Caminhos e descaminhos da curadoria

May 18, 2017 | Autor: Francisco Dalcol | Categoria: Crítica, Curadoria, Exposições
Share Embed


Descrição do Produto

ARTES VISUAIS

PRIMEIRO SEMESTRE

2017

44

POR FRANCISCO DALCOL, JORNALISTA, CRÍTICO DE ARTE, CURADOR INDEPENDENTE E DOUTORANDO EM TEORIA, CRÍTICA E HISTÓRIA DA ARTE (UFRGS). EM SUAS PESQUISAS, INVESTIGA RELAÇÕES ENTRE CRÍTICA E CURADORIA.

CAMINHOS E DESCAMINHOS DA CURADORIA

Curador “Aquele que é encarregado, pela justiça, de cuidar dos interesses das pessoas que estão impedidas de fazê-lo / Pessoa que faz parte do Ministério Público, sendo responsável pela defesa de incapazes, ausentes ou massas falidas / Aquele que atua no cumprimento das vontades da pessoa que faz um testamento, assegurando que suas vontades sejam mantidas: curador de resíduos / Pessoa encarregada pela defesa da

Já faz algumas décadas que as palavras “cura-

“responsável pelo cardápio”, ou “curador de casa

família e das relações matrimoniais: curador de

dor” e “curadoria” circulam no meio artístico.

noturna” em vez de “gerente de programação”.

família / Quem se responsabiliza pelos casos de

Contudo, ampla difusão não necessariamente

O mesmo vale para o clássico trabalho do “edi-

menores abandonados ou de crianças infrato-

se reverte em maior compreensão, tendo em

tor”, responsável por selecionar, organizar e dar

ras: curador de menores / Encarregado de zelar

vista que os delineamentos dos termos nun-

forma a determinados conteúdos, tarefa que

pelos direitos e deveres de um órfão, além de

ca cessaram de se definir. Se no começo apa-

agora também tem passado a ser chamada de

tratar de todos as ações que lhe dizem respeito:

receram para designar um profissional e uma

“curadoria”. Não é por acaso que a mania de lis-

curador geral dos órfãos”.

atividade estrita ao campo dos museus e das

tas-sobre-qualquer-coisa é acompanhada pela

exposições de artes visuais, atualmente o

expressão “curadoria de conteúdo”.

Os mesmos dicionários de nossa língua também

que se vê é uma profusão das expressões nos

Um bom modo de se tentar entender os

mais variados setores, e não só da cultura.

caminhos e descaminhos percorridos tanto pelo

É bastante comum ouvirmos falar em curador

profissional em curadoria como pelo trabalho

de arquitetura, de moda, de design ou em cura-

curatorial é investigar as origens das palavras

Curador

doria de programação e seleção em festivais de

e os antecedentes da atividade. E, com sorte,

“Aquele que cura; que ajuda na recuperação de

teatro, cinema e literatura, mas também — e até

esboçar-se um breve panorama de contextua-

um doente”.

mesmo — em curadoria gastronômica, de festa

lização histórica, política, social e estética que

e de decoração.

convergem ao apontar o curador no sentido mesmo de cura física, remetendo ao campo da medicina:

ajude a melhor situar os contornos assumidos

A compreensão de “curadoria de arte” vai apare-

Ao mesmo tempo em que os termos se po-

pelo “curador” e pela “curadoria”, desde sua

cer apenas como um entre os diversos itens que

pularizam nas mais diversas áreas, esse maior

emergência até a crescente valorização ainda

encontramos no verbete “curador”, e somente nos

alcance parece mais confundir seus reais signi-

em curso.

dicionários que o apresentam em versões atuali-

ficados e competências. E, ademais, a difundir

zadas. O Michaelis diz o seguinte:

clichês empobrecedores. A dificuldade se torna

AS ORIGENS DOS TERMOS

ainda maior porque a proliferação das expres-

No latim, encontramos expressões como “cura-

Curador de artes

sões ainda está em curso, nomeando novas ati-

re” e “curator”, as quais, no tempo dos romanos,

Aquele que tem a incumbência de organizar, pro-

vidades e até mesmo antigas tarefas que não

eram empregadas para designar o trabalho dos

videnciar a conservação de obras de arte em mu-

eram assim chamadas. A questão que se impõe é

altos funcionários encarregados de supervisio-

seus, galerias de arte etc.

que a banalização, nos piores casos, tem levado

nar obras públicas. Aqui, já aparece o atributo

também à vulgarização da atividade curatorial.

da responsabilidade de zelar. É uma noção muito

Mas quando se refere a “curadoria”, o próprio Mi-

O que ajuda a explicar a apropriação é ba-

semelhante às que constam em nossos dicioná-

chaelis retoma os significados médico e jurídico

sicamente uma tentativa de atribuir distinção

rios de língua portuguesa, mas com uma cono-

em detrimento ao emprego no campo artístico.

simbólica a determinadas funções com o obje-

tação endereçada ao campo jurídico, referente

tivo de conferir um caráter enobrecedor à ativi-

à aquele que trata das questões do Direito em

Curadoria

dade daqueles que passam a se valer dos termos.

nome de alguém. Vejamos uma pequena compi-

1 Ato ou efeito de curar.

Afinal, pode sempre parecer mais bacana alguém

lação de exemplos de significados que encontra-

2 (JUR) Cargo, poder, função ou administração de

ser chamado de “curador de menu” em vez de

mos em diferentes dicionários:

curador; curatela.

ARTES VISUAIS

PRIMEIRO SEMESTRE

2017

45

1

2

Se prosseguirmos na aventura histórica das palavras, ainda na Idade Média, já cristianizada, encontraremos a noção de “curatour” como o sacerdote encarregado do cuidado — e cura — das almas. Ou seja, aqui a igreja atribui um papel específico do campo religioso ao que antes, com os romanos, voltava-se ao zelo do bem público. O COLECIONISMO E OS MUSEUS Os antecedentes de uma atividade curatorial como compreendemos hoje no campo da arte podem ser situados no Renascimento, quando, por volta do século 16, o hábito e a mania pelo colecionismo dão origem aos chamados “gabinetes de curiosidades[2]”. Como se sabe, são acervos que reuniam objetos zoobotânicos adquiridos nas conquistas territoriais, mas também descobertas e resgates de artefatos arqueológicos do passado e relíquias da antiguidade pagã grega, romana e de eras remotas, advindos dos intercâmbios comerciais no contato com povos distantes. Mantidos pela realeza e pela aristocracia, esses gabinetes de curiosidades, também chamados de “quartos das maravilhas”, logo demandaram um encarregado por organizar as coleções com vistas à conservação e à apresentação das peças. Aqui, ressalte-se, ainda em ambientes privados e domésticos, apontando para critérios e interesses baseados conforme um gosto de ordem pessoal. Esse ponto é importante para situar a transição ao momento seguinte, que se dá com a criação dos primeiros museus abertos ao público. Convoquemos novamente a etimologia: “museu” vem do grego “mouseion” e do latim “museum”, significando a ideia de templo das musas, as deusas da memória. Desde a antiguidade, há registros de certo pendor dos povos a guardar relíquias do passado e objetos de culto, mas será de fato com a era das grandes navegações do século 16 e a filosofia iluminista e enciclopedista a partir do século 17 que surgirão os primeiros museus como conhecemos hoje. As coleções reunidas por esses templos da razão e do esclarecimento, voltados a temas como história natural, arqueologia e antropolo-

ARTES VISUAIS

PRIMEIRO SEMESTRE

2017

46

3

gia, farão com que surja a necessidade de um

nos até a metade do século 20, inclusive no Brasil,

profissional responsável por conservar, orga-

prevalecendo sobre “comisario” (espanhol), “cura-

nizar e apresentar artefatos e documentos. E

tore” (italiano), “Ausstellungsmacher”/“Kurator”

também a comandar a ampliação dos acervos,

(alemão) e até mesmo “curateur” (francês) e

propiciando a elaboração de metodologias que

“curator”/“curatorship” (inglês).

os abordem enquanto campo de conhecimen-

É importante ressaltar que o binômio cura-

to. Essa tarefa de seleção, estudo, salvaguarda

dor/curadoria como se emprega hoje surge da

e comunicação das coleções no ambiente dos

confluência de duas expressões que dizem res-

museus designará uma atividade que oferece os

peito a dois papéis distintos, ainda que comple-

princípios para as pioneiras práticas curatoriais,

mentares: o responsável pelo acervo e o respon-

neste momento ainda mais próximas ao papel

sável pela exposição. E, em ambos os casos, dando

do conservador de acervo.

conta de dois profissionais que se tornam espe-

Os museus de arte surgirão posteriormente,

cialistas pelo saber notório em suas áreas, o que

trazendo as questões que envolvem as coleções

também convoca outra expressão que se difundiu

dos museus científicos. Também terão a mesma

a partir da França, o “connaisseur”, aquele que é

função: educar e ilustrar o público. Um dos prin-

conhecedor, que tem a qualidade de perito.

cipais marcos desse período é o Museu do Louvre, em Paris, institucionalizado em 1793 com a ta-

O ARTISTA COMO CURADOR

refa de exibir publicamente as coleções artísticas

As expressões permanecerão restritas ao ambien-

reunidas pela família real e pela aristocracia. Com

te museológico por algumas décadas, mesmo que

o desenvolvimento da História da Arte enquanto

se verifiquem eventos históricos que bem podem

disciplina, a arte do passado ganha um tratamen-

ser entendidos como antecedentes da curadoria,

to científico que a explica a partir de um esque-

a exemplo de exposições comandadas por artis-

ma temporal fundamentado no desenvolvimento

tas. Basta lembrarmos de Gustave Courbet, quan-

de estilos e gêneros (vem daí a cronologia que

do, em 1855, organizou o Pavilhão do Realismo

começa na arte da antiguidade, passa pela arte

promovendo uma histórica exposição individual

medieval e renascentista e segue com os conhe-

ao mostrar seus trabalhos fora do Salão de Paris.

cidos “ismos” da era moderna). E a compreensão,

Outro momento se deu com o Salão dos Recusa-

o estudo e a difusão do conhecimento artístico

dos (1863), o mesmo no qual a obra Almoço na

enquanto ciência serão tarefa de especialistas em

Relva, de Édouard Manet, causou tremendo es-

por inteferências no ambiente. Na primeira de-

História da Arte. Nesse movimento, o Louvre ofi-

tranhamento e polêmica. E também com a mos-

las, houve, por exemplo, apresentação de perfor-

cializa, em 1826, o que seria o primeiro cargo de

tra independente do Salão em que Claude Monet

mance e uma intervenção no teto com sacos de

curador em museu de arte, mas ainda voltado ao

apresentou Impressão, Nascer do Sol (1872), junto

carvão. Já a segunda se tornou célebre pelo ema-

cuidado das coleções.

a pintores como Pierre-Auguste Renoir, Camille

ranhado de fios brancos que praticamente invia-

Aqui, é válido novamente se ater às palavras.

Pissarro, Paul Cézanne e Edgar Degas, grupo este

bilizavam a circulação do público pelo ambiente,

As expressões empregadas em francês nesse mo-

que após a exposição seria chamado de impres-

ao mesmo tempo em que obliteravam a visão das

mento são “conservateur de musée” e “conserva-

sionista.

obras. É preciso lembrar que até então era ha-

teur du patrimonie”, que dizem respeito ao con-

Algumas décadas mais tarde, Marcel Du-

bitual os quadros de pintura estarem presos à

servador de museu e de patrimônio. É também

champ faria às vezes de curador ao organizar duas

parede e as esculturas serem apresentadas em

no ambiente museológico da França que logo

mostras hoje emblemáticas e que também forne-

pedestais. Outro marco da ideia de artista-como-

surgirá o antecedente do curador de exposições

cem antecedentes para a atividade curatorial: a

-curador, no caso de si mesmo, é a exposição em

como entendemos hoje: o “commissaire de expo-

“Exposição internacional do surrealismo” (1938 )[3],

que Yves Klein apresentou O Vazio (1958) em Pa-

sitions”, encarregado da exposição. Tanto é que a

em Paris, e a mostra “Primeiros documentos do

ris. O artista esvaziou a galeria de qualquer obra,

expressão francesa será o nome dado internacio-

surrealismo” (1942), em Nova York. Em ambas,

mantendo apenas uma cortina que, ao ser aberta

nalmente ao organizador de exposições pelo me-

Duchamp foi o responsável pela montagem e

pelo público, revelava a ousadia logo na entrada.

ARTES VISUAIS

PRIMEIRO SEMESTRE

2017

47

4

A obra era a própria exposição, ou a não exposição.

guagens, materiais, processos criativos e até mes-

maior parte das grandes mostras pelo mundo se

E o gesto envolvendo um modo de apresentação

mo a desmaterialização do objeto artístico. Eram

organizavam em torno de critérios formais, estilís-

conceitual aponta para aspectos que permeiam a

artistas que transitavam nos desdobramentos do

ticos ou cronológicos. Com essas duas exposições,

ação curatorial.

minimalismo e dos conceitualismos, todos hoje

Szeemann não só lançou premissas de autoria e

fundamentais para a História da Arte contempo-

viés conceitual/temático para grandes exposições

O CURADOR INDEPENDENTE

rânea, como Carl Andre, Giovanni Anselmo, Joseph

no campo da atividade e do pensamento curato-

É com a arte contemporânea que irá se difundir o

Beuys, Walter de Maria, Hans Haacke, Michael Hei-

rial, como também se projetou ao posto de mais

termo “curador independente” que permanece nos

zer, Joseph Kosuth, Sol LeWitt, Richard Long, Bruce

importante curador independente do sistema ar-

dias de hoje. Atribui-se a expressão às experiências

Nauman, Claes Oldenburg, Richard Serra e Robert

tístico internacional de então.

do suíço Harald Szeemann, notadamente por duas

Smithson. Três anos mais tarde, Szeemann se tor-

exposições suas que são consideradas marcos da

naria célebre ao assinar a curadoria da Documenta

atividade e do pensamento curatorial. Em 1969,

5 de Kassel[4] (1972), que, por ser configurada como

na Kunsthalle de Berna, Szeemann foi responsável

um evento atrelado a uma proposição lançada pelo

pela emblemática “When attitudes become form”,

curador aos artistas, lançou as bases sobre as quais

mostra que se notabilizou por trazer a público

grandes mostras e eventos artísticos se inspirariam

tendências artísticas que enfatizavam novas lin-

a partir dali, a exemplo das bienais. Até então, a

Primeiros documentos do surrealismo, 1942 Marcel Duchamp O vazio, 1959 Yves Klein When attitudes become form, 1969 Szeemann

ARTES VISUAIS

PRIMEIRO SEMESTRE

2017

48

5

Szeemann ainda delineou a atividade de um profissional que não está ligado ou trabalhando diretamente com uma coleção de museu. Na condição de curador independente, passou a frequentar os ateliês de artistas e, em vez de privilegiar obras já prontas, a estimular a proposição de novos trabalhos, ainda inexistentes. É preciso ressaltar que essa passagem acompanha também as mudanças operadas pelas próprias práticas dos artistas no campo da produção contemporânea. Dito de outro modo, novos entendimentos artísticos, que desafiavam convenções de exposição e apresentação da arte, são acompanhados por uma nova compreensão da atividade curatorial. Ao mesmo tempo, os

sentando-se como um curador que dava espaço e

cem antecedentes para se pensar sobre o papel

museus passavam a valorizar o modelo de exposi-

estímulo para que os artistas criassem novas pro-

do curador e a atividade curatorial em ambientes

ção temporária, dentro de estratégias de comuni-

posições, intervenções, situações e performances,

institucionais.

cação entre instituição e público. E o responsável

todas elas efêmeras. “Do corpo à terra” ficaria mar-

A Bienal de SP seguiria pautando a discus-

por elas, muitas vezes um curador independente

cada por duas das mais contundentes manifesta-

são sobre o papel do curador no Brasil, agora com

convidado, começou a assumir importância fun-

ções assumidamente políticas por parte dos artis-

alta carga polêmica. Em 1985, a crítica Sheila

damental nesses processos de mediação.

tas visuais em tempos de ditadura militar no Brasil:

Leirner assumiu a curadoria e realizou uma edi-

Mesmo com o pioneirismo, o saldo das ini-

a intervenção Trouxas Ensanguentadas, de Artur

ção que ficou conhecida como a “Grande tela”[5].

ciativas de Szeemann não foi tão harmônico, pois

Barrio, e a ação Tiradentes: totem-monumento ao

O motivo foi o modo de apresentar um extenso

muitos acusaram-no e a seus seguidores dali em

preso político, de Cildo Meireles. Morais também

conjunto de pinturas ao longo de três corredores

diante de serem impositivos, por demais autorais,

sinalizou o crítico que toma para si o engajamen-

de cem metros de extensão, praticamente cola-

a ponto de rivalizarem com as obras e os artistas.

to junto aos artistas e passa para a ação: no texto

das lado a lado, embaralhando noções de autoria,

Questões que estimulam inflamados debates até

mimeografado e distribuído no evento, ele lançou

procedência e geração. Foi um gesto de curadoria

hoje sobre o poder e a autoridade do curador.

a expressão “arte de guerrilha”.

radical enquanto crítica, pois o argumento cura-

No Brasil, o termo curadoria se difundiu de

torial se articulava a serviço de um comentário

CURADORIA NO BRASIL

fato somente a partir dos anos 1980, quando

sobre a profusão, à época, de uma pintura de viés

No mesmo período em que Szeemann apontava

Walter Zanini assumiu as edições da Bienal de São

expressionista que, na visão da curadora, seguia

para novos entendimentos sobre curadoria, no

Paulo de 1981 e 83 na condição de curador-geral.

o rastro internacional da transvanguarda italiana

Brasil também surgiam experiências pioneiras, ain-

Até então, o responsável era chamado de diretor

e do neoexpressionismo alemão com intenções e

da que seus responsáveis não fossem chamados de

artístico, quando não era o próprio presidente

consequências mercadológicas. Muitos artistas

curadores. Foi o caso de Frederico Morais em suas

assessorado por especialistas e jurados. Como

participantes protestaram em desagrado, apon-

ações no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de

curador da Bienal, Zanini desmontou o esquema

tando o caráter impositivo da curadoria, e alguns

Janeiro e quando organizou, em Belo Horizonte, a

de apresentação das obras em espaços separados

chegaram a pedir a retirada de suas obras. A dis-

mostra “Do corpo à terra” (1970). Na condição de

conforme as representações de cada país, pas-

cussão sobre o poder dos curadores frente aos

responsável pelo evento expositivo, convidou di-

sando a agrupá-las pelo critério conceitual/te-

artistas avançaria nas décadas seguintes, virando

versos artistas a apresentarem trabalhos no espaço

mático de “analogia de linguagens”. A trajetória

o milênio.

público. Como crítico e agitador cultural, Morais já

pregressa do professor, crítico e historiador como

Um aspecto importante colocado pela Bie-

havia organizado diversas mostras e escrito textos

diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC)

nal da “Grande tela” foi a relação entre discurso

que são manifestos das vanguardas brasileiras dos

da Universidade de São Paulo (USP) entre 1963 e

crítico, projeto curatorial e expografia. Ou seja,

anos 1960 e de uma virada da arte contemporânea

78, quando estimulou e deu espaço à pesquisa de

de uma argumentação crítico-teórica articulada

no Brasil. Mas foi em “Do corpo à terra” que ele

novas práticas e linguagens artísticas e a reno-

ao manejo de obras e ao modo como são apre-

radicalizou os modelos expositivos no país, apre-

vados modelos de apresentação, também ofere-

sentadas no espaço de exposição. Essa tarefa

ARTES VISUAIS

PRIMEIRO SEMESTRE

2017

49

6

7

Trouxas ensanguentadas[6], Artur Barrio

Álvaro Siza, projeto pelo qual ganhou o Leão de

ículos de comunicação ou para a universidade ou

Tiradentes: totem-monumento ao preso Político[7], Cildo Meireles

Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza, passaram

para as instituições artísticas. Neste último caso,

a ser convidados curadores externos à instituição

encontrando espaço nas curadorias.

para propor mostras sobre Iberê Camargo e outros

Ao mesmo tempo, há uma complexificação

artistas. Começaram a atuar nas duas instituições

do pensamento curatorial que leva a atividade

curadores vindos de fora, destacadamente de São

ao divã. Talvez os melhores exemplos de projetos

Paulo e Rio de Janeiro, logo passando a nomes do

curatoriais hoje sejam os que colocam em discus-

cenário internacional. Houve momentos em que

são os seus próprios modelos e as circunstâncias

os mesmos curadores transitaram entre a Bienal

em que são realizados, preferindo propor a incer-

do Mercosul e a Fundação Iberê Camargo, como

teza da abertura de uma experiência em lugar do

foram os casos de Gabriel Pérez-Barreiro, José

fechamento em torno da defesa de uma tese. São

Roca e Luis Pérez-Oramas. Em relação à atividade

muitos os exemplos, e quase todos passam pelo

curatorial do Rio Grande do Sul, também deve ser

entendimento de que o papel de um curador e a

intelectual e criativa, que alia aspectos técnicos

destacada a atuação do Santander Cultural com

missão de um projeto curatorial estão para além

e simbólicos, acompanha os desdobramentos da

seu programa expositivo.

de uma exposição bem acabada acompanhada de

A circulação de curadores internacionais

texto crítico. Nesse sentido, têm surgido iniciati-

Seria também na Bienal de SP que se irradia-

aponta para a centralidade que a figura passa a

vas que se aliam à chamada virada educacional e

ria a vitalidade de um projeto curatorial que parte

exercer no sistema artístico globalizado. Passando

social da arte, priorizando projetos interdiscipli-

de uma concepção que extrapola as narrativas es-

de um projeto a outro, entre diferentes institui-

nares que se desenvolvem por meio de progra-

tabelecidas da História da Arte como modo pos-

ções, muitos dos profissionais se transformam em

mas e plataformas. Um marco foi a 6ª Bienal do

sível de oferecer uma diferenciada leitura sobre a

grife por conta da influência e da rede de contatos

Mercosul (2007).

arte. Foi o caso da edição de 1998, em que Paulo

que desenvolvem, emprestando assinatura, prestí-

Para ser curador, não é preciso formação,

Herkenhoff se valeu da noção de antropofagia, de

gio e legitimação às iniciativas a que se associam

mas é certamente necessário que se tenha conhe-

Oswald de Andrade, como mote conceitual para se

temporariamente. Um dos maiores exemplos de

cimentos em teoria, crítica, História da Arte, mu-

pensar a condição e a produção artística a partir de

um curador que se tornou superstar é o suíço Hans

seologia, expografia e gestão. E também aptidões

uma matriz genuinamente brasileira, desatrelada

Ulrich Obrist, dado o alto poder de circulação e in-

para liderar e trabalhar em equipe em contextos

de modismos e tendências internacionais. E aqui

fluência que detém.

institucionais. Mas, acima de tudo, é preciso co-

atividade curatorial no mundo todo.

deve ser ressaltada a potencialidade que a curado-

Há ainda que se alertar para os perigos das

nhecer e entender a arte como esfera do sensível

ria reserva enquanto pesquisa e atitude reflexiva

exposições curatoriais do tipo blockbuster, que

com repercussão e implicações reais. Trata-se do

que questiona cânones e estimula um renovado

mais parecem ter como compromisso índices de

entendimento de que o curador deve se posicionar

debate e uma nova experiência com a arte. Afinal,

audiências que fornecem dados que atendem a

criticamente na contemporaneidade, convocando

o curador enquanto crítico lida diretamente junto

estratégias de marketing. Outro aspecto que muito

a curadoria como um dispositivo que colabora a se

às obras com as quais articula um discurso que se

se discute é que o chamado curador independente

pensar e intervir na dimensão complexa com que

dá não só no texto, mas também no espaço.

não é tão independente assim, pois está a serviço

a realidade se apresenta, produzindo novas experi-

de um projeto e uma instituição atendendo a fi-

ências e formas de encontro, afeto e conhecimento

O CURADOR E O SISTEMA DA ARTE

nalidades e intenções. Uma vez que está a “serviço

— tanto do meio da arte quanto do campo social-

No Rio Grande do Sul, a figura do curador começou

de e para algo”, seria melhor chamá-lo de “curador

-político. Em lugar dos modelos e das convicções,

a ser de fato difundida pela mesma época, com a

freelancer”. Também por essa questão são feitas di-

apostar nas hipóteses e nos possíveis, não sem o

primeira edição da Bienal do Mercosul (1997), que

ferenciações entre as atividades do curador e a do

risco de se adentrar no desconhecido. Talvez esse

destacou Frederico Morais como curador. As edi-

crítico, pois este último estaria “mais distanciado”

seja um papel conscientemente crítico que o cura-

ções seguintes teriam outros responsáveis à frente,

das instituições e “menos comprometido” com suas

dor possa tomar para si diante da atividade curato-

mas sempre nomeados como curadores. A Funda-

estratégias. As aspas aqui, contudo, são necessárias,

rial. E também um modo de oferecer uma resposta

ção Iberê Camargo também reforçou o investi-

dadas as condições de elaboração e circulação do

à banalização e ao empobrecimento em curso dos

mento na atividade e no profissional. Com a aber-

discurso crítico na contemporaneidade. Ademais, a

termos “curador” e “curadoria”.

tura em 2008 do prédio assinado pelo português

atividade crítica há tempos vem migrando dos ve-

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.