Caminhos e descaminhos da curadoria
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ARTES VISUAIS
PRIMEIRO SEMESTRE
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POR FRANCISCO DALCOL, JORNALISTA, CRÍTICO DE ARTE, CURADOR INDEPENDENTE E DOUTORANDO EM TEORIA, CRÍTICA E HISTÓRIA DA ARTE (UFRGS). EM SUAS PESQUISAS, INVESTIGA RELAÇÕES ENTRE CRÍTICA E CURADORIA.
CAMINHOS E DESCAMINHOS DA CURADORIA
Curador “Aquele que é encarregado, pela justiça, de cuidar dos interesses das pessoas que estão impedidas de fazê-lo / Pessoa que faz parte do Ministério Público, sendo responsável pela defesa de incapazes, ausentes ou massas falidas / Aquele que atua no cumprimento das vontades da pessoa que faz um testamento, assegurando que suas vontades sejam mantidas: curador de resíduos / Pessoa encarregada pela defesa da
Já faz algumas décadas que as palavras “cura-
“responsável pelo cardápio”, ou “curador de casa
família e das relações matrimoniais: curador de
dor” e “curadoria” circulam no meio artístico.
noturna” em vez de “gerente de programação”.
família / Quem se responsabiliza pelos casos de
Contudo, ampla difusão não necessariamente
O mesmo vale para o clássico trabalho do “edi-
menores abandonados ou de crianças infrato-
se reverte em maior compreensão, tendo em
tor”, responsável por selecionar, organizar e dar
ras: curador de menores / Encarregado de zelar
vista que os delineamentos dos termos nun-
forma a determinados conteúdos, tarefa que
pelos direitos e deveres de um órfão, além de
ca cessaram de se definir. Se no começo apa-
agora também tem passado a ser chamada de
tratar de todos as ações que lhe dizem respeito:
receram para designar um profissional e uma
“curadoria”. Não é por acaso que a mania de lis-
curador geral dos órfãos”.
atividade estrita ao campo dos museus e das
tas-sobre-qualquer-coisa é acompanhada pela
exposições de artes visuais, atualmente o
expressão “curadoria de conteúdo”.
Os mesmos dicionários de nossa língua também
que se vê é uma profusão das expressões nos
Um bom modo de se tentar entender os
mais variados setores, e não só da cultura.
caminhos e descaminhos percorridos tanto pelo
É bastante comum ouvirmos falar em curador
profissional em curadoria como pelo trabalho
de arquitetura, de moda, de design ou em cura-
curatorial é investigar as origens das palavras
Curador
doria de programação e seleção em festivais de
e os antecedentes da atividade. E, com sorte,
“Aquele que cura; que ajuda na recuperação de
teatro, cinema e literatura, mas também — e até
esboçar-se um breve panorama de contextua-
um doente”.
mesmo — em curadoria gastronômica, de festa
lização histórica, política, social e estética que
e de decoração.
convergem ao apontar o curador no sentido mesmo de cura física, remetendo ao campo da medicina:
ajude a melhor situar os contornos assumidos
A compreensão de “curadoria de arte” vai apare-
Ao mesmo tempo em que os termos se po-
pelo “curador” e pela “curadoria”, desde sua
cer apenas como um entre os diversos itens que
pularizam nas mais diversas áreas, esse maior
emergência até a crescente valorização ainda
encontramos no verbete “curador”, e somente nos
alcance parece mais confundir seus reais signi-
em curso.
dicionários que o apresentam em versões atuali-
ficados e competências. E, ademais, a difundir
zadas. O Michaelis diz o seguinte:
clichês empobrecedores. A dificuldade se torna
AS ORIGENS DOS TERMOS
ainda maior porque a proliferação das expres-
No latim, encontramos expressões como “cura-
Curador de artes
sões ainda está em curso, nomeando novas ati-
re” e “curator”, as quais, no tempo dos romanos,
Aquele que tem a incumbência de organizar, pro-
vidades e até mesmo antigas tarefas que não
eram empregadas para designar o trabalho dos
videnciar a conservação de obras de arte em mu-
eram assim chamadas. A questão que se impõe é
altos funcionários encarregados de supervisio-
seus, galerias de arte etc.
que a banalização, nos piores casos, tem levado
nar obras públicas. Aqui, já aparece o atributo
também à vulgarização da atividade curatorial.
da responsabilidade de zelar. É uma noção muito
Mas quando se refere a “curadoria”, o próprio Mi-
O que ajuda a explicar a apropriação é ba-
semelhante às que constam em nossos dicioná-
chaelis retoma os significados médico e jurídico
sicamente uma tentativa de atribuir distinção
rios de língua portuguesa, mas com uma cono-
em detrimento ao emprego no campo artístico.
simbólica a determinadas funções com o obje-
tação endereçada ao campo jurídico, referente
tivo de conferir um caráter enobrecedor à ativi-
à aquele que trata das questões do Direito em
Curadoria
dade daqueles que passam a se valer dos termos.
nome de alguém. Vejamos uma pequena compi-
1 Ato ou efeito de curar.
Afinal, pode sempre parecer mais bacana alguém
lação de exemplos de significados que encontra-
2 (JUR) Cargo, poder, função ou administração de
ser chamado de “curador de menu” em vez de
mos em diferentes dicionários:
curador; curatela.
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Se prosseguirmos na aventura histórica das palavras, ainda na Idade Média, já cristianizada, encontraremos a noção de “curatour” como o sacerdote encarregado do cuidado — e cura — das almas. Ou seja, aqui a igreja atribui um papel específico do campo religioso ao que antes, com os romanos, voltava-se ao zelo do bem público. O COLECIONISMO E OS MUSEUS Os antecedentes de uma atividade curatorial como compreendemos hoje no campo da arte podem ser situados no Renascimento, quando, por volta do século 16, o hábito e a mania pelo colecionismo dão origem aos chamados “gabinetes de curiosidades[2]”. Como se sabe, são acervos que reuniam objetos zoobotânicos adquiridos nas conquistas territoriais, mas também descobertas e resgates de artefatos arqueológicos do passado e relíquias da antiguidade pagã grega, romana e de eras remotas, advindos dos intercâmbios comerciais no contato com povos distantes. Mantidos pela realeza e pela aristocracia, esses gabinetes de curiosidades, também chamados de “quartos das maravilhas”, logo demandaram um encarregado por organizar as coleções com vistas à conservação e à apresentação das peças. Aqui, ressalte-se, ainda em ambientes privados e domésticos, apontando para critérios e interesses baseados conforme um gosto de ordem pessoal. Esse ponto é importante para situar a transição ao momento seguinte, que se dá com a criação dos primeiros museus abertos ao público. Convoquemos novamente a etimologia: “museu” vem do grego “mouseion” e do latim “museum”, significando a ideia de templo das musas, as deusas da memória. Desde a antiguidade, há registros de certo pendor dos povos a guardar relíquias do passado e objetos de culto, mas será de fato com a era das grandes navegações do século 16 e a filosofia iluminista e enciclopedista a partir do século 17 que surgirão os primeiros museus como conhecemos hoje. As coleções reunidas por esses templos da razão e do esclarecimento, voltados a temas como história natural, arqueologia e antropolo-
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gia, farão com que surja a necessidade de um
nos até a metade do século 20, inclusive no Brasil,
profissional responsável por conservar, orga-
prevalecendo sobre “comisario” (espanhol), “cura-
nizar e apresentar artefatos e documentos. E
tore” (italiano), “Ausstellungsmacher”/“Kurator”
também a comandar a ampliação dos acervos,
(alemão) e até mesmo “curateur” (francês) e
propiciando a elaboração de metodologias que
“curator”/“curatorship” (inglês).
os abordem enquanto campo de conhecimen-
É importante ressaltar que o binômio cura-
to. Essa tarefa de seleção, estudo, salvaguarda
dor/curadoria como se emprega hoje surge da
e comunicação das coleções no ambiente dos
confluência de duas expressões que dizem res-
museus designará uma atividade que oferece os
peito a dois papéis distintos, ainda que comple-
princípios para as pioneiras práticas curatoriais,
mentares: o responsável pelo acervo e o respon-
neste momento ainda mais próximas ao papel
sável pela exposição. E, em ambos os casos, dando
do conservador de acervo.
conta de dois profissionais que se tornam espe-
Os museus de arte surgirão posteriormente,
cialistas pelo saber notório em suas áreas, o que
trazendo as questões que envolvem as coleções
também convoca outra expressão que se difundiu
dos museus científicos. Também terão a mesma
a partir da França, o “connaisseur”, aquele que é
função: educar e ilustrar o público. Um dos prin-
conhecedor, que tem a qualidade de perito.
cipais marcos desse período é o Museu do Louvre, em Paris, institucionalizado em 1793 com a ta-
O ARTISTA COMO CURADOR
refa de exibir publicamente as coleções artísticas
As expressões permanecerão restritas ao ambien-
reunidas pela família real e pela aristocracia. Com
te museológico por algumas décadas, mesmo que
o desenvolvimento da História da Arte enquanto
se verifiquem eventos históricos que bem podem
disciplina, a arte do passado ganha um tratamen-
ser entendidos como antecedentes da curadoria,
to científico que a explica a partir de um esque-
a exemplo de exposições comandadas por artis-
ma temporal fundamentado no desenvolvimento
tas. Basta lembrarmos de Gustave Courbet, quan-
de estilos e gêneros (vem daí a cronologia que
do, em 1855, organizou o Pavilhão do Realismo
começa na arte da antiguidade, passa pela arte
promovendo uma histórica exposição individual
medieval e renascentista e segue com os conhe-
ao mostrar seus trabalhos fora do Salão de Paris.
cidos “ismos” da era moderna). E a compreensão,
Outro momento se deu com o Salão dos Recusa-
o estudo e a difusão do conhecimento artístico
dos (1863), o mesmo no qual a obra Almoço na
enquanto ciência serão tarefa de especialistas em
Relva, de Édouard Manet, causou tremendo es-
por inteferências no ambiente. Na primeira de-
História da Arte. Nesse movimento, o Louvre ofi-
tranhamento e polêmica. E também com a mos-
las, houve, por exemplo, apresentação de perfor-
cializa, em 1826, o que seria o primeiro cargo de
tra independente do Salão em que Claude Monet
mance e uma intervenção no teto com sacos de
curador em museu de arte, mas ainda voltado ao
apresentou Impressão, Nascer do Sol (1872), junto
carvão. Já a segunda se tornou célebre pelo ema-
cuidado das coleções.
a pintores como Pierre-Auguste Renoir, Camille
ranhado de fios brancos que praticamente invia-
Aqui, é válido novamente se ater às palavras.
Pissarro, Paul Cézanne e Edgar Degas, grupo este
bilizavam a circulação do público pelo ambiente,
As expressões empregadas em francês nesse mo-
que após a exposição seria chamado de impres-
ao mesmo tempo em que obliteravam a visão das
mento são “conservateur de musée” e “conserva-
sionista.
obras. É preciso lembrar que até então era ha-
teur du patrimonie”, que dizem respeito ao con-
Algumas décadas mais tarde, Marcel Du-
bitual os quadros de pintura estarem presos à
servador de museu e de patrimônio. É também
champ faria às vezes de curador ao organizar duas
parede e as esculturas serem apresentadas em
no ambiente museológico da França que logo
mostras hoje emblemáticas e que também forne-
pedestais. Outro marco da ideia de artista-como-
surgirá o antecedente do curador de exposições
cem antecedentes para a atividade curatorial: a
-curador, no caso de si mesmo, é a exposição em
como entendemos hoje: o “commissaire de expo-
“Exposição internacional do surrealismo” (1938 )[3],
que Yves Klein apresentou O Vazio (1958) em Pa-
sitions”, encarregado da exposição. Tanto é que a
em Paris, e a mostra “Primeiros documentos do
ris. O artista esvaziou a galeria de qualquer obra,
expressão francesa será o nome dado internacio-
surrealismo” (1942), em Nova York. Em ambas,
mantendo apenas uma cortina que, ao ser aberta
nalmente ao organizador de exposições pelo me-
Duchamp foi o responsável pela montagem e
pelo público, revelava a ousadia logo na entrada.
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A obra era a própria exposição, ou a não exposição.
guagens, materiais, processos criativos e até mes-
maior parte das grandes mostras pelo mundo se
E o gesto envolvendo um modo de apresentação
mo a desmaterialização do objeto artístico. Eram
organizavam em torno de critérios formais, estilís-
conceitual aponta para aspectos que permeiam a
artistas que transitavam nos desdobramentos do
ticos ou cronológicos. Com essas duas exposições,
ação curatorial.
minimalismo e dos conceitualismos, todos hoje
Szeemann não só lançou premissas de autoria e
fundamentais para a História da Arte contempo-
viés conceitual/temático para grandes exposições
O CURADOR INDEPENDENTE
rânea, como Carl Andre, Giovanni Anselmo, Joseph
no campo da atividade e do pensamento curato-
É com a arte contemporânea que irá se difundir o
Beuys, Walter de Maria, Hans Haacke, Michael Hei-
rial, como também se projetou ao posto de mais
termo “curador independente” que permanece nos
zer, Joseph Kosuth, Sol LeWitt, Richard Long, Bruce
importante curador independente do sistema ar-
dias de hoje. Atribui-se a expressão às experiências
Nauman, Claes Oldenburg, Richard Serra e Robert
tístico internacional de então.
do suíço Harald Szeemann, notadamente por duas
Smithson. Três anos mais tarde, Szeemann se tor-
exposições suas que são consideradas marcos da
naria célebre ao assinar a curadoria da Documenta
atividade e do pensamento curatorial. Em 1969,
5 de Kassel[4] (1972), que, por ser configurada como
na Kunsthalle de Berna, Szeemann foi responsável
um evento atrelado a uma proposição lançada pelo
pela emblemática “When attitudes become form”,
curador aos artistas, lançou as bases sobre as quais
mostra que se notabilizou por trazer a público
grandes mostras e eventos artísticos se inspirariam
tendências artísticas que enfatizavam novas lin-
a partir dali, a exemplo das bienais. Até então, a
Primeiros documentos do surrealismo, 1942 Marcel Duchamp O vazio, 1959 Yves Klein When attitudes become form, 1969 Szeemann
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Szeemann ainda delineou a atividade de um profissional que não está ligado ou trabalhando diretamente com uma coleção de museu. Na condição de curador independente, passou a frequentar os ateliês de artistas e, em vez de privilegiar obras já prontas, a estimular a proposição de novos trabalhos, ainda inexistentes. É preciso ressaltar que essa passagem acompanha também as mudanças operadas pelas próprias práticas dos artistas no campo da produção contemporânea. Dito de outro modo, novos entendimentos artísticos, que desafiavam convenções de exposição e apresentação da arte, são acompanhados por uma nova compreensão da atividade curatorial. Ao mesmo tempo, os
sentando-se como um curador que dava espaço e
cem antecedentes para se pensar sobre o papel
museus passavam a valorizar o modelo de exposi-
estímulo para que os artistas criassem novas pro-
do curador e a atividade curatorial em ambientes
ção temporária, dentro de estratégias de comuni-
posições, intervenções, situações e performances,
institucionais.
cação entre instituição e público. E o responsável
todas elas efêmeras. “Do corpo à terra” ficaria mar-
A Bienal de SP seguiria pautando a discus-
por elas, muitas vezes um curador independente
cada por duas das mais contundentes manifesta-
são sobre o papel do curador no Brasil, agora com
convidado, começou a assumir importância fun-
ções assumidamente políticas por parte dos artis-
alta carga polêmica. Em 1985, a crítica Sheila
damental nesses processos de mediação.
tas visuais em tempos de ditadura militar no Brasil:
Leirner assumiu a curadoria e realizou uma edi-
Mesmo com o pioneirismo, o saldo das ini-
a intervenção Trouxas Ensanguentadas, de Artur
ção que ficou conhecida como a “Grande tela”[5].
ciativas de Szeemann não foi tão harmônico, pois
Barrio, e a ação Tiradentes: totem-monumento ao
O motivo foi o modo de apresentar um extenso
muitos acusaram-no e a seus seguidores dali em
preso político, de Cildo Meireles. Morais também
conjunto de pinturas ao longo de três corredores
diante de serem impositivos, por demais autorais,
sinalizou o crítico que toma para si o engajamen-
de cem metros de extensão, praticamente cola-
a ponto de rivalizarem com as obras e os artistas.
to junto aos artistas e passa para a ação: no texto
das lado a lado, embaralhando noções de autoria,
Questões que estimulam inflamados debates até
mimeografado e distribuído no evento, ele lançou
procedência e geração. Foi um gesto de curadoria
hoje sobre o poder e a autoridade do curador.
a expressão “arte de guerrilha”.
radical enquanto crítica, pois o argumento cura-
No Brasil, o termo curadoria se difundiu de
torial se articulava a serviço de um comentário
CURADORIA NO BRASIL
fato somente a partir dos anos 1980, quando
sobre a profusão, à época, de uma pintura de viés
No mesmo período em que Szeemann apontava
Walter Zanini assumiu as edições da Bienal de São
expressionista que, na visão da curadora, seguia
para novos entendimentos sobre curadoria, no
Paulo de 1981 e 83 na condição de curador-geral.
o rastro internacional da transvanguarda italiana
Brasil também surgiam experiências pioneiras, ain-
Até então, o responsável era chamado de diretor
e do neoexpressionismo alemão com intenções e
da que seus responsáveis não fossem chamados de
artístico, quando não era o próprio presidente
consequências mercadológicas. Muitos artistas
curadores. Foi o caso de Frederico Morais em suas
assessorado por especialistas e jurados. Como
participantes protestaram em desagrado, apon-
ações no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de
curador da Bienal, Zanini desmontou o esquema
tando o caráter impositivo da curadoria, e alguns
Janeiro e quando organizou, em Belo Horizonte, a
de apresentação das obras em espaços separados
chegaram a pedir a retirada de suas obras. A dis-
mostra “Do corpo à terra” (1970). Na condição de
conforme as representações de cada país, pas-
cussão sobre o poder dos curadores frente aos
responsável pelo evento expositivo, convidou di-
sando a agrupá-las pelo critério conceitual/te-
artistas avançaria nas décadas seguintes, virando
versos artistas a apresentarem trabalhos no espaço
mático de “analogia de linguagens”. A trajetória
o milênio.
público. Como crítico e agitador cultural, Morais já
pregressa do professor, crítico e historiador como
Um aspecto importante colocado pela Bie-
havia organizado diversas mostras e escrito textos
diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC)
nal da “Grande tela” foi a relação entre discurso
que são manifestos das vanguardas brasileiras dos
da Universidade de São Paulo (USP) entre 1963 e
crítico, projeto curatorial e expografia. Ou seja,
anos 1960 e de uma virada da arte contemporânea
78, quando estimulou e deu espaço à pesquisa de
de uma argumentação crítico-teórica articulada
no Brasil. Mas foi em “Do corpo à terra” que ele
novas práticas e linguagens artísticas e a reno-
ao manejo de obras e ao modo como são apre-
radicalizou os modelos expositivos no país, apre-
vados modelos de apresentação, também ofere-
sentadas no espaço de exposição. Essa tarefa
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Trouxas ensanguentadas[6], Artur Barrio
Álvaro Siza, projeto pelo qual ganhou o Leão de
ículos de comunicação ou para a universidade ou
Tiradentes: totem-monumento ao preso Político[7], Cildo Meireles
Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza, passaram
para as instituições artísticas. Neste último caso,
a ser convidados curadores externos à instituição
encontrando espaço nas curadorias.
para propor mostras sobre Iberê Camargo e outros
Ao mesmo tempo, há uma complexificação
artistas. Começaram a atuar nas duas instituições
do pensamento curatorial que leva a atividade
curadores vindos de fora, destacadamente de São
ao divã. Talvez os melhores exemplos de projetos
Paulo e Rio de Janeiro, logo passando a nomes do
curatoriais hoje sejam os que colocam em discus-
cenário internacional. Houve momentos em que
são os seus próprios modelos e as circunstâncias
os mesmos curadores transitaram entre a Bienal
em que são realizados, preferindo propor a incer-
do Mercosul e a Fundação Iberê Camargo, como
teza da abertura de uma experiência em lugar do
foram os casos de Gabriel Pérez-Barreiro, José
fechamento em torno da defesa de uma tese. São
Roca e Luis Pérez-Oramas. Em relação à atividade
muitos os exemplos, e quase todos passam pelo
curatorial do Rio Grande do Sul, também deve ser
entendimento de que o papel de um curador e a
intelectual e criativa, que alia aspectos técnicos
destacada a atuação do Santander Cultural com
missão de um projeto curatorial estão para além
e simbólicos, acompanha os desdobramentos da
seu programa expositivo.
de uma exposição bem acabada acompanhada de
A circulação de curadores internacionais
texto crítico. Nesse sentido, têm surgido iniciati-
Seria também na Bienal de SP que se irradia-
aponta para a centralidade que a figura passa a
vas que se aliam à chamada virada educacional e
ria a vitalidade de um projeto curatorial que parte
exercer no sistema artístico globalizado. Passando
social da arte, priorizando projetos interdiscipli-
de uma concepção que extrapola as narrativas es-
de um projeto a outro, entre diferentes institui-
nares que se desenvolvem por meio de progra-
tabelecidas da História da Arte como modo pos-
ções, muitos dos profissionais se transformam em
mas e plataformas. Um marco foi a 6ª Bienal do
sível de oferecer uma diferenciada leitura sobre a
grife por conta da influência e da rede de contatos
Mercosul (2007).
arte. Foi o caso da edição de 1998, em que Paulo
que desenvolvem, emprestando assinatura, prestí-
Para ser curador, não é preciso formação,
Herkenhoff se valeu da noção de antropofagia, de
gio e legitimação às iniciativas a que se associam
mas é certamente necessário que se tenha conhe-
Oswald de Andrade, como mote conceitual para se
temporariamente. Um dos maiores exemplos de
cimentos em teoria, crítica, História da Arte, mu-
pensar a condição e a produção artística a partir de
um curador que se tornou superstar é o suíço Hans
seologia, expografia e gestão. E também aptidões
uma matriz genuinamente brasileira, desatrelada
Ulrich Obrist, dado o alto poder de circulação e in-
para liderar e trabalhar em equipe em contextos
de modismos e tendências internacionais. E aqui
fluência que detém.
institucionais. Mas, acima de tudo, é preciso co-
atividade curatorial no mundo todo.
deve ser ressaltada a potencialidade que a curado-
Há ainda que se alertar para os perigos das
nhecer e entender a arte como esfera do sensível
ria reserva enquanto pesquisa e atitude reflexiva
exposições curatoriais do tipo blockbuster, que
com repercussão e implicações reais. Trata-se do
que questiona cânones e estimula um renovado
mais parecem ter como compromisso índices de
entendimento de que o curador deve se posicionar
debate e uma nova experiência com a arte. Afinal,
audiências que fornecem dados que atendem a
criticamente na contemporaneidade, convocando
o curador enquanto crítico lida diretamente junto
estratégias de marketing. Outro aspecto que muito
a curadoria como um dispositivo que colabora a se
às obras com as quais articula um discurso que se
se discute é que o chamado curador independente
pensar e intervir na dimensão complexa com que
dá não só no texto, mas também no espaço.
não é tão independente assim, pois está a serviço
a realidade se apresenta, produzindo novas experi-
de um projeto e uma instituição atendendo a fi-
ências e formas de encontro, afeto e conhecimento
O CURADOR E O SISTEMA DA ARTE
nalidades e intenções. Uma vez que está a “serviço
— tanto do meio da arte quanto do campo social-
No Rio Grande do Sul, a figura do curador começou
de e para algo”, seria melhor chamá-lo de “curador
-político. Em lugar dos modelos e das convicções,
a ser de fato difundida pela mesma época, com a
freelancer”. Também por essa questão são feitas di-
apostar nas hipóteses e nos possíveis, não sem o
primeira edição da Bienal do Mercosul (1997), que
ferenciações entre as atividades do curador e a do
risco de se adentrar no desconhecido. Talvez esse
destacou Frederico Morais como curador. As edi-
crítico, pois este último estaria “mais distanciado”
seja um papel conscientemente crítico que o cura-
ções seguintes teriam outros responsáveis à frente,
das instituições e “menos comprometido” com suas
dor possa tomar para si diante da atividade curato-
mas sempre nomeados como curadores. A Funda-
estratégias. As aspas aqui, contudo, são necessárias,
rial. E também um modo de oferecer uma resposta
ção Iberê Camargo também reforçou o investi-
dadas as condições de elaboração e circulação do
à banalização e ao empobrecimento em curso dos
mento na atividade e no profissional. Com a aber-
discurso crítico na contemporaneidade. Ademais, a
termos “curador” e “curadoria”.
tura em 2008 do prédio assinado pelo português
atividade crítica há tempos vem migrando dos ve-
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