brutus de Voltaire, seria transformado numa das maiores alegorias que a Revolução poderia almejar, através do trabalho de um ator: Talma. Talma, um ator transitório Talma foi um ator que viveu não só a transição histórica do século XVIII para o XIX, mas também a transição do papel social que marcou o ofício de ator. François- Joseph 82 |

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Talma estreou na Comédie Française em 1787. A Comédie Française era uma companhia que gozava de muitos privilégios por ser mantida e beneficiária do rei e da corte. Esses privilégios, no entanto, vinham acompanhados de muitas limitações, que, criticadas por Talma, colocou-o em rota de colisão contra seus colegas. Em novembro de 1789, o ator encenou, no papel principal, a peça Carlos IX de Joseph-Marie Chénier. Quando esta peça, depois de mais de trinta apresentações, foi proibida pelo rei a pedido de bispos da Igreja Católica, Talma impôs sua representação atendendo às exigências do público. O seu envolvimento cada vez maior com o teatro revolucionário do período contribuiu para a ascensão de sua carreira e para o crescimento do seu prestígio entre as lideranças da revolução: durante o “Terror”, diversos atores da Comédie Française foram perseguidos, presos e julgados, mas Talma não foi incomodado. Após a revolução, com o golpe e a instauração do Império de Napoleão, Talma transformou-se num ator a serviço do Estado, tornando-se o preferido e o protegido de Napoleão Bonaparte Uma das maiores contribuições de Talma para a história do teatro acontecerá a partir da relação que o ator estabelecerá com o pintor Jacques Louis David e as influências e opiniões deste no processo de construção da personagem Brutus, na encenação da peça de mesmo nome em 1790. As influências da Revolução no campo das artes contribuíram para estreitar a ligação, não só entre as linguagens e as posições políticas dos envolvidos, mas entre os próprios artistas e seu público. O teatro e a revolução No período revolucionário, tornou-se necessário encontrar meios de comunicação e educação de massa mais incisivos que a propaganda escrita. A solução foi a retomada das festas cívicas, como ocorriam na Antiguidade Greco-Romana e, principalmente, do teatro. Apesar de ser composta por atores ligados à monarquia, a Comédie Française abriu espaço em seu repertório para obras que criticavam a Igreja Católica, após o 14 de julho de 1789. As mesmas lutas políticas que se davam entre partidos nesse período, aconteceram também entre companhias teatrais que não compartilhavam das mesmas visões ou ideais. Tratava-se de uma mudança na forma de se fazer teatro, um teatro que agora não seria mais privilégio da aristocracia, teria a população comum como participante ativa: o teatro estava se tornando “um local de amplificação dos grandes debates políticos e sociais” (BIANCHI, 1989, p. 171). Os dramas encenados eram parte da escola de regeneração de costumes em que o teatro se transformara a partir de 1789. De acordo com Jean Starobinski (1988), na criação teatral, assim como na pintura, a Revolução quis que a imaginação fosse controlada e guiada pela razão, queria-se viver uma segunda renascença, melhor esclarecida pela história. É interessante observar que os atores, até o final de 1789, não gozavam de direitos civis. Em função do interesse crescente e da considerável importância de seu trabalho para a Revolução, a Assembleia Nacional reconheceu em 24 de dezembro de 1789, os direitos dos homens de teatro, mas, apesar dessa conquista, os atores não poderiam escolher seu próprio repertório, tendo que atender aos interesses públicos. | 83

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O público burguês, que tinha condições de pagar por seu ingresso, já não estava mais interessado em ser um receptor mudo das peças teatrais: ia ao teatro como ia a um clube político, nunca dispensava sua participação. Serge Bianchi (1989) afirma que o “teatro cívico” do período mostra estreitos laços entre a Revolução em curso, os autores, os atores e o público. Até 1791, a Comédie Française monopolizava as obras clássicas, impedindo que outros grupos realizassem determinadas encenações. As necessidades e interesses da Revolução para com o teatro tornam-se tão evidentes que culminam em providências legislativas que colocam um fim à exclusividade da Comédie, proporcionando maior autonomia para as demais companhias teatrais. Essas facilidades vão contribuir para uma multiplicação dos teatros de Paris: a partir de janeiro de 1791 “qualquer pessoa pode fundar um teatro e apresentar as representações à sua escolha, com a concordância do autor, do elenco e da municipalidade” (BIANCHI, 1989, p. 170). Contribuições da Revolução: Brutus. O Teatro Revolucionário propriamente dito pode ser dividido em três categorias: a primeira corresponde às obras com intenções celebrativas que representavam acontecimentos e personagens da Revolução. A segunda categoria corresponde às comédias anticlericais. Na terceira categoria estão os dramas históricos, onde se destaca a peça Brutus de Voltaire. A peça, que contou com a atuação de Talma no papel do personagem principal, trouxe ao teatro contribuições técnicas e inovações artísticas nas encenações que ocorreram entre 1790 e 1791. Até então, nas apresentações das tragédias, os atores utilizavam figurinos do período em que as peças haviam sido escritas (grande parte no século XVI), atitude que causava anacronismo na representação. Talma, por sugestão de David, levou ao palco um Brutus vestido com roupas similares às usadas na Roma de seu tempo: além de uma túnica, pernas nuas, sandálias, Talma também usou um penteado, semelhante ao visto no busto romano de Brutus e na própria pintura de David, que se tornaria moda entre os franceses. “O cabelo curto e natural, popularizado por seu Brutus (e baseado em sua cópia de um busto romano) agora era oficialmente sancionado como corte patriótico para os homens” (STAROBINSKI, 1988, p. 225). Essas encenações contribuíram para estreitar cada vez mais a relação entre a obra de Voltaire e o quadro de David, formulando conexões antes nunca experimentadas. Não só o cenário, figurino e penteado de Brutus e das demais personagens retratadas no quadro de David serviram como inspiração para a montagem, mas também o próprio contexto retratado pelo artista. Como epílogo do espetáculo, os atores representaram a cena pintada por David: Brutus sentado entre as sombras, sua esposa e filhas em profunda agonia enquanto os lictores traziam os corpos de seus filhos mortos. A partir disso, é possível afirmar que a peça teatral e o quadro de David tiveram influência significativa sobre a população, tanto na concepção antimonárquica da historia de Brutus, quanto às virtudes que, como homem do Estado, também eram necessárias aos cidadãos franceses. Brutus transformou-se num modelo a ser seguido e 84 |

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imitado, instaurando uma nova forma de pensar e comportar-se. A atitude de Talma aos poucos foi sendo absorvida e outras companhias seguiram seu exemplo. A busca pelo real pode ser considerada a contribuição mais evidente da Revolução para as artes dramáticas, esse novo pensamento foi estendido à cenografia dos espetáculos e depois ao próprio estilo de representação, tornando Talma um ícone, principiando o conceito de celebridade e alterando cada vez mais a relação público/ator. Considerações finais Através do estudo realizado é possível concluir que o interesse da Revolução para com o teatro culminou em modificações profundas na estruturação deste, esse processo foi fundamental para estabelecer novas bases para o teatro moderno e principalmente para a profissão do ator. A relação entre o quadro Brutus, de Jacques Louis David, e a montagem da peça Brutus, de Voltaire, é inédita, as contribuições que Talma, trouxe para os processos de interpretação e também de caracterização (figurino e indumentárias) durante a montagem e as apresentações de Brutus adquiriram importância fundamental no campo das artes cênicas. O quadro de David, ao experimentar essa transversalidade artística, passa por uma ressignificação: a cena retratada pelo pintor passou do estado de contemplação para o estado da ação. O quadro transformou-se em texto, o epílogo da peça de Voltaire. Novas relações foram estabelecidas entre duas linguagens artísticas que se uniram para transformarem-se em posição política.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BIANCHI, Serge. O teatro dos novos tempos. In: VOVELLE, Michel (Org.). França revolucionária: 1789 – 1799. São Paulo: Brasiliense, 1989. STAROBINSKI, Jean. 1789: os emblemas da razão. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. WINCKELMANN, Johann Joachim. Reflexões sobre a arte antiga. Tradução de Herbert Caro e Leonardo Tochtrop. Porto Alegre: Movimento, 1975.

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POR UMA ENCENAÇÃO DA COMÉDIA NACIONAL: MARTINS PENA E O VISLUMBRE DA CENA PARA ALÉM DO TEXTO Andréa Sannazzaro Universidade Federal de Ouro Preto

Até meados do século XIX, a figura do encenador, tão bem difundida com a constituição do teatro moderno e profissional no séc. XX, não existia. A função, de forma similar, era cumprida muitas vezes pelo ensaiador pertencente à companhia que encenava a peça ou mesmo pelo próprio autor, que dava indícios em seu texto de como deveria ser feita a cena ou mesmo na própria estruturação do texto. Como é o caso de Martins Pena, tão hostilizado dentro da literatura e de seus contemporâneos por apresentar características em seus textos que se voltam para a ação dramática, com elementos cênicos que introduzia, alguns autores como Silvio Romero e Veríssimo – o primeiro com trabalho voltado para uma História da Literatura e o segundo para crítica literária – não o analisaram sobre o ponto de vista do espetáculo, deixando assim um problema para própria historiografia teatral brasileira, já que são considerados referências sobre trabalhos artísticos dos oitocentos. Nossa hipótese é que, após uma breve análise na fortuna crítica de nosso dramaturgo fluminense Martins Pena, é possível notar certa hostilidade em torno de seus méritos. Nosso argumento se dá primeiramente pelo fato de ter sido criticado por um viés que, como bem definiu José Verissimo, não separava literatura de teatro, precedida pois da ausência de uma historiografia teatral durante certo período. Martins Pena escrevia sem se preocupar com as técnicas de um bom texto para ser lido. Vilma Arêas (1987) menciona que muitas vezes o texto da peça só era concluído após a montagem, o que por este modo nos leva a concluir que o dramaturgo carioca executava função similar com a do encenador ao pensar como deveria ser a disposição das cenas. Em seguida, pelo fato de que suas comédias, as que obtiveram maior sucesso em sua carreira, sofreram certo preconceito por não serem interpretadas com as mesmas capacidades que almejavam os defensores do teatro moralizante, executado na segunda metade do século XIX, por autores como José de Alencar. Preconceito este que desconsidera a capacidade de crítica de criar efeito risível presente na própria ação dramatúrgica, e na capacidade da linguagem cênica possível de ser executada apenas em cena, mas que o texto escrito deixa brechas. Estamos falando de um século XIX onde o texto era o principal agente de uma peça teatral. O que se pretende aqui portanto é defender que, para além de um conteúdo rico em fatos cotidianos, nos costumes, na contestação dos vícios, em uma suposta melancolia romântica de um país que não se alinha em uma ordem civilizatória europeia, e que expõe também os males da escravidão, Martins Pena estava preocupado com a cena teatral, ocupando-se porém de inserir em seu texto forte ação dramática, dentro dos moldes artísticos de sua época, embora também o gêneros dramáticos de que se 86 |

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utilizou seja um ponto interessante de ser estudado. O autor se utilizou da farsa e do entremez, bem como a comédia clássica e comédia nova, mas aprofundarmos neste ponto não é aqui nosso foco. Já no princípio do século passado, José Veríssimo (1901), em Estudos da Literatura Brasileira, ao falar de Martins Pena, faz uma importante observação: [...] Martins Pena é um escritor de teatro e somente isso; quero dizer que as suas capacidades não vão além do necessário para fazer uma peça representável e que ele, sem nenhuma distinção especial de talento, possui apenas essas capacidades. Tal aptidão não indica por forma algumas qualidades artísticas e literárias, nem basta para dar ao que a possui foros de escritor e um lugar na literatura. São que farte os exemplos citáveis em abono do meu asserto, e para lhe demonstrar a exatidão bastaria recordar não só o próprio meio, mas os povos que como nós possuem autores dramáticos sem ter, todavia, uma literatura dramática. Os franceses distinguem naturalmente as duas coisas com a expressão “escritor de teatro”, que eles têm por centenas, quando os que realmente incorporam a sua literatura são pouquíssimos. O teatro é uma arte especial, com a sua técnica e a sua estética própria, oriundas das mesmas exigências cênicas e da natureza peculiar do seu destino e do modo por que o realiza. Vive talvez do seu próprio fundo como uma arte independente, e a sua história acidentalmente coincide com a da literatura (VERISSIMO,1901, p. 97).

Ora, o próprio José Veríssimo cai em paradoxo ao querer enquadrar Martins Pena por via de análise dentro de uma história de literatura, por este modo observando-o com características inferiores. Não vê nele contribuição maior do que apenas inserção de elementos cômicos, sem espírito crítico, este que não está presente no texto, mas, sim, na própria construção da ação proposta pela dramaturgia, detalhes que exemplificaremos mais à frente. O que ocorre, porém, é que na atualidade, diferentemente do século passado, acreditamos já possuir um campo específico das artes cênicas. É possível uma análise, mesmo apenas de vestígios, como a escritura da peça (ou mesmos os manuscritos, como no caso do dramaturgo oitocentista, preservada em arquivos) por outros meios que priorizem a estética teatral. Mesmo que saibamos que o texto não é mais o elemento central, no caso de uma montagem oitocentista, observar esses detalhes no texto de Martins Pena é ter a consciência que, naquele período, era ele o agente principal que conservava como deveria ser a encenação. Preservar, portanto, análises como a de José Veríssimo é perpetuar uma tradição que não valoriza nosso passado teatral distinto, porém, do da literatura. Desconstruir esta tradição é também suspeitar que se pode ter forçado a criação de uma memória em torno de sua obra um tanto tendenciosa. Mas isso é outra discussão. Nossa pergunta norteadora é o que especificaria, portanto, essa preocupação com a cena presente no texto que constitui uma linguagem teatral, ou ainda, quais caracte| 87

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rísticas presente nas peças de Martins Pena que constituiriam um texto permeado por teatralidade? Rubricas são certamente a principal característica que define um texto dramático, afinal sugerem detalhes impostos à construção da cena. Porém, sendo esta um elemento essencial, é necessário que se tenha atenção em suas qualidades, são nelas que podemos observar como o autor pensou a disposição das cenas, algumas ações dos personagens, o modo como eles irão executar a ação em gestos etc. De modo geral, elas executam a contribuição visual da movimentação cênica. No caso de nosso autor estudado, é importante observar como ele se utilizou bastante das rubricas, como exemplo, em peças como O Judas e o sábado de Aleluia, em que são cuidadosamente detalhadas. Vejamos abaixo citação da rubrica inicial: Sala em casa de José Pimenta. Porta no fundo, à direita, e à esquerda uma janela; além da porta da direita uma cômoda de jacarandá, sobre a qual estará uma manga de vidro e dois castiçais de casquinha. Cadeiras e mesa. Ao levantador do pano, a cena estará distribuída da seguinte maneira: CHIQUINHA sentada junto à mesa, cosendo; MARICOTA à janela; e no fundo da sala, à direita da porta, um grupo de quatro meninos e dois moleques acabam de aprontar um judas, o qual estará apoiado à parede. Serão os seus trajes casaca de corte, de veludo, colete idem, botas de montar, chapéu armado com penacho escarlate (tudo muito usado), longos bigodes, etc. Os meninos e moleques saltam de contentes ao redor do judas e fazem grande algazarra (PENA, 2007, p. 223).

Ora, basta um pouco de imaginação para ao lermos tal rubrica notarmos como toda a disposição da cena está feita, desde cenário a trajes dos personagens. No restante da peça podemos notar rubricas em quase todas as cenas e diálogos dispondo para as ações dos personagens. Função esta que mais tarde veremos ser exercida de modo parecido pelo encenador. Já em As casadas solteiras, peça de 1842, no trecho a seguir não vemos apenas a disposição da cena, mas algo mais: a referência à festa de São Roque é um pleno comprometimento com a cor local. Desta forma, o autor traz em sua forma teatral algo que muitas vezes a historiografia o renegou, o de possuir um ideário romântico, aquele que se ocupa com o que há de mais específico em determinadas nacionalidades: O teatro representa o Campo de São Roque, em Paquetá. Quatro barracas, iluminadas e decoradas, como costumam ser nos dias de festa, ornam a cena de um e outro lado; a do primeiro plano, à direita, terá transparentes fantásticos, diabos, corujas, feiticeiras, etc. No fundo, vê-se o mar. Diferentes grupos, diversamente vestidos, passeiam de um para outro lado, parando, ora no meio da cena, ora diante das barracas, de dentro das quais se ouve tocar música. Um homem com um realejo passeia por entre os grupos, tocando. A disposição da cena deve ser viva (PENA, 2007, p. 2).

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Martins Pena não apenas detalha como deve ser a disposição da cena, como explicita a riqueza de detalhes que deve ter. Revela, assim, características específicas e locais sobre as festas populares. Festas em comemorações a santos e padroeiros eram elementos que mais caracterizavam a identidade local de pequenas comunidades. Em um sentido geral, dessa forma, a peça transmitia algo de específico daquele lugar afastado do centro urbano, outra parte da nacionalidade, ideal este dos românticos; a festa popular se mostra como característica da roça. As festas possuem um tom marcante nas obras de Pena; em As casadas solteiras, porém, é também pano de fundo e espaço cênico. Em outras peças como O dois e o inglês e o maquinista, elas possuem outra função na narrativa, a Folia de Reis serve como desfecho das intrigas. Carregando também o espetáculo de musicalidade, já que no texto ela deve ser encenada com os personagens cantando, sendo indicada da seguinte maneira na rubrica inicial da cena: “entram os moços e moças que vêm cantar os Reis; alguns deles, tocando diferentes instrumentos, precedem o rancho. Cumprimentam, quando entram” (PENA, 2007, p. 218). Apenas pela indicação dos instrumentos musicais se nota a preocupação do autor com que a canção que será encenada seja intensamente dramatizada. De forma parecida, outro dado que também preenche a teatralidade da peça são cenas que apresentam muitos sons, como baladas de sinos presente em A família e A festa na roça. Já em O dois ou o inglês e o maquinista, muitas vezes aparecem vozes humanas cruzadas, o que gera intenso movimento. Assim como determinadas entradas e saídas de personagens no enredo de forma bastante rápida. Sem contar, as alternâncias de cenas que garante um acelerado ritmo para boa parte de suas comédias, em sua grande maioria permeadas por recursos básicos, mas bem elaborados como os quiproquós, jogo de esconde-esconde e pancadarias, esta última característica específica da farsa, gênero no qual o autor se utilizou diversas vezes.12 Outro aspecto que nosso dramaturgo fluminense fez uso foi da criação de um cenário que fosse funcional com objetos que se transformassem em artifícios cênicos. Como o caso dos esconderijos, às vezes sendo usado cortinas, ou outras peças do imobiliário. Em O noviço, em dado momento, o castiçal cai gerando uma escuridão necessária para o desenrolar da cena. Em Os meirinhos o que chama a atenção é o cenário desdobrado, de um lado sala de bilhar, e outra sala onde vários personagens jogam tal como detalha rubrica inicial: O teatro, na antecena, representa uma sala. Portas laterais, mesas de um e outro lado; no fundo, três portas que deitam para outra sala, onde se vê um bilhar em que jogam diferentes pessoas, e outras sentadas em bancos ao redor, diversamente vestidas – tudo como se observa nessas casas de jogo (N.B.: Durante a representação jogam bilhar, com as modificações que vão marcadas) (PENA, 2007, p. 3).

12 É necessário diferenciar farsa de comédia. Ambas têm características distintas, mas no caso das análises das obras de Martins Pena foram diversas vezes efetuadas uma ligeira confusão pelo fato de o ator se utilizar de características de ambas em uma mesma peça.

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Caminhos da pesquisa em artes cênicas

Em O caixeiro na taverna, recurso parecido é executado: o palco é também dividido em duas cenas, assim como o autor discute quais objetos deve haver no lugar, sempre frisando que deve ser como é na realidade. O teatro, na ante-cena, representa uma sala com portas laterais e duas no fundo, pelas quais se vê o interior de uma taverna com seu balcão, onde estará um caixeiro e mais arranjos necessários – tudo distribuído de modo tal, que fiquem bem à vista do espectador as pessoas de diferentes condições que entram na taverna durante a representação. De um e outro lado da sala, haverão [sic] algumas pipas, como é costume nas tavernas. No primeiro plano, à esquerda, uma escrivaninha apropriada ao lugar, etc. (PENA, 2007, p. 267).

Ambas rubricas revelam a preocupação do autor com a funcionalidade do cenário. Outro aspecto importante é observar a linguagem dos personagens também como uma forma de caracterização. A atenção de Martins Pena para com a fidelidade do falar coloquial é algo que, sem dúvida, não passa despercebido. O que muitas vezes fora definido como erros de linguagem, Vilma Arêas (1987) aponta como sendo uma fixação do autor por uma prosódia popular13, dado o seu aguçado ouvido de músico. Basta, porém, uma análise nos manuscritos do autor para notar que os textos não foram finalizados, ou mesmo algumas marcações, rasuras, erros de pontuação etc., sempre sendo deixado um espaço para que seja completo nos palcos. Uma breve pesquisada nos jornais da época nos revela também que as peças foram escritas para serem imediatamente representadas. A respeito da crítica que persistiu em nossa historiografia de que o autor só se preocupava com riso fácil, tão bem difundida por Silvio Romero (1900), que assim como Verissimo (1901) não via nele preocupações filosóficas, isto pode ser desmistificado ao nos atentarmos que este chamado espírito crítico não está nas palavras, mas sim, na própria construção da ação proposta pela dramaturgia na estruturação das cenas. Nenhum aspecto sobre os males da escravidão está ausente no teatro de Martins Pena. Atentemos para a seguinte cena, em O dois ou o inglês e o maquinista, peça censurada na ocasião de sua estreia: BULHA COMO DE BOFETADAS E CHICOTADAS EUFRÁSIA - GRITANDO - Comadre, não se aflija. JOÃO DO AMARAL - Se assim não fizer nada tem. EUFRÁSIA - Basta, comadre perdoe por esta. CESSAM AS CHICOTADAS Estes nossos escravos fazem-nos criar cabelos brancos (PENA, 2007, p. 12).

Além das rubricas, que definem claramente o castigo no qual a personagem Clemência dá a seus escravizados, os personagens não aparecem diretamente na cena. Eu13 O termo prosódia sugere a correta emissão das palavras. Atentemos para o fato que a maior estudiosa de Martins Pena, Vilma Arêas, acrescenta ao termo o popular. Dando se a entender por este modo, que o dramaturgo estaria preocupado com uma correta emissão de um linguajar popular.

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frásia dialoga com a amiga aos gritos, pois se encontra na cozinha onde os escravizados deixaram quebrar algumas louças. Há aqui uma exposição de jogo, tal qual na sociedade, em que os personagens que aparecem mais são os de maior importância social, no caso do escravizado que são duramente silenciados em cena. Outro fator curioso se encontra na peça Os ciúmes de um pedestre. Era comum no período o recurso do Blackface. Tal recurso era utilizado pois não era permitido atores negros no período e a técnica fora bastante utilizada para os atores representarem Otelo. Na peça em questão, o recurso é utilizado, no entanto, dentro do enredo por um personagem, Alexandre, que se utiliza dele para um disfarce. Pretende ele enganar André, pai de sua amante. Pode-se dizer que o autor usou do próprio artifício da comédia, o de brincar com as convenções teatrais, para denunciar o racismo. Ora, no enredo da peça a vingança concedida ao pai para filha era que ela se cassasse com Alexandre, acreditando até então que ele era negro. Ao retirar seu disfarce, portanto, Alexandre desmascara o preconceito de André. As peças de Martins Pena, constantemente representadas no então Teatro Constitucional Fluminense (atual João Caetano), alcançaram grande popularidade, sendo diversas vezes encenadas com um intervalo muito curto entre cada uma, sem dúvida provocando bastante riso na plateia. Isto revela a força que continham suas peças de diálogo e sua capacidade de atingir ao púbico. Basta lembrar que “compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é a sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma função social” (BERGSON, 2004, p. 9). Para a descrença também no espírito crítico de suas peças, se faz necessário constatação de uma forte sincronia com público, para isso, um último exemplo, o caso da reação da plateia em peças como A família e A festa na roça, O diletante, Os dois e o inglês e o maquinista, que debocha de certa forma do estrangeiro. Em algumas peças se ouviam palmas e gritos de velhacos se referindo a estrangeiros, o que resultava em cartas de estrangeiros que se diziam “brasileiros de coração” incomodados com a reação da restante da plateia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARÊAS, Vilma Sant’Anna. Na tapera de Santa Cruz: uma leitura de Martins Pena. São Paulo: Martins Fontes, 1987. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. MARTINS PENA. Comédias em 3 volumes. Col. Dramaturgos do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ROMERO, Sílvio. Martins Pena. Porto: Chardron, 1900. VERÍSSIMO, José. Martins Pena e o teatro brasileiro. In: Estudos de literatura brasileira. Rio de Janeiro: H. L. Garnier, 1901.

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Teatro e recepção

O CONCEITO DE ESPECTADOR TEATRAL EM BERTOLT BRECHT Edilaynne Paula de Lima Universidade Federal de Ouro Preto

Espectador em Brecht: teatro épico, dialético, efeito de distanciamento Brecht reinventa o Teatro Épico usando as ferramentas que já existiam em seu tempo. Ele faz uma junção de propostas que haviam surgido na Alemanha e em outros países, em um momento de crises, guerras, crescimento da classe operária, surgimento de coletivos etc. Criando uma forma própria de fazer teatro especialmente para atuar diante de situações vividas no contexto político de sua época. O próprio Brecht acreditava que: “estas formas de teatro correspondiam diretamente a certas e determinadas tendências da época e com elas morreriam” (BRECHT, 2005, p. 74). Com isso a importância de reinventar o Teatro Épico. Se para Brecht era tão importante representar no teatro as possibilidades reais da vida e das circunstâncias dos fatos vividos pelos homens, seus espectadores deveriam sentir-se parte desses fatos. Para um homem habituado a ir ao teatro é muito mais fácil entender os signos que o compõem do que para um homem leigo em teatro. Brecht se preocupava com a possibilidade de fazer com que esses mesmos homens leigos pudessem se sentir como uma peça importante do que estava sendo representado. Seus espectadores deveriam se sentir parte do jogo teatral e não apenas encantados com o que estavam vendo. Algo de novo deveria surgir na cabeça de quem assistisse a seus espetáculos. Um exemplo seria um homem entrar no teatro e sair dizendo: como é bela e dramática a vida daquele homem que estava sendo representado no teatro! Para Brecht seria de proveito maior esse mesmo homem sair pensando: o que levou aquele homem a escolher por aquela vida? Se fosse comigo faria diferente! Ou talvez fizesse igual! Ele tinha como escolher outros caminhos! Talvez não o tenha escolhido por mero capricho! Ou porque era ignorante demais! Nossa eu não quero ser assim! (BRECHT, 2005, p. 66). Esse mesmo espectador deveria entender o que se passa por trás das ações e gestos dos personagens. Não seria interessante causar uma hipnose nesses espectadores, fazendo com que eles apenas vissem o que estava sendo mostrado e não o contexto histórico e politico por trás de tudo o que está sendo representado. Brecht fala: “Assim como não pretendo entregar os seus heróis ao mundo, mundo este que surge como destino inevitável, também não é intuito seu entregar o espectador a uma experiência dramática por sugestão” (BRECHT, 2005, p. 47). E se, ao observar o personagem, o espectador pensasse em seus próprios atos, em sua posição social e contribuição para o caráter do mesmo personagem? Talvez os espectadores de Brecht devessem se sentir livres para criar uma logica de raciocínio a respeito do que estavam assistindo. Para isso Brecht dispunha de vários recursos, dentre os quais menciono dois: | 93

Caminhos da pesquisa em artes cênicas

1) Não se preocupar com uma linearidade das cenas para se chegar a uma catarse, onde o espectador se emociona e chora a morte ou a perda da luta do herói. 2) Os fatos aconteciam em saltos, podendo caminhar para direções diferentes, fazendo com que o espectador também possa pensar em possibilidades diferentes (Idem, p. 33).

Quando Brecht propõe uma não linearidade no espetáculo, mas sim uma peça que surpreenda a cada cena, ele tira o espectador da identificação fazendo com que ele não se deixe levar pelos fatos vividos pelos personagens. Brecht também propõe acontecimentos em saltos, dessa forma o espectador também pode tirar suas próprias conclusões, revisitando todos os fatos. Ao se deparar com a falta de dinheiro não podendo nem preparar uma sopa para o filho, decide lutar ao lado do filho, pelo seu direito de salário. Aprende a ler e passa a acompanhar o filho nos movimentos de luta. Após perder seu filho o objeto principal que a fez querer lutar, passa a abraçar a causa como sua e abre sua casa para outros filhos de luta (Idem). Brecht fala sobre um fato ocorrido com espectadores em seu espetáculo “A Mãe”: O espectador conservará o seu interesse até cair o pano. Tal como o homem de negócios investe dinheiro numa empresa, também o espectador, julga vocês, investe sentimento no herói; pretende recuperá-lo e recupera-lo dobrado. Mas os espectadores proletários da primeira representação não deram pela falta do filho, no fim. Mantiveram o seu interesse. E não foi barbaridade que tal ocorreu (Idem, p. 61).

Brecht compara a reação de dois tipos de espectadores: de um lado, os homens de negócios que ao ir ao teatro procura o sentimento no herói, de outro, os proletários que não deram pela falta do filho, no fim do espetáculo. Um exemplo disso seria um espectador que pensa que tudo está perdido porque o “herói” morreu e sem ele nada mais poderá ser modificado. Mas como seria se o espectador pensasse como aquela mãe que ao invés de apenas lamentar a morte do filho, levantasse a sua bandeira e agregasse todos para uma luta por um ideal? Brecht fala: “Devemos, pois, esforçar-nos para que o maior número possível de espectadores ou de leitores se transforme em entendidos, transformação que já está, aliás, em curso” (BRECHT, 2005, p. 39). Talvez Brecht quisesse que seus espectadores não se prendessem a heróis, mas que pensassem por si e fossem capazes de agir por conta própria. Em seu teatro didático os assuntos não são corriqueiros, mas sociais como: a inflação, a guerra, as lutas sociais, passam a fazer parte do teatro, para que seus espectadores possam se informar de fatos talvez desconhecidos por muitos (Idem, p. 67). O teatro de Brecht era repleto de possibilidades. Nada deveria estar fechado por inteiro. Tanto na vida como no teatro existem diversas possibilidades, basta entender 94 |

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o que esta por trás de todo o contexto histórico, político etc. Era interessante que seus espectadores ficassem surpresos com certas atitudes dos atores. Como se não esperassem determinada fala ou reação. Brecht fala: Pois bem, o elemento de surpresa é um elemento essencial do efeito. O ator tende ao efeito; sua ambição é sadia, ele visa a surpreender. Ele não obterá, contudo, senão o efeito “teatral”, “ilícito”, se entre todas as eventualidades ele não escolher aquela que for lógica. A surpresa é boa quando é a solução lógica que surpreende (Idem, p. 32).

Seus espectadores encontrariam situações que os fizessem pensar em outras possibilidades além das oferecidas pelo ator. A escolha lógica, talvez não esperada por determinados espectadores fosse uma forma de mostrar as decisões reais da vida. Brecht fala também de umas das técnicas do teatro Chinês, o ator espectador de si: Outra medida técnica: o artista é um espectador de si próprio. Ao representar, por exemplo, uma nuvem, o seu surto imprevisto, o seu discurso suave e violento, e sua transformação rápida e, no entanto, gradual, olha, por vezes, para o espectador, como se quisesse dizer-lhe: “Não é assim mesmo?” Mas olha também para os seus próprios braços e para suas pernas... (Idem, p. 77).

Talvez Brecht quisesse com essa técnica que seus espectadores também se olhassem e que não criassem uma distância entre aquele homem que estava representando e o homem que estivesse na plateia. O diálogo era direto: “eu estou falando com você e para você”. Entrar em um espaço onde o que está se passando é algo com que eu me deparo no meu dia a dia e receber um direcionamento do que se passa por trás de escolhas e situações, talvez fosse um pouco incômodo para muitos que não queriam enxergar no teatro uma forma de mudança. Brecht se identificava muito com o trabalho de Piscator, que também viveu e sentiu de perto a destruição de uma Guerra Mundial e a loucura de uma sociedade em constante modificação. Piscator fala: O indivíduo com um destino particular, pessoal, já não constitui o fator heroico do novo drama; esse fator é o próprio tempo, o destino das massas. [...] Não é a relação do homem consigo mesmo nem sua relação com Deus que estão agora no centro de tudo, e sim sua relação com a sociedade. Onde quer que ele apareça, sua ocupação e sua classe o acompanham. Sempre que ele entra em um conflito, seja moral, espiritual, de caráter instintivo, trata-se de um conflito, a sociedade. Se a Antiguidade enfocava o homem em sua relação com o destino, a Idade Média, em sua relação com Deus, o racionalismo, com as forças da emoção... Então o tempo atual não pode divisa-lo senão na sua relação com a sociedade e com os problemas sociais- isto é, como um ser político (PISCATOR apud EWEN, 1991, pp. 134-135). | 95

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Piscator já fala em seus escritos sobre uma mudança do teatro dramático para um teatro político, social, em que seus atuantes fossem a própria sociedade e o homem fosse um ser social. Brecht acreditava que “só seria possível representar o mundo atual no teatro se esse mesmo mundo fosse possível de modificações” (BRECHT, 2005, p. 74). Ficar preso a conceitos e formas antigas de fazer teatro não era a melhor forma de possibilitar um teatro didático, épico e dialético, tal como o proposto por Brecht. Para isso, era necessário envolver novas tecnologias, agregar outras formas de arte. Enxergar o mundo, a política à ciência como colaboradores para se chegar a uma mudança. Brecht caminhava para uma mudança não só do teatro, também de quem ia ao teatro: “seus” espectadores eram alvo de transformação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Tradução de Fiama País Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. EWEN, Frederic. Bertolt Brecht: sua vida, sua arte, seu tempo. Tradução de Lya Luft. São Paulo: Globo, 1991.

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imaginação: dA imagem ao jogo no desenvolvimento humano Thiago Carvalho Meira Universidade Federal de Ouro Preto

A imagem como premissa para a imaginação – fundamentos para os jogos dramáticos Uma criança pede à outra que se sente a cadeira, pois o tratamento vai começar. “Abra bem a boca” – diz, enquanto olha fixamente para algo e, mesmo que nunca tenha experimentado a situação antes, tem todas as respostas para o que procura. A “consulta” continua com pedidos de agachamento, mãos para alto, piscar os olhos. “- Tome o remédio todos os dias e vai ficar boa!” é o recomendado. E antes que a prescrição fique pronta e finde o encontro, o paciente se coloca: “- Minha vez de ser o médico!”. Começa uma nova “consulta”. Quem pode contradizer que ali, naquele momento, houve uma consulta “de verdade”? Falar da imaginação é falar de uma verdade subjetiva, guardada no íntimo da memória corporal que foi preenchida pela vivência e transformada pela criação, pela necessidade e pela própria realidade. Transformada pelo desejo e manifestada na brincadeira, ou no jogo infantil, há um novo olhar sobre o real, no entendimento daquilo que ocorre ao redor. Muitas são as fontes de imagens que alimentam e rodeiam um sujeito, mas a imaginação o insere no campo da repetição ou da transformação dessas imagens ou mesmo na criação. Essa potência subjetiva é entendida como propulsão para o jogo, para o desenvolvimento humano e para a criação artística. Assim, a imaginação é fundamental para a criação, que tem pontos de ligação entre a vivência infantil, o desenvolvimento e relacionamento do jovem e do adulto em seus contextos ou realidades diversas e ainda é a base para a criação artística. Quando Italo Calvino (1990) trata da “visibilidade”, uma de suas propostas para este milênio, a respeito da literatura, o autor mostra o quão importante se torna a imaginação e a transposição da realidade para o imaginário no trabalho artístico. Sua conferência, apesar de dedicada à literatura pode, facilmente, ser compreendida à luz de outras linguagens artísticas, em especial o teatro, por sua capacidade de criar imagens e transcender a realidade. Na “visibilidade” Calvino convida o leitor a se reconhecer enquanto ser criativo, inventivo e capaz de, por sua imaginação, entender, ou melhor, fruir uma obra de arte. Tão importante para o artista criador, a “visibilidade” também toca ao espectador, ou ao leitor, ou qualquer pessoa que busque em qualquer trabalho artístico uma fonte, ou ponte, para se transportar na realidade cotidiana, em seu próprio universo fantástico. Com essa compreensão, pode-se dizer que a arte está no espaço entre criações, entre imaginações ou na relação entre artista e espectador criadores. Se com esta análise são convidados leitores/espectadores a imaginar novas realidades, buscando nela a compreensão para os fenômenos da realidade, no jogo, em es| 97

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tudos de vários artistas, estudiosos da educação e da psicologia, também encontramos o fator inventivo e criativo como a busca pela compreensão do real. A transposição do real para o imaginário é, na verdade, uma necessidade humana, muito ligada à criança e à aprendizagem, mas, facilmente compreendida no trabalho criador do artista, em especial do ator, de compreensão do cotidiano vivenciado pelo sujeito. Se o jogo para a criança é uma necessidade evolutiva, para o artista é uma necessidade de expressão e para o espectador proporciona uma nova compreensão daquilo que o rodeia, a realidade. Todo este processo só é possível pela capacidade imaginativa do sujeito e pela busca, na arte, de elementos que são composições visíveis, tal como proposta por Calvino em suas investigações. De volta à cena das crianças “médicas” e será possível compreender essa relação à luz do pensamento de Freud (1925), que em uma conferência relacionou a arte do escritor criativo à faculdade de jogar da criança. Condição ou brincadeira diretamente relacionada ao jogo teatral, estudo básico de atores e artistas, fazendo parte de sua formação, mas também presente em oficinas livres de teatro, em que o foco não é a formação artística, mas o reconhecimento subjetivo e o desenvolvimento humano. Analisando o poeta em comparação à criança que joga, Freud mostra quão amplo e vasto deve ser o olhar daquele que observa uma brincadeira ou um jogo infantil, indicando ali aspectos fundamentais ao desenvolvimento da imaginação. Será que deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade imaginativa? A ocupação favorita e mais intensa da criança é o brinquedo ou os jogos. Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e dispende na mesma muita emoção. A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que a criança catexiza seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real (FREUD, 1925, p. 77).

Ao colocar esses termos em questão, exprime a forte ligação entre eles, o que permite a transformação de um ao outro. O real nutre a imaginação e a brincadeira, ao passo que o jogo permite novas experiências em situações da realidade. Ao mesmo tempo em que se opõem, se mesclam no desenvolvimento subjetivo. Tal necessidade é explicada pelo autor ao dizer que a fantasia é movida pelo desejo. Um desejo que pode ser de correção da realidade. Também no adulto é possível observar esse desejo, de transformação da realidade, mas, como aponta o autor, com a idade pode ocorrer entraves, que podem tolher as manifestações da imaginação. Tais obstáculos são menos frequentes nas crianças que jogam e se manifestam espontaneamente, criando, recriando e transformando aquilo que as cercas pela necessidade e pelo desejo. Na atividade imaginativa presente, passado e futuro estão ligados pelo fio do de98 |

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sejo (FREUD, 1925, p. 79). Isso permite dizer que o jogo permeia toda a constituição subjetiva e não se restringe à infância. Buscando compreender este texto, pode-se concluir que a pulsão para a imaginação (criação) acontece no presente e remete o sujeito à lembrança (geralmente da infância) na qual esse desejo foi experienciado. Ao relacionar desejo, infância e pulsões (sexuais), Freud cria as bases da psicanálise e o estudo dos estágios pelos quais o sujeito vive: fase oral, fase sádico-anal, fase fálica, período de latência e fase genital. Freud dedicou alguns anos de estudo acerca da imaginação, usando o termo alemão Phantasie, traduzido para o francês como fantasme (PERES, 1999, p. 69). Ao tratar este tema, o autor busca compreender a formação imaginária e a atividade imaginativa e suas reverberações nas ações subjetivas. Ana Maria Clark Peres (1999), traçando um histórico desse estudo freudiano, explica como seu pensamento evolui, ao debruçar-se sobre o termo, relacionando-o à histeria, ao inconsciente e também às fases do desenvolvimento infantil. Na revisão de Peres (1999), a primeira concepção freudiana sobre a phantasie é a de que ela estava ligada ao que a criança já havia vivido (presenciado, ouvido, visto), porém compreendido algum tempo depois. Sucedendo este estudo, esclarece seu ponto dizendo ser a phantasie determinada por uma combinação inconsciente entre coisas vividas e ouvidas. Seu estudo chega ao ápice quando ele abandona parte de sua crença sobre o que acreditava ser a neurose e mostra a phantasie, ora como um sonho diurno pré-consciente, ora uma atividade totalmente engendrada no inconsciente. Voltando ao campo da neurose, a contribuição desse estudo da phantasie ajuda na compreensão de que por ela o pensamento humano (por meio da imaginação) consegue criar defesas contra certas lembranças, criando realidades subjetivas, depurando ou sublimando cenas presenciadas (PERES, 1999, p. 71). Diante desse estudo, que perdura e se renova por alguns anos, Peres (1999) apresenta um conceito para a Phantasie (imaginação): Em síntese, nos últimos anos do século XIX seriam essas as posições de Freud quanto à Phantasie. Apresenta-se como ficção (consciente) no devaneio ou sonho diurno – cenas, episódios que o sujeito inventa a si mesmo e a si mesmo conta; Inconsciente, está na contradição com a aparência, como na lembrança encobridora; É também o resultado das elaborações em análise, uma espécie de conteúdo latente a ser revelado no sintoma (Idem, p. 72).

Para o psicanalista, esta “deformação” da realidade externa não deve ser considerada inferior à realidade tida como “verdadeira”. Também ela é de fundamental importância para a compreensão do sujeito que se representa movido por essas imagens. No bojo da imaginação, e sua plena relação com o desenvolvimento humano, torna-se importante o diálogo com o pensamento foucaultiano, diálogo este que pode ser potencializado com as contribuições já apontadas de Freud. Suas observações se tocam quando observa-se que Foucault (1992) fala da imaginação enquanto substrato para a | 99

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representação. Pode-se compreender em sua obra que o homem, ao buscar ordenar aquilo que o rodeia, ou seja, compreender sua realidade, acaba por apropriar-se da ação imaginativa. Um tanto delicado aproximar estas visões, mas com um olhar apurado é possível perceber que para encontrar a ordem, o sujeito se vale da representação e da semelhança daquilo que observa. Realidade e representação, tidas como semelhantes permitem-no ordenar e compreender seu contexto e seu estado. Neste liame, lugar propício ao surgimento da semelhança, está presente também a imaginação, apontada pelo autor como fundamental para pulsão de criação das representações. Nessa posição de limite e de condição (aquilo sem o que e aquém do que não se pode conhecer), a semelhança se situa ao lado da imaginação ou, mais exatamente, ela só aparece em virtude da imaginação e a imaginação, em troca, só se exerce apoiando-se nela. Com efeito, se supõem, na cadeia ininterrupta da representação, impressões por mais simples que sejam, e se não houvessem entre elas o menor grau de semelhança, não haveria qualquer possibilidade para que a segunda lembrasse a primeira, e a fizesse reaparecer e autorizasse assim a sua representação no imaginário; as impressões se sucederiam na mais total diferença: tão total que não poderiam sequer ser percebida, visto que uma representação jamais teria o ensejo de se estabelecer num lugar, de ressuscitar outra mais antiga e de se justapor a ela para dar lugar a uma comparação; a tênue identidade necessária a toda diferenciação sequer seria dada. A mudança perpétua se desenrolaria sem referência na perpétua monotonia. Mas, se não houvesse na representação o obscuro poder de tornar novamente presente uma impressão passada, nenhuma jamais apareceria como semelhança a uma precedente ou dessemelhante dela. Esse poder de lembrar implica ao menos a possibilidade de fazer aparecer como quase semelhantes (como vizinhas e contemporâneas, como existindo quase da mesma forma) duas impressões, das quais uma porém está presente, enquanto a outra, desde muito talvez, deixou de existir. Sem imaginação não haveria semelhança entre as coisas (FOUCAULT, 1992, p. 84).

Essa abordagem suscita aquilo que foi apontado em Freud, ao atribuir à imaginação uma dupla função: a de motivadora da criação e também a de elo entre passado, presente e futuro. Uma lembrança pode não ser a realidade factual, no entanto, pela ação imaginativa ela adquire o status de semelhante, e passa a ser uma representação. Neste fenômeno é que se instaura o desenvolvimento, a criação, a descoberta, a ordenação14. Com um olhar atento ao estudo de Foucault, entende-se que as Ciências Humanas somente se configuram quando o sujeito adquire a faculdade de se representar. Nesse ponto fundamental, entende-se a imaginação como elo entre tempos, como propulsora 14 Michel Foucault, no livro As palavras e as coisas, escrito em 1966, faz um estudo filosófico acerca da evolução do pensamento humano tendo por base a gênese do próprio pensamento, a taxonomia, a relação das ciências biológicas, econômicas e da linguística com as diversas classificações e suas relações e desembocam na necessidade do homem de se representar. Para este estudo utiliza-se seus apontamentos sobre a imaginação, a origem das ciências humanas e a necessidade do ser humano de se representar, além de seu olhar sobre a psicanálise.

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da criação, fortemente associada à semelhança, e também uma potência de representação subjetiva. A imaginação, assim, não busca a ordenação clara e objetiva, ao contrário, suscita as semelhanças entre as coisas da natureza e da realidade, fornecendo imagens para uma recriação. É o que mostra Foucault no seguinte excerto: De fato, esses dois conceitos funcionam para assegurar a interdependência, o liame recíproco da imaginação e da semelhança. Decerto que a imaginação não é, em aparência, se não uma das propriedades da natureza humana, e a semelhança um dos efeitos da natureza. Mas, seguindo a rede arqueológica, que confere suas leis ao pensamento clássico, vê-se bem que a natureza humana se aloja nesse tênue extravasamento da representação que lhe permite se reapresentar (toda a natureza humana está aí: apenas estreitada ao exterior da representação para que se apresente de novo, no espaço branco que separa a presença da representação e o “re-” de sua repetição). [...] Natureza e natureza humana permitem, na configuração geral da epistémê, o ajustamento da semelhança e da imaginação, que funda e torna possíveis todas as ciências empíricas da ordem (Idem, p. 86).

A correção da realidade pelo jogo, em representações e semelhanças ao que foi vivenciado, é faculdade cara à criança e ao seu desenvolvimento. Isso também ocorre ao ator que busca a verdade em sua encenação. Da mesma forma é importante a qualquer pessoa que busca se recolocar diante da realidade: uma correlação imaginativa na busca de semelhanças. Por isso, este estudo caminha na direção de observar o jogo como base para o desenvolvimento e não apenas como uma atividade de iniciação teatral. Trata-se de olhar atentamente para o fenômeno da representação subjetiva daquilo que é, ou já foi, vivenciado. Este fato, por si só, permite compreender o ser humano no que tange a manifestação criativa e imaginativa. Uma outra maneira de entender esta atividade seria o conceito de “fisicalização” (SPOLIN, 1987), acerca de uma das vertentes do jogo teatral. Analisando o jogo com a participação de crianças, a transposição do real para o imaginário, bem como o caminho contrário, se constatará que são facilmente percebidos nos primeiros anos evolutivos. Representam, na verdade, uma necessidade de adaptação à convivência humana. Ver uma criança puxar uma caixa como se fosse um carro, ou conversar com uma boneca, ou se fazer de portão de um grande castelo que se abre para outros passarem são exemplos de jogos imaginários e simbólicos. O jogo acaba por colocar a criança num estado de observação da realidade e de superação daquilo que ainda não compreende. Em outras palavras, a criança joga e experimenta em sua própria “realidade” fantástica, as possíveis resoluções de enfrentamento dos problemas reais. Neste ponto, pode-se introduzir o pensamento de Didi-Huberman (1998), que traça um valoroso estudo acerca do universo da imagem, exemplificando também seu ponto de vista com as simples ações infantis, ou com objetos transformados simbolicamente. O autor francês, em seus estudos acerca das imagens artísticas, fala sobre uma trama que se faz entre objeto e olho, olhante e olhado, no tempo e no espaço. Neste meio per| 101

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cebe-se o poder da dupla distância, que é a capacidade de um objeto olhado, olhar de volta aquele que o vê, que o observa. O que Huberman deixa claro nesse desvelamento da dupla distância é a capacidade desse objeto, ao olhar em retribuição àquele que o observa, criar e desenvolver novas imagens no imaginário do observador. Nesta distância, que não é vazia, percebe-se o poder da aura, que para Benjamim é a obra olhada, olhando de volta. Este olhar de volta que permite um desdobrar como pensamento. Nessa distância reconhece-se o poder da memória (considerada uma memória involuntária), que são indicadas nas palavras de Huberman, ao citar o próprio Benjamim: Entende-se por aura de um objeto oferecido à intuição, o conjunto de imagens que, surgidas da mémoire involuntaire [em francês no texto], tendem a se agrupar em torno dele. Aurático, em consequência, seria o objeto cujo a aparição desdobra, para além de sua própria visibilidade, o que devemos denominar suas imagens, suas imagens em constelações ou em nuvens, que se impõem a nós como outras tantas figuras associadas, que surgem, se aproximam e se afastam para poetizar, trabalhar, abrir tanto seu aspecto quanto sua significação, para fazer delas uma obra do inconsciente (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 149).

Neste ponto Huberman introduz o poder do simbólico e sua capacidade de “tecer essa trama” constituída pela aura do objeto olhado. Ver o objeto em sua forma única ou transformá-lo. Então ele desfaz a noção do ter (objeto) para ser, conferindo-lhe qualidade de quase sujeito. A aura confere ao objeto, pelo valor de culto, o poder da experiência. O longínquo é inacessível assim como o objeto de culto não pode ser acessado. A importância das ilusões garante a aura do objeto, que sem elas entra em declínio. Na modernidade vemos esse fenômeno acontecer com o poder da proximidade, da reprodutibilidade técnica e das imagens industrializadas que fecham as possibilidades de ilusão. O que Didi-Huberman busca analisar é a significação que pode assumir a natureza cultural do fenômeno aurático. Está no debate entre ver, crer e olhar. Por esse motivo o autor busca a origem da palavra “culto” como mecanismo primeiro para sua análise. Culto – verbo do latim colere – designou a princípio simplesmente ato de habitar um lugar e de ocupar-se dele, cultivá-lo. É um ato relativo ao lugar e à sua gestão material, simbólica ou imaginária: é um ato que simplesmente nos fala de um lugar trabalhado (Idem, p. 155).

Neste sentido é preciso secularizar a aura e tirá-la da noção de culto religioso da epifania. Esse valor de culto (fora da religião), Didi-Huberman mostra que há no jogo infantil: Entre bonecas e carretéis, entre cubos e lençóis de cama, as crianças não cessam de ter “aparições”: isto significa que elas sejam devotos? Por certo que não, se elas jogam com isso, se manejam livremente todas as contradições nas quais a

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP linguagem, aos poucos descoberta em suas funções oposições fonemáticas e significantes, lhes abre os olhos, chumbando de angústia sua alegria “infantil” ou fazendo rebentar de rir sua angústia diante da ausência [...] (Idem, p. 158).

A distância que a aura proporciona nos atinge e nos toca. Esta aura re-simbolizada dá origem ao sublime. Ao ser tocada pela aura do que nós olhamos e somos olhados abre-nos uma dimensão essencial do olhar, emergindo um “jogo assintótico de próximo (até o contato, real ou fantasmado) e do longínquo (até o desaparecimento e a perda, reais ou fantasmados)” (Idem, p. 161). Freud, Foucault e Huberman, cada um em sem tempo, mostram valiosos apontamentos que ajudam a compreender que a imaginação é fundamental para a constituição do ser humano e que esta é alimentada pela vivência do/no real. O inconsciente, como repositório das experiências é, ao mesmo tempo, propulsor das lembranças e criações, deve ser o carro-chefe do estudo acerca da imaginação. Com a base oferecida por esses autores, é possível observar a manifestação da imaginação subjetiva como uma maneira de entender o sujeito e sua forma de se colocar socialmente. Sabendo que a imaginação está paralela à semelhança e ao mesmo tempo é resultado de um ambiente em que o olhado, olha em retribuição e deixa uma marca no sujeito. Percebe-se que a manifestação da imaginação no jogo tem mais significados do que pode parecer em uma brincadeira. É um indício de compreensão e transformação a realidade, presente tanto na necessidade da criança de brincar, como na do artista de criar. Conclusão Começar um estudo sobre jogo se debruçando sobre as teorias da imagem é como buscar um conhecimento de base. Porém, a base aqui esboçada garante um olhar posterior mais cuidadoso para a prática do jogo, entendendo-a como uma manifestação humana necessária ao seu auto-conhecimento e compreensão daquilo que o cerca. Em outras palavras, é fundamental ao seu desenvolvimento, seja ele técnico, cognitivo e humano. Trazer cruzamentos entre a psicanálise de Freud, a filosofia de Foucault e a pesquisa de Didi-Huberman acerca dos olhares artísticos a partir de esculturas, propiciou encontrar seu ponto comum: a imaginação. Isso permite a preparação de um campo de estudo e pesquisa a ser desenvolvida com o foco no ser subjetivo que, ao se colocar no mundo, se manifesta, cria e compreende a realidade segundo sua própria experiência: uma experiência vivenciada no jogo, nas mais diversas circunstâncias. Uma experiência é alimentada por imagens e por imagens se transforma, criando rupturas no real por meio da imaginação. Mas, sobretudo, é uma experiência que acompanha o homem desde a sua infância e que é de importância única ao seu desenvolvimento, à sua socialização, ao seu posicionamento enquanto ser crítico e reflexivo. O jogo não é exclusividade da criança, mas ela o domina com a espontaneidade da brincadeira. Espontaneidade que pode ser observada também no adulto que se entrega ao jogo e busca por ele se projetar para a realização do desejo. | 103

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Antes de encontrar qualquer diferenciação entre atores e não-atores, termos ainda complexos dentro dos estudos acadêmicos em Artes Cênicas, este artigo mostra a relação entre seres humanos em seu tempo e seu espaço. Compreende que cada indivíduo, por meio das imagens que percebem, recebem e transformam da realidade, projetam suas necessidades de linguagem, comunicação, desejo e posicionamento subjetivo. Jogar é, então, mais do que uma brincadeira infantil: é uma forma de projetar as imagens que seu imaginário produz a todo momento e por elas interpretar a realidade segundo a sua própria representação.

RERERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995. PERES, Ana Maria Clark. O infantil na literatura: uma questão de estilo. Belo Horizonte: Minguilim, 1999. RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar: práticas dramáticas e formação. São Paulo: CosacNaify, 2009. SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1987. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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TEORIA E PRÁTICA DO ESPECTADOR TEATRAL: O CONCEITO DE ESPECTADOR EM STANISLÁVSKI Cristiana da Silva Norberto Universidade Federal de Ouro Preto

Introdução Esta pesquisa consiste em elaborar uma aproximação ao conceito de Stanislávski a respeito do espectador teatral. Esta busca se embasa em procurar, nos livros deste autor, “garimpando” sobre suas minúcias, ideias referentes ao espectador teatral. É notória, em seus livros, a grande preocupação de Stanislávski a respeito das técnicas para o ator, da excelência e do seu rígido trabalho nesta investigação de uma técnica que aproximasse este ator de seu espectador. Em seus livros, por mais de uma vez, o autor declara que sua procura seria incansável e que a técnica buscada pelo ator seria eterna. Além disso, estes atores deveriam trabalhar para o espectador, pois ele seria a razão para o aperfeiçoamento dessa técnica. Talvez seja o espectador o maior beneficiado por este trabalho de Stanislávski. Constantin Stanislávski Ele foi ator e diretor. Trouxe uma inovação à arte da sua época, aplicando uma ousada técnica em tempos em que o formato do teatro era declamado. Para Stanislávski, esse teatro não soava realista. Stanislávski prezava por teatro de qualidade, onde o público pudesse ver, se emocionar e acreditar no trabalho do ator. Para alcançar este trabalho, o ator deveria se empenhar, a fim de encontrar a medida certa de seu personagem. Este empenho e dedicação no trabalho do ator, feito por Stanislávski, começou muito cedo. Ele sempre esteve em contato com artes. Ainda jovem repartia seu tempo entre os negócios da família e o seu amor pelo teatro (STANISLÁVSKI, 1989). Com isto este autor foi se aprimorando e descobrindo técnicas que são usadas até os dias de hoje. Stanislávski fundou o Teatro de Arte de Moscou, com o intuito de partilhar seus conhecimentos sobre teatro e aperfeiçoar e dar vida ao teatro. Deste trabalho, escritos pelo próprio Stanislávski, existem três livros que perpassam gerações a respeito de suas técnicas (STANISLÁVSKI, 1970, 1980, e 1986). E, também, em Minha vida na arte, sua autobiografia (STANISLÁVSKI, 1989), que é de extrema importância para esta pesquisa de iniciação científica, pois nela Stanislávski declara suas interrogações pessoais sobre o espectador teatral. Como foi dito acima, a busca deste autor era clarificar ao ator sobre as técnicas que deveria ter para passar uma mensagem clara ao espectador, sem cometer exageros. Na passagem do livro Minha vida na arte, há uma declaração.

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Caminhos da pesquisa em artes cênicas Não se precipite! Seja mais claro! Será que você pensa que isso vai me divertir mais como espectador? Ao contrário, para mim é enfadonho porque não estou entendendo nada. Essa agitação nos pés, esse agitar dos braços, o vaivém e os gestos inumeráveis estão atrapalhando a minha visão. Estou com vistas turvadas e os ouvidos pipocando. O que é que há de divertido nisto? (STANISLÁVSKI, 1989, p. 155).

O que Stanislávski queria era a verdade do ator, que ele fosse claro a suas ações no palco, para o espectador que estava testemunhando seus atos. Como dito anteriormente, Stanislávski sempre esteve envolvido com as artes e sempre prezou por um bom teatro. Herança do avô, que era envolvido com artes, os netos também se envolveram, mas a Stanislávski, a arte que mais chamou sua atenção foi teatro. Se envolveu com grupos amadores e mais tarde iria trabalhar no Teatro de Arte de Moscou. Ainda adolescente foi ver uma peça de teatro e ficou tão impressionado com a atuação de ator cujo nome ele adotou para si (Idem, p. 83). Já no Teatro de Arte de Moscou, se envolveu em muitas montagens de autores como Shakespeare, Sófocles, Tchekhov e também Ibsen. São alguns autores de renome cujos textos fez montagens. Para exemplificar a genialidade deste artista em sua trajetória, ele quis ser um artista completo e se evolveu com circo, teatro de marionetes, ópera, e quanto as peças por ele montadas, algumas das conhecidas foram de autores como Tchekhov: A Gaivota, Tio Vânia, As três irmãs, O jardim das cerejeiras; e Shakespeare: Otelo (Idem). Uma pergunta surge quando se pensa em Stanislávski: de onde vem toda esta genialidade? É simples, além dele ter sempre se envolvido com produções artísticas, e ter vivenciado sua carreira com grandes nomes que se perpetuam até os dias de hoje, como Maeterlinck, Craig, Gorki, pessoas envolvidas com as técnicas teatrais que trabalharam ou se comunicaram juntos. Stanislávski foi juntando experiências do que ia ser chamado mais tarde de “sistema” formulado por ele. Na passagem do livro Minha vida na arte: O programa da atividade que se iniciava era revolucionário. Nós protestávamos contra a velha maneira de representar, contra a teatralidade, contra o falso pathos, a declaração e a afetação cênica, contra o convencionalismo na montagem, as decorações e o estrelismo que prejudicava o conjunto, contra toda a estrutura dos espetáculos e o repertório deplorável dos teatros daquela época (Idem, pp. 264-265).

Assim que surgiu, por parte de Stanislávski e colaboradores, sua perseguição por uma técnica que alcançasse o ator e atingisse o espectador. O que possivelmente Stanislávski queria com a técnica do ator é uma seriedade por parte dos atores. Uma vez que Stanislávski era um diretor muito exigente, ele estabelecia esta seriedade dos seus aprendizes para atingir um público, que possivelmente era de igual maneira exigente. O espectador que ele parecia conhecer era o russo, assim descrito: O homem russo, como nenhum outro, é contagiado de paixão pelo espetáculo. 106 |

II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP E quanto mais este se envolve e emociona a alma, tanto mais o atrai. O espectador russo simples gosta mais do drama onde se pode chorar, filosofar sobre a vida e ouvir palavras inteligentes do que do vaudeville rasteiro, após o qual a gente deixa o teatro de alma vazia (Idem, p. 497).

Se o espectador russo, na visão de Stanislávski, queria se emocionar e se contagiar pela paixão do espetáculo, havia outro espectador, ainda desconhecido dele, que foi nomeado adiante por ele mesmo de “novo” espectador. Tudo aconteceu com advento da Revolução Russa, que com o intuito de acalmar a população sobre as mudanças no país, ficou a cargo do teatro este trabalho de distrair a população. Algumas medidas foram tomadas, como a abertura dos teatros ao público, tendo sua programação gratuita (Idem, p. 496). Com esta medida, Stanislávski foi surpreendido com o novo espectador e seus comportamentos, tal como relata: Ontem frequentava o teatro um público misto, entre o qual havia também intelectuais, hoje estávamos diante de uma platéia absolutamente nova, que não sabíamos como abordar. E nem ela sabia como vir a nós e como viver conosco no teatro. É claro que no primeiro momento o regime e o clima do teatro modificaram-se imediatamente. Tivemos de começar tudo de novo, de ensinar um espectador primitivo em relação à arte a permanecer em silêncio, não conversar, sentar-se a tempo, não fumar, não comer nozes, tirar o chapéu, não trazer salgadinhos nem comê-lo na plateia (Idem, p. 500).

Stanislávski teve que parar o espetáculo para “educar”, conversando com os espectadores que esta conduta não era bem-vinda, a ponto de agir com certa rispidez, pois o ocorrido se deu mais de uma vez (Idem, ibidem). Mas, dentre estes espectadores havia os que emocionavam com esta arte pouco usada por eles, como seu amigo camponês: Lembra-me aqui meu amigo camponês, que vinha uma vez por ano a Moscou com o fim específico de assistir ao repertório do nosso teatro. [...] Assistindo ao espetáculo, ele ora corava, ora empalidecia de êxtase e emoção, a ao término não conseguia adormecer e era obrigada a andar pelas ruas horas a fio, tentando arrumar seus sentimentos e ideias em sua estante. Ao voltar para casa conversava com minha irmã, que o esperava e ajudava no trabalho intelectual desusado para ele. Após assistir a todo o nosso repertório, tornava a guardar o camisão de seda, as pantalonas e botas novas até o ano seguinte, amarrava a trouxa, vestia seu traje rural de trabalho e voltava por um ano inteiro para casa, de onde escrevia inúmeras cartas filosóficas que o ajudavam a continuar vivendo com a reserva de impressões levadas de Moscou. Acho que espectadores desse tipo não eram poucos no teatro. Sentíamos a sua presença e a nossa obrigação artística diante deles (Idem, p. 498).

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Apesar da pouca cultura deste camponês, os relatos transcrevem uma tamanha sensibilidade deste sujeito e ainda pelos registros que dizia que havia mais sujeitos como ele. Mas o teatro com advento da Revolução, esta arte que ajudou acalmar o ânimo da população, se viu prejudicado, perdendo seus artistas, já que a maioria saiu do país em precárias condições financeiras, segundo os relatos a seguir: O teatro que ajudou a acalmar o ânimo da população teve consequências, por respingos da revolução. “Muitos artistas foram forçados a” trabalhar fora do teatro, alguns tiveram que migrar para outros países, e o teatro foi obrigado a receber, o que Stanislávski chamou de “novos atores”, eram colaboradores não preparados para assumir sua posição no teatro, mas que faziam por amor (Idem, p. 503).

Nesta fase da revolução, os artistas profissionais foram trabalhar longe dos teatros, e os “novos artistas”, que eram artistas com pouca experiência com teatro, apesar da pouca experiência, estúdios de teatro eram abertos por eles. O que causava grande preocupação, pois com lançamento de seus trabalhos havia uma apreensão por causa dos “novos espectadores”, devido a sua sensibilidade, poderia sofrer prejuízos com estes trabalhos expostos a eles. Mas também nesta época surgiram muitos estúdios, com atores que foram lecionar, os artistas já acostumados com a rotina do teatro achavam trabalho no cinema e concertos, mas infelizmente os menos preparados se metiam a lecionar. Com isto nesta mesma época surgiram trabalhos de péssima qualidade, aos quais sem um devido cuidado chegaram aos espectadores. Foram tempos difíceis e por milagre o teatro de artes de moscou sobreviveu (Idem, p. 503).

O advento da Revolução que trouxe ao meio social muitas preocupações, mas uma que especial preocupava Stanislávski era o rumo que a arte poderia tomar, com os novos artistas que ainda não tinham amadurecido e que lançavam produções que precisariam de tempo para amadurecer. Os novos artistas, que “agrediam” a arte com suas criações, lançavam produções sem um cuidado, sem zelo, criações que pediam mais tempo de ensaio. Nesta passagem refere-se dizendo: Espetáculos com fim utilitário de alcance geral, fazendo as personagens representar conquistas científicas, etc. Por exemplo: a malária assolava a cidade, e era preciso popularizar os meios para combatê-la. Para tanto montavam um balé no qual figurava um viajante que adormecia por imprudência num canavial pantanoso, representado por mulheres bonitas e seminuas que balançavam o corpo com cadência. Picado por mosquito ágil, o viajante dançava sobe efeito da febre e chegava o médico que dava quinino ou outro remédio, e diante de toda a dança do doente sanava (Idem, p. 522).

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Criações como estas citadas acima, usando imagens apelativas, mulheres seminuas, cheias de clichês. Período dificultoso que o teatro acabou sendo prejudicado com a imagem destes novos artistas, sendo incertos os rumos do teatro, levando em conta o rumo da Revolução, que impedia os artistas de trabalhar. Espectador Segundo o dicionário Aurélio, espectador é o que testemunha, aquele que assiste. Por muito tempo esquecido ou considerado quantitativamente negligenciável, o espectador é, no momento, o objeto de estudo favorito da semiologia ou da estética da recepção. Falta, todavia, uma perspectiva homogênea que possa integrar as diversas abordagens do espectador: sociologia, sociocrática, psicologia, semiologia, antropologia etc. Não é fácil apreender todas as implicações pelo fato de que não se poderia separar o espectador, enquanto indivíduo, do público, enquanto agente coletivo. No espectador- indivíduo passam os códigos ideológicos psicológicos de vários grupos, ao passo que a sala forma por vezes uma entidade, um corpo que reage em bloco (participação) (PAVIS, 1999, p. 140).

Pensando neste espectador que assiste, parece ser pacífico que ele contempla sem participar. Mas pelo contrário, sua presença para o ator é imprescindível, o que não o torna passivo, mas participante da ação, ainda que inerte na cadeira. Este espectador que espera sempre algo quando se senta para apreciar uma peça, ele quer ser tocado, ele quer se envolver, quer criticar, que opinar, quer modificar a cena, ele quer aplaudir para manifestar que algo o atingiu, e eles aplaudiram para manifestar que as ações testemunhadas atingiram seu alvo. O espectador participativo tem todas as características acima, mas este espectador está raramente nas poltronas do teatro. E fica a pergunta: por onde este espectador anda? Sem ele não há espetáculo, pois são direcionados a ele. Em suas mãos está o julgamento das ações feitas no palco! Quais são as razões de sua ausência? Entre as infinitas razões de sua ausência, podemos pontuar, segundo o livro Pedagogia do espectador, que nos anos 1970 já era alarmante a ausência deste espectador, se um espetáculo enchesse cinquenta poltronas, seria esta a média de público. Uma situação, ainda pior, era se um teatro fosse fechado, fato este que passaria despercebido ao espectador (DESGRANGES, 2010, p. 19). Os dados são assustadores, o problema é que o fato ainda existe. Naquela época, ainda segundo Flávio Desgranges, a concorrência com a televisão seduzia ao público e também ao ator, que por razões financeiras era levada por ela. Outro sedutor era o cinema estrangeiro, com suas produções espetaculares (Idem, p. 22). Nesta época era impossível não se emocionar com filmes, como: The Godfather, Star Wars, A vida de Sherlock Holmes e Elvis é assim. O cinema com seus efeitos espetaculares, recursos desde então bem à frente do teatro. | 109

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Já nos anos 1990, a problemática seria os custos do ingresso, o aumento da violência, a falta de textos que despertassem o interesse do público e somando-se a falta de formação de novos espectadores. Não me refiro a campanhas “Vá ao teatro”. Mas me refiro à educação de espectadores capazes de dominar os signos do teatro. Um lugar para se começar a frequentar o teatro, através do veículo comum a todos é a escola (DESGRANDES, 2010). A importância desta arte na escola é abrir o campo do conhecimento de elementos estéticos do teatro (figurino, caracterização, cenografia, paletas de cores, entre outros elementos). Não somente de reconhecer, mas de apreciar. A frequência ao teatro e conhecimentos apresentado pela escola permite este aluno a ter seu gosto apreciado e desperte sua opção pelo teatro. Se pouco se frequenta, surge uma dificuldade enorme do entendimento da peça, e durante o acontecimento das apresentações se perderem elementos preciosos. Quando se tem um mediador no final da peça, é possível resgatar um pouco essas perdas. E atrair este público para teatro. Este espectador precisa ter meios para criar e afinar sua comunicação com o teatro. Desgranges afirma que entre os doze a quinze anos é a idade propicia para acontecer à mediação. Depois desta fase, cria-se uma dificuldade na recepção, pois o adolescente é facilmente seduzido pelo veículo da televisão, que oferece uma programação onde é “vomitada” milhares de imagens prontas, que não permite impor uma atitude interpretativa (DESGRANDES, 2010). A televisão tem uma extensa programação, que permite rupturas, sem causar prejuízo, ainda ao espectador pode se dedicar a mais de uma atividade enquanto os programas estão sendo exibidos. No teatro, esta atitude é condenada, pois anularia o jogo da plateia com o palco. Não criaria questionamentos e reflexões acerca das encenações. O teatro não vende imagens como a televisão faz, ele quer trazer questionamentos. Conclusão Talvez seja possível afirmar, com os relatos acima, que Stanislávski tinha uma grande preocupação com o espectador e esperava do ator uma conduta impecável. Esperava do ator uma total dedicação, uma vez que seu treinamento tinha por objetivo conquistar o espectador. É bem verdade que é necessário oportunizar meios para que o espectador se forme paulatinamente e que crie gosto pelo teatro. Não podemos esperar que magicamente ele entre no teatro por acaso, assista a uma peça e se apaixone e de lá não saia mais. Neste século, em que um milhão de informações são vomitadas na face do espectador, todos os dias, é necessário conscientizar o papel do teatro. Ainda quero levantar um questionamento: se o teatro não é necessário a estes que não o frequentam, então, para este espectador não existe o espectador teatral. O que se torna uma questão é como fazer este teatro se tornar um elemento como H20 e O2, indispensáveis à vida das pessoas. Como o teatro poderia ser um acontecimento ou um objeto achado pelo espectador, 110 |

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o qual ele questiona como conseguiu viver sem ele até o momento? São estes os desafios encontrados por esta arte. Que esta arte possa produzir espectadores como o camponês citado por Stanislávski, que escrevia sobre suas peças o ano inteiro, para vivenciar mais uma vez o único momento vividos junto ao teatro a cada ano. A formação de espectador é delicada, pois em tempos de teatros completamente vazios, criar meios para que a recepção aconteça e tornar este espectador ativo é um desafio. Apreciar a lógica da teatralidade também significa fazê-lo participante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2010. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. Jacó Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. STANISLÁVSKI, Konstantin. Minha vida na arte. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

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Encenação e processo de criação

DAS PELES EM PROCESSO: A CONSTRUÇÃO DO ESPETÁCULO ORACIÓN DA REPERTÓRIO ARTES CÊNICAS E CIA. Antonio Apolinário da Silva Universidade Federal de Ouro Preto

Das nomenclaturas às peles em processo O poeta à procura de uma pele de palavras para tecer sobre a página em branco. A pele é permeável e impermeável. Ela é superficial e profunda. É veraz e enganadora. (DIDIER ANZIEU)

Meu primeiro contato como o termo “traje de cena” deu-se em 2009, com o catálogo e a exposição do estilista francês Christian Lacroix: trajes de Cena, realizada pela FAAP – Fundação Armando Alvares Penteado –, em São Paulo. O segundo foi em 2012, com a publicação do livro Diário de pesquisadores: traje de cena, de autoria de Fausto Viana e Rosane Muniz. E já faz algum tempo que tenho pensado sobre a imagem do figurino, traje de cena, como “segunda pele”, e desejo falar do lugar de criador e provocador dentro da sala de ensaio, justamente a partir da concretude desse material, o figurino, que toma forma, processualmente, a partir do jogo e uso que os atores fazem dele durante a criação de uma obra cênica. O termo não é novo, mas tem aparecido com bastante frequência nas recentes publicações que tratam dessa temática. Patrice Pavis (1999, p. 168) adverte sobre “‘a segunda pele do ator’ de que falava TAIROV, no começo do século”. Nos interessa pensar na contribuição e desdobramento do figurino, indumentária, traje de cena, segunda pele – ou, simplesmente, “peles em processo”, como é o mote dessa pesquisa – como elemento contribuinte para a materialização do trabalho criativo e composição cênica do ator/performer nos processos de ensaios. Chamaremos de agora em diante não somente o figurino, mas tudo que se inscreve sobre os corpos em experimentação criativa de “segunda pele em processo”. Quando pensamos em um tipo de processo no qual experimentos dessa natureza possam ter amparo e respaldo, nos remetemos primeiramente à metodologia de criação de Antônio Araújo desenvolvida em seu grupo de pesquisa Teatro da Vertigem, o denominado processo colaborativo. Embora saibamos previamente que na metodologia proposta por Araújo o figurino não é um elemento que entra no primeiro momento de criação, uma vez que se inicia o processo com a tríade criativa na qual “dramaturgo, atores e diretor, no embate corpo a corpo dentro da sala de ensaio, tentariam criar juntos um espetáculo” (ARAÚJO, 2011, p. 131). Dissertar sobre a pele como metáfora desse tecido, texto ou tessitura de superfície, de aparência, de adorno, relacionando-a com a segunda pele do ator/performer, pode | 113

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parecer à primeira vista como algo pouco consistente. Se pensarmos, porém, nesse órgão de grande importância vital para os seres vivos, veremos também que a questão das peles que constituem as personagens e figuras cênicas é de suma relevância para a criação poética e de visibilidade desses corpos que nos comunicam pelo primeiro contato visual provocado pela composição de sua imagem. Sim, somos compostos de cascas, de camadas e de aparências. Didier Anzieu nos esclarece que “todo ser vivo, todo órgão, toda célula, tem uma pele ou uma casca, túnica, envelope, carapaça, membrana, meninge, armadura, película, pleura...” (ANZIEU, 1989, p. 28). E, para arrematar sobre a questão daquilo que talvez possa ainda gerar certa desconfiança, sinaliza. Eis-nos em presença de um paradoxo: o centro está situado na periferia. O descontente Nicolas Abraham (1978) esboçou em um artigo e depois em um livro que traz este título a dialética que se estabelece entre “a casca e o núcleo”. Sua argumentação se confirmou em minha própria pesquisa e dá sustentação aminha hipótese: e se o pensamento fosse uma questão tanto de pele quanto de cérebro? E se o Eu, definido agora como Eu-pele, tivesse uma estrutura de envelope? [...] O cérebro e a pele são seres de superfície, a superfície interna (em relação ao corpo tomado em seu conjunto) ou córtex estando em relação com o mundo exterior pela mediação de uma superfície externa ou pele, e cada uma dessas cascas comportando pelo menos duas camadas, uma protetora, a mais externa outra, sob a precedente ou nos seus orifícios suscetíveis de recolher informações, filtrar mudanças (Idem, p. 24).

Não nos interessa pensar aqui o figurino que é mera ilustração de um tipo, por exemplo, que cumpre a função de vestir uma personagem ou estar de acordo com o sentido de verossimilhança, mas aquele que, escapando aos seus preceitos básicos, transforma a primeira pele do ator/performer no jogo da cena ampliando sua força expressiva. Que segunda pele é essa então? Pele cenografia? Pele maquiagem? Pele iluminação? Pele adereço? Pele objeto de cena? Pensando que se trata de uma pele plural, desse modo, podemos aproximá-la e dialogar com o “design de aparência de atores”, sugerido por Adriana Vaz Ramos, que amplia o termo figurino. Uma vez que para Ramos (2013, pp. 19-20): [...] a aparência de um ator pode ser um grande instrumento de significação na construção de espetáculo e, além disso, é frequente que a força expressiva da edificação de tal visualidade não se encontre apenas no figurino com o qual ele atua, sobretudo em determinados espetáculos contemporâneos. [...] Assim, termos frequentemente utilizados no meio profissional, como figurino ou indumentária, não são mais suficientes para expressar o percurso de nossas reflexões a esse respeito, pois não contemplam a visão sistêmica de linguagens que atuam na construção da informação emitida pela aparência de um ator em um espetáculo.

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Apesar de a aparência de um ator em cena durante muito tempo não ter sido vista como um componente capaz de expressar significados em um espetáculo, e mesmo não havendo atualmente uma terminologia adequada que possibilite uma reflexão apurada a respeito de sua importância, pode-se dizer que, contemporaneamente, ela é organizada em complexas e inusitadas composições sígnicas. [...] Diante da insuficiência expressiva da palavra figurino, cunhamos o termo design de aparência de atores. Pois entendemos que design de aparência de atores e figurino são dois modos diferentes de operacionalização da caracterização visual, ou seja, a linguagem que interage com os corpos dos atores e com os demais elementos cênicos para configurar de diferentes maneiras a aparência daqueles que atuam (Idem, p. 22).

Ainda segundo Ramos, o termo figurino está ligado à noção de uma competência técnica – a partir de uma imagem encontrada em um livro de indumentária, o figurinista desenha uma roupa que é confeccionada por uma boa costureira, recriando uma vestimenta de época, por exemplo – enquanto que o design nos remete à ideia de projeto, um modo de ver, sugerir e imaginar. É tudo que se inscreve sobre o corpo do ator em cena criando significações visuais, dialogando com o todo da composição cênica e indo além dos códigos das roupas e penteados, pois um efeito de luz, uma projeção ou uma maquiagem aplicada ao corpo do ator possuem o mesmo poder de comunicar em cena. Para esta pesquisa em andamento é importante ressaltar que não se trata somente de uma questão de nomenclatura e ampliação do termo figurino, mas nos agrada pensar essa pele em processo como uma linguagem de caracterização visual aberta, sobretudo, quando pensamos que ela está a serviço da criação do ator na sala de ensaio. Os antecedentes da pesquisa prática na sala de ensaio A parceria de criação com a Repertório Artes Cênicas e Cia., de Vitória – ES, já vem de alguns anos. Começou na época da graduação, iniciada em 2003, na qual, juntamente com Roberta Portela, Nícolas Corres Lopes e Waltair de Souza Jr., participamos de várias montagens teatrais dentro do DEART/UFOP como integrantes do Mambembe – Música e Teatro Itinerante, projeto de extensão da Universidade Federal de Ouro Preto. Já com a diretora Nieve Matos, a parceria cênica começou em 2006, durante o seu TCC, o espetáculo “Ponto Final”, realizado também na mesma universidade, no qual colaborei, juntamente com Nícolas Cores Lopes, com a elaboração e execução do projeto de figurino e maquiagem. Com o reencontro desses artistas, na cidade de Vitória, e, consequentemente, com a criação da Repertório Artes Cênicas e Cia., retomamos a parceria em 2009, a convite para a montagem de Peroás e Caramurus, uma saga da ilha. A partir desse trabalho, atuei continuamente nos projetos do grupo, como provocador na sala de ensaio com a questão dos objetos cênicos e figurinos em processo. Seguimos com essas práticas de criação até a sua montagem mais recente, Oración, da obra do dramaturgo espanhol Fernando Arrabal, que estreou em dezembro de 2014. | 115

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É importante ressaltar que existe na Repertório um trabalho de equipe e parceria pautados nos métodos dos processos colaborativos, que preza pelo diálogo e abertura entre todos os seus componentes e propositores. Esse tipo de ambiente de trabalho permite que minhas provocações e propostas de criação sejam aceitas, experimentadas e vivenciadas até as últimas consequências. Para que essas práticas pudessem acontecer, foi sendo criada uma confiança mútua durante os processos sucessivos, e isto é perceptível na tessitura das relações estabelecidas, que ganharam força e consistência, ao longo dos decorridos anos. Acredito que isto tudo reverbera criativa e positivamente na construção dos trabalhos, mantidos no repertório do grupo até os dias atuais. Muito antes do início das pesquisas práticas de Oración, a equipe de pesquisadores envolvida no projeto já vinha dialogando sobre processos criativos e trabalhos marcados por forte carga de teatralidades, dos quais Sílvia Fernandes trata em seu livro Teatralidades contemporâneas. E foi partindo desses diálogos que chegamos ao trabalho da artista alemã Ilka Schönbein. Seus vídeos despertaram nossa atenção para a questão das máscaras, prolongamentos dos corpos, assim como a estética de estranhamento que sua obra nos causava. Quando cheguei de Campinas a Vitória para participar dos ensaios do espetáculo Oración, os atores Nícolas Corres Lopes, Roberta Portela e Waltair de Souza Jr. já se encontravam há algumas semanas em processo, pesquisando as figuras da peça e suas relações. Experimentando materiais como bexigas cheias de ar e faixas de tecidos para deformar partes de seus corpos, dando continuidade às discussões e ideias levantadas, anteriormente, agora, pelo viés da experimentação e improviso do corpo na sala de ensaio. Desde quando o projeto ainda era um embrião até sua elaboração escrita e sua aprovação no edital de montagem da Funcultura do Governo do Estado do Espírito Santo, foram quase dois anos de maturação. Um longo processo de diálogo com a direção e com os atores via e-mails, telefonemas e encontros presenciais. É contaminado por essa primeira etapa, na qual o trabalho foi sendo gestado, que entro na sala de ensaio, junto com os atores e a direção, para materializar o espetáculo, experimentando a questão das peles em processo e os disparos criativos do figurino no trabalho do ator/performer. A seguir descrevo dois exemplos de propostas provocativas que foram elaboradas para experimentos no processo dos ensaios. Das peles em processo – um exercício prático na sala de ensaio Exemplo A, do espaço pele: Espaço modificado: para esse ensaio/encontro a sala de ensaio foi escurecida e iluminada com luz de vela, o espaço foi alterado do modo habitual como os atores o utilizam cotidianamente. Na sala preta da Repertório Artes Cênicas e Cia foi preparada uma instalação com objetos cenográficos criados para fins de experimentação e provocação dos atores e diretora, dentro do tema da peça. A ideia era criar através 116 |

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dos objetos, tecidos e cenografia, um clima, uma atmosfera sacra e profana capaz de proporcionar uma mudança no estado de criação dos atores. Três faixas de tecido de crepe nas cores vinho, violeta e roxo, cada faixa com três metros de comprimentos por um metro e quarenta centímetros de largura, forravam dois tablados de madeira transformados em dois altares dispostos nos níveis baixo e alto, ao fundo e no meio da sala. No altar de plano alto estavam dispostos três chapéus-abajur em formatos de cabeças de tamanho natural e longos pescoços. As três cabeças eram adornadas, cada uma, por um arco de hastes de espetos, que lembravam um desenho infantil de um sol pela metade com seus raios. No altar que compunha o plano baixo ficavam três cabeças também de pescoços compridos, adornadas por três véus de renda de algodão branco. A terceira faixa de tecido formava o tapete que ligava os espaços dos altares. Os materiais descritos possibilitavam aos atores a criação de prolongamentos corporais, deformando-os, recriando com o uso das cabeças e tecidos tanto o próprio espaço da sala como a multiplicação de suas imagens, se considerarmos que cada ator, com os bonecos-prolongamentos, acabavam por criar vários duplos de suas figuras no jogo das improvisações. Exemplo B, das saias peles: Foram propostas três saias para cada ator, de malha de algodão, todas em formato de avental, que no corpo do ator cria um efeito de envelope, compondo uma imagem de sobreposição e criando uma vestimenta em camadas. A primeira saia que veste a parte frontal é uma espécie de saia/avental da cintura até a altura do pé nas cores: azul turquesa, cinza azulado e marrom claro; é amarrada por um laço nas costas e possui abertura completa na parte traseira. A segunda saia é outra saia/ avental, do abdômen à altura do calcanhar, na cor branca com um cós mais alto a partir da cintura. Possui alças que saem das costas e cruzam a parte frontal e superior do tronco em desenho de “X”; é sobreposta por cima da primeira, completando, assim, seu acabamento. Tem abertura completa na parte frontal e é fixada acima da cintura por três lacinhos, lembrando a amarração de um corpete. A terceira saia, longa e gigante, se sobrepõe às outras duas. Tem formato de cauda não convencional, medindo cerca de três metros de comprimento por três metros de largura, nas cores: azul turquesa, cinza azulado e marrom claro. É aberta na parte da frente para ser vestida como avental, amarrada na cintura, de traz para frente, de modo que permita o fácil deslocamento dos atores pelo espaço, bem como a diversificação de seu uso cênico. Seria possível afirmar que os dois exemplos citados estão repletos de teatralidades? Uma vez que expõem o vazio da sala de ensaio, pela estranheza dos objetos sugeridos para investigação dos atores, acabamos por trazer à tona a materialidade desse espaço? As provocações produziram, nesse caso, teatralidades não para o espectador, mas para o ator em processo, pois a sala, ao perder seu caráter cotidiano, ganha camadas de ficção exigindo dos atores outro modo de olhar e de se relacionar com o espaço e com seus próprios corpos. | 117

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Teatralidade produz acontecimentos espetaculares para o espectador; ela estabelece um relacionamento que difere do cotidiano. Ela é um ato de representação, a construção de uma ficção. Como tal, teatralidade é a imbricação de ficção e representação em um “outro” espaço no qual o observador e o observado são colocados um diante do outro (FÉRAL; BERMINGHAM, 2002, p. 105).

A atriz e bailarina Roberta Portela, que vem ao longo desses anos experimentando esse processo criativo de forma continuada, partilha a sua experiência e impressões. Roberta tem vivenciado profundamente a metamorfose das peles em processo. Lembro-me que no início Deus criou os céus e a terra. Nós, os atores, criamos as personagens a nossa imagem e completa imperfeição. Apolinário potencializou nossas ações com um repertório de figurinos, objetos e tecidos que traziam em si um mesclado de grotesco e sublime. Na sala de ensaio tecidos com uma paleta de cores já pré-estabelecida preenchia o espaço de azul, branco, roxo, cinza e marrom. Experimentávamos sensorialmente diferentes texturas envolvendo nossa pele. Sugestões de figurinos colocados no chão da sala de ensaio solicitavam o nosso olhar, cada objeto nos chamava à interação, era um convite ao lúdico imaginário da peça Oración. Lembro-me de um balanço feito com uma corda que parecia uma atadura de hospital, de um vestidinho branco angelical e da “máscara do pânico” que quando vesti senti exatamente essa dualidade entre a terra e o céu, entre a leveza e o terror, entre o grotesco e o sublime. O universo infantil e ingenuamente cruel da obra de Arrabal estava ali sugerido nos elementos que habitavam a sala. Abria-se um imenso vazio repleto de possibilidades. Na iteração dos atores com todos esses elementos uma outra dramaturgia foi criada; possibilidades de abertura, leitura e entendimento da obra de Arrabal eram despertas. “O inconsciente estava aberto”, como diria o escritor Cazé Lontra, cruelmente exposto, à flor da pele. Neste sentido penso que todos aqueles objetos, vestidos, tecidos, sapatos, máscaras, etc. interferiram na criação de imagens gerando possibilidades infinitas de criação e estímulos para os atores e diretora. Agiram na ativação sensorial do contato com a pele dos atores estimulando algo de sensível na criação. Agiram também no entendimento e no aprofundamento dos atores com as personagens; no universo do autor e também nas relações entre as personagens. Tudo levou a uma corporificação do universo da peça abrindo cada vez mais possibilidades de leituras e apropriação do tema trabalhado. Os materiais trazidos e incorporados na peça definiram diretamente a estética do espetáculo. A força deles atingiu todos os territórios da montagem, acredito que influenciou até mesmo no direcionamento e nas seleções das cenas. O contato com essas interferências sugeridas por Apolinário atua em um universo imagético, visual, tátil, espiritual e intuitivo. Lembro-me do dia em que a vida imitou a arte. Foi no ritual de umbanda que presenciamos na praia, uma chuva forte penetrava a areia

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP da praia e com o barro foram tingidas as barras das roupas brancas das pessoas que estavam ali. Foi o contato de Deus com a sua criação, homens “santos” com pés de barro. E choveu “dentro da alta fantasia”. Deus criou com Apô, tingindo as barras das calças e saias das pessoas em oração.15

Considerando a potência da sala de ensaio transformada em um espaço propício para o jogo da criação, em que a junção dos elementos propostos produz uma atmosfera e um clima cerimonial do espaço cênico, a sala habitada por objetos, tecidos e figurinos, se torna um convite para ser modificada pelo uso de seus objetos utilizados de diversas maneiras. O espaço preparado para o jogo convida o corpo do ator/performer a compor esse universo, a habitá-lo e em seguida profaná-lo criativamente. Dessa maneira, a sala de ensaio acaba se tornando um terreno fértil, em que muitas ideias podem germinar e ganhar vida no corpo do ator/performer, semeado pelos estímulos e provocações das peles em processo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANZIEU, Didier. O eu – pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989. ARAUJO, Antonio. A gênese da vertigem: o processo de criação de o paraíso perdido. São Paulo: Perspectiva, 2011. ARRABAL, Fernando. Oração. Vitória: Cousa, 2014. FÉRAL, Josette; BERMINGHAM, Ronald P. Teatralidade: a especificidade da linguagem teatral. In: French in poetique. Sept. 1988, Paris. p. 347-361. Tradução livre de Davi Oliveira Pinto (2002). FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad.: J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2003. PORTELA, Roberta. Depoimento escrito. Vitória, 2015. RAMOS, Adriana Vaz. O design de aparência de atores e a comunicação em cena. São Paulo: Senac, 2013. VIANA, Fausto. O figurino teatral e as renovações do século XX. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010. VIANA, Fausto; MUNIZ, Rosane. Diário de pesquisadores: traje de cena. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2012.

15 PORTELA, Roberta. Sobre o processo do espetáculo Oración. Relato concedido ao autor por escrito, em 31 de agosto de 2015.

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DESIGN CÊNICO: CENOGRAFIA COMO HABILITAÇÃO NOS CURSOS DE DESIGN Letícia Braga Corrêa Escola de Design - UEMG

A formação de um profissional que atue na área de cenografia necessita de habilidades para transitar livremente entre as áreas do conhecimento advindas do meio artístico e as de necessidades técnicas e produtivas. Esse hibridismo de conhecimentos possibilita que profissionais, com origens e formações distintas, possam trabalhar em projetos cenográficos. Em muitos países, principalmente os de língua inglesa, o cenógrafo é denominado como scenic designer. Em inglês, a palavra design funciona como substantivo e também como verbo (circunstância que caracteriza muito bem o espírito da língua inglesa). Como substantivo significa, entre outras coisas, propósito, plano, intenção, meta, forma, estrutura básica. [...] Na situação de verbo – to design – significa, entre outras coisas, tramar algo, simular, projetar, esquematizar, configurar, proceder de modo estratégico (FLUSSER, 2008, p. 181).

Tal observação apresentou-se como uma oportunidade de investigação e pesquisa sobre a formação de cenógrafos ou designers cênicos no Brasil a partir de uma graduação específica ou uma nova habilitação dos cursos de design. O campo de atuação que poderíamos denominar design cênico pode ser uma possibilidade para os profissionais de design a partir do conceito de sua formação multidisciplinar: “Aplicar o termo design na cena implica um processo criativo, incluindo questões de estilo, afirmações poéticas, e pode sugerir inventividade” (TUDELLA, 2012, p. 2). Sabemos que no Brasil ainda são poucos os profissionais advindos dos cursos de Design. Os projetos de cenografia são em grande maioria elaborados por profissionais graduados em cursos de Arquitetura e Artes Visuais. Em muitos casos, principalmente, em grupos de teatro, as criações cenográficas são realizadas de maneira intuitiva por profissionais do teatro que têm pouco domínio de áreas técnicas e projetuais. É importante ressaltar que existe no Brasil formação superior em Cenografia, como o bacharelado específico na Unirio, ou uma habilitação dentro de um curso de graduação em Artes Cênicas, como ocorre, por exemplo, com os cursos da Escola de Belas Artes da UFRJ ou na Escola de Belas Artes da Universidade de São Paulo. Existe ainda a possibilidade de formação em Cenografia, em nível de Pós-Graduação, em algumas universidades do país. A realização de uma pesquisa que relacionasse os universos do design e do teatro no Brasil, estudando as suas convergências, surgiu após o retorno da Irlanda. Com a experiência de graduação sanduíche, propiciada aos alunos selecionados da Escola de Design da UEMG pelo programa Ciência Sem Fronteiras, me matriculei nas disciplinas 120 |

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do curso (BA) Performing Arts do Institute of Technology of Sligo, por já apresentar um histórico de estudos em teatro. O curso oferece diversas competências ou habilitações como atuação (acting), design cênico (theatre design), estudos culturais (cultural studies) e habilidades transferíveis (transferable skills). Os conteúdos das disciplinas relacionadas ao theatre design apresentam grande semelhança aos conteúdos disciplinares relacionados ao ensino de Design. O objetivo desta investigação é apontar as relações entre a cenografia e o design e, a partir de análises curriculares e referencial teórico do teatro e do design, listar as potencialidades que o designer e sua formação acadêmica podem oferecer ao projeto cenográfico, além de sugerir formas de introduzir o conteúdo teórico relacionado ao teatro a fim de complementar o repertório do profissional. Se entendermos o espetáculo teatral como um processo que tem como propósito entregar ao público um serviço de entretenimento, que a partir de um ato projetual desenvolve-se um produto, a expertise do designer pode será necessária. A presença do designer em diversos ramos de atividade tem se tornado cada vez mais frequente. Existem possibilidades de atuação em diversos segmentos para o designer. Krucken (2008, p. 26) menciona que: “De fato, é a percepção sistêmica que caracteriza e estimula a atuação do design na contemporaneidade”. Por isso, essa percepção sistêmica pode possibilitar ao designer atuar também em todas as fases do processo de montagem de um espetáculo, organizando cada uma das etapas de produção, das escolhas de materiais, levantamentos de custos, viabilidade de realização, adequação de projetos até os estudos de ergonomia e usabilidade: “O processo projetual é ou deveria ser um processo de pensamento disciplinado, se caracteriza pela grande agilidade de passar de um problema parcial para outro problema parcial, avaliando as implicações de um sobre o outro” (BONSIEPE, 1984, p. 10). Ainda Krucken (2008) nos fala da necessidade dos designers se posicionarem no contexto em que o desenvolvimento de projetos se caracteriza como sistemas (incorporando produtos, serviços e comunicação), articulando relações transversais de conhecimento, buscando ferramentas que ampliem seu espaço de interação e nos fazem repensar as formas de intervenção sistêmicas do design na sociedade a partir da cultura e a prática do projeto. Também de Manzini (2008), podemos refletir sobre o ato de projetar, que amplia seu espaço de atuação pela transversalidade que o design faz com diversas outras áreas. Assim podemos considerar que ao designer cabe também o papel de leitor e tradutor dos desejos, anseios e necessidades do consumidor, tendo como premissa sua relação com o cotidiano em diversas instâncias, como consumo de bens e serviços, lazer e entretenimento. O pensamento de design tem sua natureza nos processos de integração de situações e dados para solução de problemas. O designer atua em projetos com bastante mobilidade pela sua “capacidade intuitiva, por reconhecer padrões, desenvolver ideias que tenham um significado emocional além do funcional, expressar-se em mídias além de palavras ou símbolos” (BROWN, 2010, p. 4). A combinação de métodos e processos que o designer aplica em projetos tem um caráter sistêmico e se diferencia por ser cen| 121

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trado sobretudo naquele em que chamamos de usuário, que especificamente no teatro não seria necessariamente apenas o espectador, mas também os atores que utilizarão os elementos cenográficos projetados para o espaço cênico e todos os demais envolvidos na ação dramática, direta ou indiretamente. A concepção da cenografia envolve também um importante fator: a interdisciplinaridade. O cenógrafo deve trabalhar juntamente com o dramaturgo do espetáculo, pelo fato de o texto ser a referência inicial de uma concepção cênica. “O espaço teatral é um lugar cênico a ser construído e sem o qual o texto não pode encontrar seu lugar, seu modo concreto de existência” (UBERSFELD, 2005, p. 92). Além disso, o trabalho em equipe é fundamental para o desenvolvimento da cena. O cenógrafo desenvolve seu projeto com as criações de outros profissionais da cena, sempre orientadas pelo diretor/encenador e é a partir dos comandos da direção que a cena surgirá e, desta forma, o espaço em que ela se encontrará. O ato projetual, imbuído pelos processos de criação e de direção de um espetáculo de artes cênicas, demonstra ser a linha norteadora para a elaboração detalhada do espetáculo. É a partir dele que se estabelecem os critérios para a configuração das equipes de profissionais que atuarão no projeto, assim como as primeiras expressões artísticas adequadas às características necessárias para o início de uma articulação farsesca, que caminhará para a formação da trama e possibilitará que a história seja contada de forma lúdica, criativa, envolvente e surpreendente (SCAPIN JUNIOR, 2011, p. 118).

Scapin Junior nos fala sobre as questões projetuais e do trabalho em conjunto ao encenador e a equipe de criadores do espetáculo como linha condutora da criação cênica. O trabalho interdisciplinar está muito relacionado ao meio de trabalho em que os designers estão inseridos. Para Benedetto (2012), o designer cênico colabora com o diretor e os outros designers (figurino, luz, maquiagem, adereços, som) para criar um conceito de produção que integra atores, texto e meio ambiente. O trabalho projetual do designer pode ser respaldado pelo pensamento de Bonsiepe, que, ao reinterpretar as ações do design, elenca algumas características pertinentes que servem a ambos os campos de atuação, atribuindo ao design a responsabilidade pela construção da relação entre produto/serviço e consumidor. (1) Design é um domínio que pode se manifestar em qualquer área do conhecimento e práxis humana. (2) O design é orientado para o futuro. (3) O design está relacionado à inovação. O ato projetual introduz algo novo no mundo. (4) O design está ligado ao corpo e ao espaço, particularmente ao espaço retinal, porém não se limitando a ele. (5) Design visa à ação efetiva. (6) Design está linguisticamente ancorado no campo dos juízos. (7) Design se orienta à interação entre usuário e artefato. O domínio do design é o domínio da interface (BONSIEPE, 1997, p. 15).

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Os conceitos apresentados por Bonsiepe deixam extremamente claro o caráter abrangente do termo design e de seu campo de atuação, trazendo para o universo do design uma visão pragmática, de interface e interação que nos remetem novamente a questões de interdisciplinaridade. O design não se esgota em si mesmo, necessitando interagir com outras áreas do conhecimento, entendendo as necessidades de um mundo complexo e multicultural e podendo oferecer os melhores resultados em relação às necessidades contemporâneas. Pavis (2008, p. 301) aproxima as questões projetuais – premissa básica para o universo do design – das atividades relacionadas à produção de um espetáculo e relata: “A pluraridade dos métodos, hoje largamente admitida na análise do espetáculo, parece acompanhar um alargamento do paradigma favorito da representação, a visualidade, até os paradigmas da audição, do ritmo e da sinestesia”. Um projeto cenográfico exige do profissional responsável conhecimentos ou expertises que são desenvolvidas e transmitidas em cursos de design: “O Designer em geral usa sentidos, formas, cores, composições, com os quais constitui imagens, espaços para expressar criativamente um diálogo com o mundo, o que demanda um conhecimento desse conjunto” (COHEN, 2007, p. 55). Além das características visuais estéticas, o caráter simbólico atribuído aos elementos cenográficos desenvolvidos e acrescentados à cena tem extrema importância no projeto de um espetáculo. Benedetto (2012) nos informa da importância da cenografia para o espetáculo de teatro, como forma de comunicação direta com o público, pois em muitas vezes ela é o primeiro aspecto observado pelo público ao entrar no teatro. Este primeiro contato com a montagem que, além de configurar o estilo utilizado, vai transmitir para o espectador a atmosfera e o conceito que a produção pretende passar com o espetáculo, definindo também o tempo e o lugar no espaço da cena. Ainda para Benedetto, os designers cênicos contemporâneos não se limitam a reproduzir as configurações como se fossem reais, mas deliberadamente escolhem os elementos para moldar a impressão de uma audiência dos mundos representados dentro da peça. Os processos de significação e linguagem da semiótica desempenham papel fundamental na comunicação que se estabelece entre a cena e o espectador. “Os signos não só servem para a caracterização dos personagens e do espaço, mas também têm a função de participar da ação dramática.” (OTAKAR apud IGARDEN, 1977, p. 17). Embora possam ser desenvolvidos por outros profissionais em um mesmo espetáculo, o figurino, a maquiagem e os adereços também fazem parte da composição do universo cenográfico e cada detalhe carrega em si significados que podem sugerir interpretações e estabelecer a comunicação desejada pela encenação do espetáculo. Os objetos que desemprenham em cena o papel de signo adquirem nisso determinados traços, qualidades e marcas que não possuem na vida real. As coisas, assim como o próprio ator, renascem, no teatro, diferentes. [...] O problema da percepção e interpretação dos signos merece ser analisado com os métodos da teoria da informação. Onde há um sistema de signos, deve existir um código. Os códigos dos signos empregados no teatro nos são proporcionados pela experiência individual ou social, a instrução, a cultura literária e artística (IGARDEN, 1977, pp. 18 e 79).

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Caminhos da pesquisa em artes cênicas

Em sua formação acadêmica multidisciplinar, a partir do estudo de caso realizado do projeto pedagógico dos cursos de design da Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais, o designer graduado adquiriu conhecimentos que contribuem em seu trabalho de projetar de forma ampla. Estudos sobre comunicação visual e métodos da teoria da informação e semiótica fazem parte da grade curricular, além dos princípios de composição, elementos de percepção, análise formal, linguagem visual e teoria das cores, que são ferramentas fundamentais na criação e composição cenográfica. Nos cursos de design existem ainda disciplinas que auxiliam diretamente no ato de desenhar e projetar graficamente um cenário. A expressão gráfica, o desenho técnico e a representação tridimensional possibilitam a materialização da concepção visual do projeto de cenografia. Os repertórios teóricos adquiridos em disciplinas de história da arte e do design habilitam o profissional a contextualizar e embasar sua pesquisa simbólica de forma coerente e realizar as melhores escolhas dos elementos visuais que farão parte da cena. Percebe-se assim que, tanto para o designer como para o cenógrafo, a expressão artística e o conhecimento histórico devem vir acompanhados de habilidade técnica, não apenas para executar uma peça única, mas para sistematizar um produto que, embora mais efêmero que uma edificação permanente, será muitas vezes remontada e em muitos casos em outros espaços teatrais. Nesse sentido o cenógrafo é um homem da arte, não necessariamente um artista. E é nisso, parece-me, que reside a sua grande força poética, porque, à diferença daqueles pedreiros, artesãos e ourives, seu produto é aleatório e circunstancial, indispensável e inútil ao mesmo tempo (RATTO, 1999, p. 60).

As práticas de projetos de design, os conhecimentos obtidos em sua formação e sua capacidade de sistematizar o diálogo com outros profissionais ampliam as possibilidades de atuação do designer em áreas como a cenografia. “Saber que o desenvolvimento de determinado conjunto de noções e competências capacita o designer a olhar o mundo de uma maneira particular, com o ‘filtro’ do design, contribui para o autoconhecimento deste profissional e possibilita visão mais abrangente do seu campo de atuação” (SIQUEIRA, 2012, p. 23). Para o profissional graduado em design não existe apenas um único espaço reservado no mercado de trabalho, mas inúmeros. O lugar de trabalho do designer é aquele em que se procura um profissional que articule meios, interfaces e que solucione os problemas de comunicação e entendimento entre um produto/serviço e seu público.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENEDETTO, Stephen Di. An introduction to theatre design. Abingdon: Routledge, 2012. BONSIEPE, Guy. Metodologia experimental: design industrial. Brasília: CNPq/Coor124 |

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OCUPAÇÃO CÊNICA E CO-HABITAÇÃO TEATRAL Daniel Marcos Pereira Mendes (Daniel Ducato) Universidade Federal de Ouro Preto

Neste artigo trataremos de algumas definições e relações dos termos ocupação e co-habitação. Apesar do evidente sentido ligado à moradia que estes termos carregam, nos ateremos em nossa escrita e em nossos estudos a algumas definições dos termos ocupação e co-habitação que relacionam-se ao teatro contemporâneo. Partiremos da premissa de que um espaço, abandonado ou em uso, pode vir a ser ocupado por artistas cênicos e tornar-se desta forma um “lugar teatral”. Utilizaremos a expressão “Ocupação Cênica” presente nos estudos de Antônio Carlos de Araújo Silva (2011) para delinear algumas das relações existentes ao ocupar um espaço que se encontra abandonado e/ ou inativo e buscaremos sustentar a ideia de “Co-habitação Teatral” para os casos de ocupação em que os espaços possuem atividades cotidianas e o fluxo de pessoas diariamente. Utilizaremos também da expressão “espaço de uso não convencional”, retirada dos estudos de Rogério Santos de Oliveira. Em entrevista de Antônio Araújo, o diretor descreve que “não é o espaço que é não convencional, é um uso não convencional do espaço” que ocorre (In: OLIVEIRA, 2005, p. 18). Neste artigo trataremos de algumas definições e relações dos termos ocupação e co-habitação. Apesar do evidente sentido ligado à moradia que estes termos carregam, nos ateremos em nossa escrita e em nossos estudos a algumas definições dos termos ocupação e co-habitação que relacionam-se ao teatro contemporâneo. Assim, nos interessa dissertar acerca de algumas das reverberações cênicas advindas da ação de ocupar e/ou da ação de co-habitar um “espaço de uso não convencional”, necessariamente através da lupa teatral, visto que o sentido de ocupação e co-habitação por nós estudados também podem ser dissertados através da dança, das artes performáticas, das artes circenses etc. Ocupação Cênica A “Ocupação Cênica” é um dos aspectos recorrentes no teatro realizado contemporaneamente. Muitos dos artistas cênicos optam pela realização de seus espetáculos a partir da ocupação de determinados espaços abandonados, com o intuito de usufruírem de suas premissas físicas, presenciadas através das tridimensionalidades arquiteturais e dos elementos de composição estrutural (pilastras, portões, grades, corredores, janelas, etc.) e também dos objetos encontrados (cadeiras, mesas, macas, instrumentário cirúrgico, etc.). Nestas ocupações, além das características atribuídas às questões físicas e estruturais, identificamos relações mais profundas, por vezes de caráter metafísico, que influenciarão consideravelmente a dramaturgia e a encenação. Assim, percebemos que na maioria das ações realizadas através de uma “Ocupação Cênica”, existe um desejo por parte dos artistas envolvidos em cada processo de também se apropriarem da carga 126 |

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simbólica do espaço de modo que esta venha participar e interferir no trabalho cênico durante sua investigação e também durante sua encenação. Mesmo incluindo novas camadas pictóricas ou estruturais sobre a arquitetura que já existe – como pinturas sobre as paredes, dispositivos cenográficos ou aparatos de iluminação –, o espaço ocupado ainda assim reverbera e revela aspectos referentes à sua carga simbólica, substancial. Seja a ideia da encenação partida da leitura de um texto teatral, seja advinda de uma adaptação literária para o teatro, seja um rascunho, ou seja nascida a partir de um estímulo gerado pela leitura de acontecimentos históricos (como exemplos), os encenadores e artistas cênicos buscam novos lances em seus espetáculos ao otimizarem os elementos estruturais e também os simbólicos presentes em um espaço abandonado, baldio ou em ruínas. Ao estudar sobre o trabalho do Grupo Teatro da Vertigem em sua dissertação de Mestrado, Rogério Santos de Oliveira (2005, p. 52) nos esclarece: Quando o grupo se apropria de um lugar através de uma intervenção artística, como no caso de um espetáculo teatral, esse lugar se transforma em algo mais. Ele passa a ser construído pelos sentidos e pela memória já a ele impregnados, somados à intervenção realizada.

E prossegue: O espaço a ser escolhido não é apenas um espaço a ser preenchido, e ser re-significado. Sua estrutura pré-existente, tanto física quanto carga simbólica, será transformada, criando uma nova possibilidade de leitura, tanto para o lugar quanto para o teatro (Idem, p. 53).

Assim sendo, ocupar no sentido cênico, significa criar um diálogo com o que já está oferecido no espaço e no tempo, de forma que após estudar o espaço e praticar o espetáculo teatral conjuntamente da sua investigação, estes elementos e estas forças venham interferir, transformar e potencializar este espetáculo. Apesar do conhecimento de inúmeras obras deste caráter espalhadas pelo mundo e também evidenciadas no Brasil em tempos não muito longínquos – como a ocupação do buraco da construção da obra do metrô do Rio de Janeiro, na Cinelândia da década de 1970, feita por Aderbal Freire Filho para a montagem de “A Morte de Danton”, de Büchner16, buscaremos tecer relações entre a ocupação e a encenação realizada atualmente. Hygiene – Grupo XIX de Teatro Como referência nacional contemporânea para a abordagem acerca da “Ocupação Cênica”, lembramos e trazemos como exemplo o paulistano Grupo XIX de Teatro, que possui como base para a investigação cênica as dinâmicas da atuação em “espaços de uso não convencional”, aproveitando a arquitetura para além de simples cenografia, mas enquanto elemento que dinamiza a tessitura dramatúrgica. 16 Pode ser visitado em Kosovski (2000, p. 191) e Oliveira (2005, p. 21).

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Para a montagem do espetáculo Hygiene (2002), dirigido por Luiz Fernando Marquez, o Grupo XIX de Teatro partiu de estudos sobre o habitar e o conviver, tendo o elemento CASA como propulsor para a investigação. Janaína Leite e Sara Antunes, atrizes do grupo, em uma publicação pertencente ao projeto “Casa em obras”, contemplado pelo Prêmio Funarte Petrobrás de Teatro Myriam Muniz, em 2006, nos falam: O ponto de partida temático de Hygiene foi a casa, o ato de morar como manifestação de caráter cultural. A casa tomada como símbolo de um imaginário coletivo, as prosaicas parcelas do “sonho da casa própria”, a transcendência metafísica da “casa dos sonhos”, a casa como útero, a arquitetura que esconde mistérios em seus porões e provoca devaneios em seus sótãos. A história da moradia é a história do espaço em que ela se inscreve (GRUPO XIX DE TEATRO, 2006, p. 57).

A partir da pesquisa sobre esta temática, ficou evidenciado ao grupo um modelo de padrão da construção civil brasileira do final do século XIX, que pretendia ser implementado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, de forma a sanar com os problemas de expansão habitacional desordenada (devido à grande quantidade de imigrantes nas terras brasileiras que se opunham à nova ordem moralista da burguesia). O deplorável é que, para edificar, torna-se necessário desocupar. As pessoas aos poucos eram desalojadas de seus “barracos” e, após serem interditados, eram demolidos para a instauração da ordem pública através da aplicação do modelo de conjunto de habitações ou ainda a compilação de espessas camadas de asfalto para as vias. Diante destes pressupostos históricos, o interesse do grupo não era a história contada pelos “higienistas” de forma oficial no início do século XX. Segundo as atrizes, GRUPO XIX DE TEATRO (2006, p. 57), o empenho se fez em buscar a “história de operários, imigrantes, lavadeiras, meretrizes, ex-escravos, curandeiros e comerciantes, que o grupo trouxe à tona, com suas características que marcaram profundamente a construção da identidade brasileira”. Com base nestes dados e após relatos da existência de uma vila operária em constante processo de abandono e reestruturação na cidade de São Paulo, o grupo decide investigar mais a fundo. Num primeiro momento surgem o espanto, a perplexidade e a indignação. Através da oportunidade de um projeto contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo (em Janeiro de 2004), intitulado “A residência”, o diretor, os atores e demais membros da equipe de criação puderam entrar em contato mais afinco com as pessoas, teceram relações mais íntimas, conheceram a história daquele lugar e conjuntamente promoveram as ações narrativas pautadas no processo da crise da habitação social do Brasil no final do século XIX, ancorados através da ocupação dos prédios históricos abandonados. Este espetáculo circulou por várias regiões do Brasil, quando situações distintas surgiram em cada novo conjunto de edificações que eram disponibilizadas para as apresentações. Se na gênese de criação do espetáculo a equipe tinha como elemento os cortiços abandonados da Vila Operária Maria Zélia (Zona leste de São Paulo), em contrapartida 128 |

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tiveram outras ocasiões em que foram disponibilizados ao grupo outros casarões antigos, que ainda assim traziam à tona as questões referentes ao abandono e ao descaso e que permitiram novas proposições cênicas e novas leituras a cada apresentação. Para este espetáculo, quando apresentado em outros lugares, existe invariavelmente um trabalho de reconhecimento das edificações que se encontram disponibilizadas e a avaliação do contexto histórico ao qual elas surgiram. Caso exista relação com a pesquisa deflagrada pelo grupo acerca do processo civilizatório urbanístico brasileiro, a equipe promove então o mapeamento dos espaços e conjuntamente a eleição dos locais internos e externos das edificações, dos planos arquiteturais que serão utilizados e a escolha dos pontos específicos onde o público acompanhará e permanecerá durante a encenação. Através da própria referência histórica do século XIX de uso da iluminação e ventilação naturais para a garantia de salubridade aos ambientes (ponto de pesquisa do grupo), o espetáculo espelha estas condições e não conta com a inserção de instrumentários e iluminação artificial específica de espetáculos teatrais, quando a luz natural revela os acontecimentos. Além do mais, o uso da iluminação orgânica também é baseado como referência aos espetáculos dos ambulantes do final século XIX, que montavam seus “tablados” próximos das áreas de saída dos agricultores, para que ainda durante a luz do dia tivessem público em seus espetáculos. Outro ponto importante das “Ocupações Cênicas” realizadas pelo grupo para este espetáculo é o garimpo dos materiais encontrados pelos espaços ocupados, suas reformulações para a construção visual das cenas e as atmosferas por eles alcançadas, a partir de uma dita “lógica da precariedade” (REBOUÇAS, 2010), num jogo com a efemeridade dos dispositivos cenográficos criados e as novas demandas a cada remontagem do espetáculo. Co-habitação Teatral Entendemos que também existe um outro sentido presente nas “Ocupações Cênicas”, denotado nas ocasiões em que os espaços eleitos se encontram ativos e de certa forma já habitados, por possuírem funcionalidades específicas em seus usos cotidianos. Trazemos para esta acepção o entendimento de co-habitação, ou seja, um “habitar com”. Estas seriam assim as ocasiões em que as arquiteturas e o meio urbano dos espaços ocupados deixam por alguns momentos suas funções cotidianas, para enveredarem-se ao acontecimento teatral, quando em alguns casos, parte destas funcionalidades diárias, seus fluxos e suas cargas simbólicas, acabam por unirem-se à trama, quando deixa de existir as recorrentes medidas de separação entre ficção e realidade, entre teatralidade e performatividade. Para exemplificarmos o sentido de “Co-habitação Teatral”, trazemos para o diálogo o Grupo Teatro da Vertigem, através do espetáculo BR-3, dirigido por Bernardo Carvalho. BR3 – Grupo Teatro da Vertigem A trajetória deste trabalho foi desenhada de forma teórico-prática englobando, desde a leitura – ou releitura – de grandes intérpretes do país, tais como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro, Darcy

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Caminhos da pesquisa em artes cênicas Ribeiro, Milton Santos, até uma pesquisa de campo que compreendeu um percurso geográfico por três diferentes “Brasis”: Brasilândia (bairro da periferia da cidade de São Paulo), Brasília (capital da nação, situada no centro do país) e Brasiléia (cidade no extremo do Acre, quase na fronteira com a Bolívia).17

Da periferia ao centro e de volta à periferia, o processo de montagem iniciou-se em janeiro de 2004, através de uma residência na Vila Brasilândia. Após a temporada de residência o grupo realiza uma viagem de mais de um mês pelo trecho que se estende de Brasilândia até Brasiléia, passando por Brasília, em curso pelas três regiões brasileiras (Sudeste/Centro-Oeste/Norte), com o intuito de seguir as pistas do processo civilizatório que evidenciassem a identidade e o caráter nacional. Em entrevista concedida no ano de 2005, ao Jornal da USP, Bernardo Carvalho afirma que “a peça fala da crise de identidade brasileira e da destruição do ser humano, uma espécie de ser suicida que tem consciência da destruição que provoca, mas que mesmo assim não pára de agir dessa forma.” 18 Durante a estreia do espetáculo, o espaço co-habitado foi o Rio Tietê, na cidade de São Paulo, com o público sobre um barco a navegar o leito do rio poluído (com cheiro insuportável) e os atores em trânsito por outras embarcações, pelas bases instaladas nas margens do rio, em cima de plataformas ou nos alicerces de concreto das pontes. Antonio Araújo comenta que o que eles queriam com este espetáculo é “chamar a atenção para a condição do rio, que adoeceu por nossa causa, e promover uma ‘re-sensibilização’ no olhar do público”.19 Este tipo de “Co-habitação Teatral”, num trato com a “linguagem cênica de invasão da silhueta urbana” desenvolvida por Carreira, perpassa pelo conceito de cidade enquanto dramaturgia, ou seja, a cidade existe para além de ser simples suporte ou cenário. Ela é matéria viva que escreve a dramaturgia pelas sensações e vivências dos corpos dos atores e do público ao vivenciarem os seus espaços e lugares. A cidade é a própria escritura viva. Neste direcionamento os artistas incorporam a multiplicidade de significados e significantes da cidade, seus fluxos e contrafluxos, na construção da linguagem cênica (CARREIRA, 2008, p. 67). Cada espectador terá uma versão de um caso, de uma situação que lhe chama mais atenção que outra, contaminados inclusive pela relação de afetividade presente nas outras pessoas que participam daquele acontecimento. A relação afetiva e experimental com a cidade a partir desta “Co-habitação Teatral” faz por vezes despertar a consciência que os participantes deste experimento levam para suas vidas. Ocupação, o espaço encontrado e o lugar encontrado Em alguns casos de ocupação com viés artístico, o espaço encontrado pelos artistas é utilizado a partir de suas questões estruturais próprias, de suas condicionantes temporais específicas, de seus fluxos e de suas significações plenas. De acordo com Luiz Carlos Garrocho (2010, p. 01): 17 Disponível em: . Acesso em: 15 de set. de 2015. [O grifo é nosso]. 18 Disponível em: . Acesso em: 15 de set. de 2015. 19 Ibidem.

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A cena contemporânea tem demonstrado um interesse marcante na utilização de espaços não configurados de antemão como circuitos de exibição e apresentação artística. Entre estes, focalizamos os “espaços encontrados”, numa referência à expressão da encenadora Ariane Mnouchkine (ODDEY, Alison e WHITE, Christine, 2008), ao procurar definir um topos da encenação que dialoga com a materialidade do lugar, entendido este na sua existência concreta, independente e anterior à intencionalidade e aos códigos estabelecidos para a recepção.

Para o autor, no espaço encontrado ocorrem algumas diferenciações em seu uso, devido à ausência de interferências sobre os elementos que determinam o lugar. Os espetáculos que ocorrem em lugares como galpões ou salas costumam ser revestidos, ou seja, caracterizados cenicamente para a montagem. Mesmo que utilizem do máximo do “Espaço Vazio” tais criações tendem à abstrair dessa materialidade, a fim de configurar um universo ficcional. Diferente disso, no espaço encontrado não há essa “cobertura” sobre a arquitetura existente (GARROCHO, 2010a, p. 59).

Dentro destes aspectos mencionados por Garrocho, podemos pensar junto à Lehmann (2007, p. 204), acerca do “espaço partilhado”, pela “radicalização de princípios não-miméticos”. Nesta lógica, para a concepção e apresentação de alguns processos cênicos em um espaço encontrado, existe um corpo espacial base que será explorado sem a existência de artifícios construtivos de representação. O espaço é utilizado em cena como é, com a sua iluminação natural e com as suas particularidades arquitetônicas de origem. Nestes casos não existe um desenho ou concepção de imagens cenográficas a priori. A composição espacial surge através do uso direto da arquitetura (através do uso de seus planos, seus contra-planos, suas elevações e suas infindas condicionantes estruturais), da presença do ator (por vezes sugerida pela apresentação formal dos figurinos) e também por objetos e móveis que normalmente já são os encontrados durante a ocupação do ambiente. Este uso do espaço gera estalos para a elaboração de uma dramaturgia que também é germinada pelas negociações acontecidas durante sua utilização. Partindo de aspectos análogos aos apresentados, Kosovski nos fala acerca do “lugar encontrado” (found place), noção elaborada por Richard Schechner, em que se “celebram as contribuições que as características do lugar podem proporcionar à cena”. “O lugar encontrado tem por princípio básico a percepção e a negociação com os seus elementos físicos, a sua arquitetura, as suas qualidades de textura, a sua topografia, a sua luz, e a sua socialidade – para os explorar” (KOSOVSKI, 2000, p. 89). E por incluir a socialidade enquanto ponto para exploração, Kosovski (2000, p. 88) também deixa demonstrada a possível relação de transformação do lugar pelas relações dos novos fluxos, e menciona que “Schechner inclui no encontro do lugar não só sua identificação, como a prática do lugar, a sua espacialização”. Desta maneira, a pesquisadora, em acordo com Schecner, nos fala que é possível conduzir ações a partir da | 131

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própria materialidade e da condição estrutural de um lugar encontrado. Em oposição ao lugar encontrado, Kosovski (Idem, ibidem) fala do “lugar transformado”, este enquanto “[...] o palco como lugar neutro a ser transformado em outros a partir da encenação teatral”. E complementa, mencionando que: “No palco transformado considera-se a sua neutralidade como matéria-prima para a transformação”. Síntese acerca da ocupação e resignificação do espaço em “lugar teatral” Percebemos que durante a “Ocupação Cênica” e a “Co-habitação Teatral” existe a resignificação dos espaços e dos lugares, seja por meio da utilização da própria materialidade dos lugares e suas determinantes simbólicas (sem interferências estruturais), ou seja através da inserção de novas camadas (físicas e também sensoriais) sobre seus elementos já presentes. O “espaço de uso não convencional”, pode se encontrar abandonado, em desuso, inabitado, denotando sua ocupação. Como também pode ainda ter utilidade, a circulação de pessoas e assim apresentar uma co-habitação. Certamente existirão diferenciações entre adentrar um espaço abandonado e adentrar um espaço em que ainda existe a passagem de indivíduos. Se tomarmos como exemplo um presídio, encontram-se admissíveis alguns tipos de situações, como por exemplo presídios abandonados e desertos, presídios que mantém a atividade de encarcerar criminosos e ainda, pode haver o espaço de uma prisão que sofreu modificações para se tornar lugar de outras atividades (um museu, exemplificando). As mudanças na adequação para a prática de um espetáculo teatral em cada um destes casos serão diferenciadas e as reverberações em cena também serão diferenciadas. Da mesma forma outras releituras surgem quando outros “espaços de uso não convencional” são ocupados artisticamente, como por exemplo um hospital, um mercado municipal de uma cidade, uma fábrica desativada ou o conjunto habitacional abandonado. Ao escolher um “espaço de uso não convencional” para a criação de uma cena e/ou um espetáculo teatral, é interessante pensar os principais pontos das significações do espaço que será residido. Desde as funções que já estabeleceram diretrizes numa determinada época e que se encontram presentemente fora de uso, até nos outros casos em que estas funções ainda são desempenhadas nos dias atuais. Salvo, é claro, voltando ao exemplo do presídio, nos casos em que o espaço funcione apenas enquanto um suporte para a cena teatral – visto que em algumas situações trata-se de uma apresentação de um grupo de teatro contratado pela direção do presídio, como forma de entreter e envolver os detentos. Neste aspecto, daria no mesmo apresentar o espetáculo em um presídio ou em um shopping center, sem a mínima preocupação com o que o espaço foi ou é nos dias de hoje. Este processo de deslocamento não comprometeria as relações da existência do espetáculo em questão, ainda que houvessem diferenciações para a comunicação do espetáculo e obtivessem percepções diferenciadas para a recepção em cada um dos casos. Desta forma, em nossos estudos e em nossas práticas, fazemos jus ao diálogo entre o espaço escolhido com a dramaturgia estudada. Quando se utiliza da memória espacial ou mesmo da atmosfera existente do próprio espaço, a favor dos direcionamentos principais para uma encenação (dramaturgia, atuação, gestos, movimentos, sons, luz etc.), emerge uma potência criadora que trans132 |

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forma a consequente tessitura cênica. Assim, os próprios elementos que constituem uma edificação escolhida, preenchidos de suas próprias significações, podem muito colaborar para gerar impulsos a favor das cenas construídas, ou a favor das cenas que ainda estão em processo. Sejam estes elementos advindos dos vestígios da passagem de pessoas e/ou dos indícios de suas existências em tempo real, e ainda, sejam eles sobrevindos da memória que permeia sobre o espaço eleito. Compreendemos que não é regra condicional não interferir na materialidade de um espaço ao ocupá-lo. De antemão pode haver a utilização cênica do lugar que já existe sem interferência alguma, mas, em contraponto, também pode existir a criação de novas estruturas sobre as camadas já pertencentes àquele lugar. Percebemos que os termos “Ocupação Cênica” e “Co-habitação Teatral” estão intimamente relacionados ao ato de ocupar um espaço, usufruir de suas premissas constitutivas (tanto as premissas de ordem estrutural e física, quanto as de caráter simbólico) e finalmente, assim, transformá-lo em lugar do acontecimento teatral. O diretor, o diretor de arte, o cenógrafo, o dramaturgo, o ator, o iluminador, o figurinista, o sonoplasta, todos juntos, cada um com sua contribuição específica, além de mapearem a lógica da estruturação formal de um determinado lugar, percebem o deslocamento e o fluxo dos objetos e coisas ali inseridos, afim de transformá-los de acordo com cada evento teatral. Em suma, é pelo acontecimento dado pelo fluxo da “Ocupação Cênica” e da “Co-habitação Teatral”, em conjunto ou em oposição ao fluxo dos espaços e sobretudo, pela experiência adquirida do observador/ fruidor/ vivenciador, que é rematada a resignificação do espaço enquanto “lugar teatral”.

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Teatro e dança

USO DESPROPOSITADO DO CORPO: MATRIZES DA DANÇA BUTÔ NOS ESCRITOS DE TATSUMI HIJIKATA Bárbara de Souza Carbogim Universidade Federal de Ouro Preto

A proposta de encenação da dança de Tatsumi Hijikata não objetiva uma compreensão lógica pré-estabelecida, e sim, como diz o próprio dançarino, um “uso despropositado do corpo” (HIJIKATA in KIRIHARA, 2000, p. 44). Podemos compreender o “uso despropositado do corpo” como a afirmação de um corpo não funcional, um corpo que não se posiciona como produtivamente capaz, da forma imposta pelo sistema capitalista, um corpo que reforça a sua potência sem propósito, um corpo que detém a sua existência pela via da materialidade corporal e a partir disso esse corpo se tornaria mais presença e menos sentido, pois a sociedade obriga um sentido para a existência do corpo, por exemplo, uma profissão, uma rotina, um fazer racional que justifique e explique dentro de razões pré-estabelecidas a vida. O corpo despropositado parte do pressuposto da falta de propósito racionalizado para a vida, é o corpo em sua potência de existir. Em uma sociedade orientada, produtiva, a qual pede papéis sociais já determinados, as ações que o corpo realiza são também para efetivar objetivos determinados. Quando há esse tipo de proposta artística, no caso de Tatsumi Hijikata, esses papéis sociais não existem, não há mais a representação da vida social, sendo assim, as ações se tornam inúteis e por isso, despropositadas, pois não estão cumprindo com nenhum dever, o corpo não cumpre nenhuma função aceita e determinada como coerente para viver em sociedade, pelo contrário, Hijikata dança aqueles corpos que são excluídos pela sociedade, que são socialmente inúteis e os reforça em sua potência. Aqui chegamos ao ponto do corpo social, ou shintai e à sua outra qualidade, o corpo sem propósito, que se desvela a partir de sua materialidade, o nikutai. No artigo Aspects of subjective, ethnic and universal memory in ankoku butoh, da estudiosa italiana Katja Centonze (2003-2004), poderemos esclarecer os princípios desses dois corpos pesquisados no ankoku butô. A autora denomina também essa dança como dança-anarquia, pelo seu ponto de vista há um movimento anárquico em Hijikata e o corpo que propicia tal oscilação é o nikutai – corpo de carne. Dessa forma, o shintai – é o corpo cotidiano, reconhecido socialmente, culturalmente formado. E o nikutai está na via contrária do corpo útil e dócil, por isso anarquista, existindo pela materialidade. De acordo com Centonze, podemos pensar, então, que o nikutai é o shintai que dança. Até mesmo porque outras problemáticas podem ser criadas se fecharmos os dois como opostos, como por exemplo, como que se liberta um corpo de sua cultura por um determinado tempo? Por isso nos parece mais coerente falarmos em efeitos de presença, como instantes que nos tomam, corpo. E também utilizarmos a perspectiva de dissolução do corpo social de Peretta (2015, p. 99) ao pensarmos em uma prática de dança que gradativamente vai liberando o corpo social para adentrar em uma pesquisa mais | 135

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profunda da própria matéria corpo, experimentando substancialmente a própria carne. Hijikata, com seu desejo de movimento anárquico, transborda os limites fixados de ser corpo e aponta em sua dança transgressora aquela linha tênue de arte-vida que é tanto procurada, e mais do que isso, apresenta uma força vital de uma arte política pelo corpo, em corpo. De acordo com suas próprias palavras no manifesto Wind Daruma (HIJIKATA in KIRIHARA, 2000), em maio de 1985, o dançarino nasce em uma cidade do norte do Japão, Akita, cidade esta muito fria, a sensação de uma infância em um ambiente frio faz parte de sua poética. Nesta cidade havia muitas senhoras que labutavam em plantações de arroz, suas pernas arqueadas fazem parte da poética de Hijikata. Os bebês que ali moravam, com os movimentos de suas mãos que mais pareciam coisas ao invés de mãos – na perspectiva de Hijikata – e seus olhos entreabertos, também fazem parte de sua poética. A lama que era formada em Akita no período da primavera também faz parte de sua poética. Pois, então, como se constrói uma poética? Ou melhor, como uma poética é construída? A poética de Hijikata não se construiu quando ele se reconheceu como artista. A poética de Hijikata foi construída desde a sua infância, quando percebia seu próprio corpo e incorporava gestualidades de seus familiares, pessoas do seu bairro ou animais. A poética desse dançarino é sua própria memória viva em seu corpo, em sua dança. Podemos encontrar muitos referenciais de como nasce o butô de Hijikata, pois toda a sua vida é seu butô. Precisa-se, então, ater a atenção novamente para um deles, qual seja, a poética política. Não se pode negar o forte ativismo político presente em Hijikata, e como já dito anteriormente, se isso faz parte dele faz também parte de sua dança. É importante ressaltar o fato de que o que se denomina aqui de ativismo político não se dá na forma de uma dança panfletária ou menos ainda se refere a partidos políticos. Um exemplo disso para tornar mais clara essa diferença: em uma entrevista com Kuniichi Uno20, ele contava sobre a participação de Hijikata em uma manifestação no Japão, não era uma forma comum de se manifestar, ou seja, gritando e “marchando” coletivamente, era simplesmente uma caminhada sozinha e lenta segurando uma melancia. Dessa forma, não se trata de levantar bandeiras, mas de encontrar pelo seu corpo e sua arte a maneira de protestar aquilo em que acredita. A política está e se faz em seu próprio corpo, e no momento em que ele dança há uma potencialização de suas questões marginais, e de seu movimento contrário às formas de poder sobre o corpo. Isso é chamado de poética política nesta pesquisa, um movimento pela arte contra os modelos impostos ao corpo e seu encerramento em uma determinada funcionalidade. O texto To prison se trata realmente de um manifesto no sentido de que há denúncias da sociedade e anúncios de sua dança como potência para o corpo. Escrito em janeiro de 1961, To prison é um ataque poético às imposições sociais que fixam o corpo em produção e função, é também uma defesa poética dos corpos aprisionados, principalmente, dos jovens criminosos. É uma visão diferenciada da marginalidade, é um olhar para pequenas mazelas que podem ser extremamente potentes enquanto vida e 20 Kuniichi Uno é filósofo japonês e esteve na cidade de Ouro Preto – MG para participar do Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana – Fórum das Artes 2014 – e, gentilmente, me concedeu uma conversa com tradução de Everton Lampe.

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enquanto arte. Este manifesto se inicia, aparentemente, rodeado por certa dor, em que Hijikata conta fatos íntimos de sua vida. Mas isso não é, de forma alguma, algum tipo de vitimização, essas “feridas” são ferramentas para a sua dança. As palavras contidas nesse manifesto, principalmente, demonstram uma dança que parte também de sua intensa preocupação com a sociedade, encontram-se momentos de raiva, vontade de mudança e passagens de sua vida que refletem absolutamente na construção política de sua arte. Frases que dizem, por exemplo, que cresceu farejando criminosos e que não será mais enganado pela democracia, apontam para uma poética que tem intrínseca uma postura política de reação. Quando explicito aqui a dificuldade em acessar o trabalho deste dançarino, refirome à poesia de sua escrita, a qual possui como costura metáforas e imagens. Há, por exemplo, a figura de um cachorro: o cachorro é recorrente em seus manifestos, muitas vezes ele se aproxima, outras ele se distancia da imagem do cachorro, este cachorro lambe as feridas do capitalismo. Em que ordem de significado pode ser colocada essa imagem? Possivelmente não é de um cuidado com o capitalismo a que se faz referência. Mas, de um corpo, que de alguma forma tenta lidar com as marcas de um sistema. Como um cachorro que lambe as feridas do capitalismo, Hijikata dança. Outra potente imagem que se sobressalta no manifesto é a prisão, já anunciada no próprio título, a prisão como um local onde há o corpo nu e a morte unidos, e esses dois elementos são mecanismos, para Hijikata, contra a produção e a moral. Dessa forma, esse seria um espaço mais atrativo para ser desenvolvida a sua dança. Por se tratar de um texto que segue com os marginais e criminosos. Hijikata acredita em uma dança onde haja a auto-ativação humana, sendo assim, a prática de auto-ativação humana seria o que se chama de dançarino. O fato de estar ao lado de criminosos e propor uma dança criminosa, uma auto-ativação humana e ainda trabalhar, principalmente, contra o corpo produtivo, a moral e o capitalismo, tudo isso faz com que se componha, nas palavras de Hijikata, manifestações histéricas, consideradas por ele de suma importância para o teatro daquela época. Essa importância política, além de tratar de tabus sociais, toma também um lugar onde há o movimento contrário ao que era apresentado na época. A política pelo corpo, na dança, portanto, gerou reflexos capazes de influenciar o pensamento acerca das linguagens artísticas naquele período. Há uma intensa preocupação com os jovens marginais e também aqueles que vão para o exército, há uma crítica intensa em relação a tirar a esperança de vida desses jovens, que não têm direto da fala antes ou depois de qualquer ação. Hijikata acredita, pois, que sua dança poderia transformar esses jovens em “armas letais que sonham”. Então, a dança seria uma “provocação” perante a sociedade. Dessa forma, diz: Mas uma língua que lambe as feridas dessa civilização mecânica fugitiva já ultrapassa o âmbito dessa provocação. A política que oculta em seu peito uma função despida de significado é nada além de uma estação para os seres humanos incompetentes que começaram a duvidar sobre a origem de si mesmos.

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Caminhos da pesquisa em artes cênicas Temos de continuar a abrir a situação atual com as mãos que seguram um apagador de giz, apagando os sinais de um futuro impotente, de uma cultura de prantos tristes que existe na consciência do esqueleto da vítima. Estou colocando no corpo do meu trabalho um altar semelhante ao ascetismo, em frente a um corpo humano purgado de impurezas. Meu trabalho é remover armas de brinquedo a partir de membros da juventude de hoje, que se desenvolveu em circunstâncias estéreis, e para terminá-los como soldados nus, com uma cultura nua (HIJIKATA in KIRIHARA, 2000, p. 47). 21

Este soldado nu é aquele que enfrenta o tratamento que foi dado às suas pernas, pernas que Hijikata diz terem sido domesticadas pelo andar, mais uma vez, aponta para outro uso do corpo, e de que uma “remodelação humana será realizada apenas pelo envolvimento de uma arma letal que sonha e que ignorou por muito tempo a pobreza da política” (Idem, p. 48).22 Em maio de 1969 foi escrito From being jealous of a dog’s vein, como o próprio nome mostra, a figura do cão retorna às suas referências imagéticas. Causa certa intriga saber o que, no cão, despertava tamanho interesse em Hijikata, a ponto de ter inveja de suas veias e costelas. Como o foco aqui se trata de uma poética política, tendo a pensar que o cão é uma figura que, de alguma forma, tenciona relações sociais e políticas. Supõe-se que o cão aparece como um animal também abandonado e excluído da sociedade, e por isso mesmo é independente. Um cão de rua é um animal que se movimenta também no grupo dos marginalizados. Nesse manifesto há indícios de certa admiração de Hijikata pela magreza do cão, onde seus ossos estão aparentes, e isso também é a construção do butô. Este texto apresenta um lado do dançarino um pouco mais sombrio, mais visceral, mais próximo à criminalidade. A exemplo disso, estas palavras: “Eu sou capaz de olhar para um corpo nu destroçado por um cão. Esta é uma lição essencial para o butô e conduz à questão do que exatamente é o ancestral no corpo do butô” (Idem, p. 56).23 As metáforas tornam um pouco nebulosas as tentativas de decifrar a poética desse dançarino japonês, porém, elas se transformam também em afirmação de uma dança onde não há um sistema pronto e correto. Dessa forma, o artista que deseja experimentar em seu próprio corpo um pouco da dança, terá de construir também a sua poética. E nessa construção da poética está a busca de um caminho próprio de cada artista. Nesse sentido, pode-se concordar com o dançarino japonês Min Tanaka quando deseja sorte aos que dançam butô e afirma não fazer parte disso. 21 “But a tongue that licks the wounds of this runaway mechanical civilization already exceeds the scope of our provocation. Politics that conceal in their breast a function stripped of meaning are nothing but a station for incompetent humans who have started to have doubts about themselves at their source. We must continue to open up the current situation with hands that hold a chalk eraser which wipes out signs of an impotent future, of that culture of mournful cries which exist in the skeleton of victim consciousness. I am placing in the body of my work an altar similar to asceticism in front of a human body purged of impurities. My work is to remove toy weapons from the limbs of today’s youth, who developed in barren circunstances, and to finish them as naked soldiers, as a naked culture”. 22 “[…] human remodeling will be accomplished only by getting involved with a dreaming lethal weapon that has long ignored the poverty of politics”. 23 “I am able to look at a naked human body savaged by a dog. This is an essential lesson for butoh and leads to the question of exactly what ancestor a butoh person is”.

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Conseguir adentrar nos escritos de Hijikata não é tarefa fácil, começando pelas traduções que se fazem necessárias. Hijikata tinha uma maneira de escrita muito peculiar, seus relatos são poesias e suas poesias são os nascimentos de sua dança. Torna-se árdua a tentativa de acessar seus escritos para entender racionalmente sua dança; e este próprio modo de entender racionalmente sua dança já é uma fuga do que ele, enquanto artista, pretendia ou tinha como proposta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CENTONZE, Katja. Aspects of subjective, ethnic and universal memory in Ankoku Butoh. Asiatica Venetiana, Venezia, v.8/9, 2003-2004. KIRIHARA, Nanako. Hijikata Tatsumi: The words of Butoh. In: TDR – Theatre Drama Review V. 44 n. 1 (T 165), Spring 2000. Cambridge: MIT Press, 2000. PERETTA, Éden. O soldado nu: origens da Dança Butô. São Paulo: Perspectiva, 2015.

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LES BALLETS C DE LA B: POÉTICAS TRANSVIADAS NO TEATRO-DANÇA Fernanda Bacha Ferreira Universidade Federal de Ouro Preto

Les ballets C de la B – uma cia. de dança/teatro A cia. Les ballets C de la B nasceu em Ghent, uma cidade universitária, situada a aproximadamente 55 quilômetros da capital Belga, Bruxelas. A cia. foi fundada por Alain Platel, ortopedagogo e diretor artístico, com a ajuda de sua irmã e amigos na casa em que moravam, no ano de 1984. No começo, as apresentações eram pequenas e para poucas pessoas, era uma espécie de reunião entre amigos com cunho artístico. Apresentavam amigos, artistas amadores e profissionais, e a partir desses encontros a cia. foi tomando corpo e se formando. O primeiro espetáculo da cia. foi Stabat Mater (1984), mas foi com Bonjour Madame (1993) que Les ballets tiveram o seu primeiro reconhecimento. Les ballets C de la B por muitos anos foi um grupo colaborativo, que apresentava trabalhos de variados coreógrafos, por isso também apresenta uma linguagem rica cenicamente falando, devido a olhares e formas de criações diferenciados. Alain Platel sempre foi a força motriz da cia., tido como diretor do Les ballets, e, atualmente, devido ao corte de gastos dos investidores e algumas exigências, Alain Platel passou a ser também o único coreógrafo. Platel, no início de sua carreira como diretor, encorajou novos bailarinos e coreógrafos, para que se juntassem às construções do Les ballets, que têm como características fortes a dança contemporânea, mas também outras linguagens da dança. Buscou também para a composição da cia. artistas com certa timidez, pois assim poderia explorar outra maneira de movimento, um lugar onde o medo de se expor e de se mover pudesse aparecer de forma mais sincera na composição cênica. O diretor também desenvolve suas criações com improvisações, movimentos cotidianos, canções e textos em processos abertos. Desde a fundação da cia., Platel incentiva a criação dos artistas, pois acredita em um trabalho colaborativo no qual a vontade de estar ali é de todos e a participação do grupo é fundamental para o desenvolvimento das práticas. Na busca de experimentar novas possibilidades em suas obras, utilizou variadas formas criativas de áreas artísticas distintas em seus processos. A música é um elemento forte presente nos espetáculos, a encenação, a dança, e fundamentos de práticas circenses completam a cena, sendo assim substancial em suas experiências a sinceridade com o que se é proposto e um olhar singelo ao cotidiano do mundo, pois uma miscelânea das distintas áreas artísticas é feita para a composição dos trabalhos. O diretor/coreógrafo vai além a sua perspectiva artística e mergulha na pesquisa da ortopedagogia em busca de uma nova possibilidade para o desdobramento do seu 140 |

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trabalho. Procura entre suas criações inovar seu trabalho, apropriando de diferentes linguagens de comunicação, além das técnicas da dança. Ele acredita que o corpo em sua singularidade se adapta às suas necessidades no esforço para uma troca com o outro. A partir do ano de 2006, com o espetáculo vsprs, invade a cena artística com outro despertar para a expressão do corpo no espaço cênico. Platel desdobra seus trabalhos com variadas indagações através da desconstrução do movimento, do cotidiano e da releitura das técnicas artísticas desenvolvidas pela bagagem artística e de vida trazida por cada intérprete do Les ballets. Segundo Juliana Neves, intérprete/criadora desde 2003 na Cia. Les ballets C de la B, o nome do grupo nasceu de uma brincadeira, Les ballets C de la B (Les Ballets contemporains de la Belgique), fazendo a tradução do francês, “O Balé contemporâneo da Bélgica”. Apesar do histórico da dança moderna e contemporânea já ser extenso e com grandes nomes na época, o Balé Clássico, principalmente na França, ainda era o vislumbre da dança. Assim se deu o jogo com o nome, pois não utilizamos a nomenclatura balé contemporâneo, e o que Platel propôs desde o início da cia. foi a desconstrução de um corpo padrão, e essa desconstrução reverberou no nome da cia., desconstruindo o balé e chamando-o de contemporâneo. Lembrando que em terminologias acadêmicas, Les ballets C de la B se aproximam da linguagem da dança/teatro de Pina Bausch, bailarina e coreógrafa alemã do Tanzteather. Fazendo um breve contexto histórico dessa nova maneira de fazer dança, saindo dos moldes da técnica clássica, podemos começar por Rudolf Von Laban (1879-1958), criador da Labanotação, no início do século XX, por quem o corpo foi codificado por símbolos, mapeando seus processos de movimento. Sua relação com o corpo está entre o movimento humano e o espaço ao qual esse corpo está imerso. Por não aceitar o vazio existente nas peças de teatro e dança da época, trouxe para o seu trabalho o resultado das próprias paixões e lutas interiores e sociais, representadas por personagens simbólicas ou estado de espírito puros, vividos através do movimento utilizado de maneira mais espontânea... (DE VECCHI apud SÁNCHEZ, 2010, p. 2).

Além de buscar preencher o vazio no teatro e na dança, com elementos que trouxessem alguma significância emocional ou social, existiam no trabalho de Laban como coreógrafo três tópicos importantes, o gesto, o som, e a palavra; e seu desdobramento acontecia com movimentos cotidianos, movimentos puros ou abstratos, com narrativas cômicas ou abstratas. O uso da voz, do poema e do silêncio também foram fundamentais em sua pesquisa. O coreógrafo, mesmo ainda se prendendo as posições do balé clássico, a partir de suas pesquisas trabalhou por uma dança mais livre. Fundou sua escola na Alemanha e teve durante seu percurso dois seguidores que se destacaram na história da dança/ teatro. Esses foram Mary Wigman (1886-1973) e Kurt Joss (1901-1979), que a partir dos estudos de Laban criaram seu próprio estilo de trabalho, bebendo da fonte de seu pre| 141

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ceptor, onde as criações de novas expressões do corpo eram essencialmente o ponto de partida para as novas buscas e inquietações provocadas em cada um dos artistas. Mary Wigman desenvolveu sua pesquisa de movimento corporal criando a dança expressionista alemã. Seu trabalho parte dos sentimentos, buscando falar com o corpo, sem representação, mas com expressões que digam o que se sente. Wigman rompe com os paradigmas do balé clássico e constrói uma nova relação entre a dança e o corpo, não existe movimento pré-estabelecido, os movimentos partem de dentro para fora. Diferente de Kurt Joss que, em seus trabalhos, apesar de trazer uma nova visão para a dança, ainda utiliza da técnica clássica para se comunicar, mas desconstruindo em partes seus padrões. Na dança expressionista da bailarina e coreógrafa Mary Wigman o trabalho era individual, partindo de suas lutas e angústias presentes ali pelo o que acontecia com o mundo e principalmente com a Alemanha nas interseções entre a primeira e a segunda guerra mundial. Guerras essas que trouxeram uma explosão de sensações e sentimentos que, na visão de Wigman, perpassavam pelo corpo e pelos movimentos. Joss, apesar de trabalhar temas sociopolíticos, não perdeu a estrutura formal na composição de suas obras, e em seu processo utilizava as teorias estudadas com Rudolf Von Laban, respeitando a harmonia do espaço e as qualidades dinâmicas de movimento, com a técnica da dança clássica. Mesmo assim foi um dos precursores da dança expressionista alemã, ao lado de Mary Wigman. Pina Bausch (1940-2009), bailarina e coreógrafa, também alemã, nasceu na década de 40. Após estudar dança com diversos professores do mundo, cria sua própria visão sobre o movimento do corpo. Semelhante a Laban em vários aspectos, se diferencia na questão técnica de pesquisa: a coreógrafa não se atenta muito a termos técnicos e teóricos; seu estilo de criação se assemelha mais com o de Wigman, e buscou desenvolver em seu trabalho os sentimentos, a história que cada artista carrega em si, em cada construção de vida do ser humano. Partindo dessa perspectiva, a dança/teatro ganha maior peso no nome com o trabalho de Bausch, no qual a coreógrafa incentiva os bailarinos a criarem composições coreográficas a partir das emoções e vivências. Segundo Sánchez, o desenvolvimento do processo dos artistas que trabalhavam com a coreógrafa: Não é realizado por atores que dançam, ou atores específicos do teatro, dança e canto, como os de teatro e musicais, mas por participantes capazes de utilizar o corpo em sua totalidade expressiva. Totalidade expressiva pouco utilizada por muitos outros grupos... (SÁNCHEZ, 2010, p. 46).

Bausch busca em sua composição cênica a riqueza das expressões que o corpo e os movimentos fragmentados e repetitivos podem oferecer, aproximando seu trabalho da dança/teatro de Laban e a dança expressionista de Mary Wigman e Kurt Joss, que buscavam atravessar a linguagem entre os gestos e as palavras. Sua visão criativa vai além do que pode ser palpável ou entendido, suas inquietações vêm de uma procura 142 |

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maior do que o movimento expressado, um modo diferenciado e difícil de ser explicado através da teoria, em que a vivência é fundamental para o processo. Sánchez descreve sobre sua prática dizendo que a experiência que teve em Wuppertal foi: […] algo que não pode ser compreendido como um conhecimento (catalogado, semiotizado, enformado), mas tão somente como um “nó” inscrito em uma conduta a ser expressa por meio da peculiaridade construída no silêncio – silêncio que atravessado pelo que não pode ser conhecido, uma vez que é indeterminado (Idem, p. 48).

Pela descrição de Sánchez em sua vivência, a inerência de cada trabalho não permite que ele seja sistematizado em uma única fórmula, pois a construção do corpo vem a partir das individualidades, dos processos vividos e sentidos por cada um. Em cada corpo está contida uma história diferente, que se modifica através do conhecimento adquirido ao longo do tempo ou até mesmo pelas confusões e conflitos gerados ali. São nessas transições que estão à busca pela expressividade de cada pessoa. E é nessa perspectiva e compreensão artística que se encaixa o trabalho de Alain Platel com Les ballets C de la B. As criações e sua poética corporal a partir de Wolf (2003) Juliana Neves, intérprete/criadora da Cia. Les ballets C de la B, que participou do elenco do espetáculo Wolf (2003), seu primeiro trabalho realizado junto ao grupo do diretor/coreógrafo Alain Platel, trabalhou como assistente de direção de Platel na criação de vsprs (2006), voltou a estar em cena no espetáculo Pitié! (2008), em Out of context – for Pina (2010). Juliana ficou de fora do elenco para criar, a partir do processo do espetáculo, o primeiro workshop dado por ela, dentro da cia., ao lado de seu colega de trabalho Quan Bui Ngoc, em C(h)oerous (2012). Voltou a estar em cena e, desde 2010, quando foi criado o workshop, ela desenvolve anualmente trabalhos nesta área junto ao Les ballets. Seguindo o olhar de Juliana Neves, Alain Platel tem uma forma singular de desenvolver seus trabalhos. O diretor/coreógrafo abre muito espaço para a criação dos intérpretes, seus espetáculos partem das experiências e vivências de cada integrante do grupo. Juliana relata que a primeira vez que esteve com Platel, em Wolf, durante a criação do espetáculo, ela se sentiu muito perdida no processo e disse que isso é recorrente com os intérpretes ao longo da elaboração das peças do diretor e que quando questionado sobre essa passagem pela perda, a resposta que Platel dá é que se eles estão perdidos é porque algo está acontecendo e isso é um bom sinal. Para a intérprete/criadora da cia., Alain Platel é diretor sem dirigir, manipulador sem manipular, é muito aberto para escutar os artistas que estão no momento da criação e que, a partir da liberdade que empresta ao elenco, consegue controlar e organizar toda a produção mesmo trabalhando com muita improvisação e com artistas de nacionalidades e bagagens distintas. Platel tem formação em ortopedagogia, e desenvolveu durante algum tempo de sua vida trabalhos com crianças e adultos com algum tipo de | 143

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deficiência, seja ela motora ou psíquica, tendo assim uma maneira diferente de ver e usar o corpo em suas criações. As apresentações da cia. não envolvem apenas a dança, mas também elementos circenses, a teatralidade, fala, trabalhos corporais marcantes e em muitos dos espetáculos utilizam de música ao vivo e instrumentos, além de vozes e música produzida de maneira improvisada pelos intérpretes. Em um livro produzido pela cia. sobre o espetáculo Wolf, questionaram os intérpretes/criadores com três perguntas sobre a produção do espetáculo: “O que você falou especialmente durante os ensaios de Wolf?”, “Do que você tem medo?”, “Sua origem tem importância no seu papel em Wolf?”. No livro, os intérpretes/criadores dão suas respostas, cada um com sua bagagem e visão sobre o processo do espetáculo, relatando de forma simples seus medos e buscas durante a montagem. Respostas de alguns bailarinos: Quan Bui Ngoc, Handi, Vietnã: Onde está Michael?, O Inesperado, Sim. Samuel Lefreuve, Vire, França: Do que nos faz medo, da importância da nossa origem, etc., De perder uma parte da minha família, meu corpo, minha memória..., Como membro da máfia francesa, eu me sinto obrigado a dizer positivamente. Lisi Estarás, Córdoba, Argentina: Em primeiro lugar sobre nossos desejos privados e em segundo políticas e como elas afetam nossos desejos. A volta da guerra e como as coisas estão se voltando no mundo. Sendo judia e argentina é gerado um sentimento contraditório.

Wolf era um espetáculo que falava sobre as nacionalidades e a importância dela para cada um dos intérpretes, pensando que dentro do elenco havia pessoas vindas de lugares e culturas bem distintas. A brasileira Juliana Neves conta que durante o processo de criação cada um deveria defender com unhas e dentes sua nacionalidade e sua cultura, impor o seu lugar no mundo e mostrar a importância de cada um ali naquele espaço. Essa imposição de cada intérprete gerou uma cena com bandeiras de países distintos. Como a maioria dos espetáculos de Platel, Wolf é uma miscelânea das artes, com artistas de técnicas variadas, vindos de várias partes do mundo. O cenário retrata um espaço urbano Belga, na época meio abandonado, na cidade de Bruxelas. Os figurinos às vezes cotidianos, às vezes extravagantes, completam o caos da cidade. A turnê de Wolf, quando passou por Paris, recebeu várias críticas do público, e como disse Juliana Neves, os espetáculos produzidos por Platel ou são amados ou odiados pelo espectador. Eles causam reflexões, eles tiram o público do lugar passivo de apenas plateia, muitas vezes causam incômodo e arrancam suspiros, devido à sua forma de relacionamento com o cotidiano. Entre a produção de Wolf (2003) e vsprs (2006), Alain Platel durante esse período fez um curso de linguagem de sinais, mas sem deixar Les ballets. Platel, no ano de 2004, esteve em Israel como o grupo para fazer um trabalho chamado Ramalah Ramalah, do 144 |

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qual Juliana Neves também participou como intérprete/criadora e, em 2006, criou vsprs, que teve a participação de Juliana como assistente de direção. O espetáculo vsprs foi um trabalho criado a partir de pesquisas variadas. Uma das bases da criação foi a história da Virgem Maria e outra inspiração para a construção da obra foi o filme Arthur, que fala sobre um hospital psiquiátrico. A partir de vsprs, Platel começa a investigar mais o corpo do intérprete/criador dentro de sua pesquisa em ortopedagogia. Pensando em corpos com certa dificuldade e/ou deficiência, o diretor desperta no elenco uma nova forma de construir/desconstruir o corpo. Platel busca trabalhar com reações instantâneas, as primeiras reações do corpo, as primeiras ideias vindas a partir dos estímulos dados para a criação. Durante o processo, como relata Juliana Neves em suas anotações como assistente de direção de vsprs, o corpo dos intérpretes é trabalhado de forma animalesca: cada artista busca um corpo de animal em duos criados ao longo da produção. Nas palavras Juliana Neves: “Alain vê que o mais interessante não é ‘rebobinar, retroceder’ um movimento, frase de dança, mas sim, aonde o movimento fica stucked. Movimentos cotidianos e simples e ficar stucked e depois fazer voltando”. Questão levantada por ela: “Como fazer esse movimento ao reverso?” Ainda nas palavras de Juliana Neves: Como “ligar” todos esses elementos dentro da mesma direção? Ele prefere não ver “as diferenças” e sim que todos “caminhem” na mesma direção até o “êxtase”. Talvez analisar o material para achar as semelhanças e não as diferenças. Acentuar as semelhanças no material para chegar à mesma energia. Antes ele trabalhava para acentuar os indivíduos e em alguns momentos eles se juntam. Para vsprs parece diferente. Talvez todos deveriam ir na mesma direção (todos deveriam ter a mesma ideia na cabeça) como se estivéssemos esperando a Virgem Maria (êxtase) aparecer. (Essa ideia é interna) (NEVES, 2015).

Ao lado de Platel, Juliana Neves, como assistente de direção, pode entender melhor do processo criativo do diretor, que a cada espetáculo inovava sua maneira de trabalho. Em vsprs, a novidade estava marcada no corpo dos intérpretes/criadores, que além da técnica em dança e de toda bagagem artística, ganharam por inspiração, corpos “doentes” e deficientes, trabalhados por Platel na ortopedagogia. Buscando uma referência teórica que dialoga com o que Platel, começa a propor em vsprs, a partir da pesquisa realizada com deficientes físicos e/ou mentais, o livro A cena contaminada, de Jozé Tonezzi (2011), que se refere ao corpo em desconstrução e/ ou com deficiências/deformidades como grotesco, discutindo as relações do corpo belo e do corpo grotesco. Sendo assim, o autor diz: Trata-se de comportamentos e momentos de manifestações em que o corpo belo se transforma e assume a sua crua condição de matéria degenerativa e passageira, dando lugar ao orgânico, ao visceral e ao escatológico. O corpo grotesco não se mostra

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Caminhos da pesquisa em artes cênicas acabado nem isolado do mundo...é um corpo eternamente incompleto, que desafia o sentido da estabilidade das coisas por meio de inacabamento, mutilação ou metamorfismo (TONEZZI, 2011, p. 44).

Refletindo sobre o que Tonezzi traz, o trabalho de Platel a partir de vsprs apresenta esse corpo grotesco, incompleto, em que os interprétes/criadores estão sempre em pesquisa e experimentação, utilizando a desconstrução e as possibilidades de transformação do corpo, como inspiração para a criação cênica. Em Out of context – for Pina (2010), Platel continua com o trabalho mais profundo da desconstrução do corpo utilizando ainda de maneira forte a ortopedagogia. Mas segundo Juliana Neves, o Out of context – for Pina foi um espetáculo criado às pressas, sem muitos recursos, por isso a simplicidade apresentada nos figurinos e no cenário. A ideia de ser um espetáculo em homenagem a Pina Bausch, umas das maiores referências para o trabalho de Alain Platel, surgiu no momento de dar o nome ao espetáculo que estava com data marcada para estreia e precisava de um nome para divulgação. Por isso, o nome Out of context (Fora do contexto – para Pina – que havia falecido em 2009 –, em tradução livre). Foi um espetáculo fora do contexto, criado sem muitas intenções, que acabou homenageando a bailarina/coreografa alemã e rodando o mundo. Out of context – for Pina foi apresentado no Brasil e foi a partir dessa criação que surgiram os workshops com Juliana Neves e Quan Bui Ngoc, que até hoje são oferecidos pela cia. em sua cidade sede, Gent, Bruxelas. A partir desse exercício de pesquisa, a Cia. Les ballets C de la B aparece como possibilidade de estudo dentro da área da dança/teatro com forte referência nos trabalhos de Pina Bauch e a pesquisa desenvolvida por Alain Platel em ortopedagogia. Essa interseção reflete a construção dos corpos dos intérpretes/criadores do Les ballets, trazendo indagações sobre as criações dos espetáculos propostos por Platel.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NEVES, Juliana. Entrevista/conversa com a brasileira intérprete/criadora da Cia Les ballets C de la B: depoimento. Bruxelas. Entrevista concedida a Fernanda Bacha em 15 de julho de 2015. SÁNCHEZ, Lícia Maria Morais, A dramaturgia da memória do teatro-dança. São Paulo: Perspectiva, 2010. TONEZZI, José, A cena contaminada: um teatro das disfunções. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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O MOVIMENTO NO TERRITÓRIO DO CORPO SENSÍVEL E DO CORPO POÉTICO Carmem Machado Universidade de Sorocaba

O desenho como palco de suas encenações As primeiras motivações que me levaram a realizar a essa experiência surgiram do encontro com o vídeo (uma propaganda) em que crianças entre quatro e sete anos faziam leituras da obra Escada inexplicável, de Regina Silveira. O que chamou minha atenção para essa propaganda foram as leituras fantasiosas que as crianças faziam da obra. Para Edith Derdyk (2015, p. 128), “a capacidade de imaginar é de suma importância para o conhecimento, incluindo o conhecimento científico”. Pois imaginar é projetar, é pressagiar, é estimular nossa sensibilidade para algo antes mesmo de existir a situação concreta. Propus essa mesma experiência para as crianças do primeiro ano do Ensino Fundamental da EMEIF Jana Marum dos Santos (Salto de Pirapora - SP) em nossa primeira aula, e o imaginário também se fez presente na oralidade e nos desenhos. Importante ressaltar que este foi o primeiro contato com a disciplina de arte na educação formal, e o primeiro ano em que as crianças realizam encontros com a professora especialista na área. Como, então, apresentar a disciplina de arte no cotidiano escolar? Quais as expectativas em relação ao que será apresentado? O que as crianças esperam de uma aula de arte?

Figura 1 – Tropel Reverso (2009). Vinil adesivo, 700 m2. Køge Art Museum, Dinamarca - Tropel (reversed), 2009. Adhesive vinyl, 700m2. Køge Art Museum, Denmark. Foto: Regina Silveira. Disponível em: . Acesso em: 15 de fev. de 2016. | 147

Caminhos da pesquisa em artes cênicas

Continuei a provocação valendo-me de outras obras da artista, dentre elas estava Tropel, que mostrava pegadas imensas de animais que pareciam ter escapado deixando suas marcas espalhadas sobre vinil branco aplicado sobre paredes e teto. Trouxe aspectos da experiência corporal vivenciada em aula com Neide Neves, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sobre a técnica Klauss Vianna para trabalhar com os estudantes. Iniciei com a massagem nos pés e pude perceber que os alunos ficaram surpresos ao perceber a movimentação que surgia quando moviam as articulações dos dedos. Nesse primeiro toque nos pés, o que chamou atenção deles foi a pele em movimento: “A pele parece que é a roupinha do osso”, concluiu uma das alunas. Logo em seguida, foram descobrindo as articulações e os espaços que existem entre elas. Vianna (2008, p. 136) observa que, ao trabalhar inicialmente com os pés realizando os movimentos enquanto conversa, “os alunos começam a recuperar e a perceber a totalidade e a ligação entre as várias partes do corpo”, e que nossos pés são reveladores, pois através deles podemos constatar como nos relacionamos com a vida. Ao modificarmos o estado da articulação, mudamos os músculos que utilizamos para um determinado movimento. Movendo outros músculos, acessamos outros aspectos da nossa memória ligados a eles. Assim, estrutura e significado, sintaxe e semântica caminham juntos, conclui Neide Neves (2008).

Figura 2 e 3 – Experiência I. Fonte: Arquivo Pessoal. Fotografias: Leandro Jesus.

Não sei se posso relacionar o discurso de Vianna com as descobertas das crianças, mas o fato é que foi muito importante conhecer os pés para depois fazer o contorno deles na folha. Quando a linha aparece só, ela ocupa pequenas áreas, mas quando surge em grupo, ela se expande numa ocupação integral do espaço do papel, e o branco do papel é alterado, gerando novos significados. Para Derdyk (2015, p. 139), ora o “papel é o mero suporte para a linha vaidosa, ora fundo para encenações lineares, ora surge como luz, como figura, como valor, como presença”. Para a artista, qualquer superfície riscada sugere que alguém deixou sua marca nesse local, casual ou intencionalmente. Podemos dizer que esses registros gráficos são gestos depositados na superfície. E a linha-traço é a escritura do gesto. Notei que as crianças tinham muita dificuldade em movimentar o corpo para fazer o traçado, e que esse movimento pode ser um dispositivo disparador para a movimen 148 |

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Continuei a provocação valendo-me de outras obras da artista, dentre elas estava Tropel, que mostrava pegadas imensas de animais que pareciam ter escapado deixando suas marcas espalhadas sobre vinil branco aplicado sobre paredes e teto. Trouxe aspectos da experiência corporal vivenciada em aula com Neide Neves, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sobre a técnica Klauss Vianna para trabalhar com os estudantes. Iniciei com a massagem nos pés e pude perceber que os alunos ficaram surpresos ao perceber a movimentação que surgia quando moviam as articulações dos dedos. Nesse primeiro toque nos pés, o que chamou atenção deles foi a pele em movimento: “A pele parece que é a roupinha do osso”, concluiu uma das alunas. Logo em seguida, foram descobrindo as articulações e os espaços que existem entre elas. Vianna (2008, p. 136) observa que, ao trabalhar inicialmente com os pés realizando os movimentos enquanto conversa, “os alunos começam a recuperar e a perceber a totalidade e a ligação entre as várias partes do corpo”, e que nossos pés são reveladores, pois através deles podemos constatar como nos relacionamos com a vida. Ao modificarmos o estado da articulação, mudamos os músculos que utilizamos para um determinado movimento. Movendo outros músculos, acessamos outros aspectos da nossa memória ligados a eles. Assim, estrutura e significado, sintaxe e semântica caminham juntos, conclui Neide Neves (2008). Não sei se posso relacionar o discurso de Vianna com as descobertas das crianças, mas o fato é que foi muito importante conhecer os pés para depois fazer o contorno deles na folha. Quando a linha aparece só, ela ocupa pequenas áreas, mas quando surge em grupo, ela se expande numa ocupação integral do espaço do papel, e o branco do papel é alterado, gerando novos significados. Para Derdyk (2015, p. 139), ora o “papel é o mero suporte para a linha vaidosa, ora fundo para encenações lineares, ora surge como luz, como figura, como valor, como presença”. Para a artista, qualquer superfície riscada sugere que alguém deixou sua marca nesse local, casual ou intencionalmente. Podemos dizer que esses registros gráficos são gestos depositados na superfície. E a linha-traço é a escritura do gesto. Notei que as crianças tinham muita dificuldade em movimentar o corpo para fazer o traçado, e que esse movimento pode ser um dispositivo disparador para a movimentação do corpo (dança-teatro) enquanto desenha, podendo nos levar a pensar em dançadesenho como um único movimento. Ao desvencilhar os gestos da atitude gráfica adquirida na escrita, ou mesmo no processo de aculturação pelos quais a criança passou ou está passando, é possível conquistar, nesse processo, a liberdade da linha. Só é possível descobrir a plena expressão da linha quando existe interação mão/gesto/instrumento. Ao pedir para as crianças desenharem a sombra de seus pés, o trabalho de equilíbrio foi extremamente necessário. Jussara Miller (2007) diz que só adquirimos a centralização do corpo com o alinhamento da estrutura óssea e o tônus muscular adequado. Para o alinhamento ósseo, Miller (2007, p. 74) nos convida a observar “os apoios dos pés e como estes interferem em toda a estrutura de equilíbrio, sustentação e locomoção. O contato dos pés com o chão interfere na posição dos joelhos, da bacia, do tronco e da cabeça”. | 149

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Figura 4 e 5 – Experiência 2 e 3. Fonte: Arquivo pessoal. Fotografias: Leandro de Jesus.

A falta de sustentação do corpo para se manter no eixo dificultou a grafia-desenho, mas foi a projeção da sombra que provocou estranhamento. O desenho das sombras dos pés não correspondia à imagem que eles tinham do próprio pé, o que causou briga entre eles, dizendo que “a sombra projetada na parede, mais parecia um pé de bicho”. Retomei a obra de Regina, e só então eles perceberam como as sombras projetadas parecem maiores do que o tamanho real. As elaborações de Klauss Vianna têm nos acompanhado no processo lúdico, de modo a estabelecer um jogo de inter-relações entre articulações, peso e apoios. Segundo Vianna (2008, p. 137), “a criatividade exige espaço. Sem espaço interior não é possível exteriorizar nossa riqueza expressiva nem criar novos códigos de comunicação artística ou cotidiana”. Ambos os artistas trabalhavam com a materialidade dos pés, Regina Silveira nos convidava a observar as marcas/pegadas deixadas no espaço, já Klauss Vianna nos convocava a estar com os pés presentes e fincados no chão. Não tinha ideia de como estabelecer o diálogo, porém estava atenta aos movimentos dos alunos e aos discursos produzidos enquanto realizavam as atividades. Como a minha intenção era unir o desenho e a dança, comecei a fazer algumas anotações em meu “diário de bordo” utilizando perguntas, para que, posteriormente, fossem respondidas. Foram essas perguntas que sustentaram/motivaram a continuação da experiência. Quais eram os movimentos dos corpos dos alunos enquanto estavam desenhando? Havia movimento nos pés? Como desenhar em pé? É possível desenhar deitado no chão? Como inserir o movimento do corpo enquanto desenha? Escolher o corpo para trabalhar o desenho pode favorecer e desenvolver a sensibilidade, a imaginação, a criatividade, além da comunicação, pois, segundo Vianna (2008), “a nossa história se inscreve em nosso corpo e os movimentos são reflexos de emoções e sentimentos”. Seguindo o pensamento de Vianna, conclui-se que, ao acessarmos os espaços internos, ampliamos nossas capacidades expressivas através das conexões entre os sistemas conceitual e sensório-motor. Nossos experimentos não pararam por aqui, demos continuidade à sequência que havíamos planejado no início da proposta. Na caminhada, busquei ressaltar o trabalho com o calcâneo, metatarso e dedos, e de que modo poderíamos caminhar pensando nos ossos dos pés.24 24 Registro em audiovisual disponibilizado no link: https://www.youtube.com/watch?v=LNNhub3wUi8)

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Com essa caminhada descobrimos que, ao acionarmos outros ossos ao andar, surgiam outras possibilidades de movimento. Em seguida, utilizei a tinta e os pés como base, e fizemos carimbos nas folhas, formando uma composição de pés. O importante não era a estética da composição e sim a percepção de peso que evidenciava a dosagem do tônus muscular enquanto elas caminhavam (estado de tensão permanente dos músculos). Quando a criança caminhava excedendo a tensão da musculatura, percebi que a sensação de peso desaparecia, retraindo a articulação. Ao dosar a tensão na musculatura, equilibrando o tônus muscular, criava-se espaço nas articulações e a sensação de leveza era visível na caminhada. Cada passo gerava uma nova imagem, mesmo sendo os mesmos pés, o peso e a leveza do corpo interferiam na forma de pintar/desenhar/andar/atuar. Nesta experimentação, concluí que, ao utilizar o esforço adequado para executar o movimento, podemos transformar a tensão muscular em “atenção muscular”. Nesta ação/percepção, notamos a importância de utilizar o grau de tensão necessário para a realização do movimento.

Paulo Freire (1997, p. 134) diz que estar disponível é estar sensível aos chamamentos que nos chegam, e é, segundo suas próprias palavras, na “minha disponibilidade permanente à vida que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade, desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo”, e que nos damos à experiência de lidar, sem medo, com as diferenças.

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Na última aula, apresentei o vídeo25 da nossa caminhada com a tinta. Ao verem os movimentos dos pés, e recordarem o momento vivido, foram levados a vivenciar a deriva. Em meio ao riso, disseram que ficaram impressionados com o tamanho dos pés nos vídeos. Perguntaram se eu não havia pegado as imagens dos pés dos meus amigos para colocar no vídeo dizendo que eram os pés delas. Outras relações de identidade e de reconhecimento foram geradas por essa provocação de ver/rever sua própria imagem exibida em audiovisual. Alguns diziam que parecia uma dança, outros diziam que era um teatro – lembrando que em nenhum momento eu disse que estávamos trabalhando dança ou teatro. Perguntei aos alunos por qual motivo eles achavam que a nossa proposta parecia dança, eles responderam que era por causa dos movimentos, “cada um fazia uma coisa” e, quando estavam todos juntos, era como se estivesse acontecendo um espetáculo de dança que, por vezes, “parecia teatro” – disse um dos alunos. Num segundo momento, mostrei a obra Derrapagem, de Regina Silveira, e os próprios estudantes se propuseram a experimentar desenhar com os brinquedos em seus cadernos, mas a experiência nos convidava a buscar por outros espaços, além do caderno e da sala de aula. Um dos alunos sugeriu utilizar os brinquedos, perguntei para as crianças com quais brinquedos poderíamos fazer nossos próximos desenhos com os movimentos? Na aula seguinte, cada uma trouxe o que achava mais interessante deixar desenhado no papel. Derdyk (2005, p. 108) aponta que “a criança, ao selecionar e eleger um brinquedo, para brincar, está exercendo uma apropriação de recortes da realidade”. A leitura da realidade se manifesta através das representações, por meio das linguagens gráfica, teatral, corporal, falada e escrita. Dentre os brinquedos, estavam bonecas, bonecos, skate de dedo, carrinhos, motos e caminhões. Organizaram uma grande pista feita com papel sulfite, e entre as folhas de papel puseram pratos, que diziam ser as pontes. Os pratos estavam com tinta guache preta, e cada vez que os carrinhos passavam pelo prato reforçavam a tinta, de modo a conseguir mais precisão nos desenhos. Novamente os brinquedos ganharam a característica de carimbos. Em outros momentos, a brincadeira do faz de conta também adentrou o cotidiano escolar: as crianças fizeram com seus bonecos a mesma sequência trabalhada e experienciada por eles. Desta vez, quem estava desenhando e pintando nas folhas eram os pés de seus bonecos e bonecas, além das marcas deixadas pelas rodas do carrinho.26 Foi com o papel como suporte, fixado na parede, que os movimentos leves, circulares, foram sendo trabalhados. Os níveis alto, médio e baixo também foram inseridos na movimentação dos bonecos e dos carrinhos. Os movimentos dos braços foram surgindo, 25 Registro em audiovisual disponibilizado no link: . 26 Registro do processo disponível em: .

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Figura 9 – Derrapagem, 2004. Vinil adesivo e madeira, 5,14 X 21,44 m, “Projeto Parede”. MAM, 2004, São Paulo, SP, Brasil. Derrapagem, 2004. Adhesive vynil and wood, 5,14x21,44 m, “Projeto Parede”. MAM, 2004, São Paulo, Brazil. Disponível em: . Acesso em: 15 de fevereiro de 2016.

naturalmente, enquanto moviam os objetos. Derdyk (2015) nos acompanha nesta reflexão mostrando, através da ação/percepção, que a experiência de totalidade impera no gesto da criança. A forma como a criança expressa sua percepção espacial no papel espelha sua percepção corporal de si própria no espaço. Primeiro, foi necessário experimentar/explorar o espaço gráfico do papel, para depois vivenciar o movimento do gesto e do corpo no espaço. A experiência espacial de um adulto é bem distinta da experiência de uma criança. O mundo das crianças está ao redor e não somente diante, atrás, na frente ou ao lado, está em todos os lugares simultaneamente; o espaço da criança é constituído pelo corpo e pelos objetos dotados de afetos. A criança não compreende as noções de tempo, espaço e casualidade tal como o adulto por isso, é necessário trabalhar o imaginário para que as paredes invisíveis possam surgir. O ato de desenhar na parede, até então, era fruto de uma ação e de uma percepção. Agora, o estudante passa a processar a percepção emitindo conceitos. Concordo com Derdyk (2015, p. 126) quando diz que “criança assimila tudo o que vê e | 153

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vive”. Movida pelo desejo de conhecer, ela impulsiona a assimilação e a retenção dessas informações no corpo, confirmando a existência de uma memória corporal. A memória é aliada da imaginação, é nela que ficam retidos fatos, dados, signos gráficos, corporais que nasceram de um presente, ou de um estado de atenção e observação. Existe potencialidade na memória, tanto para o movimento quanto para o não movimento. Quando o corpo deixa de viver de forma poética o conhecimento adquirido, sem apropriação existencial, torna-se vazio de conteúdo vivido e de repertório gráfico. Considerações finais Ainda considero muito cedo para fazer as considerações finais sobre um processo que está apenas iniciando. Estou descobrindo a técnica Klauss Vianna, e partilhando essa experiência/experimentação com as crianças através da dança-desenho-teatro, caminhando para o que estou chamando de dançadesenho. Deixei um pouco de lado as regras e a obsessão em querer entender tudo. Segundo Freire (1997), para educar e se (re)educar é preciso estar disponível para o novo. Porém, para trabalhar com a novidade é preciso lidar com o risco com mais naturalidade. A escola não tem o papel de apenas aceitar o novo, mas de refletir sobre ele. O movimento de aprendizagem exige o movimento dinâmico e dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer. Ao longo dessa experimentação, notei que o saber da experiência é fundamental, mas é preciso que, através da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua se perceba como tal, e vá se tornando crítica. Quanto mais o(a) docente se apropria de sua própria prática, juntamente com a reflexão crítica sobre ela, melhor percebemos as razões que nos levaram a nos comportarmos de determinada maneira. Só assim podemos nos tornar os próprios sujeitos da mudança. Ao trazer essa experimentação para o espaço formal de educação, foi possível trabalhar a dança e o teatro como linguagem estética. Num processo contínuo de pesquisa, o desenho, que a princípio parecia ser uma atividade com poucos movimentos, foi se firmando numa natureza transitiva, intercambiando com as operações poéticas do fazer, extraindo da pesquisa um conhecimento gerador de movimentos, ao mesmo tempo em que emergia uma sensibilidade criadora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DERDYK, Edith. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. 5. ed. Porto Alegre: Zouk, 2015. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997. NEVES, Neide. Klauss Vianna: estudos para uma dramaturgia corporal. São Paulo: Cortez, 2008. SILVEIRA, Regina. Regina Silveira. Disponível em: . Acesso em: 15 de fev. de 2016. VIANNA, Klauss. A dança. São Paulo: Summus, 2008.

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O LIMIAR NA PREPARAÇÃO DO CRIADOR INTÉRPRETE Carolina de Pinho Barroso Magalhães (Carol de Pinho) Universidade Federal de Ouro Preto

O criador intérprete, presente nos diversos campos das artes corporais como a dança, o teatro e a performance está envolvidos em um “trabalho sobre si”. Há em seu corpo uma confluência de linguagens, imagens e memórias que o atravessam e transbordam em sua criação. Nunes (2002, p. 95) o compreende como aquele que “[...] busca uma assinatura a partir de seu próprio corpo num processo investigativo”, diferindo-o do intérprete criador, que, segundo a autora, apenas recombina padrões de movimentos. A denominação escolhida por essa autora se dá no intuito de problematizar uma das possibilidades de utilização das técnicas, através de modos passíveis a normatizações e reproduções, o que poderia resultar na produção de “corpos dóceis”: É dócil um corpo que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado [...] faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso e faz dela uma relação de sujeição estrita. [...] o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada (FOUCAULT, 1977, pp. 118-119).

Interessa-nos aqui, portanto, outra via na qual o criador-intérprete a partir de um “trabalho sobre si” recorra a técnicas, bem como as construa, como instrumentos potencializadores de sua pesquisa, estabelecendo um diálogo fluido entre a estrutura e a expressividade, o apolíneo e o dionisíaco. A noção de “trabalho do ator sobre si mesmo” foi concebida pelo ator e diretor Constantin Stanislávski e relaciona-se a um constante aprimoramento do ator na percepção de si mesmo, através da eliminação de bloqueios e investigação de memórias corporais, culminando nas ações físicas. “O ator é um sujeito que deve agir sobre si mesmo, transformando sua relação com o corpo e a subjetividade (memória, emoções, sensações, imaginação, vontade, etc.)” (QUILICI, 2012, p. 16). Jerzy Grotowski desenvolve as ideias de “trabalho sobre si” e de ações físicas de Stanislávski a partir do estudo dos impulsos. Através dessa investigação, instaura-se a via negativa de sua pesquisa. Grotowski deixa de procurar a construção de signos que acessem o inconsciente do espectador, e passa a focar suas investigações no trabalho com os atores, no intuito de desbloquear a passagem do fluxo de impulsos que iriam constituir as partituras. Através da repetição dessas sequências de ações físicas das partituras, o ator aprofundaria seu acesso ao corpo-memória e manteria vivos os contatos a partir de impulsos. Por essa via de comunicação e cumplicidade, portanto, se daria o acesso aos espectadores. | 155

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Na palestra “Trabalho sobre si mesmo em Grotowski e no Workcenter: novas formas de subjetividade, novos corpos”, Tatiana Motta Lima afirma que o “trabalho sobre si” é feito em contato, e difere-se de um mergulho em si egoísta e narcísico. Associa-o a um trabalho de resistência, no interior dos jogos de poder, no qual se faz necessário estar atento a subjetividades apegadas ao passado e a formas mecânicas de agir, sentir, pensar. Segundo Lima (2013), esse trabalho é uma seta em direção do que é desejante em nós, e se dá na direção do desconhecido, em uma zona de risco, já que conhecer-se através da transformação de si é converter-se em diferente de si. Para atuar nessa zona, portanto, faz-se necessário deixar-se habitar no lugar intermediário, que se dá entre o que já é conhecido e o que se está por conhecer, um “lugar de não saber o que fazer”, que gesto ou imagem produzir; é necessário aprender a vivenciar o limiar. Nas pesquisas de Walter Benjamin, filósofo e sociólogo alemão, o limiar surge como uma zona de passagens, transições, transbordamentos, fluxos e espaços intermediários. Dessa forma, o limiar opõe-se à ideia de fronteira, que indica limite, cisão, separação precisa, que “contém e mantém algo”, pelo fato de ser considerado um espaço de maior porosidade (GAGNEBIN, 2010, p. 13). Limiar, portanto, é uma zona intermediária, que permite o trânsito e a permeabilidade entre lugares distintos, e muitas vezes opostos, uma chave para o que vem antes e o que vem depois. A fronteira seria um espaço de limites definidos, que, segundo Gagnebin (2010, p. 13) “contém e mantêm algo, evitando seu transbordar, mantendo definidos os contornos e limitações de um território”. O limiar (soleira, umbral) distingue-se desse conceito por constituir um registro de movimento, “registro de ultrapassagem, de ‘passagens’, transições”. A autora afirma que na arquitetura o limiar permite o transito entre lugares diferentes, por vezes opostos. Designa essa zona intermediária à qual a filosofia ocidental opõe tanta resistência, assim como o chamado senso comum também, pois, na maioria das vezes, preferem-se as oposições demarcadas e claras (masculino/feminino, público/ privado, sagrado/profano etc.), mesmo que se tente, mais tarde, dialetizar tais dicotomias (GAGNEBIN, 2012, p. 15).

A definição de limiar, de acordo com Gagnebin (2010, p. 14), diz de um espaço e tempo intermediários e indeterminados, “que podem, portanto, ter uma extensão variável, mesmo indefinida”. É necessário experienciar a deriva nesse espaço de liminaridade, vivenciar a potência dessa zona indeterminada, com o objetivo de criar porosidades nas fronteiras, torná-las permeáveis. Benjamin (2006, p. 535) afirma que na vida moderna essas transições e ritos de passagem são pouco vivenciados: “Tornamo-nos pobres em experiências liminares (Schwllenerfabrungen)”.

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP Se o tempo na modernidade – em particular no capitalismo – encolheu, ficou mais curto, reduzindo-se a uma sucessão de momentos iguais sob o véu da novidade (como no fluxo incessante de produção de novas mercadorias), então decorre daí uma diminuição drástica da percepção sensorial por ritmos diferenciados de transição, tanto na experiência sensorial quanto na espiritual e intelectual. As transições devem ser encurtadas ao máximo para não se “perder tempo”. O melhor seria poder anulá-las e passar assim o mais rapidamente possível de uma cidade a outra, de um país a outro, de um pensamento a outro, de uma atividade a outra, enfim como se passa de um programa de televisão a outro com um mero toque na tecla do assim chamado “controle remoto”, sem demorar inutilmente no limiar e na transição. O que se perdeu com esses novos ritmos (que podem também ter qualidades positivas) é aquilo que Benjamin, citando o grande antropólogo Arnold van Gennep, chama não só de passagem, mas de “ritos de passagem”, título do livro de van Gennep (GAGNEBIN, 2010, p. 15).

Para transitar nessa zona de liminaridade Bock (2010, p. 77) afirma que é importante “[…] uma predisposição específica do sujeito, que pode ser vista como um tipo de atenção particular”. Faz-se necessário, portanto, ir contra as tentações de classificações apressadas, e disponibilizar-se à experimentação desses períodos de suspensão, hesitação. [...] se trata de reconquistar para o pensamento os territórios do indeterminado e do intermediário, da suspensão e da hesitação, e isso contra as tentações de taxinomia apressada, que se disfarça sob o ideal de clareza. [...] de ousar pensar devagar, por desvio, sem pressupor a necessidade de um resultado ao qual levaria uma linha reta (GAGNEBIN, 2010, pp. 16 -17).

O antropólogo Vitor Turner, em sua obra “O processo ritual”, afirma que para vivenciar o limiar é necessária uma diluição da noção de identidade previamente estabelecida. Turner (1974) traz como exemplo um rito de passagem onde, para passar a uma posição social de maior status, os elementos da tribo se reúnem para destilar ofensas ao ser em “ascensão” e assim desfazer sua compreensão da identidade de si mesmo. Esses seres limiares existem, portanto, no “limbo da ausência de status” (TURNER, 1974, p. 120). […] durante o período “limiar” intermédio, as características do sujeito ritual (o “transitante”) são ambíguas; passa através de um domínio cultural que tem pouco, ou quase nenhum, dos atributos ou do estado futuro. [...] os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial (Idem, pp. 116-117).

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Para experienciar essa zona de liminaridade, portanto, é necessário ao criador intérprete criar para si um corpo poroso, aberto a dissolver suas concepções de identidades fixas, um corpo permeável a vivenciar o lugar-do-não-saber e o novo que surge a todo o tempo pela possibilidade de deixar passar afetos, memórias do movimento, impulsos e linguagens, nesse “trabalho sobre si”. Diéguez (2011, p. 20) relaciona o limiar a uma zona complexa onde se cruzam a vida e a arte. Dessa maneira, colocamo-nos a pensar sobre como a experimentação dessa zona de liminaridade pode se dar na preparação dos criadores intérpretes. A cia. Teatro Akrópolis, ao divulgar o workshop realizado em Belo Horizonte, em 2012, afirmava: “Este estudo irá descontextualizar todas as referências teatrais, propondo a analisar a ação a partir do momento que precede diretamente à iniciação.27 Essa zona de limiaridade era acessada como forma dar vida aos impulsos e “descamar” as máscaras de identidades cotidianas, dando espaço ao desconhecido de si, em constante transformação. Ao participar do grupo de pesquisa “Grotowski Deleuze Educação”, na Universidade Federal de São João del Rei, orientado pelo professor-pesquisador André Magela, realizamos pesquisas corporais partindo do estudo dos impulsos e do contato. Nessa pesquisa, grupo e orientador notaram a importância de que para dar passagem ao fluxo de impulsos nos disponibilizássemos a vivenciar o: “lugar de não saber o que fazer”, “lugar de iminência”, “a sensibilização para o microimpulso”. “Quando estou aberto para o intermediário deixo que outra coisa aconteça, não deixo que a coisa formatada me domine”.28 [...] Grotowski, anatomista meticulosos do ofício do ator, enfatizava que o crucial na partitura do ator não é o esquema geral das ações, as grandes figurações, posturas ou gestos, mas as passagens menos espetaculares entre isso. É aí que flui o “fluxo da vida” – o “fluxo de impulsos” que provocam a soma de estar vivo e orgânico. A passagem de uma figuração à próxima pode também ser mecânica, puramente volitiva – externamente dinâmica, ainda que internamente vazia. Em outro texto, ele observa que: “Na realidade, acontece a dança quando o pé está no ar”. Portanto, acrescentamos, na passagem entre a estase e a dinâmica do corpo, na suspensão entre elas (FLAZSLEN, 2015, p. 374).

A importância desse lugar de passagem, do entre, da zona de liminaridade, pode também ser percebida nos estudos dos pesquisadores e diretores Luiz Otávio Burnier, Eugenio Barba e Renato Ferracini acerca da pré-expressividade e do élan. Segundo Barba (1995, p. 87), “A pré-expressividade não se preocupa com a expressão artística em si, mas com aquilo que, anteriormente, a torna possível”. O autor afirma que o nível pré-expressivo encontra-se no alicerce do trabalho e 27 Trecho retirado da divulgação do Workshop Práticas e Formação com a Companhia Teatro Akrópolis (Itália) realizado pelo Zikizira Physical Theatre, em Belo Horizonte, via Zikizira Espaço Ação. www.zikizira.com/actionspace. 28 MAGELA, André. Grotowski Deleuze Educação. Universidade Federal de São João Del Rey. Curso de curta duração. Anotações pessoais.

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relaciona-o à construção de presença, à dilatação corpórea e ao meio de tornar a energia do ator cenicamente viva. Ferracini afirma que pré-expressivo é aquilo que vem antes da expressão, da personagem construída, antes da cena acabada e se encontra no “nível da presença, onde o ator se trabalha, independente de qualquer outro elemento externo, quer seja texto, personagem ou cena” (2003, p. 87). “Podemos dizer que a ação física é a passagem, a transição entre a pré-expressividade e a expressividade” (BARBA, 1995, pp. 88-89). O élan seria o elemento que leva a intenção ao impulso; a vontade que se transforma em ação. Burnier (2009, p. 40) afirma que: [...] em filosofia é usado com o sentido de l´élan vital, que se refere, em Bergson, ao movimento vital, criador, “que atravessa a matéria se diversificando” (Le grand Robert). [...] A palavra élan também contém uma sonoridade muito particular e extremamente interessante: ê-lã. O ê é como se fosse o movimento que prepara o lançamento do impulso para fora, o momento no qual, para se lançar uma flecha, faz-se o movimento contrário de preparação, em que as tensões desnecessárias são aliviadas, mantendo somente as interiores, para então deslanchar o impulso rápido que projetará a lança no espaço: o lã.

Segundo Ferracini (2003, p. 93), “essa pré-ação foi observada por quase todos os grandes pesquisadores do teatro”. Dentro da dança-teatro japonesa, Butoh, o Ma, trabalhado como prática por Takao Kusuno, Cia. Tamanduá, corresponderia a essa zona de passagem. Michiko Okano desenvolveu uma tese a respeito do Ma e comenta sobre a dificuldade em definir esse conceito, considerado impalpável, porém altamente presente no cotidiano do povo japonês. Okano (2008, p. 178) refere-se ao Ma exatamente como um “espaço-entre”, espaço intervalar, relacionando-o aos termos: “[...] intervalo, passagem, pausa, não ação, silêncio, etc. [...] Ma é uma espacialidade intersticial em suspensão, prenhe de potencialidades, um espaço-entre disponível para tudo poder ‘vir a ser’” (Idem, p. 179). Patrícia de Azevedo Noronha, atriz-bailarina da Cia. Tamanduá de Dança Teatro, afirma que Takao Kusuno associava a falta de Ma a um movimento inexpressivo e mecânico. A autora traz como exemplo de experimentação do Ma uma oficina com Eugenio Barba quando o diretor propõe a realização de uma partitura, pede que a repitam e vai inserindo a cada vez novos objetos para os atores se relacionarem. A cada novo objeto incorporado o movimento interno mudava e, consequentemente, mudava a leitura do que emergia [...] Percebo hoje que construiu-se uma espacialidade Ma naquela sequência inicial. Os movimentos e o desenho já existiam a priori e a cada novo estímulo havia uma adaptação daquele espaço/tempo criado, e, consequentemente, uma modificação na percepção daquele instante de criação (NORONHA, 2009, p. 88).

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Essa zona de liminaridade encontra-se aqui, portanto, associada a um lugar de desfazer identidades dos gestos e experimentar novas possibilidades de vivência de uma mesma partitura a partir dos diferenciados contatos, mantendo a passagem dos impulsos. Recordo-me de trabalhos realizados com Dorothy Lenner29, nos quais, ao dirigir-me em suas aulas, sempre orientava para a importância do Ma, quando eu não deixava um movimento (que era também um sentimento) “ir até onde precisava”. Dorothy dizia que eu acelerava as ações: “Assim você não digere e não deixa o público digerir”. Percebi, com os estudos de Walter Benjamin, que essa era uma dificuldade não apenas minha, mas da contemporaneidade. E percebi também como em trabalhos, inicialmente distintos, como o Butoh e o trabalho com o grupo de pesquisa em Grotowski, esse mesmo ponto, o entre, era suscitado e sua relevância destacada. O Ma, segundo ela era um ponto difícil para a maioria dos praticantes do Butoh e muito trabalhado por seu diretor Takao Kusuno. Dorothy lembrava que era necessário “deixar vir” o gesto, a emoção, parar de dirigi-lo, e que para isso eu precisava aprender a vivenciar o Ma, esse limiar. Quando me expus a vivenciar essa dificuldade, em acessar o Ma, e começar a superá-la, através de práticas como o suriachi30, uma caminhada baseada nos trabalhadores das plantações de arroz, pude perceber mudanças em minhas percepções e ações. Dorothy orientou-me a deslizar os pés, com os joelhos flexionados e as mãos em concha na altura dos rins, olhos para longe, na altura do horizonte, e enxergando dentro, a partir do “terceiro olho”. Essa prática possibilitou-me inicialmente uma “limpeza”, não apenas mental, mas também física (lágrimas, secreções) e um estado de entrega no qual parecia me permitir entrar em contato com a criação com mais profundidade e menos controle. Dorothy sempre voltava a me lembrar do Ma, quando era necessário, às vezes sugerindo pausas nesses momentos para que eu pudesse percebê-los e não apressar o próximo movimento e sentimento. A vivência do limiar, em suas práticas, seja essa compreendida como Ma, élan ou pré-expressividade, pode ser capaz de gerar criadores-intérpretes mais disponíveis as suas reais demandas criativas, em “trabalhos sobre si”, de forma a naturalizar, a partir do próprio corpo, a porosidade entre as linguagens da dança, teatro e performance. Para isso, é necessário criar zonas de liminaridade no trabalho desses criadores, potencializar formas de vivenciar esses estados de perda da identidade, diluição de fronteiras, de modo a criar para si um corpo poroso aberto às passagens dos afetos e impulsos, construindo novas subjetividades. Criar zonas liminares, seres liminares e corpos sem órgãos.31

29 Dorothy Lenner trabalhou com Takao Kusuno na Cia Tamanduá e realiza constantes criações em Butô. 30 Noronha (2009) também refere-se ao suriachi como exercício utilizado por Takao Kusuno para trabalhar o Ma na Cia Tamanduá de Dança Teatro. 31 O conceito de corpo sem órgãos foi criado por Antonin Artaud e desenvolvido por Gilles Deleuze e Félix Guattari e diz de um corpo não funcional ou utilitarista, mas um corpo do desejo, que transforma suas configurações a partir dos afetos e desejos que lhe permeiam.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. Campinas: Hucitec, 1995. BENJAMIN Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. BURNIER, Luis Otávio. A arte do ator: da técnica à representação. 2.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. DIÉGUEZ, Ileana. Cenários liminares: teatralidades, performance e política. Uberlândia: EDUFU, 2011. FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. FLASZEN, Ludwik. Grotowski e companhia. Origens e legado. São Paulo: É Realizações, 2015. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Entre a vida e a morte. In: OTTE, Georg; SELDMAYER, Sabrina; CORNELSEN, Elcio (org.). Limiares e passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. 4.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. GROTOWSKI, Jerzy. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo: Perspectiva: SESC SP/Pontedera, Fondazione Pontedera Teatro, 2007. LIMA, Tatiana Motta. Palavras praticadas: o percurso artístico de Jerzy Grotowski, 1959 –1974. São Paulo: Perspectiva, 2012. LIMA, Tatiana Motta. Habitações Provisórias. Palestra. Trabalho sobre si mesmo em Grotowski e no Workcenter: novas formas de subjetividade, novos corpos. Disponível em: . Acesso em: 15 de set. de 2015. NORONHA, Patrícia de Azevedo. Seis espaços: possível referência para o estudo e a construção do corpo cênico. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2009. NUNES, Sandra Meyer. O criador-intérprete na dança contemporânea. Revista Nupearte, 1.v., Set., 2002. OKANO, Michiko. MA: entre - espaço da comunicação no Japão: um estudo acerca dos diálogos entre Oriente e Ocidente. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2007. QUILICI, Cassiano Sydow. O treinamento do ator/performer: repensando o “Trabalho sobre Si” a partir de diálogos interculturais. In: Revista Urdimento. n. 19. Florianópolis, UDESC, nov., 2012. STANISLÁVSKI, Konstantin. Etica y disciplina/Metodo de acciones fisicas (Propedéutica del actor). Seleção e notas de Edgar Ceballos. México: Gaceta, 1994. TEATRO AKROPOLIS. Disponível em: . Acesso em 16 de set. de 2015. TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974. | 161

Teatro do real

IRRUPÇÕES DO REAL: A PRESENÇA DO CORPO COMO DOCUMENTO NA CENA TEATRAL Roberto Alexandre (Henrique Limadre) Universidade Federal de Ouro Preto

Início do século XXI: ano de 2015. O Teatro. Torna-se difícil falar do teatro. Melhor seria falar de UM teatro, já que há tantos outros assim como este UM. Falar de UM teatro reitera a pluralidade própria de nosso tempo. UM teatro é marcado por um ponto de vista, um olhar, uma escolha estética e ética. Trata-se de um recorte. E no caso deste texto, o recorte parte de UM teatro que já rompeu com as estruturas do drama, que segundo Peter Szondi (2001, p. 30.) “formulava-se na esfera do ‘inter’, com domínio absoluto do diálogo, desligado de tudo que lhe é externo”. Ao contrário, este teatro pesquisado aqui, pretende afetar-se pelo que lhe é externo, principalmente. Quer o tempo todo tencionar o que há fora com o que há dentro do palco. Isso já tem sido feito há muito, mas as formas se reinventam a todo instante de acordo com as demandas de seu tempo. Ora, conhece-se o teatro político, de Erwin Piscator, o teatro didático, de Bertolt Brecht, o teatro da morte, de Tadeusz Kantor, o para-teatro, de Jerzy Grotowski bebeu na performance art e numa infinidade de processos criativos e técnicas de atuação que romperam com o drama. Seria interminável citar tantas transformações pelas quais o teatro passou no último século e que tentaram dialogar de forma incisiva com a realidade. Hans-Thies Lehmann, no livro O teatro pós-dramático (2007, p. 78), diz que: O “impulso” para a constituição do discurso pós-dramático no teatro pode ser descrito como uma sequência de etapas de auto-reflexão, decomposição e separação dos elementos do teatro dramático. O caminho leva do grande teatro do final do século XIX, passando pela diversidade das formas teatrais modernas nas vanguardas históricas e pelas neovanguardas dos anos 1950 e 60, até o teatro pós-dramático no final do século XX. Então, este teatro em questão rompeu com os pilares do drama. E uma vez tendo rompido com o drama, abriu-se para outros teatros e para não-teatros. Abriu-se para novas poéticas e processos. Abriu-se para a diversa gama da atualidade situada no teatro pós-dramático. Nesta gama, interessa a tensão entre a encenação e o que ocorre fora dela. Interessam características de UM teatro afetado pelas irrupções do real, e “somente o teatro pós-dramático explicitou o campo do real como permanentemente ‘co-atuante’” (Idem, p. 163), “sendo que o essencial não é a afirmação do real em si” (Idem, p. 165), mas o jogo entre ele e os elementos de ilusão ficcional. Neste sentido, é possível inferir que a presença da ilusão ficcional em fricção com o real é o que interessa quando se aborda o termo de Lehmann: “irrupções do real”. Parece que este teatro está entre as fronteiras do fato e da ficção, no jogo entre o teatral e | 163

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o performativo. Mais ainda, parece que, neste teatro, o que ocorre fora dos palcos, em vida, é o que lhe inquieta, é seu estopim. Quando se pensa no sentido de real, abre-se um campo amplo e repleto de leituras impossíveis de serem esgotadas. Aportes filosóficos e da psicologia tentam dar conta do assunto e ainda que não seja o foco deste texto é essencial escolher um ponto de partida para abordá-lo. No livro Prácticas de lo real en la escena contemporánea, José A. Sánchez faz um profundo estudo sobre o tema e dialoga com diversos teóricos entre eles Jacques Lacan. Ao afirmar que “la realidade está ahí pero es inaccesible”32 (2007, p. 84), ou ainda que “lo real si ha instalado en el cuerpo. Y en el cuerpo la alucinación, la pesadilla y la realidade histórica coinciden”33 (Idem, p. 114), Sánchez sugere, a partir de seu diálogo com outros textos, que a percepção do real é moldada pelo nosso olhar. Passa longe da ideia de real como algo absoluto ou como verdade. Mas é interessante refletir que, ainda que o fato se dê a partir de nossa percepção e isso molde nosso entendimento dele, esta percepção é dada, é concreta, apesar de parcial. Sendo assim, ela nos interessa, a percepção do fato, pois em última instância, é ela que será levada ao palco. A tentativa de apresentar o real em cena é escolhida a partir de um olhar artístico e dada no palco. Torna-se parte de um complexo campo simbólico próprio do teatro. Seria um exercício sem sentido tentar trazer para o palco a realidade nua e crua, sem problematizá-la ou friccioná-la com o simbólico, quando a intenção é justamente artística. A percepção dos fatos cotidianos vale por si e pode ser experienciada a todo instante. O instigante é a linha tênue entre estes fatos e o simbólico que, postos na cena, podem colocá-los em indagações constantes. Mas perceber que o real difere-se do ficcional em sua origem, porque algo que ocorreu, um fato na vida cotidiana, é diferente de algo imaginado, algo criado por um artista numa sala de ensaio ou num ateliê, é premissa para este tipo de composição cênica. Dentro da encenação, a tentativa de trazer o real à tona difere-se da representação ficcional, ou seja, apresentar algo ao invés de representar este algo é o que, talvez, caracterize esta aproximação do teatro com o que lhe é externo. Neste sentido, Silvia Fernandes, no artigo “Experiências do real no teatro”, dialoga com Maryvonne Saison, autora do livro “Les théâtres du réel”, publicado em 1998. Fernandes (2013, p. 4) diz que: Desviando-se dos problemas de definição do que seria esse real, Saison partia da distinção filosófica presente em língua alemã para dar conta do argumento, ao opor Vorstellung (representação) a Darstellung (apresentação), na tentativa de designar a colocação em presença da própria coisa e não a ação psíquica que a torna presente ao espírito, e define toda representação como um gesto de envio a algo que não está ali. Segundo a autora, em determinadas experiências do teatro contemporâneo priorizava-se a concretização material da presença do ator, do espaço, do objeto e da situação, em oposição à relação mimética, abstrata, da representação com aquilo que representa. 32 “A realidade está aí, mas é inacessível” (tradução nossa). 33 “E no corpo a alucinação, o pesadelo e a realidade histórica coincidem” (tradução nossa).

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Assim, as ideias de representação (Vorstellung) e apresentação (Darstellung) têm como alicerce significados que dialogam com o ilusionismo ficcional e o real. Fernandes completa, no mesmo texto: “é como se a representação da realidade fosse inoperante e devesse ceder lugar à irrupção da própria realidade em cena” (Idem, p. 5). A realidade é apresentada ao invés de ser representada. São diversos os recursos estéticos e éticos que geram esta fricção entre o real e a ficção e dentre tantas possibilidades, a arte documental é, em si, uma maneira de trazer algo à tona por meio da apresentação deste algo, ainda que sujeita ao olhar de quem a leva para a cena. Levar documentos para a cena é, sem dúvida, uma prática que pretende dialogar com o que ocorre fora dela, com o cotidiano. Erwin Piscator tinha esta intenção quando, em 1925, colocou um filme com cenas de guerra num espetáculo teatral. “Em Apesar de Tudo! O filme foi um documento”, e assim define o autor de “Teatro Político”, sendo um dos pioneiros nesta prática: As filmagens apresentavam brutalmente todo o horror da guerra: ataques com lança-chamas, multidões de seres esfarrapados, cidades incendiadas: ainda não se estabelecera a “moda” dos filmes de guerra. Nas massas proletárias aquelas cenas deviam ter influência muito maior que a de cem relatórios (PISCATOR, 1968, p. 81). Os documentos apresentados, o filme com cenas de guerra, naturalmente tinham o olhar de quem fez as filmagens. A forma com a qual eles foram apresentados no teatro tinham o olhar de Piscator, ainda que isso não tenha sido problematizado em seu livro, o que acontecia na cena eram versões da realidade. Era um recorte do fato. Uma maneira de expor o que houve. O fato em si, efêmero, só se deu a partir da vivência de quem estava na guerra, mas o registro dela, dado num filme, servia como ponte para o acontecimento. O cinegrafista, presente na experiência, trouxe sua versão da mesma. Sendo impossível repetir o acontecimento, o que se pode tentar é a representação dele ou a apresentação de versões do fato, a partir de registros e documentos. Neste teatro, a apresentação da realidade tem uma eficiência diferente da representação para o espectador. No livro Teatro documentário, a pedagogia da não ficção, Marcelo Soller define pontos importantes sobre como ele pensa o assunto. Dentre tantas considerações destaco o pacto de recepção da obra, que segundo o autor é “um ponto crucial para que um discurso seja chamado de documentário: a percepção do espectador de que aquilo que frui é documentário” (2010, p. 72). Ora, é interessante notar que para o autor é essencial que o espectador saiba que aquilo que se passa em sua frente flerta com o real e/ou tem aspecto documental. Quando se vê um filme documentário, por exemplo, a recepção dele é outra quando quem o assiste entende que aquelas imagens são uma percepção do real e não criados a partir dele. Mais que isso: ali se dá uma tentativa de apresentar o real e não de representá-lo. | 165

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Dentre tantas possibilidades de documentos que podem ser levados à cena, filmes, textos, documentos históricos, imagens projetadas, objetos, me parece que o corpo é potente como ponte entre a experiência e o palco. Com toda sua subjetividade, o corpo carrega em si registros e memórias que podem ser revelados em camadas diversas de significação. Assim, esses corpos postos em cena não estão ali para representar personagens, mas sim para apresentar experiências como documentos. Existem pesquisas e práticas que levam ao palco não atores ou pessoas do cotidiano sem experiência teatral. É o caso do coletivo alemão Rimini Protokoll, da diretora argentina Vivi Tellas e do Coletivo Hiato, com o espetáculo Ficção. Estas são algumas das experiências diversas que não necessariamente conceituam a ideia de corpo como documento, mas que sem dúvida, servem como discussão sobre as irrupções do real, a partir da presença de não-atores. Em 2009, a dramaturgia do espetáculo Av. Pindorama, 171, sob minha direção, fazia um apanhado histórico-crítico sobre o Brasil e suas contradições sociais e políticas sob uma estética tropicalista, que dialogava com o Movimento Antropofágico e a Semana de Arte Moderna de 1922. A peça, que tinha como pano de fundo as cidades e o caos urbano, que tanto empurram para o anonimato corpos diversos, trazia, ao final do espetáculo, Seu Antônio de Pádua, um ex-morador de rua, que entrava em cena e realizava uma ação simples. Sua presença redimensionava toda obra dentro da própria peça, mas também para além dela. Era como se a realidade fosse mais forte do que o próprio teatro. O corpo de Seu Antônio, carregado por sua história de vida gerava leituras infindáveis. Seu Antônio é um senhor, de cerca de sessenta anos, que morou na rua e teve marcas físicas e emocionais a partir de sua experiência. Sua presença na cena estava repleta de significados e dialogava com o assunto tratado no espetáculo de forma decisiva. Questões éticas que perpassaram a presença de Seu Antônio em Av. Pindorama, 171 eram respondidas pelo desejo dele de fazer teatro. Ele já tinha alguma experiência com aulas que fez no Centro de Referência do Morador de Rua em Belo Horizonte, e o importante ali não era responder se ele era ator ou não ator. O termo “não-ator” está necessariamente atrelado ao ator numa dualidade de negação. O não-ator só existe para o ator. E trabalhar com este termo requer também adentrar em conceitos muito amplos que abarcam a ideia de atuação, de construção de técnicas, falar de ator ou não ator é falar de presença, falar de processos expressivos, de formação teatral, entre uma infinidade de conceitos que não são o foco desta pesquisa. Quando se pensa na presença humana na cena como documento que revela o real, a discussão, neste caso, ultrapassa a ideia de atuação. Este corpo como documento pode ser revelado por um ator ou por um não ator. Seu Antônio não estava na cena por não ser ator, mas sim para levar uma experiência própria para o espaço do teatro, contida em seu corpo, o que também pode ser feito por um ator. Talvez seja mais justo pensar em não- representação, em apresentação, no sentido já descrito no início deste texto. De que maneira o corpo documento traz o real com sua presença na cena? Levando para o palco sua experiência, sua especificidade, sua especialidade seja por meio de ima166 |

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gens, ações ou palavras. Na medida em que só ele é capaz de dar conta da sua própria experiência, só ele é capaz também de dar voz a ela de forma contundente e mais ainda, na tentativa do próprio corpo ser ponte com o que acontece fora da cena. O teatro não apenas para o artista que deseja representar o real, mas o próprio para o teatro. O teatro como espaço para corpos reais, para novos espaços de representatividade. No contexto apresentado, esta pesquisa tem como inquietação inicial a necessidade de trazer elementos do real como documentos dentro da obra teatral. Ela está sendo desenvolvida dentro do campo do teatro documentário a partir de reflexões sobre encenação, estrutura dramatúrgica, elementos estéticos de caracterização e iluminação, com presença de atores e técnicas de atuação, entre outros elementos que caracterizam o teatro como tal. Mas dentro de tudo isso, a introdução do real, e especificamente a introdução do corpo como documento, pretende contribuir para novos espaços de representatividade e política.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERNANDES, Sílvia. Experiências do real no teatro. In: Sala Preta. vol. 13, n; 2. São Paulo: USP, 2013. pp. 3-13. SÁNCHEZ, José Antonio. Prácticas de lo real en la escena contemporánea. Madrid: Visor, 2007. LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. Tradução de Luiz Sérgio Rêpa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. SOLLER, Marcelo. Teatro documentário: a pedagogia da não ficção. São Paulo: Hucitec, 2010. PISCATOR, Erwin. Teatro político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

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A PO-ÉTICA DO AFETO NA CRIAÇÃO CÊNICA Elton Mendes Francelino Universidade Federal da Bahia

1. Corpo como território de experiências Em sua vinda ao Brasil em 2001, Jorge Larrosa falou sobre a nossa obsessão contemporânea pela informação, pela emissão de opinião e pelo trabalho, que nos torna sujeitos superestimulados e excessivamente atribulados, sem tempo ou disposição para o desfrute da experiência, que seria o espaço pessoal de elaboração do sentido de tudo o que nos acontece ou nos toca. A pobreza de experiência, já noticiada por Walter Benjamin, na primeira metade do XX, veio acompanhada da docilização dos corpos, diagnosticada por Foucault como necessária à emergência e manutenção dos ideais da era moderna, justamente, por fornecer às instituições o controle sobre os corpos que tenderiam, assim, a “coordenar o próprio movimento ao movimento constante e uniforme de um autômato” (BENJAMIN, 1991, p. 126). Assim, essa experiência que, para Larrosa, intermediaria o conhecimento e a vida humana, dá lugar a vivências fugazes e transitórias. Estamos sempre informados, mas “nada nos acontece” (2002, p. 21). O modelo educacional proporcionado por nossas escolas básicas e universidades tem nos oferecido um conhecimento impessoal e utilitário: comprado e vendido como mercadoria, tem nos preparando para atender ao mercado e não às nossas necessidades particulares ou coletivas de existência. Na escola ou fora dela temos o condicionamento da sensibilidade do corpo se adequado unicamente a reagir aos constantes choques provocados pelo excesso de estímulos e informações cotidianos, numa tendência a homogeneizar nosso comportamento e a nos destituir do acesso à memória longa e do compartilhamento de experiências e narrativas. Nossa longa tradição ocidental tem nos ensinado que o corpo é subalterno à mente. Platão dizia que o corpo é conduzido pela mente ou alma (psykhé) como um navio é guiado por seu comandante; Aristóteles reservava ao corpo (órganon) o papel de instrumento de evolução da alma, visões que alimentam o pensamento cristão até hoje. René Descartes (1596-1650), considerado por muitos como o primeiro filósofo moderno, rompia com o padrão religioso mas herdava o dualismo do corpo como máquina que podia ser controlada pelo pensamento (cogito). Já Baruch de Spinoza (1632-1677), crítico da visão mecanicista e instrumental do corpo, compreendia o corpo e mente como participantes de uma mesma substância: sem corpo, não há mente e vice-versa. Então, o que seria o corpo? Para esse filósofo, ele é definido pela relação entre as partes que o compõem, e somente nessa relação ele se define. Visto desse ângulo, nosso corpo existe somente enquanto conjunto de relações entre outras partes que o formam, ao mesmo tempo em que nós, também em relação com outras partes (diferentes corpos na natureza), formamos conjuntamente outros corpos. Assim sendo, um corpo se define pela sua potência de agir, ou seja, 168 |

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sua capacidade de afetar e de ser afetado num mundo que não nos é necessariamente externo, haja vista que contribuímos na sua composição. Assim, os estados de alegria ou tristeza são desencadeados pela qualidade dos encontros com os quais componho, comigo mesmo ou com o mundo. Se esses encontros aumentam minha potência de agir e se componho com mundo um outro corpo que tem sua potência também ampliada, então, estou atuando eticamente, segundo Spinoza. Mas como controlamos nossa potência? Ou, em palavras de spinozanas, “o que pode o corpo?” Ora, se um corpo se forma pela potência relacional que ele apresenta, jamais saberemos até onde ele pode chegar se não o experimentarmos. Sem experiência, jamais reconheceremos a potência de nossas relações durante a vida. Larrosa aponta que a experiência opera como uma sensibilidade, “uma forma humana singular de estar no mundo, que por sua vez é uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo)” (2002, p. 27). Por esse motivo, nesta pesquisa compreendo por ética o cuidado de si que encontra no corpo seu lugar de ação e de discurso. Frente a essa compreensão de liberdade do corpo, como permitir que nossos corpos encontrem sua potência de agir, sua alegria numa realidade que se esforça em nos docilizar, nos emudecer e apassivar politicamente? Voltando à questão para o corpo em cena: seria possível proporcionar ao ator/performer/bailarino um campo de experiências que permita uma emancipação de sua potência de agir? 2. Afeto no processo criativo Jorge Larrosa conceitua o sujeito da experiência como um “território de passagem, algo com uma superfície sensível em que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa vestígios, efeitos” (2002, p. 24). Todavia, a vivência da vida moderna, como comentei há pouco, é capaz de tornar estéril nossa capacidade de imaginação, influenciando nossa experiência poética como produção de discurso. Se a potência de um ser se define pela sua capacidade de composição, logo a potência de um ator em cena se manifestaria pela sua habilidade em gerar afetos alegres de si com seus pares (demais artistas e plateia) e com o aqui-e-agora – tempo e espaço atualizados – em que atua. Ser em potência é estar plenamente discursivo, no sentido de que talvez poderíamos apontar como uma presença ética do ator. Compreendendo por afeto a potência de agir de um corpo. Em abril de 2015 criamos, sob orientação da professora Célida Salume (PPGAC-UFBA), o projeto de extensão “Laboratório Poéticas da Afetividade”, buscando experimentar as possibilidades poéticas e éticas do afeto no processo criativo em artes cênicas. A primeira ação do Laboratório foi a oficina Afetividade na criação cênica, que reuniu 16 participantes da comunidade acadêmica e não-acadêmica de Salvador e cidades vizinhas em 18 encontros, de abril a junho de 2015, somando 60h. Na oportunidade, buscamos uma investigação prático-teórica das possíveis relações entre afeto, experiência e memória, experienciando a produção de narrativas atorais, partindo de | 169

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memórias afetivas dos participantes dentro de uma criação colaborativa. A metodologia básica deste processo foi a proposição de um percurso e agenciamento de encontros consigo e com o outro. Nos roteiros gerais dos encontros, inicialmente, formávamos uma roda e massageávamos nossos pés buscando um contato mais sensível com o solo. Em seguida lubrificávamos nossas articulações, buscávamos o trabalho do koshi (centro de energia corpóreo), investigávamos a respiração e um aquecimento corpo-vocal que ampliasse nossa capacidade de conexão com os demais colegas e com o ambiente. O movimento de contato consigo partia do acesso à memória particular, o reconhecimento da própria história e a sensibilização Figura 1 - Sensibilização e reconhecimento do corpo. Buscávamos, assim, uma dilatação do corpo. Fonte: Arquivo pessoal. temporal que permitisse uma experiência sensória e memorialística particular de cada corpo. O toque, a meditação em conjunto e o acesso à memória foram importantes para a ampliação da capacidade de reconhecimento da relevância da história particular. Todavia, o encontro consigo ocorria simultaneamente ao encontro com o outro. Os deslocamentos temporais e espaciais proporcionados pelo contact improvisation, o contato visual com o outro, os jogos grupais como os platôs, vivências com elementos da natureza e o improviso de cenas auxiliavam na consciência desse corpo coletivo. Para avaliação do processo, propus a criação de mapas corpóreos, diários de bordo, partilha, além de registros fílmicos e fotográficos, um questionário final e uma reflexão escrita pelos participantes. 1.1. Mapas corpóreos: imagem e memória Em nosso primeiro encontro, sugeri que metade da turma se deitasse e que fechasse os olhos. Quem ficou de pé buscou um colega deitado para sensibilizá-lo através do toque em cada parte do seu corpo. Iniciando pelos pés, os participantes em repouso recebiam as mãos do colega enquanto eu pedia para que buscassem lembrar a história daqueles pés, como eles são e o que haviam experimentado até o momento. Então seguia-se para o tornozelo, canela, joelhos, coxas, quadris, assim até a cabeça. A intenção era despertar o surgimento de lembranças, imagens ou relações a partir do toque. Depois pedi que cada um fizesse uma cartografia simples do seu próprio corpo. Foram dados gizes de cera, lápis de cor e papéis com moldes (vide figuras abaixo) e folhas em branco para quem não optasse pelos modelos. Aqueles que escolhes170 |

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sem os moldes, estariam também livres para desrespeitar os limites estabelecidos pelo traço, tomando-os apenas como referência para a mapeamento. Mapa do território do corpo - 1º encontro, 22/04/2015. No dia 27 de maio – dez encontros mais tarde – pedi que confeccionassem um segundo mapa corpóreo, buscando obter uma avaliação do processo que se passava. O que resultou disso foi uma marcante diferenciação entre os primeiros e os últimos mapas. A seguir, apresento os mapas construídos por dois participantes. No mapa de B.M. (Figura 2), há a presença de histórias específicas na vida da oficinanda, como a perda da mãe (expressa pelo coração partido), uma cesárea e a anestesia raquidiana, às enxaquecas constantes e a condição de mulher fortemente marcadas no uso das cores. Sobre isso, ela afirma em seu diário de bordo: Quando Elton propôs para eu fazer um mapa do meu corpo através do toque do outro e do pintar no papel, percebi o quanto a história do meu corpo é desenhada por cortes, arranhões, todos os tipos de dores. Desenhei meu corpo como uma porção maior de terra. As pequenas partes coloridas, minhas felicidades, são poucas. Os traços escuros são tumores, que nunca foram um dia detectados, mas estão lá, maiores que a parte azul da minha história (B. M., 22 de abril de 2015).

A área em azul (circulada no abdômen), B.M. afirmou ser a gestação de sua filha em depoimento oral no mesmo dia. Em relação ao primeiro, o segundo mapa da oficinanda (Figura 3) apresenta o uso de traços fluidos ao logo do corpo, o coração regenerado e uma atenção maior para o potencial de seu corpo e história no aqui-e-agora, representado pela energia amarela com que envolve seu corpo. Os espirais verdes, bem limitados no primeiro mapa, segundo B.M., aqui sugerem uma relação harmoniosa com seu entorno.

Figura 2 – Mapa Corpóreo de B. M. Dia 22 de abril. de 2015. Fonte: Arquivo pessoal.

Figura 3 – Mapa Corpóreo de B. M., dia 27 de maio de 15. Fonte: Arquivo pessoal. | 171

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Nos mapas a seguir, realizados pelo participante C.F., temos também uma diferenciação relevante. No primeiro mapa (Figura 4), o oficinando usa diferentes cores para demarcar os territórios do seu corpo. Há a presença de algumas palavras: aos pés, “ancestralidade”; “tesão” em uma das coxas; conflito” no tronco; “introspecção” na região da nuca; “mãe”, na cabeça; e pairando sobre a cabeça as palavras “emoção” e “racional”. Em seu segundo mapa, notamos a presença de traços contínuos, curvilíneos e sobrepostos nas regiões das pernas e quadris, em distinção ao modo como as cores foram usadas na primeira cartografia. Além disso, as palavras que C.F. escolheu dessa vez foram os nomes de todos os colegas presentes naquele dia, com “eu sou” ladeando o mapa (Figura 5). A intenção primeira na sugestão desses mapas, e de todos os demais procedimentos aplicados da Oficina, não foi necessariamente terapêutica. Buscava, antes, possibilitar a cada participante fazer uma projeção de sua trajetória de vida – num tempo e lugar destinados a isso – e ter a experiência de um afastamento imaginativo e crítico de si.

Figura 4 – Mapa de C. F. dia 22 de março de 2015. Fonte: Arquivo pessoal.

Figura 5 - Mapa de C. F., dia 27 de maio de 15. Fonte: Arquivo pessoal.

A memória menciona o tempo mediante imagens, que, não necessariamente, se fidelizam à realidade de outrora. Cecilia Salles fala da imaginação como “instrumento de elaboração da realidade vivida” (2013, p. 105), daí a dificuldade de distinguirmos os fatos vividos e dos fatos lembrados: por utilizar-se da imaginação como 172 |

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instrumento de sua manifestação, a memória é constantemente atualizada pelas experiências cotidianas. Conforme vimos, a domesticação a que são submetidos os corpos o emudece e o torna-o inábil para a narração enquanto compartilhamento de experiências, privando-o do tempo da imaginação e da rememoração. Inibido de estabelecer experiências no aqui-e-agora, o corpo tem subnutrida a sua memória, a consciência de si e as suas potencialidades discursivas. O reencontro com sua a história pessoal e o reconhecimento da relevância dessa narrativa para uma realidade coletiva pode ser uma potente experiência, uma vez que as experiências particulares não encontram respaldo na narrativa oficial e que a história que conhecemos ainda é escrita sob a perspectiva dos vencedores. Pensar, pois, o corpo como uma cartografia das experiências vividas, reforçando o caráter político da memória, tem um importante papel na construção de novas realidades. 3. Transvendo o mundo Ao final da oficina Afetividade na criação cênica, realizamos uma mostra cênica com os participantes no formato de uma vivência poética compartilhada, conforme a chamamos. A mostra possuía um roteiro simples que reunia algumas das práticas marcantes durante os encontros, como jogos relacionais de corpo-a-corpo ou de vínculo pelo olhar, movimentos respiratórios, dinâmicas de encontros e de abraços.

Figura 6 – Vivência poética compartilhada, dia 17 de junho de 2015. Fonte: Arquivo pessoal.

Em alguns momentos, os mapas corpóreos foram projetados ao fundo da cena. A palavra também fez-se presente nas cartas (escritas por cada ator para entregar a al| 173

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guém imprevisto da plateia), e nos trechos escolhidos dos diários de bordo e que eram pronunciados pela voz e pelo corpo. Eram presentes a dilatação temporal e a imprevisibilidade das relações (individuais e grupais), exigindo uma abertura dos sentidos aos outros corpos e das proposições que deles surgissem, fossem eles atores ou plateia. Para Luigi Pareyson (1993), a arte é, sobretudo, um “fazer” (poíesis), uma atividade plasmadora de formas, exercida de modo intencional. Esse aspecto formativo seria o modo como o homem lida com todos os aspectos da vida cotidiana, produzindo formas, criações orgânicas dotadas de leis internas, compreensibilidade e exemplaridade. Desse ponto de vista, o fazer artístico – vinculado à experiência particular e ao modo de ser daquele que cria – é compreendido como um processo de experimentação no tempo e como construção de conhecimento. Manuel de Barros, poeta cujas palavras nos acompanhou durante a oficina, declara em um de seus poemas: “O olho vê/ a lembrança revê/ a imaginação transvê/ é preciso transver o mundo” (BARROS, 2009, p. 75). O artista – que para Cecília Salles “é um captador de detritos da experiência, de retalhos da realidade” (2001, p. 97) – lança mão da memória e da experiência particular como matéria-prima de seu movimento criador. Todavia, à medida em que seu olho mira a realidade e, com o auxílio da memória, (re) vê a experiência vivida, a imaginação atua como deflagradora de uma nova realidade, transvendo o mundo com um potencial transformador. F.D., participante e assessora pedagógica na oficina, diz que, durante os dezoito encontros, predominava [...] uma relação que caminhou partindo de princípios éticos, de cuidar de si, de cuidar de outro, da escuta, do jogo, de poder ser sincero, [...] e o contexto foi caminhando para que as pessoas se sentissem seguras de se manifestar em tudo [...] espaço para se colocarem como criativas e exercerem sua autonomia de pensamento: você poderia se expressar num desenho, no diário, numa fala na partilha, interromper o meio da aula [...] Quanto mais você abre para o outro falar, mais ele fala, agora ele pode falar qualquer coisa, mas se você pretende aprofundar algum tema você vai conduzindo. Foi o que aconteceu na oficina: se você vai subsidiando o assunto vai crescendo e você vai nitidamente percebendo as pessoas amadurecendo o pensamento (F.D., 28 de ago. de 2015).

A oficina visou experimentar as possibilidades criativas (poéticas) a serem propiciadas pelo encontro/confronto entre diferentes individualidades ao trazerem sua experiência, suas memórias e histórias de vida a serem compartilhadas num ambiente colaborativo. A escolha por propiciar uma atmosfera de relacionamento dialógico entre diferentes individualidades representa a crença numa ética do processo criativo, em que cada indivíduo reconhece a pertinência da sua própria história ao identificar no outro um lugar de escuta, acolhimento e reverberação de memórias e afetos desprestigiados pelas narrativas históricas oficiais. Em depoimento escrito em 5 de junho, a oficinanda S.B. afirma:

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP Aos poucos vi minha sensibilidade aflorar mais e mais. Havia um pudor imenso trazido de herança junto com velhos valores que ainda rodeavam minha vida. O pudor de mostrar o corpo, o pudor de tocar no outro, foram diluindo-se aos poucos. E conhecer a mim mesma tornou-se tarefa rotineira, na tentativa de me transformar em um novo ser, pois somos ensinados o tempo todo a sempre obedecer às regras que vêm de cima, mas não nos ensinam a conhecer nossos próprios limites, as nuanças existentes em cada centímetro de nossa pele. […] Os sonhos que antes haviam adormecido dentro de mim, pouco a pouco germinavam outra semente de esperança. […] Os caminhos enfim tomavam outros rumos, e gosto demasiadamente de como venho me comportando (S. B., 5 de jun. de 2015).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 2009. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. BOSI, Ecléa. Tempo vivo da memória: ensaios em Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In: Revista Brasileira de Educação. n. 19. Jan./fev./mar./abr. 2002. pp. 20-28. SALLES, Cecilia A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Intermeios, 2013. SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. PAREYSON, Luigi. Estética: Teoria da Formatividade. Petrópolis: Vozes, 1993.

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MINHA VIDA SERIA FICÇÃO SE NÃO FOSSE A REALIDADE: Procedimentos de criação em narrativas performáticas multimídia Luciana Ramin Universidade Federal de Ouro Preto

AÇÃO O encontro A noite parecia quente, além do vento soprando empoeirado, cheio de fuligem de carro, chumbo, terra e asfalto. As cabeças femininas de isopor foram dispostas pela praça escura colorida apenas pelo lixo, perucas coloridas foram dispostas sobre as cabeças, câmeras de vigilância foram instaladas na esquina em frente a praça, as imagens captadas eram projetadas nas paredes do prédio a frente, a imagem de uma cabeça de boneca intercalava o circuito de imagens em tempo real. Na praça, na vida, corpos se moviam entre as árvores, se esgueirando entre as sombras buscando as perucas. Cida foi pega, ela alcança uma peruca rosa, e é logo alcançada. - Oi, pode pegar. - O que é isso? - Um circuito de perucas. - Ãnh. Você tem um cigarro? - Tenho, peraí. Toma.

Cida se monta, põe a peruca, tira um isqueiro do short jeans surrado e saí. Caminha rumo à rua General Osório e desaparece. Por alguns minutos algo aconteceu, e esse acontecimento foi amplificado e diluído sobre o concreto da cidade. Uma breve movimentação, uma cena de cinema; expandida e efêmera, como o que acabara de acontecer. No entanto Cida não existe, existe a mulher e o acontecimento, mas não sabemos seu nome. Ela também não perguntou por nada. Apenas pediu o cigarro e tomou a peruca. No entanto o desejo de ficcionalizar construindo um diálogo possível foi mais forte. A estadia Um hotel na rua General Osório, número 23, pequeno, coberto com azulejos, o cheiro forte de desinfetante é sua garantia. Uma performer e seu filho de cinco meses se hospedam, o resultado da vivência é refletida através de uma instalação aberta ao público que poderá entrar no quarto do hotel das 9 da manhã às 18 horas, quem entrar encontrará ali instalado fotos como transfix coladas pela parede, além de anotações e uma réplica de corpo coberto. As fotos os objetos dispostos narram a estadia no quarto da mãe e do bebê.

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DESCANSO A escrita Os relatos acima se inserem em ações e procedimentos criativos, parte do laboratório de criação multimídia, as experiências fazem parte do projeto Minha vida seria ficção se não fosse a realidade, que acontecem na região central da cidade de São Paulo, na região da Luz. A primeira experiência acontece na rua e traz ao epicentro da ação uma mulher que ultrapassa o lugar de mera espectadora para ser a mola propulsora da ação momentaneamente “televisionada” e amplificada, ela tem conhecimento do desfecho de sua presença e se coloca em experimento mesmo que por alguns minutos, dá dimensão outra a sua ação, intervindo na instalação e propiciando algo além dos objetos dispostos, valendo-se da propriedade de viver e pertencer ao lugar. Na segunda experiência a performer vive mesmo que por algumas horas sua vida em uma outra espacialidade, deslocando seu dia a dia para um local outro, diferente mas, não distante do seu habitat. A ação gera resíduos e fotos que são expostos ao público, como num sítio arqueológico em que as fotografias substituem os desenhos ruprestes. Criando uma situação quase arqueologica em relação experiência vivida. Criar situações que se desembocam no desenvolvimento de performances tanto no que se refere a ações disparadas por elementos dispostos ou mesmo ações programadas se coloca como uma única maneira possível de viver um território limite entre a vida e a arte. Tomando como ponto de estudo a expressão rtística performance, como uma arte de fronteira, no seu contínuo movimento de ruptura com o que pode ser denominado “arte-estabelecida”, a performance acaba penetrando por caminhos e situações antes não valorizadas como arte. Da mesma forma, acaba tocando nos tênues limites que separam vida e arte (COHEN, 2002, p. 38).

O intuito das ações que podem ser chamadas de laboratórios criativos, na medida que buscam promover experimentações influenciadas pela vivencia espacial, não procura apenas fontes e materiais para uma experiência estética formalizada, deseja também uma aproximação entre os sujeitos que habitam o lugar e determinam sua dinâmica. O lugar concentra prédios residenciais, comércio de eletrônicos, bares, prostíbulos, uma escola de música clássica, um museu, um teatro, uma residência artística e a cracolândia. Seus habitantes são compostos por famílias brasileiras, bolivianas, africanas, frequentadores por diferentes motivos, compradores, trabalhadores, moradores de rua, artistas e usuários de crack. A escolha por mulheres e transgêneros femininos busca um mapeamento afetivo do feminino nas dinâmicas sociais daquela região, e se dá devido à sua grande incidência e pelo fato da violência ser uma constante na vida dessa população. Muitas dessas mulheres são ou se tornam mães, vivem em pequenos apartamentos alugados ou ocupados, em hotéis ou mesmo na rua. Existem também casos de trangêneros que adotam | 177

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bonecas, crianças ou até mesmo outras mulheres. Laços de solidariedade podem ser a única alternativa para a sobrevivência quando estes se encontram em situação de rua. Há também uma aproximação com a performer que se propõe a desenvolver esse projeto, essa aproximação está principalmente ligada ao fato de ser mulher e também mãe, o que sugere ações que tangem as questões ligadas ao sentimento maternal. Propomos uma reflexão sobre os procedimentos empregados no desenvolvimento de laços afetivos e de uma cena multimídia, híbrida e quase documental, valendo-se da performance e instalação como procedimento criativo gerador de cenas e acontecimentos cênicos em convergências com outras linguagens, tais como o vídeo, a fotografia e o som, gerando conteúdos materiais passíveis de serem editados e manipulados. Esses conteúdos partem de experiências performáticas lançadas em um processo/ laboratório aberto, reafirmando a performance como uma arte do acontecimento presente e da própria vida, no encontro com o outro e suas infinitas possibilidades, como Eleonora Fabião (2009, p. 237) aponta: […] a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. Esta é a potência da performance: des-habituar, des-mecanizar, escovar à contra-pêlo. Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o estabelecido, de experimentar estados psicofísicos alterados, de criar situações que disseminam dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica, emocional, biológica, ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética, social, racial [...].

O fato de tomar o convívio com o outro, as experiências vividas e portanto também envolver outros sujeitos, nos coloca em um problema clássico; como tratar esses materiais? Já que no cruzamento das ações na rua funcionam como uma espécie de laboratório de afetação em criações que bebem na biografia e na própria autobiografia considerando o lugar, seus sujeitos e o espaço como estopo para criação. Tratando de um processo aberto e devotado a experiência real no que se refere a sua feitura, não apenas como procedimentos para a geração de um produto final, mas como um processo experiência, como descreve Silvia Fernandes acerca do teatro contemporâneo e sua relação com o real: Uma parcela significativa desse teatro é reconhecida pelo envolvimento em longos projetos de pesquisa que, ainda que visem, em última instância, à construção de um texto e de um espetáculo, parecem distender-se na produção de uma série de eventos pontuais. Talvez se pudesse caracterizar essas breves criações apresentadas em ensaios públicos ou produzidas em workshops internos como teatralidades episódicas, inacabadas, imersas na realidade social, cujo caráter instável explicita uma recusa à formalização e um movimento de interação com o outro. Essas experiências aparecem de modo mais urgente que o desejo de finalização num objeto/teatro, e em geral se processam numa relação corpo a corpo

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP com o real, entendido aqui como a investigação das realidades sociais do outro e a interrogação dos muitos territórios da alteridade e da exclusão social no país (in: FABIÃO, 2013, p. 6).

O desafio de ser ético consigo, ser ético com o outro, fugindo a formas extrativistas de captação de materiais biográficos e na falta de devolutivas uma vez que o material foi formalizado é um desejo dominante, e como forma de tornar o processo legítimo e horizontal se dá na valorização do acontecimento presente, do processo no aqui e agora, não reservando a experiência apenas como material para uma dramaturgia e ou acumulo de imagens a serem exibidas como resquícios de memórias. Mas, sim, como algo vivido e de alto teor de afetação, ligada a emoções superando as razões estéticas que movimentam os processos de criação. O uso de material biográfico é bastante recorrente na arte contemporânea, a medida que o atuante não representa nenhum papel ou personagem distintos a sua própria vida, a performance exige de seu autor uma presença física, psicológica e espiritual, ou como nos indica Ana Goldenstein Carvalhaes (2013, p. 32), ao analisar a obra de Renato Cohen: “A performance apresenta-se como forma recorrente e eficaz na ligação entre experiência e modos de vida - em modos de estar em cena, além de construir espaços de alteridade na arte”. A pesquisadora Ana Bernstein (2001, p. 92), embora analise aqui a situação do solo performático, ela aponta aspecto biográfico como catalizador de discursos que fogem a situações em que o performer volta-se apenas a si mesmo “desempenhado uma função crítica na criação de um espaço discursivo para minorias que não se enquadram na normatividade do discurso ideológico dominante”. As formas de narrativas nesse projeto refletem seu tempo e abarcam as novas tecnologias como modos de construção e experimentação, ampliando os esforços em se trazer o real e a manipulação do mesmo como elemento fortemente performático na medida que não serve apenas como fonte de documentação, mas, sim de uma ação híbrida e polivalente. O aporte das novas tecnologias que amplificam os mecanismos de mediação, virtualização e refratação da percepção, e captação de códigos sensíveis que demarcam tempos, espaços, corporiedades, vão legitimar uma série de experimentos, eventos – da ordem de uma cultura das bordas – que passam a se inscrever no campo da cultura. A questão que se propõe na arte da performance é de uma mediação e intervenção nos planos de realidade, superando os limites entre os campos do real e da ficcionalidade, entre sujeito e receptor da obra, dando complexidade e polissemia à produção do evento, que passa a ser culturalizado (COHEN, 2003, p. 122).

O uso do vídeo mapping, a tecnologia digital, a fotografia, a instalação, o som manipulado e editado nos possibilita transitar as fronteiras do real e do ficcional a medida que se pode reorganizar os signos, expandi-los ou até mesmo re-significá-los em uma ação performática em tempo real. A exemplo disso, tomaremos a prática do Vjing, bastante difundida e executada nos mais diferentes espaços, da rua, a galerias e festas. | 179

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A exemplo do que ocorre nas videoinstalações, portanto, há aqui a expansão do plano da imagem para o plano do ambiente, da arte como objeto para a arte como situação, dispositivo, acontecimento. Neste contexto, o espectador é convidado a abandonar uma postura unicamente contemplativa para participar ativamente do espetáculo, vivenciando a situação proposta. Nos espetáculos dos VJs, o corpo como um todo se vê inserido no contexto de significação do trabalho, sendo bombardeado por múltiplos estímulos simultaneamente (FILHO, 2010, p. 142).

O desejo de criação de uma cena multimídia não se encerra apenas em um formalismo, ou por tendências contemporâneas, a utilização de meios tecnológicos somam as ações novas formas de percepção e afetação, ampliando seu campo de ação e variação no espaço e no tempo. Entendemos o espaço como o lugar onde as ações se desenvolvem cenicamente ou não. E o tempo do aqui e agora, assim como o desdobramento para o passado, a memória. O uso de elementos tecnológicos na cena amplificam e dão novo sentido a performance, ampliando as possibilidades de apreensão e construção, trabalhando em escalas diferentes, em proporções muitas vezes distintas em realidade distintas: […] caminhamos, de um lado para mídias cada vez mais complexas – tecnologicamente falando – e dinâmicas, tendo na transformação sua função básica, e, de outro lado, para o eterno resgate das funções essenciais do homem […]. Contudo é diante da tecnologia do humano, na capacidade de desempenho que carregamos, nas formas de acionar o mundo que nos colocamos em constante experimento a partir de tudo aquilo que nos afeta e nos faz afetar (COHEN, 2010, p. 163).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERNSTEIN, Ana. A performance solo e o sujeito autobiográfico. In: Sala Preta. n. 1. São Paulo: ECA/USP. 2001. COHEN, Renato. Rito, tecnologias e novas mídias na cena contemporânea. São Paulo: Brasileira, 2003. COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo espaço para experimentação. São Paulo: Perspectiva, 2002. FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. In: Sala Preta. n. 8. São Paulo: ECA/USP, 2009. FERNANDES, Silvia. Experiências do real no teatro. In: Sala Preta. vol. 13, n. 2. São Paulo: ECA/USP, 2013. FILHO, Osmar. A experiência no vídeo: não-narratividade, corpo e presença nas práticas audiovisuais. Tese (Doutorado em Comunicação Social). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2010.

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Performance

O ATOR-PROVOCADOR DE SI MESMO: QUANDO O TREINAMENTO É A PRÓPRIA CENA Ana Paula Gomes da Rocha Universidade Federal de Ouro Preto

Partindo do pressuposto de que um treinamento de ator não se restringe mais apenas à experiência prática (técnica e sensível) que resulta em um repertório de ações como objeto de montagens artísticas, esse artigo propõe refletir a respeito de que o treinamento de ator-dançarino é possuidor de uma estética própria que, por conseguinte, se aproxima de elementos performativos, ocupa lugares artificiais e naturais, constitui uma dramaturgia, aspira a produzir um evento através do investimento de si mesmo pelo artista. Sendo assim, questiona-se o posicionamento do mesmo no que se refere ao status de preparo do ator, orgânico e, tecnicamente, para representação/apresentação/evento cênico/performance/intervenção, longe dos olhos do seu público, porque a materialidade do treinamento de ator evidencia atributos semióticos capazes de envolver artistas e espectadores em um enredo aberto e expressivo. O professor e diretor teatral Richard Schechner (2010, p. 338) diz: Muitos atores rejeitam o processo, achando que o treinamento só serve para prepará-los para a apresentação. “Assim que eu terminar isso”, eles dizem para si mesmos, “eu posso apresentar e apresentar”. Mas o treinamento cresce em importância à medida que a pessoa amadurece.

Logo, através do reconhecimento da potência criativa do treinamento de ator que antes prevalecia fechado na sala de ensaio, elege-se o ato de treinar enquanto evento, que se mostra, se transforma e se presentifica em cena em frente ao espectador. Dessa forma, é possível evidenciar de forma poética e estética rastros das camadas (antes ocultas) da presença cênica do ator, da presença invocada entre ator e público, o momento presente do evento teatral/ performativo: A performance elege o próprio artista como obra, construindo-se sobre o seu corpo; ela toma forma numa relação recíproca e simultânea entre o corpo do artista, o momento do evento e a obra: o corpo produz a obra que produz o corpo (ROMANO, 2005, p. 47).

Seguindo essa lógica de pensamento, o treinamento performativo do ator deixa vir à tona não apenas o processo de aperfeiçoamento técnico, mas, também, o processo de transição de criação do material para a cena, a revelação das potências corporais, o surgimento e dissolução de signos. Apresentando e compartilhando com o público um processo aberto e mutável, porque durante o ato de treinar-presentar é possível presenciar a metamorfose do processo de presentificação das cenas, melhor dizendo, o 182 |

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treinamento que se revela como sendo a própria obra. Nesse ponto, configura-se a presença de um ator-dançarino/intérprete que privilegia a performance em seu trabalho e lhe proporciona autonomia no fazer; confere ao artista a possibilidade de ser provocador de si mesmo. Colocando, também, em questão as formas de manifestação do corpo do artista, de um estar disponível ao ato, de afetar e ser afetado, de se envolver ou distanciar, porque durante a aparição da ação cênica do ator, ele apresenta uma sequência pessoal de atuação que carrega de forma oculta exercícios técnicos ou energéticos resultantes de vivências e princípios utilizados no roteiro de treinamento, este que determina, direta ou indiretamente, como esse corpo é codificado e se presentifica no espaço cênico escolhido. Segundo Lúcia Romano (2005, p. 194-195): Esse ator pode ser relacionado ao performer, compreendendo a performance como um comportamento de comunicação, à maneira de Zumthor, que emprega o termo para introduzir as reflexões sobre o corpo vivo, da emanação do corpo presente na poesia oral. A performance sela um “saber ser”, que: a) concretiza algo que pode ser reconhecido; b) aparece (emerge) num contexto e ali encontra seu lugar; c) implica numa conduta do indivíduo responsável por seus atos (passíveis de repetição); d) marca o conhecimento ao comunicá-lo (transmudando a forma que surge no evento).

Então, “a ação do ator tende para uma manifestação mais aberta a significados, do que para uma direção e/ou um significado único pré-estabelecido” (SILVA, 2013, p. 59). O que possibilita a ênfase do trabalho se manifestar no acontecimento da ação no momento presente, evidenciando a transitoriedade e transformação do mecânico ao sensível, que proporcionam um treinar e estar em cena com diferentes perspectivas sobre uma apresentação, por exemplo: “quais são os meus códigos? [...] Nos ombros de quem estamos apoiados? O que informam minhas sensibilidades artísticas?” (Idem, p. 41). Essa contextualização potencializa a fisicalidade do ator e seu estado cênico como possibilidade de escrita, intervenção e atuação. É o que se pode notar na seguinte estrutura que representa o questionamento posto nessa pesquisa: treinamento performativo do ator-dançarino = aperfeiçoamento (entre o técnico e o sensível) + presença cênica do ator + presença invocada (ponte entre o ator e o espectador) + a-presentação do treinamento como evento teatral. A “[...] performatividade parece privilegiar o jogo com as ações em um campo autônomo em relação à construção de sentidos” (LEONARDELLI, 2011, p. 11). A construção da presença cênica do ator-dançarino por meio do treinamento performático possibilita um desnudar-se do performer que atrai a atenção do espectador – este que se coloca mais próximo e atuante. Há a ativação desse corpo através de técnicas, como: deslocamentos, ângulos, o uso das articulações, intenções, impulsos, energia, respiração, entre outros, que gera um vocabulário de criação – a autora denomina como sequência pessoal, que se afirma como possibilidade de escrita e ação e que, também, transmite informações, A sequência pessoal é gestada em um processo performativo e comunitário da presença, porque “o corpo passa a ser a performance” (CONTENTE, 2012, p. 52). | 183

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Com a pesquisadora Josette Féral, tem-se o pensamento de que o sentido da representação não é o mais importante, e sim a condição do “aqui e agora” de um evento, que é apresentado em um espaço-tempo não repetível. Para isso, o performer evidencia suas fragilidades, sua subjetividade por meio de impulsos, e se mostra para um público – e o afeta, favorecendo uma imaginação flutuante e incrivelmente ativa. “Ela coloca em cena, com esse fim, o processo. Ela amplifica, portanto, o aspecto lúdico dos eventos bem como o aspecto lúdico daqueles que dele participam (performers, objetos ou máquinas)” (FÉRAL, 2008, p. 203). Quando se coloca o processo do treinamento de ator em cena, tem-se a probabilidade de desenvolver uma epistemologia que se constrói no ato do fazer. E assim, adquire-se ação e reação que se forma e se transforma no aqui e agora, ampliando a potência do encontro entre ator e espectador. Instauram-se uma “(...) ambigüidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem” (FÉRAL apud LEONARDELLI, 2011, pp. 11-12). Posto isso, indaga-se ao leitor o porquê de não deixar vir à tona todas essas camadas de composição para o público, sendo que o treinamento de ator pode ser a própria cena e/ou evento. É como cartografar e “perceber as coisas através da experiência, do deixar vir e trazer isso à Arte de maneira poética” (KASTRUP, 2010, pp. 3-4). Ao compartilhar a evolução do background de criação do ator com o público, os desdobramentos de mapeamento e organização do roteiro de criação do treinamento performativo ganham existência através do ator-provocador de si mesmo. Tal exercício favorece a aproximação do treinamento de ator com a performance e sua expansão transdisciplinar, resultando em um caminho que mistura essas duas perspectivas. E assim, a composição não exclui o trabalho do ator sobre si na própria criação, repensando o corpo como provocador desses cruzamentos. A partir desse entendimento, o treinamento performativo de ator, assim como a performance, torna-se um campo independente de composição e abandona a solidão das salas de treino afim de mostrar e comunicar diretamente ao espectador o nascimento da obra de arte, diluindo “[...] as fronteiras entre campos artificialmente separados que atrapalham o fluxo da vida, da arte e da pesquisa” (FERNANDES, 2014, p. 82). Ao estar integrado com a experiência somática, ecopoética e o meio ambiente, o modus operanti de todo o processo do treinamento performativo do ator está abarcado em uma perspectiva de sustentabilidade e abrange a ecologia profunda de Guattari. Esse termo ecopoético se refere ao “envolvimento dos artistas da cena e do corpo com a Agenda Sustentável não do ponto de vista do engajamento militante em causas pontuais ou não, mas de revisão de seus processos, técnicas e poéticas a partir de uma corporeidade ecopoética.” (SIQUEIRA).34 Ainda conforme Siqueira (2010, p. 98): O termo “sustentabilidade” expressa a conexão intrínseca entre justiça social, paz, democracia, autodeterminação, qualidade de vida e, para poder atingir estes 34 SIQUEIRA, Adilson. Ecopoética e corporeidade: o lugar do corpo ator-dançarino na relação entre arte e sustentabilidade. Disponível em: . pdf. Acesso em: 29 de set. de 2014, p. 1-5.

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP objetivos, é necessária uma estratégia cultural baseada no pressuposto de que media, artes, educação, comunicação, organização e também emoções desempenham papel decisivo nesse processo de mudança.

Esse modo de pensar está ligado às práxis ecológicas evocadas por Guattari (1990), que contribuem para a formação do sujeito ecológico. Seu pensamento ecosófico é definido por três ecologias que se articulam a questões ético-políticas: ecologia subjetiva ou mental, ecologia social e a ecologia do meio ambiente. Essas ecologias dizem respeito à concepção e relação do sujeito com seu corpo, à reconstrução da relação do homem com o socius e com o meio ambiente. O treinamento performativo de ator-dançarino está ligado diretamente à consciência planetária e à “subjetividade humana, as relações sociais e a natureza” (GUATARI, 1990, p. 08). Ao mesmo tempo em que ele prepara o corpo do ator/performer/artista enquanto habilidades físicas, ele proporciona a consciência do seu estar em e na sua comunidade; o ato de treinar se transforma na própria ação de se apresentar espetacularmente e performaticamente, e esse é o objetivo desse artigo. “A performatividade promove a co-relação indissociável entre o que se faz e o que se diz – dizer o que faz, fazendo o que diz” (SETENTA, 2008, p. 84). Nesse processo do fazer/treinar/a-presentar aqui discutido, compreende-se implicações políticas e estéticas capazes de romper com os próprios modelos pré-estabelecidos de treinamento de ator. É nesse ponto que se adéqua ao conceito de performatividade: O conceito de performatividade refere-se a um modo de estar no mundo, podendo ser aplicado às relações pessoais, sociais, políticas, culturais e artísticas. A performatividade se caracteriza por movimentos inquietos, questionadores – aqueles que não se satisfazem com respostas já dadas e trabalham para perturbar o domínio do “o quê”, “para que/ quem”, “porque” em favor de um “como” que precisa ser sempre construído. Dela faz parte a necessidade de mudanças porque se refaz a cada tentativa de resposta às inquietações que aparecem no processo de constituição de sujeitos/sociedades. Ainda, não tenta fixar o presente, em vez disso, desloca-o. Traz para o presente marcas passadas e indica, no mesmo presente, marcas futuras. A performatividade se interessa pela presentidade do presente que está em movimento. Vive-se a globalização, tempo das redes de circulação de idéias, materiais, pessoas; do deslocamento e descentralização de poderes e crenças. A importância de se falar/trabalhar/tratar da performatividade na contemporaneidade está em provocar, perturbar, e instigar a continuidade desses deslocamentos e descentramentos e tentar subverter procedimentos que fixem, e rotulem idéias, pensamentos, produções e outros. São fazeres que levam a dizeres específicos, fazeres que são considerados enquanto atitudes que podem ser encaradas como condutas políticas. A performatividade conecta o poder fazer aos poderes instituídos – social, histórico, econômico e político (Idem, ibidem).

Esse fazer performativo dialoga com a dimensão física, técnica e teórica do treinamento de ator aqui apresentado, em que a palavra treinamento não se restringe a conduzir o ator a uma viagem fechada ao seu próprio corpo. Retira-se a ideia de que os | 185

Caminhos da pesquisa em artes cênicas

exercícios explorados e apresentados em um roteiro são apenas caminhos para percorrer uma geografia corporal pretendida e/ou alcançar um drama específico, com seu próprio desenvolvimento interno e externo, se desvinculando da ginástica. É possível adquirir a organicidade dos movimentos sem se prender ao medo e os riscos da fragilidade do estar exposto, compartilhando os rastros do treinamento performativo do ator-dançarino com o espectador. Este que também passa a ser participante e até co-criador da obra, porque a relação com o outro (ator, público, materiais, espaço, música, entre outros) permite que existam surpresas e reverencia amplamente as possibilidades de criação no aqui e agora. Assim sendo, esse texto apresenta e compartilhar um treinamento de ator que se expande a novos horizontes e oferece ao espectador a oportunidade de conhecer o processo de criação em cena, de forma performática, e não uma encenação pronta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARNEIRO, Nathália Pereira; ALBUQUERQUE, Pauleni O. de Sousa. Todo dia um corpo: intervenções no corpo em ensaio fotográfico. In: FERNANDES, Vidica Ana Rica (org.). Ressignificar as fronteiras da informação e comunicação. Goiânia: Contato Comunicação, 2013. pp. 71-81. FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Sala Preta. vol. 8. São Paulo: ECA/ USP, 2008. pp. 197-210. FERNANDES, Ciane. Pesquisa somático-performativa. In: ARJ. vol. 1. Brasil: Jul./Dez. 2014. pp. 76-95. GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990. KASTRUP, Virgínia (org). Pistas do método da cartografia: Pesquisa – Intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010. LEONARDELLI, Patrícia. Teatralidade e performatividade: espaços em devir, espaços do devir. In: Revista Cena. n. 10. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. SCHECHNER, Richard. O que é performance? In: Performance studies: an introduccion. 2.ed. New York & London: Routledge, 2006. pp. 28-51. SCHECNER, Richard. Performer. In: Sala Preta. vol. 9. São Paulo: ECA/ USP, 2009. pp. 333-365. SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade [online]. Salvador: EDUFBA, 2008. ISBN 978-85-232-0495-2. Disponível em: SciELO Books . SILVA, Tatiana Cardoso da. Treinamento do ator: plano para reinvenção de si. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas). Porto Alegre: UFRGS, 2009. SIQUEIRA, Adilson R. Ecopoética e Corporeidade: O lugar do corpo do ator-dançarino na relação entre arte e sustentabilidade. Disponível em: . Acesso em: 13 de set. de 2015. 186 |

MANUAL DE DESOBEDIÊNCIA CÊNICA: AÇÕES OBSCENA [S] NAS RUAS Frederico Caiafa Universidade Federal de Ouro Preto

Aos panfletários Arte como crime, crime como arte (BEY, p. 7, 2007). Queremos iniciar este artigo com o nosso contato com a performance, mas que não foi o primeiro que fizemos com as artes da cena, porém foi aquele que promoveu o despertar de nossa consciência corpórea para a liberta expressividade e liminaridade citada por Diéguez (2011), característica de seus platôs e de uma parateatralidade, e que compõem a arte da performance que nos deteremos em análise e observação. E quando citamos uma relação para além de um “outro”, de maneira alguma estamos estabelecendo relação que se fixe em características superiores em detrimento da outra, mas pelo contrário, nosso olhar está afeiçoado às múltiplas faces da performance e das manifestações de artes panfletárias. Sim, achamos importante que a arte também seja panfletária, provoque politicamente e poeticamente seus “receptores”. Usamos aspas, pois este termo nos parece ainda ser um substituto para outro que poderá vir durante nossa pesquisa. Os agenciamentos possíveis do caráter híbrido da performance são na verdade ao que nos propomos observar, arte pós-estruturalista. Priorizamos pela desestruturação dos contornos a fim de promover essa multiplicidade de possíveis. Pensamos que, para além de um programa, conforme Fabião (2008), a performance é antes de tudo uma expressão que foge até mesmo de expectativas e inclusive de uma programação de seu feitor. Percebemos que a arte na rua foge do que se cria anteriormente, portanto, explode até mesmo o que se pensa em antecipação. O intuito desse nosso subterfúgio inicial é evitar a depreciação de qualquer forma de expressão artística e não pôr nossa observação sobre qualquer outra existente, mas provocar o deslocamento a partir do que vislumbramos ser possível e ao que nos toca no mais íntimo. Acreditamos que só possa haver relações de potência na interlocução de linguagens, e por acreditarmos no livre trânsito entre as várias expressões de arte sem o preconceito de estabelecer relações de preferência por outra arte ou por outra. E quando pensamos no repertório como fonte de fluidez do fazer, que abarca-se no fluxo de sua bagagem pré-existente atrelado às vivências dos sujeitos envolvidos em uma ação artística, este, o repertório, é uma maquinaria individual imprescindível e indistituível, presente em toda “fazência”, indiscernivelmente, não há como separar o sujeito do per| 187

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former, deste artista que propõe-se a viver novas situações, como trata Taylor (2012). Portanto, a performance que estamos tratando é profundamente embebida pelas ideias e percepções dos movimentos advindos dos movimentos artísticos pós-modernos. O título de nosso artigo também é uma provocação para gerarmos um pensamento mais libertário de estruturas que são acometidas aos indivíduos, normalizações, receitas, fórmulas, passos. Afinal, em nossa sociedade do controle conforme Deleuze (1997), aos corpos são impingidos aos mais opressores e contumazes conceitos. Não priorizamos pensares cartesianos, pelo contrário, acreditamos que à arte não preceda uma significância que justifique sua expressão. Faz-se arte não para outrem ou para outro artista, além de si, mas com a vida. Acreditamos que à arte não há escapatória. É uma urgência do corpo. Não. Ouça, foi isso que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe ideias de bem e mal, infundiram-lhe a desconfiança de seu próprio corpo e a vergonha pela sua condição de profeta do caos, inventaram palavras de nojo para seu amor molecular, hipnotizaram-no com a falta de atenção, entediaram-no com a civilização e todas as suas emoções mesquinhas. E como não pensar nas instâncias que provocam esse desobedecer que não sejam às normas impostas ao corpo? (BEY, 2007, p. 5).

É ao corpo que nossa sociedade do controle generalizado (COSTA, 2004) exerce maiores prejuízos, doenças e estratificações das mais vis. As burocracias impostas ao corpo geram a falsa sensação de liberdade em um sistema neoliberal assassino, escravocrata e usurpador das subjetividades. Aos vários corpos são feitas ações pelo mundo em busca de elucidar sua importância. Sejam eles os corpos e seus capitais, gêneros, etnias, religiosidades etc., e cada um deles genuinamente necessários para que se promova em sociedade, também, o desmantelamento de suas acepções, promovendo outros caminhos aos sujeitos e novas questões a si mesma. Queremos desobedecer as regras estabelecidas aos corpos, as estratificações e dobras nas quais os corpos são forçosamente impingidos à convivência e ao seu recrudescimento. Aos corpos não cabem mais definições que não sejam elas próprias geradas pelo corpo, individualmente, e que servirá apenas ao mesmo a este ser. Retirar estes corpos de seus ostracismos fônicos, virtuais, provocados pelos atuais aparelhos de múltiplas funções e que já tornara-se anexo aos corpos contemporâneos. Acreditamos que a arte urbana está atrelada a uma manifestação ética, estética e política, em fruição de potencialidade individuais e em ampla difusão. Poderíamos dizer, também, que a atividade artística de maneira geral exerce grandes revoluções, a partir de uma ação micromolecular e que é replicada por intermédio da afecção de seus envolvidos com quem ela realiza contato. Vemos que a própria questão de movimento panfletário ou de arte panfletária pode ser taxada como atividade alienada e replicante. Esse pensamento, aparentemente, demonstra-se incomodado por que ao nosso ver não é nada negativo fazer uso da arte para falar da vida. Algo bastante comum no que tange a arte de uma maneira geral em 188 |

II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP

suas mais variadas expressões, mas que está sempre a reboque do discurso de ordem e de origem de outrem. Ao mesmo tempo, aparentemente, parece-nos este termo ter caído em uma ordem de chacota no sentido de ignorar toda a potência que o ato artístico que se promove em uma superfície de argumentos e ações políticas. Talvez por ser visto como um manifesto político fragilizado, talvez por ser considerado ultrapassado. Ao nosso ver esta seria uma outra forma de minar formas de invenção para si de novos discursos tensionados, posicionados e de resistência. Pensando assim podemos permitir novos desenvolvimentos referentes a estas ideias anteriores, pois, achamos que posicionar-se é dar voz às falas e pensares possíveis a partir de posturas, como forma de resistência de corpos alheios à “ordem mundial”. De acordo com Rancière (2009, p. 59), “a arte é considerada política porque mostra os estigmas da dominação, porque ridiculariza os ícones reinantes ou porque sai de seus lugares próprios para transformar-se em prática social etc.” Assim sendo, fazemos conexão com o pensamento do autor que propõe vida e arte como exercícios políticos de existência ativa, de resistência frente aos opressores dos corpos e do viver em singularidade e independência de sentidos pré-definidos. Aqui, portanto, acreditamos que o panfletário é imprescindível como arma, como resistência, uma máquina de guerra. A presentificação, ou como é preferível dizer no campo das artes cênicas, a corporeidade que é manifestada na interlocução do fazer que implode dicotomias e definições estranguladoras de singularidades que priorizam a expressividade e vão além do regimentado. Parece-nos que a arte que buscamos em nossa pesquisa produz e destrói paradigmas por ser aquela que busca escarnecer as mazelas, colocar críticas outras e por ciar suas próprias formas de se fazer, não procurando modelos de sua feitura mais sendo durante todo o seu processo um vetor metalinguístico de si. Um buraco negro que tudo devora produzindo não universos, mas multiversos possíveis. Por isso, acreditamos que arte é vida e é feita por todos, em qualquer momento e sem a necessidade de autorização de qualquer instância superior para acontecer. Dos encontros Pensando nos corpos que se afetam para este fazer, na tessitura da paisagem urbana e, a partir do trabalho com o coletivo Obscena, associado aos pensares sobre arte manifesto, arte política, resistência, terrorismo poético, artivismo e performance, acreditamos que o fazer deste agrupamento é afinado aos atravessamentos e intervenções que esta arte provoca. Também pensamos que o trabalho que o coletivo realiza está mais próximo do que é tratado por Cohen (2013), sendo exemplo de work in progress que vemos em associação com o próprio autor, por se tratar de um fazer em continuidade, em fluxo e em produção aberta durante todo o seu processo. Uma ação nunca é semelhante a outra. Como exercício metalinguístico e ao pensar escrita como atividade performática emergem pontos teóricos que são nosso ferramental. Cria-se, por conseguinte, o horizonte e direção de nossa pesquisa. Intencionamo-nos em aprofundar no relato do fazer | 189

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artístico associado às ações que promulgam à afinidade existente entre a poética artística e sua vivacidade política coabitando ações do agrupamento. Com isso, partimos do pressuposto de que arte e política estão associadas, senão nunca foram seccionadas. E estas ideias anteriores – sobre arte/poética e resistência e política – se correlacionam, pois, confiamos que estas relações são intrínsecas. Estamos em limiares da arte enquanto “linguagem” e na promoção de ações de questionamento social, biográfico, ativista, arte sem dono, do sujeito/cidadão, na cidade. Apesar de pensarmos ser crucial para nossa pesquisa a referência de artistas ou ações, grupos, que se afinam com o nosso pensar a respeito do que iremos considerar para definir em nossa pesquisa, o próprio Obscena aporta grande quantidade de singularidades que nos instigam o suficiente para tratarmos de arte urbana. Chamaremos a partir deste momento de interventor aquele artista que usa o espaço da rua como paisagem de criação e composição de seu trabalho. Espaço de instigante provocação, o Obscena – agrupamento independente de pesquisa cênica – é uma rede colaborativa de trabalho e pesquisa de variados pesquisadores e pesquisas que são conflitadas, esgarçadas e promovem diversificadas afecções aos seus envolvidos no coletivo. Este coletivo faz uso dos corpos de seus performers como o dispositivo de suas ações, corpos estes tão talhados por conceituações que os segmentam e colocam em lugares demarcados como arrebanhados por seus donos e senhores. O Obscena leva a poesia para ser lida para a cidade, instalando-se em espaços públicos onde pouco se ocupa, mas se faz corredor de passagem. Faz mudanças energéticas na cidade. Propõe críticas, expõe sua carne nua nas ruas. O corpo que quebra o fluxo, que se mostra livre e que permeia a magia de antigos, por levar a própria pele como sua bandeira, sua pele como insígnia de sua multiplicidade, as moléculas que são expergidas, fundidas com o arredor, em um rito de encontro. Uma apropriação dos espaços a fim de subvertê-los. Os diversos discursos levantados pelo coletivo são questões cidadãs, de qualquer outro indivíduo convivente do ambiente urbano, que tem a cidade como espaço de deslocamento, trabalho, casa e criação. Para falarmos do que nos é presentificado pelas ações do coletivo gostamos de pensar que estes trabalhos são propiciados pelas possibilidades do zeitgeist, como nos cita Cohen, que nos relata este fazer contemporâneo de constituição efêmera, fluídica, em movência, pois: São materiais de procedimento criativos da cena processual – que incluem a deriva, o irracionalismo, o display, a cartografia, a justaposição. Em grandes mediações do consciente e inconsciente, são recuperados experimentos paradigmáticos como as aliterações dadá, a Merz-Bau de Kurt Switters, o conceitualismo, o corpo instalado, a alterações de contexto (COHEN, 2013, p. 4).

Os movimentos situacionistas, as instalações, a arte que irrompe as barreiras das concatenações significantes, como os corpos orgânicos humanos que vão às ruas para 190 |

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manifestarem seus sentimentos, suas angústias e posicionamentos em relação às questões que lhe são caras, as manifestações urbanas são também expressividades de corpos que não se querem estagnados, estabelecidos por representâncias que não ouvem seus clamores. Mesmo estes movimentos, de acordo com Bey (2007), são já concebidos e traduzidos pelos cidadãos como sendo expressões de uma teatralidade, de uma atividade que seja interpretada como tal. Atos sociais e políticos, protestos, revoluções e coisas do gênero – são ações coletivas em larga escala, seja para manter o status quo, seja para mudar o mundo. Toda a gama de experiências, compreendidos pelo desenvolvimento individual da pessoa humana, pode ser estudado como performance. Isto inclui eventos de larga escala, tais como lutas sociais, revoluções e atos políticos. Toda ação, não importa o quão pequena ou açambarcadora, consiste em comportamentos duplamente exercidos (SCHECHNER, 2011, p. 34).

Os corpos não suportam mais definições empobrecedoras de sentidos e de fazeres, o trabalho do performer nos aproxima do pensamento do terrorista. O artífice do crime de se poetizar a vida exercendo suas potencialidades políticas e artísticas em sintonia e sincronia com as ações artísticas. E o artista é convidado a criar suas escrituras próprias de arte nunca dantes experimentada a fim de exercer sua singularidade na própria feitura da ação artística. Uma nova proposta põe-se em questão: desobedecer. E mesmo assim não pretendemos criar regras e estabelecimentos de ações e/ou receitas de como se fazer, muito pelo contrário, queremos pôr em questão o fato de nos apoiarmos constantemente a trabalhos e a métodos de fazer que, em nossa opinião, geram apenas amarras aos seus seguidores e que constringem suas ações. Mas antes de tudo, os trabalhos que vivenciamos e queremos dar maior atenção não preconizam uma espetacularização. Acreditamos que esta pesquisa não é feita pelo nem para o mainsteam; não é feita para outro artista. Bey (2007) aborda com primor ácido e fala de atos que esfacelam com o pré-estabelecido. Arte que não é feita para ser identificada como arte. Como os grafites nas ruas, ainda belos, harmônicos, como é o caso da dupla The twins, os gêmeos paulistas, que são hoje referência na arte do grafite e convidados a realizarem seus trabalhos em variados lugares, inclusive, castelos. O pixo35, o rabisco nas paredes e em locais de extrema dificuldade de aproximação, é também bastante interessante por ainda ser mal visto pela população em geral e totalmente taxado como ato de vandalismo por autoridades. É aparente que a questão do ato da pixação não é só uma assinatura pessoal. Contudo, recentemente, foi pixado o relógio da prefeitura de Belo Horizonte e que foi muito interessante em ver como estes artistas busca locais complexos para fazerem seu detona36. E se pensarmos que o ato de vandalismo também tem relação com uma expressão de arte, como as manifestações populares. São todas elas de importante menção, pois 35 Iremos usar o termo conforme ele é grafado por seus artistas, ou seja, iremos criar uma transgressão ortográfica para dar força ao ato artístico. 36 Preferimos usar o termo conhecido e usado por quem realiza esta atividade artística.

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tratam-se de questões de urgência. A fala e as palavras de pessoas corporificadas, corporeidades que expressam-se em manifestações públicas, seus corpos, suas produções, placas, ações, até mesmo as vândalas querem falar de um lugar especifico. Lugares de fala que trazem questões particulares, individuais, mas que representam um espaço singular e que precisa ser posto, questionado e levado a conhecimento, as paredes, pois, são as telas de um atelier gratuito, a cidade. Não é para se vender bilhetes, e nem para entrar na roda capitalística. Um terrorismo poético é uma assombração para sempre nos calcanhares dos paladinos da segurança, da arte consagrada, das governanças falidas e afundadas em sua deteriorização em franca excrescência. O medo do terrorismo, o termo é também já capturado e ressignificado contemporaneamente pela mídia e organização das instituições máximas de nossa sociedade, quando citamos estes locais estamos trazendo o que nos fala Foucault e Deleuze dessas estruturas, que são conformadas pelas forças que regulam o funcionamento do estado, ou que são seus tentáculos que conectam produzindo e destituindo subjetividades. Dos vândalos e cooptados Banksy, artista londrino que faz uso de suas ações artísticas em locais públicos e que em sua maioria são dados a tensões políticas, apropria-se em seus trabalhos na cidade a partir da escolha do site specific. São miríades que são postas em relação em suas obras. Citamos este artista porque seu trabalho, independentemente do que o socius tenha produzido a seu respeito, é interessante e muito potente a partir de nosso ponto de vista. Mas que não há como não mencionar como este fora cooptado, inclusive, especula-se que este artista não seja, hoje, uma única personificação e sim uma alegoria dividida por outros muitos artistas interventores. Porém, a sua arte tem sido retirada e colocada em grandes leilões por vários países do hemisfério norte. Muitos nomes conhecidos de Hollywood, e desconhecidos também, exibem seus Banksy’s às pessoas ostentando um objeto, um pedaço de parede, fachada, chão, retirados das ruas e vendidos aos milhões. E esta atitude de perder-se em autoria, franca restrição intelectual burocrática do sistema do capital, vemos uma relação histórica nessa relação, – apesar de história da arte não ser especificamente nossa intenção neste artigo – sentimos que esta é bem aproximada do que se produziu a respeito de Shakespeare, sujeito ao qual existem múltiplas especulações, mas sem qualquer certificação de sua, até mesmo, existência. Há vários meios que os artistas criaram para produzir seus trabalhos. Variadas ações e formatos de intervenção urbana são utilizados. Em vários países essas obras são difundidas. Artistas que replicam os trabalhos de outros, uma nítida forma de atravessar mais este ditame social de direitos autorais. Poderíamos citar variadas formas que vislumbramos nas ruas das cidades de intervenção artística como o grafite, o pixo, o sticker, o estêncil, o adesivo, a instalação de objetos, placas, artefatos vários que são posicionados por seus artistas para diversas finalidades ou para nenhuma. Existe um sticker, trabalho de colagem de imagens nas ruas, que é conhecido em nível mundial chamado OBEY – que junto da palavra sempre está associado à imagem 192 |

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do rosto de um homem e, posteriormente, de outras figuras políticas, como o próprio Barack Obama – e esta palavra traduzida estaria referindo-se à obediência, na verdade: Obedeça! Em sentido imperativo do verbo. Talvez um exercício de ironia com a ordem e leis quebradas pelo artista em resistência urbana. Esta imagem trabalhada pelo artista Shepard Fairey parece-nos bastante apropriada para levantarmos a pesquisa teórica de nosso trabalho, pois retrata as questões de poder, de relações entre corpo(sujeito) e sociedade; e as relações de arte e política decorrentes destas afinidades. Estamos entrando em meandros de impressão de presença, nas expressões artísticas da contemporaneidade, no intermezzo de diálogo entre artes e as várias linguagens que se atravessam a fim de produzir o que se interessa em quesitos de arte e urbanidade. Neste sentido vamos de encontro com o que Debord (1968) elucida como espetacularização. E por este viés vemos a necessidade de ressaltar a potência das ideias de obediência e desobediência. A força da transgressão e dos movimentos de resistência populares que ultrapassam convenções instaurando-se como presenças ativas enquanto desvio das ordens as quais somos forçados a vivenciar. Para falar de obediência e no ato político de uma ação tornando-se transviada, chamamos Baruch Spinoza e o que religiosamente pode ser chamado de pecado, podemos pensar em transgressão, em vida associada e em sintonia aos desejos pessoais e universais. A isto assentiria de bom grado, se a liberdade do homem consistisse no desbragamento do apetite e a sua servidão no império da razão. Mas a liberdade humana é tanto maior quanto o homem seja capaz de conduzir-se pela razão e moderar seus apetites. Não é senão impropriamente que chamamos obediência à vida razoável, e pecado, o que, em realidade, é impotência da alma e não liberdade, o que torna o homem mais escravo do que livre (SPINOZA, 1985, p. 41).

E para explodirmos os conceitos arraigados na sociedade sobre a ideia de pecado, vamos também dá prosseguimento ao convite feito a Spinoza, pois, como ele mesmo se expressa, em estado de natureza o homem não poderia exercer ações de pecado que são aquelas contra ele mesmo. Ou seja, um ato só poderia ser transgressor ou vândalo a partir do olhar de outrem e nunca pela experiência de si mesmo com suas próprias questões e desejos. Convertendo a ideia de pecado e tornando a macro podemos pensar que a lei é, pois, o pecado estipulado pelo Estado. Portanto, desobediência cênica poderia ser também uma proposta de extrapolar regimentos, pois “a lei nunca fez os homens sequer um pouco mais justos; e o respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-intencionados a agir quotidianamente como mensageiros da injustiça” (THOREAU, 2012, p. 2). E para prosseguir: Se a injustiça é parte do inevitável atrito no funcionamento da máquina governamental, que seja assim: Talvez ela acabe suavizando-se como desgaste – certamente a máquina ficará desajustada. Se a justiça for uma peça dotada de uma mola exclusiva – ou roldana, ou corda, ou manivela –, aí então talvez seja o agente de que se transgrida a lei. Faça da sua vida um contra-atrito que pare a máquina (Idem, p. 7). | 193

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Portanto, infringir leis em algumas situações são, por muitas vezes, a forma de despertar os olhares para o novo, sobre o próprio impedimento estabelecido à arte e às pessoas. Estas experimentações abrem espaço para qualquer indivíduo que queira produzir sua arte. Nosso artigo não se trata, por isso mesmo, de um manual, mas um convite à criação de ações desobedientes, que sejam puro devir e desejo e que a única regra é não ter regra. Deixemos de ter medo do maquinário sistêmico para romper suas roldanas estabelecendo novos ajustes, sejamos os híbridos de um novo emergente e coloquemos os corpos a disposição para o porvir em ativo estado de transcendência.

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A PAISAGEM SONORA COMO PROVOCAÇÃO À CONSTRUÇÃO CORPO-MULHER Thaiz Cantasini Universidade Federal de Ouro Preto

1.

Prelúdio.

*Sugestão de escuta para a leitura: Marlene “Lata d´água na cabeça” (Luiz Antônio/Jota Jr.)

Trataremos aqui da oficina Percepção sonora no des-anestesiamento da potênciacorpo feminina, que aconteceu durante a ação feminista realizada pelo NINFEIAS – Núcleo de Investigações Feministas37, em parceria com o NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família, no Posto de Saúde do bairro Santa Cruz, em Ouro Preto/MG. As mulheres que tiveram interesse pela oficina são, em sua maioria, casadas, heterossexuais, mães e/ou avós. Trabalham em casa e também fora dela, com algumas exceções. A faixa etária do grupo varia de cinquenta a setenta anos. Com algumas destas mulheres tive contato, em uma tarde anterior, em um evento voltado ao mês da mulher: um bate-papo também proposto pelo NINFEIAS em parceria com o NASF, no qual conversamos sobre a vida, sobre ser mulher, falamos sobre Ginecologia Natural, tomamos café e comemos pão de queijo. Neste encontro assistimos ao curta-metragem Vida Maria, de Márcio Ramos: uma animação que conta a história de Maria José, que é levada a abandonar os estudos para trabalhar na zona rural, em casa com a mãe. Enquanto Maria trabalha, ela cresce, casa, tem filhxs, envelhece. As filhas de Maria são novas Marias, que abandonam o estudo para ajudar a mãe a carregar balde de água na cabeça. As filhas-das-filhas de Maria, também, como as outras, crescem Marias. E assim, vimos o curta-metragem da velha história de novas Marias, de velhas Marias “daquela velha história” que se repete indefinidamente, até não termos mais nada de realmente novo. Até sobrar apenas o essencial: somos Marias, fabricadas por Marias que foram fabricadas por outras Marias. Todas largamos o estudo – que poderia ter nos transformado, talvez, em Marias-nós-mesmas – para assumir o tão naturalizado papel social “Maria”, mas Maria-vai-com-as-outras. Durante o bate-papo, uma identificação imediata: muitas delas viveram na zona rural e até o balde de água na cabeça se parecia com aquele que a Maria José do filme carregava. Muitas não sabem mais como andar sem o tal-do-balde-de-água-na-cabeça. Baldes encarnados: o balde que virou cabeça. Os olhos que viraram água. E sobem o morro até hoje. 2.

Afinando plurálogos.

*Sugestão de escuta para leitura: György Ligeti - Poema sinfónico para 100 Metrónomos.

Começo querendo conhecer estas mulheres-Maria. Querendo saber os outros nomes delas, nomes impronunciáveis, múltiplos. Os nomes que temos antes de termos 37 Grupo de pesquisa coordenado pela professora Nina Caetano (PPGAC/UFOP) que objetiva o estudo de teorias e práticas feministas performativas, instigando a troca e a provocação artística entre mulheres.

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nos tornado Marias. Antes dos baldes de água na cabeça. Assim, talvez, possa saber dos meus nomes também... Para tratar disso neste texto, proponho uma interlocução com a filósofa pós-estruturalista Judith Butler. Butler desmonta a ideia de heteronormatividade com um percurso crítico que questiona sistematicamente a construção de gêneros e identidades. Para isso, problematiza a relação sexo/gênero, fazendo uma crítica a teorias feministas para as quais “o sexo é natural e o gênero construído”. Butler (2010) irá radicalizar a teoria feminista afirmando que “neste caso, não a biologia, mas a cultura se torna destino”. E ainda que “talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma”. Desta maneira, a filósofa afirma que o sexo não é natural, mas culturalmente construído, assim como o gênero. A “mulher” seria uma ficção social, um papel social desempenhado por se tratar de uma construção cultural. Mas o corpo é também diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder operam sobre ele uma influência imediata, elas investem contra ele, o marcam, o adestram, o supliciam, o constrangem a trabalhos, o obrigam a cerimônias, cobram deles signos (FOUCAULT, 1999, p. 30. Grifos meus).

Pensando em práticas de desestabilização da lógica social de construção do corpo -mulher, uma vez que “se o poder é forte, é porque ele produz em igual medida aquilo que ele proíbe” (COURTINE, 2013, p. 17), busquei na elaboração da oficina trabalhar com dois eixos: 1) A noção de “abertura dos ouvidos” (SCHAFER); 2) O arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL). Tive, como objetivo central da oficina, trabalhar uma escuta ampliada, total, que permitisse furar vigentes normatividades: Se quisesse resumir numa só palavra toda a filosofia, toda a obra de Schafer, essa seria a palavra escolhida. Ephtah!... Abre-te! Abre-te, ouvido, para os sons do mundo, abre-te ouvido, para os sons existentes, desaparecidos, imaginados, pensados, sonhados, fruídos! [...] Mas abre-te também para os sons de aqui e agora, para os sons do cotidiano, da cidade, dos campos, das máquinas, dos animais, do corpo, da voz...Abre-te, ouvido, para os sons da vida...Ephtah! (FONTERRADA, 1991, p. 10).

Em A música desperta o tempo, Daniel Baremboim é persistente em nos atentar para nossa insensibilidade auditiva e, consequentemente, para a nossa capacidade de supressão dos sinais que ela envia ao corpo. Ouvir sem escutar, escutar sem ouvir: um completo desacordo. Essa restrição-de-nós-mesmxs se vê convertida em limitação de criatividade (cria-atividade) e consequentemente, na falta de respiros de expressividade. A percepção está relacionada à atitude corpórea. Essa nova compreensão de sensação modifica a noção de percepção proposta pelo pensamento objetivo,

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP fundado no empirismo e no intelectualismo, cuja descrição da percepção ocorre através da causalidade linear estímulo-resposta. Na concepção fenomenológica da percepção a apreensão do sentido ou dos sentidos se faz pelo corpo, tratando-se de uma expressão criadora, a partir dos diferentes olhares sobre o mundo (NÓBREGA, 2008, p. 142).

Pensando no corpo feminino construído e cerceado, propus, então, um processo de “abertura dos ouvidos” (e ouvido é corpo) a partir da realidade sonora e/ou visual percebida diariamente e inconscientemente: uma subversão de sentidos viciados como uma provocação às lógicas de opressão e normatividade impostas pela cultura. Na obra O ouvido pensante, a atenção para a abertura dos ouvidos é um convite ao ouvir, ao mundo e sua poesia sonora. Nela, Schafer trabalha com formas de toda natureza. Além disso, torna o ensino da música acessível, desmistificando que a música seja um privilégio apenas para músicos. A música para Schafer é a recuperação do som que nos atravessa, e sua percepção. Então, pensando em possíveis empoderamentos via percepção sonora, optamos por trabalhar com variações de jogos de sua autoria e também com jogos de Augusto Boal. A música é a mais arcaica das artes, a mais profundamente enraizada em nós, porque começa quanto ainda estamos no {ÚTERO} de nossas mães. Ela nos ajuda a organizar o mundo, embora não nos faça entendê-lo. É uma arte pré-humana, criada antes do nascimento (BOAL, 2011, p. 17. Grifos meus).

O epicentro da obra de Boal reside na ideia de que o teatro, enquanto ação humana, está impregnado de cunho político. Sendo assim, há um compromisso do artista que percebe as diferenças e desigualdades de seu tempo em não desenvolver um processo artístico que reforce ou neutralize posicionamentos perante essas desigualdades. Os jogos teatrais de Augusto Boal têm como objetivo práticas de desmecanização do corpo, transformando o ser em sujeitos construtores e transformadores de realidades, propondo transformações em contextos sociais “que retiram do sujeito a sua capacidade de ler o mundo e de produzir saberes sensíveis na sua cultura” (CANDA, 2012, p. 201). Além disso, sua obra tem, como foco, desvelar o ser oprimido e o ser opressor como construções sociais – pensamento que afino com o da filósofa Judith Butler quando proponho práticas trabalhando feminismo e abertura de ouvidos. Além disso, Boal teve uma preocupação com a questão sonora e imagética do cotidiano, apresentando, assim, possibilidades de jogos para “escutar tudo o que se ouve” (BOAL, 2011), de modo a democratizar e des-hierarquizar o acesso às práticas teatrais38, pois, para ele, “todos podem ser atores e espectadores no mundo pois nele agem e o observam” (Idem, p. 4). Sendo assim, falaremos sobre algumas das práticas propostas ao grupo de mulheres do bairro Santa Cruz, em Ouro Preto/MG.

38 Nesse sentido, sua proposta se “afina” com a de Schafer em relação ao ensino/aprendizagem musical.

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1.1. S~~o~~r~o~~~ri~~dades sonoras: o (som do) toque na flor. *Sugestão de escuta para leitura: Vá tomar um banho de cachoeira, rio ou mar. Pare e escute o som que a água faz quando encontra com seu corpo.

Começamos a prática com o choro de Dona Santa. O papel na mão, a caneta. A pergunta proposta: “Como está seu feminino hoje?” ficou sem resposta. A psicóloga do NASF, Tatianne de Araújo (que também fazia a prática conosco) resolveu chamar Dona Santa para conversar em outra sala. Pedi que voltasse depois, que seria bem recebida pelas companheiras daquela tarde que, aliás, eram também suas amigas do bairro. Ela fez um sinal com a cabeça, concordando. Um choro silencioso, mas tão intenso... e santa, Dona Santa seguiu. E nós, seguimos para a prática coletiva. Juntamos nossos papéis – papéis sem identificação, anônimos – com a resposta em um recipiente. Estávamos todas tão tensas por Dona Santa... mas aos poucos, formamos uma roda. Um círculo de mulheres. Propus então que nos olhássemos nos olhos. Olhos nos olhos. Havia grande dificuldade em olharmos umas para as outras. Demorávamos, perdíamos o fio, mas, no meio deste fio, criávamos nós. Insistimos neste olhar, que migrava para o entorno. E, aos poucos a trama foi timidamente tecida... Em cada mulher um mapa: sobrancelhas, cílios, rugas no canto dos olhos, rugas nas testas e também maneiras diferentes de piscar os olhos. Até a retina mirar a retina. Ainda em roda, começamos a prática Toré-Fêmea.39 A orientação é que as mulheres que compõem a roda encostem ombros com ombros e marquem um pulso, começando com uma batida mais forte no chão com o pé esquerdo e, com o direito, fazendo uma batida mais leve, de modo a criar uma espécie de dança coletiva e ritmada pelos pés em compasso binário. Então, inserimos as vogais de nosso nome nesta roda, depois as somamos às vogais do nome de nossas mães, e por último as das avós. Cantamos as mulheres que nos habitam: uma espécie de mantra muito pessoal. Num segundo momento, a roda devagarinho arrisca um giro para a esquerda e depois para a direita, e então abrimos escuta para o som que acontece no espaço, o som das vogais de nossas companheiras, para a massa sonora coletiva, o corpo sonoro coletivo. São árvores-vogais, um tronco não linear de narrativas contadas, cantadas. As mulheres na roda propõem variações de intensidade e andamento da massa e corpos sonoros até cessarmos gradualmente num abraço coletivo e o pedido de uma palavra sobre o encontro dos olhares, corpos e timbres. Algumas delas: “união”, “femininas”, “canto” e “difícil”. Esta foi a nossa prática de apresentação: na sequência falamos nossos nomes. Em seguida, caminhamos para a segunda prática trabalhada, o jogo “Mimosas bolivianas”. O nome “Mimosas bolivianas” corresponde a pequeninas flores que se fecham ou se abrem quando tocadas por alguém, por algum inseto, pela chuva ou mesmo por um vento astuto ou um pouquinho mais curioso do que uma brisa. O método de Augusto Boal sugere que a prática seja realizada em duplas. Mas, observando e experimentando outras maneiras de vivenciar o jogo, resolvi arriscar uma 39 Uma das práticas propostas pelo Laboratório Madalenas – Teatro das Oprimidas é o Toré-Fêmea. O Toré proposto aqui mantém algumas características da dança indígena usada na dramatização de identidades e de anunciação de guerra. E é usada neste sentido em práticas feministas que têm sido multiplicadas por agentes e pesquisadoras feministas do Teatro do Oprimido de Augusto Boal.

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variação. Nela, foram formados grupos de quatro mulheres, de modo a uma mulher ficar no centro enquanto as outras se dispõem ao redor dela, mantendo certa distância que não comprometa sua movimentação. A mulher que está no centro fecha os olhos. Quando tocada por alguma das companheiras, recebe o toque e amplia este toque em direção ao infinito, partindo de uma parte do corpo para o corpo todo num fluxo contínuo. As companheiras irão observar a flor e revezar lentamente estes toques entre si. O toque deve ser leve, “um carinho” que cessa assim que outra companheira propõe novo toque. Neste grupo, em especial, trabalhei com variações de sons de água dentro de garrafas de plástico a cada toque que a “mimosa” recebia, corporificando o som até este não ser mais apenas um “sinal” sonoro e seu corpo se abrisse em flor. Revelando um corpo novo, de nome impronunciável, híbrido. Todos os nomes vazavam pela porosidade daqueles corpos, inclusive aqueles “Marias” que carregavam. Pássaros e leões nos habitam, diz Lygia – são nosso corpo-bicho. Corpo vibrátil, sensível aos efeitos da agitada movimentação dos fluxos ambientais que nos atravessam. Corpo-ovo, no qual germinam estados intensivos desconhecidos provocados pelas novas composições que os fluxos, passeando para cá e para lá, vão fazendo e desfazendo. De tempos em tempos, avoluma-se a tal ponto a germinação que o corpo não consegue mais expressar-se em sua atual figura. É o desassossego: o bicho grasna, esperneia e acaba sendo sacrificado; sua forma tornou-se mortalha. Se nos deixarmos tomar, é o começo de outro corpo que nasce imediatamente após a morte (ROLNIK, 1996, p. 43. Grifos meus).

Das efêmeras mortes de “Marias” e dos corpos que ali eram re-encarnados como experimentos da vida (corpos experimentando fricções com o mundo), vi Fatinha chorar enquanto dançava. Aliás, enquanto ela era ela. Pensei que ela fosse parar, mas ela seguiu a descoberta sem segurar o choro. As companheiras então resolveram dar um toque juntas no corpo de Fatinha. Era um abraço. A voz de Fatinha saiu, transbordou e então ela agradeceu às companheiras por estarem ali. A nossa discussão sobre performatividade de gênero e sobre os nossos processos de construção sociocultural teve início a partir desta vivência de corpos sonoros e, por isso, vibráteis. Antes de partirmos para a terceira parte da prática proposta, conversamos sobre as maneiras que essas construções de gênero e desigualdade entre sexos aconteciam na vida de cada “mulher” ali presente. O relato de Izildinha, 65 anos, furou o andamento da discussão quando ela nos contou que hoje mora sozinha, que gosta de namorar e que conseguiu construir sua própria casa, depois de anos sendo vítima de violência simbólica praticada pelo antigo companheiro. Nesta conversa, Dona Santa saiu da sala em que estava conversando com a psicóloga do NASF e resolveu voltar para a prática. O que achamos muito bom e corajoso. Havia certa preocupação das companheiras em relação à Dona Santa, que pude compreender melhor no final da tarde, ao conversar separadamente com ela. Conversamos no ponto de ônibus, já quando eu estava indo embora do Bairro San| 199

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ta Cruz. Ela revelou que estava (está) sendo silenciada pelxs filhxs e pelo companheiro há cerca de 30 anos, dentro de sua casa, e que, num rompante, resolveu botar fogo na casa “para que a família fosse embora e para que os móveis desaparecessem nas cinzas”. Em consequência de uma cultura machista, Dona Santa tornou-se uma das usuárias do CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, a pedido da própria família, o que fez aumentar a violência e o preconceito contra ela praticados. Penso que, talvez, Dona Santa não caiba mesmo inteira neste artigo de tão grande que ela é. 1.2. Des-Mon-Ta-GEM-SO-NO-RA : feminismo-em-quebra-cabeças. *Sugestão de música para esta leitura: A que você quiser, mas misture bem as palavras. Desmontar no es deconstruir, en apego al término derrideano, pero el propósito de desmontar procesos teatrales pone en tela de juicio el sistema estructural al someterlo a la mirada de los otros sin pretender perpetuar modelos, colocando en el terreno de la discusión la consistencia dura de las categorías, de las poéticas y de los sistemas cerrados de valoración y pensamiento. Se trata de procesos más cercanos a las inmersiones indagatorias, a los azares y pequeños hallazgos, y de ninguna manera pretenden totalizar la experiencia creativa (DIÉGUEZ, 2009, p. 2).

Tínhamos frases anônimas do início do encontro em resposta ao feminino de cada mulher naquela tarde; palavras que foram anotadas por nós durante as práticas anteriores; e na parede do espaço destinado à prática, um painel formado por frases feministas ali dispostas aleatoriamente desde o início de nosso encontro, como uma das ações propostas pelo NINFEIAS. E ainda: tínhamos vivências do corpo, na pele, peregrinações muito pessoais. Reunimos nossas impressões pessoais e, no painel, as mulheres escolheram palavras que por algum motivo reverberavam em seu corpo após as práticas até ali vivenciadas. Tínhamos, assim, um banco de impressões do começo ao final da tarde. Com isso, partimos para o trabalho coletivo e a proposta foi: “Gostaria que vocês escolhessem uma música em comum, que todas gostem”. Depois de longa discussão, a escolha: “Todas nós gostamos do Roberto Carlos. A música escolhida é Jesus Cristo”. Então, pedi que escolhessem um recorte bem específico desta música e também que cantassem, prestando uma atenção especial ao que a letra dizia. E o recorte foi: “JesusCristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo eu estou aqui/Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo eu estou aqui.” Depois do canto, pedi que apenas assobiassem aquele recorte e que, daquele momento em diante, imaginassem que aquela letra havia desaparecido da harmonia da música, de modo a somente restar o som do assobio da canção. Como em (DELEUZE, 1992, p. 109. Grifos meus), “pegar as coisas de onde elas crescem, pelo meio: rachar as coisas, rachar as palavras”. A proposta era realizar a montagem de uma letra nova para a música, mantendo sua harmonia musical. O material que tínhamos para este exercício era o nosso banco de impressões de autoria coletiva. Foram rasgadas algumas 200 |

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palavras, que se fundiram a outras, formando novas palavras. Uma apropriação. Uma prática política que persiga a subversão da subjetividade, que permita um agenciamento de subjetividades ofegantes, deve investir o próprio coração da subjetividade dominante, produzindo um jogo que a revele (...) precisamos retornar ao espaço da farsa, produzindo, inventando subjetividades delirantes... (LISSOVSKI apud GUATARRI e ROLNIK, 1981, p. 208. Grifos meus).

E a nossa montagem foi: “Sorria, sorria, apanhei por causa do seu fiu-fiu. Que violência. Mas sou fêmea: quase fui assassinada”. Relaciono a apropriação por um grupo de mulheres de uma letra musical composta por um homem considerado como “Rei” na grande mídia a uma forma de resistência feminista. Para Ileana Diéguez (2011, p. 166), a resistência “[...] não é um conceito abstrato, é uma prática específica que se desenvolve na esfera social, cultural, ética e política” E ela acrescenta que “a resistência inclui hoje a emergência de formas liminares de existência e ação, essencialmente efêmeras e anárquicas”. Ao tratar de resistências lúdicas, Diéguez nos aproxima do conceito de jogos. No nosso caso, jogos criativos de “engajamento” via percepção, uma vez que, por se tratar de uma proposta de abertura dos sentidos (neste caso específico privilegiando-se o campo da escuta) nos processos de desmontagem do papel social e cultura da mulher propõe a novas reflexões os processos de subjetivação destas mulheres. No instante em que um sujeito descobre sua existência e deseja se manter em vida, ele se engaja. Desta forma, o aparecimento do engajamento prolonga imediatamente o aparecimento do sujeito. O engajamento não é o ser do sujeito, mas a permanência conferida à sua identidade pela ligação de sua existência a uma causa. É por esta razão que podemos afirmar: Eu sou só se confirma pelo Eu posso (eu quero) (DENTZ, 2009, p. 28).

Depois que cantamos a letra musical criada, propus nova escrita. Um pedaço de papel com a pergunta: “De que você precisa se livrar para ser livre?”. Respondemos todas e dobramos os nossos papéis, pensativas. Dona Santa ali revelou que não sabia escrever e, por isso, havia chorado no início do nosso encontro, porque havia sentido vergonha. E então, desta vez, teve a nossa ajuda para responder à pergunta dela. Em um pote de barro, guardamos nossas confidências e, com a ajuda de álcool e fogo, as queimamos e observamos em silêncio este processo. Ao final, entoamos em coro: “Eu me amo, eu me aprovo, eu mereço o melhor e eu aceito o melhor agora”. Enquanto re-escrevo a experiência vivida, estou agindo de novo, atualizando a vivência... e percebo, só agora, uma co-incidência interessante: Dona Santa veio falar comigo sobre o fogo que ATEOU em sua casa... Mas só teve coragem para dizê-lo depois do fogo que ateamos naqueles “papéis” com as palavras que NÃO nos faziam mulheres LIVRES. | 201

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. 14. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. BUTLER, Judith P. Problema de los géneros, teoría feminista y discurso psicoanalítico. In: CANDA, Cilene N. Paulo Freire e Augusto Boal: Diálogos entre educação e teatro. (Online). vol. 4. Natal, Holos, 2012. pp. 195-205. COURTINE, Jean-Jacques. Decifrar o corpo: pensar com Foucault: tradução Francisco de Morás. Petrópolis: Vozes, 2013. DELEUZE, Gilles. Os intercessores. In: Conversações. Rio de janeiro, 1992. DENTZ, René Armandez. Prometeus: Filosofia em Revista. n. 4. Sergipe: Vivavox, Jul./Dez. 2009. DIÉGUEZ, Ileana. Cenários liminares: teatralidades, performances e política. Coleção Teoria Teatral Latino Americana. Uberlândia: EDUFU, 2011. DIÉGUEZ, Ileana. Des/tejiendo escenas. Desmontajes: procesos de investigación y creación. México: UIA-CITRU-INBA-CNA, 2009. FOUCAUL, M. Vigiar e punir. 20. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1999. FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. De tramas e fios: um ensaio sobre música e educação. São Paulo: Unesp, 2005. GUATTARI, Felix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981. NÓBREGA, Teresinha Petrúcia. Corpo, percepção e conhecimento em Merleau-Ponty. In: Estudos de psicologia (Natal). v. 13, n. 2. Natal: ago. 2008. pp. 141-148. Disponível em: . ROLNIK, Suely. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. In: Percurso, Revista de Psicanálise. Ano VIII. São Paulo, n. 16, 1996. pp. 43-48. SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. São Paulo, Unesp, 1997. SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo, Unesp, 1991.

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CORPO DESEMBESTADO: O DEVIR-ANIMAL, “AS ONDAS” DE VIRGINIA WOOLF E SUAS AFECÇÕES Matheus Silva Universidade Federal de Ouro Preto

O pesquisador Renato Cohen trata da arte da performance como uma expressão plástico-cênica, em que acontece uma ação que foi delineada, não necessariamente ensaiada, repetida, revista, mas que ocorre no presente e corre riscos. “Por sua forma livre e anárquica, a performance envolve artistas das mais diversas linguagens e inúmeras manifestações artísticas” (COHEN, 1987, p. 28). A arte da performance pode ser apreendida enquanto uma atividade que reinventa o lugar da arte na vida de quem produz e é afetado por ela. Mais interessada no seu funcionamento do que em suas origens, a grande potência da performance arte está em recriar e transformar modelos vigentes, tornando visível o invisível, palpável o despercebido através de um contínuo movimento de questionar-se e reinventar-se. Com ênfase no processo e na ação mais do que no produto, a performance estendeu um espaço de tensão entre pensamento e encadeamento cognitivo para se relacionar com forças desconhecidas, mas sem transformar o novo em algo familiar. Não se trata apenas de uma experiência extra cotidiana, mas de uma intensidade que não se transforma em linguagem e focaliza seus esforços para gerar um acontecimento a partir do mais trivial e banal da cotidianidade demonstrando, pelas vias de fato, que todas as dimensões humanas estão implicadas em todos os movimentos da vida, a fim de ressignificar as partículas aparentemente mais insignificantes do ser humano em geral. Segundo Eleonora Fabião (2013, p. 2): O performer suspende o que há de automatismo, hábito, mecânica e passividade no ato de “pertencer” – pertencer ao mundo, pertencer ao mundo da arte e pertencer ao mundo estritamente como “arte”. Um performer resiste, acima de tudo e antes de mais nada, ao torpor da aderência e do pertencimento passivos. Mas adere, acima de tudo e antes de mais nada, ao contexto material, social, político e histórico para a articulação de suas iniciativas performativas.

Trata-se de uma produção que não representa o real, experiencia o sensível enquanto única via de acesso a uma invisível nudez do real, elucidando uma diferença que não se deixa enquadrar, que não atende demandas. O performer se depara diante de um sistema representacionista embrutecido e fundamentado em verdades exclusivas, naturalizadas e racionalizadas, represadas a um molde normatizado, demarcado e disciplinado que, de certa maneira, negam a criação e a experimentação. Estes sistemas, implementados pelas instituições, tecem relações fechadas que consideram o outro como opositor e competidor; ficam aprisionadas no utilitarismo, na repetição improdutiva. | 203

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Diante disso, como pensar modos de fazer, de subjetivação e práticas artísticas, que quebrem com a atrofia e paralisia da capacidade produtiva e possibilitem desterritorializações no cotidiano como “linhas de fuga”? Mas como possibilitar saltos, microcorrosões nas leis, nas ordens já estabelecidas por conceitos e princípios? Como revolucionar a medida e produzir estados oscilantes, vibráteis e incertos? Fabião insiste em um “elogio ao precário”, uma vez que: Performances são elogios ao precário porque desestabilizam mecânicas comportamentais, rotinas cognitivas e hábitos de valoração; porque desfixam sentido e desmontam convenções; porque inventam […] novos corpos, possibilidade de encontros, agrupamentos e devires. Performances são elogios ao precário porque suspendem o estabelecido. O trabalho do performer é revelar e valorizar a precariedade emancipadora do vivo. [...] Pois o performer investe na potência vital da precariedade, na condição de instabilidade, relatividade e indefinição em favor da permanente renovação de si, do meio e da arte (FABIÃO, 2011, p. 66).

Portanto, o trabalho do performer é inventar espaços deslizantes, sem cobranças ou demandas dos modos instituídos. Manter uma atitude enérgica e produzir uma vida outra, variante e sem medidas. Seu trabalho é produzir rupturas em nossos sistemas territorializados, permitir revoluções nos corpos cercados de conhecimentos e tocar a dimensão singular do novo, do desconhecido, do “precário”, do provisório, de um novo território. Mas que forças seriam necessárias? As ondas, romance escrito pela autora inglesa Virginia Woolf, publicado em Londres em 1931, é obra em que são apresentados seis personagens que tentam apanhar, no agora, o que a própria autora chamava de uma “combinação de pensamento; de sensação; a voz do mar” (WOOLF apud STRATHERN, 2009, p. 73). Woolf nos oferece uma literatura que enreda e se desenreda, cheia de lacunas e remendos, questionando e apontando lugares desconhecidos: Eu, misturado com um desconhecido garçom italiano – o que sou eu? Não há estabilidade neste mundo. Quem dirá o significado de qualquer coisa? Quem predirá o vôo de uma palavra? Um balão navega sobre as copas das árvores. Falar em conhecimento é fútil. Tudo é experiência e aventura. Sempre estamos nos misturando com quantidades desconhecidas. O que está por vir? Não sei (WOOLF, 2004, p. 88).

A autora lança sobre o leitor desordenados blocos de sensações, relâmpagos permanentes e descontínuos de pensamentos dos personagens que convivem desde a infância até o fim da meia-idade. No início dos capítulos, a autora evoca uma “imagem poética do mundo exterior, uma meditação sobre um aspecto das ondas, sobre uma de suas horas, sobre um de seus devires” (DELEUZE, 1997, pp. 36-37). Após estes prelúdios, Woolf apresenta a voz interior de cada uma das personagens descrevendo o mesmo momento no tempo, porém, cada um avança como uma onda, dissolvendo-se pouco a 204 |

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pouco, não se aportando em uma identidade precisa, criando uma espécie de sinfonia de vozes que se cruzam de maneira harmônica e também dissonante. Conforme Paul Strathern: Em As ondas, Virginia Woolf consegue transmitir ao mesmo tempo a fluidez e a precariedade da identidade pessoal. Num nível puramente pessoal, essa era uma preocupação constantemente. A ameaça do colapso mental tornou-a profunda e constantemente consciente da fragilidade de sua própria personalidade. [...] As ondas eleva-se muito acima de suas inquietações particulares, a tal ponto que reconhecemos a universalidade dessa condição (STRATHERN, 2009, p. 74).

Os personagens Susan, Bernard, Louis, Jinny, Neville e Rhoda parecem estar fora do tempo ao apresentarem suas respectivas pessoas. O que se lê em cada linha é o abandono de qualquer cronologia e de quase toda a geografia a favor de intensidades que evoluem em um espaço interior indeterminado, impessoal. A forma pulsante da escrita fragmentária de Woolf transmite a experiência real de estarem vivos em uma realidade atemporal, um eterno presente. Quando despida dos recursos mediadores da trama, sua escrita ganha um empolgante caráter imediato. Virginia Woolf, em As ondas, desvela, não explica, faz ver e sentir uma experiência íntima e movediça. Bem como Maurice Blanchot: Escrever é quebrar o vínculo que une a palavra ao eu. (...) Escrever somente começa quando escrever é abordar aquele ponto em que nada se revela, em que, no seio da dissimulação, falar ainda não é mais do que a sombra da fala, linguagem que ainda não é mais do que a sua imagem, linguagem imaginária e linguagem do imaginário, aquela que ninguém fala, murmúrio do incessante e do interminável a que é preciso impor silêncio, se se quiser, enfim, que se faça ouvir (BLANCHOT, 1987, pp. 16 e 42).

Então, será que uma escrita pode ganhar consistência para suportar tudo isto? Ou quando é que a escrita, ela mesma, se desmancha? Este esforço de Woolf para se libertar das formas, dos hábitos e dos métodos antigos para se produzir um romance, imprimiu em As ondas seu dinamismo próprio. Os personagens parecem silhuetas que mergulham no nevoeiro, não permitindo ao leitor diferenciá-los, nem os detalhes das vidas exteriores ou mesmo a maneira como se exprimem. A ação se dilui, restando um romance não-figurativo, obscuro. Eis o mundo inventado por Woolf: [...] mas essas águas rumorejantes sobre as quais construímos nossas loucas plataformas são mais estáveis que os gritos selvagens, fracos e inconsequentes que emitimos quando, tentando falar, nos erguemos; quando raciocinamos e pronunciamos coisas falsas como “eu sou isto, sou aquilo!”. A linguagem é falsa (WOOLF, 2004, p. 103).

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Woolf, em As ondas, escreve bem como um performer, libertando-se dos constrangimentos habituais, da imposição dos fatos e das formas, para apanhar no instante-já o escoamento misterioso desta coisa perecível: a vida. Ao romper com o senso-comum, instaurando uma nova sensibilidade, surge uma outra maneira de lidar com a vida, que convoca a produção, a resistência; ao produzir um outro mundo do mundo, faz a vida acreditar neste mundo. Trata-se de uma escrita rizomática, cujo presente se recorta para evidenciar seus abismos e em sua obscuridade cavar uma inteligibilidade, seu ordenamento sempre incompleto. Conforme Graciela Ravetti (2011, pp. 39-40): Escreve-se como performer quando as imagens e os objetos criados pela ficção se entremesclam com algo de pessoal, com gestos que transbordam o ficcional e instalam o real indomável, convocando os agenciamentos coletivos [...] Escrevese como performer quando a palavra consegue dar um salto a outras linguagens, a imagens geradas por outras leis, e o diálogo que se instala faz uma alquimia [...] Escreve-se como performer quando se consegue subtrair da vida o que esta tem de jogo, macabro ou divertido, de nascimento ou de morte, de princípio ou de fim e se lhe devolvem outras versões desses jogos, outras iluminações.

As ondas, de Virginia Woolf, é, portanto, uma obra percorrida por saltos em um “real indomável”, onde os elementos da trama não reproduzem os códigos instituídos, mas inventam novas maneiras de ver e sentir, novos caminhos, novas passagens. Uma escrita performática liberada de sua forma constritora e que produz uma liberação dos conteúdos, onde coexistem vários “eus” estilhaçados capazes de sentir tudo com uma intensidade limiar e plural. Apreendo a produção literária de As ondas como atividade que é perpassada por devires através de suas infinitas e múltiplas “zonas de intensidade”. Estes “estados intensivos” podem também ser chamados de devir, ou seja, de sensações intensas que alimentarão o delírio, o desejo, a produção. A pesquisa do “corpo desembestado” parte de uma imagem literária do livro As ondas, da besta acorrentada que pateia na praia: Vejo pássaros selvagens, e instintos mais selvagens do que os mais selvagens pássaros erguem-se do meu selvagem coração. Meus olhos são selvagens; meus lábios, firmemente comprimidos. O pássaro voa; a flor dança; mas eu ouço sempre o embate monótono das ondas; e a besta acorrentada pateia na praia. Pateia sem parar (WOOLF, 2004, p. 44).

Em As ondas é possível perceber uma escrita como uma prática que tumultua as imagens cristalizadas no nosso pensamento para que advenha uma literatura em intensa relação com o seu livre jogo com as sensações. A imagem da besta que Woolf nos apresenta poderia ser lida como um instinto “mais selvagem do que as mais selvagens” bestas, um devir-animal? Para Deleuze (2002, s.p. ):

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP Seria preciso dizer que, no limite, um escritor escreve para os leitores, ou seja, “para uso de”, “dirigido a”. Um escritor escreve “para uso dos leitores”. Mas o escritor também escreve pelos não-leitores, ou seja, “no lugar de” e não “para uso de”. Escreve-se, pois, “para uso de” e “no lugar de” [...] Escrevo no lugar dos selvagens, escrevo no lugar dos bichos. [...] Escrever é necessariamente forçar a linguagem, a sintaxe, porque a linguagem é a sintaxe, forçar a sintaxe até certo limite, limite que se pode exprimir de várias maneiras.

O devir-animal não se trata de uma atividade em que se imitaria uma fúria animal, a fim de atingir uma forma animal no homem e sim, de uma experiência que se passa entre homem e o bicho, impossível de ler com sentidos certos, com interpretações previsíveis. A escrita de Woolf, a partir de Deleuze e Guattari, pode ser apreendida como uma prática grávida de “estranhos devires que não são devires-escritor, mas devires -rato, devires-inseto, devires-lobo. [...] O escritor é um feiticeiro porque vive o animal como a única população perante a qual é responsável de direito.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 21). A escrita de Woolf, portanto, pode ser apreendida como uma rede de intensidades em fluxos atravessadas por um devir-animal que produz infinitas mutações na estrutura significante dominante, forçando a linguagem a um livre tráfego de palavras para além do seu domínio inicial de aplicação. Por isso, o devir-animal-escritor escreve a cavalo, explorando os meios, atropelando, passando a galope, fora da margem, saltando obstáculos. De acordo com Deleuze e Guattari (1997, p. 20), “Virginia Woolf não se deixa viver como um macaco ou um peixe, mas como uma penca de macacos, um cardume de peixes, segundo uma relação de devir variável com as pessoas das quais ela se aproxima”. Eis o princípio de uma realidade própria ao devir. O devir arrasta “blocos de sensações, perceptos e afectos” que desterritorializam os termos antes pautados pela ideia de identidade e unidade, apresentando em si sua imbricação em uma dimensão impessoal. Para Deleuze (2002, s.p. ): Os perceptos fazem parte do mundo da arte. O que são os perceptos? O artista é uma pessoa que cria perceptos. Por que usar esta palavra estranha em vez de percepção? Porque perceptos não são percepções. O que é que busca um homem de Letras, um escritor ou um romancista? Acho que ele quer poder construir conjuntos de percepções e sensações que vão além daqueles que as sentem. [...] Não há perceptos sem afectos. Tentei definir o percepto como um conjunto de percepções e sensações que se tornaram independentes de quem o sente. Para mim, os afectos são os devires. São devires que transbordam daquele que passa por eles, que excedem as forças daquele que passa por eles.

A arte, para Deleuze e Guattari, engendra perceptos e afectos – novas percepções de uma vida, que se apresentam como parte de um desenvolvimento sincrônico, não -linear, não-dialético e não-conclusivo e desempenham o importante papel de inter| 207

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conectar, mediar, relacionar e associar, de forma dinâmica e ativa, matérias que se revestem de heterogeneidade. Os “blocos de sensações” são compostos de “perceptos e afectos”, extraídos de um caos intensivo e mobilizador, enquanto entidades autônomas e suficientes, seres de sensação, que criam universos possíveis, acrescentam novas variedades ao mundo, liberando novas formas e modalidades de existência que nada devem a qualquer referente. Cintia Vieira da Silva (2013, pp. 21-22 e 215) colabora, afirmando que: O afecto é o efeito do encontro entre os corpos e, como tal, envolve aumento ou diminuição da potência de agir e da potência de afetar e ser afetado dos modos por eles implicados. Assim compreendido, o afecto não envolve uma interioridade psicológica concebida como substancialmente distinta da experiência corpórea. [...] Os afectos [affectibus], por definição, exprimem a unidade da potência de agir, pois implicam uma relação tanto ao corpo quanto à mente e convidam a estuda-los em conjunto. Os afectos manifestam de modo privilegiado a simultaneidade entre o que se passa no corpo e na mente [...].

Trata-se, tanto na produção literária de Woolf como na performance arte, de um corpo afectivo, entrecruzado por uma multidão de excitações que o abrange. Quando este corpo produz, tudo se transforma em matéria-prima de um processo de criação não só artística, como também da própria existência. Percepções, afectos enquanto potência ativa da contaminação de tudo: produções continuamente percorridas por linhas intensivas, blocos de sensações que os colocam abertos a inconduzíveis reinvenções corpóreas. “Corpo desembestado”: uma atividade que provoca um caos nas estruturas padronizadas, a fim de germinar, a partir dele, infinitas novas atualizações. Um “desembestamento” como potência de deslocamento atravessada por um devir-animal rico em articulações e ligações, por novos “perceptos e afectos” que cavam saídas por toda parte; um “corpo desembestado” habitado por uma irreversível força de transformação em variação contínua. Como dissolver o império interior povoado de imagens e sentir a carne crua? No “corpo desembestado” faz-se urgente a questão da performance como prática processual com ampla gama de invenção, somente possível por deslocamentos, confundindo fronteiras e extremidades. Trata-se de um corpo performático que se desvela e que viola qualquer acordo com o conhecido. É a descontinuidade que determina seu início e seu fim, já que ele sempre nasce pelo meio, pelo devir que arrasta muitos fluxos, muita hibridação; uma produção artística e de diferença intensificada que produz um outro real, possível, atual. Uma disposição ao estranhamento, ao inusual. Trata-se, para Juliano Pessanha (2009, pp. 66-67), de: [...] desprender-se do eu autobiográfico, alienado no ideal, o eu-virtual e pré-narrado pelo rebanho. [...] Deves tornar-te o pássaro, a ave estranha que te habita e trazê-la ao mundo sem cálculo e sem negociação. [...] Mas como é que se inter-

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP rompe a avalanche autobiográfica e fictícia do eu? Como é que dá o acesso a essa alteridade chamada si-mesmo? E a resposta é: pela emergência do corpo. Pelos acontecimentos que tocam e fisgam um corpo exposto... Ali onde alguém é tocado e atravessado para além de todo e qualquer funcionamento racional, ali onde um espinho cortou a carne e onde uma questão insiste em forma-de-ferida, ali é o lugar onde o “eu” deve mergulhar e deixar-se desmanchar.

Trata-se de um corpo que já não aguenta mais todo e qualquer adestramento vindo do racional e iluminista mundo exterior ou do império da subjetividade individual. Engolido no espaço da rachadura, este corpo precisa correr veementemente, destemido, desenfreado, desgarrado, enfim, desembestado. Precisa ganhar velocidade, disparar, derivar. Um corpo habitado por torrentes, por ondas que atingem um excesso, uma emoção vital. Um corpo vazado, bestial; corpo que desatarraxa-se de si e das medidas que regulam o mundo e se libera da forma homem projetada em toda parte. Corpo desagarrado das combinações, das arrogâncias, das cristalizações, capaz de gerar sempre uma novidade incondicional. Um corpo que não ilustra, mas exprime intensidades e que produz a si mesmo como potência e que realiza um “manifesto de menos”, conforme Deleuze (2010, pp. 41-42): Trata-se de uma operação mais precisa: começa-se a subtrair, retirar tudo que é elemento de poder na língua e nos gestos, na representação e no representado. Então retira-se ou amputa-se a história, porque a História é o marcador temporal do Poder. Retira-se a estrutura, porque é o marcador sincrônico, o conjunto das relações entre invariantes. Subtraem-se as constantes, os elementos estáveis ou estabilizados, porque eles pertencem ao uso maior. Amputa-se o texto, porque o texto é como a dominação da língua sobre a fala e ainda dá testemunho de uma invariância ou de uma homogeneidade. Retira-se o diálogo porque o diálogo transmite à palavra os elementos de poder e os faz circular: é a sua vez de falar, em tais condições codificadas. [...] Mas o que sobra? Sobra tudo, mas sob uma nova luz, com novos sons, novos gestos.

Um “corpo desembestado” é pura afecção, é pura capacidade de agir, desliza entre lacunas, escorre feito líquido, expande ocupando cavidades enquanto, necessariamente, esgota-se da pretensão de uma identidade, de uma subjetividade estanque e, assim, embarca no desmanche das formas a favor de novas composições de forças vibráteis, de blocos de sensações que o faz passar por mutações descontínuas. Não se trata somente de um corpo selvagem e descontrolado, mas um corpo híbrido, que mistura e rompe linguagens, funciona ativando suas potências metamorfoseadoras. Atua na travessia, na ausência de constrangimentos, dogmas, servidões e obediências.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1987. DELEUZE, Gilles. Abecedário de Gilles Deleuze. Tradução e Legendas: Raccord, 2002. Disponível em: . Acesso em: 30/05/2013. DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: um manifesto de menos; O esgotado. Trad. Fátima Saadi, Ovídeo de Abreu e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 4. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2008. FABIÃO, Eleonora. Performance e precariedade. In: OLIVEIRA JUNIOR, Antonio Wellington de (Org.). A performance ensaiada: ensaios sobre performance contemporânea. Fortaleza: Expressão Gráfica e editora, 2011. FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo-em-experiência. In: Revista do Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais. n. 4. Campinas: Unicamp, dez., 2013. PESSANHA, Juliano Garcia. Instabilidade perpétua. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. RAVETTI, Graciela. Nem pedra na pedra, nem ar no ar: reflexões sobre literatura latino-americana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. SILVA, Cintia Vieira. Corpo e pensamento: alianças conceituais entre Deleuze e Espinosa. Campinas: Unicamp, 2013. STRATHERN, Paul. Virginia Woolf em 90 minutos. Trad. Maria Luiza de X. de Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. WOOLF, Virginia. As ondas. Trad. Lya Luft. Rio de Janeira: Nova Fronteira, 2004.

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ENCENAÇÃO: MARCAS DE TERRITORIALIZAÇÃO Paulo Ricardo Maffei de Araujo Universidade Federal de Ouro Preto

Temos o surgimento do conceito de encenação na virada do século XIX para o XX e dentre os diversos acontecimentos que o fizeram surgir evidencia-se o avanço tecnológico por parte dos elementos cênicos, tais como: iluminação elétrica, investida na tridimensionalidade na cenografia entre outros; e o rompimento com a hegemonia do texto, fazendo com que este último deixasse de representar o principal construtor de sentido e de comunicação na cena. É justamente a partir destes dois fatos que consideramos que o surgimento da encenação evidencia o teatro como um complexo de elementos que constituem um enunciado cênico, ou seja, começa-se a produzir sentido através do acoplamento dos diversos elementos que compõem a cena. Assim, nas linhas abaixo, procuraremos evidenciar a encenação teatral como um território próprio do teatro, porém traçando aproximações com o conceito de território apresentado na filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari. A produção filosófica de Deleuze e Guattari está alinhada ao que convencionou-se chamar de filosofia pós-estruturalista, embora os mesmos tenham preferido considerar a sua produção filosófica como uma filosofia da diferença ou, ainda, uma filosofia prática. Para nosso estudo, nos guiaremos por algumas de suas obras, porém com certa ênfase no livro Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia40. Em Mil platôs, os autores desenvolvem uma escrita vinculada à teoria das multiplicidades que, segundo os mesmos, pode ser pensada como a própria realidade, confrontando assim as dicotomias entre consciente e inconsciente, natureza e história, corpo e alma. Portanto, subjetivações, totalizações e unificações são processos que se dão nas multiplicidades. As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 10).

Assim o modo de operação da filosofia desses autores – declarada em Mil platôs, mas que acompanha toda a trajetória de ambos como pensadores – estará vinculado a uma proposta não hierárquica do pensamento, ou seja, seus conceitos não se encontram verticalizados, mas sim num plano horizontal. Escapam a um centro, pois estão espalhados e podem se encontrar ou se cruzar, nos basta traçar linhas. Em Mil platôs, os autores sugerem que não há uma ordem para a leitura do livro: podemos começar de onde quisermos e acabarmos da mesma forma. Este modo com 40 Trata-se de um único volume na versão original em francês, contudo utilizaremos o livro traduzido para o português do Brasil, o qual fora dividido em cinco volumes. Cabe ressaltar que este livro é a continuação e o fim de O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.

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que Deleuze e Guattari organizam sua filosofia está associado ao conceito intitulado por eles de rizoma que, por sua vez, funciona através de encontros e agenciamentos, de uma verdadeira cartografia das multiplicidades, em oposição ao pensamento arborescente. O rizoma não possui centro, apenas encontros, pois: [...] qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. A árvore linguística à maneira de Chomsky começa ainda num ponto Se procede por dicotomia. Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas (Idem, p. 22).

É precisamente a partir desta percepção, que propomos, neste estudo, a utilização de conceitos da filosofia pós-estruturalista de Deleuze e Guattari. Por acreditarmos que os autores dialoguem com as questões contemporâneas do socius, assim como da arte, e também por instaurarem a ideia de rede e de fluxo, onde não existe mais uma “voz originária” ou a “voz do pai”, abrindo o campo para pesquisa, não mais de um ponto vista transcendente, mas sim pela imanência. Como apontamos, os conceitos desenvolvidos por Deleuze e Guattari, operam, assim, como sua proposta filosófica, dentro de uma perspectiva cartográfica, ou seja, podemos traçar linhas de aproximação e distância entre eles, fazendo com que um conceito ressoe no outro, ou ainda, com que um possa fundar outro, pois num “conceito, há no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que respondiam outros problemas e supunham outros planos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 26). Este é o caso do conceito de território, pois ele estabelece conexão com outros conceitos, quais sejam, os de desterritorialização e reterritorialização, mas antes destes, com o de agenciamento, pois este último é, por natureza, territorializante. François Zourabichvili, em seu Vocabulário de Deleuze, observa que estamos em presença de um agenciamento “toda vez que pudermos identificar e descrever o acoplamento de um conjunto de relações materiais e de um regime de signos correspondentes”.41 Assim, sintetizando o conceito de agenciamento, é possível perceber que ele pressupõe dois eixos sendo o primeiro ligado ao conteúdo e à expressão e o segundo ao território e a desterritorialização. Deleuze e Guattari (1995a, p. 31) dividem estes dois eixos em horizontal e vertical: Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos: um de conteúdo, o outro de expressão. Por um lado, ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; por outro lado, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enun41 ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. p. 9. Disponível em: . Acesso em: 28/06/2015.

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II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP ciados, transformações incorpóreas sendo atribuídas aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem, de uma parte, lados territoriais ou reterritorializados que o estabilizam e, de outra parte, picos de desterritorialização que o arrebatam.

Cabe ressaltar que esta proposição de conteúdo e expressão rompe com a dicotomia forma e conteúdo, pois, se nesta dicotomia temos a forma como uma representação, ou ainda, como uma descrição do conteúdo, a ideia proposta pelos autores é de que compreendamos expressão e conteúdo referenciando-se e interferindo um ao outro, ou seja, um atravessa o outro, simultaneamente, pois ambos têm uma “forma” e uma “substância” em si mesmos. Nesse sentido, o conteúdo será relacionado pelos autores ao agenciamento maquínico, que está associado aos corpos, às ações e as paixões. Trata-se de um estado de mistura e relações entre corpos e afetos, gerando aspectos de ordem conteudística, compondo assim um sistema pragmático. Já a expressão será relacionada ao agenciamento coletivo de enunciação que, por sua vez, irá remeter aos enunciados, a um “regime de signos, a uma máquina de expressão cujas variáveis determinam o uso dos elementos da língua” (Idem, p. 33). Assim, os agenciamentos coletivos de enunciação não estão relacionados a um sujeito, pois a sua produção somente se efetiva em coletivo, no socius, por dizerem respeito a um regime de signos compartilhados, à linguagem, a um estado de palavras e símbolos. Sobre este primeiro eixo, Antônio Araújo (2008, p. 198), em sua tese de doutorado, apresenta-nos uma relação com a encenação bastante interessante: Assim o eixo conteúdo/expressão parece traduzir uma possibilidade de composição do território da encenação, como agenciamento, por um lado de atuadores – que se inter-relacionam, se conectam ou se “maquinam” por meio de ações e de afetos – e, por outros, de enunciados cênicos coletivos. A territorialidade da encenação se funda, ela também, nesta simultaneidade de conteúdo e expressão.

Desta forma, pensar a encenação neste eixo conteúdo/expressão nos permite compreender quais são as suas marcas territorializadoras, ou seja, de que maneira são articulados os elementos cênicos, assim como as ações cênicas, e por outro lado os enunciados construídos pelo território. Trata-se de entendermos a encenação como um território que agencia os diversos elementos cênicos, assim como os enunciados coletivos em busca de sua composição. Como apontamos antes, o surgimento da encenação fora gerado pela percepção da potencialidade de produção de sentido por parte das materialidades cênicas, assim como pelo avanço de elementos técnicos, fatores estes que podemos associar a este primeiro eixo do agenciamento, qual seja, de conteúdo e expressão. Portanto, pressupomos que, ao efetivar-se estes agenciamentos, temos a fundação do território da encenação, pois: | 213

Caminhos da pesquisa em artes cênicas Todo agenciamento é, em primeiro lugar, territorial. A primeira regra concreta dos agenciamentos é descobrir a territorialidade que envolvem, pois sempre há alguma [...] O território é feito de fragmentos descodificados de todo o tipo, extraído dos meios, mas que adquirem a partir desse momento um valor de “propriedade”[...] O território cria o agenciamento (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 232).

Partindo para o eixo vertical apontado pelos autores, temos o agenciamento agindo em lados territoriais e reterritorializados, porém com pontas de desterritorialização. Ou seja, podemos pensar no território produzindo, a partir do conteúdo e expressão, uma estabilização, que o mantem como tal, estável e identificável, mas, como para os autores o território não é fixo, os agenciamentos operam pontas de desterritorialização que poderão traçar linhas de fuga, realizando agenciamentos com outros territórios distintos. Trata-se de um dentro e um fora. Neste ponto, parece importante nos determos um pouco mais, devido ao grau de complexidade, sobre a compreensão do território, porém não podíamos falar deste sem termos apresentado o agenciamento pois, “não podíamos falar da constituição do território sem já falar de sua organização interna” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 139). Deleuze e Guattari, assim como Zourabichvili, irão pontuar que não seria possível pensar em território sem considerarmos a desterritorialização e a reterritorialização, pois estes operam juntos. Serão os agenciamentos que irão realizar esta movimentação no território. O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, é a marca que faz o território. As funções num território não são primeiras, elas supõem antes uma expressividade que faz território. É bem nesse sentido que o território e as funções que nele se exercem são produtos da territorialização (Idem, p. 122).

O território tal qual a concepção acima, circunscreve o campo “do familiar e vinculante”, pois marca as distâncias em relação a outrem. Parece-nos interessante pensar a encenação como um território, pois esta se apresenta como um espaço de enunciação, na qual as mais diversas funções são produtos de territorialização. Porém esta noção de território, como já apontamos, não é pensada como um espaço fixo, ou seja, há uma complexa movimentação neste espaço promovida pelos agenciamentos. Nesse sentido, o segundo eixo do agenciamento, que está ligado ao território e sua desterritorialização, produzem “linhas de fuga” que fazem com que os enunciados transbordem do território, escapando a este, e promovendo assim uma desarticulação do mesmo, o que não significa necessariamente abandonar o território. Mas uma outra questão parece interromper esta primeira, ou cruzá-la, pois em muitos casos uma função agenciada, territorializada, adquire independência suficiente para formar ela própria um novo agenciamento, mais ou menos desterritorializado, em vias de desterritorialização. Não há necessidade de deixar efetivamente o território para entrar nesta via; mas aquilo que há pouco era 214 |

II Seminário de pesquisa do PPGAC/UFOP uma função constituída no agenciamento territorial, torna-se agora o elemento constituinte de um outro agenciamento, o elemento de passagem a um outro agenciamento (Idem, p. 133).

Pensar essa desterritorialização como uma ocorrência necessária ao território e compreender suas linhas de fuga para um outro território, implica em compreendermos que este movimento gerará uma reterritorialização. Porém essa reterritorialização não é a fundação de um novo território, mas sua reorganização a partir deste atravessamento outro. Os territórios sempre comportam dentro de si vetores de desterritorialização e de reterritorialização. Como é possível perceber, a proposta filosófica de Deleuze e Guattari não opera a partir de conceitos fixos, regrados e aplicáveis de maneira plena sobre a vida e/ou o pensamento e a ideia. Nesse sentido, o agenciamento, tanto o de conteúdo e expressão como o de território, desterritorialização e reterritorialização, não são iguais, nem operam em velocidades especificas e nem por regras ideais. Há de se compreender, justamente, os agenciamentos realizados em cada território específico. Assim, ao enfatizarmos a encenação como um território dentro da proposta filosófica supracitada, buscamos compreender o conceito de encenação como um território fundado, que agencia materiais e enunciados coletivos em prol da produção da autonomia da cena, assim como da constituição de uma unidade, compondo um discurso cênico de modo a efetuar uma produção de diferença da arte do teatro, criando aquilo que é apontado por Deleuze e Guattari como a constituição do território – marcas que distanciam de outrem – sem com isso nos esquecermos que, neste território, temos os agenciamentos de desterritorialização e que, na sequência, opera-se uma reterritorialização. Certamente isso se evidencia em nossa apresentação sobre a consolidação do conceito de encenação. Isto é um primeiro ponto, olhado de maneira macro, ou na linguagem deleuzoguattariana, de maneira “molar”. Evidencia-se aqui o modo de operar do território. Mas outro ponto nos parece necessário salientar sobre esse modo de operar é o de ordem molecular que está ligado à característica do território. Ao constituir-se uma unidade na cena, justamente pela territorialização causada pelo agenciamento, temos a produção de uma linguagem, ou uma forma de agenciar que produz a encenação. Trata-se de compreendermos o agenciamento que comporta conteúdo e expressão, e a constituição do território, no modo do fazer teatro, ou seja, quais os pontos e contrapontos implícitos à arte teatral que faz com que a encenação aglutine os diversos elementos cênicos e constitua-se como um território? Certamente, a dupla conteúdo e expressão por parte da arte teatral, pelo menos a priori, estão formalmente vinculadas à representação, assim como ao drama e à fábula. Nesse sentido, a encenação enquanto um território que produz linguagem, manifestarse-á através de suas “matérias de expressão” como um espaço que organiza a representação, ou seja, suas marcas territorializantes estão na organização da representação, fazendo com que o território seja uma forma de mediação entre a obra e o público, pois como bem pontua Pavis (2010, p. 45): | 215

Caminhos da pesquisa em artes cênicas A encenação, pelo menos aquela consciente de si mesma, surgiu quando parecia ser necessário mostrar no palco de que maneira o encenador poderia indicar a forma de ler uma obra dramática, que se tornou muito complexa para ser decifrada de maneira única, por um público homogêneo. A encenação dizia respeito, nessa circunstância, a uma obra literária, e não importa a qual espetáculo visual. Ela surgiu num momento de crise da linguagem e da representação, uma crise como tantas outras que o teatro conheceu.

No movimento de surgimento e de consolidação da encenação, inúmeras propostas estéticas foram desenvolvidas, porém a busca pela instituição de uma composição da cena que enfatizasse a representação do mundo e da vida de forma mimética – no caso do naturalismo e de Stanislávski –, ou teatralizada – no caso do Simbolismo e de Meyerhold –, ou ainda distanciada – no caso de Brecht –, porém com uma narrativa clara com intuito de direcionar o olhar e a compreensão do espectador, perpassa quase todas as propostas. Podemos atribuir essa narrativa à estrutura dramática. Nesse sentido, parece-nos possível considerar, aqui, que a estrutura do drama seja o modelo convencional para compreendermos o desenvolvimento e a história do teatro, uma vez que sua estrutura se mantém como base, ainda que de formas diversificadas e/ ou fraturadas, e até mesmo revistas, ao longo de todo o século XX e, por que não dizer, nos dias atuais. A este respeito, Hans-Thies Lehmann (2007, p. 26) aponta que o teatro dramático: Pretendia erguer um cosmos fictício e fazer que o “palco significa o mundo” aparecesse como um palco que representa o mundo – abstraindo, mas pressupondo, que a fantasia e a sensação dos espectadores participam da ilusão. Para uma tal ilusão não se requer a integridade e nem mesmo a continuidade da representação, mas o princípio segundo o qual o que é percebido no teatro pode ser referido a um mundo, isto é, a um conjunto. Totalidade, ilusão e representação do mundo estão na base do modelo “drama”, ao passo que o teatro dramático, por meio de sua forma, afirma a totalidade como modelo do real. O teatro dramático termina quando esses elementos não mais constituem o principio regulador, mas apenas uma variante possível da arte teatral.

Diante desta consideração, podemos concluir que no teatro dramático há uma grande necessidade de se instituir processos de identificação na composição do enunciado cênico, uma vez que serão estes processos que permitirão ao espectador estabelecer uma espécie de espelhamento e, logo, reconhecer-se naquilo que é contado no palco. Portanto, a produção de sentido por parte do teatro dramático estará fortemente vinculada a uma produção de um enunciado reconhecível ao espectador, no qual este possa realizar o recorte do que é narrado, criando-se assim a noção de unidade na composição da encenação. Ainda nesse ponto acerca da identificação provocada pelo drama, achamos pertinente traçar uma breve relação com a noção de teatralidade. Segundo Féral, a teatralidade é construída a partir do olhar do observador que recorta aquilo que é visto e 216 |

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transforma-o em um processo semiótico de representação. A autora utiliza o termo framed theatrical space (FÉRAL, 2002, p. 98), que podemos traduzir como “espaço teatral enquadrado ou emoldurado”, e se refere, justamente, ao ato do observador de recortar e emoldurar o que é visto e traçar desenhos ficcionais, a partir dos acordos prévios estabelecidos entre encenação e espectador, uma vez que, para Féral, a teatralidade acontece justamente através dos códigos e convenções socioculturais compartilhados. Portanto, a construção de um enunciado reconhecível por parte do drama vem justamente mediar, ou facilitar, este emoldurar por parte do espectador, permitindo com que a representação cênica aconteça de maneira mais ou menos linear e homogênea, a depender das propostas estéticas e das linhas de fuga da estrutura dramática. Ao compreendermos o teatro, a partir de uma visão clássica, como um lugar no qual se é apresentada uma fábula, com personagens, história e um enredo claro, parecenos consistente considerar que pensar a encenação como um território, da forma como apontamos mais acima, seria pensar que esta organiza a sua expressão, agenciando os diversos elementos que compõem a cena em prol da constituição de uma linguagem. Assim, pensamos este território como a produção de uma unidade que faz identificá-lo através dos agenciamentos. A encenação surge no intuito de organizar-se como discurso, mas reclamando para si aquilo que é propriamente teatral. Com isso, ela se torna território: ao recusar o texto como principal motor de produção de sentido no teatro – mesmo que ainda, em muitos casos, mantenha-se vinculado a este. Através dos diversos elementos que compõem a encenação, geram-se marcas territorializantes, que recortam uma narrativa, de modo fabular – ainda que distanciada no caso de Brecht e outros encenadores – e consolidamse como território, por serem diretivas no seu contar, ou ainda, por serem objetivas nos territórios que elas traçam. Isso não significa pensar num modelo de produzir-se a encenação – fazer território, uma vez que territorializar significa produzir uma expressão própria e, nesse sentido, deve-se levar em conta toda a heterogeneidade estética produzida na encenação –, mas o que parece-nos interessante pontuar é que os agenciamentos realizados nesse surgimento da encenação carregam consigo essas marcas territorializantes citadas acima, ou seja, essa busca por uma unidade. Sem, com isso, desconsideramos que, por outro lado, podem também carregar consigo linhas de desterritorialização. Ora, exprimir não é pertencer; há uma autonomia da expressão. De um lado, as qualidades expressivas estabelecem entre si relações internas que constituem motivos territoriais: ora estes sobrepujam os impulsos internos, ora se sobrepõem a eles, ora fundem um impulso no outro, ora passam e fazem passar de um impulso a outro, ora inserem-se entre os dois, mas eles próprios não são “pulsados”. Ora esses motivos não pulsados aparecem de uma forma fixa, ou dão a impressão de aparecer assim, mas ora também os mesmos motivos, ou outros, têm uma velocidade e uma articulação variáveis; e é tanto sua variabilidade quanto sua fixidez que os tornam independentes das pulsões que eles combinam ou neutralizam (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 131).

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Caminhos da pesquisa em artes cênicas

Assim, o território da encenação se funda na organização dos materiais da cena, a fim de trazer para o campo do acontecimento cênico a constituição da representação ligada à estrutura dramática, mas, como já apontamos, numa perspectiva que transborde o texto, fazendo com que este seja apenas mais um dos elementos cênicos. Neste sentido, considerar a encenação como um território seria pensar nesta autonomia da cena como a principal forma de significação, ao mediar e direcionar o olhar do espectador. Contudo, a partir do momento em que temos a constituição de um território, suas pontas de desterritorialização também se constituem. Nesse caso, parece-nos interessante pensar que será justamente com o surgimento da encenação e sua consolidação, através dos diversos agenciamentos territoriais, que teremos uma crise da representação, assim como da estrutura dramática no teatro. Uma vez adquirida a autonomia supracitada, e reconhecido o poder de significação dos diversos elementos da cena, o teatro não poderá escapar à relação com outros territórios, ou seja, não escapará à desterritorializações possíveis. Nesse sentido, através do pensamento aqui compartilhado enxergamos a possibilidade de construção de uma cartografia da encenação, na qual poderíamos pensar em como a encenação vem reterritorializando-se, ou seja, reorganizando as suas formas de composição na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 2. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995a. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 4. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 5. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997a. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. FÉRAL, Josette. Theatricality: the specificity of theatrical language. Substance, issue 98/99. vol. 31. n. 2-3, 2002. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. PAVIS, Patrice. Dicionário do teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. PAVIS, Patrice. A encenação contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2010. SILVA, Antonio C. de Araújo. A encenação no coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo. Tese (Doutorado em Artes Cênicas). São Paulo: ECA/ USP, 2008. ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. 218 |

Este livro foi composto noinverno de 2016, na tipografia Directa Serif, de Ricardo Esteves, corpo 10/13, sobre papel polén soft 90g/m2.

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