Caminhos do gado: paisagem cultural e urbanização de cidades do sertão nordestino dos séculos XVII e XVIII

Share Embed


Descrição do Produto

CAMINHOS DO GADO: PAISAGEM CULTURAL E URBANIZAÇÃO DE CIDADES DO SERTÃO NORDESTINO DOS SÉCULOS XVII E XVIII. ARRAES, ESDRAS.(1) 1.Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU). Arquiteto e mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. Avenida Rebouças, 1015. Apto.12. Cerqueira César. São Paulo-SP. CEP.: 05401-100. Email: [email protected]

O objetivo deste artigo é descrever a origem da paisagem cultural de cidades do sertão nordestino, em tempos coloniais, cujo interesse patrimonial tem uma recente discussão. Este pressuposto tem como alicerce o povoamento do oeste nordestino guiado pelas rotas do gado e por sua economia desenvolvida, denominada por Capistrano de Abreu como Ciclo do Couro. Aliados a estes condicionantes de cunho histórico - patrimonial, viabilizaremos subsídios téoricos que promovam a conservação e memória do “casco viejo” remanescentes nessas urbes, já que sua paisagem cultural, ao longo dos séculos, vem sofrendo alterações, substanciais e irrelugares, por parte de programas de desenvolvimento nacional, como também, pela atuação de indústrias de pequeno e grande porte na caatinga nordestina. Palavras – chave: Caminhos. Ciclo do Couro. Conservação. Gado. Memória. Paisagem Cultural. Patrimônio. Sertão Nordestino. Urbanização.

1. INTRODUÇÃO “Esta imensa campina que se dilata por horizontes infindos é o sertão de minha terra natal” (Alencar, 2007). É assim que José de Alencar, romanticamente, qualifica a paisagem natural da caatinga nordestina, cujo território foi palco de um devassamento provocado pela criação de gado e cultura do couro. Este fenômeno cultural, econômico e social, estudado por Capistrano de Abreu, Manuel Correia de Andrade, Raimundo Girão e outros, foi o propulsor do povoamento da região oeste nordestina, onde as agruras da vegetação e do clima local elaboraram uma sociedade sui generis, que vivia basicamente de carne, leite e farinha. O vaqueiro (personagem criado desta sociedade) conquistou um status social que nenhum outro agregado colonial adquiriu até então. Como bem citou Afonso Arinos (1956): “(...) o vaqueiro era conhecedor do vasto pasto, homem de técnica apurada, detentor de conhecimentos veterinários, não era como o submisso escravo da zona açucareira. O dono da fazenda, pelo elevado nível técnico dos peões, o chama pelo simbólico camarada [grifo nosso].” É sob este âmbito que surge a urbanização do sertão nordestino e, conseqüentemente, a sua paisagem cultural. O gado, sem dúvida alguma, foi a matriz destes fenômenos. Os povoados que surgiam ao longo dos caminhos do gado, procuravam atender às necessidades desta cultura. Primeiro, fixavam-se os pousos, próximos aos rios, para o descanso da manada. A partir de então, ponderava-se um local para a instalação de uma fazenda de gado e, a posteriori, se fosse do interesse dos fazendeiros, da Igreja católica e do governo, tal herdade evoluiria a um aglomerado urbano constituído basicamente de índios catequizados, vaqueiros e artesãos de couro. Destarte, a paisagem cultural destes lugarejos, simples em sua essência, seguia este percurso evolutivo. Dividimos esta comunicação três partes. A primeira englobaria questões do povoamento do sertão nordestino e como a economia do couro foi útil para o desenvolvimento daquela região já devassada no século XVII. Melhor: com o seu apogeu no século XVIII, esta economia obteve um largo espaço de domínio, chegando a fornecer carne, couro e leite para a promissora região das minas gerais. A segunda parte dedicamos ao processo de urbanização e a descrição de sua paisagem cultural. Por fim, a última parte envolverá subsídios que achamos adequados para a conservação desta paisagem cultural e do patrimônio remanescente que são, ainda, pouco difundidos no contexto nacional. A leitura dos textos de Milton Santos para a concepção do espaço e os de Bernard Lepetit quando ao entendimento de uma nova história urbana foram cruciais para o

2

desenvolvimento deste artigo. Portanto, esperamos do leitor não uma viagem romântica, mas antes, um olhar atento para um juízo único: o de se conhecer para preservar.

2. O POVOAMENTO DO SERTÃO NORDESTINO: ENTRE OS CAMINHOS DO GADO, OS POUSOS E AS FAZENDAS DE CRIAR. A expansão ultramarina dos séculos XV e XVI favoreceu a tomada do litoral brasileiro pelos portugueses, que consideravam a nova terra domínio direto da Ordem de Cristo, (com o soberano na qualidade de Grão-mestre), pelos acordos papais, pelo Tratado de Tordesilhas e pela propriedade do descobrimento. Para galgar a posse como um fato era necessário povoá-la. De inicio, as feitorias instaladas espaçadamente ao longo da costa e, chamadas por Aroldo de Azevedo (1956) de “cabeças de ponte”, cumpriam o papel do mercantilismo vigente: o de servir como entreposto comercial para a metrópole portuguesa. Este tipo de transação envolvia a conhecida prática de escambo intermediada entre índios e corsários (franceses e holandeses em sua maioria). Vendo os seus domínios ameaçados pelos piratas, a Coroa lusitana se prontifica em povoar as terras americanas. Surgem, então, as capitanias hereditárias que fracassaram pouco tempo após sua gênese, sobressaindo, somente, as capitanias de Pernambuco e São Vicente. A criação do governo geral, ainda nos Quinhentos, deu força para as estratégias reais de colonizar o Brasil. O monopólio do açúcar concretizou os ideais de Portugal quanto ao adensamento populacional. Engenhos se espalharam, principalmente em Pernambuco e no Recôncavo Baiano, ao longo dos rios e pela costa. A força motriz desta empresa, quando não se usava água, era fornecida pelos bois criados em conjunto com a cana-de-açúcar. O gado cumpria uma função secundária nos engenhos e, sua criação, associado às lavouras, estava fadada ao conflito: as reses passaram a destruir as plantações. Sentindo-se ameaçada por este impasse, a Coroa emitiu, no ano de 1698, uma provisão ordenando, dentro de um mês, o afastamento dos bois das zonas açucareiras. O período foi curto para cumprir o mandato real. Assim, em 1701, através de uma Carta Régia, o rei impõe o afastamento de no mínimo dez léguas entre criação e lavoura. A determinação real foi significativa para o reconhecimento e tomada do oeste nordestino. A integração do sertão nordestino ao sistema colonial ocorreu dentro de dois âmbitos: a procura do “El dourado” e obtenção de terras, pelos fazendeiros de gado que agiam como verdadeiros potentados, para alastrar os seus currais e instalar fazendas de criar. 3

No inicio do século XVII, Belchior Dias Moréia, sertanista baiano e fazendeiro, penetrou pelo interior da capitania da Bahia de Todos os Santos à procura de ouro e prata. Seguiu um suposto roteiro deixado por Garcia D’ávila (o primeiro da Casa da Torre) que o levou até o rio Itapicuru. Com a ajuda de índios catequizados devassou o sertão do massacará, chegou ao rio Salitre pelas serras da Jacobina e Teiuba (Dantas, 2000). O salitre foi o único mineral encontrado em maior quantidade, porém, de pouca estima no mercado europeu. O ouro descoberto foi em reduzidas quantidades, o que levou a Coroa considerar aquelas terras como impróprias para atividades mineradoras. Entretanto, a procura aurífera devassou boa parte do sertão nordestino, principalmente aquele que margeia o rio São Francisco e regiões adjacentes. Mapas do século XVII e XVIII comprovam a tomada e conhecimento deste rio pelos sertanistas, facilitando a proliferação dos currais pelos fazendeiros de gado. Sem dúvida, o gado foi o integrador do sertão ao território nordestino. A expansão devida à criação sempre se deu por contigüidade a partir de um centro de irradiação. As áreas pastoris do Nordeste, apresentam um povoamento contínuo, se bem que parco (Buarque de Holanda, 1964). Para Nelson Werneck os currais nos deu “a segunda dimensão da terra brasileira”. Além disso, a pecuária cumpriu um fator social no Brasil Colônia, não só pelo fornecimento de carne, leite e couro, mas também meio de transporte para agricultores, mineradores e religiosos. Capistrano de Abreu (2000) designa dois grandes eixos de irradiação e integração do sertão à colonização portuguesa: Salvador e Olinda/Recife. A investida baiana, denominada por ele como sertão de dentro, foi iniciada por entradistas que subiam os rios Jequitinhonha, Paraguaçu, Itapicuru, Real, etc. Chegaram ao rio São Francisco, que nos Seiscentos, era conhecido como “rio dos currais” (Magalhães, 1944), nomeação muito apropriada porque já no inicio do século XVII, os baianos chegaram a fundar fazendas de gado ao longo deste rio disseminando o seu poderio na conquista do interior. Por causa destes atores, o sertão passou a ter uma relação mais estreita com o litoral, justamente pelo desenvolvimento de “caminhos de gado”, rotas que conduziam as manadas para sua venda nos portos e feiras de Salvador, São Luis e Recife. Um dos caminhos baianos, conhecido como “caminho antigo”, partia de Salvador, seguindo noroeste, passava pelas futuras vilas de Pombal e Jeremoabo. Descasavam suas reses na freguesia de Cabrobó de onde cruzavam o rio São Francisco na passagem do Juazeiro, chegavam à freguesia de Nossa Senhora da Vitória (atual Oeiras, no Piauí) margeando o rio Canindé. Desta povoação, cujo mercado do gado tinha um destaque 4

regional, os bois atravessavam o rio Parnaíba, pousavam em um lugar chamado Pastos Bons e daí rumavam para o porto de São Luis, no Maranhão (Girão, 1949). Muitos desses desbravamentos tiveram o patrocínio direto da Casa da Torre, detentora de inúmeras glebas de terra no sertão. Não ocorrendo o povoamento do chão, todo o seu domínio se tornaria terra devoluta. A posse de parte dessas terras era fornecida para rendeiros que se tornavam fazendeiros, sendo um mais conhecidos o português Domingos Afonso Mafrense, apelidado de Sertão. Ele chegou ao sudeste do Piauí através do “caminho antigo” fundando mais de trinta fazendas de gado (Leite, 1945), que após sua morte, em 1711, doou seu legado para os padres da Companhia de Jesus pela ausência de herdeiros. Vale ressaltar, ainda, que o potentado da Casa da Torre, estendeu os seus domínios desde a Bahia até onde hoje se conformam os estados do Piauí e Maranhão, tornaram-se senhores de um dos maiores latifúndios em nossos sertões, eram mais de 340 léguas de terra nas margens do rio São Francisco e seus afluentes (Andrade, 1973). Os pernambucanos, diferentemente dos baianos, concentraram os seus esforços no litoral nordestino para defendê-lo de ataques piratas. Chegaram ao sertão seguindo a linha da costa, assim, nada melhor do que a nomeação, dada por Capistrano de Abreu como sertão de fora. O avanço pernambucano (embora tivesse no século XVI se dirigido para o grande rio São Francisco em busca de índios e de minerais preciosos, segundo Manuel Correia de Andrade [1979]) teve sua rota de penetração bovina dirigida ao norte onde o sertão oferecia boas condições à criação, como água em abundância e boas pastagens. É dado aos pernambucanos o conhecimento do interior da Paraíba, Rio Grande do Norte e parte do Ceará. Raimundo Girão (1949) delimita o que chamamos de uma zona de choque localizada no estado do Ceará: área onde as duas investidas – baiana e pernambucana - tiveram o seu encontro físico. Para melhor exemplificar este fenômeno de devassamento desenvolvemos o mapa da figura 01.

5

Figura 01 – Rotas de penetração bovina no Nordeste brasileiro. Desenho do autor sobre original de Manuel Correia de Andrade, 1973

Tomada a posse e conquista dos sertões, a caatinga apesar de não favorecer condições climáticas à pecuária, possui alguns fatores positivos que ajudaram o desenvolvimento do rebanho, que para Sérgio Buarque de Holanda (1960) estes seriam: o relevo plano e barreiros salinos encontrados ao longo do rio São Francisco. Os bois eram criados extensivamente nessas imensas terras, porém, a ocupação territorial pelas fazendas não correspondiam ao tamanho real de seus domínios. O povoamento, em terras sertanejas, na verdade eram pequenos pontos distantes muitas léguas uns dos outros. Este fato, nos comprova a existência de uma rede urbana e povoamento frágeis, derivados das rotas de gado criadas por vaqueiros e outros agregados. Os currais baianos, no século XVIII, totalizavam 500 e os pernambucanos chegavam a 800, conforme dados fornecidos pelo padre jesuíta Antonil. Em virtude disso, a cultura do gado mostrou ser uma promissora economia, tanto assim que o próprio Antonil preocupou-se em calcular o custo do couro exportado para a metrópole que, em 1711, o montante seria de 201:800$000 (Antonil, 1982), sobressaindo-se a Bahia pela existência do porto e de feiras de gado, como por exemplo, a de Capuame. Os outros estados participavam ativamente nas transações que envolviam o couro e a carne. No Ceará, do século XVIII, floresceu a indústria da carne seca e, concomitantemente, progrediu o comércio do couro. Nas capitanias de Pernambuco e Paraíba, os produtos que mais pesavam na Companhia de Comércio destes estados eram o açúcar e a sola. Os edis da câmara de Olinda, em 1729, reforçam que “os gêneros 6

da terra seja açúcar e sola que são os que servem ao comércio (grifo nosso)” (Goulart, 1966). E, no estado do Maranhão, em carta datada de 22 de Janeiro de 1752, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal, mandava dizer a Diogo de Mendonça Corte Real, que o couro incluía-se entre os 39 gêneros produzidos no estado. O comércio do couro, no Maranhão, ganhou corpo com o passar do tempo que, segundo Alípio Goulart (1966), o couro vinha do interior, principalmente das Vilas de Caxias e da Mocha (atual Oeiras – PI), sendo embarcado um valor aproximado de 200.000 libras esterlinas deste produto anualmente. É sob o âmago das fazendas de gado que essa economia emerge no sertão nordestino. Tais estâncias, por simbiose com os currais, proliferaram-se pelo território. Só no estado do Ceará, por volta do ano de 1774, elas chegaram a mais de novecentas (Girão,1949), sem contar as piauienses, localizadas ao longo dos rios Canindé, Gurgéia e Piauí que somavam, em 1772, 578 herdades (Mott, 1985). Consistia numa freqüência as enormes datas de terras adquiridas por estes estabelecimentos coloniais. Esta característica latifundiarista da posse de terra se deve a duas justificativas: a ganância dos fazendeiros os motivava a solicitar grandes pedaços de glebas para o proveito de seus currais e firmar-se como potentados (Mott, 1985), além do próprio caráter da pecuária extensiva sertaneja, isto é, como bem frisaram Spix e Martius (1938): “na ocasião da seca se torna necessário movimentar as boiadas em grandes espaços (...) daí os proprietários das grandes fazendas não quererem ceder porção alguma de suas terras, por considerarem indispensáveis as grandes extensões para atender à criação de gado.” Esta dilatação territorial, realizada por alguns donos de gado, burlava uma Carta Régia expedida no ano de 1697 que estabelecia o tamanho mínimo das sesmarias concedidas em três léguas de comprimento por uma de largura. A título de nota e, segundo pesquisa de Luiz Mott (1985) sobre a capitania de São José do Piauí, de trinta e três fazendas, vinte e nove quebravam esta ordenação real, uma delas abrigava um comprimento de cinco léguas por catorze léguas de largura, o que evidencia a necessidade de expansão das terras para as pastagens bovinas. Apesar do destaque, as fazendas de gado não foram as únicas estruturas rurais presentes no nordeste brasileiro. O naturalista inglês George Gardner, viajando pelo sertão cearense, relata a existência de produtores rurais que viviam da agricultura de subsistência e de pequena criação de gado (alguns destes possuíam no máximo cem reses). Ainda no Ceará, na região do Cariri, a produção de rapadura e de aguardente

7

mobilizou alguns fazendeiros a cultivar cana-de-açúcar ao pé da Chapada do Araripe, em virtude disso, difundiram-se os engenhos de rapadura nesta região. É diante destes fenômenos econômicos, sociais e culturais que nascem a urbanização de núcleos do sertão nordestino e sua peculiar paisagem cultural. A abertura dos caminhos do gado pelos vaqueiros e posseiros de terra, o pouso para o descanso da manada que, após alguns anos de adaptação são abrigadas em imensos currais e a construção da sede da fazenda, para o controle dos pastos, são elementos que estruturam a gênese dessas vilas e cidades sertanejas. Veremos na segunda parte, como esta incipiente rede urbana promoveu o desenvolvimento de pequenos aglomerados e de uma arquitetura adaptada aos condicionantes naturais, econômicos e sociais. A hierarquia espacial e morfologia urbana são guiadas por duas instâncias que se fundiram no Brasil colônia: a igreja e o estado. A Igreja tem a sua participação através de ordens eclesiásticas que repercutiam no solo urbano e o estado pelo poder que os fazendeiros de gado, os homens-bons do sertão, detinham para doar datas nos lugarejos mais remotos do oeste nordestino.

3. NÚCLEOS URBANOS DO SERTÃO NORDESTINO: PAISAGEM CULTURAL E URBANIZAÇAO. O estudo das cidades coloniais brasileiras tem um inicio, a grosso modo, em meados do século passado. Destacamos as contribuições de Aroldo de Azevedo, Paulo F. Santos, Robert Smith e Nestor Goulart Reis Filho. Contudo, notamos que a abordagem cientifica e social ficou centralizada, sob exaustão, nos aglomerados humanos da costa brasileira e das minas gerais. Não queremos, todavia, desenvolver uma retórica em defesa das cidades do sertão nordestino, pelo contrário, a ênfase serve para preencher os hiatos criados no estudo da urbanização colonial brasileira. Esperamos, apesar das linhas gerais desta comunicação, contribuir para a difusão do patrimônio cultural presente em áreas de caatinga. Como vimos, o povoamento do oeste nordestino teve como ponta-de-lança os caminhos do gado elaborados por gente rude, o vaqueiro, com apoio direto de fazendeiros que almejavam dilatar os seus domínios por alastrar seus imensos currais. As duas correntes de investida que colonizaram o sertão – baiana e pernambucana – trouxeram uma bagagem cultural observada e concretizada nos núcleos urbanos que tiveram sua gênese no percurso da manada. Além deste fator de cunho econômico, social e cultural, a fusão entre a igreja e o estado, estudada por Murillo Marx, configurou uma paisagem onde o 8

sacro se posicionou como “linha-mestre” na urbanização destes modorrentos arraiais (Marx, 1991). A religião modela e confere valores à cidade e ao território urbano, tornando-se uma linguagem espacial (Lepetit, 1996). Estes aglomerados são por nós encarados como instâncias produzidas social e historicamente, apresentando elementos espaciais que as particularizam, cujos estratos formais são resultantes “da relação indissociável entre os grupos sociais e a configuração material das cidades (...) das relações imediatas entre espaço e sociedade, território e comunidade (...)” (Lepetit, 1996). Os cursos do gado, ao longo do território sertanejo, promovem o ordenamento ou disposição das habitações em linha ou comumente denominada de fita. A concentração das reses para troca, venda ou apreciação em algum local do povoado evolui à uma grande praça. Esta praça acumula valores espaciais e simbólicos de caráter urbanístico, arquitetônico e social que serão úteis para a formação dos hábitos culturais. A feira semanal, a expressão da fé através das procissões e o cotidiano são alguns dos fenômenos que lá atuaram (e atuam até hoje), dando à praça um significado espacial que favoreceu o desenvolvimento destes núcleos urbanos. Outro componente que será considerado, é a arquitetura destes lugarejos, que tira do meio a técnica construtiva, adaptando-se às intempéries naturais que perduram por 75% do ano. Para este fim, tiramos de Milton Santos (2009) o conceito de técnica como sendo “um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço”. Estas técnicas, além de formar espaços, instituem a paisagem cultural do sertão nordestino como um fato histórico suscetível de atribuição de valor (Argan, 2005). O percurso evolutivo destes povoados na caatinga nordestina se solidifica, inicialmente, com os pousos dos animais. Passados de quatro a cinco anos, as reses acostumadas com a pastagem, são fixadas em um curral geralmente próximo a cursos de água ou rios perenes. O vaqueiro, em consórcio com dois, ou no máximo cinco companheiros, constroem suas moradias para o cuidado da manada durante os meses de chuva, que ajudarão na engorda dos animais levados para venda nas feiras e portos de cidades litorâneas, como Salvador e São Luis. Os sucessivos contatos com o fazendeiro, residente do litoral ou de centro urbano já consolidado no interior, acarreta na decisão de se construir uma sede para aquela herdade. Ao efetivar a matriz arquitetônica no seu patrimônio fundiário, o dono do gado levanta nas proximidades da fazenda uma pequena capela ou ermida que servirá de proteção para o 9

seu chão. A construção da capela não basta para o progresso da fazenda e do primitivo grupo de moradores; antes deveria oficializá-la ou sagrar o solo onde construíam suas bases (Marx, 1991). Este evento agradava tanto a igreja, o fazendeiro e a minguada população. Para a igreja, alargava-se o domínio de uma futura freguesia, para os moradores a obtenção de direitos eclesiásticos, como o batismo e matrimônio. Vale ressaltar que, a escolha do sítio para implantação da capela e futura matriz, deveria seguir as ordens impostas pelo Arcebispado da Bahia através de suas Constituições Primeiras (Marx, 1991). Em seu quarto livro sob o título 17 (687), encontramos uma ordem canônica que terá consecussões na paisagem destes pequenos arraiais:

“Conforme o direito Canônico, as igrejas se devem fundar, e edificar em lugares decentes, e acommodados, pelo que mandamos, que havendo-se de edificar de novo alguma igreja parochial em nosso Arcebispado, se edifique em sitio alto, e lugar decente, livre da humanidade, e desviado, quanto for possível, de lugares immundos, e sórdidos, e de casas particulares, e de outras paredes, em distancia que possão andar as Procissões ao redor dellas, e que se faça em tal proporção, que não somente seja capaz dos freguezes todos, mas ainda de mais gente de fora, quando concorrer as festas, e se edifique em lugar povoado, onde estiver o maior numero de freguezes. E quando se houver de fazer, será com licença nossa: e feita vestoria, iremos primeiro, ou outra pessoa de nosso mando, levantar Cruz no lugar, aonde houver de estar a Capella maior, e demarcará o âmbito da Igreja, e adro della.”

A capela agora visitada por um padre atrairá residentes de localidades e fazendas próximas para receberem os sacramentos e adquirir o status de cidadão. O aumento da população acarreta na remodelação da capela. Com reforma e ampliação da edificação, prossegue sua expansão obtendo agora o patamar de matriz, que envolverá um termo ou freguesia. O pároco da matriz servirá de anteparo religioso para todas as outras ermidas e católicos localizados dentro de sua jurisdição espiritual. A urbanização de algumas cidades do sertão nordestino segue esses critérios supracitados. Exemplificaremos a evolução tomada pela Fazenda Grande que culminou na atual Floresta, localizada no sertão do Pajeú em Pernambuco, e da Freguesia de Nossa Senhora da Vitória, atual Oeiras no Piauí. No caso de Floresta, a forma obtida por esta urbe, decorre do caminho estabelecido pelo gado para sua venda e troca nos arredores do núcleo.

2.1 – Urbanização e paisagem de Floresta entre os séculos XVIII e XX.

10

O lugar onde hoje situa a cidade de Floresta, no estado de Pernambuco, é banhado hidrograficamente pelo rio Pajeú, um dos afluentes do rio São Francisco. Este rio facilitou a escolha, por parte do capitão João Pereira Maciel, de um local para a instalação de seus currais e fazenda, cujas terras foram adquiridas através da Casa da Torre. O autor das memórias de Floresta, Álvaro Ferraz (1957), nos informa que por fim do século XVIII o dono da Fazenda Grande (o capitão mencionado anteriormente) e sua esposa Joana de Sousa Silveira doam metade de suas terras para reparação e edificação da capela onde invocariam Nossa Senhora do Rosário. Apesar da afastada localização da casa grande, a construção da pequena ermida atraiu, para o seu entorno imediato, uma minúscula população constituída de vaqueiros, artesãos do couro, pequenos agricultores, pescadores e índios catequizados que solicitavam datas de terra ao dono da fazenda. A espacialidade do primeiro lugarejo, onde nasceu a cidade de Floresta, se ordenou em fita, resultando uma cidade longilínea (Santos, 2001). Atuando como linha de crescimento (Panerai, 1983) o percurso do gado, dentro do insipiente espaço urbano, provocou esta formação peculiar e vista em outras cidades do sertão nordestino, por exemplo, em Santa Maria da Boa Vista, Flores e Amarante. Percebemos que há uma coerência orgânica na transformação dos espaços públicos deste aglomerado, o que lhe confere genuinidade como expressão espontânea das relações sociais (Santos, 2001). A figura 02, de nossa autoria, mostra a provável ocupação territorial da primeira concentração humana do arraial da Fazenda Grande. A terceira imagem, representa o panorama da cidade no inicio dos anos oitenta do século passado, ela servirá para o leitor visualizar a sua urbanização, tendo como condicionante basilar o gado. Já as figuras 04 e 05, também por nós elaboradas, representam o movimento evolutivo do núcleo nos séculos seguintes.

Figura 02 –Povoado da Fazenda Grande em fins do século XVIII. 11

Figura 03 – Panorama da cidade de Floresta, em 1983. Crescimento em fita orientado pelo caminho do gado. Desenho do autor sobre original da FUNDARPE.

Figura 04 –Cidade de Floresta em meados do século XIX.

12

Figura 05 – Cidade de Floresta no inicio do século XX.

Ao analisarmos as figuras 04 e 05 percebemos o grau de qualificação que os espaços públicos iam adquirindo com a sucessão do tempo e progressão urbana do núcleo em questão. Basicamente, o povoado fundou uma grande rua, de boa largura, onde a base para o seu dimensionamento não consistia nas caminhadas humanas, mas, nos passos dos bois que circulavam em dias de feira ou à procura de pasto. Mesmo no fim do século XVIII e, como a segunda figura demonstra, em frente e ao redor da Igreja de Nossa Senhora do Rosário há a delimitação do seu adro, espaço sacro em sua essência, que servia de palco para procissões e festas religiosas. Os lotes, e de reboque as edificações, seguiam a linha de crescimento orientada pelas reses. Após a definitiva demarcação dos espaços públicos, como observado na figura 05, surge a Praça do Boiadeiro. Toponímia apropriada para os serviços que lá exerciam. É neste lugar onde as transações da economia do couro, como venda de bois, trocas e promoção do artesanato do couro eram realizadas. A feira, como fenômeno social, cultural e urbano, surge por estas circunstâncias e se fixa neste local. O considerável afastamento entre feira e largo do Rosário confere distinção entre o espaço pio do profano. Os eventos que ocorriam nas praças da povoação da Fazenda Grande (Largo do Rosário e Praça do Boiadeiro) destacam as funções e usos destes espaços públicos comuns no Brasil colonial: eram centros de reunião da vida urbana e serviam de mercado para aos moradores (Santos, 2001). Nelas se encontram os edifícios de destaque no cenário 13

urbano: é bem provável que o capitão João Pereira Maciel possuísse residência nas proximidades da igreja a qual legou o seu patrimônio fundiário. A irrisória renda dos residentes, proveniente da economia de subsistência, tem seus reflexos no espaço citadino através de casas em taipa de pilão e cobertura de palha ou telha cerâmica. Uma possibilidade de interpretação para esta paisagem colonial sertaneja encontramos na citação do geógrafo Milton Santos (2009): “toda criação de objetos responde a condições sociais e técnicas presentes num dado momento histórico. Sua produção também obedece a condições sociais.” A figura 06, tirada no ano de 1983 na localidade de Exu – PE, representa a urbanidade desses rudimentares núcleos.

Figura 06 – Espacialidade do povoado Jardim localizado na fazenda Araripe, Exu – PE. Fonte: FUNDARPE 2.2 - Oeiras: de freguesia à cidade pombalina.

Alguns lugarejos, apesar da rede econômica onde estão inseridos ser frágil, conseguiram destaque regionalmente. Entre estes, podemos citar a antiga Freguesia Nossa Senhora da Vitória, atual Oeiras – PI. Ao notar a grande abrangência de seu bispado, Dom Francisco de Lima, bispo de Olinda, se empenhou em solucionar a carência espiritual dos sertanejos em terras onde se conforma o atual estado do Piauí. Por isso, decide em 1696, desmembrar da paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Cabrobó duas novas freguesias: Nossa Senhora da Vitória e São Francisco da Barra do Rio Grande, hoje Barra – BA. Da fundação da igreja e averiguação do local a ser instalada ficou encarregado o vigário Miguel de Carvalho, que levou poderes para organizar a construção do templo. Escolheu sitio adequado (de acordo com o titulo 17 (687) das Constituições Primeiras do

14

Acerbispado da Bahia citado anteriormente) prevalecendo o brejo da Mocha por ser mais conveniente aos moradores das redondezas. Em sua “Descrição do Sertão do Piauí”, o padre Carvalho relata, no fim dos Seiscentos, a paisagem daquele lugarejo, nos pondo a par da existência nos seus arredores de cento e vinte nove fazendas de gado em que moravam 441 pessoas entre brancos, índios, negros e mestiços. Não possuíam capela decente para a realização dos ofícios religiosos, sendo estes celebrados em um abrigo de taipa e cobertura de palha. O considerável afastamento da nova freguesia piauiense torna-se um impasse para a expansão do povoado. Todavia, a presença das melhores fazendas de gado do nordeste colonial transformou o panorama do pequeno arraial. Em meados do século XVII, a abertura de estradas que ligavam as fazendas de criar aos aglomerados e portos litorâneos facilitou o crescimento econômico do Piauí e sua urbanização. A convergência populacional exercida pela atração da nova paróquia acarretou na decisão governamental de elevar a freguesia de Nossa Senhora da Vitória à Vila da Mocha em 1712, porém com sua instalação em 1717 (Nunes, 1971). Segundo Odilon Nunes (1971) este núcleo urbano, sob jurisdição da Capitania do Maranhão, recebeu, por ordem do governador Cristovão da Costa Freire, muitas famílias, trezentos degredados portugueses, provavelmente dos Açores e Ilha da Madeira, além de índios catequizados, negros e mestiços. Com o passar dos anos, em 1758, foi criada a Capitania de São José do Piauí e o Marquês de Pombal, como Primeiro Ministro português, privilegiou “o mecanismo pelo qual o sertão ficou subordinado (...) baseava-se na fundação de comunidade supervisionadas pela Coroa, as quais com o tempo formariam redes urbanas integradas, localizadas em pontos estratégicos do interior”, reforça Roberta Delson sobre a urbanização de cidades como Oeiras. Somente na era pombalina, a Vila da Mocha ganha o destaque regional pela predominância da economia do couro e de suas fazendas. O ápice administrativo e político ocorre em 1761 quando esta adquire o status de cidade. A Carta Régia desta nomeação nos diz sobre a nova sede municipal: “determineis o lugar mais próprio para servir de praça, fazendo levantar no meio delas o pelourinho, assistindo área para edificar igreja, capaz de receber um competente número de fregueses” (Nunes, 1971). Fica patente, nesta citação, a fusão entre igreja e estado presente no período colonial brasileiro. O cunho urbanístico que essa relação tomou é concretizado pela localização da matriz de Oeiras: em frente a uma grande praça retangular. 15

A Carta Régia continua: “(...) só com a obrigação de que as ditas casas sejam sempre fabricadas na mesma figura uniforme, pela parte exterior (...) para que desta sorte se conserve a mesma formosura nas vilas, e nas ruas delas e mesma largura” [grifo nosso]. Esta norma, como código urbanístico, preocupou-se em orientar àqueles que remodelariam a paisagem de Oeiras dentro de certa racionalidade comumente defendida pelo Marquês de Pombal. A imposição de se construir casas uniformes e ruas na mesma largura para a harmonia das fachadas intensifica os condicionantes estéticos para nova cidade. Contudo, esta paisagem, orientada por códigos e leis, não se adéqua com a atual realidade urbana. Ruas pequenas, tortas e casas não alinhadas são comuns nas ruas de Cônego Acelino Portela e Manuel Rodrigues. Vejamos isso através das figuras 07 e 08:

Figura 07 – Vista parcial da rua Cônego Acelino Portela.

16

Figura 08 – Rua Manuel Rodrigues em Oeiras – PI. Ao fundo, Praça da Vitória e Igreja de Nossa Senhora da Vitória.

Anos depois, com a visita do Ouvidor Antônio José de Morais Durão, em 1772, ele ratifica o não cumprimento das diretrizes urbanas da Carta Régia. Selecionamos o seguinte trecho da descrição de Durão: “(...) As casas da cidade são todas térreas até o próprio palácio do Governo. Tem uma rua inteira, outra só de uma face, e metade de outra. Tudo o mais são nomes supostos; o de cidade verdadeiramente só goza o nome. (...) Tem a cidade unicamente 157 fogos, porque no suposto mapa se vê 269. (...) Tem somente 692 almas. (Mott, 1985). Durão não poupa a Casa de Câmara e Cadeia quando critica: “(...) a cadeia é cousa indigníssima sendo necessário os presos estarem em troncos e ferros para a segurança.”(Mott, 1985). Esta é a paisagem colonial de Oeiras. Mesmo com instalações físicas precárias, ela se destacou como urbe no interior nordestino se a compararmos com outros aglomerados contemporâneo (Floresta, descrita anteriormente). É evidente sua hegemonia, naqueles tempos, na rede urbana e nas trocas comerciais entre sertão e litoral ou como bem discorre Milton Santos (2009): “A existência das redes é inseparável da questão do poder. A divisão territorial do trabalho resultante atribui alguns atores um papel privilegiado na organização do espaço”.

4. PATRIMÔNIO CULTURAL SERTANEJO: O CONHECIMENTO QUE PRESERVA A explanação sobre o povoamento, urbanização e paisagem cultural de cidades do sertão nordestino foi breve e resumida para que o leitor tenha alcance do patrimônio material ( e imaterial) encontrado nestas localidades sertanejas e derivados do Ciclo do Couro. Os estudos e legislações de conservação patrimonial, a nível nacional para estas cidades, são poucas ou como dissemos anteriormente, elas estão concentradas, sob exaustão, no litoral açucareiro. Destacam-se, neste âmbito, o cuidado do IPHAN em tombar núcleos históricos coloniais sertanejos, como por exemplo Icó – CE e Oeiras – PI. Vale mencionar, o esforço que as Secretarias Estaduais de Cultura, no que tange a catalogação e produção de inventários para identificar e localizar arquiteturas de interesse estadual. Todavia, há algumas carências que poderiam minimizar juízos desmerecidos referente ao patrimônio localizado em áreas de caatinga. 17

Tendo acesso a dois inventários, um do IPAC – BA e outro da FUNDARPE – PE, verificamos que o julgamento dado a certas edificações e localidades, em sua maioria, é definido como de interesse arquitetônico. Os melhores critérios de avaliação são para aquelas construções de finais do século XVII e meados do século XVIII. Perguntamo-nos: e aquelas que são elaboradas entre fins do século XVIII e meados dos XIX, não apresentam elementos que revelam a cultura e memória do povo sertanejo? Não seriam expressão de identidade regional e nacional? Infelizmente, no território sertanejo o patrimônio remanescente vem sofrendo substanciais represálias, não só por parte de órgãos públicos que competem este fim, como também da população alienada. Para citar como exemplos de falta de conhecimento, temos o caso da Igreja de São Félix, localizada no município de Orocó – PE. Uma construção das missões capuchinhas ocorridas no médio rio São Francisco em fins do século XVII e inicio do XVIII. Estes missionários nos deixaram um legado arquitetônico dotado de uma fachada simples, se levarmos em consideração o barroco contemporâneo de outras localidades; construída em alvenaria de tijolo, possui torre sineira, planta em cruz e cemitério contíguo à edificação. Os motivos que adornam o frontispício são poucos e simples, pois, como abordamos, esses traços artísticos são reflexos do meio e das condições econômicas dos habitantes da região. Mesmo com seus elementos estéticos e formais característicos do século XVIII, esta capela, juntamente com as imagens sacras em madeira policromada, até onde temos noticia, não passou por processos de tombamento estadual, muito menos de divulgação à sociedade pelo valor cultural que possuem – temos, então, um objeto arquitetônico digno de conservação e exemplo de patrimônio religioso rural. Outro

caso, seria o artesanato em couro como os gibões,

chapéus, banquetas, selas, etc. – que, apesar de sua rusticidade material, encontramos apenas na literatura regional o merecido respaldo como produto artístico. Sua identidade está na rusticidade, de se adaptar ao meio árido, e na unicidade: por ser encontrado em todos os estados que compõem o sertão nordestino com os mesmos elementos estéticos, isto é conseqüência da cultura do couro, que sem barreiras a transpor e, democraticamente, difundiu sua arte para todos os estados do Nordeste brasileiro. Aliados a estes condicionantes de cunho político, administrativo e cultural, há outro delicado e complexo: a perda da memória patrimonial por parte da população autóctone. Com o progresso dos séculos, a identidade arquitetônica e urbanística, que compõem a paisagem cultural destas cidades, foi sobrepujada por interesses econômicos. É comum, nas cidades do sertão, que tiveram a sua gênese entre os séculos XVII e XVIII, a 18

remodelação ou completa modificação, senão a destruição, de exemplares arquitetônicos que revelam as relações sociais, os hábitos, a cultura em tempos idos. Principalmente onde hoje se concentram as atividades comerciais e os serviços destes lugares, a descaracterização é acentuada, restando poucos protótipos para conservação. É obvio que não podemos impedir o curso evolutivo e cultural de uma sociedade, entretanto, podemos aliar este condicionante às idéias de conservação patrimonial sem ferir a materialidade das relações sociais de tempos passados presentes na arquitetura e no uso do solo. Trata-se de um trabalho social e até antropológico muito complicado, tendo em vista o cotidiano e a idéia de cidadania que esta população possui. O Nordeste brasileiro passou por inúmeros projetos de desenvolvimento social e econômico: a criação da extinta SUDENE, a delimitação do Polígono das Secas para envio de verbas que monitorassem a construção de mananciais aqüíferos em tempos de estiagem, a construção da Represa de Sobradinho para aumentar a produção energética, e mais recente, a transposição do rio São Francisco. Estes artifícios foram elaborados para minimizar a pobreza latente no interior. Contudo, a transformação da paisagem, em certos lugares, chegou a ser agressiva para a população e para o patrimônio material (e imaterial) . Por exemplo, a antiga Sento Sé, povoação do sertão baiano surgida no século XVII e freguesia no século XVIII, teve o seu legado material desconsiderado com a construção da Represa de Sobradinho: com a inundação da cidade, a memória da sociedade local se transformou com a construção da nova Sento Sé. Esta é uma situação difícil que nós nos encontramos, e poucas laudas não serão suficientes para injetarmos soluções aos problemas enfrentados pela paisagem cultural do sertão nordestino. Entretanto, alguns subsídios podem criar ou motivar os órgãos competentes a ter olhos mais atentos ao sertão nordestino. Um ponto focal seria considerar a abrangência regional que o Ciclo do Couro, ou os caminhos do gado, desenvolveu nesta área. Percebemos que, sem barreiras, o gado devassou todo o interior nordestino difundido a cultura das principais metrópoles da época: Salvador e Olinda/Recife. Esta difusão criou uma cultura própria, com características comuns em estados onde a distância territorial é enorme (Maranhão e Pernambuco, por exemplo), podemos citar como exemplos: o vaqueiro, o uso do couro em vestimentas, artesanatos e móveis, a acentuada religiosidade e a linguagem sertaneja tão bem escrita por Raquel de Queiroz, Ariano Suassuana, João Cabral de Melo Neto e João Guimarães Rosa. Este discurso serve para conservar, não apenas alguns elementos

19

patrimoniais, mas para preservar as conseqüentes matérias e não matérias alastradas pelo Ciclo do Couro em diversos pontos do sertão nordestino. O Ciclo do Couro nos trouxe a idéia de entorno definida na Declaração de Xi’An (2005) sobre conservação do entorno edificado, sítios e áreas do Patrimônio Cultural. Ela nos diz no seu segundo ponto:

“ O significado e o caráter peculiar das edificações, dos sítios ou das áreas de patrimônio cultural com escalas diferentes, inclusive os edifícios, espaços isolados, cidades históricas, paisagens urbanas, rurais ou marinhas, os itinerários culturais ou os sítios arqueológicos advêm da percepção de seus valore sociais, espirituais, históricos, artísticos, estéticos naturais, científicos ou de outra natureza cultual. Ainda, das relações características com seu meio cultural, físico, visual e espiritual. Estas relações podem resultar de um ato criativo, consciente ou planejado, de uma crença espiritual, de acontecimentos históricos, do uso, ou de um processo acumulativo e orgânico, surgido através das tradições culturais ao longo do tempo.”

A citação da XV Assembléia Geral do ICOMOS alicerça as atitudes e ações a serem adotadas por parte de órgãos públicos e profissionais interessados em conservação patrimonial. No caso da paisagem cultural do sertão nordestino, o trabalho torna-se demorado tanto pelos parcos projetos como pelo juízo negativo que estes lugares sofrem. Contudo, novamente a Declaração de Xi’An nos propõe “o desenvolvimento

de

instrumentos normativos e de planejamento eficazes, assim como de políticas, estratégias e praticas para a gestão sustentável do entorno”. Este ponto é fundamental, pois muitas das prefeituras do interior nordestino não possuem códigos, leis ou normas de conservação do seu “casco viejo”. Pior: muitos dos profissionais que atuam nas denominadas secretarias de cultura municipais não conseguem catalogar ou especificar quais monumentos, edificações ou festividades se enquadram nos parâmetros de patrimônio cultural. Desse modo, as diretrizes norteariam essas pessoas no que tange a delimitação da paisagem cultural a ser preservada. Por fim, para solucionar esta carência administrativa aconselhamos o décimo terceiro ponto da Declaração de Xi’An:

“Deve-se fomentar a capacitação profissional, a interpretação, a educação e a sensibilização da população, para sustentar (...) a cooperação e compartilhar os conhecimentos, assim como para favorecer as metas de conservação e incrementar a eficácia dos instrumentos de proteção, dos planos de gestão e de outros instrumentos. (...) Devem se dedicar recursos financeiros para a investigação, a avaliação, o planejamento estratégico da conservação e gestão do entorno das edificações, sítios e áreas de caráter patrimonial. A responsabilidade sobre a conscientização do significado do 20

entorno em suas diferentes dimensões cabe aos profissionais, às instituições,às comunidades locais e a outras relacionadas com os bens patrimoniais, os quais no momento de tomar decisões deveriam sempre considerar as dimensões tangíveis e intangíveis do entorno.”

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Observando a história do povoamento do sertão nordestino não tem como desvencilhar o conceito de urbanização, como um fenômeno social, e a construção da paisagem cultural de cidades sertanejas. Vinculados às rotas que o gado elaborou no território colonial nordestino, os aglomerados urbanos surgiam ao longo destas estradas e dos rios. Por isso, apresentam uma configuração espacial que evolui à base dos caminhos do gado. Apresentamos, como exemplo, o caso da antiga povoação da Fazenda Grande, hoje Floresta em Pernambuco, cujo crescimento urbano é dirigido por esses caminhos no incipiente espaço citadino. A escala da rua e das praças tiveram como referência as manadas não o homem. Vale ressaltar, que o desenvolvimento urbano se deu a partir de interesses comuns entre igreja e o estado. Esta fusão se cristalizou na paisagem pela localização privilegiada no espaço urbano da capela e, depois, igreja. Destacamos o valor da rede urbana, mesmo frágil, que promoveu o estreitamento das relações econômicas entre interior e litoral. A cidade de Oerias, no Piauí, firma-se no cenário econômico regional por seu posto neste sistema de redes. A conseqüência mais evidente foi sua elevação, no século XVIII, do status de vila para o de cidade, através de Carta Régia, que impôs certas ordens de cunho estético que foram significativas para a transformação de sua paisagem. Por fim, expomos a situação política e administrativa das atuais cidades sertanejas. A carência da gestão patrimonial, notória nas sedes de governo municipal, acaba por fraquejar a conservação dos remanescentes arquitetônicos nessas urbes, o que provoca sua integral descaracterização por parte da população alienada. Apesar das poucas laudas empreendemos em dar o primeiro passo, guiados pelas normas da Declaração de Xi’An (2005) que são pertinentes para a área descrita e estudada.

AGRADECIMENTOS Agradeço, primariamente, ao Comitê Científico do “Primeiro Colóquio Ibero – Americano Paisagem Cultural, Patrimônio Cultural e Projeto” pela seleção do artigo a ser exposto no 21

evento. Porque espero através dele alargar o estudo da urbanização e paisagem cultural do sertão nordestino tão pouco difundidos no contexto nacional. Sou grato, ao meu orientador e amigo - Murillo Marx - que sempre me apoiou nesta investida acadêmica e na promoção da Paisagem Cultural de cidades sertanejas e pelos conselhos e correções pertinentes que este artigo sofreu durante sua fase de elaboração.

REFERENCIAS ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800. 7 ed. São Paulo, Editora Itatiaia, 2000. ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. São Paulo, Editora Brasiliense, 1973.251p. ALENCAR, José de. O sertanejo. São Paulo, Martin Claret, 2007. p. 11. ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1982. (Coleção Reconquista do Brasil). ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. Tradução: Pier Luigi Cabra. 5 ed. São Paulo, Martins Fontes, 2005. (Coleção A). ARINOS, Afonso. Síntese da história economica do Brasil. Salvador, UFBA, 1958. AZEVEDO, Aroldo de. Vilas e cidades do Brasil colonial: estudos de geografia urbana. São Paulo, Nacional, 1956. 95p. BARRETO, Paulo Thedin. “O Piauí e sua arquitetura”. In: Arquitetura Civil I. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. v.2. Rio de Janeiro, 1938. p. 191 – 219. BERNARDINO, José de Souza. Ciclo do Carro de Bois no Brasil. São Paulo, Editora Nacional, 1958. CONSTITUIÇÕES Primeyras do arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo Ilustríssimo, e reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro de Vide, 5. Arcebispado do dito Arcebispado. Introdução e revisão cônego prebendado Idelfonso Xavier Ferreira. São Paulo, Typ. 2 de dezembro, 1853. 510p. DANTAS, Mônica Duarte. “Povoamento e ocupação do sertão de dentro baiano (Itapicuru, 1549 1822)”. In Revista Penélope de História e Ciências Sociais. n.23. Lisboa, 2000. DECLARAÇÃO de Xi’An sobre a conservação do entorno edificado, sítios e área do patrimônio cultural. Adotada em Xi’An – China, 21 de outubro de 2005. Tradução em Língua Portuguesa: ICOMOS/ Brasil. . Acesso em 22.06.2010.

22

DELSON, Roberta Marx. Novas vilas para o Brasil colonial: planejamento espacial e social no século XVIII. Brasilia, ALVA-CIORD, 1997. FERRAZ, Álvaro. Floresta: memórias duma cidade sertaneja em seu cinquentenário. Recife: Secretária de Educação e Cultura, 1957. GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia/ Edusp, 1975. GIRÃO, Raimundo. Bandeirismo e Povoamento do Ceará. Fortaleza, Instituto do Ceará, 1949. GOULART, José Alípio. Brasil do Boi e do Couro. v. 2. Rio de Janeiro, Edições GRD, 1966. HOLANDA, Sérgio Buarque de. História da civilização brasileira. v.2. Tomo I. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1960. p. 218 – 227. ___________. Caminhos e Fronteiras. 3 ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1994. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo V. Rio de Janeiro, Instituto Nacional, 1945. LEPETIT, Bernard. “É possível uma Hermenêutica Urbana?” In: Por uma nova história urbana. Seleçao de textos, revisão crítica e apresentação Heliana Angotti Salgueiro. Tradução Cely Arena. São Paulo, Edusp, 2001. ______________. “Arquitetura, Geografia, História: Uso da Escala”. In: Por uma nova história urbana. Seleçao de textos, revisão crítica e apresentação Heliana Angotti Salgueiro. Tradução Cely Arena. São Paulo, Edusp, 2001.

MARX, Murillo. Cidades no Brasil – Terra de Quem? São Paulo: Edusp,1991. 144p. MARX, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo, EDUSP, 1988. 219p. MOTT, Luiz R. B. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina, Projeto Petrônio Portella, 1985. 144p. NUNES, Odilon. Pesquisa para a história do Piauí. v.1. 2.ed. Teresina, Editora Artenova, 1971. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4 ed. 5. Reimpr. São Paulo, Edusp, 2009. SANTOS, Paulo F. Formação de cidades no Brasil colonial. Coimbra, V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, 1968.125p. REIS FILHO, Nestor Goulart. Contribuição para o estudo da evolução urbana do Brasil: 1500 – 1720. São Paulo, Edusp, 1968. 235 p. SPIX, J.B. Von; MARTIUS, C.P.F. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional., 1938. p. 137 -171.

23

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.