Camões e a História da Roma Antiga

June 5, 2017 | Autor: N. Simões Rodrigues | Categoria: Reception Studies, Camões
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Descrição do Produto

RAÍZES GRECO-LATINAS DA CULTURA PORTUGUESA ACTAS DO I CONGRESSO DA APEC

COIMBRA 1999

Ficha Técnica:

I CONGRESSO DA APEC. Raízes Greco-Latinas da Cultura Portuguesa Capa: Medeia de Séneca, representada em Segesta Arranjo de Vítor Torres Fotografia de Francisco de Oliveira © Associação Portuguesa de Estudos Clássicos - APEC Instituto de Estudos Clássicos 3000-447 COIMBRA - PORTUGAL Impressão: Imprensa de Coimbra, Lda Tiragem: 1200 exemplares Depósito Legal 135842/99 ISBN 972-98142-0-1 Publicação subsidiada por: Fundação Calouste Gulbenkian· Fundação Eng. António de Almeida

CAMÕES E A HISTÓRIA DA ROMA ANTIGA NUNO SIMÕES RODRIGUES Universidade de Lisboa

Dado que a temática desta reumao é a raíz greco-Iatina da cultura portuguesa, e como a História de Roma tem sido o tema que mais tem ocupado a nossa investigação, voltámos ao autor de Os Lusíadas para analisar o modo como trata os factos históricos romanos. Há que dizer, porém, que este texto não tem a pretensão da novidade. Preocupa-se antes com uma sistematização de ideias, temas e reflexões, que foram já de algum modo abordadas, e que simplesmente tentaremos desenvolver1. Borges de Macedo referiu, num estudo que toma Os Lusíadas fundamentalmente como uma obra de pensamento e de crítica, que o poema é uma narrativa explicativa da história de Portugal, uma interpretação política e civil do português, de conteúdo didáctico, que pretende provar que os Portugueses da Índia são os mesmos que fizeram do Portugal metropolitano uma nação independente2 . Dessa forma, ass.ume também o poema o seu carácter celebrativo. Seguindo essa linha interpretativa, não é de estranhar que os Portugueses sejam frequentemente comparados aos povos da Antiguidade, imagética IlÚtiCOapoteótica do Renascimento. Essa era uma forma de, pedagogicamente, exaltar a nação. Camões compara Portugal aos que são considerados os maiores, os modelos, os referentes, numa palavra, os clássicos. E entre esses povos figuram evidentemente os Romanos, os mais capazes, especialmente no dOIlÚnio bélico-político, os construtores da grande referência política europeia de âmbito universal: o ImpéJ O tema foi já abordado por alguns autores, entre os quais destacamos Kurt Reichenberger, «Vergleich und Überbietung. Strukturprinzipen im Epos des Camões», Germanisch-Romanische Monatsschrift, X, I, 1960, pp. 1-12 e Maria Helena da Rocha Pereira, «Presenças da Antiguidade Clássica em Os Lusíadas» in Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa, pp. 109-131 . 2 Jorge Borges de Macedo, «Os Lusíadas» e a História, pp. 11-12, 98, 113, 146.

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rio. Sendo Roma um clímax civilizacional, a comparação de Portugal e dos Portugueses com ela só os enobrece. Nobreza que se acentua quando a comparação permite a superioridade portuguesa como conclusão final. E são várias as vezes em que Camões não hesita em valorizar o seu povo, ou por o fazer colectivamente igualou superior aos Romanos, ou por escolher um herói português e o comparar igualou superlativamente a um qualquer herói romano. Em diversas passagens camonianas encontramos essa 'tÉXV1l 3 , em que o povo romano, ou Roma por si própria, é tomado como um todo e comparado a situações vividas pelo povo português ou por Portugal4 . Analisemos os textos. A escolha de exemplos individualizados, retirados da história de Roma, para ilustrar quer a epopeia, quer a líricas, destaca-se da situação anterior pela personalização. Abundam os nomes ligados à história política de Roma, apesar de esporadicamente lá encontrarmos referências a figuras que fizeram história no campo da cultura, como Virgílio (Lus V, 98 ou V, 94), Ovídio (Elg III) e Plínio (Lus V, 50). Podemos sistematizar a selecção de figuras romanas a partir de três planos: as que se relacionam com o período republicano, as que se relacionam com o período imperial e as que são citadas como exemplo histórico, mas que na verdade fazem parte das narrativas das origens e da monarquia de Roma, por vezes lendárias, e em que muitas personagens e factos se confundem entre o mítico e o real. Já Tito Lívio e Plutarco mostravam estar conscientes do carácter lendário e poético dessas narrativas e suas personagens 6 . Todavia, a cultura latina incluíu-as nas suas histórias, sem «as refutar ou confirmar». Do mesmo modo, Camões utilizou-as como parte integrante desse património histórico-cultural. Aliás, tal como o 3 K. Reichenberger, «Der Abschied der Lusiaden. Ein Beitrag zlIr dichterischen Gestaltung der Hõhepunkte im Epos des Camões», Aufsatze zur portugiesischen Kulturgeschichte, I, 1960, p. 81. 4 De que são exemplos, LlIs I, 24; I, 26; II, 44; III, 21 , 82, 95 ; IV, 7; VI, 30, 43, 48; VIII, II ; IX, 12; X, 26; Red 33; Oit II. Para a epopeia e para a lírica camoniana, usamos as edições de A. J. Costa Pimpão. O próprio território português é frequentemente chamado Lusitânia, o nome da província administrativa correspondente a parte do território nacional, durante grande parte da história de Roma, e os portugueses associados aos Lusitanos. 5 O teatro camoniano, rico em referências mítico-culturais da Antiguidade, de que é exemplo máximo o mito de Antitrião, base da comédia de Plauto e da de Camões, é omisso em referências históricas, no sentido da análise que empreendemos. As cartas contêm apenas duas referências, que focaremos adiante. 6 Tito Lívio, Prefácio, 6-10. Plutarco chama mesmo a alguns episódios fábulas ridículas. Plutarco, Numa Pompílio 15, 11.

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historiador romano, usou-as como «modelos a imitar para uso próprio e do seu país»7 . Incluem-se nesta última categoria as referências a Rómulo e Remo. Figuras meio míticas, meio históricas 8 , facto de que Camões mostra estar consciente, ao escrever Rómulo, Baco e outros que alcançaram/ nomes de semi-deuses soberanos,! enquanto pelo mundo exercitaram! altos feitos e quási mais que humanos (Oit II). Comentário inserido no elogio do vice-rei da Índia, D. Constantino de Bragança. Os dois gémeos são também citados na epopeia, a propósito dos filhos de D. Inês de Castro, repudiados pelo avô, D. Afonso IV: Com pequenas crianças viu a gente! Terem tão piadoso sentimento/ Como co a mãe de Nino já mostraram,! E cos irmãos que Roma edificaram (Lus III, 126). A falta de piedade, que nem aos animais da Antiguidade faltou, demonstrada pela comparação é claramente uma crítica ao despotismo do rei. Numa Pompílio surge em segundo lugar na lista dos sete reis de Roma e Camões refere-se-Ihe na epopeia, usando-o como comparação com D. Nuno Álvares Pereira (Lus VIII, 31). A cena é a batalha de Vai verde, mencionada nos estandartes. A personagem é o Condestável, que aguarda as tropas castelhanas. O poeta recupera uma referência feita por Plutarco na sua biografia de Numa Pompílio, em que o rei, esperando uma invasão inimiga, deposita toda a sua confiança nas divindades, dizendo que a elas sacrificava piedosamente9 : «Pois eu (responde) estou sacrificando.» (Lus VIII, 31). Na lírica, a evocação permite fazer o panegírico de D. João III. Referindo-se a uma sepultura, o poeta joga em diálogo e pergunta pela identidade do jazente. Depois de uma lista em que se mencionam qualidades e se fazem naturais associações onomásticas, dignas de uma personalidade egrégia, surge o nome do rei romano que de imediato é substituído pelo monarca português, - E Numa? - Numa, não; mas é Joane (Son 160). No canto III, Camões refere-se a Sexto Tarquínio, filho do último rei etrusco de Roma (Lus III, 140). Este é também um episódio que se liga ao mundo da lenda, sintomática de pertinentes questões sócio-políticas, relacionadas com a passagem da

Tito Lívio, Prefácio, 6-10. Lívio I, 4-5; Plutarco, Rómulo 4-6; 8. 9 Plutarco, Numa Pompílio 15, 12. A lírica camoniana tem também uma referência a este rei romano (Éc\ VII), porém, salienta-se a vertente mitológica, pois refere-se à metamorfose da ninfa Egéria em fonte após a morte do rei, seu amado. Plutarco menciona a ninfa, Numa Pompílio 4; 8; 13; 15 , mas é em Ovídio que se encontra o mito da metamorfose, Metamoifoses XV, 482. 7

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monarquia à república em Roma lO . A referência surge, n' Os Lusíadas, no contexto da história amorosa protagonizada por D. Fernando e Leonor Teles. O rei português, por ter cobiçado a então esposa de João Lourenço da Cunha, é comparado a várias figuras da Antiguidade, como Páris, David, Siquém e Tarquínio, que cobiçaram mulher alheia e que acabaram por provocar, sempre, desgraças. Associa-se o final da dinastia afonsina ao final da monarquia romana. Ambas as situações acabaram por inaugurar novos tempos. Das alusões à história da república romana, destacam-se facilmente os episódios referentes aos heróis dos primeiros períodos, também eles lendários, dos referentes às grandes figuras históricas do período clássico ou tardo-republicano, protagonistas das guerras civis e das guerras púnicas. Entre os primeiros, e a propósito do martírio do Infante D. Fernando, figura Marco Cúrcio (Lus IV, 53). Protagonista de uma lenda republicana, Cúrcio aceitou oferecer-se voluntariamente pelos companheiros e pelo povo romano, sacrificando-se ao abismo infernal que se abrira no Foro ll . Paralelo adequado ao sacrifício do infante português. Outra figura desses tempos, citada por Camões, é Horácio Cocles. Herói das primeiras guerras de Roma contra os povos circundantes, é evocado pelo poeta através das profecias feitas por Tétis a Vasco da Gama (Lus X, 21). Entre os heróis portugueses aí referidos, destaca-se a figura de Duarte Pacheco Pereira, capitão de Afonso de Albuquerque, enviado à Índia em 1503. Este é comparado em forma de prolepse a Públio Horácio Cocles, cuja coragem evitou a invasão de Roma por Porsena l2 . Coriolano, outras das grandes figuras lendárias de Roma, celebrizada pela historiografia de Plutarco e pela tragédia de Shakespeare, é também mencionado (Lus IV, 33)13. A referência não é das mais positivas, pois o herói romano alinha com outras personagens consideradas traidoras à pátria romana, Sertório e Catilina. Trata-se de uma comparação que serve de juízo dos Portugueses que em 1383-1385, e mais particularmente na batalha de Aljubarrota, lutaram ao lado dos Castelhanos. O episódio de Coriolano, conhecido pela sua aliança com os V olscos contra Roma, servia a Camões de exemplo perfeito para o que pretendia expressar. O decênviro Ápio Cláudio, conhecido na cultura romana por ter tentado violar

Plutarco, Publícola 1; 12; Valério Máximo VI, I, I. 11 Tito Lívio, VII, 6; Plutarco, Rómulo 18; Suetónio, Augusto LVII. 12Tito Lívio II, lO; Plutarco, Publícola 16. 13 Tito Lívio II, 33-35; Plutarco, Coriolano; Eutrópio I, 15. 10

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Virgínia 14, é associado a Tarquínio, como outro referente da cobiça de D. Fernando (Lus III, 140). Outro exemplo engenhosamente proposto como comparação com o caso português. Os versos Não fe z o Cônsul tanto que cercado/ Foi nas Forcas Caudinas, de ignorante,! Quando a passar por baxo foi forçado/ Do Samnítico jugo triunfante são uma referência a Espúrio Postúmio Albino. A passagem insere-se na segunda guerra sarnnita, marcada pela derrota de Roma, em 321 a. C.IS A evocação deste episódio pouco heróico, em que o exército romano foi humilhado, é feita por Paulo da Gama ao Catual. Através dela, o poeta exalta a dignidade demonstrada por Egas Moniz, quando se apresentou, juntamente com a família, envergando as vestes dos condenados, perante Afonso VII de Leão. Os Décios são também citados a propósito do martírio do Infante Santo (Lus IV, 53). Tal como Cúrcio ou Régulo, estas personagens pertencem a um património da cultura romana que as identifica como heróis que deram a própria vida em sacrifício de uma causa patriótica. Públio Décio Mus ofereceu a sua vida aos deuses infernais em troca da vitória na batalha de Véseris, e o episódio ter-se-ía repetido com o seu filho, em batalha contra os Gauleses em Sentino, na Úmbria, em 295 a. C.; e com o seu neto, na batalha contra Pirro, em Ásculo, em 279 a. c. 16 O tema do sacrifício voluntário anda associado aos Décios Mus, o que levou o poeta a referir que Nem os Décios leais,fizeram tanto, como o infante de Avis. Ao período tardo-republicano pertencem outras referências que encontramos ao longo d' Os Lusíadas. As guerras púnicas, por exemplo, facto histórico que marca a grande viragem política de Roma, em que esta passa a assumir um protagonismo indubitável na História, são assinaladas por diversas vezes. A lírica evoca o conflito subtilmente 17, mas n' Os Lusíadas, quando Vasco da Gama inicia o relato do reinado de D. João I, e começa a descrever a batalha de Aljubarrota, não hesita em comparar o campo de batalha ao de Canúsio, onde, durante a segunda guerra púnica, Públio Cornélio Cipião, então tribuno com menos de vinte anos, encorajou os soldados de Roma a não sucumbirem à ofensiva militar infligida pelas tropas cartaginesas, mas a continuar pela sobrevivência de Roma

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Lívio III, 44-58 ; Valério Máximo VI, I, 2; Eutrópio I, 18. Lívio IX, 1-10; Valério Máximo VII, II, 17; Eutrópio II, 9. 16 Tito Lívio VIII, 9-\0; X, 4-5. 17 Son 150: se a Roma co ele aniquilaste, / nem por isso Cartago está contente. 15 Tito

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(Lus IV, 20)18 . Camões dedica uma estância completa à comparação que lhe permite aproximar a Apúlia de Aljubarrota, e a figura do jovem Cipião da do então também jovem Nuno Álvares Pereira, considerado o grande mentor do sucesso de 1385. O Condestável volta a ser comparado a Cipião no canto VIII, «Se quem com tanto esforço em Deus se atrevei Ouvir quiseres como se nomeia,! "Português Cipião" chamar-se deve (Lus VIII, 32). A situação em causa é de novo o conflito de Aljubarrota, agora comparado a Zama. Tal como Cipião, que não vacilou, nem quando a batalha parecia perdida l9 , também Nuno Álvares Pereira persistiu, acabando por alcançar a vitória. Como, aliás, aconteceu com o general romano. Cipião é também lembrado no canto seguinte, embora num sentido mais abrangente: Dá a terra Lusitana Cip iões (Lus V, 95). Na verdade, esta alusão surge lado a lado com as de outros líderes da Antiguidade Clássica: César, Alexandre, Augusto. O plural associado a cada um dos nomes é, evidentemente, uma forma retórica de o poeta aproximar heróis portugueses daquelas grandes figuras da história militar, pois por Césares entendemos o Júlio; por Alexandres entendemos o Macedónio; e por Augustos entendemos o Octaviano. Todavia, por Cip iões podemos entender mais que um, dado que essa foi uma família prolífica em heróis militares: Públio Cornélio Cipião, o já mencionado Africano e vencedor da batalha de Zama em 202 a. C., e Públio Cornélio Cipião Emiliano, o conquistador da Macedónia em 168 a. c., e de Cartago em 146 a. C., por exemplo. A lírica camoniana regista também menções a esta família de generais. Os Cip iões a Roma engrandeceram (Son 161), diz o poeta num soneto supostamente dedicado ao duque de Bragança, D. Teodósio, representante de uma família que já teria levado Portugal a grandes glórias, como as que os Cipiões deram a Roma. Na ode VII, é a vez de D. Manuel de Portugal ser comparado aos grandes da Antiguidade. Entre eles, figura Cipião. O Africano é também uma das duas únicas personagens romanas assinaladas nas cartas de Luís de Camões. Na carta que escreveu da Índia, o poeta refere que um amigo que o acompanhava faleceu durante a viagem, e que as últimas palavras por ele proferidas teriam sido Ingrata patria, non possidebis ossa mea, frase que atribui a Cornélio Cipião (Car II, 2-3). Em Tito Lívio lemos: morientem rure eo ipso loco sepeliri se iussisse ferunt monu18 Tito Lívio, XXII, 53; Plutarco, Fábio Máximo 2-17; 21-23 ; Marcelo 9; 25-26; Valério Máximo VI, VI, I ; VII, II, 16; Eutrópio III, 10. 19 Tito Lívio XXX, 31-35; Valério Máximo VIII, XV , I.

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mentumque ibi aedificari, ne funus sibi in ingrata patria fieret 20 . O latim introduzido na carta é a utilização de um discurso directo que na verdade não consta no historiador romano. O que sabemos por Tito Lívio acerca dos sentimentos de Cipião para com Roma é através de uma narração indirecta, pelo que ou Camões leu as palavras do general numa outra fonte, ou o poeta simplesmente adaptou de uma forma realista, e daí o uso da frase latina, a ideia expressa por Lívio. É a propósito de outra batalha medieval portuguesa, a do Salado, que encontramos ainda uma referência às guerras púnicas. Diz Camões que Nem o Peno, asperíssimo contrário/ Do Romano poder, de nascimento,! Quando tantos matou da ilustre Roma (Lus III, 116). O Peno a quem o poeta se refere é Aníbal, general púnico, herói da segunda guerra púnica. Apesar de ser uma figura não romana, a sua «fama histórica» advém-lhe pela relação com Roma, e pela participação em factos decisivos da história, quer cartaginesa, quer romana. É, portanto, de toda a justiça, que o incluamos nesta análise, pois foi também, decerto, sob essa perspectiva que suscitou reflexões a Camões 21 . Foi Aníbal quem liderou o exército cartaginês, vitorioso em Canúsio22 , e a sua sugestão surge no contexto da descrição da batalha que opôs D. Afonso N ao rei de Fez, em 1340. A vitória esmagadora do rei cristão é celebrada no poema com a comparação ao massacre de Canúsio provocado por Aníbal em 216 .a.C., ao mesmo tempo que se aproveita a diferença étnica entre Romanos e Cartagineses, para de algum modo equiparar à diferença religiosa entre cristãos e mouros, intervenientes no conflito. Aníbal volta a ser lembrado alguns cantos mais adiante, a propósito da exaltação feita por Paulo da Gama (Lus VII, 71). O sentido do verso infere-se a partir da identificação das personagens. O Aníbal referido é o general cartaginês; Marcelo é Marco Cláudio Marcelo, cônsul em 222 a. C., o vencedor de Aníbal em Nola em 216 a. C., e o vitorioso de Siracusa em 211 a. C.23 A expressão camoniana é de clara retórica, que 20 Tito

Lívio XXXVIII, 53. A edição das cartas usada é a de Hernâni Cidade. Numa perspectiva lusitanista, seria natural referir os heroísmos púnicos, associando-os a heroísmos portugueses, pois «o inimigo do Romano era o natural amigo do Lusitano», como diz Rosado Fernandes, a propósito do tratamento de Aníbal e dos Cartagineses por André de Resende, em R. M. Rosado Fernandes, «Introdução» iI! André de Resende, As Antiguidades da Lusitânia, p. 25 . Todavia, essa perspectiva não é a predominante, como vemos pelos textos camonianos. 22 Tito Lívio XXII, 41-XLIV, 6; Plutarco, Fábio Máximo 2-3; 6-17. 32 Tito Lívio XXIII, 15-17; XXVII, 42; Plutarco, Marcelo 10-12; Eutrópio III, 12. 21

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pretende exaltar a coragem e a bravura portuguesa no Oriente. Pois se Aníbal foi um bravo que só veio a ser derrotado por Marcelo, a bravura dos Portugueses excede a do próprio general púnico, pois Pera estes Anibáis nenhum Marcelo. As capacidades militares de Aníbal são ainda elogiadas quase no final da epopeia, quando o poeta diz que De Formião, filósofo elegante,! Vereis como Aníbal escarnecia,! Quando das artes bélicas, diante! Dele, com larga voz tratava e lia (Lus X, 153). Referência feita no contexto da série de exortações finais d' Os Lusíadas. É o passado dos Portugueses que testemunha a sua qualificação como líderes de capacidade provada no Oriente, pois para conseguirem a independência do seu território, diversas vezes tiveram de mostrar o que valiam 24 . Assim se compreende esta menção a Aníbal, que, num episódio narrado por Cícero 25 , troça de Formião de Éfeso. O filósofo peripatético teria apresentado ao general uma série de teses sobre estratégia militar, o que teria feito rir Aníbal, pois só a prática dá o conhecimento. Trata-se pois dessa mesma prática que Camões alega ser uma das vantagens dos Portugueses, como demonstrou ao longo de todo o poema, e daí o propósito da comparação. O exemplo histórico funciona como prova conclusiva dos argumentos desenvolvidos ao longo da epopeia. Outra alusão ao oficial púnico prescinde da referência bélica, a ele frequentemente associada, privilegiando a faceta do amor: Tu também, Peno próspero, o sentiste/ Despois que ôa moça vil na Apúlia viste (Lus III, 141). A sequência de nomes enunciados nesta passagem sugere um contexto de temáticas ligadas à paixão. Na mesma estância figuram Marco António e Cleópatra, e na anterior há referências a Tarquínio/Lucrécia e a ÁpioNirgínia. As comparações, centradas em figuras histórico-míticas, servem de pano de fundo à já referida história de amor entre D. Fernando e D. Leonor. A rainha, seguindo-se a tendência de Fernão Lopes, é retratada negativamente, como uma feiticeira que encantou o rei com suas artimanhas. A mesma filosofia que serve de base à construção da imagem de Cleópatra nos autores da Antiguidade. O exemplo de Aníbal segue o anterior, pretendendo-se uma paixão cega também para o general cartaginês. Segundo Camões, Aníbal ter-se-ia apaixonado por uma rapariga da Apúlia, onde o exército púnico esteve aquando da batalha de

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Cf. Borges de Macedo, «Os Lusíadas» e a História, pp. 98-99, 113-114. Cícero, De Oratore rI, 18.

Canúsio. Teria sido essa paixão a razão do atraso no ataque a Roma e da consequente perda de Itália pelos Cartagineses 26 . Ainda relacionadas com as guerras que opuseram Roma a Cartago, há as figuras de Marco Atílio Régulo e Quinto Fábio Máximo Cunctator. A primeira é citada por Camões na estância que compara o sacrifício dos heróis republicanos ao do infante D. Fernando em Fez (Lus IV, 53). Régulo foi um general aprisionado pelos púnicos, enviado a Roma para negociar a paz, mas que aconselhou o Senado a continuar a guerra; quando voltou a África, foi torturado e morto. O seu patriotismo fez dele um herói na cultura romana27 . Pelo cenário do episódio, o norte de África, pelas negociações políticas em jogo, e pela atitude frontal , destemida e patriótica de Régul028, esta era talvez a personagem da história de Roma que melhor se adequava à comparação pretendida por Camões. A segunda figura, Fábio Cunctator, surge no último canto d' Os Lusíadas (Lus X, 21), associado a Horácio Cocles e a algumas figuras da história grega. O general Cunctator tornou-se célebre pela persistência e por desafiar os exércitos de Aníbal, durante a segunda guerra púnica29. Por intermédio de Tétis, Cocles serve de modelo profético a Duarte Pacheco Pereira. As guerras romanas contra Pirro (280-272 a. C.), são também recordadas pelo poeta português. Após uma referência a Viriato e à

26 Porém, nenhuma fonte antiga refere explicitamente este episódio. José M" Rodrigues concluíu que poderá ter sido recolhido em Petrarca. Este camonista compara a referência com uma passagem do Triunfo do Amor III, 25-28. O autor refere que alguns comentadores quinhentistas de Petrarca insistem em Plutarco como a fonte deste episódio. Porém, não é, de facto , o historiador grego o seu autor. O camonist~ português termina por dizer que a referência foi certamente extraída pelo poeta italiano em alguma obra hoje desaparecida. José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas, p. 441. Contudo, parece-nos legítimo falar de Valério Máxi mo como possível fonte da passagem. Este autor latino refere que «a luxúria de Cápua foi bastante favorável aos interesses da nossa república. Através do poder dos seus encantos, seduziu Aníbal , que não pôde ser vencido pelas armas e entregou-o, então facilmente vencível, aos soldados romanos. Foi ela quem seduziu o general mais vigilante e o exército mais intrépido ... » , Valério Máximo IX, I, 1. É possível que Petrarca, e com ele Camões, tenha individualizado uma figura anónima de acordo com a observação apontada por V. Máximo como a causa do abrandamento de Aníbal e seu exército. Pelo que, o verso seria apenas uma concretização anónima do que era conhecido a nível geral. 27 Horácio , Odes III, 5; Tito Lívio XVIII; Valério Máximo IX, II, I; IX, VI, I; Eutrópio II, 21; 25 e Cícero, De Officiis III, 27.100. 28 Pois a tradição fez também de D. Fernando um herói que recusou a libertação, pelo seu patriotismo. 29 Plutarco, Fábio Máximo 25-26; 29; Valério Máximo VII, III, 7-8 .

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dificuldade que foi para Roma neutralizá-lo, lemos o seguinte: Não tem com ele, não, nem ter puderam,! O primor que com Pirro já tiveram (Lus VIII, 6). A perífrase alude a Caio Fabrício, um homo nouus admirado na cultura romana pelos seus valores morais e pela sua incorruptibilidade, pois recusou uma oferta do próprio inimigo para trair Pirr0 3o . Como é sabido, Viriato foi assassinado traiçoeiramente por três falsos amigos, subornados por Quinto Servílio Cepiã0 31 ; daí o sentido do verso camoniano. Nesta passagem, Camões compara dois episódios da história de Roma entre si; mas o poeta considera um deles como também pertencente à história pátria, pela relação com Viriato. O que confere lógica à comparação. As guerras civis da república são outra fonte de exemplos da história romana que podemos encontrar em Camões. Ligadas a elas, encontramos várias figuras. Mário, por exemplo, é recordado alguns versos antes de Aníbal: Não matou a quarta parte o forte Mário! Dos que morreram neste vencimento,! Quando as águas co sangue do adversário! Fez beber ao exército sedento (Lus III, 116). O contexto é o da já referida batalha do Salado, e o argumento serve de imagem ao massacre aí ocorrido. A exaltação é feita com uma dose de superlatividade em que se enfatiza o feito português. O exemplo romano é retirado de um episódio narrado por Plutarco, que refere o momento em que o exército romano, liderado por Caio Mário, depois de ter vencido em Aix os Ambrões e os Teutanos, teve de beber água de um regato onde o sangue fora abundantemente derramad0 32 . O nome de Mário é relembrado no canto seguinte (Lus IV, 6), e o contexto volta a ser o de massacres militares: as guerras civis entre este e Sula servem de exemplo imagético-ilustrativo para as guerras levadas a cabo entre Portugal e Castela, entre 1383 e 1385. Não deixa de ser curioso o exemplo utilizado por Luís de Camões; como se o poeta considerasse a guerra entre Portugal e o reino castelhano como civil, fraterna. Na verdade, o conflito opôs também Portugueses a Portugueses. Pompeio e Júlio César são mencionados com o mesmo objectivo comparativo que as referências acimas citadas. Aljubarrota e as cisões dentro das famílias portuguesas, como a do Condestável, cujos irmãos tomaram voz por D. Beatriz e Castela, e ele próprio que tomou voz pelo Mestre de Avis e Portugal, são razão para evocar mais um 30 Plutarco,

Pirro 21 ; Tito Lívio XIII (sum.); Eutrópio II, 14. Valério Máximo IX, VI, 4; Apiano 6, 12, 74; Díon Cássio XXII, 73; Eutrópio IV, 16. 32 Plutarco, Mário 18. 31

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confronto civil romano: Destes arrenegados muitos são/ No primeiro esquadrão, que se adiantai Contra irmãos e parentes (caso estranho),! Quais nas guerras civis de Júlio feJ Magno (Lus IV, 32). Também em Roma, durante esse período, houve famílias que se dividiram em apoios aos dois generais. O reinado de Afonso Henriques, as suas lutas contra os muçulmanos e a contenda com Fernando II de Leão motivam outras menções a Pompeio (Lus III, 71-73; IV, 62). Camões começa por evocar as vitórias contínuas e sucessos militares do cônsul roman0 33 . Depois, são os conflitos partidários em Roma, que levaram à celebração do pacto político conhecido como o primeiro triunvirato, em 59 a. c., e ao casamento do general com Júlia, filha de César: 34 Que vença o sogro a ti e o genro a este! Um óbvio paralelismo entre o general romano, o vencido pelo sogro, e o rei português, vencido pelo genro; Porque Afonso verás, soberbo e ovante,! Tudo render e ser despois rendido (Lus III, 73), pois tal como o oficial romano foi vencedor e depois derrotado pelo sogro, também o rei português surge como um vitorioso conquistador, posteriormente derrotado pelo genro. A derrota do general em Farsália é evocada nos versos: Já vencedor te vissem [a Pompeio] não te espantei Se o campo Emátio só te viu vencido;/ Porque Afonso verás, soberbo e ovante,! Tudo render e ser despois rendido (Lus III, 73). Note-se, porém, a ordem retórica com que Camões organiza os versos: o interlocutor é Pompeio, que deve olhar um outro maior que ele, Afonso Henriques, rei de Portugal, que acabou por ter um destino como o dele. Não deve por isso, surpreender-se ... A morte do general é evocada no canto seguinte, servindo de mera referência geográfica, a propósito das viagens de Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva ao Oriente, durante o reinado de D. João II. O herói é identificado apenas pelo cognomen com que frequentemente é chamado na obra de Lucano e com que ficou historicamente conhecido, E dali às ribeiras altas chegam/ Que com morte de Magno são famosas (Lus IV, 62)35. Quanto a Júlio César, há que referir, em primeiro lugar, que o seu cognomen assume n' Os Lusíadas a mesma função que na cultura 33 Em versos como Posto que o frio Fásis ou Siene,! Que pera nenhum cabo a sombra inclina,! O Boates gelado e a linha ardente! Temessem o teu nome geralmente, incluindo nestas alusões a Arábia, a Judeia, a Mesopotâmia, a Cilícia e a Arménia (Lus III, 72-73). O poeta terá encontrado como fonte de inspiração deste passo o texto de Lucano, Farsália II, 583-594. Citado por A. J. Costa Pimpão (ed.), Os Lusíadas de Luís de Camões, p. 338. 34 Plutarco, Pompeio 47 . 35 Plutarco, César 48; Lucano, Farsália VIII, 536-711; Eutrópio VI, 21.

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romana. César é sinónimo de poder imperial, o homem que preparou o caminho para a construção do império, enquanto estrutura política. Essa imagem transparece na já referida estância do canto V, onde se lê: Dá a terra Lusitana...! Césares (Lus V, 95), ou, na lírica, Júlio César conquistou/ o mundo com fortaleza ...! se livrou dos imigos com abrolhos (Red 33). É a figura da história romana mais vezes citada por Camões. Logo na dedicatória a D. Sebastião, o poeta inclui uma alusão à personagem, lendo-se: Pois se a troco de ... César, quereis igual memória,! Vede o primeiro Afonso (Lus l, 13). O romano, muitas vezes considerado erradamente como o primeiro imperador de Roma, é de alguma forma aqui retomado nessa função, ao se compararem as glórias do primeiro monarca português às do dictator. É, por excelência, a figura escolhida para servir de fiel comparativo ao primeiro rei de Portugal. No já citado verso da estância 32 do canto IV, César volta a ser citado, conjuntamente com Pompeio; e na estância 59 do mesmo canto, alude-se ao assassinato do ditador, apesar de o sujeito da referência serem os assassinos, Bruto e Cássio, e não a vítima: Quando daqueles que César mataram/ Nos Filípicos campos se vingaram 36 . No canto V, elogiam-se as capacidades oratórias de Júlio César, guerreiro eloquente, imagem que corresponde ao ideal renascentista do herói que domina as armas e as letras. A referência que serve de exortação das capacidades militares portuguesas, Vai César sojugando toda a França (Lus V, 96)37, é uma óbvia alusão à conquista das Gálias, que levou Júlio César a escrever um dos mais importantes e conhecidos textos da Antiguidade Clássica, e Camões a escrever E as armas não lhe impedem a ciência;! Mas, nôa mão a pena e noutra a lança. As façanhas do general em terras gaulesas são também lembradas, perifrasticamente, no canto III, inseridas na descrição que o poeta faz da Europa, Gália, ali se verá, que nomeada! Cos Cesáreos triunfos foi no mundo (Lus III, 16). No canto VIII, encontramos nova referência ao ditador. Na descrição das bandeiras, o escudo de Eneias d' Os Lusíadas, é recordado ao lado de Alexandre da Macedónia, evocando-se a sua grandeza de poder, o qual não se assemelhava ao de Afonso Henriques, apesar de este se lhe comparar em valentia e em sucessos (Lus VIII, 12). Este verso parece ser um tópos literário, pois 36Plutarco, António 12-13; 21-22; 38-50; Bruto 1; 14-17; 27-28; 34; César 66; Pompeio 16. 37 Plutarco , César 18-27; Catão, o Jovem 33 ; 43-45 ; 51 ; Crasso 14; 15; 37; Pompeio 48; 52; 56-58; 83; Cícero 30; Lucano, Farsália I, 392; Eutrópio VI, 17; d. também Luís de Sousa Rebelo, A tradição clássica na literatura portuguesa, pp. 38-45.

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Camões usa-o mais que uma vez e, já antes dele outros autores o usaram também38 . Quanto à lírica, na oitava dedicada a D. António de Noronha, sobre o desconcerto do mundo, é dada voz ao ditador romano, cujas palavras são significativas: Sou dino de memória;/ vencendo vários povos esforçados/fui Monarca do mundo; e Larga história/ ficará dos meus feitos sublimados (Oit I) . Como num diálogo, o poeta reconhece a veracidade das palavras do romano; porém, e tendo em vista o panegírico do seu destinatário, logo acrescenta que «esse mando e glória» foram efémeros, pois veio a morrer às mãos de Bruto e Cássio. É ainda na lírica que reencontramos o tópos armas e Letras. Na elegia VII, dedicada a D. Leonis Pereira, outro velho tema, Nunca Alexandre ou César, nas confusas/ guerras deixaram o estudo em breve espaço, versos que só confirmam a temática frequentemente aflorada na epopeia. Contemporâneos de César e Pompeio são Cássio Ceva, Cícero e Catilina. O partidário de Sula, mentor de uma revolta em Roma, formalmente acusado por Cícer039 , é evocado por Camões no já mencionado grupo dos traidores (Lus IV, 33). Cícero é mencionado uma única vez ao longo da poesia camoniana: Igualava de Cícero a eloquência (Lus V, 96). O mote de citação é, como evidente, a sua capacidade oratória, aqui comparada à também evocada eloq uência de Júlio César, que, apesar de guerreiro, não desdenhava em capacidades retóricas e oratórias4o . O exemplo salienta uma vez mais o ideal renascentista. Ceva, o combatente de Dirráquio, é oportunamente citado como exemplo da coragem a ser demonstrada por D. Lourenço de Almeida. Ferido de morte, como o herói português, o soldado continuou a combater, recusando a rendiçã041 : Outro Ceva verão, que espedaçado/ Não sabe ser rendido nem domado (Lus X, 30). Entre as figuras da história republicana de Roma citadas por Camões, há ainda que destacar duas pela pertinência com que o poeta

38 Zurara, por exemplo, ao estabelecer um confronto entre os feitos dos Portugueses e as conquistas dos dois generais, Gomes Eanes de Zurara, cap. LXIII; Cataldo Sículo, D. Pedro de Meneses e Sá de Miranda seguem o mesmo estilo. Citados por Ma. H. Rocha Pereira, «Presenças da Antiguidade Clássica em Os Lusíadas» in Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa, pp. 111 - 113. A autora relembra Plutarco, que juntou os dois generais no mesmo li vro. 39 Cícero, Catilinárias; Tito Lívio, CI; CIII (sum.); Valério Máximo IX, XI, 3; Eutrópio VI, 15. 40 Valério Máximo IX, XI, 3; Tito Lívio CXX (frag.). 41 Plutarco, César 16, 3-4; Lucano, Farsália VI, 140-179; Valério Máximo III, II, 53 ; Suetónio, César 68.

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o faz: Sertório e Viriato. A primeira pertence, de todo o direito à história de Roma. A segunda, tal como Aníbal, apesar de não romana, entra em cena a propósito da história pátria, mas também da de Roma. A razão pela qual decidimos isolar estas duas personagens prende-se, naturalmente, com a importância que elas têm para a história do território português, mas também com o facto de Camões, tal como André de Resende,primeiro, e Bernardo de Brito, mais tarde, seguir a «visão ... pré-nacionalista da história de Portugal»42. Que o poeta as considera duas das grandes figuras nacionais prova-se pelo facto de serem as primeiras mencionadas por Paulo da Gama ao Catual. Camões refere-se a Quinto Sertório por diversas vezes ao longo d Os Lusíadas, e usa-o de forma ambivalente, quase paradoxal: por um lado, Sertório serve para referir casos de traição à pátria, alinhando numa apóstrofe ao lado de Catilina e de Coriolano (Lus IV, 33). Uma forma de heroísmo desadequada das outras referências camonianas ao herói, mas que apesar disso continua propositada no contexto para que foi escolhida. Por outro lado, Sertório encarna a rebeldia legitimada, uma vez que lutou ao lado dos Lusitanos/Portugueses pela Lusitânia/PortugaI43 . No canto III, a propósito dos feitos de Afonso Henriques e de Geraldo, o Sem Pavor, Sertório suporta a perífrase identificativa da cidade de Évora, Eis a nobre cidade, certo assentai Do rebelde Sertório antigamente (Lus III, 63). A expressão certo assento é utilizada com intenção de indiscutível presença44 . Isto porque Camões segue Resende, que ao serviço de uma tese eborense não hesitou em forjar provas que atestassem a presença de Sertório em território alentejano (aliás, destaca a figura de Viriato, sob a mesma perspectiva45 ), fazendo dele um herói romano ao serviço da nação portuguesa. A utilização do adjectivo rebelde é bastante significativa, pois é a tónica que Camões pretende destacar. Rebelde contra a própria pátria, Roma, mas por uma causa justa, a dos Lusit;:tnos, os antepassados dos Portugueses na imagética camoniana, como na resendiana. Encontramos outra menção a esta personagem através de uma t

42 R. M. Rosado Fernandes, «Introdução» in André de Resende, As Antiguidades da Lusitânia, p. 26. 43 Plutarco, Sertório; Valério Máximo VII, III, 6; IX, I, 5; Eutrópio VI, I. 44 Cf. A. J. Costa Pimpão (ed.), Os Lusíadas de Luís de Camões, p. 337, nota 63. I -8. 45 O tratamento da figura de Sertório, e suas relações com a cidade de Évora, por André de Resende é feito nas Antiguidades Lusitanas III, 124, publicadas depois da morte de Camões, mas redigidas antes; e na História da antiguidade da cidade de Évora, cap. III, publicada em 1553.

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nova perífrase incluída na écfrase que se ocupa dos estandartes, Outro está aqui que, contra a pátria irosa,! Degradado, connosco se alevanta (Lus VIII, 7). Este outro é Sertório, e Camões volta, nesta passagem, a associá-lo à primeira função a que o associara no canto III: a da revolta legítima, pois é pelos futuros Portugueses que o general renega as origens. Assim o justifica o final da estância: Escolheu bem com quem se alevantasse/ Pera que eternamente se ilustrasse. Na verdade, a sua imortalidade, no dizer de Camões, deve-se à aliança com os Lusitanos-Portugueses, e não ao facto de ser um romano rebelde. Fosse outro o povo a quem se associasse, e jamais seria Sertório recordado pela memória dos homens. O orgulho em ter tal figura entre as fileiras portuguesas é nítido, Vês, connosco também vence as bandeiras/ Dessas aves de Júpiter validas (Lus VIII, 8). A alusão termina com um preciosismo que Camões só pode ter lido em algum dos autores Clássicos, A fatídica cerva que o avisa.! Ele é Sertório, e ela a sua divisa (Lus VIII, 8). A tradição literária associa uma corça branca ao general. Este dizia tê-la recebido de Diana e afirmava que o animal lhe servia de oráculo, pois revelava-lhe o futur0 46 . Camões evoca essa mesma tradição também no canto I, ao referir deixo a memória que os obriga! A grande nome, quando alevantaram/ Um por seu capitão, que, peregrino,! Fingiu na cerva espírito divino (Lus I, 26). Quanto a Viriato, a sua representação em Camões é talvez das mais interessantes e significativas. O final do século XVI português traria alterações extremamente importantes para o sentimento nacional. Como é sabido, durante os anos de governação espanhola, desenvolveu-se em Portugal uma literatura autonomista que, entre outras características, acentuou figuras de heroísmo nacional, algumas pátrias, outras universais. Entre elas podemos destacar Ulisses, Sertório e o próprio Viriat047 . Na verdade, já a atitude de André de Resende ao salientar Sertório e Viriato denunciava a aproximação desse comportamento literário. O espírito com que Camões se refere a Viriato é precisamente o mesmo: o herói lusitano é um antepassado dos Portugueses, esquecendo que as tribos que liderava «se estendiam muito

46 Esta história era céiebre na Antiguidade. Entre outros, mencionam-na Piutarco, Sertório 11; 20; Apiano, Ciu I, i 10; Vaiério Máximo i, 2, 4; Plínio, Hist Nat 8, 117 e Aul0 Gélio 15,22,3-5. 47 Cf. R. M. Rosado Fernandes, «Ulisses em Lisboa», Euphrosyne, XIII, 1985, pp. 139-161 e Hernâni Cidade, «A épica portuguesa sob o domínio filipino », Sep. Revista de Guimarães, 1940, pp. i-iS .

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para lá de Mérida e que tanto podem ser consideradas antecessoras dos Portugueses como dos Castelhanos.»48 Seguindo a tradição que faz de Viriato um pastor49 , o poeta cita-o diversas vezes ao longo d' Os Lusíadas. A primeira é durante o consílio dos deuses, através da boca de Júpiter, Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,! Que co a gente de Rómulo alcançaram,! Quando com Viriato, na inimiga! Guerra Romana, tanto se afamaram (Lus I, 26) . A intenção da fala do deus é evocar a antiguidade do heroísmo lusitano, logo português, já destacado nas lutas de resistência durante a ocupação romana da península. Convém recordar que a gente de Rómulo fora protegida por algumas destas mesmas divindades, nomeadamente Vénus e Júpiter, na epopeia de Virgílio, o que só aumenta o carisma dos Portugueses. Viriato assume claramente o papel do líder lusitano, desde a primeira referência. Tónica que predominará ao longo de todo o poema, onde o nome do caudilho é evocado. No canto III, é a personagem escolhida para inaugurar a galeria de ilustres que desfilam ao serviço da história portuguesa, Desta o pastor nasceu que no seu nome/ Se vê que de homem forte os feitos teve;! Cuja fama ninguém virá que dome,! Pois a grande de Roma não se atreve (Lus III, 22). A tendência sugerida é aqui enfatizada pela dedução etimológica que o poeta faz do nome do herói. Camões deriva o nome Viriato de uir, substantivo latino que, além de homem, significa também guerreiro ou soldado. Como parece ser a estrutura pensada pelo poeta, Viriato, como outras personagens da história portuguesa introduzidas no canto III, ressurge no canto VIII. O ressurgimento assume características ecfrásticas, imaginando-se um cenário majestosamente descrito pelo irmão de Vasco da Gama: - «Quem será estoutro cá, que o campo arrasa De mortos, com presençafuribunda ? Grandes batalhas tem desbaratadas, Que as Águias nas bandeiras tem pintadas! ,,50

48 R. M. Rosado Fernandes, «Introdução» in André de Resende, As Antiguidades da Lusitânia, pp. 25-26. 49 Cf. por exemplo Tito Lívio LU (sum.); Diodoro Sículo 33 , 1, 1-4; Díon Cássio 22, 73 e Eutrópio IV , 16. 50 Como já referiu Costa Pimpão, as águias pintadas, como símbolo do exército romano, são uma adaptação do poeta, visto que as águias eram de metal, fixas em hastes tranportadas pelos legionários. Cf. A. J. Costa Pimpão (ed.), Os Lusíadas de Luís de Camões, p. 422, nota 5.1-8 .

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Assi o Gentio diz. Responde o Gama: -«Este que vês, pastor jáfoi de gado; Viriato sabemos que se chama, Destro na lança mais que no cajado; Injuriada tem de Roma afama, Vencedor invencível, afamado. (Lus VIII, 5-6)

E a descrição continua na estância seguinte, até ser reintroduzido Sertório, como o segundo grande herói nacional. Ainda no mesmo canto, a propósito da exiguidade de Portugueses face à quantidade de soldados castelhanos em Aljubarrota, Camões recorda o caudilho, «Sabe-se antigamente que trezentos/ Já contra mil Romanos pelejaram,! No tempo que os viris atrevimentos/ De Viriato tanto se ilustraram (Lus VIII, 36). A interpretação mantém-se. Mas, nesta passagem, o poeta acrescenta o tópos do pequeno que vence o gigante, uma retórica frequente também desde a Antiguidade, retomada n' Os Lusíadas, por influência, talvez, de Fernão Lopes e suas descrições de Aljubarrota51 . Repare-se que com Viriato e Sertório, Roma e os Romanos deixam de ser os modelos de ilustração e heroísmo a comparar aos feitos dos valentes portugueses, para passarem a ser, embora reconhecidos como bravos e imperiosos, os inimigos contra quem os nossos primeiros heróis lutaram e resistiram. Camões sugere-o com Aníbal, como se explica de modo natural, mas define-o claramente com estas duas figuras, tomando-as indissociáveis da história nacional. A lírica camoniana cita Viriato apenas uma vez: Alegra-te, ó guerreira Lusitânia! por este Viriato que criaste (San 150). Trata-se de um soneto dedicado a D. Fernando de Castro, aqui comparado ao guerreiro lusitano. Figuras de transição entre a república e o império, Marco António e Octávio, o futuro imperador César Augusto, são evocados logo no canto I: Nunca com Marte instructo efurioso Se viu ferver Leucate, quando Augusto Nas civis Áctias guerras, animoso, O Capitão venceu Romano injusto, Que dos povos da Aurora e do famoso Nilo e do Bactra Cítico e robusto A vitória trazia e presa rica, Preso da Egípcia linda e não pudica: (Lus II, 53) 51 A retórica do número é talvez uma referência inspirada em alusões de Eutrópio, como em IV, 7; V, 2, 8. Quanto à influência de F. Lopes, vide José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas, p. 288.

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É impossível não reconhecermos nestas palavras de Camões os versos incluídos na écfrase do canto VIII da Eneida de Virgíli052 . A alusão à batalha de Áccio, em que Octávio e Agripa derrotaram definitivamente Marco António, é colocada na boca de Júpiter, em tom de profecia-promessa feita a Vénus (tal como na Eneida, em relação aos Romanos, é colocada na descrição do escudo de Eneias) a propósito dos feitos militares dos Portugueses. Estes superarão no Oriente até os momentos bélicos que tornaram famosos os grandes homens da Antiguidade. No canto em que desfila o maior número de figuras históricas, aparece uma referência ao segundo triunvirato: O concerto fizeram, duro e injusto,! Que com Lépido e António fez Augusto (Lus III, 136). O contexto camoniano é o reinado de D. Pedro I, mais concretamente a perseguição que fez aos carrascos de Inês de Castro. Camões cita a extradição dos executores de Castela, chamando-lhe um concerto ... duro e injusto. A comparação reside no facto de, depois da formação do triunvirato em 43 a. C., os assassinos de Júlio César terem sido perseguidos, tendo-se mesmo chegado a publicar uma lista dos homens a eliminar53 . Marco António e Octávio, sempre referidos n' Os Lusíadas em associação com outras figuras, aparecem ainda mais duas vezes. Os seus nomes são usados como comparação com D. Afonso V e D. João II, Destarte foi vencido Octaviano,! E António vencedor, seu companheiro,! Quando daqueles que César mataram/ Nos Filípicos campos se vingaram (Lus IV, 59). O poeta refere-se à batalha de Filipos, em que Cássio e o seu exército foram derrotados por António, que se sagrou vencedor; mas em que Bruto conseguiu ainda resistir ao exército de Octávio, derrotando-o. Octávio saíu assim vencido de Filipos54. A comparação é feita com a batalha de Toro, em 1476, em que o Príncipe Perfeito participou, ajudando o pai. As tropas comandadas por si saíram vencedoras do combate, como as de Marco António; enquanto as comandadas por Afonso V foram derrotadas pelo rei de Aragão, como as de Octávio. No canto do Adamastor lemos uma digressão crítica em que o poeta julga a cultura dos seus contemporâneos: Octávio, entre as maiores opressões, Compunha versos doutos e venustos (Não dirá Fúlvia, certo, que é mentira, Quando a deixava António por Glafira). (Lus V, 95) 52 53

Virgílio, Eneida VIII, 675-688; cf. Tito Lívio CXXXIlI (sum.). Plutarco, César 64-66; António 89; .firuto 14-17; 27; Tito Lívio CXX

(sum.). 54 Plutarco,

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Bruto 38-53; Tito Lívio CXXIII (sum.); Eutrópio VI, 25 ; VII, 3.

Como apropriado, não estamos perante a evocação de mais um feito bélico, mas sim perante o elogio tipicamente renascentista, em que se reconhece o valor da formação cultural de grandes homens de armas. Octávio é elogiado pela sua capacidade poética. Os dois últimos versos da estância, que têm por referente principal a figura de Marco António, aqui aparentemente desprovido da sua companhia egípcia, têm dado oportunidade às mais variadas interpretações de que falaremos adiante. Apesar de ser quase sempre chamado Augusto 55 , e à excepção de duas, as situações históricas referidas que envolvem o primeiro imperador de Roma são todas anteriores ao Principado e todas contemporâneas e associadas a Marco António. Camões deixa também cair a possibilidade de associar o título do primeiro imperador romano ao nome do rei de Portugal, augustuS/crE~acr'tÓÇ. Esta relação associada à concretização de Roma como império poderia perfeitamente ter servido como encómio de D. Sebastião. Porém, o poeta parece preferir advertir o rei em forma de alegoria56 . As duas excepções em que Augusto é evocado no seu papel de imperador provêm do campo cultural e não do campo político: uma perífrase, na epopeia, em que é associado a Virgílio, como o Herói protector de poetas (Lus V, 94); e na lírica, na ode dedicada a D. Manuel de Portugal. Nesta, o contexto é uma vez mais a exaltação do binómio armas/letras. Associado a outros grandes generais, Octaviano é chamado coluna da ciência gentil (Ode VII) . Ao filho do conde de ViIlÚoso, Camões chama o seu Mecenas, um dos companheiros e aIlÚgos de Augusto, conhecido pela protecção que deu às letras do seu tempo. O recurso a exemplos datados do período imperial é muito menor. Na verdade, é César quem assume a simbólica político-imperial em Camões, enquanto Augusto jamais desempenha esse papel. Dos Júlio-Cláudios, apenas o último imperador é mencionado. A evocação de Nero é fundamentalmente negativa, e é introduzida no texto poético com a função de comparar as suas acções com as do

55 Camões chama-lhe Octávio apenas uma vez, Lus V, 95; e uma outra Octaviano, Lus IV, 59. Até na referência mais próxima da Eneida (II, 53), Camões segue Virgílio, pois chama a Octávio Augusto, o que é um anacronismo, visto que este só assumiu esse título em 27 a.c., e Áccio aconteceu em 31 a.c. 56 Cf. Américo da Costa Ramalho, «O mito de Actéon em Camões» in Estudos Camonianas, pp. 55-82 e Vítor Manuel de Aguiar e Silva, «O mito de Actéon como alegoria e como símbolo na poesia de Camões» in Camões: Labirintos e Fascínios, pp. 155-162.

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sucessor de D. Afonso II; precisamente um dos reis menos heróicos na história e historiografia portuguesas: Não era Sancho, não, tão desonesto/ Como Nero, que um moço recebia! Por mulher e, despois, horrendo incesto/ Com a mãe Agripina cometia (Lus III, 92). O conflito entre o monarca português e a nobreza e o clero do seu tempo originou o caos na ordem interna do país e criou uma imagem negra do seu reinado. Camões segue essa visão negativa do quarto rei português, como se infere de Sancho segundo, manso e descuidado; mas apesar da negatividade do monarca, a retórica camoniana não hesita em desvalorizá-la perante a perfídia de outros monarcas da história universal. A alusão ao comportamento homossexual e incestuoso de Nero poderá ter sido inspirada nos textos de Suetónio ou de Plutarco, historiadores que referem as relações do imperador com o liberto Esporo e com Agripina, a própria mãe5? Nem tão cruel às gentes molesto,! Que a cidade queimasse onde vivia (Lus III, 92) é evidentemente uma referência de Camões ao incêndio de Roma de 64, que levou à condenação dos cristãos, e que alguns historiadores sugerem ter sido causado pelo próprio imperador58 . A escolha cai sobre comportamentos considerados eticamente piores que a má administração ou as fraquezas políticas do monarca português. Acusações que no contexto ético cristão reduzem ao mais baixo nível a personalidade do imperador, conseguindo-se assim um efeito que de algum modo valoriza Sancho II. É também a negatividade que traz Heliogábalo à memória. Os seus excessos e obscenidades tomaram-se tão famosos que a guarda pretoriana acabou por assassiná-lo, lançando o seu cadáver ao Tibre. A referência ao comportamento do imperador sírio segue a mesma linha da alusão a Nero, estando a ela associada: Nem tão mau como foi Heliogabalo,! Nem como o mole Rei Sardanapalo 59 . Quando 57 Suetónio, Nero XXVIII e Plutarco, Galba 19; Díon Cássio LXII, 13,28; LXIV, 8. E. Paulo Ramos identifica o Moço com quem Nero se envolveu sexualmente com um Pitágoras. Díon Cássio menciona esse Pitágoras , um liberto do imperador, LXII, 28; todavia refere um Esporo como o rapaz que servia de mulher ao imperador. Suetónio fala também de Esporo e Dorítoro, o liberto com quem o imperador se prostituía. Cf. E. Paulo Ramos (ed.), Os Lusíadas de Luís de Camões, p. 425. 58 Tradição sugerida por Tácito, Anais XV, 38-44; Suetónio, Nero XXXI; XXXVIII; e sustentada por Díon Cássio LXII, 16; Eutrópio VII, 14 e Paulo Orósio, VII, 7. 59 Eutrópio VIII, 22; Díon Cássio LXXIX. É também em Eutrópio que encontramos a expressão ln priuata uita mollis (VII, 11), semelhante a mole Sardanapalo (Lus III, 92). Talvez Eutrópio e Díon Cássio tenham sido a inspiração desta passagem, pois Díon Cássio chama Sardanapalo a Heliogábalo em LXXIX, 22; LXXX, 1.

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a comparação é positiva, os Portugueses excedem; quando é negativa, ficam aquém. Não sendo dos mais historiografados das Antiguidade, é curioso que este imperador seja referido na epopeia, como na lírica: Heliogábalo zombava! das pessoas convidadas,! e de sorte as enganava! que as iguarias que dava! vinham nos pratos pintadas (Red 112). As outras alusões imperiais são referências positivas. Tito é menCionado como um cruzado de Deus contra uma Jerusalém judia (apesar de em 70 d. c., quando a cidade foi tomada, este não ser ainda imperador). Depois da comparação dos massacres ocorridos durante as guerras civis de Roma com a mortandade causada por Afonso IV entre os Mouros, Camões introduz uma · estância em que faz o paralelismo da situação com a tomada de Jerusalém por Tito e Vespasian0 60 . O massacre evocado é o dos Judeus, o povo pertinaz no antigo rito; os outros, que com o Islão se opõem à cristandade. Considera-se a atitude do futuro imperador como uma Permissão e vingança ... celeste (Lus III, 117). Na verdade, reside neste verso a essência da comparação: tal como a de Tito, também a investida do rei português é considerada como uma missão divina. A interpretação camoniana da passagem segue o espírito judeo-bíblico ao aceitar Ciro e Alexandre como braços armados de Deus 61 . Outro imperador romano mencionado por Camões é Trajano. Além de Augusto, é a figura imperial mais vezes referida em todo Os Lusíadas. Logo na proposição lemos os versos Cale-se de Alexandro e de Trajano (Lus I, 3). Nestas palavras adivinha-se a intenção do poeta: interessa relevar os feitos dos Portugueses, superadores até dos Antigos mais conceituados. Importa referir que com Trajano, durante muito tempo considerado o modelo do imperador perfeito, o império alcançou o seu apogeu territorial e polític0 62 . Daí, o sentido das palavras do poeta; de onde se infere que Camões tinha consciência do significado do período antonino na história de Roma. O discurso de Baco no mesmo canto vol~a a acentuar essa ideia, Qu'eu, co grão Macedónio e Romano,! Dêmos lugar ao nome Lusitano? (Lus I, 75). O Romano a

Suetónio, Tito V; Díon Cássio LXV, 4-5; Eutrópio VII, 20; VII, 21. 2 Cr 36,22-23 ; Esd 1,1-4; Dn 8, 5-7, 20-21; F. Josefo, Ant. Judaicas XI, 337. Particular e significativa é a referência a Jesus Cristo, que profetizara a queda da cidade, logo dois versos abaixo; uma das poucas menções explícitas ao seu nome n' Os Lusíadas. 62 Díon Cássio LXVIII 15-16; 30-32; Eutrópio VIII, 2-5. 60

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que o poeta alude tem sido identificado com Trajan063 . O deus do vinho refere-se à chegada à Índia pelos Portugueses, feito já antes alcançado por Alexandre e por esse imperador6 4 , que é mais uma vez referido com a mesma intenção: Dali vão em demanda da água pura! (Que causa inda será de larga história)! Do Indo, pelas ondas do Oceano,! Onde não se atreveu passar Trajano (Lus IV, 64). O contexto é o reinado de D. João II e a expedição em busca do Preste João, em 1487. Camões alude à ida à Índia, pelo golfo pérsico, através do Índico, por onde nem o prestigiado imperador ousou passar. A referência continua, desenvolve e aplica a intenção delineada logo em I, 3. O filho adoptivo e sucessor de Trajano, Adriano, é mencionado apenas na lírica. A referência verifica-se no soneto dialogado, já mencionado a propósito de Numa Pompílio, onde o imperador é chamado grão senhor do mundo (Son 160). Uma afirmação que confirma o conhecimento que Camões tinha dos Antoninos 65 . Finalmente, as mulheres de Roma. Decidimos isolar estas personagens pela autonomia com que os seus nomes surgem em Camões. As referências espalham-se pela lírica e pela epopeia. Do período das origens, encontramos Tarpeia e Lucrécia. A versão que Camões evoca para referir Tarpeia é a que narra a traição e cupidez que acabaram por levar a jovem à morte6 6 . Isto porque o poeta evoca a figura numa digressão em que reflecte sobre o valor e a vilania do ouro, considerando-o como uma das principais razões que levam os homens à corrupção e ao desvio moral: Pode tanto em Tarpeia avaro vício/ Que, a troco do metal luzente e louro,! Entrega aos inimigos a alta torre,! Do qual quási afogada em pago morre (Lus VllI, 97). Heroína também histórico-lendária, Lucrécia surge n' Os Lusíadas, desfilando inominada, paralela e perifrasticamente com Tarquínio (Lus I, 140); na lírica, é uma das ilustres referidas na oitava em que se defende D. Catarina, presa por adultério (Oit IV) ; e é uma das duas personagens mencionadas nas cartas (Car III). Exalta-se sempre a virtude da matrona, que abdicou da vida pela honra. Na mesma oitava, fala-se de Valéria, também um modelo virtuoso. A identificação desta per63

Cf. A. 1. Costa Pimpão Ced.), Os Lusíadas de Luís de Camões, p. 305,

nota 75 . 64 Díon Cássio LXVIII, 29; Eutrópio VIII, 3; cf. Paulys Realencyclopadie der classischen Altertumswissenschaft IXa, cols. 1290-1301. 65 Cf. Díon Cássio LXIX, 9; Eutrópio VIII, 6-7. 66 Tito Lívio I, 11 ; Plutarco Rómulo 17-18; Valério Máximo IX, VI, 1; Eutrópio I, 8.

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sonagem é menos pacífica, pois conhecem-se vanas Valérias na história de Roma que se coadunam com o contexto do poema. Poderá tratar-se de Valéria Luperca, heroína lendária, escolhida para sacrifício a Juno, aquando da epidemia que assolou a cidade de Falérios; como da irmã de Publícola, que intercedeu junto da mãe de Coriolano em favor de Roma; como da filha do mesmo herói, refém de Porsena, por vezes confundida com Clélia; como poderá tratar-se da republicana Valéria, esposa de Sérvio e irmã dos Messalas, conhecida pela sua fidelidade conjugal, por se considerar eternamente casada, apesar de viúva; ou da imperatriz, filha de Diocleciano, e esposa de Galério, que repeliu as propostas de matrimónio de Maximiano II, o que a levou ao exílio e à execução por ordem de Licínio67 . Todas são personalidades que se coadunam com o grupo de mulheres mencionado no poema, logo, potenciais candidatas a uma identificação lógica. Contudo, talvez o poeta se refira à Valéria da família Messala, pela virtude e castidade denunciadas, mais próximas do tema do texto camoniano68 , e dado que é colocada junto a Semprónia, uma figura coeva. Esta é provavelmente a esposa de Cipião Emiliano e irmã dos Gracos, mulher determinada no seu combate político, que lutou contra o marido ao lado dos irmãos 69 . A Fúlvia referida por Camões é indiscutivelmente a primeira mulher de Marco António, que desempenhou um papel político bastante importante durante os conflitos que se seguiram à morte de César. Terá suscitado a discórdia entre Octávio e António e mesmo 67 Os exemplos citados podem ser vistos em Plutarco, Paralelos menores 35; Coriolano 33; Publícola 18-19. O florilégio de Rodigino cita o primeiro e o último exemplos, t1. 890f e l003e. 68 Não estamos de forma alguma de acordo com Manuel dos Santos Alves, que identifica esta figura com uma «mulher, que em Roma ticou célebre pela sua luxúria», pois é uma posição totalmente antagónica à intenção dos versos. Este autor, decerto, pensa em Valéria Messalina, esposa de Cláudio. Cf. M. Santos Alves, Dicionário de Camões, p. 304. 69 A leitura de Semprónia é proposta por Costa Pimpão em detrimento de Sofrónia , como se lê na edição de 1616 das rimas. O comentador seiscentista J. Franco Barreto lia ainda Sofrónia, e o contexto histórico confere lógica a essa interpretação paleogrática, dado que o poeta poderia estar a referir-se à matrona romana cristã, que, qual Lucrécia, preferiu o suicídio a um adultério forçado com Maxêncio. O exemplo é, de algum modo, ainda mais adequado que o de Semprónia; mas não tão convincente pelo contexto histórico e pela fonte provavelmente consultada, cf. Plutarco, Tib ério Graco 1; 4 ; Tito Lívio LlX (sum.). Outra Semprónia conhecida é a que esteve envolvida no processo de Catilina, referida por Cícero. Porém, esta mulher, perseguida por traição, não parece também adequar-se ao contexto camoniano.

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assumido os interesses do marido, desafiando o irmão deste a apoiar a sua causa70 . Surge n' Os Lusíadas associada a uma Clafira (Lus V, 95). Quanto à identificação de Gláfira, o caso já não é tão pacífico. José Ma Rodrigues interpreta a passagem, referindo que os últimos dois versos da estância são uma prova complementar dos versos anteriores 7l . W. Storck propõe, para a identificação desta personagem, uma confusão onomástica, entre Gláfira e a actriz Citéris, mencionada por Plutarco, por quem António se apaixonou 72. Costa Pimpão coloca a hipótese de a Gláfira do epigrama de Marcial, aproveitado por Camões, se tratar de um pseudónimo, tão ao gosto da poesia romana, que ocultasse alguma outra mulher mais conhecida, como a própria Cleópatra. Essa hipótese fora já sugerida por Faria e Sousa, ao jogar com o significado do adjectivo grego yÀ
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