Canção regionalista tocantinense: delimitação de um estudo sobre música popular e identidade

June 15, 2017 | Autor: Heitor Oliveira | Categoria: Popular Music
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XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - Uberlândia - 2011

Canção Regionalista Tocantinense: delimitação de um estudo sobre música popular e identidade Heitor Martins Oliveira Universidade Federal do Tocantins (UFT) – [email protected] Resumo: Relato de pesquisa em andamento que tem como objetivo caracterizar a relação entre canção regionalista e identidade cultural no Tocantins, considerando a inserção da produção musical em um processo histórico regional e/ou em discursos de legitimação de poder político. A partir de trabalhos anteriores sobre música popular e construção simbólica de identidade, o estudo é delimitado em torno de uma coletânea de canções regionalistas organizada e produzida com apoio governamental no ano de 2005. Nas etapas seguintes, a pesquisa abordará esse repertório em termos de sua produção e recepção. Palavras-Chave: Tocantins, identidade cultural, canção regionalista, música popular brasileira, análise musical Tocantins Regionalist Song: delimitation of a study on popular music and identity Abstract: Report from an ongoing study that aims to characterize the relationship between regionalist song and cultural identity in Tocantins, considering the inclusion of music production on a regional historic process and/or legitimization of political power discourses. From previous work on popular music and symbolic construction of identity, the study is delimited around a collection of regionalist songs organized and produced with government support in 2005. At later stages, the research will address this repertoire in terms of its production and reception. Keywords: Tocantins, cultural identity, regional song, Brazilian popular music, musical analysis

1. O Tocantins e a questão da identidade regional O estado do Tocantins foi criado pela Constituição Federal de 1998 e instalado oficialmente como unidade federativa autônoma no dia 1o janeiro de 1989. Resultado de reivindicações da sociedade civil e lideranças políticas do então norte goiano, a criação do novo estado resultou em aumento de investimentos públicos na região e significativo crescimento populacional. A capital foi instalada na cidade planejada de Palmas que concentra a maior população, principalmente de imigrantes oriundos de outras regiões do país. Provavelmente como consequência dessa diversidade de origens geográficoculturais representadas na população e do caráter recente da autonomia políticoadministrativa, os debates sobre a identidade cultural do Tocantins têm sido constantes. Não são raras afirmativas sobre a necessidade de ações até mesmo governamentais para criar e/ou consolidar tal identidade, embora haja pouca clareza na definição do próprio termo identidade e nenhum consenso sobre o conteúdo de tais ações (RAMOS, 2003: 1). Do ponto de vista acadêmico, o debate sobre identidade regional no Tocantins tem tido pelo menos duas abordagens distintas, relevantes para a delimitação do presente

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estudo. Por um lado, argumenta-se que o processo social e político que culminou com a autonomia do estado remonta ao século XIX e está associado a um processo de construção de uma identidade regional (CAVALCANTE, 2001: 6). Por outro lado, observa-se que a história recente é marcada por intervenções de governantes locais que não raro recorrem a simbologias para tentar imprimir novos sentidos a essa identidade (RAMOS, 2003: 2). O trabalho de Oliveira (2008) representa a primeira abordagem. A autora trata de aspectos históricos da construção/reconstrução de identidade das populações ribeirinhas do rio Tocantins desde o período colonial até as sucessivas ondas de modernização ao longo do século XX e início do século XXI. Conclui que esse processo resultou em “traços identitários bem particulares, marcados por características regionais e culturais”, expressas nas atividades econômicas e sociais desempenhadas e nos contatos entre diferentes grupos étnicos e com novos imigrantes (OLIVEIRA, 2008: 166-167). Rodrigues (2009) parte do conceito de espaço de representação, para analisar a criação e implantação do estado do Tocantins, com ênfase na questão da legitimação do poder político. O trabalho do autor representa a segunda abordagem ao tema da identidade regional no estado mencionada acima e aponta um processo de construção de mitos por meio de discursos e simbologias como o Hino do Tocantins1 (RODRIGUES, 2009: 66) e as pinturas em azulejos que fazem parte da decoração do Palácio Araguaia (RODRIGUES, 2009: 71), sede do governo local. Nesse processo, “as diferentes leituras foram sendo construídas e as representações criadas, alimentando um imaginário coletivo no qual se misturaram mitos e verdades, cada qual contado de uma forma diferente” (RODRIGUES, 2009: 70). As discussões sobre identidade cultural no âmbito acadêmico dos estudos culturais fornecem um quadro teórico mais abrangente para situar essas contribuições. A primeira consideração é a própria construção do conceito de identidade cultural. Referindo-se inicialmente às culturas nacionais, Hall (2006) as define como “um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade” (HALL, 2006: 61-62), sendo esse esforço em direção à unidade o sentido principal do termo identidade, nesse contexto. Entretanto, as identidades nacionais “não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas” (HALL, 2006: 65). Devem-se levar em conta as formas adotadas para “costurar as diferenças numa única identidade” (HALL, 2006: 65).

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As culturas nacionais surgiram a partir da colocação das diferenças regionais sob o teto do estado-nação, que passou a ser “uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais modernas” (HALL, 2006: 49). O processo de globalização, por sua vez, vem afrouxando esses laços de identificação com a cultura nacional e reforçando tanto as identidades locais, regionais e comunitárias, quanto identificações globais (HALL, 2006: 73). Portanto, a identidade está profundamente envolvida no processo de representação. Assim, a moldagem e a remoldagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas. [...] Todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos. (HALL, 2006: 71).

A partir desse referencial teórico, verifica-se a peculiaridade da discussão sobre identidade cultural no Tocantins. A princípio, a percepção de uma “crise” de identidade é coerente com a conceituação de identidade como uma construção permeada de contradições e conflitos. A ênfase sobre a busca de uma identificação regional, por sua vez, parece refletir a tendência analisada nos estudos culturais no contexto mais amplo do processo de globalização, embora as discussões sobre legitimação de poder político associadas a este contexto específico remetam a um momento histórico anterior, em que o estado tomava as rédeas da construção simbólica de unidade cultural.

2. Música popular e construção simbólica de identidade A “invenção” da música popular urbana brasileira nas décadas de 1930 e 1940 evidencia a complexidade da relação entre música popular e identidade cultural. Naquele momento histórico, samba e choro, gêneros da música popular urbana carioca, foram elevados à categoria de símbolos da identidade nacional brasileira. A contribuição criativa dos músicos populares foi reforçada pela atuação de literatos formadores de opinião que propõem essa construção simplificada de nacionalidade. Mudanças na percepção sobre o papel do negro na sociedade brasileira e o discurso nacionalista integrado à legitimação do Estado Novo, regime de Getúlio Vargas, complementam o quadro social e político que viabiliza essa associação (BRAGA, 2002: 192-195). Zan (2001) propõe uma abordagem panorâmica da música popular urbana brasileira ao longo do século XX. O autor discorre sobre os elementos simbólicos associados

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à identidade e sua relação com o contexto político e mercadológico. Analisa o desenvolvimento do mercado fonográfico nacional a partir da apropriação de elementos da cultura popular para construção de produtos musicais massivos. A sucessão de tendências como sertanejo, pagode, axé music, manguebeat e rap no final do século articulam elementos locais e globais. Ainda assim, buscam legitimação no discurso de autenticidade da cultura popular, embora tais conceitos apareçam fragmentados pelos recortes regionais e de classe (ZAN, 2001: 118-119). A fragmentação apontada por Zan (2001) pode ser analisada a partir de uma hierarquia de legitimitades em que a identidade da música brasileira está em disputa (ULHÔA, 1997: 89). A disputa é tanto interna entre os campos erudito/folclórico/popular, quanto na oposição entre música brasileira e música estrangeira. Mais até do que critérios rítmicos, harmônicos e melódicos, as origens sociais e o público de cada gênero determinam significados e valores estéticos atribuídos. “De fato, o que é música brasileira popular e o que é uma identidade nacional brasileira é uma construção” viabilizada pelas relações de oposição (ULHÔA, 1997: 95). Os trabalhos citados nesta seção referem-se à construção simbólica de identidade no âmbito nacional da música popular. Suas considerações sobre a complexidade desse processo e os diferentes aspectos a serem considerados complementam a contextualização teórica do estudo que se pretende desenvolver relacionando construção de identidade e produção musical no âmbito da canção regionalista tocantinense.

3. Delimitação de um estudo sobre a canção regionalista tocantinense Alguns trabalhos acadêmicos relacionados à temática da identidade cultural tocantinense contêm citações de trechos de letras de canções regionalistas. Um desses trabalhos é a pesquisa de Messias (2008) sobre significados atribuídos a bens culturais na cidade tocantinense de Porto Nacional, com ênfase na relação da população com o rio Tocantins. A autora analisa relatos de sentimento de perda diante da alteração da paisagem, decorrente da formação do lago da UHE Luis Eduardo Magalhães. Trechos de letras de canções são citados em conexão com depoimentos de moradores e dos próprios cancionistas e contribuem para o desenvolvimento de um argumento sobre a dimensão simbólica do rio na construção da identidade local (MESSIAS, 2008: 2-3).

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Ramos (2003) também utiliza trecho de letra de canção regionalista para reforçar o seu argumento. Nesse caso, trata-se da canção Nóis é jeca mais é jóia2 , usada pela autora para reforçar sua preocupação com dominação cultural e reivindicação no sentido do povo tocantinense “mostrar as suas origens” e “valorizar o que lhe é peculiar” (RAMOS, 2003: 4). A autora parece referir-se a práticas culturais anteriores e independentes dos eventos e intervenções políticas. Verifica-se, portanto, que a inserção da canção regionalista em debates acadêmicos sobre a identidade cultural tocantinense tem se limitado a citações de trechos de letras das canções. Embora essa abordagem seja perfeitamente coerente com os objetivos e metodologias dos trabalhos citados, é necessário destacar a lacuna de estudos que abordem a canção regionalista tocantinense como discurso de construção simbólica de identidade em sua integridade estética, nas dimensões de produção e recepção. Do ponto de vista da produção, a canção popular é uma forma híbrida que “agrega necessariamente melodia, letra e arranjo instrumental” (TATIT, 2004: 92). Os sentidos construídos por canções englobam os do conteúdo (letra), da expressão (melodia) e do gesto de organização dos elementos sonoros, visando à manifestação do núcleo de identidade da canção (arranjo) (COELHO, 2007: 188). A análise de canções populares como discursos de produção de sentidos deve ser realizada, portanto, a partir de fonogramas, ou seja, gravações em áudio, suporte que comporta de maneira completa o trinômio letra-música/arranjo (COELHO, 2007: 188-189). Do ponto de vista da recepção, conceitos de ouvintes sobre gêneros musicais e sua pertinência na música popular brasileira se relacionam com legitimação e consagração artística, podendo refletir uma hierarquia social dos consumidores (ULHÔA, 2001: 61). Outra abordagem relevante é relacionar aspectos da produção, como sutilezas da interpretação vocal, às opiniões de ouvintes qualificados (ULHÔA, 1995: 32-33). O foco do presente estudo é explorar as relações da canção regionalista com os pólos do debate sobre a identidade tocantinense apontados na primeira seção do artigo. Cabe discutir em que medida sua produção e recepção estão relacionadas a um processo histórico regional e/ou aos discursos de legitimação do poder político. Em outras palavras, debater como a canção regionalista se insere no imaginário coletivo descrito por Rodrigues (2009: 70) como um espaço de representação misto de mitos, verdades e versões.

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Para alcançar esse objetivo, as etapas seguintes desta pesquisa serão desenvolvidas a partir da Selection de Chansons Regionales – Tocantins elaborada pela Fundação Cultural do Tocantins – FCT, em 2005. O CD foi produzido para integrar a programação oficial do estado no Ano do Brasil na França3 . O próprio repertório e seu processo de seleção serão investigados a partir dos referenciais teóricos e metodológicos discutidos neste artigo. As informações preliminares sobre o material podem ser observadas na figura 1 e no quadro 1.

Figura 1: Capa e contracapa do CD Selection de Chansons Regionales - Tocantins.

As logomarcas evidenciam o papel das esferas governamentais estaduais e federal na viabilização do CD. Esse papel teria sido de coadjuvante ou de protagonista? Que interesses e critérios teriam predominado na seleção das canções e dos cancionistas e/ou intérpretes? A observação dos créditos e uma primeira audição da coletânea evidenciam a diversidade de participantes e também de gêneros musicais inseridos. Que recursos são utilizados para conciliar as diferenças? Pode-se falar em uma construção simbólica de identidade regional nas canções isoladas e na coletânea como um todo? Que tipo de identidade seria essa? A pesquisa, assim delimitada, insere-se na subárea de música popular, com contribuições em potencial para o desenvolvimento do conhecimento particularizado sobre os processos culturais regionais do estado do Tocantins. Além disso, o estudo dialoga com estudos atuais na mesma subárea (em temáticas como autenticidade, regionalismo e também análise da música popular) além de estudos em outras áreas de pesquisa como estudos culturais e geografia crítica.

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Quadro 1: Créditos do CD Selection de Chansons Regionales - Tocantins, Fundação Cultural do Tocantins, 2005.

Referências: BRAGA, Luiz Otávio Rendeiro Corrêa. A invenção da Música Popular Brasileira: de 1930 ao final do Estado Novo. Rio de Janeiro, 2002. 408f. Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal do Rio de Janeiro. CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa. Fronteiras de identidade regional no sertão do Brasil central. In: INTERNATIONAL CONGRESS OF THE LATIN AMERICAN STUDIES ASSOCIATION, XXIII, Washington, DC, 2001. s/n. COELHO, Márcio Luiz Gusmão. O arranjo como elemento orgânico ligado à canção popular brasileira: uma proposta de análise semiótica. São Paulo, 2007. 226f. Tese (Doutorado em Semiótica). Universidade de São Paulo. FUNDAÇÃO CULTURAL DO TOCANTINS. Selection de Chansons Regionales. CD. (Coletânea de vários autores e intérpretes). Institucional, 2005.

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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11a. ed. Rio de Janeiro: DP&Editora, 2006. MESSIAS, Noeci Carvalho. Águas mortas: reflexões sobre a memória de um patrimônio cultural perdido. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA, IV, 2008. Vitória da Conquista. História: sujeitos, saberes e práticas. Vitória da Conquista: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2008. s/n. OLIVEIRA, Maria de Fátima. Rio Tocantins: lugar de memórias e identidades. Revista Mosaico, v. 1, n. 2, 163-168, 2008. RAMOS, Belgna Ribeiro. Tocantinense: um povo sem identidade cultural? In: II SIMPÓSIO REGIONAL DE GEOGRAFIA, II, 2003. Uberlândia. Perspectivas para o cerrado no século XXI. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de Geografia, 2003. s/n. RODRIGUES, Jean Carlos. Política e religião na Nova Geografia Cultural: o caso da criação do estado do Tocantins. Revista de Estudos da Religião, Ano 9, junho, 51-72, 2009. TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. ULHÔA, Martha Tubinambá de. Estilo e emoção na canção: notas para uma estética da música brasileira popular. Cadernos de Estudo – Análise Musical. São Paulo/Belo Horizonte, Atravez, v. 8/9, 30-41, 1995. ULHÔA, Martha Tubinambá de. Nova história, velhos sons: notas para ouvir e pensar a música brasileira popular. Debates, v. 1, n. 1, 80-101, 1997. ULHÔA, Martha Tubinambá de. Pertinência e música popular: em busca de categorias para análise da música brasileira popular. Cadernos do Colóquio, Rio de Janeiro, dez. 2001, 50-61, 2001. ZAN, José Roberto. Música popular brasileira, indústria cultural e identidade. EccoS Revista Científica, São Paulo, UNINOVE, v. 3, n. 1, 105-122. Notas 1

Letra disponível em http://to.gov.br/hino-do-estado/744 e gravação disponível em http://www.youtube.com/ watch?v=WpPB0ZrA9vM (acesso a ambos os endereços em 4 de abril de 2011). 2

Canção de Juraíldes da Cruz, cancionista natural do norte goiano e radicado em Goiânia-GO. Integra o repertório de Xangai. Tornou-se conhecida do grande público na interpretação de Genésio Tocantins, no concurso Novos Talentos do Domingão do Faustão (2002). Vídeo disponível em http://www.youtube.com/ watch?v=Ja9YLhD82KE&NR=1 (acesso em 4 de abril de 2011). 3

O Ano do Brasil da França foi promovido pelo Ministério da Cultura em 2005 http://www.cultura.gov.br/site/ 2005/01/18/ano-do-brasil-na-franca2005/. O estado do Tocantins participou com mostras de artesanato e artes plásticas e shows musicais http://radioagencianacional.ebc.com.br/materia/2005-08-01/programa %C3%A7%C3%A3o-oficial-do-tocantins-no-ano-do-brasil-na-fran%C3%A7-come%C3%A7-hoje-0108 (acesso a ambos os endereços em 4 de abril de 2011).

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