Candido Portinari e Mário Pedrosa: uma leitura antropológica do embate entre figuração e abstração no Brasil

August 1, 2017 | Autor: Patricia Reinheimer | Categoria: Arte, Antropología
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CONSELHO EDITORIAL

Bertha K. Becker (in memoriam) Candido Mendes

Cristovam Buarque Ignacy Sachs Jurandir Freire Costa Ladislau Dowbor Pierre Salama

Candido Portinari e Mário Pedrosa: uma leitura antropológica do embate entre figuração e abstração no Brasil

Patrícia Reinheimer

Copyright © 2013, Patrícia Reinheimer Direitos cedidos para esta edição à Editora Garamond Ltda. Rua Cândido de Oliveira, 43 – Rio Comprido Cep: 20.261.115 – Rio de Janeiro, RJ Telefax: (21) 2504-9211 E-mail: [email protected]

Revisão Carmem Cacciacarro Editoração Eletrônica Estúdio Garamond / Luiz Oliveira Capa Concepção e execução Patrícia Reinheimer Sobre gravura de Olly Reinheimer, s.d.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE DO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. R291c Reinheimer, Patrícia Candido Portinari e Mário Pedrosa: uma leitura antropológica do embate entre figuração e abstração no Brasil / Patrícia Reinheimer. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Garamond, 2013. 336 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 9788576173199 1. Portinari, Candido, 1903-1962. 2. Pedrosa, Mário, 1900-1981. 3. Pintores - Brasil - Biografia. 4. Artes plásticas - Brasil. 5. Crítica de arte. I. Título. 13-06844

CDD: 927.0981 CDU: 929:7.034(81)

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.

Aos meus pais e avós

Sumário Prefácio, 9 Apresentação, 13 Introdução, 15

Capítulo 1 O campo: antes de entrar é preciso construir, 31 Do corpo à nação: cultura e civilização, 41 Modernidade como atributo moral, 52 Modernidade pós-Paris?, 63 Significados, obras e artistas, 73 Portinari para exportação, 86

Capítulo 2 Mário Pedrosa: uma trajetória da política à arte, 100 A juventude e a política como interesse prioritário, 104 Aliança com o universo artístico e posicionamento político, 111 O encontro: Portinari e Pedrosa, 123 O exílio, 137 Capítulo 3 Figuração x abstração , 155 A Unesco e a internacionalização da arte, 167 Vocação, singularidade e marginalidade, 179 As especificidades do trabalho artístico, 182 Sofrimento psíquico e educação na arte moderna, 191 “Nosso vizinho é o mundo inteiro”, 208

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Capítulo 4 Aica e a inscrição de uma nova ordem, 219 Abstração: uma forma de viver de modo novo realidades antigas, 232 A liberdade como fronteira, 246 Figuração x abstração no Brasil, 260 Considerações finais, 275

Referências bibliográficas, 289

Fontes etnográficas, 301 Lista de siglas, 321

Anexos Artigo de Pedrosa sobre Villa-Lobos, 1929, 323 Artigo de Pedrosa sobre Portinari, 1935, 329 Trechos de críticas de arte do começo do século XX , 330 Lista de imagens, 333

Prefácio Desta singularidade, entre as muitas O embate entre figuração e abstração do título desta obra é uma arena em que se joga a noção de singularidade, que me parece ser o mais profundo eixo analítico em questão e que circula ainda de modo frouxo – apesar de sua imensa relevância analítica – no jargão das humanidades contemporâneas. A contribuição de Patricia Reinheimer à sua ilustração merece assim nossa mais alta atenção: trata-se de uma análise de questões cruciais da modernidade ocidental e – nela – da brasileira, à luz justamente de uma versão controlada daquela noção, cultivada em prestigiosa corrente da atual sociologia francesa. Georg Simmel, ao contrastar modelarmente um individualismo quantitativo e outro qualitativo, deu uma forma sociológica impecável às duas grandes configurações culturais que sustentaram a formação da cosmologia ocidental moderna: o modelo quantitativo se referia ao ideal da cidadania moderna, com seus atributos de liberdade e igualdade dos indivíduos; o modelo qualitativo se referia ao ideal da autonomia própria de cada ser individual, tomado ele mesmo como uma totalidade. É a isso que os pensadores românticos do século XIX chamavam de “singularidade”: uma individualidade da diferença e não da igualdade. Aplicaram-na a todos os níveis ontológicos: singularidades culturais, como as nações ou as eras; pessoais, como os artistas ou os pensadores; e artísticas, como as obras de arte, esses grandes testemunhos da criatividade humana através dos tempos. 9

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Nathalie Heinich, a cujas inovadoras propostas em sociologia da arte a autora deste livro se filia, cunhou a expressão “regime de singularidade” para designar, contra um antigo “regime de comunidade”, este reino de afirmação da condição humana marcado pelos atributos de sensibilidade, criatividade e autenticidade. Para quem, como eu, tem explorado as implicações heurísticas da oposição estruturante entre o iluminismo e o romantismo na modernidade ocidental, trata-se exatamente do que procuro designar por esta última categoria – tão importante e tão frouxamente empregada quanto a de singularidade. Não fossem as duas justamente indissociáveis! O livro se debruça sobre uma problemática empírica muito precisa, capaz de fazer render controladamente as questões teóricas abrangentes que o inspiraram: a relação entre artistas e críticos de arte no pós Segunda Grande Guerra, um momento crucial para a adaptação do mercado brasileiro de arte (e de suas ideologias) às tendências que se haviam digladiado no campo europeu de um pouco antes, do entreguerras. Para tanto, se debruça sobre o “caso” da oposição entre a arte de Candido Portinari, o pintor laureado do modernismo brasileiro, e a crítica de arte de Mário Pedrosa, figura capital, ativa e polêmica das novas tendências. Deste novo horizonte deveriam desaparecer as associações que haviam inspirado uma arte engajada entre os séculos XIX e XX, comprometida com a produção de uma imagística da realidade natural ou da realidade nacional, ou ainda com a produção de corpos imaginários mais precisos, todos externos à forma artística – como puderam ser os que se inspiraram nos variados programas ideológicos desse intenso período. O grande ciclo da figuração ocidental moderna, desde o advento da paisagem e do retrato até as desconstruções formais características do início do século XX, devia então ceder o passo a uma maior abstração – literalmente à “abstração” – como garantia de uma autonomia que, só ela, poderia levar esse mundo sagrado à “excelência absoluta”. Tratava-se de renunciar a todo propósito engajado ou voto piedoso, comprometido, objetivando chegar ao limite último do ideal da vanguarda, uma “obrigação de vanguarda”, como diz a autora: cons-

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tante ruptura formal, constante desvio e transgressão em relação às normas e convenções. Embora toda cultura detenha a sua própria chave estética, seu modo específico de conceber a boa ordem plástica do mundo e de representá-la, o Ocidente moderno assumiu a preocupação com o estatuto do belo até as mais radicais consequências. É provável que isso se tenha dado como parte da constituição da representação “naturalista” do mundo que o caracteriza fundamente. “Representar” o mundo natural (e nele o mundo cultural emergente) foi um mandamento essencial do trajeto das artes ocidentais a partir do Renascimento. E não só de “representar”, mas de representar “naturalisticamente”, como se veio a dizer. O trajeto se adensou com a ênfase expressivista do romantismo, em que a natureza a ser representada passava a ser a da interioridade dos sujeitos, suas paisagens e retratos íntimos, os estados de alma com que comungavam das condições sensíveis do mundo envolvente. Num terceiro momento, que bem pode ser chamado de “pós-moderno” – como o faz a autora (embora eu tivesse preferido “neorromântico”), ideólogos como Pedrosa propuseram deslocar a avaliação da obra de arte desse contexto expressivo que a suscitara; não só de sua época e lugar, mas também da qualidade de seu autor, essa que fora a chave da representação romântica do gênio. Uma peça bélica fundamental de Mário Pedrosa para afirmar esse novo foco foi sua defesa do caráter artístico da produção dos internos de uma instituição psiquiátrica, em que a sensibilidade junguiana de Nise da Silveira suscitara a criação de um Museu do Inconsciente. Que testemunho mais patente da autonomia absoluta da obra do que esse, ali cultivado, da emersão de um sujeito que não se considera ser o senhor racional de sua produção? Ao se debruçar sobre a posição de Portinari e de Pedrosa em seus campos e tempos, de modo a melhor fazer discernir as propriedades do caso em questão, Patricia Reinheimer também contribui para uma antropologia da pessoa moderna e, particularmente, das pessoas singulares, exemplares, que se expõem à vida pública e se configuram, por tal ou qual traço de suas carreiras, como modelos ativos,

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originais, para as gerações seguintes. Afinal foi – e continua sendo – aí, mais ainda do que no tocante às nações – que se corporificou de maneira plena o “regime de singularidade” aqui tratado. Os perfis de Portinari e de Pedrosa se alinham assim a muitos outros, brasileiros, tratados pela antropologia que se cultiva no Museu Nacional. Em parte pela inspiração dos estudos de Luiz de Castro Faria sobre campo intelectual, em parte pela de Gilberto Velho a respeito de “carreiras e trajetórias” (na linha do interacionismo), ou ainda em parte pela das análises de Louis Dumont sobre a ideologia do individualismo – muito importantes para minha própria carreira –, formou-se entre nós uma linha de trabalhos desse tipo, de que me ocorre mencionar os que fizeram Alfredo Wagner Berno de Almeida sobre Jorge Amado, Elisabeth Travassos sobre Mário de Andrade, Paulo Guérios sobre Villa-Lobos ou Regina Abreu sobre Miguel Calmon e Euclydes da Cunha. As singularidades pessoais são uma via régia para a compreensão das singularidades sociológicas em que emergem e de que participam. Patricia Reinheimer obteve ainda inspiração fecunda, nessa direção, de Nathalie Heinich, com o seu famoso tratado sobre a “glória de Van Gogh”. Inspiração fecunda porque não submissa, já que o nominalismo sociológico radical de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, hoje associado ao nome de Bruno Latour, e que paira no horizonte da obra, se faz mediar por uma antropologia flexível, atenta às nuances sutis dos emaranhados empíricos. Numa obra que contém séria reflexão sobre as ideologias nacionais, grandemente tematizadas pela arte, avulta a análise do modo como o Brasil adentrou, tardiamente, o “campo internacional das trocas artísticas”, onde hoje se movimenta em posição secundária, mas com alguma destreza. Para a construção de sua singularidade, os personagens deste livro deram suas vidas, intensamente, em formidáveis embates; e elas retornam, esbatidas na reflexão antropológica, na singular qualidade desta obra de uma singular autora. Luiz Fernando Dias Duarte

Professor Titular do Museu Nacional, UFRJ

Apresentação Esse livro é a adaptação da minha tese de doutorado, defendida no Museu Nacional, UFRJ, em outubro de 2008, sob orientação de Giralda Seyferth. O caminho para chegar ao tema e à problemática a ser desenvolvida foi longo. A investigação permitiu observar um desses períodos de controvérsias que resultou em uma mudança do que foi em um determinado momento considerado arte moderna e a demarcação de uma nova definição de arte no Brasil. No começo do século XX, o modernismo brasileiro se construiu a partir de uma “atualização” da temática nacional, em parte fundada em uma transição da ideia de miscigenação racial para a de formação cultural. Na Europa do pós-Segunda Guerra, a crítica de arte se institucionalizou reafirmando a autonomia da obra de arte e construindo uma linguagem específica para falar da arte moderna e contemporânea a partir da rejeição tanto do assunto em torno do qual produzir uma obra quanto das noções de nacionalismo e nacionalidade. Nesse mesmo período essa discussão foi trazida para o Brasil através do apoio à representação abstrata, ainda que na música e na arquitetura, principalmente, houvesse um movimento de definição de uma arte nacional. Para observar as ambiguidades desse processo, tomei os debates travados por Mário Pedrosa em torno do pintor Candido Portinari e sua obra como ponto de partida. A investigação se iniciou no acervo do Projeto Portinari, onde encontrei a menção a diversas instituições internacionais relacionadas às artes plásticas no período imediatamente após a Segunda Guerra. A ênfase que estava sendo conferida a essas instituições me levou a procurar nos arquivos da Unesco, em Paris, e da Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica), em 13

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Châteaugiron, na Bretanha, a rede de atores sociais de distintas nacionalidades que enunciava tais discursos. Pude então observar em uma vasta produção discursiva (apresentações em congressos internacionais, entrevistas, artigos produzidos para periódicos, textos de apresentação em catálogos, cartas, entre outros) a riqueza das contradições nas disputas pela redefinição das fronteiras artísticas e o questionamento do que se considerava arte e de quais atributos definiam um artista. A dispersão no espaço foi uma das características principais desse campo de investigação. Assim, além do desafio da relativização de domínios/objetos/fenômenos que fazem parte da experiência da pesquisa, além de ter que lidar com os “imponderáveis”, foi um desafio descobrir e circunscrever o campo através do qual investigar o objeto e construir a problemática da pesquisa. Devo aos fomentos do CNPq e da Capes e à confiança da minha orientadora e de Luiz Fernando Dias Duarte, que intermediou meu contato com Nathalie Heinich, a possibilidade de concretizar essa investigação, e à Faperj o patrocínio do livro. Uma vez mais, agradeço a Giralda Seyferth, Luiz Fernando Dias Duarte e Lígia Dabul pela delicadeza no aceite em preparar os textos da orelha, do prefácio e da contracapa, respectivamente. Coube a eles e ainda a Ana Maria Daou e Antônio Carlos de Souza Lima a tarefa de compor a banca de defesa. Agradeço a todos os comentários, parcialmente incorporados no livro. É preciso ainda agradecer aos profissionais das instituições nas quais pesquisei, Cemap/Cedem, Unesco, Aica e Projeto Portinari, nesse último, em especial a Ângela Mega Chagas. E ainda a João Candido Portinari, ao Projeto Hélio Oiticica, Cemap/Cedem e ao Museu Nacional de Belas Artes por terem autorizado o uso das imagens aqui reproduzidas. Contei também com diversas outras pessoas que estimularam e enriqueceram, cada um à sua maneira, essa trajetória, ainda que eu deva assumir toda a responsabilidade pelo trabalho. Familiares, amigos, colegas e alunos têm contribuído nesse trajeto e a todos sou grata pelas trocas e pelo afeto, mas a Alexandra Tsallis agradeço especialmente o cuidado com que me ajuda a tecer os sentidos das pequenas e grandes conquistas na vida.

Introdução O objetivo deste livro é analisar o processo de transformação dos valores da crítica de arte, do artista e da produção artística no Brasil no período que se estende do final da Segunda Guerra ao começo da década de 1960. Isso foi feito a partir do cotejamento da produção discursiva da crítica de arte internacional com a aplicação desses valores a situações empíricas brasileiras pelos críticos brasileiros. Mário Pedrosa e Candido Portinari foram os personagens emblemáticos nesse processo, o primeiro por ter incorporado o novo sistema de avaliação do fenômeno artístico e o segundo por ter sido o principal representante do sistema de valores anteriormente vigente. Por isso, a instituição no Brasil de um regime de grandeza1 no qual a singularidade é base da representação de uma atividade vocacional, se deu em grande medida por oposição aos valores representados por Candido Portinari. Para tanto, realizei uma etnografia de alguns arquivos históricos procurando mostrar como os valores artísticos cunhados pelos escritores, principalmente durante o romantismo francês, foram amplamente difundidos pelos críticos de arte logo após a Segunda Guerra Mundial, transformando noções como autenticidade, criatividade e sensibilidade em senso comum. Comecei esse empreendimento pelos arquivos de Candido Portinari. No final da década de 1940, constatei uma mudança na recepção por parte dos críticos ao trabalho do artista, justamente quando o pintor ganhava reconhecimento no principal 1 Compreendo a noção de regimes de grandeza a partir da definição de Boltanski (1991), que supõe a possibilidade da coexistência de uma pluralidade de sistemas de valores a partir dos quais os indivíduos podem ser diferencialmente avaliados.

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centro artístico mundial, Paris. A atenção a essa mudança me levou à intriga sobre a legitimidade dos estilos de representação figurativo e abstrato e às associações internacionais Aica e Unesco (Associação Internacional de Críticos de Arte e Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Uma investigação nesses arquivos mostrou a formação de uma arena internacional e uma transformação no estatuto do crítico de arte, através dos debates nos congressos e assembleias internacionais que apontavam para uma tentativa de unificar as metodologias e os objetivos da crítica de arte em um corpus coerente de conhecimento. Uma vez identificado o processo de revisão dos valores artísticos e de transformação epistemológica na análise e avaliação da produção artística nessa arena internacional e constatada a intensa participação de Mário Pedrosa, voltei novamente minha atenção ao Brasil. A coluna diária de artes plásticas assinada por Pedrosa e alguns de seus textos centrais para esse processo foram então investigados na tentativa de compreender as condições específicas de introdução desse sistema de valores no contexto brasileiro e as mudanças no discurso do crítico após seu afastamento de uma dimensão mais institucional da política partidária (para que ficasse clara a posição política de Pedrosa, incluí um capítulo no qual mostrei sua trajetória de militância na oposição de esquerda e o princípio de seu interesse pelas artes plásticas). Voltei então ao tema da intriga entre figuração e abstração para entender em que medida esse affaire,2 isto é, essa disputa em torno do processo de classificação de estilos artísticos trazia também os valores que conformavam regimes de avaliação da produção artística e de representações3 sobre o artista e a obra de arte. Minha intenção foi 2 A forma affaire (Claverie, 1994) implica o trabalho de revisão das relações de interesse dos protagonistas em questão, vinculando de formas novas o universal e o particular. No caso do affaire figuração versus abstração, estava em jogo uma nova relação entre valores morais e valores estéticos que produziu uma cisão no todo social através da expressão pública de uma indignação que reconstruiu os objetos de apreciação segundo um novo critério de julgamento. 3 As representações são elaboradas pelos indivíduos a partir das ações no espaço coletivo, mas, distintas das ações individuais, elas constituem imagens mentais a partir das quais as pessoas orientam suas ações e gerenciam suas identidades.

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explicitar a não linearidade desse processo de transformação axiológica e epistemológica que se apresentou como resultado de um conjunto simultâneo de situações que ocorreram em meio a configuração institucional, contexto social e desenvolvimentos artísticos e conceituais particulares. Os discursos de alguns dos principais críticos de arte brasileiros, franceses e estadunidenses do período foram as fontes privilegiadas para essa etnografia; em outros termos, esses críticos foram os informantes privilegiados de uma etnografia histórica. Guardadas as proporções, esse período significou para o fenômeno artístico no Brasil mudanças tão radicais como aquelas instituídas pelo romantismo na Europa através da reformulação nas representações do artista e da arte moderna. O processo de revisão de valores pelo qual passou o fenômeno artístico no Brasil no início da segunda metade do século XX esteve intrinsecamente relacionado às transformações ocorridas no universo artístico internacional, ao contexto geopolítico e às ideologias que vigoravam durante a Guerra Fria. Minha intenção foi refletir sobre essas transformações a partir dos discursos dos críticos de arte, categoria socioprofissional que se institucionalizava nesse período, construindo sua própria autonomia em relação principalmente à história da arte. Não há uma relação linear de causa e efeito entre a revisão dos valores artísticos e as transformações acima enumeradas. Todos esses fenômenos ocorreram simultaneamente, com influências mútuas entre alguns deles. Nos quinze anos que se seguiram após o fim da Segunda Guerra foi possível acompanhar o desenrolar de uma contenda nos debates sobre artes plásticas, tanto no Brasil (representado nesse período principalmente por Rio de Janeiro e São Paulo) como na Europa e nos EUA. Nesse embate, nacionalismo, posicionamento ideológico e valores morais, inicialmente considerados como parte dos critérios de avaliação do artista e sua produção, foram paulatinamente excluídos do novo regime de grandeza que se instituiu. Essa intriga girou em torno do debate entre a legitimidade da representação figurativa (ou “realista”) versus a representação abstrata. Esse embate colocou em jogo as representações sobre os críticos de arte, os artistas e a produção artística em um período no qual a rede de instituições in-

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ternacionais se expandia, tendo como critérios de seleção de obras e atribuição de prêmios os novos valores estabelecidos para o fenômeno artístico. O grau e a forma segundo os quais esse affaire variou ao longo desse período foram diferencialmente influenciados pelos contextos históricos locais. Meu principal interesse foi perceber suas repercussões no universo artístico brasileiro, mas para tanto foi também preciso observar como essa revisão se processava entre os críticos de arte de diversos países que se reuniam em torno da Aica, instituição vinculada à Unesco. As transformações verificadas na crítica de arte em meados do século XX dizem respeito ao processo de banalização da ênfase no valor da singularidade individual, através das noções de vocação e autenticidade que se sobrepuseram aos valores da comunidade manifestos no processo de transmissão e aquisição de um conhecimento técnico e na capacidade de seguir as convenções. Os novos critérios de avaliação da excelência artística estavam fundamentados nas representações do artista como um indivíduo destacado da trama social. A marginalidade, como forma de valorização da oposição às convenções sociais, deslocava também a possibilidade do artista construir sua identidade profissional em torno de seus pertencimentos sociais, o que no Brasil do começo do século XX estava relacionado principalmente à nacionalidade e, nas décadas de 1930 e 1940, ao posicionamento político e ao papel de representante das “classes oprimidas”. A revisão desse sistema de valores na França do século XIX passou principalmente pela construção de um estilo de vida próprio ao artista e ao intelectual modernos e se deu através principalmente da produção literária de autores como Flaubert, Baudelaire e outros. Em meados do século XX, a banalização desse processo esteve referida na França, no Brasil e em outros países à disputa entre formas de representação pictóricas e foi efetuada principalmente pelos críticos de arte através de suas colunas diárias em periódicos de grande circulação. Durante o século XIX, a produção artística consagrada cumpria o papel de construção e sedimentação de símbolos para as nações modernas que se formaram no rastro da Revolução Francesa. Cada Estado nacional recorria à literatura, pintura, escultura, assim como

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a um patrimônio classificado como nacional, na tentativa de objetivar a imaginação de totalidades homogêneas historicamente constituídas. Os objetos artísticos eram também apresentados, pelos Estados nacionais, em exposições universais como parte do conjunto de produções “naturais” e “culturais” que contribuíam para delimitar as fronteiras simbólicas entre os países. A própria história da arte construiu-se ao longo desse século como disciplina acadêmica, na França e na Alemanha, através de definições estilísticas e da delimitação de conjuntos de obras comparados a outras totalidades nacionalmente definidas. O processo de institucionalização da arte moderna na França, que estabeleceu como cânone a ruptura em relação aos cânones, resultou na valorização do papel do crítico de arte como intérprete da proliferação de estilos, gêneros e discursos. Em meados do século XX, o estabelecimento de um campo internacional de debates para os críticos de arte através da AICA e de uma rede de instituições – museus de arte moderna e bienais –, somados ao contexto sociopolítico, levaram os críticos de arte a reverem a ideia de autonomia da arte, engendrando a reafirmação da singularidade como valor preponderante para a avaliação do fenômeno artístico, através da rejeição ao nacionalismo e da negação da participação dos artistas em qualquer projeto político, nacional ou não. A instituição desse conjunto de valores, que afirmava a singularidade e a autenticidade como o regime de grandeza que devia prevalecer na avaliação do artista e sua obra, no Brasil foi concomitante a outros dois processos centrais para a reconfiguração do fenômeno artístico contemporâneo também na França: a delimitação da crítica de arte como categoria socioprofissional e a reafirmação da estética como forma específica de avaliação da produção e do produtor artístico. As discórdias públicas em torno da figuração e abstração explicitaram uma nova etapa no processo de separação da estética como critério de avaliação da arte e do artista de outros valores, como os econômicos e principalmente os valores morais. Nessa contenda, as justificativas para o ataque do primeiro estilo e a defesa do segundo colocaram em jogo uma tipologia que vinculava a figuração

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a uma arte necessariamente desvalorizada devido ao conteúdo, que deslocava o interesse da obra para a dimensão ética, enquanto, na abstração, tendo o assunto sido eliminado, a atenção se voltaria para a dimensão estética. Aqueles que defendiam a figuração não viam contradição na presença de uma dimensão moral na arte, acreditando haver uma função que o artista deveria cumprir em relação à coletividade, enquanto acusavam a abstração de ser uma forma de arte individualista por estar desconectada das questões coletivas, classificando pejorativamente esse estilo de “decorativo”. Os termos dessa tipologia construída a partir do vínculo entre estilo e função, seja para defender ou atacar um ou outro estilo, relacionava a figuração a uma “arte aplicada” e a abstração a uma “arte pura”.4 As justificativas para a defesa da abstração foram ao longo do tempo sedimentando a estética como forma específica de avaliação da produção artística. A interpretação da pintura figurativa, pautada no significado do tema e ancorada principalmente na história da arte, dificultava a colocação em prática dos princípios que os críticos de arte vinham se propondo como delimitadores da fronteira entre a atividade dessa categoria socioprofissional e as interpretações de disciplinas como a História, a Filosofia e a Psicologia da arte sobre seu objeto de admiração. A representação abstrata colocava o desafio de se avaliar questões intrínsecas à prática da pintura, como o uso de texturas, o equilíbrio de formas e cores e a distribuição destas no espaço da tela, prestando atenção na composição como um todo, sem fazer referência a dimensões heterônomas ao fenômeno artístico. Esse affaire, ao mesmo tempo que constituía a crítica de arte como uma atividade específica através da definição de métodos e objetivos que unificassem essa categoria em oposição a outros campos de estudo interessados em arte, separava a estética como uma forma distinta de atribuição de valor à produção artística e divulgava todos esses valores para o público em geral, incorporando-os no senso comum. 4 Lygia Dabul (2001) mostra como a figuração é hoje relacionada automaticamente à arte acadêmica, enquanto a abstração tem mais chances de ser classificada como pintura contemporânea. A autora argumenta que esse não é o único critério para a classificação da produção de um artista como contemporâneo, havendo toda uma gramática corporal que contribui para essa categorização.

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A defesa da representação abstrata deslocava a ênfase no posicionamento ideológico do artista diante de outras esferas sociais como um dos critérios de avaliação de sua produção para a ideia de dom e sensibilidade, reconhecidos em termos de estilos de vida marginais às normas e traduzidos em autenticidade. O contexto aparecia propício para a defesa de um estilo que eliminava o assunto, acarretando, principalmente no Brasil, uma mudança radical em dois critérios de avaliação até então centrais ao universo artístico: a capacidade técnica transmitida através do processo de ensino e aprendizagem e a semelhança ou a eficiência na representação do tema escolhido. Se na França esses valores já estavam sendo questionados pelo modernismo principalmente desde o final do século XIX, no Brasil, o pintor Candido Portinari, um dos principais representantes do modernismo nas décadas de 1930 e 1940, havia tido uma formação acadêmica. Diversas mudanças puderam ser observadas a partir do affaire abstração versus figuração. Com relação aos critérios de avaliação da produção artística, a abstração deslocou a analogia positiva com tudo que tinha sido produzido anteriormente (o quanto o estilo de um novo artista se aproximava dos de outros mais antigos e consagrados) para a dessemelhança com tudo que havia sido produzido até então (o autêntico deveria ser diferente de tudo já produzido). A identidade do artista, por sua vez, também se modificara. Construída até então a partir de uma trajetória objetivada em uma carreira artística que, mesmo contada desde as suas manifestações na infância, era referida contraditoriamente tanto a uma habilidade de aprender e reproduzir as técnicas de desenho, pintura e composição como a um dom, ganhava novos critérios de aferição de grandeza. Vocação e sensibilidade eram instituídas como valores em torno dos quais se construía a representação do artista, e o recurso à infância como afirmação de uma sensibilidade estética imemorial passava a ser a negação de seu caráter adquirido através do aprimoramento de uma habilidade técnica. Ambos os valores estavam fundados em uma tautologia que reconhecia essa dimensão da interioridade nas manifestações de desvio às normas objetivadas em uma produção artística, cujas qualidades eram reconhecidas pela crítica de arte.

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A ênfase no professor como transmissor do conhecimento técnico foi deslocada para outro ator social, em um primeiro momento para o mestre, que não mais ensina ao aluno, mas desvela para o próprio artista e revela para o círculo de pares a vocação do artista; em seguida para o crítico de arte, que o apresenta, desta vez para um círculo de reconhecimento mais amplo, representado pelo público. Esses dois regimes de valores passaram a ser o referencial privilegiado em torno do qual o fenômeno artístico se organizava como um sistema de avaliação da produção e da atividade artística. A produção passava a ser avaliada a partir de um regime de singularidade que se opunha ao regime de comunidade até então em vigor, e a atividade artística como uma atividade vocacional por oposição a uma profissão, com etapas definidas (Heinich, 2005). Esses regimes, que se referem tanto aos objetos de admiração quanto aos atores que participam e engendram o fenômeno artístico, são tipos ideais cunhados para tentar organizar uma realidade complexa na qual diversos regimes de grandeza podem ser acionados pelos atores dependendo da situação. Esses regimes de valor ideal típicos foram cunhados por Nathalie Heinich a partir da literatura romântica francesa, mostrando como os autores do período construíam novas representações sobre a atividade e a produção artísticas. Enquanto a autora descrevia esses novos regimes pela oposição da arte moderna ou um novo estilo em relação à arte acadêmica (ou neoacadêmica, como a define), em meados do século XX a reafirmação desses valores constituía a arte contemporânea como uma nova fase da arte moderna. A ruptura com a forma de representação, por mais radical que tenha sido no século XIX, ainda mantinha relação com a realidade empírica. O desenvolvimento de uma forma de representação desvinculada dessa realidade ainda na primeira metade do século XX, a abstração, foi fundamental para o progressivo uso da arte como recurso psicoterapêutico no tratamento de pacientes mentais e a consequente possibilidade de um processo de legitimação mútuo entre noções caras para os novos regimes de valor artísticos e essas novas terapêuticas nos campos da psiquiatria e da psicanálise. Assim, a relação entre sensibilidade e loucura figurava apenas de

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forma incipiente no horizonte de possibilidades de naturalização da ideia de vocação do artista moderno. A loucura só apareceu oficialmente na história do universo artístico a partir de Van Gogh, no final do século XIX, e, na história da psicanálise e da psiquiatria, ganhou legitimidade a partir a segunda década do século XX, com o trabalho de Hans Prinzhorn5 sobre a coleção da clínica psiquiátrica universitária de Heidelberg. A relação que se estabeleceu entre psicanálise, psiquiatria, educação e arte moderna em meados do século XX foi importante para esse processo de banalização dos regimes de valores artísticos modernos. Foi pensando na relação do artista com os valores de seu próprio universo de atuação que procurei compreender as transformações nas representações sobre o artista e sua produção na metade do século XX no Brasil. Mais importante do que questionar o cunho ideológico e, portanto, falso da noção de singularidade na arte, meu objetivo foi investigar as consequências que tais representações implicaram para o fenômeno como um todo. Não propus com essa análise um sistema classificatório que divida artistas em tradicionais (ou acadêmicos, profissionais) e modernos (ou singulares, vocacionais). O regime de singularidade que se estabeleceu nesse período no Brasil não eliminou o regime de comunidade e nem as representações sobre a vocação substituíram completamente as representações do artista como um profissional. Apesar de serem sistemas antagônicos, um fundado nos cânones e na tradição (podendo, como apontou Heinich, ser denunciado de conformista) e outro na autenticidade (portanto, na raridade) e no desvio (denunciável como elitista), ambos coexistem como regimes de grandeza e podem ser acionados em situações diversas pelo mesmo ator social. A intenção foi observar a incorporação, no universo artístico brasileiro, de um novo sistema de avaliação que se tornou hegemônico 5 Prinzhorn era formado em filosofia e história da arte, “defendendo tese em 1908 na Universidade de Munique sobre o arquiteto Gottfried Semper (1803-1879). Em 1917, formou-se também em Psiquiatria, quando foi trabalhar junto de Karl Wilmanns, na clínica psiquiátrica universitária de Heidelberg” (Andriolo, 2006, p. 43).

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como parâmetro para definir o valor do produtor e da produção artística, mas sem eliminar os valores do sistema tradicional que, em momentos determinados, são acionados pelos atores como parte das representações desse fenômeno. Também não afirmo que os valores elevados a nova ordem de grandeza dentro de um sistema coerente de avaliação a partir da segunda metade do século XX não tenham sido acionados esporadicamente para se referir a artistas e suas produções antes desse período. O processo de instituição desses valores não é linear, mas paulatinamente percebi a crescente ênfase em uns valores em detrimento de outros. A arte não é nem uma linguagem, nem um jogo, mas uma expressão da vida social, assim como a moral e a religião. Como tal, participa das transformações sociais encontrando nos momentos historicamente marcados os principais períodos de revisão de valores. Meu objetivo foi investigar quais foram e como se processaram essas transformações, isto é, como se deu o processo de revisão da noção de autonomia da arte e a constituição de um novo sistema de grandeza a partir do qual avaliar o fenômeno artístico. Algumas perguntas ajudaram a guiar meu olhar, como, por exemplo, por que, a partir de 1946, quando Candido Portinari expôs em Paris, o que poderia ter sido o clímax de sua carreira, seu prestígio começou a ser questionado? Sua obra passava a ser aceita por um público cada vez mais amplo, mas a crítica especializada começava a se dividir, assumindo posições controversas. Por que no Brasil se enfatiza um crítico de arte como empreendedor dessa transformação e não um artista, como Van Gogh? Mário Pedrosa foi o principal responsável pela aplicação sistemática dessa nova axiologia no Brasil. Sua trajetória contribuiu para que no final da década de 1940 tivesse conquistado o capital social necessário para esse empreendimento. Como militante político de esquerda, ele, mais do que ninguém, tinha autoridade para defender a separação entre a estética e a moral em um período no qual os intelectuais acreditavam estar vivendo a democratização do país, e, portanto, valorizava-se o posicionamento ideológico. Essa defesa tinha ainda assim um caráter ético no sentido de acreditar que a liberdade que o artista ganhava com essa separação tinha utilidade na aplicação da

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arte moderna na educação e no desenvolvimento de um novo tipo de indivíduo. A participação de Pedrosa na Aica foi fundamental para todo esse processo. Nessa associação, com sede em Paris, críticos de arte de diversos países estavam percorrendo o mesmo caminho de revisão dos valores artísticos com base no embate entre os defensores da abstração ou da figuração. As justificativas eram aquelas mesmas já descritas e o contexto social também, guardadas as especificidades locais. Apesar desse affaire ter levado à paulatina separação entre a dimensão estética e outros valores na avaliação do fenômeno artístico, a relação da Aica com a política internacional era estreita em razão de sua vinculação à Unesco. A pauta dessa organização tinha influência na temática dos congressos e na escolha dos países onde ocorreriam. Assim, se na dimensão valorativa da produção e da atividade artística a singularidade e a autenticidade são os critérios centrais, isso não significa que outras dimensões sociais não tenham influência no universo artístico. A Aica começou, em 1949, com sessões em 13 países e em 1960 contava com sessões em 36 países e 800 membros. Ao contrário de outras esferas sociais cuja lógica quantitativa deve ser levada em conta no exame da relevância do fenômeno, no que tange às questões relativas às artes plásticas esse não é o melhor critério de avaliação, ainda assim, o crescimento da AICA entre 1949 e 1960 indica o valor que o pertencimento à associação tinha para os críticos de arte que pretendiam inserir a produção artística de seus países nessa rede internacional de instituições voltadas para a arte contemporânea”. Até o começo da década de 1960, os principais críticos de arte brasileiros compareceram em quase todos os congressos internacionais, quase sempre contando com ajuda financeira do Ministério das Relações Exteriores.6 Críticos já consagrados de outros países fundaram a Associação e outros que alcançariam consagração mais tarde também foram membros. Assim, se por um lado, a Aica não tinha uma 6 A partir de 1964, os críticos brasileiros começaram a enfrentar dificuldades devido ao vínculo dessa associação com os países do bloco comunista e a realização de vários congressos nos países do leste Europeu.

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abrangência em termos de distribuição de sessões pelos países do mundo, o prestígio dos críticos que dela participaram, notadamente europeus, mas também da América em geral, torna essa entidade um polo relevante de produção e difusão de formas de pensar sobre arte moderna e contemporânea, justificando sua escolha para a pesquisa. É indicativo da relevância dessa instituição o fato de que, em 1958, a organização de intelectuais e artistas denominada Internationale Situacionniste,7 ao planejar um movimento de questionamento do sistema ideológico o fez através de uma intervenção na Assembleia Geral da Aica em Bruxelas. Mário Pedrosa participou dessa associação desde seu primeiro congresso em 1948. Em 1949, quando a Aica e sua seção brasileira, ABCA, foram fundadas, foi possível perceber uma mudança na postura de Pedrosa diante dos valores artísticos vigentes no campo artístico brasileiro. Essa mudança estava vinculada em grande medida à sua participação nessas instituições. De sua fundação até 1960, Pedrosa esteve presente em todas as assembleias e congressos organizados pela Aica; participou ativamente, tendo sido eleito vice-presidente duas vezes consecutivas, na década de 1950. Chegou a ser indicado como candidato à presidência da associação em 1966, tendo perdido a eleição para Giulio Carlo Argan. Os temas discutidos nas assembleias e congressos da Aica podem ser encontrados nas colunas e textos críticos de Pedrosa ao longo da década de 1950. Assim, a Aica representava ao mesmo tempo a materialização de uma arena internacional de discussão sobre arte e Pedrosa, o ator social que traduziu para o contexto brasileiro a revisão de valores que ocorria nessa arena. 7 Fundada e dissolvida por Guy Debord, a Internationale Situacionniste (1958-1972) foi um movimento de cunho político-cultural de crítica radical à vida cotidiana no capitalismo (Pinto, 2005). Em seu manifesto, os situacionistas condenavam: a “burocratização, unificada em escala mundial, da arte e de toda a cultura é um fenômeno novo que expressa o profundo parentesco dos sistemas sociais coexistentes no mundo, sobre a base da conservação eclética e a reprodução do passado” e propunham que “a resposta dos artistas revolucionários a estas novas condições deve ser um novo tipo de ação”. A defesa da autonomia deveria ser conquistada a partir da instituição de “organizações autônomas de produtores da nova cultura” e do fim de “organizações políticas e sindicais que existem nesse momento”. Para atingir esse objetivo, o primeiro passo era “a tomada da Unesco” (Manifesto da Internacional Situacionista, 1960).

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Vera Pedrosa (2007), filha do crítico de arte, comentou: “Pedrosa escreveu sobre Lygia Clark e Hélio Oiticica quando eles ainda não eram reconhecidos no Brasil. Esses dois eram quase como o Van Gogh. Se não tivessem sido de classe média, tinham morrido de fome”. Ao ouvir tal declaração me perguntei: o que a faria associar Hélio Oiticica e Lygia Clarck, artistas brasileiros, de classe média, que nunca foram diagnosticados como portadores de transtornos mentais, ao pintor holandês paradigma do artista moderno em grande parte devido ao diagnóstico de “loucura” traduzido em “genialidade”? Para responder essa pergunta precisei entender a afirmação daqueles que se debruçaram sobre o trabalho de crítica de arte de Mário Pedrosa, de que ele foi o fundador no Brasil da crítica de arte contemporânea. Hélio Oiticica e Lygia Clark foram ambos reconhecidos internacionalmente como artistas contemporâneos. Na década de 1960, antes de sua consagração, Hélio Oiticica chegou a ser expulso do MAM pelo seu comportamento marginal. Lygia Clark teve seu trabalho questionado por tangenciar as fronteiras entre recursos psicoterapêuticos e arte. Mário Pedrosa foi um dos primeiros a revelar esses artistas que a posteridade consagraria, sancionando também seu potencial como crítico de arte. Espero que ao final deste livro o processo que consagrou nas artes plásticas o desvio como norma em detrimento da capacidade de seguir os cânones tenha ficado evidente para o leitor. Como último comentário, recorri ao curso que Roger Bastide ministrou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em 1939 e 1940, sobre “Arte e sociedade”. O conteúdo do curso foi resumido e publicado em um livro de título homólogo, em 1945, com tradução de Gilda de Melo e Souza e dedicado ao crítico de arte Sérgio Milliet. Nesse curso ele apresentou o trabalho de autores que investigaram as artes através de uma perspectiva sociológica, discorrendo sobre as diversas formas de manifestação artística. Sua crítica principal aos autores citados em relação às artes plásticas é o fato de estes fazerem uma sociologia normativa do que deveria ser a arte, e não descritiva do fenômeno artístico (Bastide, 1945).

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O autor fez uma distinção entre as análises que se debruçam sobre o conteúdo dessas manifestações e aquelas que se preocupam com as interações e as representações que são produzidas a partir destas. Sua preocupação era mostrar que há nos processos de construção social de valores uma distinção entre o valor moral, o valor estético e o valor econômico e que, portanto, a estética era uma forma distinta de atribuição de sentido. Fundamentado em parte em Durkheim, Bastide ressaltou a importância de se considerar as representações coletivas como constitutivas do fenômeno artístico, um dado importante a ser levado em consideração nas investigações sobre artes plásticas. Para o autor, não deve haver na investigação sociológica da arte uma escolha entre a dimensão objetiva das formas e a dimensão subjetiva das representações, mas uma convergência das duas. Procurei prestar atenção a essa lição e descrever ao invés de criticar, observando como as reavaliações estilísticas têm relação intrínseca com a afirmação e criação de valores e, portanto, com o estatuto dos atores e das obras de arte. Veremos assim que a noção de modernidade artística no Brasil foi redefinida em meados do século XX de acordo com a posição de determinados atores sociais e suas participações em uma dimensão artística internacional que se formou a partir das condições de possibilidade que surgiram principalmente após a Segunda Guerra. Mas também como os objetos artísticos constituem a objetivação de valores que podem ser revistos à luz dos novos contextos.

Uma nota sobre o uso e tratamento das fontes

Em relação às fontes etnográficas, muitas vezes são manuscritos, textos datilografados, colunas de jornal retiradas de seu contexto e coladas em folhas A4 ou reproduções de artigos na internet. Em geral, esse material jamais teve uma paginação, ou foi descontextualizado, perdendo a paginação original do veículo onde foi publicado. Assim, só há indicação de páginas quando isso se aplica. Para facilitar a distinção entre as formas de utilização dessas fontes, assumi o for-

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mato itálico com aspas para os textos que constituem objeto de análise, isto é, as fontes etnográficas, e entre aspas sem itálico quando são textos usados como instrumento ou ferramenta de informação e interpretação. As categorias de análise, por sua vez, foram colocadas em itálico, mas sem aspas.

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Capítulo 1 Rondó do Recenseamento Candido Portinari, o grão Portinari Está em Nova York o nosso pintor maior! Que fazer p’ra que o Recenseamento pare E se transfira para data ulterior? A Loba Romana, a ex-Beatriz Portinari Ouvindo isto se remordem de furor E il Fascio, e Verdi e o barítono Stracciari Pois querem italianizar o pintor Candido Portinari

Mas nisto avança o poeta Mário de Andrade De azul todinho com balões ao redor Abre o livrão do Recenseamento ao ar e Grava em primeiro com sua letra melhor: Candido Portinari. (Escrito por Mário de Andrade para Portinari por ocasião de sua estadia nos EUA na mesma época do recenseamento, em 1940.)

O campo: antes de entrar é preciso construir

Tendo em mente a trajetória e especificidade da sociologia da arte, escolhi investigar as transformações no campo artístico brasileiro, 31

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após a Segunda Guerra Mundial, levando em conta as alterações nas representações sobre o estatuto da arte e do artista. Na intenção de tirar o maior proveito possível da investigação, uni o interesse que a Antropologia tem no significado ao interesse que a história da arte apresenta pela forma. Assim, esse trabalho tem por objeto as transformações no insipiente campo artístico brasileiro, entre o final da Segunda Guerra Mundial e o início da década de 1960, quando os debates entre os críticos de arte, na Europa, nos EUA e no Brasil, mostram uma reordenação dos valores artísticos. O affaire em torno da representação figurativa versus a representação abstrata contribuiu para afirmar a estética como uma dimensão excepcional em relação a outras esferas sociais através do recurso analítico da separação entre forma e conteúdo e a alegação de uma independência da arte em relação a outros domínios sociais. Focalizei, portanto majoritariamente as artes plásticas, esfera na qual esse debate foi originalmente travado. Nathalie Heinich define arte como as práticas criativas reconhecidas como tais (Heinich, 2007). Entretanto, é preciso considerar que essa noção pode ser empregada tanto para representar um conjunto histórico de atores sociais, obras e estilos reconhecidos como artísticos por determinadas instituições, normas e atores eleitos e regulados em graus complexos e variáveis, como conjuntos de valores (Freitas, 2002). Mais importante do que procurar uma definição para o que seja “arte”, é então compreender que estamos lidando com um fenômeno histórico complexo, que inclui conjuntos de valores, normas, obras, estilos, gêneros, atores sociais e instituições diversas que pronunciam discursos conflitantes entre si acerca do que venha a ser esse fenômeno que os une, “arte”, contribuindo para uma constante redefinição de suas fronteiras. Observei um desses períodos de disputas que resultou em uma mudança nos limites do que foi em determinado momento considerado arte moderna e o engendramento, junto com algumas novas demarcações, de uma categoria diferente e, com ela, outra definição de arte. O fenômeno artístico apareceu então como um “construto histórico” (Escobar, 2007) vinculado a um contexto específico (as

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discussões sobre estética, a produção artística do período, a institucionalização de uma categoria profissional relacionada à economia da arte etc.), mas também à configuração geopolítica internacional, cujos reflexos no Brasil tiveram resultados particulares em função das especificidades históricas e dos atores envolvidos. Nacionalismo e nacionalidade foram noções centrais para essas transformações. Fazendo um breve histórico da importância da nacionalidade no processo de reflexão/construção da ideia de uma literatura e uma arte brasileiras desde meados do século XIX, vemos rupturas e continuidades em relação ao período que se instaurou após a Segunda Guerra. A busca por uma autenticidade brasileira em meados do século XIX se realizava, por um lado, através de uma operação de crítica às recentes influências inglesas e francesas, como se a subtração destas fosse levar a uma essência autenticamente nacional (Schwartz, 1987); por outro, tentava-se conceber a formação de uma identidade ou cultura brasileira a partir da ideia da formação biológica de um povo historicamente constituído (Nina Rodrigues, Silvio Romero, entre outros). No começo do século XX, o modernismo brasileiro se construiu a partir de uma “atualização” (Moraes, 1988, p. 224) da temática nacional em parte fundada em uma transição da ideia de miscigenação racial para a de formação cultural (Freyre, 1968). Na década de 1930, a unidade nacional foi construída também através da formação de um patrimônio histórico nacional, concretizado em grande medida, pelos ideólogos do movimento de renovação cultural da década anterior (Chuva, 1998). Na Paris pós-Segunda Guerra, a crítica de arte procurava se institucionalizar reafirmando a autonomia da obra de arte e construindo uma linguagem específica para falar da arte moderna e contemporânea a partir da rejeição da temática e das noções de nacionalismo e nacionalidade. Nesse mesmo período, essa discussão foi trazida para o Brasil principalmente por Mário Pedrosa e utilizada como apoio na defesa da representação abstrata, ainda que nos discursos de alguns artistas do período possa ser percebido o vínculo com o projeto desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek.

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Para observar as ambiguidades desse processo, tomei os debates em torno do pintor Candido Portinari e sua obra como ponto de partida. Sua importância não pode ser colocada em termos de centralidade para o campo artístico brasileiro, pois sua obra tem inserções diferentes em períodos e círculos de reconhecimento (Bowness, 1989 apud Heinich, 2004) distintos. Nessa representação os círculos são concêntricos e o reconhecimento é mais restrito e especializado quanto mais próximos do artista. Assim, o 1º círculo seria aquele constituído pelos pares (colegas e concorrentes), o 2º, pelos marchands e colecionadores (contato imediato com os artistas), o 3º, pelos especialistas, críticos, conservadores e curadores (geralmente participantes dos quadros das instituições públicas e distantes temporal e espacialmente dos artistas), e o 4º, pelo grande público. Esse modelo conjuga três dimensões: a proximidade espacial em relação ao artista; a passagem do tempo em relação à sua vida presente (o julgamento dos pares e dos compradores a curto prazo, a médio dos connaisseurs e a longo dos espectadores) e a importância para os artistas do reconhecimento medido pelo primeiro círculo, de acordo com o grau de autonomização de sua relação com a arte (Heinich 2004, p. 70). Em termos de reconhecimento na posteridade, importante critério de avaliação de um artista moderno, se o círculo mais estreito de reconhecimento não considera hoje Portinari como um artista excepcional, a presença de suas obras em diversos veículos de massa tem construído um vínculo cada vez mais forte de seu trabalho com a história e a simbologia brasileira. Em uma reportagem no Jornal Nacional, o apresentador comentou a morte de Portinari por intoxicação com o chumbo presente nas tintas e fechou a matéria enaltecendo o pintor “que deu a vida pelas cores do seu povo” (17/7/2003). O Projeto Portinari8 foi fundado em 1979 pelo filho único do pintor, João Candido Portinari, com a intenção de produzir um catálogo contendo toda a produção do artista, o “Catálogo Raisonée” de Candido Portinari. Funcionando sob os auspícios da Associação Cultural 8 Usarei por vezes a abreviação Projeto para me referir ao Projeto Portinari.

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Candido Portinari, o Projeto organizou todo o acervo documental e artístico do pintor. Para tanto, diversas estratégias foram utilizadas na intenção de coletar informações sobre sua obra e trajetória, colocando seu nome e seus trabalhos em evidência. Logo nos primeiros anos, uma campanha lançava chamadas em horários nobres da Rede Globo falando do projeto e de sua busca por obras não catalogadas. Em 2003, na comemoração do centenário de nascimento do pintor, os catálogos da empresa RioListas (listas telefônicas distribuídas gratuitamente nas residências cariocas) trouxeram na capa uma imagem de Portinari e, logo após o índice geral, duas páginas denominadas Caderno Portinari, com uma breve biografia do pintor. Em 2007, cinquentenário da instalação dos painéis Guerra e Paz na sede da ONU em Nova Iorque, além de uma cerimônia com a presença do presidente brasileiro em homenagem aos painéis na própria ONU, foi criada uma vinheta (de autoria do cartunista Jaguar) que aparece na delimitação dos intervalos dos programas da Rede Globo (um homem se dirige a uma estante e apanha um livro cujo titulo é Vida e obra de Portinari. A câmera se afasta e, atrás do homem e da estante, aparece um detalhe de um dos dois painéis do pintor). O nome Portinari foi vendido para alguns empreendimentos comerciais de luxo, transformando-se em marca de um hotel na orla de Copacabana e de uma linha de revestimentos cerâmicos da Cecrisa. Um escritório de advocacia, Dannemann & Siemsen Advogados, cuida da Portinari Licenciamentos. Portinari teve, no entanto, amplo reconhecimento dos intelectuais em geral e dos artistas e críticos, principalmente nas décadas de 1930 e 1940, e intensa circulação internacional no mesmo período. Na década de 50, sua trajetória fez com que seu trabalho fosse o alvo preferido contra o qual criticar a temática e a influência literária na pintura. Infelizmente, quando o acervo do pintor foi organizado, sua biblioteca não foi considerada como fonte de informação memorial, tendo se perdido o acesso às referências literárias que contribuíram para o desenvolvimento de sua formação e os reflexos disso em sua iconografia. A polêmica que se gerou em torno do artista e sua obra, referidos ao embate entre figuração e abstração, autonomia da obra

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de arte e a relação entre arte e política, configura Candido Portinari como particularmente interessante para a análise que desenvolvi. Assim, a investigação do tema começou nos arquivos do Projeto Portinari em torno da construção de sua biografia e da catalogação de sua obra. O trabalho nos arquivos do Projeto começou por um survey nas obras até então catalogadas. A intenção inicial era fazer algo próximo aos trabalhos desenvolvidos na coletânea organizada por Arjun Appadurai (2003), isto é, desvendar a “vida social” das obras e procurar perceber através de suas trajetórias a diversidade de processos referidos à construção de valores. Entretanto, esse tipo de investigação implicaria seguir o caminho trilhado pelas obras desde sua feitura até os dias de hoje, o que parecia inviável devido ao anonimato prezado pelos proprietários de obras de arte, valores, situações envolvidas na aquisição das peças etc. Desde o início, entretanto, eu tinha em mente que o interesse nas obras não passava por qualquer tipo de interpretação destas. Qualquer análise desse tipo nivelaria o trabalho sociológico à dimensão de diálogo com outros atores do campo artístico, invertendo minha posição de pesquisadora a mais uma atora no campo de forças que delimita o fenômeno artístico. No survey, identifiquei um interessante processo de construção do acervo, nomeação de trabalhos e classificação temática por parte dos diversos atores sociais envolvidos tanto na rede de relações do próprio pintor, quanto posteriormente no processo de manipulação de seu nome, como colecionadores, marchands, galeristas, profissionais de instituições de conservação e o próprio Projeto Portinari. Observar esse processo contribuiu para separar o culto (Abreu, 1994) e construção contemporânea de uma reputação que identifica cada vez mais sua temática com determinados assuntos, da heterodoxia, contradições e ambiguidades vigentes durante a trajetória do artista. A atribuição de títulos aos trabalhos foi muitas vezes efetuada em um momento posterior ao período de sua produção. No processo de catalogação das obras, os proprietários (por vezes os herdeiros dos primeiros proprietários, que em geral participaram da rede de relações do pintor, mas outras vezes pessoas completamente diferentes)

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e mesmo a pesquisadora do Projeto Portinari em certas ocasiões nomearam estudos, rascunhos e/ou pinturas que originalmente não tinham título. Em alguns casos eram nomes anteriormente usados pelo artista para trabalhos similares, ou em denominações atribuídas pelos antigos proprietários e ainda, às vezes, a partir de referências a nomes de obras em textos, cartas ou artigos publicados na época em que o trabalho foi produzido. Na falta de referências, a escolha do nome ficava a cargo do proprietário atual do trabalho ou da pesquisadora encarregada da catalogação. A descrição dessa produção e a identificação de alguns objetos recorrentes nas pinturas geraram ainda uma classificação que afirmava o pertencimento do pintor a um período da história da arte brasileira específico. Os quadros foram agrupados tematicamente para a estruturação do site do Projeto Portinari na internet, apresentando-se da seguinte forma: 1) social: Cangaceiro, Cenas de trabalho, Guerra, Favela, Morte, Paz, Retirante, Tipos étnicos (Índio, Mulato, Negro), Trabalhadores, Industrialização, Outras obras (inclui um desenho de Don Quixote); 2) cultura brasileira: Casamento na roça, Circo, Dança (Frevo, Samba), Espantalho, Festas populares (Baile na roça, Bumba-meu-boi, Carnaval, Festa de Iemanjá, Festa de São João), Jangada, Jogos infantis, Músicos, Tipos populares (Baiana, Gaúcho, Palhaço, Sapateiro, Tintureiro, Vendedor de pássaros, Vendedor de perus); 3) histórico: Cenas Históricas (Anchieta escrevendo na areia, Bandeiras, Catequese, Chegada da família real portuguesa à Bahia, Coluna Prestes, Descobrimento do Brasil, Escravatura, Fundação da cidade de São Paulo, Inconfidência mineira, Navio negreiro, Primeira missa no Brasil, Esquartejamento de Felipe dos Santos – não executada, Abertura dos Portos – não executada),  Personagens (personagens da história do Brasil); 4) religioso; 5) retrato; 6) natureza; 7) natureza-morta; 8) figura humana; 9) não figurativo. Essa classificação reforça a relação da obra de Portinari com a construção de símbolos de nacionalidade empreendida pelos modernistas da década de 1920 e durante o Estado Novo. Atribuir títulos a estudos e rascunhos para pinturas aumenta o acervo do artista e constrói a noção de obra como um conjunto de

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trabalhos produzidos por um único artista cujo nome assegura a coerência real ou suposta. Assim, mais do que tomar os títulos das pinturas como uma referência sobre a época em que os quadros foram produzidos, esse tipo de investigação explicitou a interferência do Projeto Portinari na construção da memória do pintor, no culto a Portinari. Evidenciou-se nesse processo o caráter coletivo dessa construção, e o arquivo do Projeto como um lugar onde sua memória não somente é guardada, mas também produzida e reproduzida continuamente. A relação entre memória e identidade social é explicitada nesses atos aparentemente banais de nomeação9 que engendram uma posição social para o artista no âmbito da história recente da construção simbólica da nação brasileira. A noção de memória então é tomada como um construto social produtor de identidades e definidor de pertencimentos, assim como “um instrumento e objetivo de poder” (Le Goff, 1984). Diversos profissionais estiveram envolvidos no reconhecimento, registro e catalogação dos trabalhos em diversos países e regiões do Brasil. Portanto, há também toda uma história de cada um desses trabalhos que está guardada com esses profissionais. As fichas de catalogação têm as informações museológicas a partir das quais podemos desvendar apenas uma parte do processo. Assim, apesar de terem apontado para um caminho cujos desdobramentos poderiam resultar em interessantes questões sobre o papel do Projeto Portinari na trajetória póstuma do pintor, os trabalhos não se apresentaram, para o meu propósito, como fonte de informações privilegiadas para o tipo de investigação intencionado. Minha atenção voltou-se então para as pessoas que participaram dos círculos restritos de reconhecimento de Portinari, isto é, seus pares e os críticos de sua época, na tentativa de compreender a transformação do valor atribuído ao artista, principalmente ao longo da década de 1950. Levando em consideração a relação entre memória e identidade social (Pollak, 1992), tomei o material biográfico como 9 Atos banais que não são marcados por indícios precisos, como o caso da nomeação de exercícios, rascunhos e pinturas podem ser ainda mais eficazes por não estarem explicitamente definidos como nos rituais de celebração (Bourdieu, 1982).

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fonte de informações sobre o caráter coletivo de uma memória que esteve direta ou indiretamente relacionada a diversos personagens, eventos e lugares emblemáticos da nacionalidade brasileira em geral, e do fenômeno artístico nacional em particular. Procurei, entretanto, observar as ressalvas quanto ao valor parcialmente ilusório dessas construções (Bourdieu, 1986), as relações entre o biografado e o biógrafo e o contexto de produção da biografia, cotejando ainda essas biografias com outros materiais produzidos durante o período de vida do biografado. Esses relatos se transformaram, assim, em rica fonte de informações sobre diversos eventos que se situam dentro do espaço-tempo de Portinari. Um dos materiais analisados foi o relato autobiográfico da infância do pintor, escrito por volta de 1956, mas publicado somente em 1979 pelo Projeto Portinari (Portinari, 1979). Na mesma época em que Portinari escreveu esse relato, Antonio Callado (1979) entrevistou-o algumas vezes para produzir sua primeira biografia. Nessa época o artista era reconhecido pelo público amplo, mas a modernidade de sua pintura já estava em disputa em meio ao círculo mais restrito dos críticos preocupados em debater abstração, concretismo, nacionalismo e internacionalismo em artes plásticas. A morte de Mário de Andrade, seu amigo e admirador, teve forte repercussão no campo artístico brasileiro em geral, e para Portinari em particular. Aquela biografia, publicada pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1956, mostra um homem cético, para quem a arte estava em processo de extinção. Vários outros relatos biográficos de parentes do pintor foram recolhidos depois que o Projeto Portinari foi inaugurado (Portinari, L., 1983; Portinari, I., 1983a; Portinari, P., 1985; Portinari, A., 1980, 1985a), e um livro escrito pelo crítico Antonio Bento foi publicado em 1980 (Bento, 2003). A biografia escrita por Antonio Bento chamou a atenção pela importância que o autor atribuiu a duas instituições específicas, a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e a Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica), e a vinculação desta última com a Unesco. Outra associação internacional que apareceu foi a Associação Internacional de Artes Plásticas (AIAP), também sob

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os auspícios da Unesco. No jornal carioca Diário de Notícias, falava-se da participação de Portinari como um dos primeiros membros dessa associação (Lourenço Filho, 1953). Na época da formação da Aica, Portinari foi indicado por Antonio Bento e outros críticos brasileiros para participar do primeiro Congresso Internacional de Artes Plásticas que deu origem à AIAP. A recorrência de instituições internacionais relacionadas às artes plásticas e a ênfase que estava sendo conferida a elas suscitaram minha curiosidade. Pareceu interessante então procurar conjugar o discurso estético e uma dimensão institucional que se construía em torno de uma rede de Estados nacionais interconectados a partir também da dimensão artística. Em geral, as pesquisas em artes plásticas se concentram em uma das duas dimensões do fenômeno por mim vislumbrados. Por um lado, uma sociologia que privilegie as instituições pode se concentrar no surgimento de museus, galerias e bienais e sua interferência no campo nacional onde a instituição foi inaugurada e a criação de novos constrangimentos daí resultantes. Nesse sentido, poderia ter sido feita uma investigação sobre o processo de surgimento dos museus de arte moderna e as transformações que esse processo engendrou para o fenômeno artístico. Por outro lado, uma abordagem preocupada com os discursos estéticos se concentraria em observar as diversas delimitações (estilos, gêneros artísticos, grupos ou regiões) recriadas durante a polêmica. Em geral essas abordagens contribuem para a reificação da dimensão individual do fenômeno artístico moderno, fazendo com que o contexto social pareça mero pano de fundo. Optei por conjugar as duas dimensões, tentando ver como as representações sobre o artista foram reformuladas a partir do prisma institucional de configuração de uma rede internacional de atores sociais e como esta reformulação interferiu nos discursos sobre arte moderna no Brasil. Centralizei as investigações nos arquivos do Projeto Portinari, na Fundação Biblioteca Nacional, que tem um acervo de documentos de Mário Pedrosa, no material do Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Cedem), na sede da Unesco, na Bibliotèque National de France, em Paris e nos

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arquivos da Aica, na Bretanha. Foi essa documentação que constituiu o campo dessa investigação. A Unesco não foi tomada por seu valor intrínseco, por sua representatividade ou pela atuação efetiva que exerceu em cada Estado membro. Seus arquivos, entretanto, servem como testemunho das questões relevantes para os profissionais das diversas áreas de interesse da organização. Através desses arquivos é possível observar os tópicos sendo colocados em debate pelas diversas ONGs relacionadas à instituição, de forma mais ou menos internacional. Diversos conceitos cunhados ao longo da trajetória da disciplina antropológica para definir pertencimentos coletivos foram criticados como construtos que apresentavam os grupos como isolados, física e temporalmente, de processos sociais mais extensos no tempo e no espaço. No caso do trabalho aqui proposto, falar em um campo pode passar a impressão de uma totalidade nitidamente identificável. Entretanto, de forma inversa, assim como é preciso prestar atenção nas conexões externas que contribuem para transformar as relações no interior de grupos, ainda que estes tenham algum tipo de circunscrição territorial, é possível delimitar um campo de investigação a partir das conexões entre atores diversos. Nesse caso, foi a enunciação dos atores sociais que desenhou o terreno e definiu as escalas. Entretanto, é preciso ter em mente que a distribuição de significados entre os diferentes espaços e atores sociais aponta para a arbitrariedade de uma unidade social cunhada com objetivos analíticos particulares.

Do corpo à nação: cultura e civilização

Os conceitos de cultura e civilização, importantes para a compreensão dos discursos pronunciados em relação aos diversos fenômenos desde meados do século XIX no Brasil, tiveram seus significados atuais desenvolvidos a partir das transformações políticas ocorridas na França e na Alemanha de meados do século XVIII (Elias, 1993). A noção de cultura, inerente à reflexão das ciências sociais, tem sido usada para pensar a unidade da humanidade na sua diversidade.

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Edward Burnett Tylor usou pela primeira vez o conceito de cultura, em 1871, ainda no singular. Nessa definição, ele propôs transpor para as formas de organização, costumes e tradições transmitidas de geração em geração a ideia de estágios diferenciados de evolução como forma de classificar hierarquicamente os grupos humanos. Baseando-se em conceitos e teorias emprestados das ciências naturais, os antropólogos classificaram, no século XIX, as diferenças ao longo de um eixo temporal e hierarquia de valores que ia da selvageria, passando pela barbárie, à civilização. A arte, o conhecimento, os costumes e as superstições, tomados aleatoriamente, eram os critérios utilizados para avaliar o grau de evolução dos grupos humanos (Stocking Jr., 1982). A ênfase na ideia de cultura como singularização de um coletivo desenvolveu-se na Alemanha a partir de um movimento literário que pretendia expressar a transformação da sociedade, o Sturm und Drang. Esse movimento, formado pelo setor intelectual de classe média, excluída da participação política, legitimava-se a partir de suas realizações espirituais, científicas ou artísticas. O conceito enfatizava a antítese social dessa classe com a aristocracia cortesã, que se autoidentificava através da ideia de civilité e politesse (Elias, 1993). Essa oposição surgiu em um momento de tensão entre a intelectualidade de classe média e a aristocracia cortesã e se apresentava através da antítese entre profundidade e superficialidade, sinceridade e falsidade, convencionalismos externos e virtudes autênticas. Antes da definição do conceito de civilização no trabalho de Mirabeau em 1751 (Elias 1993), as noções de civilité e politesse cumpriam as funções de expressar a autoconsciência das classes superiores europeias perante outras consideradas mais simples ou primitivas, assim como servia para caracterizar o comportamento através do qual as pessoas se distinguiam de outras. Keith Thomas (1988) mostrou como, desde o Renascimento, a noção de cultivo, origem semântica dos termos civilité, civilização e cultura já estava sendo utilizada para pensar uma classificação dos seres humanos a partir de sua relação com a “natureza”. Nesse processo de classificação e categorização sistemática do mundo, utilizou-se a noção de cultivo para pensar uma diferença essencial entre o humano

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e o não humano. O trabalho de Thomas apresenta diversos pontos em comum com o trabalho de Elias (1993) no que tange à ideia de civilização como um processo de refinamento que se inscreve nas instituições e no corpo individual. As fronteiras de separação entre homens e animais serviram como critérios de classificação dos seres humanos em tipos, atribuindo-se a cada tipo identidades diferenciais a partir de uma categoria paradigmática. As tentativas de definir a especificidade do ser humano assumiram uma polarização entre “homem” e “animal” na qual o ser humano era invariavelmente superior. A moral, a religião e a educação erudita eram os refinadores das maneiras, tendo como objetivo elevar os homens acima dos animais e a “civilidade” e o aperfeiçoamento como metas. Tentava-se estabelecer com essas classificações um padrão moral de comportamento humano. A atribuição de valores negativos aos animais ajudava a identificar, por oposição, os seres humanos (Thomas, 1988). Estava por trás dessa ideia a suposição de que o ser humano poderia se “perfectibilizar” (Duarte, 1999). Nesse processo de desencantamento do mundo, houve a paulatina afirmação de uma realidade externa da natureza e de uma realidade interna do observador. Esse foi o fundamento para as representações de uma sensibilidade específica ao pensamento “ocidental moderno” a partir do qual se desenvolveu, ao longo do século XVIII, a noção de estética. Esse processo de refinamento, o “improvement” do ser humano, era pensado a partir de uma escala que ia do mais simples ao mais complexo e não comprometia, antes do século XIX, a crença em uma humanidade comum. Alguns autores argumentam que o otimismo igualitário da Revolução Francesa reintroduziu a desigualdade/diferença em diversas esferas sociais. Para Boltanski (1993), por exemplo, o surgimento da teoria da educação estética permitiu reabsorver parcialmente a tensão entre a constatação empírica da desigualdade de competências em termos de julgamento do gosto e a exigência da igualdade em presença do belo, o que permitia juntar estética e política. Assim, se as diferenças de grau não colocavam em questão a unidade da espécie humana, no século XIX, a noção de igualdade levou à categorização

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racial da humanidade e a desigualdade política passou a ser concebida em termos naturais (Malik, 1996). Os conceitos de “raça” e de “cultura” têm sido instrumentos através dos quais o relacionamento entre a humanidade, a natureza e os sistemas sociais tem sido compreendido. É então a partir da segunda metade do século XVIII que a noção de nação começou a ser reformulada, e a ideia de cultura foi aplicada aos Estados nacionais. O romantismo elevou o valor do indivíduo e enfatizou a emoção e a imaginação, tornando a nação finalidade da ação individual guiada por ações morais. Foi dessa tentativa de conciliar o individual com o social que o conceito de nação se tornou importante ao longo do século XIX. Com o crescimento da democracia política, a ideia de inferioridade ganhou uma conotação crescentemente cultural ou social. Se no iluminismo os seres humanos eram pensados como naturalmente iguais e a desigualdade tinha sido criada pela sociedade (cf. Rousseau), a explicação biológica invertia essa ideia: a diferença passava a ser natural, e a igualdade se tornava possível através da sociedade. A ideia de nação passava então a ser a possibilidade de todos serem iguais (Malik, 1996). Desde a segunda metade do século XIX, o desenvolvimento do Estado moderno, com suas instituições de administração e controle (serviço civil, força policial, sistema de educação, sistema de bem-estar social), já vinha contribuindo para a transformação do conceito de nação. A ideia da incorporação de uma história e herança orgânica com uma cultura homogênea começou paulatinamente a predominar. A nação deixou aos poucos de ser pensada como produto de uma associação política voluntária e passou a ser compreendida como a encarnação de uma identidade étnica, linguística ou racial particular. Em alguns países cuja noção moderna de nação foi imposta a grupos muito distintos, a sensação de coletividade tinha que ser construída; para outros, o problema estava em legitimar as instituições emergentes do Estado nacional como repositórios da nacionalidade. Aos poucos a nação passou a ser vista como a culminação da evolução histórica. As ideias universalistas eram identificadas com princípios revolucionários e desordem social. Paulatinamente essas divisões

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passaram a ser consideradas naturais, e o particularismo nacional e cultural passou a ser celebrado. Influenciados por Herder e Rousseau, os novos nacionalistas “concebiam as nações como entidades orgânicas autocontidas, cuja importância estava em sua particularidade e singularidade” (Malik, 1996, p. 139). Assim, a história e a cultura das nações modernas foram construídas através da delimitação de suas fronteiras físicas e simbólicas, da criação de instituições sociais que as representassem e do estabelecimento de distinções entre seus cidadãos e entre esses e os estrangeiros”. A nação tornava-se então uma continuidade cultural entre presente, passado e futuro. A língua nacional passou a ser vista como a alma da nação, apesar dos idiomas nacionais terem sido construídos com o tempo através da educação e da imprensa. O esquecimento foi enfatizado como um importante instrumento no processo de construção nacional, assim como as tradições que inventam símbolos públicos, cimentando a ideia de trans-historicidade. Os pressupostos nacionalistas do final do século XIX e começo do XX imaginavam um modelo de Estado nacional fundado em um povo dotado de uma cultura homogênea. Entretanto, antes de definir os nacionalismos a partir de características culturais, foi preciso afastar a definição racial das nações até então vigentes. O primeiro registro que se tem de uma tentativa de rejeição do papel da raça na constituição da ideia de Estado nacional foi a de Ernst Renan, em 1882. Renan (1990) apresentou a nação como tendo sua origem em diferentes fenômenos dependendo do contexto histórico de cada uma. Assim, havia Estados mantidos por laços religiosos (como Israel e Pérsia, por exemplo), nações políticas (como França, Inglaterra e a maioria dos Estados modernos europeus) e outras mantidas por questões como raça ou língua (Alemanha e povos eslavos). O autor explicitou a novidade do fenômeno, reafirmada por Anderson cem anos depois (1983). Desnaturalizou a ideia das fronteiras e da nação como dinastia, indo na contramão das teorias raciais do período, ao desvincular raça e política. Descartando raça, língua, geografia, interesses materiais, religião e necessidades militares, considerou a história e um princípio espiritual como fundadores das nações moder-

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nas. A nação seria formada então pelo legado histórico e a vontade de perpetuar esse legado. A nação acabava sendo quase um indivíduo coletivo, uma “consciência moral”. Durante o século XX, a concepção moderna de “nação” foi um tema amplamente investigado. No final do século, Balibar (1991) questionou a validade das narrativas históricas nacionais que atribuem continuidade a um fenômeno complexo e temporalmente recente. Para esse autor, a nação apresentada através dessas narrativas aparece como automanifestação de uma personalidade nacional situada quer em ancestrais, em datas precisas ou qualquer outra origem at convenience, o que constitui uma ilusão – mas também uma realidade institucional constrangedora. Essa ilusão é dupla: pensar que as gerações transmitem através dos séculos uma substância invariante e ver, retrospectivamente, o processo pelo qual selecionamos elementos para nos apresentarmos como nos encontramos no presente como um destino, isto é, o único desenvolvimento possível. Os franceses de hoje não têm nada a ver com o destino da França, o projeto de seus reis ou as aspirações de seu povo. Assim, projeto e destino seriam as figuras simétricas nessa ilusão de identidade nacional. Entretanto, a noção de “at convenience” usada para criticar a continuidade forjada através da utilização arbitrária de datas e eventos no processo de construção nacional, indica a importância de certos atores, seus interesses e sua relação com o contexto histórico nesse processo. Se por um lado não podemos tomar os atores como agentes de sistemas coloniais, não podemos também negligenciar o fato de que as ideias formuladas na Europa informavam as elites nacionais. Assim, o mercado artístico em formação a partir da ideia de internacionalidade da arte moderna se apresentava como uma nova forma através da qual seria possível participar da noção de civilização europeia. A noção de hierarquia implícita em conceitos como cultura e civilização pode ser percebida na teoria social sobre o gosto que Pierre Bourdieu sistematizou no final da década de 1970. O autor procurou mostrar como a cultura, tomada naquele momento como a “encarnação do sagrado” (Bourdieu, 1998, p. xiii), poderia ser observada

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como um sistema hierarquizado e hierarquizante. Para tanto usou a ideia de que a “cultura francesa”, como uma totalidade, ainda que segmentada, podia ser oposta a outras totalidades nacionais (também segmentadas). Era possível assim reduzir a cultura a um modelo sociológico que relacionasse o universo econômico e as condições sociais e o universo dos estilos de vida. Sua proposta era observar as formas de apropriação dos objetos de arte para tentar uma objetificação das “estruturas mentais” associando-as à particularidade de uma “estrutura social”. Tal sistematização exigiu do autor distinguir dois sentidos diferentes para a noção de cultura: 1) o sentido normativo e restrito do uso comum, que identifica a cultura ao refinamento e 2) “cultura” no sentido amplo, no qual o gosto “refinado” é reconectado ao gosto em geral, de forma a indicar um processo classificatório que é acionado quando utilizamos o termo no primeiro sentido. O trabalho desenvolvido teve como perspectiva principal o sistema de classes, apesar de recorrer à comparação entre a “cultura francesa” e a “cultura americana” a partir de instituições específicas e de “invariantes estruturais” que lhe serviram para formular conclusões sobre ambos os sistemas sociais. Essa comparação, entretanto, traz implícita não apenas a possibilidade de pensar as culturas nacionais, umas em relação às outras, a partir do esquema usado para explicitar o caráter hierárquico da noção de “cultura de classe”, mas uma quase obrigatoriedade de fazê-lo quando se trata de “cultura” no sentido normativo, que é aquele empregado quando se fala de cultura referindo-se às artes plásticas. A noção de civilização, por sua vez, também tem, desde sua origem, a ideia de uma classificação hierarquizada, de uma confrontação de valores sociais. Civilizar designa, desde o seu surgimento, um ideal profano de progresso intelectual, técnico, moral e social. Esse sentido universalista dominou o pensamento europeu do século XIX a ponto do termo passar a ser usado não somente no singular, mas com o artigo definido para se referir à Europa como o ápice do mundo civilizado: a Civilização (Jacob, 1991). Esses horizontes ideológicos de perfectibilidade e civilização constituíram a base que sustenta ainda

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hoje uma visão de mundo e de constituição de pessoa. Essas noções podem ser identificadas nos discursos de instituições das mais variadas esferas sociais no Brasil durante a primeira metade do século XX. Nas primeiras décadas do século XX, a relação entre psiquiatria, psicanálise e educação esteve relacionada a uma perspectiva civilizatória, tendo a eugenia como horizonte. Em relação à educação como estratégia de desenvolvimento e manutenção cultural, Fernando de Azevedo publicou em 1943 seu primeiro livro empenhado em mostrar a existência de uma cultura brasileira que não era imutável e deveria ser estimulada. Apesar de tratar basicamente de educação, o livro tinha capítulos dedicados à “raça”, à “evolução social” e à “psicologia do povo brasileiro” e ainda à “vida literária” e à “cultura artística” (Azevedo, 1943). Nesse período as discussões sobre “miscigenação” e “psicologia das massas” eram centrais para a ideia da formação histórica de uma “raça brasileira” e da forma através da qual esta deveria ser governada. Para Azevedo, o interesse do povo pela cultura e pelas coisas “do espírito” devia ser estimulado pela educação. Apesar de sua pretensão em falar “da” cultura brasileira, estava em jogo ali a noção de cultura no sentido normativo, “alta cultura” e não a ideia de formas de organização, costumes e tradições que constituiriam “uma” cultura. Azevedo procurava demonstrar que o Brasil se encaminhava para ter uma civilização e não apenas cultura.10 Para tanto, o autor usava a relação com a Europa se referindo a um Brasil-Atlântico no qual o Atlântico era a ligação com o Velho Mundo. Esse mesmo ambiente intelectual marcado “pelos debates a propósito da ‘civilização’ do Brasil e dos desafios representados pela ‘raça’ e pela ‘educação’” (Duarte, s/d, p. 1), que condicionou no entreguerras o desenvolvimento de saberes como a antropologia e

10 Para Norbert Elias (1993), esse conceito expressa a autoconsciência do Ocidente que crê ser sua peculiaridade estar à frente de grupos humanos, contemporâneos ou não, considerados “mais primitivos”. Elias argumenta que foi principalmente a partir da Revolução que o conceito começou a dar a volta ao mundo com um sentido estático, isto é, de que as sociedades colonizadoras se consideravam (e eram consideradas) como transmissoras de uma civilização acabada. A consciência dessa civilização justificava a dominação do mundo extraeuropeu, assim como os conceitos de politesse e civilité justificavam a dominação por parte das classes superiores.

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a psicanálise no Brasil, fundamentou as representações artísticas brasileiras. A arte moderna, associada à teoria positivista do progresso, era concebida como parte do processo civilizatório pelo qual as construções nacionais deveriam se instituir como nações modernas. Por um lado, as críticas propostas à noção de totalidade implícita na ideia de cultura nacional são válidas se levarmos em conta que um Estado nacional não pode ser delimitado em termos de uma homogeneidade cultural cujos limites podem ser fixados e são irredutíveis a outras entidades similares. Por outro, não se pode ignorar que a ideia de uma cultura brasileira que deveria ser aprimorada e que tinha como termo de comparação principalmente uma cultura francesa constituía uma realidade para os intelectuais brasileiros do século XIX e primeira metade do XX (assim como, ainda hoje, é aceita pelo senso comum e instrumentalizada nas disputas políticas por diversos atores sociais). O modernismo artístico da primeira metade do século XX, no Brasil, foi parte constitutiva do processo de construção da própria ideia de nação brasileira a partir da noção de cultura. Intelectuais e artistas como Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Heitor Villa-Lobos, Emiliano Di Cavalcanti, entre tantos outros, estavam comprometidos, cada qual à sua maneira, com a interpretação, construção e definição do que se poderia compreender por cultura nacional brasileira. Portanto, analisar as condutas e os discursos como forma de fugir à armadilha do conceito de cultura nacional não nos exime de considerar a realidade desse conceito para os atores investigados. Assim, quando da morte de Portinari, o jornalista José Paulo Moreira da Fonseca explicitou a simbologia que Portinari tinha representado para os intelectuais modernistas durante as décadas de 1930 e 1940 (Fonseca, 1962). O jornalista comparou a nação a um organismo vivo, no qual o corpo seria seu território e a soberania sua identidade civil. O país foi representado no artigo como um ser orgânico que passa pelo processo de amadurecimento e construção de subjetividade. Essa trajetória, portanto, se encerra com a morte (desfecho sugerido pela forma como o autor estruturou a questão).

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A ideia de uma organicidade entre Portinari e sua terra estava referida à influência do pensamento romântico, principalmente de autores como Herder, entre os intelectuais brasileiros da primeira metade do século XX. O homem para Herder é o que é, em seus modos de ser, pensar e agir, pelo fato de pertencer a um todo cultural nacionalmente definido (Dumont, 1985, p. 127). É a ideia da nação como um indivíduo coletivo e de cada indivíduo como representante da humanidade a partir de seu pertencimento a essa coletividade. Nessa concepção as nações modernas podem ser ordenadas em função de seus valores (ou poder) em relação umas às outras. Portinari (como outros artistas consagrados, como Di Cavalcanti, por exemplo) era assim considerado um dos representantes de uma nacionalidade brasileira em desenvolvimento. É seguindo essa linha de pensamento que Fonseca (1962) associa o “amadurecimento” nacional brasileiro à arte moderna. Segundo ele, o processo de “amadurecimento do Brasil” teve início com o movimento de 1922: “A posse, ou melhor, a consistência nesse modo inconfundível de ser, significa maturidade. E maturidade é algo que se espelha em todos os setores de seu organismo: a voz se modifica, a face se transfigura, os desejos são outros, o pensamento diverso. Ocorre na música, nos códigos, na poesia, na indústria, na pintura. Sempre fui da opinião que o Brasil se tornou adulto a partir do movimento de “22”, seu Ipiranga no campo cultural com que se foi prolongando política e socialmente na série de revoluções e reformas, processo esse que hoje segue mais intenso do que nunca”. A partir daí começou-se a criar um “estilo” próprio, uma “alma brasileira”. A construção dessa identidade nacional, segundo o autor, se deu a partir da superação dos exemplos individuais, mas sem relegar ao segundo plano “essa ou aquela individualidade”. A esses intelectuais do início do século, o jornalista atribuiu a fundação de uma “alma” para o país, “que mediante a força do gênio souberam imaginar concretamente aquilo que era vago anseio na cisma de todos”. Para Fonseca, Portinari foi quem consagrou definitivamente a “alma” da nação brasileira. A preocupação com a ideia da construção de uma cultura nacional brasileira surgiu concomitantemente à independência política

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do país. Desde então, a noção de cultura e sua relação com a nação brasileira vinha sendo pensada no sentido humanista, isto é, como um sistema de valores hierarquizado. Nessa concepção, as culturas eram classificadas como inferiores, medianas, artificiais, assim como era concebível a degradação e o progresso cultural. Foi através de narrativas nacionais como aquela questionada por Balibar que a ideia de uma cultura nacional brasileira foi forjada por José Paulo Moreira da Fonseca. A construção de Estados nacionais nos antigos domínios coloniais se deu a partir da ideia de incorporação de instituições e sistemas semelhantes aos então existentes nas nações europeias (ainda que os resultados tenham sido distintos daqueles intencionados). A formação de um campo artístico relativamente autônomo no Brasil foi complexa e repleta de negociações. A partir do início do século XIX, intensificaram-se as trocas com o Velho Mundo no que tange à produção artística. Portanto, para investigar as transformações nas representações sobre o fenômeno artístico no interior desse campo em pleno processo de autonomização, é importante observar a participação de atores específicos, levando-se em conta suas trajetórias e interesses, e também é essencial considerar a relação com a Europa. Compreendo então a necessidade de fundamentar os processos pelos quais as formas sociais são geradas a partir da interação entre indivíduos e entre indivíduos e valores e não apenas em relação a grupos abstratos. Assim, na intenção de entender essas transformações, examinei a trajetória do pintor Candido Portinari, talvez o principal catalisador dos discursos em favor e contra as novas definições de arte moderna que surgiram na segunda metade da década de 1940. Procurei escapar da alquimia histórica produzida pelos relatos biográficos, analisando a trajetória do pintor no contexto de sua participação no universo artístico brasileiro (enquanto ainda vivo). Para tanto, tentei não perder de vista as posições que ele sucessivamente ocupou e as transformações pelas quais passou o mundo do qual ele participou. A organização cronológica da trajetória de Portinari está relacionada à intenção de apresentar algumas das transformações

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pelas quais passaram o próprio pintor (seu estilo, sua temática, seu discurso etc.) e o espaço social no qual ele se inseria, mostrando as modificações nas posições ocupadas que admitiam atitudes diferentes dos atores em disputa pelo estabelecimento de novas representações e valores para o fenômeno artístico. Apesar dessa organização linear, a intenção não é apresentar sua vida como um projeto cuja unidade pode ser remontada a uma origem primordial reveladora de um sentido, de uma razão de ser. A intenção é compreender as posições e os deslocamentos no espaço social que agiram como suporte de atributos e atribuições que o permitiram interagir de formas diferenciadas, ao longo do tempo, com outros atores partícipes de seu mundo social.

Modernidade como atributo moral11

O ano de 1945 foi marcante para o Brasil por diversas razões. O fim da guerra e o término da ditadura Vargas contribuíram para um clima de euforia e clamor por liberdade no país. Mas, em relação à temática aqui discutida, talvez tenha sido a morte de Mário de Andrade, em 25 de fevereiro, o golpe final que possibilitou que as convenções instituídas pelo modernismo inaugurado na década de 1920 fossem duramente questionadas. A historiadora da arte Aracy Amaral ressalta o papel de Mário de Andrade no panorama artístico nacional. Amaral considera Andrade, até seu falecimento, como forte presença na crítica de arte brasileira, tendo se preocupado com questões como o decorativo, o nacional, o regional, o erudito e o popular, a arte pura e interessada principalmente a partir do final da década de 30 (Amaral, 2003). 11 Não se trata aqui de tentar uma definição de modernidade aplicada ao contexto brasileiro. Neste tópico, tentarei mostrar como o adjetivo “moderno”, assim como os substantivos daí derivados (modernista e modernidade), adquiriram significados variados ao longo do período investigado. Não estarei, portanto, tomando essas noções como instrumentos heurísticos para analisar a obra e a trajetória de Portinari, mas tampouco negando sua eficácia como símbolos de valor. Quando o adjetivo “modernista” for utilizado por mim (fora de citações), estarei fazendo referência aos intelectuais paulistas que através de eventos e manifestos construíram o que foi classificado na historiografia artística brasileira como movimento modernista, assim como a uma linguagem artística considerada pelos atores como condizente com os princípios instituídos pelos discursos por eles pronunciados.

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Poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo e ensaísta, Mário de Andrade foi um dos organizadores da Semana de Arte Moderna em 1922, seu principal teórico e um dos principais construtores do evento como um marco da modernidade nacional (cf. Andrade, M., 1942). Participou, também, nas décadas de 1930 e 1940, de uma das mais importantes instituições no processo de construção de um sentimento nacional objetivado na ideia de patrimônio, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) (Chuva, 1998), transformado em Instituto (IPHAN) por Getúlio Vargas. Dirigiu ainda o Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal, onde ocupou a cátedra de história e filosofia da arte. Em 1942, Mário de Andrade declarou sua vaidade por ter sido um dos primeiros a prestar atenção em Portinari (Andrade, M., 1942a). O artigo foi publicado em uma revista argentina, aparentemente como parte do processo de preparação para a publicação de uma monografia sobre o pintor naquele país. Essa monografia foi enviada a Portinari, teoricamente para ser enviada à Argentina (o material acabou não sendo publicado). O autor pediu-lhe que o auxiliasse criticando o material, em seguida solicitou sua ajuda no sentido de procurar alguém que pudesse conseguir que o texto seguisse sem a interferência “dos asas negras”, referência à censura postal de Vargas (Portinari, 1944; Andrade, M., 1944). Quando aquele artigo foi escrito, o pintor e ele já se conheciam há 12 anos, e Portinari já era detentor de um nome. O prestígio simbolizado na assinatura de Portinari havia sido construído em grande medida com a ajuda do poeta.12 Várias cartas e artigos atestam essa participação de Mário de Andrade na trajetória do pintor. Em 1946, um artigo sobre Portinari declarava: “seu Cristovam Colombo não podia ser melhor. Foi ele nada menos que Mario de Andrade” (Aulicus, 1946). Em uma carta, por exemplo, Portinari avisa ter reproduzido, 12 A assinatura é a palavra através da qual a “magia” se torna eficaz (Bourdieu e Delsaut, 2004). Mas o poder não está na assinatura, nem nos discursos que celebram a criação, o criador e suas criações. A eficácia da palavra, ou da assinatura, deve ser procurada no próprio processo de engendramento dessa magia, isto é, nos rituais, nas condições sociais que produzem a fé no ritual. A assinatura pode ser tomada também como um corolário da personalização da grandeza artística e o lócus dessa particularização, marca da expressão pictural de um artista (Heinich, 1998).

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no Diário Carioca, um texto que Mário havia escrito para uma exposição sua (Portinari, 1935), multiplicando assim a visibilidade com a apreciação de Mário de Andrade sobre seu trabalho. Entretanto, a trajetória pública do pintor pode ser remontada ao início da década de 1920, quando alguns artigos de jornal já o apontavam como um possível candidato ao prêmio de viagem à Europa, concedido pela Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). O primeiro artigo comparava sua pintura à de Oswaldo Teixeira, que viria a ganhar o prêmio de viagem em 1924 (Demoro, 1923). A trajetória de Teixeira se construiu paralelamente à de Portinari, e suas posições foram sempre homólogas em termos de prestígio, mas opostas em termos de posicionamento estético. Enquanto Portinari representou o artista “moderno” durante as décadas de 30 e 40, Teixeira era o artista acadêmico mais renomado do Estado Novo.13 Na década de 1930, tornou-se o diretor do recém-inaugurado Museu Nacional de Belas Artes, enquanto Portinari ocupou o cargo de professor de pintura mural na Universidade do Distrito Federal. Portinari nasceu numa fazenda de café no interior de São Paulo, em 29 de dezembro de 1903, e passou sua infância numa pequena cidade rural da região, que ficou conhecida através de seus discursos como sendo sua principal inspiração: Brodósqui. Era filho de imigrantes italianos que chegaram ao Brasil no bojo da grande imigração no final do século XIX. Nas suas construções biográficas, a escola é tida como o marco que definiu sua trajetória artística, pois a ida de Portinari para o Rio de Janeiro se deveria em parte ao incentivo de uma professora que viu os desenhos do menino e chamou a atenção da família para sua aptidão artística. Um desenho em carvão sobre papel feito em 1914, o mais antigo localizado pelo Projeto, é apresentado em geral como ilustração dessa aptidão identificada ainda na infância. Entretanto, para além dessa referência, também há menção ao 13 Osvaldo Teixeira fundou, em 1937, e dirigiu o Museu Nacional de Belas Artes durante 25 anos. Segundo o Dicionário Brasileiro de Artes Plásticas, foi um dos pintores brasileiros mais premiados. Foi o autor do retrato (em tamanho natural) do presidente Getúlio Vargas existente no Ministério da Fazenda e o do Cardeal D. Jaime de Barros Câmara, exposto na Igreja da Candelária, Rio de Janeiro (Dicionário Brasileiro de Artistas Plásticos. INL/MEC, v. IV, 1973).

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seu contato com pintores italianos que estiveram em sua cidade natal para pintar o teto da igreja local, um ano antes de Portinari mudar-se para o Rio de Janeiro e começar sua carreira14 artística. Portinari chegou ao Rio em 1918, com 15 anos. Matriculou-se primeiro no Liceu de Artes e Ofícios e posteriormente na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), onde conheceu Roberto Rodrigues, filho de Mário Rodrigues, proprietário do jornal Crítica (destruído na revolução de 1930). Os dois se conheceram em 1923 na Escola Nacional de Belas Artes, onde estudavam. Essa relação foi decisiva para a pintura brasileira, pois se Portinari ainda não sabia muito bem o que fazer de sua pintura, Roberto queria ser “moderno”. Segundo Ruy Castro (2004), “Roberto viu coisas em Portinari que não via nem em si mesmo e adotou-o. Ou, por outra, fez com que sua família o adotasse” (p. 61). A influência da família Rodrigues em sua trajetória foi tão significativa que Mário Filho, irmão de Roberto e Nelson Rodrigues, foi o autor, quatro anos após a morte do pintor, de um livro sobre a infância de Portinari, prefaciada por Nelson. Em 1924 a família intercedeu em favor de Portinari. Em uma carta, Carlos Campos, presidente de São Paulo, respondia a Mário Rodrigues sobre seu pedido de interferência em favor do pintor no Pensionato Artístico (Campos, 1924). No ano seguinte, novamente se requisitava auxílio para Portinari, mas dessa vez publicamente no Jornal do Brasil: “é do S. Ex. que chamamos atenção para o caso do pintor Candido Portinari. E estamos certos de que o ilustre presidente paulista saberá fazer-lhe a forma de levar até um grau de verdadeira perfeição o seu temperamento artístico – que é, sem dúvida, um dos mais puros e luminosos que ainda deram a sua flor sob o sol do Brasil” (Jornal do Brasil, 1925). Em 1926 Aníbal Freire (1926), então ministro da fazenda do presidente Artur Bernardes, solicitou novamente atenção para que Portinari pudesse estudar na Europa. O ministro escreveu ao deputado Júlio Prestes pedindo que esse empreendimento fosse financiado. É 14 Estou considerando o termo carreira no sentido mais restrito, de um projeto profissional com expectativa de ocupação de postos ascendentes em termos de remuneração e prestígio.

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preciso lembrar que nessa época a distinção entre o público e o privado era bastante mais difusa do que a que foi sendo instituída com as transformações políticas ao longo do século XX. Nelson Werneck Sodré (1983), por exemplo, argumenta que na imprensa havia a prática rotineira de subsidiar com dinheiro dos cofres públicos aqueles jornais que apoiavam o governo. A prática era lugar-comum e, portanto, não se questionava a ética de tal atitude. A condição financeira do pintor era enfatizada como justificativa para o auxílio do Estado. O fato de Portinari ter trabalhado como garçom, ter dormido no banheiro de uma pensão e ter se alimentado das sobras dos fregueses do restaurante foi ressaltado em vários artigos sobre o pintor nessa primeira década de sua trajetória no Rio de Janeiro. Com o seu progressivo sucesso, esse detalhe passou a ser omitido. Em outros artigos, sua idade também era exaltada como fator positivo, pois se dizia, tácita ou explicitamente, que se aos 15 anos ele pintava daquela maneira, com tempo (e ajuda) se tornaria um grande pintor. Ao contrário dos modernistas paulistas, todos provenientes da burguesia, Portinari gerava outros tipos de vínculos com aqueles que o apoiavam através da expressão de admiração, ou de apoio financeiro (oferecido ou solicitado a terceiros). Se levarmos em conta que participam em uma rede de trocas coletividades morais e não indivíduos, Portinari incluía, no circuito de trocas da arte, moedas diferentes daquelas implícitas nas trocas das quais participavam os modernistas da burguesia paulista. O lugar que o pintor ocupava nessa rede social que formava o mundo artístico consagrado no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX supunha outras obrigações morais de retribuição. A gratidão (dar, receber, retribuir) é importante para pensar a dimensão voluntária de adesão às normas morais (Mauss, 1974). Ignorar a obrigação implícita na troca pode ser mais oneroso do que aceitá-la. Bailey (1971), por exemplo, fala do “veneno” subentendido no processo, no qual a escolha passa a ser uma obrigação moral disfarçada. Sevcenko (2001) argumenta que a transição do Império para a República Velha e a chegada à então capital da república dos novos meios de comunicação, transportes e imprensa haviam sido concomitantes

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à ascensão de uma nova burguesia, que necessitava de emblemas que traduzissem as novas relações de poder e prestígio. Fala das relações com o passado, que eram buscadas pela nova burguesia como uma forma de construir historicamente sua legitimidade. A atribuição de significados positivos para a noção de “modernidade” era também uma forma de construir uma distinção em relação a outros grupos que se identificavam pela valorização da “tradição”, afinal o gosto é um sistema de classificação que classifica os classificadores, isto é, as pessoas se diferenciam pelas distinções que fazem. As escolhas de Portinari devem então ser pensadas em termos de sua participação em uma rede de relações que contribuiu amplamente durante sua trajetória. Essa rede se identificava com os signos de modernidade, o que na arte significava aproximar-se do discurso e da forma de representação pictórica defendida por um grupo específico de intelectuais. No ano de 1924, Portinari participou tanto da Exposição Nacional de Belas Artes, organizada pela ENBA, como do Salão da Primavera, fundado com o objetivo de protestar contra os critérios de seleção de obras dos professores da Escola Nacional de Belas Artes. Apresentou, neste último evento, sete retratos de personalidades da época. Em um artigo sobre o Salão da Primavera, foi explicitado o jogo de influências que em última instância definia os ganhadores. O jornalista comentava que um dos pintores não tinha chance de ganhar, apesar do bom trabalho, por não ter o apoio de seu mestre: “estará assim fora de combate... por falta de padrinhos”. Logo em seguida, como se voltasse aos pintores que tinham padrinhos, falava dos sete retratos de Portinari como uma “contribuição uniforme e promissora” (Faria, 1924).15 15 Sérgio Miceli (1998) publicou um livro especificamente sobre os retratos de Portinari como “imagens negociadas” participantes de um contexto interativo “em que se misturam intenções amorosas, pretensões de beleza, fabulações de idade e gênero, projetos de afirmação econômica, expectativas de prestígio, ambições políticas, impulsos de liderança cultural, arroubos de vanguardismo artístico, recados doutrinários, comemorações familiares, lances de patriotismo, uma trama de sangue, suor e lágrimas” (Miceli, 1998). Entretanto, alguns documentos tornam complexa a interpretação desse processo de negociação. Uma carta de Mário de Andrade (1935), assim como um artigo de Callado (1957), descrevem o processo de confecção de retratos adotado por Portinari. Mário de Andrade argumenta na carta que teria preferido uma fase anterior de seu retrato, do que aquela que Portinari deu como terminada. Em 1943, Graciliano Ramos descreve o processo de criação de Portinari ao ter seu retrato feito pelo pintor: “homem estranho, Portinari, homem de enorme exigência com a sua criação, indiferente ao gosto dos outros, capaz de gastar anos enriquecendo uma tela, descobrindo

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Olegário Mariano, político e diplomata, foi um grande incentivador de Portinari na primeira década de sua trajetória artística. Apresentado ao pintor pela família Rodrigues, Mariano conseguiu que seus amigos ricos lhe encomendassem trabalhos (Castro, 2004). Em 1926, uma carta de Mariano a Portinari, que estava em Brodósqui, perguntava se o pintor voltaria a tempo para torcer por sua eleição para a Academia Brasileira de Letras (ABL) (Mariano, 1926). Foi com um retrato do poeta que o pintor ganhou o prêmio de viagem em 1928. Na década de 1920, a formação de vários autores que escreviam sobre artes plásticas era em medicina ou em direito. Ainda assim, o julgamento de valor emitido sobre as obras era frequentemente acompanhado de conselhos sobre o que modificar nos trabalhos comentados: uma mão, a postura, as proporções. Os comentários sobre os retratos pintados por Portinari, entretanto, recaíam em geral mais sobre as “personalidades” dos retratados do que sobre a técnica e a composição utilizadas, e algumas vezes sobre a “personalidade”16 do próprio pintor. Ainda em 1924, o primeiro artigo tendo Portinari como assunto central apareceu em um jornal carioca (F. & N, 1924). Nas colunas anteriores, ele era um entre outros participantes de alguma exposição. Desta vez, sob o sugestivo título “Um retratista moderno”, a matéria falava do “mundo artístico, onde, por todos os meios plausíveis e verossímeis se procura como que o estigma individual, a personalidade, na acepção da palavra”. Falando de sua pintura, o colunista acrescentava que algo de “estranhamente sedutor desprende-se de seus quadros. (...) A pintura de Portinari é cheia de calor, cheia de entusiasmo, cheia de hoje um pormenor razoável, suprimindo-o amanhã, severo, impiedoso. Dessa produção contínua e contínua destruição ficou o essencial, o que lhe pareceu essencial. Não é arte fácil; teve um longo caminho duro, impôs-se a custo nestes infelizes dias de logro e charlatanismo de poemas feitos em cinco minutos. E até nos espanta que artista assim, tão indisposto a transigências, haja alcançado em vida uma consagração”. A partir dessa descrição e da que Mário de Andrade faz do mesmo processo, parece difícil imaginar essa negociação entre o pintor e seus retratados como um resultado reconhecível nas imagens produzidas pelo pintor. Considerando que realmente tenha havido negociações, estas não parecem ter sido tão conscientes como a interpretação de Miceli parece sugerir. 16 Bourdieu define “personalidade, como individualidade biológica socialmente instituída pela nominação e portadora de propriedades e de poderes que o assegura (em certos casos) uma superfície social, isto é, a capacidade de existir como agente em diferentes campos” (1986, p. 72).

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ânsias, de mocidade, de vida! Isso se justifica: soubemos que Portinari é um menino, talvez dezoito anos não tenha ainda, mas é um menino talentoso. Portinari procura já, incessantemente e com toda a robustez de sua alma juvenil de seu temperamento ardente aquilo que se chama individualidade. E vai em bom caminho (...) Em qualquer exposição, seus quadros são Portinari” (o pintor tinha à época 21 anos). À modernidade eram então atribuídos valores considerados positivos, estando noções como “mocidade”, “individualidade” e “personalidade” no centro dessa representação. O artigo foi escrito tendo por horizonte a participação de Portinari no Salão da Primavera, certame “moderno” por oposição ao Salão da ENBA. Entretanto, o que parecia estar em questão não era a sua pintura, mas o próprio pintor. Em outro artigo, o jornalista atribuía à ascendência italiana o “dom da pintura”: “Candido Portinari é dotado naturalmente de um grande pendor para a pintura que, talvez, lhe tenha vindo como uma herança ancestral do sangue legitimamente florentino que lhe deu origem” (Latour, 1924). Chamar a atenção para as características artísticas associando-as à sua ascendência era uma forma de elidir o processo de aprendizado acadêmico que permitiu ao artista desenvolver uma habilidade, transformada então em herança étnica. A modernidade como atributo do artista, mais do que da obra, aparece no artigo de Fonseca (1926): “Se dissemos que Portinari é um artista moderno, teremos certamente dito tudo e temos tecido o maior elogio que se pode tecer a um artista filho do século, que não se peja de viver no século em que vive, comungando as ideias do momento e realizando altivamente esse momento. § Entre nós, ser moderno é ser perseguido, apupado, apedrejado; mas também é ser forte, superior e doloroso. Ser moderno é ser mártir, é ser incompreendido, mas também é possuir a exata noção do que seja Arte. § Estão os renovadores sensatos fartos de brada a estes senhores que vivem encastelados no passado, se alimentando do passado e trabalhando para o passado”. O crítico de arte Celso Kelly (1925) apresentou Portinari como descendente de Beatriz Portinari (musa inspiradora de Dante Alighieri) e discípulo de Miguel Ângelo. Seus comentadores, admiradores e críticos construíam sua “fortuna crítica”.

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Nesse período Portinari negava explicitamente a existência de uma separação entre “arte moderna” e “arte acadêmica” (O Globo, 1925). Ainda assim, era lhe atribuído o rótulo de “moderno”, que para alguns se referia à construção de uma arte e literatura nacional: “tudo está a assegurar, finalmente, a promissora afloração de um artista moderno, colorista de fina têmpera, jogando com tonalidades discretas e harmoniosas e constituindo, portanto, no Brasil, um estímulo e um consolo para todos nós que levantamos os olhos de quando em quando, visionários utópicos e incorrigíveis, para uma possível independência artística e literária. Mas para isso é necessário antes de tudo, que demos livre curso à personalidade libertando-se do cárcere estreito das escolas européias” (Jobim, 1926). A noção de modernidade na arte e na literatura vinha sendo relacionada desde o século XIX à libertação dos cânones europeus, à construção de temáticas tidas como autenticamente nacionais ou ainda, às vezes, à construção de um povo histórico brasileiro. A classificação de Portinari como artista “moderno” já era enunciada antes de sua ida para a Europa e estava relacionada mais a um conjunto de atributos morais do que propriamente a uma temática ou técnica artística. Em termos especificamente plásticos, Portinari tinha trilhado até então o mesmo caminho que todos os outros artistas da ENBA, isto é, uma trajetória acadêmica no sentido do cumprimento das etapas de consagração da carreira de pintor. Em 1926, no entanto, não havia ainda um consenso em torno de Portinari. José Pinto Flexa Ribeiro17 (1926), por exemplo, comentou que, no pintor, “a elegância do desenho, o romantismo de outras eras, sobrelevam as demais qualidades. É um jovem que ficou à margem da evolução pictural. Dir-se-ia um tradicionalista: mas sua fatura recebeu o influxo de certas modalidades da pintura moderna, onde também aquele sentimento predomina. E não é outra razão que levou-o a filiar-se a Zuloaga, mestre que sempre se conservou estranho às correntes que revolucionaram a arte desde o Impressionismo”. A referência a Zuloaga era uma forma de colocar em dúvida a modernidade de seu trabalho: em tempos de sedução do novo, filiar 17 Historiador, crítico de arte, professor de história da arte e jornalista.

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o pintor a um artista que não seguia as novas concepções de arte pós-impressionismo era atrelar o trabalho de Portinari a algo considerado então ultrapassado. Essa filiação, entretanto, foi apropriada por outros comentadores, sem a conotação negativa ou duvidosa que Flexa Ribeiro havia inicialmente atribuído. Se Portinari tivesse seguido uma trajetória diferente, talvez essa filiação tivesse sido o início de seu posicionamento em relação a uma cadeia de artistas de estilo já definido dentro da história da arte. Em relação à arte moderna, Heinich (1991) ressalta o duplo trabalho de singularização e generalização empreendido pelos historiadores que primeiro precisam destacar o artista por sua singularidade, para então inseri-lo no conjunto de gêneros e estilos já classificados. Assim, Flexa Ribeiro (1926) ainda deixava alguma esperança: “do seu sentimento, muito devemos esperar: alguma coisa da alma florentina tenta renascer nesse adolescente que é, desde já um espiritualista”. Uma pequena nota publicada em 1927 explicitava a sucessão definida de honras, passando pela hierarquia de recompensas a ser percorrida para se alcançar no Salão da ENBA, o prêmio máximo: a medalha de ouro que garantia o prêmio de viagem à Europa. A nota avisava que Portinari tinha chegado ao último degrau antes desse prêmio: “hoje, acrescentemos, para alegria de seus amigos, que Candido Portinari, no Salon oficial deste ano, obteve a medalha de prata – prêmio a que fez jus por um de seus trabalhos ali expostos. Este prêmio, é bom notar, é o último a atingir para o aluno chegar ao da medalha de ouro – o prêmio de viagem” (Candido Portinari, 1927). O pintor passou a ser tratado como uma celebridade. Seu aniversário, viagens (Anniversarios, 1927) e eventos que o envolviam eram anunciados em notas de jornal com pompa de personalidade pública e fatos dignos de amplo conhecimento. O acesso aos periódicos era privilégio de um público restrito. Portanto, o mesmo que tinha autoridade para pesar nas decisões sobre pensionato artístico, usando para tanto a imprensa como instrumento de manipulação. Em 1928, uma carta de Pedro Leão Veloso (ministro de relações exteriores dos governos de Getúlio Vargas e José Linhares) a um embaixador não identificado, recomendava Portinari para o prêmio de viagem. Para-

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fraseando Ruy Castro (2004), nesse processo do prêmio de viagem, os Rodrigues jogaram com o peso do jornal. Em 1928, o pintor ganhou (como era esperado) a medalha de ouro que lhe concedeu o prêmio de viagem para Paris. Os dois retratos apresentados foram de Olegário Mariano (que foi premiado) e de Roberto Rodrigues.18 O Correio da Manhã publicou um artigo enumerando alguns dos prêmios anteriores concedidos pela Escola Nacional de Belas Artes a Portinari – medalha de bronze em 1923, pequena medalha de prata em 1925, grande medalha de prata em 1927 –, concluindo que foi uma “graduação rápida de prêmios para prêmios até a conquista deste ano” (Correio da Manhã, 1928). Uma charge do jornal Correio da Manhã apresentou a despedida do artista no alto da página, de ambos os lados do logotipo e do cabeçalho do periódico: no canto esquerdo, uma caricatura do artista aparecia andando para o lado direito com uma mala na mão. Portinari partia com um sorriso nos lábios, olhando para a frente. Portanto, sem olhar o leitor. A legenda dizia: sai um dos nossos mais falados artistas com o prêmio de viagem. No segundo quadro, no canto direito, o artista aparecia sentado na mala, segurando a perna direita cruzada por cima da esquerda e olhando para o público leitor, com um cigarro na boca e os olhos arregalados com a seguinte legenda: para ser na Europa um ilustre desconhecido (Méndez, 1929 – fig. 1).

18 Roberto Rodrigues foi assassinado em 26 de dezembro de 1929, na redação do jornal. Três meses depois da morte de Roberto, o patriarca da família, Mário Rodrigues, morreu de trombose cerebral. Na época da morte de Roberto e Mário Rodrigues e da falência da família, Portinari estava na Europa desfrutando o prêmio de viagem.

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Fig.1 – Charge publicada em 16 de maio de 1929, no Correio da Manhã, por conta da viagem de Portinari para desfrutar o prêmio de viagem recebido no Salão de Arte da Escola Nacional de Belas Artes.

Modernidade pós-Paris? Em Paris, Portinari conheceu Maria Victoria Martinelli, uma uruguaia radicada com a família naquela cidade, com quem foi casado até dois anos antes de sua morte. Faz parte da história de sua trajetória como artista moderno ressaltar que o pintor só produziu duas telas pequenas enquanto esteve na Europa: seu tempo lá foi usado para visitas a museus e a familiarização com os mestres modernos e antigos. Enfim, para adquirir a cultura europeia cuja falta lhe era criticada

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(apesar da simultânea reivindicação de abandono do padrão europeu em relação à constituição de uma cultura brasileira autêntica). Portinari voltara de Paris um artista moderno, deixando para trás algumas das marcas de atribuição que o localizavam como pertencendo à classe de pintores acadêmicos formada pela Escola Nacional de Belas Artes. Na antropologia, o trabalho de campo é considerado o “ritual de passagem” que produz uma nova entidade: o pesquisador é transformado em antropólogo. Nas artes plásticas brasileiras, o ritual de instituição era nesse período a ida a Paris. Ainda hoje muitos alunos da Escola de Belas Artes da UFRJ vão para essa cidade. Entretanto, essa capital já não é mais a única e, talvez, nem a principal cidade para onde os artistas plásticos vão para “se aprimorar”. Alguns anos mais tarde, Pedrosa (1958) comentou a perda de prestígio que as viagens de formação tiveram com a diminuição do tempo e a facilidade maior em se ir até Paris. Assim como em qualquer outra disciplina, há critérios para a aferição da legitimidade de um processo de profissionalização condizente com os requisitos vigentes: não é qualquer trabalho de campo que é considerado um ritual de passagem. Na década de 1930, entretanto, era a estadia na Europa, mais precisamente em Paris e preferencialmente longa, que legitimava, naturalizava o limite arbitrário da condição de artista consagrado. Assim como os títulos escolares e os títulos de nobreza, os rituais de instituição multiplicam o valor do ator social em questão, multiplicando a intensidade e a crença no seu valor (por si mesmo e pelos outros). O discurso da transformação radical após uma longa viagem a Paris pode ser encontrado, assim, em diversos outros artistas. Di Cavalcanti, em sua biografia, ressaltou a importância da capital francesa pela negação de seu deslumbramento. O artista desdenhava a atitude “colonial [do brasileiro] diante da metrópole quando chega a Paris”, alegando que, para ele, Paris “era, desde que me fiz gente, uma coisa familiar” (1955, p. 130). A tentativa de mostrar naturalidade diante do fato reforça a importância atribuída a ele. Descreve pessoas e eventos a que assistiu em Paris, como se descrevesse o marco de seu ingresso no que o autor denominou sua maturidade. Instituía assim

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sua singularidade a partir da diferença entre sua forma de se relacionar com a Europa e a de outros artistas. Portinari foi entrevistado quanto aos seus planos em relação à sua estadia na Europa, antes de partir. “Entendo – diz-nos ele – que a estadia na Europa não deve ser aproveitada pelo pintor para uma produção intensa e quase nada meditada como têm feito alguns colegas. Considero-o um prêmio de observação. O que vou fazer é observar, pesquisar, tirar da obra dos grandes artistas – do passado, nos museus, ou do presente, nas galerias – os elementos que melhor se prestem a afirmação de uma personalidade. Procurarei encontrar o caminho definitivo da minha arte fazendo estudos e nunca quadros grandes, que estes roubam ao artista um tempo precioso sem um resultado duradouro e sem influência definitiva no futuro. Prefiro regressar da Europa sem nenhuma bagagem volumosa (...) mas com um cabedal profundo de observações e pesquisa” (Para o Velho Mundo, 1929). O pintor contribuía para a construção de sua singularidade, instituindo para si uma diferença em relação aos artistas acadêmicos, que aproveitavam a estadia para pintar, participar de salões e trazer de volta outros tipos de emblemas de distinção. Ao contrário do sistema acadêmico, a diferença/singularidade é o cânone do artista moderno e é importante que essa diferença se expresse não somente através de uma linguagem plástica, mas também na forma de cada artista se relacionar com o mundo, portanto, de uma marginalidade. Entretanto, as construções identitárias que apontam para a produção de uma autenticidade não eliminam as determinações sociais às quais esses artistas estiveram sujeitos, isto é, a força que as representações sobre o artista moderno impunham ao artista em sua existência quotidiana. Assim, analisar a estadia na França somente como um ritual simbólico não nos permite perceber as relações sociais que contribuíram, no caso específico de Portinari, para a eficácia da representação dessa experiência como um ritual de passagem que permitiu transformar um artista formado pela Academia Nacional de Belas Artes em um artista “moderno”. Portinari tinha consciência da “dimensão social” da arte, isto é, de que para ser bem-sucedido no mundo artístico não bastava ter “ta-

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lento e personalidade” (Irajá, 1929), mas era preciso também trabalhar os vínculos sociais. Assim, o pintor discorreu sobre o “isolamento prejudicial” que muitos artistas se impunham na Europa: “outra coisa que me parece errada (...) é o isolamento, o quase ascetismo, ao qual se devotam em Paris, em Roma, ou na Alemanha, os nossos artistas. Isolam-se em ‘atelies’ improvisados (...) relacionados apenas com meia dúzia de patrícios do mesmo temperamento e acham que basta encher telas de tinta, imitando este ou aquele grande artista superficialmente compreendido, para que se tenham desincumbido das responsabilidades do prêmio. Ora, a meu ver, o artista tem necessidade de freqüentar a sociedade e por intermédio das nossas embaixadas freqüentar os artistas que pelo seu mérito e pela consagração do público nela ocupem posição de destaque” (Para o Velho Mundo, 1929 – ênfases adicionadas). A coluna Notas de arte da semana (1929) já havia apontado a preocupação do pintor com a rede de relações que o cercava. O artigo falava dos artistas concorrentes Cadmo Fausto, Sarah de Figueiredo e outros, “que com ele mediram forças no salão [em 1928], desancados pelas simpatias e pelo prestígio das inclinações de ordem social, que esse retratista tem tido a habilidade e preocupação de fazer” (ênfase adicionada). Na Europa, Portinari teve a chance de expandir ainda mais essa rede de sociabilidade. Alguns dos nomes que passaram então a fazer parte de seus conhecidos foram: Juscelino Kubitschek (que estudava em Paris na mesma época), Plínio Salgado, que participara do grupo modernista e mais tarde fundaria a Ação Integralista Brasileira, apoiando os primeiros anos do governo Getúlio Vargas, e os embaixadores brasileiros Carlos Magalhães de Azeredo, Raul Tavares, Régis de Oliveira e Raul Bopp. Talvez tão importante quanto as pessoas com as quais Portinari travou conhecimento na Europa tenha sido seu contato com o fascínio que o primitivismo estava exercendo a partir de uma volta romântica a noções como folclore e povo como constituintes de autenticidades nacionais. Em agosto de 1930, pouco tempo antes de voltar ao Brasil, o pintor participou de uma exposição coletiva em Paris, no Foyer Brésilien, sob os auspícios do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas. A

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exposição foi assunto de um artigo publicado no Rio de Janeiro (Montarroyos, 1930), onde se criticava o fato de que só se ouvia, na França, falar em arte nacional (“arte alemã”, “arte francesa” etc.). Montarroyos reclamou que a arte não deveria se submeter “a estatutos nacionais, não é produto indígena nem internacional suscetível de ser nacionalizada, não se acomoda à ridícula servidão do regime de passaportes, ignora a geografia política. Por sua própria essência, seus princípios, suas finalidades, a arte é universal (...) Seja quais forem as influências do meio sobre o seu temperamento, o verdadeiro artista é sempre, antes de tudo um homem”. Por um lado, o artigo indica que a discussão sobre o caráter autônomo da arte não era novidade na década de 1930 no Rio de Janeiro. Por outro, mostra como a classificação nacional era uma linguagem importante naquele período também para a produção artística na Europa. Eric Michaud (2005) mostra como a história da arte, tendo sido uma disciplina forjada principalmente durante o século XIX, é, desde o início, devedora dos determinismos raciais e geográficos. Na França, segundo o autor, essa disciplina se construiu a partir da relação com a produção de outras pretensas totalidades nacionais e da construção de uma história própria para as manifestações artísticas. Travassos (1997) mostrou como a forma de tentar delimitar totalidades nacionais através da ideia de “uma cultura” naquele período estava relacionada aos discursos modernistas19 europeus que se fundavam em oposições tais como natural e artificial, primitivo e civilizado ou tradicional e moderno. O “primitivismo” foi retomado pelo modernismo, que relacionou o “primitivo” à ideia de uma identidade que se manifesta na história, na língua, nas instituições sociais, nas formas de governo e de expressão artística. Essa noção de identidade foi o estímulo que levou à coleta de canções e contos populares no final do século XVIII europeu e, no Brasil, a partir do final do século XIX. O paradoxo desse primitivismo estaria no discurso sobre os “males do século”, relacionados às qualidades presentes em certos grupos 19 Travassos distingue o modernismo europeu como “um período delimitado de maneira frouxa, entre meados do século passado e o fim da Segunda Guerra Mundial” (1997, p. 16).

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humanos e suas expressões culturais, mas ausentes daqueles grupos marcados pela civilização. Em relação à arte moderna, “os encantos da arte primitiva e da pluralidade de realizações dos povos foram percebidos em meio à insatisfação com as doutrinas e realizações artísticas dominantes na Europa, legitimadas pelas academias cuja função era justamente fornecer padrões de correção e bom gosto. Tudo que não havia sido acorrentado por normas acadêmicas dotou-se de um apelo irreprimível” (Travassos, 1997, p. 11). A influência dessas formulações que, na década de 1930, já faziam parte do senso comum europeu aparecia na carta que o pintor enviou para Rosalita Mendes de Almeida, namorada e colega na ENBA. Nessa carta, o autor discorreu sobre um personagem abstrato que ele criou com base na memória das experiências vividas no interior rural de São Paulo, onde passou a infância: “O Palaninho é de minha terra, de Brodósqui”. E depois de descrever fisicamente o personagem, o pintor continuava: Apesar de ter sangue de gente de Florença, cidade que Romain Roland diz: ‘... febril, orgulhosa... onde cada um era livre e onde cada um era um tirano (...) eu me sinto um caipira. Daqui fiquei vendo melhor a minha terra (...) eu uso sapatos de verniz, calça larga e colarinho baixo e discuto Wild. Mas no fundo eu ando vestido como o Palaninho e não compreendo Wild” (Portinari, 1930). O Palaninho (ou Palanim, no artigo que Plínio Salgado escreveu sobre o personagem) era o folclórico ou popular que povoava os discursos modernistas europeus e brasileiros, e era também o pintor: o artista descobria o “personagem” que lhe cabia interpretar como “modernista brasileiro”. O pintor não tinha que fingir ter ultrapassado suas diferenças em relação aos artistas provenientes da elite. Muito pelo contrário, assumir essa diferença era a forma de marcar sua singularidade e ser moderno. Travassos (1997) argumenta que um dos procedimentos da imaginação de comunidades nacionais empreendido por Mário de Andrade foi, com frequência, a “homologia entre indivíduo e nação, o que facilitou a transferência do pensamento sobre a criação artística individual para o plano coletivo da cultura popular” (p. 157). Portinari realizava, sem o saber, a utopia nacionalista de Mário de Andrade:

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o camponês tornado artista cumprindo todos os requisitos de autenticidade para o papel de indivíduo biológico, representante da nação brasileira. Plínio Salgado (1930) conta sua versão da criação do personagem: “Palanim é o tipo que Portinari anda criando: o caboclo ítalo-bugre, ariano-etíope, cafuso com sangue de Lombardia, mameluco de todas as raças das zonas rurais de S. Paulo. Às vezes costumamos chamar Portinari de Palanim, porque ele, também, é bem um caboclo de Brodósqui, da zona cafeeira de Ribeirão Preto...” Salgado chama a atenção para o fato de Portinari não usar a “fala empolada” da maioria dos bacharéis brasileiros: “observações justas que ouvi desse menino louro, com fala de caipira paulista, bem expressiva do Brasil novo, que não usa a fraseologia empolada dos teóricos estéreis, que não sabe ser eco de impressões correntes”. O tema da raça surgiu nesse mesmo artigo, em referência à formação do povo brasileiro: “nosso povo está se formando de todas as raças, tem todos os climas, aspectos bem nacionais na angústia de sofrimento, uma fisionomia rural e intelectual bem marcada, a arte deve traduzir essa inquietude, esse caráter de raça, o momento brasileiro na humanidade. Abaixo a pintura do Salon francês que os nossos acadêmicos fazem no Brasil; mas, tão pouco, devemos aceitar a pintura das galerias modernas de Paris, que os nossos avanguardistas lá fazem, com a cabeça cheia de teorias de ‘pontos de vista’ (...) Realmente o Brasil inicia a sua vida intelectual numa época de múltiplas influências de ordem política, literária e artística. Época perigosa para as nações que querem se revelar como personalidade. Temos de criar tudo novo e nosso; e só estaremos dentro da humanidade de hoje, bem integrados nela, pela força da nossa sinceridade. Para nos pormos em contato com a Europa, para convivermos com ela, a primeira coisa que temos a fazer é fugirmos da Europa. Quanto mais procurarmos nos aproximar da civilização ocidental mais nos afastaremos de seu convívio, pelo artificialismo de nossas expressões, pela mentira que não nos revelará. O mundo angustia; os povos que copiarem, esquecidos de si mesmos, não poderão estar dentro da comunhão universal. E essa sinceridade deverá começar pelo tema? É Candido Portinari que responde”. E citando

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o suposto ponto de vista de Portinari: “o assunto brasileiro por si mesmo não vale. É preciso o espírito brasileiro” (ênfases adicionadas) (Salgado, 1930). Continuando o assunto da raça na forma de um diálogo com Portinari, Salgado pergunta como seria a expressão dessa raça. A resposta foi que o Brasil “não é só índio e o negro. Sobre a unidade de um sentimento comum, cada Estado do Brasil tem um tipo e cada artista deve contribuir com o da sua terra: o de Pernambuco, como Zé Raymundo, de Olegário; o do Rio Grande, com os gaúchos de Simões Lopes, de Darcy; de outros criadores de heróis; o de S. Paulo, com o Juca Mulato, de Menotti, o Zé Candinho e o Mondolfi do Estrangeiro; o do Rio, com as figuras numerosas da Favela, que contam pela boca de Ovalle e do Hekel Tavares. Estes tipos ficarão porque têm alma brasileira, portanto são humanos e universais” (Salgado, 1930). O regionalismo aparece aqui como uma forma de unificar a pluralidade de um país mestiço através de uma unidade que se manifesta no modo lusitano de colonizar. A unidade desse regionalismo descrito por Plínio Salgado estava assegurada pela assimilação de todos em um povo miscigenado. Giralda Seyferth (2001a) assinala o paradoxo entre nacionalismo e regionalismo se considerarmos a lógica primordialista da etnicidade na ideia de cultura nacional brasileira. Entretanto a tradição do romantismo imprime ao folclore a capacidade de ser ao mesmo tempo regional, nacional e universal, construindo a especificidade da nação em sua diversidade interna e distinguindo-a de outras nações singulares por suas manifestações folclóricas. O Palaninho é, assim, o representante de um tipo regional que compõe a diversidade nacional. Aparece também nesse artigo a “reação contra o tema, a anedota. Pretende-se uma pintura que seja essencialmente pintura, isenta de toda influência literária. A pintura ignorante (...). Entretanto, é curioso observar como, dentro de uma reação salutar e forte, encontram-se os germes dos vícios antigos (...). É o preconceito surrealista, os teoremas cubistas, a doutrina freudiana, o primitivismo, tudo gritantemente literário. O que torna essa arte, sob o ponto de vista geral do movimento modernista, inegavelmente passadista, mesmo com sua expressão avançada” (Salgado,

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1930). Portinari é, assim, associado ao que há de mais valorizado em termos de propostas artísticas modernas, ainda que o distanciamento do tema e da influência literária venham mais tarde a constituir o fundamento da produção do pintor. Contraditoriamente à crítica à anedota e o enaltecimento dos surrealistas e cubistas, Salgado encerrou o artigo praticamente apresentando Portinari como produto e produtor da arte que iria redimir o Brasil da falta de símbolos representantes de sua “verdadeira identidade”, nacional. Esse diálogo entre Portinari e Plínio Salgado (real ou imaginado, tanto faz do ponto de vista dos relatos, como uma projeção de fenômenos sociais) coloca em jogo temas que foram centrais para a construção da simbologia nacional durante o Estado Novo: o “primitivo” (representado às vezes pelo folclore, pelo popular ou pelo rural), a “miscigenação”, a imigração, a “raça”, a “personalidade da nação”, a “identidade nacional” e a “autenticidade cultural brasileira”. A carta de Portinari a Rosalita foi escrita em julho, o artigo de Plínio Salgado foi publicado em 5 de outubro, ambos em 1930. Getúlio Vargas assumiu o poder em 3 de novembro do mesmo ano e passou paulatinamente a empreender um processo complexo de construção de simbologias, patrimônio e instituições nacionais (com sua iconoclastia subjacente) (Faria, 1995). Portinari voltou dessa viagem em janeiro de 1931, no momento certo, com o discurso adequado e inserido em uma rede de atores sociais que logo fariam parte da máquina estatal (Miceli, 1979) e, portanto, estariam dotados de instrumentos e legitimidade para definir os termos da modernidade artística nacional. A década de 30 foi um período no qual se desenhou uma política institucional que combinava projetos, propostas e ideias com a utopia dos anos 20.20 O discurso dos intelectuais foi então usado para construir um patrimônio cultural como uma forma de criar uma coesão social. Já em setembro de 1931, a ENBA, reduto por excelência do academicismo, abriu espaço em seu Salão anual para artistas como Di Cavalcanti, Anita Malfati e Victor Brecheret, todos participantes da 20 Cf. Bomeny (1991) e Chuva (1998).

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Semana de Arte Moderna de 1922, ao ter nomeado como novo diretor da Escola o arquiteto Lúcio Costa. A presença desses modernistas no Salão anual da ENBA era parte do que Williams (2001) denominou “guerras culturais”, travadas entre burocratas, artistas, intelectuais e o Estado pelo controle de um sentimento de “brasilidade”, durante o primeiro regime Vargas, como parte das disputas pela definição da identidade nacional brasileira. A construção de símbolos de nacionalidade fazia parte do projeto de incentivo à formação de um sentimento de pertencimento a uma comunidade imaginada como nacional, assim como a constituição de um “patrimônio nacional” era uma forma de classificar o espaço através de objetos monumentalizados (Cohn, 1986). Foi nesse contexto de recuperação de um passado (que podia estar referido à arquitetura colonial ou barroca ou ao folclore) e a construção de um futuro (através da pintura, da arquitetura e da literatura) que Portinari se consagrou como um dos principais pintores modernos brasileiros. Foi inscrevendo-o em uma série de rupturas e continuidades que o pintor foi inserido na história da arte brasileira. Essa operação só pôde ocorrer porque já estava em formação um aparelho de consagração e celebração capaz de produzir e manter o produto e a necessidade desse produto. No caso aqui descrito, um pintor modernista que contribuía para a constituição de símbolos de nacionalidade (Bourdieu e Delsaut, 2004).21 Ele usufruiu dessa consagração durante as décadas de 1930 e 1940. Participou de exposições individuais e/ou coletivas nos EUA, na Europa (Alemanha, França, Inglaterra e Itália) e na América Latina (Argentina, Venezuela, Uruguai, Chile, Guatemala). Mesmo que não tenha havido sempre consenso, ele foi, nesse período, um dos principais representantes da arte moderna brasileira. Seu sucesso foi tamanho que chegou ao ponto de suscitar controvérsias a respeito de sua suposta oficialidade em relação ao Estado brasileiro (Williams, 2001; Almeida, 1976, Fabris, 1977). 21 Esse mesmo processo de inscrição de novos artistas em uma série de rupturas que definem uma nova periodização para a história da arte no Brasil é o que tornará, no final da década de 1940, a produção de Portinari obsoleta em relação aos novos estilos que marcarão os próximos da cadeia histórica.

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Entretanto, a modernidade na obra de Portinari não foi marcada pela ruptura de uma linguagem plástica. Ao contrário do que mostram suas biografias, essa classificação já vinha sendo atribuída antes de sua ida à Europa. Desde que começou a ser mencionado pela mídia impressa, atribuía-se à sua personalidade o rótulo de moderna. Talvez a descoberta do discurso “primitivista” tenha oferecido ao pintor uma base segura a partir da qual proferir seu discurso de modernidade. Portinari podia então declarar, como fez ao chegar da Europa, que o mais difícil havia sido “desaprender o que aprendera aqui” (André, 1931), marcando assim uma linha divisória entre sua trajetória anterior e posterior à viagem. Durante o período de maior movimentação modernista, isto é, década de 1920 e 30, vários jornais de grande circulação da época divulgaram as manifestações daqueles artistas e literatos. Os modernistas contaram também com diversos periódicos que foram lançados nesse mesmo período, a maioria com vida efêmera. A Klaxon, fundada por Guilherme de Almeida, Tácito de Almeida e Couto de Barros, circulou de 15 de maio de 1922 até janeiro do ano seguinte e teve como colaboradores Manuel Bandeira, Plínio Salgado, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Sergio Milliet, Victor Brecheret, Sergio Buarque de Holanda. Estética, no Rio em 1924, Terra Roxa e Outras Terras, em São Paulo em 1926, Revista de Antropofagia, em São Paulo em 1928, Papel e Tinta, Revista do Brasil, ambas no Rio, entre 1925 e 1926, Festa, em São Paulo de 1927 a 1929 e depois em 1934, Movimento (depois chamada Movimento Brasileiro) de 1928 a 1930, A Revista em Belo Horizonte em 1925, Verde em Cataguases em 1928, Elétrica em Itanhandu em 1928 e 1929, Novíssima em São Paulo em 1926, Arco e Flecha na Bahia em 1928, Maracajá em Fortaleza em 1929, Madrugada em Porto Alegre em 1929 e muitas outras (Sodré 1983). Entretanto, é sugestivo que, fora a revista Festa que em 1934 publicou um artigo sobre uma exposição de Portinari (Silveira Netto, 1934), nenhum desses periódicos “modernistas” tenha publicado matérias sobre o pintor.

Significados, obras e artistas Para marcar o caráter de transformação do governo Vargas em 1930, Lúcio Costa foi nomeado diretor da ENBA. O Salão dessa escola,

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sob sua orientação, no ano de 1931, foi denominado Salão Revolucionário ou Salão Tenentista por Manoel Bandeira (Bandeira, 1931), que considerou que o evento representava, na arte, transformações similares às produzidas na política pelos tenentes. Portinari participou da organização do Salão e se pronunciou em favor de Lúcio Costa quando este pediu demissão do cargo de direção da Escola no final do mesmo ano. Sua participação lhe rendeu novos méritos: o contato com Mário de Andrade, que viria a ser seu maior promotor no meio artístico brasileiro, e ainda com outros importantes intelectuais modernistas do período, que aos poucos viriam a ser incorporados à administração pública do novo governo. A gestão de Getúlio Vargas tomou medidas para a construção de uma memória nacional que associasse a formação do Estado à profundidade histórica através da definição de um “patrimônio histórico e artístico nacional” a partir principalmente da classificação do estilo arquitetônico barroco no Brasil (Chuva, 1998). Entretanto, Lauro Cavalcanti (2000) chama a atenção para os ideais que permeavam o período modernista constituídos por um movimento duplo de construção de um passado e de um futuro. Esse autor analisa as condições de possibilidade que fizeram com que “o Brasil fosse o único país no qual membros de uma só corrente fossem, ao mesmo tempo, os revolucionários de novas formas artísticas e os árbitros e zeladores do passado cultural” (p. 11). Desse duplo processo é que, concomitante à construção biográfica de um passado nacional, havia a valorização de um presente que instituía símbolos de modernidade, marcando uma ruptura com esse mesmo passado e apresentando o futuro como um novo horizonte de possibilidades. Daí a incorporação pelo Estado Novo daqueles intelectuais que produziam os discursos que sistematizavam uma identidade nacional a partir dos signos de emancipação, autonomia e liberdade. No Brasil, o nacionalismo das décadas de 1930 e 1940 foi marcado por um projeto de “unidade nacional” que entrelaçou através do território brasileiro redes de alianças e trocas, impondo valores civilizatórios, estéticos e morais. Márcia Chuva (1998) mostrou como a constituição de um “patrimônio nacional” foi mais uma forma de

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identificar, no Brasil, valores universais que contribuíssem para a inserção do país no concerto internacional de nações modernas. Mário de Andrade reconheceu em Portinari a possibilidade de sua contribuição para esse processo. O movimento modernista forjara a identidade nacional brasileira moderna a partir de uma sistematização do “popular”, do “tradicional” e do “histórico” como raízes da autenticidade nacional. Mário de Andrade é considerado um dos pais fundadores, junto com Amadeu Amaral, do folclore como disciplina, ainda que na década de 1920 essa fosse uma área de estudo heterogênea, formada por diletantes amadores, como eles mesmos se classificavam. Somente na década de 1930 fundaram-se os primeiros cursos universitários de ciências sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo, num primeiro grande esforço para substituir o intelectual literário e polígrafo pelo cientista especializado. Em 1947, foi criada a Comissão Nacional do Folclore, uma das comissões temáticas do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), organizado pelo Ministério das Relações Exteriores para ser representante do Brasil na Unesco (Vilhena, 1997). Portinari representava a possibilidade de superação do dilema marioandradiano da relação entre indivíduo e sociedade, expresso através da contradição entre liberdade individual e norma. Segundo Travassos (1997), os textos de Mário de Andrade resolvem a tese da arte como expressão ao aceitar que se possa superar o artificialismo das convenções e se manter fiel ao que Mário chamou de “quididade de cada linguagem artística” (p. 56). Foi a ideia de uma compreensão a partir da intuição que permitiu a Mário de Andrade fazer a mediação entre corpo e mente, entre ser biológico e espírito, pensando o popular afastado do desgaste da linguagem culta. Nas artes plásticas, Portinari era a confirmação dessa possibilidade, pois o nacionalismo do pintor era considerado pelo escritor como “inconsciente de si mesmo, não imposto por uma estética”, criando sínteses nacionais em diálogo com a arte europeia. Portinari era o diálogo perfeito entre o artista puro e a arte interessada. Para Mário de Andrade, a trajetória do pintor era em grande medida o tema de seu próprio trabalho, e a sinceridade o critério de julgamento da validade dessa produção.

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Segundo Travassos (1997), a questão da sinceridade se institui a partir da “fronteira entre a dimensão subjetiva do homem e sua expressão (...) que, numa visão radicalizada, se torna critério de aferição da validade de empreendimentos artísticos” já que, do ponto de vista da arte como expressão, a exteriorização de subjetividades não pode se sujeitar a regras elaboradas, transmitidas e infringidas no espaço social (p. 33). Os critérios de aferição ficam então reservados ao domínio das valorações individuais. Por outro lado, a linguagem deve ser social e partilhada para que a interioridade seja expressa, comunicada. Essa dicotomia é resultado do desenvolvimento de uma sensibilidade específica na modernidade ocidental. Luiz Fernando Dias Duarte (1999) delimitou algumas das fronteiras que permitem distinguir a ideia de uma “cultura ocidental moderna”, que teria como fator característico essa sensibilidade específica. O autor argumenta que, entre os séculos XVII e XVIII, desenvolveu-se no Ocidente um “dispositivo de sensibilidade”. Foi em torno de uma nova teoria que separava corpo e espírito, considerando a corporalidade humana como dotada de lógica própria e implicações imediatas sobre a condição humana, que se articulou através da noção de sensibilidade a “passagem da linguagem científica dos nervos para a linguagem moral, estética, psicológica das emoções sensíveis” (p. 26). O surgimento dessa dimensão interior é que possibilitou a expressão dos fenômenos psicológicos, destacadamente os afetos, da qual a arte é tomada por alguns autores como expressão externa, visível. A ideia de arte como expressão firmou-se no século XVIII, deslocando uma “longa reflexão da arte como representação da natureza e atividade pragmática (capaz de exercer um efeito sobre o expectador)” (Travassos, 1997, p. 31). A partir de então, o objeto artístico passou a ser a exteriorização do mundo interno do criador, colocando em questão a existência de um indivíduo autônomo com capacidade para aprender a expressar, controlar ou suprimir suas emoções. Mauss (1979) questionou a sinceridade das emoções, ao refletir sobre o caráter socialmente construído dos sentimentos. Entretanto, o autor mostra que a coerção social, isto é, as convenções, asseguram a

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sinceridade e intensidade das emoções. Assim, se por um lado a ideia de sinceridade nos leva para o domínio da subjetividade, por outro, a própria noção de sinceridade é socialmente construída e sujeita a variações históricas. Em relação ao fenômeno artístico no Brasil, a sinceridade era uma categoria de valor que denotava prestígio ao se referir aos atributos de um artista, durante a primeira metade do século XX. Essa categoria foi colocada em questão na segunda metade e substituída, algumas vezes, pela de personalidade. O que estava em jogo nessa substituição era o comportamento do artista diante dos cânones de uma arte que ainda mantinha vínculos com a ideia de continuidade do período acadêmico por oposição à ruptura recorrente. Nos termos de Pedrosa (1958d), a sinceridade estava “por trás de uma identidade plástica na obra de um artista enquanto a noção de personalidade servia melhor para compreender um artista que não se “congelava” em um trabalho bem sucedido”. Vários autores falaram da sinceridade no trabalho de Portinari. Antonio Bento,22 por exemplo, relacionava essa sinceridade à atitude em relação ao seu pertencimento social. Antônio Bento (2003) argumentou que o pintor “nunca negou suas origens” (p. 287), isto é, que não dissimulava suas lacunas intelectuais, nem tentava pertencer a uma classe social diferente daquela de onde era proveniente. Mário de Andrade, que valorizava o “folclore” e o “popular” como lócus da autenticidade, via a sinceridade de Portinari no fato dele representar o encontro do “Brasil autêntico” com a “alta cultura”. Já foi notado que Mário de Andrade trabalhava com um conceito humanístico de cultura que prescindia da neutralidade axiológica da abordagem antropológica contemporânea (Travassos, 1997). Para ele, a cultura popular estava de certa forma fora das sociedades modernas, mas era o que conferia a esta singularidade vis-à-vis outras modernidades. A noção de sinceridade marcava então um dos limites entre os valores diferenciados 22 Antônio Bento de Araújo Lima (1902-1988) foi um crítico de arte que trabalhou com Mário de Andrade nas pesquisas sobre folclore no final da década de 1920. Na década de 1940, ao qualificarem-no para julgar seu ingresso como membro da Aica, foi ressaltada principalmente sua ligação com Portinari.

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presentes na modernidade representada por Portinari e aquela que seria defendida por Pedrosa a partir do final da Segunda Guerra. Apesar do encontro entre Portinari e Mário de Andrade ter sido marcado pelo contexto de uma produção e uma reflexão que giravam em torno da questão nacional, Annateresa Fabris (1995) chamou a atenção para o fato de que esse encontro teria sido determinado, primeiro, pela visão plástica, seguida por uma simpatia de parte a parte e, somente mais tarde, submetido ao viés ideológico. Na tentativa de se refletir sobre os objetos artísticos a partir da ideia de uma essência, coloca-se a questão em termos da existência de características intrínsecas ao objeto que permitam defini-lo como artístico, rejeitando qualquer intenção que o produza como tal. É a negação mesma das condições sociais que possibilitam a percepção do objeto como estético e, com ela, das convenções que concorrem para redefinir constantemente as fronteiras do que é ou não obra de arte, num determinado momento que forma o cerne dos debates do segundo pós-guerra. No artigo de 1942, com o qual iniciamos o capítulo, Mário de Andrade ressaltava em Portinari os traços que o relacionavam aos princípios do modernismo que o poeta ajudou a formular: “descendente de um meio rural, Candido Portinari, conserva uma alma e uma força populares. Vivendo desde adolescente no Rio de Janeiro e freqüentando agora pessoas de todas as classes, conserva ainda a pronúncia caipira paulista que escutou em sua infância e seu gesto imaginativo de expressão” (p. 27 ênfase no original).23 No contexto do encontro entre Mário de Andrade e Portinari, o critério de apreciação estética dos modernistas não desvinculava o trabalho artístico da função de representação de uma brasilidade em construção. Portanto, não havia uma relação linear que pudesse ser definida em termos do que veio primeiro. Estética e nacionalismo eram parte de um mesmo sistema de valores com o qual a simpatia de parte a parte só vinha a contribuir. Ainda que não se negue peremptoriamente que as obras de arte reflitam de forma mais ou menos ilusionística uma realidade alheia a 23 Para uma análise do ideário estético de Mário de Andrade a partir de sua produção sobre música popular, cf. Elizabeth Travassos (1997).

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elas mesmas, que podem concretizar e promulgar valores sociais, religiosos ou outros, a característica mais distintiva da estética moderna (que será reforçada após a Segunda Guerra) é a concepção da obra de arte como coisa independente e não instrumento fabricado com o intuito de favorecer algum propósito (Osborne, 1993). Assim, o olhar histórico que deve ser lançado sobre o trabalho de Portinari (ou de qualquer outro artista do período) na intenção de compreendê-lo imerso em seu contexto (com as contradições que contribuem para constituir sua riqueza) passa a ser por si só desqualificador. Após a Segunda Guerra, a única história à qual se pode recorrer para se interpretar ou comentar uma obra de arte é a história da arte: é a dupla des-historicização, da obra e do olhar sobre ela, que almeja a construção de uma essência que explique o fenômeno artístico. Além da admiração pessoal de Mário de Andrade pelo artista e sua obra, contribuiu para a consagração do trabalho de Portinari a projeção internacional que o pintor obteve em vista da política norte-americana. Em 1933, Franklin Delano Roosevelt decidiu mudar a forma de se relacionar com seus vizinhos do sul. A política da boa vizinhança pretendia estabelecer um mercado de trocas entre os EUA e os países da América Latina, na intenção de mudar a imagem intervencionista que a política externa norte-americana aplicada até então havia gerado. Em 1935 o pintor foi convidado para participar do primeiro evento em solo estadunidense: uma exposição no Carnegie Institute em homenagem ao aniversário de seu fundador. Nesse evento, ganhou a menção honrosa pela tela Café (fig. 4). Mário Pedrosa, que já aparecera na cena artística carioca em 1933, com um artigo sobre o trabalho da gravurista alemã Käthe Kollwitz, fez em 1934 uma retrospectiva da pintura de Portinari através da análise das cores, formas, texturas e temas utilizados pelo pintor, dividindo seu trabalho em etapas às quais relacionou a trajetória do artista. A “vastidão marrom salpicada de claro-escuro e acidentes de luz”, “o realismo” e a “plasticidade das formas”, “a pastosidade satisfeita das tintas”, o “processo de claro-escuro”, a “transparência das cores”, a “unidade estrutural”, a “abstração geométrica de planos e dimensões” ou a

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“trama invisível de linhas e planos” (Pedrosa, 1934) compuseram a terminologia utilizada para falar da temática explorada por Portinari, e não de suas composições. Pedrosa definiu nesse artigo a tela Café como sendo a “grande realização dessa nova fase”. Mas fez uma ressalva, argumentando que “a evolução ulterior de sua personalidade tem imposições maiores do que regras estéticas. O problema do homem, do destino do homem, continua a atormentá-lo. O homem de carne e osso, e não como uma forma abstrata”. O crítico terminou o artigo relacionando a arte de Portinari ao comunismo: “Portinari está diante, talvez, dum impasse. Mas pode ser que seja também diante do futuro. Com o afresco e a pintura mural moderna, a pintura marcha no sentido do curso histórico, isto é, para sua reintegração na grande arte totalitária, hierarquizada pela arquitetura, da sociedade socialista em gestação. Portinari já sente a força desta atração. Como se deu com Rivera, com a escola mexicana atual, aliás – a matéria social o espreita” (Pedrosa, 1934). Essa foi a primeira comparação de Portinari com Diego Rivera, tanto em relação à temática social na arte, como em relação à técnica do mural. Oswald de Andrade mencionou novamente o pintor mexicano, e também David Alfaro Siqueiros, vinte dias depois, para exaltar o aspecto social da obra do pintor brasileiro, afirmando que seu próximo passo seria a pintura mural (Andrade, O., 1934). Siqueiros havia apresentado uma conferência sobre o muralismo mexicano no Clube dos Artistas Modernos (CAM), o mesmo onde Pedrosa apresentara a conferência sobre Käthe Kollwitz em 1933, considerado seu primeiro texto sobre artes plásticas e marco da crítica de arte moderna no Brasil. A partir de então, os muralistas mexicanos foram referência quase obrigatória em relação ao aspecto social do trabalho de Portinari. Pouco mais de um mês depois, Portinari comentou em uma entrevista para o Diário de Notícias que sua pintura tendia para a pintura mural: “No México e nos Estados Unidos já há muitos anos essa tendência é uma realidade, e noutros países se opera o mesmo movimento, que há de impor à pintura o seu sentido de massa” (Exposição de Candido Portinari, 1935).

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O fato de Portinari incorporar em sua pintura as reflexões dos críticos de arte mostra a influência que aquela categoria profissional tinha na produção artística. É perceptível, assim, o poder que os críticos exerciam no meio artístico do período. Esse é um ponto importante para a compreensão dos mecanismos implícitos na repercussão (ou falta dela) que a Exposição Internacional de Arte Moderna, organizada pela Unesco, teve na mídia parisiense em 1946, a relação desse processo com a Associação Internacional de Críticos de Arte (capítulo 3) e o papel de Mário Pedrosa na definição de novos valores para o produtor e a produção artística no Brasil na década de 1950 (capítulo 4). No processo europeu de conquista do estatuto de profissão liberal para os pintores e escultores, Heinich (2005) mostrou a importância que teve a intelectualização da produção artística formalizada em um corpus de doutrina e um tipo de ortodoxia da forma de praticar o desenho na fundação da Academia no século XVII. Como consequência, a sanção da excelência deixava de se dar somente pelo sucesso externo do mercado, e passava paulatinamente a ser julgada pelos pares. A autonomia do campo foi conquistada também pelo lento processo de delimitação de critérios de qualidade definidos no interior da profissão. Os artistas ganhavam autoridade sobre os clientes, que deixavam de ser autorizados a determinar a melhor forma de executar uma encomenda. No Brasil, da década de 1930, um pintor moderno que seguia indicações de um determinado viés crítico podia ser comparado a um acadêmico que acolhia os ensinamentos de seus professores de desenho e pintura. Na falta de instituições que oferecessem critérios de avaliação e direcionamento, foram aqueles atores sociais que cumpriram esse papel. A expansão da imprensa no Brasil desse período, com o surgimento de diversos novos periódicos com colunas dedicadas às artes, atribuía cada vez mais espaço a essa categoria profissional e, consequentemente, maior influência no meio artístico. Comentando uma exposição de Portinari, um jornalista mencionou que a “equipe modernista compareceu unânime: Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, Rodrigo Mello Franco

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de Andrade, José Lins do Rego”. O autor mencionou o papel dos “entendidos”, que “explicavam” a obra enquanto o pintor apenas ria (Peregrino Jr., 1935). Os críticos (no caso deste artigo representados pelo grupo citado) eram mais do que os intermediários entre o artista e o público; eles contribuíam para que os próprios artistas, que muitas vezes elaboravam seus trabalhos sem refletir sobre seus fundamentos, construíssem um discurso sobre sua obra. Nesse período, a Aliança Nacional Libertadora e o Partido Comunista ganhavam adeptos contra o nazifascismo. Vários intelectuais da rede de relações de Portinari foram filiados ou simpatizantes de alguma corrente do comunismo: Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mário Pedrosa, Oscar Niemeyer, entre outros. Essa identificação era expressa também através da leitura que se fazia da arte localmente produzida. Mário Pedrosa, por exemplo, assumiu o tom de discurso político para analisar a pintura de Portinari, citando novamente Diego Rivera como exemplo da relação entre arte e posicionamento político. Nesse artigo, Pedrosa (1935) comparou Portinari a Ismael Nery, criticando negativamente o último por perder-se no “individualismo transcendente no qual sua inspiração plástica evaporava-se de repente nas brumas de sua fatalidade abstraente” (ênfase adicionada). Ape­ sar das teorias sobre a autonomia da obra de arte já serem conhecidas pelos comentadores artísticos do período, a abstração ainda não se apresentava como argumento suscetível de reforçar essa tese e podia mesmo ser usada como categoria de acusação. Abstração e individualismo eram então inimigos da função social atribuída à arte. Murilo Mendes (1935) criticou o artigo de Pedrosa em relação à sua leitura marxista da arte, mas não negou o argumento da função educativa. Entretanto, se por um lado a ideia de uma função para a arte estava relacionada à noção de uma civilização que deveria ser desenvolvida no Brasil com a contribuição das manifestações artísticas, por outro essa ideia era aceita com reservas. O crítico de arte, poeta e jornalista Luiz Martins (1935) usou dois autores contemporâneos para rejeitar a ideia de uma função para a arte: o crítico estadunidense Harold Rosenberg e o russo George

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Plekhanov.24 Apesar de mencionar o cubismo, Martins concentrou-se na rejeição da função social, afirmando que “esse grande florescimento da pintura social, que parece empolgar em grande parte os nossos artistas, é uma volta à anedota e à literatura, a negação da concepção da plástica como fim”. A obra e a trajetória de Portinari e de outros artistas têm sido, ao longo do tempo, uma arena para apropriações e reelaborações de ideias que dependem do contexto para adquirirem significados específicos. As noções de função social da arte, sinceridade, personalidade, figuração, abstração, individualismo, modernidade e tradição são parte de conjuntos de valores que se referem tanto às obras quanto aos atributos que constituem o estatuto de artista em contextos históricos distintos. A influência que a literatura tinha sobre Portinari, por exemplo, ainda não estava em questão em meados da década de 1930. Influenciado pelo “grupinho” (Andrade, M., 1935a)25 de modernistas que estavam na capital, Portinari criava os símbolos representativos da brasilidade em grande medida de acordo com as sugestões dos intelectuais que o rodeavam (e/ou encomendavam trabalhos). Esse método de trabalho não era nessa época objeto de críticas. Em 1936, o pintor foi convidado pelo ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, a integrar a equipe de arquitetos, artistas e paisagistas que fariam o novo prédio para a sede do ministério. O 24 Rosemberg (1906-1978) estivera na década de 1930 ligado à literatura política de esquerda e tornou-se, junto com Clement Greenberg e Barnett Newman, um dos principais teóricos do expressionismo abstrato nas décadas de 1940 e 1950 nos EUA (Wolf, 1987). Plekhanov (18561918), por sua vez, defendia a ideia de que o mérito da obra de arte é determinado pelo valor de seu conteúdo e que não existe arte completamente desprovida de conteúdo ideológico. Para Plekhanov (1977), a “doutrina da arte utilitária se acomoda tanto ao espírito conservador, como ao espírito revolucionário” e “a tendência para a arte pela arte surge onde existe um desacordo entre os artistas e o meio social que os rodeia” (p. 14). O autor, entretanto, não concebia uma arte que não expressasse algo, portanto, que não comunicasse uma mensagem. A ideia de arte abstrata não era ainda cogitada por esse teórico. 25 A classificação de Mário de Andrade de determinados intelectuais como um grupo dizia respeito aos valores partilhados que se manifestavam em ações concretas. Apesar do grupo não ter contornos rígidos e não haver uma dimensão institucional que os delimitasse, ele foi citado como uma coletividade identificável por mais de um ator social. O grupo mencionado por Mário teve seus participantes centrais nomeados no artigo supracitado de Peregrino Jr. (1935), e Carlos Drummond de Andrade (1940) acrescentou ainda alguns outros participantes – Murilo Mendes, Luis Martins, Augusto Meyer e Sara Meyer (do Rio Grande do Sul), Mário de Andrade e Jorge de Lima – ao mencionar encontros frequentes na casa de Portinari.

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projeto foi realizado por um grupo de arquitetos – Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Oscar Niemeyer, Jorge Moreira e Ernani Vasconcellos –, liderados por Lúcio Costa. Para a execução de um projeto que visava integrar pintura, escultura, arquitetura e paisagismo, foi convidada uma equipe interdisciplinar: além do pintor Portinari, Paulo Rossi Osir, para fazer os azulejos; Celso Antônio, Bruno Giorgi, Adriana Janacoupolos e Jacques Lipschitz, para fazer as esculturas; e Roberto Burle Marx, o paisagismo. Em 1942, o ministro escreveu ao pintor indicando as referências que deveriam ser usadas para produzir os painéis: “No salão de audiência, haverá os doze quadros dos ciclos de nossa vida econômica. Falta fazer o último – a carnaúba –, mudar de lugar o da borracha, e fazer de novo um que se destruiu. § Na sala de espera, o assunto será o que já disse – a energia nacional representada por expressões da nossa vida popular. No grande painel, deverão figurar o gaúcho, o sertanejo e o jangadeiro. Você deve ler o III capítulo da segunda parte de Os Sertões de Euclides da Cunha. Aí estão traçados da maneira mais viva os tipos do gaúcho e do sertanejo. Não sei que autor terá descrito o tipo do jangadeiro. Pergunte ao Manuel Bandeira. § No gabinete do ministro, a ideia que me ocorreu anteontem aí na sua casa parece a melhor: pintar Salomão no julgamento da disputa entre as duas mulheres. Você leia a história no terceiro livro dos Reis, capítulo III, versículo 16-28. § No salão de conferências, a melhor ideia ainda é a primeira: pintar num painel a primeira aula do Brasil (o jesuíta com os índios) e noutro, uma aula de hoje (uma aula de canto). § No salão de exposições, na grande parede do fundo, deverão ser pintadas cenas da vida infantil. § Peço-lhe que faça os necessários estudos e perdoe desde já as minhas impertinências” (Capanema, 1942). A arte acadêmica é uma arte de execução que se manifesta na técnica e na cultura histórica mobilizada. Pierre Bourdieu (2000) chama a atenção para o fato dos artistas acadêmicos produzirem cópias e variantes semelhantes de suas obras mais bem-sucedidas e terem umas quase tão apreciadas quanto as outras. Ligia Dabul (2001) mostra como as fronteiras entre uma pintura acadêmica e outra contemporânea (em geral abstratas) podem ser encontradas na ênfase sobre o

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tema em detrimento do processo de criação, da concentração de investimento nas áreas nas quais o quadro supostamente tem mais interesse dramático, ao invés da preocupação com a composição como um todo e das técnicas corporais diferenciadas utilizadas em um ou outro tipo de produção. O que percebemos ao longo dessa exposição sobre a trajetória de Portinari é que havia um discurso de modernidade sobre sua obra. No entanto, ele respondia a um código de conduta em grande medida referido ao estatuto do artista acadêmico. As categorias através das quais seu trabalho e comportamento eram avaliados também diziam respeito a uma carreira acadêmica. Nesse regime de valores, a produção visa a comunicação de um sentido moralmente/socialmente edificante e não um regime no qual a ênfase na singularidade do artista está referida a um comportamento cujo discurso da liberdade vai de par com o distanciamento das normas sociais. Em 1942, Pedrosa publicou um artigo sobre os murais que Portinari desenvolveu para a Biblioteca do Congresso em Washington. Ao longo do artigo foi mencionada a relação de Portinari e da arte moderna brasileira com a literatura e ainda o fato de o pintor ter se sentido mais livre para realizar esse trabalho por estar fora do Brasil (Pedrosa, 1942). Ainda que a afirmação pareça despropositada (uma vez que os esboços do trabalho foram feitos no Brasil e que a influência de todo um grupo de amigos literatos não se dirima ao se atravessar a fronteira por alguns meses), importa registrar a menção a essa relação conflituosa entre as duas formas de representação, pintura e literatura. Poderíamos dizer, retrospectivamente, que Pedrosa ofereceu indícios de que este tema seria um dos pontos fracos, através do qual as futuras críticas seriam sistematizadas contra o pintor. No entanto, mais relevante do que as qualidades potencialmente previdentes de Pedrosa é importante indicar uma disputa a mais nesse processo de complexificação do universo artístico brasileiro. A influência da literatura, ou das Belas Letras, no Brasil fez com que o processo de formação do campo intelectual brasileiro e a autonomização gradativa das tradições disciplinares – de áreas tão diversas como a sociologia (Pontes, 1998), o folclore (Vilhena,

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1998) e as artes plásticas – passasse necessariamente pelo desentranhamento dessa outra forma de expressão. A definição da arte moderna a partir de seu desentranhamento da literatura não é uma particularidade da trajetória do fenômeno artístico no Brasil. Wolf (1987) menciona, com ironia, esse topos da arte moderna como forma de contrapô-la ao realismo, que será sustentado pelos teóricos da arte pop a custa de um malabarismo conceitual (a arte pop não seria realista, mas versaria sobre um sistema de signos e de símbolos). Reclamar a separação entre artistas e literatos fazia parte então do contexto de institucionalização de diversas disciplinas e significava tanto excluir uma categoria profissional das redes de cooperações que constituem o fenômeno artístico (tal como analisado por Howard Becker, 1982), como o estabelecimento de uma linguagem e um procedimento analítico específico para o objeto artístico, através da exclusão das temáticas literárias. Foi assim que nacionalismo e literatura foram negados, quando surgiu o momento de rever a ideia da autonomia da arte, através do estabelecimento de um novo regime de valores.

Circuito internacional de arte em formação: Portinari para exportação

Na trajetória de Portinari, a década de 1930 se encerrou com dois acontecimentos marcantes: a atribuição do rótulo de “pintor oficial” e seu ingresso no ambiente social estadunidense. Em 1939, Luiz Martins acusou Carlos Drummond de Andrade de favorecer Portinari e instalar no governo uma “arte oficial” (Martins, 1939). A contenda se estabeleceu devido a uma carta de Robert Chester Smith que pedia fotos de trabalhos de Portinari e de Oswaldo Teixeira para publicar em revistas de belas artes nos EUA. Robert Chester Smith (19121975), historiador e crítico de arte norte-americano, foi o primeiro divulgador da arte brasileira nos EUA. Entre 1939 e 1947, trabalhou na Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso e foi o responsável pelo convite a Portinari, em 1941, para que este fizesse os murais daquele estabelecimento.

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Em 1939, a contenda poderia parecer uma reclamação de Luiz Martins (casado então com Tarsila do Amaral) em virtude de uma restrição por parte do governo a alguns nomes específicos aos quais atribuir encomendas para o Estado. Entretanto, a disputa no interior do incipiente campo literário já era nota corrente. Paulo Rossi Osir, que criou a empresa de azulejaria Osirarte e passou a produzir os azulejos desenhados por Portinari para o edifício do Ministério da Educação e Saúde (MES), no Rio de Janeiro, e para a Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, dizia em carta para Portinari: “Precisamos nos resguardar das intriguinhas dos senhores literatos!... Por sorte não são todos Luis Martins e Oswald de Andrade; mas há de terríveis!...” (Osir, 1939). No ano seguinte, a Revista Academica fez uma homenagem a Portinari. O Conselho diretor da revista era composto por Álvaro Moreyra, Mário de Andrade, Aníbal Machado, Candido Portinari, Artur Ramos, José Lins do Rego, Tomás Santa Rosa, Rubem Braga, Sérgio Milliet, Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, A. D. Tavares Bastos e Érico Veríssimo. Os redatores eram Murilo Miranda e Moacir Werneck de Castro. Com essa homenagem, o debate reapareceu na mídia impressa, e a disputa ficou explícita. Entrou no ringue Oswald de Andrade contra Mário de Andrade, o “zéolimpismo” (referência à livraria de José Olympio, que reunia em torno de si alguns escritores) contra a revista Dom Casmurro, cujo editor era Jorge Amado, e aliados de ambos os lados. Já não era nem Portinari, nem seu trabalho que estavam em questão, mas o próprio meio literário em disputa. A relação entre as três categorias profissionais implicadas nesse embate – críticos de arte, literatos e artistas plásticos – estava em processo de redefinição. É importante comentar sobre a imprensa do período, pois esse é o espaço de atuação dos críticos de arte, categoria profissional que ganhará contornos mais definidos e cada vez mais prestígio ao longo da primeira metade do século XX. Na virada do século XIX para o XX, a imprensa foi deixando de ser formada por pequenas empresas de cunho pessoal e começou a transformar-se em um pequeno grupo de grandes corporações empresariais que iria, na década de 1940, ter os Diários Associados como primeiro exemplo. O grupo empresarial

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de Assis Chateaubriand26 foi um dos mais complexos e poderosos da época, congregando revistas, jornais, emissoras de rádio e televisão. A transformação da imprensa em negócio de grandes proporções em meados do século XX e o desenvolvimento, a complexificação e o encarecimento de suas técnicas foram acompanhados pela demanda de especialização dos profissionais que passavam a se dedicar a dimensões sociais específicas (Sodré, 1983). A especialização profissional foi acompanhada de uma redefinição nos tipos de periódicos. No começo da segunda metade do século XX, foram lançadas revistas especializadas em literatura (Literatura, dirigida por Astrogildo Pereira), em economia (Revista do Conselho Nacional de Economia, Carta Mensal, da Confederação Nacional do Comércio), estudos sociais (Estudos Sociais, fundada por Caio Prado Junior), revistas ligadas a partidos políticos (Problemas e Novos Rumos, ambas mantidas pelo Partido Comunista), revistas e jornais estudantis que circularam por curtos períodos e ainda outras, como a PN (abreviação para Publicidade e Negócios, fundada e dirigida por Genival Rabelo) e Semanários. A maioria delas desapareceu com a implantação da ditadura em 1964. Essa especialização contribuía para a delimitação mais precisa do papel do crítico de arte e a separação dessa categoria do romancista. As primeiras colunas de artes plásticas regulares em periódicos diários passaram a ser publicadas logo após a Segunda Guerra. Em 1944, Luiz Martins foi explícito quanto à relação ambígua entre pintores e literatos: “Os pintores não gostam dos literatos. E fazem mal. Porque são os literatos que fabricam a celebridade dos pintores e que lhes dão relevo aos nomes. São os literatos os autores de sua glória. (...) Modéstia à parte, são os escritores, em sua generalidade, que possuem a cultura e o convívio das ideias. São eles que dirigem as gerações e imprimem um sentido filosófico à obra de arte”. Além das transformações na imprensa, Heloísa Pontes (1998) mostrou que em São Paulo o grupo da revista Clima inaugurou, no começo da década 26 Chateaubriand fundou em 1947 o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e era amigo pessoal do marchand Georges Wildenstein, editor do hebdomadário Arts: Beaux-Arts, Literature, Spectacle, para o qual diversos membros da Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica) escreviam.

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de 1940, uma nova forma de fazer crítica artística, diferente daquela praticada pelos literatos da geração anterior. O conflito entre pintura e literatura, que já vinha sendo esboçado há algum tempo como se fosse uma influência promíscua entre linguagens artísticas diferentes, não tinha até então sido expresso em termos de uma contenda entre representantes de categorias profissionais. O artigo de Martins colocava o embate pela primeira vez nesses termos. A crítica do escritor não estava voltada para Portinari, que era apresentado (assim como Segall, Clóvis Graciano e outros) como “inteligente”, por ter percebido essa “verdade meridiana” e ter se cercado de uma “plêiade ilustre que, afinal de contas, lhe deu prestígio e conservou-lhe o renome” (Martins, 1944). Ainda levaria algum tempo para que essa relação de Portinari, considerada inteligente em 1944, fosse usada como motivo de desvalorização de seu trabalho. A geopolítica mundial e sua influência no cenário artístico foram decisivas para o aprofundamento desse conflito. Em 1940, a modernidade como linguagem plástica foi institucionalizada no Brasil com o desdobramento do tradicional Salão de Belas Artes da ENBA em Salão dos “acadêmicos” e dos “modernos” (Landucci, 1940). Em 1951, uma nova divisão do Salão Nacional de Belas Artes mostra o prestígio das novas linguagens ao eliminar a categoria “acadêmico”, diminuindo seu valor ao relacioná-la em negativo com a modernidade: as categorias passam a ser então “modernos” e “não-modernos”. Acadêmico tornava-se uma categoria desabonadora no meio artístico após a Segunda Guerra e caminharia cada vez mais para se tornar uma categoria de acusação em certos círculos (como é possível depreender do trabalho apresentado por Lígia Dabul, 2001). Em 1945, já se reivindicava a abertura de museus que acolhessem as obras consideradas modernas (Navarra, 1945). Carlos Zílio (1997) fala desse período como o momento em que a “arte moderna brasileira já estava implantada culturalmente e as lutas contra o academicismo já não eram o dado mais importante” (p. 18). O embate nesse período era contra o modernismo das décadas de 1920 e 1930. A entrada em cena de novos espaços de atuação para os artistas modernos se apresentava ainda através da intensificação da “política

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da boa vizinhança”, que introduzia também novos críticos de arte e, com eles, critérios diferentes de avaliação dos trabalhos artísticos. A expansão da atuação dos artistas brasileiros em direção ao norte da América significava também colecionadores diferentes adquirindo e valorizando a produção desses artistas. Essa ampliação do mercado de arte diminuía a necessidade do apoio dos literatos (que já haviam contribuído para estabelecer a avaliação e interpretação dos trabalhos dos artistas consagrados), o que significava um incremento na independência desses artistas em relação aos escritores. Esse processo complexo pode ser percebido ainda a partir da trajetória de Portinari. No começo de 1939, o pintor foi apresentado a Florence Horn, jornalista norte-americana da revista Fortune, do grupo Time-Life. Dando prosseguimento a uma série de artigos sobre a América do Sul, Horn estava preparando uma reportagem focalizando o Brasil no âmbito do programa de intercâmbio estimulado pelo governo dos EUA. Esse foi para Portinari o primeiro importante contato que se desdobrou em novos conhecimentos, até se transformar em uma rede de relações formada por altos funcionários de museus, colecionadores, editores e donos de galerias de arte, que resultou em uma intensa participação do pintor na cena cultural norte-americana. Uma investigação na correspondência arquivada pelo Projeto Portinari mostra que, até 1934, apenas uma missiva proveniente de um remetente estadunidense chegou para o artista. Entretanto, em torno de 350 novos atores sociais habitantes dos EUA ou relacionados ao país apareceram na rede de relações de Portinari a partir principalmente de 1939.27 Apesar da participação no prêmio Carnegie em 1935, foi a partir de 1939 que sua relação com os EUA ficou mais intensa. Entre 1939 e 1945, a relação de Portinari com os EUA incluiu diversos eventos: o pintor expôs no pavilhão brasileiro da Feira Mun-

27 A classificação por país mostra que as pessoas relacionadas aos Estados Unidos formam a segunda rede mais extensa depois da rede de pessoas relacionadas ao Brasil (em torno de 1.000 remetentes). Os outros países que aparecem são: França (em torno de 100 missivistas), Argentina (menos de 100), outros países da América Latina como Peru, Chile, Uruguai, México, Venezuela, Colômbia (em torno de 90), da Itália (em torno de 40), de Israel (em torno de 20) e de outros países da Europa (em torno de 100 nomes diferentes).

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dial de Nova York, ilustrou com seus quadros reportagens da revista Fortune, expôs no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), no Marshall Field, em Chicago, no Howard University Gallery of Art, em Washington, D.C., ilustrou as traduções para o inglês de Os sertões, de Euclides da Cunha, e do livro infantil Maria Rosa: uma brincadeira de carnaval, de Vera Kelsey, pintou murais para a Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso em Washington e ainda teve quadros seus adquiridos por diversos colecionadores norte-americanos, como Douglas Fairbanks e Mary Lee Fairbanks, Nelson Rockefeller, Helena Rubinstein e Arthur Rubinstein. Entre os novos contatos de Portinari merece ser citado Alfred H. Barr diretor-fundador do MoMA, em 1929. Segundo o dicionário de historiadores da arte, “Barr era um dos grandes divulgadores da arte moderna para o público americano. Era empregado por ricos colecionadores de arte da elite para validar seu gosto criando um museu próprio para suas coleções. Barr agiu como conselheiro e procurador de arte durante os anos em que o museu não comprava quase nenhuma arte” (Sorensen, 2006). Outro ator social importante foi René D’Harnoncourt, um austríaco que foi morar no México depois da Primeira Guerra. De volta aos EUA, D’Harnoncourt foi apontado, em 1936, administrador do Indian Arts and Crafts Board e, em 1944, assumiu, junto com Barr, a direção do MoMA. D’Harnoncourt foi também o conselheiro de arte pessoal de Nelson Rockefeller. Assim como esses dois, vários outros importantes atores do mundo artístico norte-americano também se tornaram parte da rede de relações de Portinari no início da década de 1940. No Brasil, até a publicação da homenagem a Portinari pela Revista Academica, quase não se mencionavam mais dados sobre sua vida. O pintor já era conhecido do público, portanto, o foco das reportagens ficava em geral sobre o momento presente, resumido nos trabalhos novos que ele pintara, entrevistas, declarações ou eventos específicos. Entretanto, no cenário norte-americano, Portinari era um desconhecido. Essa situação colocava a exigência de sua apresentação também como forma de justificar a visibilidade dada a tal pintor. Assim, a vida de Portinari, estabelecendo relações de causa e efeito entre as

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etapas sucessivas de um desenvolvimento necessário, voltou a ser relatada a partir de sua infância em Brodósqui. Nesses relatos biográficos, voltaram a aparecer as referências à pobreza de sua infância e ao sofrimento testemunhado e experimentado pelo artista. Talvez a presença da guerra no cotidiano das pessoas contribuísse para que o tema do sofrimento, assim como os termos relacionados à batalha, se tornasse parte do vocabulário cotidiano. Dante Milano (1943), por exemplo, lembrou ter sido o pintor “companheiro de antigos tempos de pobreza” e usou a metáfora da “área de combate” para falar da curiosidade que mantinha o artista em “ebulição mental, em luta interior com as próprias ideias e as dos outros”. A entrada da União Soviética na guerra, pondo um fim temporário à propaganda anticomunista, contribuía para a politização do sofrimento alheio e o reaparecimento das referências à ideia de uma “arte social”. Entretanto, se no Brasil essas metáforas eram utilizadas para falar da obra de Portinari e de características morais do pintor, nos EUA o sofrimento e a pobreza pareciam estar atrelados a um “tipo brasileiro” ao qual Portinari era associado. A reportagem da revista Time (1940), por exemplo, ressaltou o fato de o pintor ser proveniente de uma família pobre e numerosa e ter morado no banheiro de uma pensão: um filho da pobreza (child of poverty). A ideia de um “tipo brasileiro” era condizente com a discussão sobre a formação histórica de um “tipo” nacional brasileiro durante o século XIX. A discussão sobre política migratória no Brasil entre 1880 e 1920 foi pensada em termos raciais, e a formação de um tipo racial no Brasil era concebida como uma miscigenação seletiva que eliminaria, aos poucos, os tipos inferiores pelo incremento do elemento europeu. O papel dos imigrantes nesse processo histórico era, além de colonizar o território e produzir bens de consumo, o de se assimilar à cultura brasileira. A noção de “melting pot” tinha algumas semelhanças; entretanto, a participação dos não-brancos era desconsiderada, e a assimilação cultural era concebida como uma integração apenas dos imigrantes à cultura norte-americana. Em ambas as teorias supunha-se que a integração das diferenças sociais e culturais dos imigrantes seriam superadas e

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esses grupos seriam incorporados à nova sociedade na segunda geração (Seyferth, 1997). O “típico” é contingente e político, e os atores sociais reproduzem e reforçam estereótipos de acordo com a situação em que se encontram (Herzfeld, 1992). Naquele contexto, tudo contribuía para que Portinari fosse um bom investimento para a “política da boa vizinhança” em termos do que ele podia representar para a construção da própria simbologia nacional estadunidense: o fenótipo de Portinari (loiro de olhos azuis), o fato de ser a segunda geração de imigrantes italianos no Brasil, de ter sido alçado a representante da modernidade brasileira a partir de uma produção considerada como “alta cultura”, de ser proveniente de uma família pobre de trabalhadores rurais e ainda o fato da crítica de arte norte americana apreciar o muralismo e o realismo social utilizados por ele (na década de 1930, o programa de fomento às artes nos EUA incentivava seus artistas a fazer trabalhos com conotação “social”). O trabalho e a trajetória de Portinari justificavam, ao mesmo tempo, o investimento no pintor e no Brasil como uma referência ao altruísmo norte-americano na ajuda ao pobre vizinho do sul, e ainda contribuía para o reforço da ideologia de formação nacional norte-americana. Descrever o sofrimento de Portinari poderia ser tomado como uma tentativa de engajar os observadores dos quadros na história pessoal do artista (e por extensão do Brasil), recorrendo à compaixão.28 Chateaubriand (1942) mencionaria essa representação, que não era nova na década de 1940, ao falar dos murais para a Rádio Tupi: “Grandezas e misérias do Brasil, sua sensibilidade, suas tragédias secretas, a contra-revolta obscura das suas classes desafortunadas, o frenesi dos sambas, dos batuques, o desengonço do frevo, a melancolia, sem azedume, dos negros e dos mulatos, que a escravidão policiou, o cavalo-marinho e o africano, o enterro dos simples e dos humildes, o 28 Boltanski mostra como os argumentos em favor de um altruísmo humanitário se fixam a partir do momento em que a teoria política começa a se preocupar com o que Hannah Arendt chamou de “política da piedade” (Boltanski, 1993, p. 7). O autor se debruça sobre o processo de transformação de uma situação particular que é lançada à condição de generalidade, isto é, o “sofrimento à distância”. Através da crítica de arte, Boltanski mostra como a estética pode contribuir para tornar o sofrimento individual num fato coletivo.

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tocador de flauta e o malandro dos morros, em toda essa comédia humana a palheta de Portinari deita cores imortais”. Otto Maria Carpeaux (1944) também comentou as “novas” descobertas de Portinari: “Uma tarde, soubemos: descobrimos no ateliê nova surpresa: um grande quadro de assunto social, representando uma família de retirantes, ‘Gente pobre’, disse o mestre, e abandonou-nos às impressões subjetivas. Portinari é um homem emocionado. Emocionaram-no os homens e as mulheres do Brasil, trabalhadores e sofredores”. Dos 86 esboços e pinturas classificados pelo Projeto Portinari na categoria retirantes, três foram feitos em 1934, todos os outros foram realizados a partir de 1939. Era o Palaninho que encontrava finalmente sua forma visual. Segundo Nelson Werneck Sodré (1983), durante o Estado Novo qualquer temática que envolvesse a miséria era previamente censurada das representações literárias. Segundo o autor, Graciliano Ramos, por exemplo, foi preso devido à utilização desse tipo de representação em seus trabalhos literários. Em uma carta endereçada para Portinari, Graciliano Ramos questionou a validade da utilização do sofrimento dos outros em sua produção e na de Portinari. Questionando se eles seriam tão exploradores quanto os outros que viviam da mesma pobreza e sofrimento que eles denunciavam, o escritor concluía que “miséria e deformação existem fora da arte”, ao contrário deles que a denunciam, essas são cultivadas por aqueles que [os] censuram” (Ramos, 1946). Entre 1937 e 1945 vigeu no Brasil uma intensa censura à imprensa. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) foi criado para, entre outras coisas, controlar a imprensa, destacando censores para trabalhar em cada jornal, examinando os originais antes que estes fossem para as máquinas (Sodré 1983, p. 381). Entretanto, com a entrada dos EUA na Segunda Guerra e, principalmente com a entrada do Brasil em 1942, o Estado Novo começou a se debilitar. O enfraquecimento da ditadura Vargas teve influência no desenvolvimento de uma expressão artística voltada para a miséria e o sofrimento, assuntos politicamente instrumentalizáveis. Na primeira metade da década de 1940, Portinari produziu ainda encomendas para o governo federal e para particulares no Brasil.

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Realizou duas grandes exposições no Museu Nacional de Belas Artes, pintou os murais para a igreja da Pampulha (com projeto de Oscar Niemeyer, a igreja foi construída quando o prefeito de Belo Horizonte era Juscelino Kubitschek), desenvolveu os murais para o prédio do Ministério da Educação e Cultura, executou os painéis para a Rádio Tupi do Rio e de São Paulo, por encomenda de Assis Chateaubriand. Fez ainda painéis para a capela Mairynk, no Rio de Janeiro, e ilustrou o livro Memórias póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis, primeira publicação da Sociedade dos cem bibliófilos do Brasil.29 Em junho de 1944, Mário de Andrade publicou na Revista Acadêmica o último artigo no qual mencionou Portinari antes de falecer. O autor sistematizou, em tom evolucionista, uma história das artes brasileiras (arquitetura, letras, música, pintura) fundada na ideia de um nacionalismo formado por uma série de tendências regionais, mencionando a formação “racial” brasileira e seu caráter “mestiço”. Andrade finalizou o artigo falando da importância da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico, para o “recenseamento do patrimônio artístico do país” (Andrade, M., 1944, p. 27) e incluiu nesse “recenseamento” alguns nomes de artistas que considerava importantes: no Nordeste, Goeldi, Santa Rosa e Cícero Dias, em São Paulo, Tarsila e Segall (lembrando suas ascendências estrangeiras) e no Rio de Janeiro Guignard e Candido Portinari, “que já muito ultrapassou os limites do seu Brasil e é hoje uma das mais legítimas expressões da pintura americana” (Andrade, M., 1944, p. 31). Todos eram classificados como modernos. Era como se a pintura brasileira antes do modernismo não houvesse existido. Em janeiro de 1945, realizou-se em São Paulo o I Congresso Brasileiro de Escritores (com a participação de Caio Prado Jr, Jorge Amado, Aníbal Machado, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Antonio Candido, Sérgio Milliet, Dionélio Machado, Paulo Emílio Salles Gomes, 29 A Sociedade Os Cem Bibliófilos do Brasil, que funcionou de 1943 a 1969, editou 23 obras de literatura brasileira, ilustradas por artistas consagrados. Eram editados 100 exemplares para os sócios, e ainda um número especial com os originais das ilustrações. Portinari ilustrou o primeiro livro publicado pela Sociedade, em 1943, Memórias póstumas de Braz Cubas, de Joaquim Maria Machado de Assis, e em 1959 ilustrou Menino de engenho, de José Lins do Rego.

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entre outros) no qual foi aprovada uma “Declaração de princípios” que exigia a democracia plena no país (Segatto et alli, 1982). Em setembro desse ano acabou a Segunda Guerra Mundial e, em outubro, terminou o Estado Novo. Entretanto, para Portinari esse era o começo de uma nova luta. Em 15 de julho de 1945, Luiz Carlos Prestes havia discursado no rádio, apoiando a democratização do país. Em 25 de agosto, Portinari concedeu uma entrevista à Tribuna Popular na qual foi ressaltado seu entusiasmo pelas diretrizes de Prestes (Jurandir, 1945). O título e subtítulo do artigo indicam a importância simbólica que tinha uma filiação como a de Portinari para o partido: O latifúndio é a causa da miséria. Seus quadros reproduzem os estropiados e famintos do interior do Brasil – filho de meeiro de São Paulo, encheu-se de entusiasmo ante as palavras de Luiz Carlos Prestes sobre a questão camponesa – ‘A Constituinte é o verdadeiro caminho da democracia’ – Portinari repele, indignado, a rearticulação nazi-integralista” (Jurandir, 1945). O artigo contava que Portinari ficara impressionado com as palavras pronunciadas por Luiz Carlos Prestes sobre a “questão camponesa”: “explica-se o meu entusiasmo por Prestes quando falou da terra e dos camponeses. Eu estava encostado à mesa ouvindo pelo rádio o seu discurso no Pacaembu. Quando o homem falou dos camponeses e tocou no problema da terra dei um pulo. Tinha tocado na ferida do Brasil. Era a vida de meu pai, de minha família, era a vida de Brodósqui, era a vida da massa camponesa no Brasil. Devo a Prestes essa emoção. Nas suas palavras senti todo o drama do homem brasileiro sem terra. Já em Brodósqui, não precisa ir mais longe, eu sinto o drama do meeiro. O dono da terra não vende a terra, faz a meia, lucra sempre e não deixa o camponês progredir. A terra é dele. O latifúndio é a causa da miséria” (Jurandir, 1945). Portinari acrescentou na entrevista que não sabia contar com palavras a história dos camponeses, mas com imagens: “a minha linguagem é a pintura”. Ele usava sua pintura como uma arma na luta ideológica. Nesse mesmo ano, lançou sua candidatura a deputado federal pelo Partido Comunista, mas não foi eleito. No artigo que escreveu para o Boletim da União Panamericana (publicação editada em Washington), em 1942, Mário Pedrosa falava

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do muralismo como uma resposta latino-americana aos problemas que a estética moderna estava propondo (a “crise da pintura de cavalete”30), enquanto o abstracionismo e o surrealismo seriam as respostas europeias. Pedrosa propunha uma comparação, diferenciando o muralismo de Portinari do muralismo dos mexicanos. “De fato, se neste continente a pintura moderna não atingiu a profundeza ou a transcendência puramente estética da pintura moderna européia, centralizada em Paris, tem sido no entanto aqui, nos países americanos (México, Estados Unidos, Brasil, etc.), onde se tem feito a tentativa mais audaciosa de uma grande arte sintética capaz de restaurar a dignidade artística do assunto perdida na grande arte moderna puramente analítica, e reintegrar por essa forma o homem humano, o homem social, na pintura de onde havia sido excluído” (Pedrosa, 1942, p. 120). Ainda não havia naquele momento um antagonismo explícito entre arte pura e arte engajada ou abstração e figuração, mas a expressão do nacionalismo já era motivo de críticas por parte de Pedrosa. Otília Arantes (1991) marcou o ano de 1944 com o artigo que Pedrosa escreveu sobre Alexander Calder como a virada do crítico em direção ao formalismo na arte. Em 1945, Pedrosa voltou de seu 30 Os salões franceses durante o século XIX eram uma das únicas possibilidades de um pintor se fazer conhecido e reconhecido e receber encomendas posteriores, papel que cumprirão mais tarde as galerias de arte privadas. As concepções de singularidade e originalidade próprias do romantismo não tinham como se desenvolver dentro de um sistema que se fechava em torno das normas representadas pelos júris: ao se inscrever nos salões, os artistas tinham que declarar o nome de seus mestres, legitimando e fazendo reproduzir o sistema. Foi do processo de enrijecimento do gosto e das críticas recorrentes aos critérios de escolha dos artistas para participação nos salões que foram criados espaços paralelos de exposição, dos quais o Salão dos Impressionistas é o mais conhecido. A declaração de autodidatismo era então parte do processo de revolta contra esse sistema. Havia também uma hierarquia de gêneros que definia os gêneros histórico, religioso e mitológico como os mais altos e outros, como paisagem, retratos, gênero e natureza morta como inferiores. A esse sistema de fechamento institucional controlado que prevaleceu durante o século XIX, Heinich classificou como neoacadêmico (2005, p. 58). Com a revolução de 1848 houve um declínio nas encomendas de pinturas históricas que favoreceu a mudança na hierarquia dos gêneros. As encomendas se diversificaram e passaram a contar com decorações de interior, publicidade em jornais, oferecendo novas formas de subsistência através da arte. Houve modificações importantes também nas técnicas, com a introdução da tinta em tubo, o que ofereceu mais facilidade para os amadores e tornou a arte uma possibilidade para os filhos de famílias menos abastadas. Entretanto, a diversificação dos mercados não era suficiente para compensar o aumento de pintores e impedir sua pauperização. A crise se agravaria até o estouro do sistema no final do século. É em 1900 que os críticos de arte da Aica classificam o início do modernismo.

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exílio.31 A partir de então, o trabalho de Portinari serviu de base para uma discussão que se prolongou durante toda a década de 1950. Alguns fatores influentes nesse debate podem ser sumarizados da seguinte forma: 1) a vinculação entre arte e política de Estado, que tinha sido a forma por excelência de constituição da arte moderna no Brasil no começo do século não mais vigorava, e Portinari optou pela reconversão política de sua arte, culminando mesmo com duas candidaturas (deputado federal, em 1945, e senador, em 1947); 2) o teor nacionalista de sua obra era dificilmente ignorável, e na Europa o discurso antinacionalista era uma das bandeiras de renovação da arte moderna cujo enfoque deveria se voltar para a expressão singular de uma estética universal; 3) a volta ao Brasil de Mário Pedrosa em 1945, depois de sete anos vivendo primeiro em Paris e depois em Nova Iorque e Washington, em contato com os artistas da vanguarda europeia e norte-americana; 4) a institucionalização da crítica de arte no Brasil, nos EUA e na Europa e ainda 5) a influência da geopolítica mundial sobre tudo isso fazia com que o debate em torno da autonomia da arte utilizasse o embate entre representação abstrata e representação figurativa ou o realismo social (“estilo” ao qual Portinari se vinculava) para redefinir o estatuto do artista. Há uma simultaneidade entre muitas dessas dimensões o que torna a organização dos mesmos em um texto linear um tanto redutora das complexidades ai implícitas. Entretanto, antes de passar para uma análise desses debates, apresentarei a trajetória de Mário Pedrosa, para que seja possível compreender em que medida suas posições, ao longo da década de 1940, contribuíram para que ele acumulasse um capital social que o capacitou a estimular as transformações axiológicas no universo artístico brasileiro.

31 O próximo capítulo trata da trajetória de Pedrosa.

Capítulo 2

Fig. 2 – Charge de Carlos Leão, publicada no periódico dirigido por Pedrosa, Vanguarda Socialista, em 05/10/1945. Acervo Cemap/Cedem.

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Mário Pedrosa: uma trajetória da política à arte Um dia deverá ser contado como o antistalinismo que mais ou menos começou sob a forma de um trotskismo foi transformado em arte pela arte e assim abriu caminho heroicamente ao que veio. (Clement Greenberg, Art and Culture, 1961 apud Guilbaut, 1996, p. 27)

Alguns anos antes de falecer, Mário Pedrosa (1974) começou a escrever suas memórias. Escreveu sobre sua família, a relação com seus pais e o próprio processo de selecionar o que seria ou não prioridade em um relato biográfico. O fato de não ter entrado no período de sua história de vida, que tem em geral interessado aos pesquisadores, não diminui o valor de suas reflexões. Ele falou da difícil tarefa de organizar linearmente uma trajetória de vida, sendo o processo de rememoração em si mesmo descontínuo. Aproveito essas reflexões para advertir, mais uma vez, sobre o caráter arbitrário de qualquer relato biográfico. Entretanto, a ilusão de linearidade e intencionalidade que um relato de vida oferece não diminui sua validade como uma forma possível de apreensão da trajetória de determinado ator social e do contexto no qual essa trajetória se desenrolou. É preciso, contudo, estar atento para os objetivos implícitos e explícitos que levaram à construção do relato, a relação do biografado com seu biógrafo (quando for o caso) e o contexto de publicação (ou não) do relato. A partir desses dados é possível relativizar algumas das ênfases atribuídas a eventos e pessoas e ter uma ideia das coisas que ficaram de fora. Mais do que advertir sobre a autobiografia que Pedrosa escreveu, pretendo com essas observações falar do lugar de onde apresento a trajetória desse ator na construção biográfica aqui esboçada. Meu objetivo é analisar as transformações ocorridas no universo artístico brasileiro entre o final da Segunda Guerra e o início da década de 1960, para o qual Pedrosa foi um ator central. Considero que as ações empreendidas e os fundamentos por ele defendidos nesse período têm relação com as oportunidades que se apresentaram ao longo de sua história pessoal e os interesses que daí se desenvolveram.

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Duas questões específicas que têm sido levantadas em quase todos os trabalhos que tratam das temáticas de interesse de Mário Pedrosa são a tentativa de superação da dicotomia entre arte e política e a compreensão de sua mudança de perspectiva, da defesa da representação figurativa na década de 1930 para a defesa da abstração na década de 1950. Pedrosa foi um militante político de esquerda e ao mesmo tempo um prolífico escritor sobre arte moderna. Se hoje as pesquisas sobre sua trajetória se debruçam, quase todas exclusivamente, seja sobre seu interesse e participação políticos, seja sobre sua atuação no campo artístico, é porque ele foi um dos principais atores no processo de transformação dos debates sobre política e artes nesse período. Como militante e jornalista político e crítico de arte, contribuiu enormemente para uma reconfiguração que separou os debates sobre arte e política em campos alegadamente distintos, contribuindo para consagrar no Brasil a ideia de arte contemporânea (ou pós-moderna, como ele denominava). Meu interesse em sua trajetória política, entretanto, se restringe à influência que essa dimensão teve em seus posicionamentos em relação à arte. Esse é o ponto de partida para falar da trajetória de Mário Xavier de Andrade Pedrosa. Os avós de Pedrosa32 haviam sido fazendeiros que não conseguiram se manter nos negócios agrários com a industrialização da lavoura. Ao se mudarem para a cidade de Recife para trabalhar no comércio, foram à falência no ano em que nasceu o pai de Mário Pedrosa, Pedro, em 1863. Assim, Pedro Pedrosa nasceu “sob o signo da pobreza” (Pedrosa, P., 1937, p. 17). Esse detalhe familiar foi ressaltado com orgulho na autobiografia de Pedrosa (1974), que era crítico da posição política conservadora do pai. A tensão familiar pela diferença de posicionamentos políticos e concepções de vida é explícita nos relatos biográficos de pai e filho. Pedro Pedrosa declarou em sua autobiografia publicada em 1937 (ano em que seu filho teve que sair do Brasil por estar sendo pro32 O sobrenome Pedrosa será reservado, quando usado sem o prenome, somente para Mário Pedrosa. Sempre que houver outro familiar de Pedrosa, este será apresentado com nome completo.

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cessado e perseguido pelo Estado Novo): “foi o meu 6º filho que, na idade, acompanha o século o que mais nos tem preocupado o espírito e nos dado mais trabalho”. “Desejei muito que ele fizesse como o pai e exercesse a magistratura ou a bonita carreira da advocacia; para o que andei procurando uma promotoria nos Estados de São Paulo, do Rio e do Paraná. Por intermédio do meu colega e amigo senador Afonso Camargo, foi ele nomeado Promotor de Palma, com promessa de, na primeira oportunidade, passar para Curitiba. § Mário, porém, não quis aceitar. Andou sendo Fiscal de Consumo interinamente em São Paulo e efetivamente na Paraíba. Empenhado, entretanto, em fazer estudos na Universidade de Berlim, deixou o lugar que tinha na fiscalização da Fazenda e partiu para a Alemanha em 1927 e lá demorou-se mais de ano. Regressando procurei colocá-lo, porém nada mais pude obter, apesar das promessas que me faziam, até que rebentou a revolução de 1930” (1937, p. 78). O sociólogo Luciano Martins, que foi genro de Pedrosa, refere-se ao sogro como “ovelha negra” em relação à família de católicos devotos e burocratas do Estado (Martins, 2001, p. 33). Apesar das divergências de opiniões, a relação com seu núcleo familiar parecia ser de muito apoio afetivo e mesmo financeiro, como demonstra a correspondência trocada com o pai e depositada no Centro de Documentação e Memória da Unesp (Cedem). Aos 74 anos, quando se encontrava novamente exilado em Paris, escreveu com carinho sobre Pedro Pedrosa: “pobre e conservador de berço, mas cujas primeiras palavras, nas suas ‘Minhas próprias memórias’, sempre me encantaram: ‘vim ao mundo sob o signo da pobreza’” (1974, p. 4). Procurou, entretanto, uma nova história de origem familiar com a qual ele se identificasse mais do que aquela que seu pai ou mesmo seus avós ofereciam. Essa origem Mário Pedrosa encontrou em um livro do século XVIII, mudando o registro histórico da memória familiar ao usar como ponto de partida a guerra dos holandeses. Nessa nova origem, encontrou uma maquinação contra os poderes estabelecidos tão ao seu gosto. Esse passado comportava uma conspiração contra “o gringo holandês”, da qual os ancestrais da família haveriam participado (Pedrosa, 1974, p. 5).

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A intenção ao falar dessa questão familiar é situar os fundamentos para duas perguntas que parecem pertinentes. Sendo proveniente de uma família conservadora na qual a grande maioria fez parte do funcionalismo do Estado, 1) como teria sido para Pedrosa assumir uma posição política e um ethos diferente daquele experimentado no âmbito doméstico? e 2) se seu interesse inicial pelas manifestações do espírito estava relacionado inicialmente ao “papel social” do artista, o que fez com que Pedrosa, na década de 1940, assumisse os valores da singularidade e autenticidade (isto é, a representação de uma autonomia da arte em relação a outras dimensões sociais)? Foram esboçadas algumas tentativas de compreender a diferença de perspectiva política em relação a sua família. Um artigo de jornal apresentou seu contato com um texto de Romain Rolland em 191819 como o estímulo para seu interesse na revolução de 1917 (Tribuna, 1955); outro fundou seu interesse em política em um discurso de Rui Barbosa; Cláudio Abramo, ao anunciar a morte de Pedrosa, argumentou que seus professores no colégio de freiras foram os responsáveis por seu interesse no debate de ideias (Abramo, 1981); Antonio Candido ressaltou sua admiração por Edgardo de Castro Rebelo, um dos poucos professores socialistas na Faculdade de Direito (Candido, 2001) e Luciano Martins corroborou esse argumento alegando que o próprio Pedrosa contava que foi na Faculdade de Direito que passou a se interessar por história e pelas questões sociais, por influência daquele professor (Martins, 2001). Em relação à arte, Lélia Abramo sugeriu que ele se dedicou à crítica de arte por impossibilidade de se dedicar à crítica política (Abramo, 2001, p. 21); já Luciano Martins argumentou que viver de jornalismo, na época, era uma das poucas opções para os intelectuais, e por esse viés é que Pedrosa começou a fazer crítica de arte (Martins, 2001). Antonio Candido falou da importância de Pedrosa para o campo artístico e político nos anos 40, quando trouxe indiretamente para a esquerda brasileira uma contribuição civilizadora de grande alcance, por meio da sua crítica inovadora das artes (Candido, 2001, p. 15-16). Há ainda a ideia de que a defesa da abstração havia sido uma defesa ética e não estética (Mari, 2006; Arantes, 1991).

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Todas essas explicações são válidas. Entretanto, não parece profícuo imaginar os rumos que uma trajetória de vida toma como resultado de eventos repentinos que instituem uma transformação completa na pessoa. Vários autores declaram seu incômodo com a separação da obra de Pedrosa em dois campos, de um lado suas posições e militância política e de outro a crítica de arte (Costa, 2001). Ter sido um ator central em duas áreas cujos fundamentos são distintos, talvez tenha dificultado a fatura de uma pesquisa biográfica que procure dar conta de sua trajetória de vida. Ainda que uma biografia compreensiva da trajetória de Pedrosa não seja o objetivo aqui, procuro enunciar alguns dados sobre esse ator que ajudem a iluminar sua atuação no campo artístico, no período após a Segunda Guerra.

A juventude e a política como interesse prioritário

Mário Pedrosa nasceu em 25 de abril de 1900, em um engenho em Timbaúba, Pernambuco, sendo o sexto dos dez filhos (cinco mulheres e cinco homens) do casal Pedro Pedrosa e Antonia Xavier d’Andrade Pedrosa, parente de José Lins do Rego. A família de seu pai era de senhores de engenho do Nordeste, que viviam da cana-de-açúcar e do algodão. Com a tentativa frustrada no comércio urbano, “transferiram para a administração pública (seu pai foi senador da República e ministro do Tribunal de Contas) a inserção que já não tinham como classe economicamente dominante” (Martins 2001, p. 30). Assim foram todos os filhos, segundo o pai de Pedrosa, devidamente apadrinhados por alguém da Igreja, do Exército ou algum outro “pistolão” (1937, p. 89), estratégia por excelência de entrada na vida pública nesse período. Pedro Pedrosa argumentou em suas memórias que, depois da falência de seus pais, foi Francisco Raimundo da Cunha Pedrosa, um de seus irmãos que se tornara padre, que se responsabilizou pelo futuro daquela família sem condições financeiras. Monsenhor Francisco tornou-se padre de duas igrejas em Monte Alegre e Pindoba (ambas na Paraíba) e abriu uma escola onde receberam instrução também os irmãos de Pedro, tios de Pedrosa. Olympio Bonald, irmão de Pe-

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dro Pedrosa que recebeu o nome “em homenagem ao grande escritor católico, reacionário, do início do século, como era costume do tempo” (Pedrosa, 1974, p. 5), se tornou Desembargador da Relação de Pernambuco. Pedro Pedrosa e a família seguiram com o padre Francisco pelas freguesias nas quais este trabalhou. Pedro foi enviado ao Seminário Pequeno de Olinda, por sua inclinação para as letras, e foi discípulo do padre Joaquim Arcoverde, primeiro cardeal brasileiro, Cardeal Arcoverde. Pedro Pedrosa formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, em Pernambuco, com 22 anos. J. J. Seabra foi um dos examinadores de sua banca. Após sua formatura, foi nomeado promotor público de Timbaúba, comarca onde vivera em sua adolescência. O presidente da província da Paraíba nomeou-o mais tarde juiz municipal do Pilar. Quando a República foi proclamada, Pedro Pedrosa tinha 26 anos. Segundo sua autobiografia, seu envolvimento na vida pública da Primeira República deu-se entre o governo do desembargador José Peregrino de Araújo (que governou a Paraíba de 1900 a 1904) até o Dr. Álvaro Pereira de Carvalho (que substituiu João Pessoa em 1930). Com o início do Estado Novo, entretanto, ele não se afastou da política. Em 1941, quando Pedrosa foi preso, seu pai, então ministro do Tribunal de Contas, recorreu a Filinto Muller, pedindo a liberdade de seu filho, concedida com a condição de que este seguisse imediatamente para os EUA. Mário Pedrosa teve uma educação condizente com esse histórico familiar e, entre 1906 e 1912, estudou no colégio de freiras Nossa Senhora das Neves, no Colégio Diocesano e depois no Liceu Paraibano. Em 1913 foi enviado à Bélgica para estudar na Maison Mello, um colégio jesuíta. Entretanto, a pessoa encarregada de zelar por ele, o escritor paraibano José Vieira, adoeceu na Suíça e ele acabou sendo matriculado na escola protestante Institut Quinche, em Lausanne, o que não agradou seus pais. Com a chegada da guerra, Pedrosa voltou ao Brasil. Seu pai reclamou em suas memórias que ele voltara um pouco esquecido dos preceitos da religião católica. Sua família havia se mudado para o Rio de Janeiro, onde seu pai foi eleito senador. A partir de então, Pedrosa passou duas rápidas tem-

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poradas, por motivos diversos, na Paraíba (1919) e no interior de São Paulo (1927). Fora seus períodos de exílio, morou sempre entre Rio de Janeiro e São Paulo. Em 1918 ingressou na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, onde conheceu, entre outros, Lívio Xavier e teve contato com o pensamento marxista. Foi nessa época que conheceu Mary Houston, com quem se casou mais tarde. Mary era filha de James Franklin Houston, um dentista norte-americano que se estabeleceu no Rio de Janeiro em 1892, e Arinda Galdo, uma descendente de portugueses da Ilha da Madeira. Sua irmã, Elsie Houston, estudou canto lírico na Europa e trabalhou com o maestro e compositor Luciano Gallet. Elsie era amiga de alguns dos intelectuais que viriam a ser expoentes do modernismo, como: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Patrícia Galvão (Pagú), Manuel Bandeira e Murilo Mendes. Assim, desde o tempo de faculdade Pedrosa esteve rodeado de atores sociais que, como ele, construíram biografias relevantes nas artes e na militância política (Marques Neto, 2001, p. 85). Formou-se, em 1923, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, mas a única coisa que fez mais ou menos próxima dessa formação foi atuar como fiscal de imposto de consumo em São Paulo. Entre 1924 e 1927 trabalhou para o Diário da Noite, de São Paulo, onde inaugurou seções sobre Política Internacional e Crítica Literária. O jornal Diário da Noite era uma das publicações da cadeia de jornais, rádios e emissoras de televisão que Assis Chateaubriand construiu ao longo da primeira metade do século XX. O primeiro secretário de redação do Diário da Noite foi o jovem jornalista Geraldo Galvão Ferraz, que viria a ser o companheiro de Pedrosa em diversos empreendimentos editoriais. Nessa época conheceu jornalistas, políticos e artistas, como Plínio Salgado, Di Cavalcanti, Rafael Correia de Oliveira, Plínio Barreto, Fernando Mendes de Almeida, Nabor Caíres de Brito e Rubens do Amaral (Pedroso e Vasquez, 1991). O ano de 1925 marcou o início de sua militância política, ao vincular-se ao Partido Comunista Brasileiro. Fundou logo em seguida o primeiro de muitos periódicos políticos, a Revista Proletária, que foi interditada logo após a publicação do primeiro volume. Em 1926

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foi para a Paraíba, onde havia sido nomeado agente fiscal, e tornou-se membro do Comitê Regional do Partido Comunista. Apesar das cronologias da trajetória de Pedrosa situarem sua ida à Europa como reflexo da lei Aníbal de Toledo, de 1927, que tornou o Partido Comunista ilegal, no final de 1926 essa viagem já parecia estar planejada. Mary Houston recebeu uma carta de despedida de Murilo Mendes, na qual o autor brincava com a ideia de que ela em breve estaria conversando com Bergson, discutindo o surrealismo e jogando xadrez com Einstein. Marques Neto (2001) argumenta que Pedrosa foi para a Europa como escala para a União Soviética, onde cursaria a Escola do Partido. Na União Soviética as oposições ao Comintern33 estavam sendo paulatinamente eliminadas. A expulsão de Trotsky em 1928 dera início a uma organização sistemática de grupos de oposição aos partidos comunistas em diversos países, pelos dissidentes da linha oficial do partido. Pedrosa foi primeiro para a Alemanha para depois seguir para Moscou, mas acabou não continuando a viagem. Duas são as explicações apresentadas para essa mudança de planos: uma gripe que o impediu de viajar (Arantes, 1995) e uma atitude política na qual se aliava desde então a Trotsky, contra as diretrizes da Internacional Comunista (Marques Neto, 2001). Durante essa estadia de quase dois anos na Alemanha, estudou sociologia, estética e filosofia na Faculdade de Filosofia de Berlim. Foi nesse período que tomou conhecimento pela primeira vez das teorias da Gestalt,34 que usaria anos depois para fundamentar sua tese Da natureza afetiva das formas na obra de arte (Pedrosa, 1951e). Teve contato também com o expressionismo alemão, através de diversos artistas, e participou dos primeiros movimentos contra o nazismo alemão.

33 A Internacional Comunista, ou Comintern (acrônimo de Kommunistische Internationale), foi criada em 1919 pelo Partido Bolchevique como o partido mundial da revolução, e os partidos comunistas dos diversos países eram considerados seções nacionais do Comintern. 34 A Gestalt é um ramo da psicologia comportamental que, por sua vez, era concebida como um ramo das ciências biológicas (Koffka, 1955). A teoria da Gestalt proposta por Koffka, um dos autores nos quais Pedrosa se baseou para escrever sua tese, dizia que haveria nas coisas uma força vital responsável pela criação da ordem.

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Antes de ir para a Alemanha, em 1927, escreveu seus primeiros ensaios sobre artes, ambos no jornal paraibano A União: um sobre Mário de Andrade, com quem trabalhou no periódico paulistano Diário de Notícias, em 1924 – Mário de Andrade, escritor brasileiro –, e outro sobre Beethoven: artista-herói da revolução. Já na Alemanha escreveu A rebelião romântica e o espírito prussiano, no qual, segundo Marcelo Mari, tratou “das condições de surgimento e evolução da arte alemã” (Mari 2006, p. 23), e em 1929 escreveu sobre Villa-Lobos para a revista francesa Revue Musicale (ver anexo 2). No artigo sobre Villa-Lobos, Pedrosa justificava a “brutalidade” do músico argumentando que esta se devia ao fato de que sua arte era “inconscientemente marcada pela forma de sentir de seu povo” (1929, p. 23). A noção de “inspiração” foi usada para explicar o primeiro passo do processo de criação, antes que a estética moldasse a obra ao gosto, momento posterior. A “sinceridade ingênua” de Villa-Lobos foi justificada pelo “primitivismo” brasileiro que tornava o músico “colérico e selvagem, sensual e sentimental”. O Brasil foi comparado à Alemanha em sua “arte rudimentar e interessada expressão direta de suas rudes felicidades e tristezas” (1929, p. 24). Segundo Pedrosa, Villa-Lobos só obedecia “a imposição de seu meio e de sua raça” (1929, p. 25), sendo raça tomada como sinonímia de nacionalidade (uma raça brasileira). Nascido com o século XX, Pedrosa não estava isento da influência das teorias raciais no processo de simbolização do Estado nacional em formação e das formulações de Mário de Andrade, que era mencionado como apoio para o argumento sobre o “papel capital que a música [tinha] na formação de nossa cultura nacional e no desenvolvimento espiritual da alma coletiva” (Pedrosa, 1929, p. 28). Em 1928, Pedrosa foi a Paris para o casamento de Elsie Houston com o poeta surrealista e posteriormente militante trotskista, Benjamin Péret, um dos fundadores do surrealismo. Nessa viagem conheceu os surrealistas André Breton, Louis Aragon, Paul Éluard e Pierre Naville, diretor da revista Clarté e mais tarde Lutte des Classes, com a qual se corresponderia. Pierre Naville começava a organizar a tendência oposicionista ao Partido Comunista Francês.

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Em 1930, foi organizada uma conferência das oposições da esquerda mundial, reunindo delegados de diversos países. A reunião não visava constituir novos partidos, mas facções nacionais do comunismo internacional, visando restabelecer as bases leninistas do movimento (Mari, 2006). De volta ao Brasil no final de 1929, Pedrosa contribuiu para a organização das facções dispersas da oposição de esquerda e a fundação de um grupo de oposição dentro do PCB. Segundo Luciano Martins (2001), ele foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a procurar compreender as origens da burocracia soviética e as causas da “revolução traída”. Seu retorno para o Brasil coincidiu com a realização do III Congresso do PCB, iniciado em dezembro de 1928. O grupo ao qual estava filiado, Juventude Comunista, criticava o teor excessivamente nacionalista da doutrina praticada no país, que se chocava com a ideia de uma revolução internacional. As críticas ocasionaram sua expulsão do partido. José Castilho Marques Neto (2001) marca o final da década de 1920 como a definição política de Pedrosa, quase sempre pela contracorrente socialista. Em 1929 foi preso pela primeira vez. Contribuiu para a fundação do Grupo Comunista Leninista no final de 1929 e começo de 1930. O grupo constituía-se de Rodolpho Coutinho, fundador do PCB, Aristides Lobo e Plínio Gomes de Melo, antigos companheiros que se reuniam em torno do professor Edgardo de Castro Rebelo para discutir o marxismo, e ainda João Dalla Déa e Wenceslau Escobar Azambuja. Marques Neto (2001) nota a vocação internacionalista desse grupo, que também formaria em 1931 a Liga Comunista. Isso, entretanto, não impedia que o grupo agisse com independência em relação ao Secretariado Internacional da Oposição de Esquerda ou que Mário Pedrosa, mais especificamente, estivesse preocupado em compreender o Brasil.35 A revista A Lucta de Classe, jornal fundado por ele em 1930, que seguia a orientação da revista homônima francesa, foi o veículo de divulgação das ideias desse grupo. 35 Falando da diferença entre as concepções de nação e nacionalismo em Herder e Fichte, Louis Dumont chama a atenção para o fato de que “o universalismo ou cosmopolitismo não exclui o patriotismo” (1985, p. 131).

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Segundo Marques Neto (2001, p. 95-96), Pedrosa contribuiu decisivamente para a leitura do marxismo no Brasil ao reconhecer as contradições próprias à classe dominante brasileira, que estimulava uma disputa interna à burguesia devido à falência da oligarquia paulista após a crise do café. Essa interpretação era contraditória com aquela oferecida pelo Partido Comunista, de que a Revolução de 1930 havia sido o resultado das contradições imperialistas com a crescente influência econômica norte-americana sobre essa mesma burguesia, representante direta dos interesses imperialistas. As divergências com o PCB resultaram na criação de outros três grupos de oposição ao longo da década de 1930: Liga Comunista (1930/1931), Liga Comunista Internacionalista (1931/1935) e Partido Operário Leninista (1936). Com o objetivo de favorecer o trotskismo em oposição ao stalinismo, esse grupo esteve associado à Oposição Internacional de Esquerda, constituída em Paris em 1930. Segundo Marques Neto (2001), “em todos eles, o trabalho se deu contra a corrente, primeiramente buscando transformar o próprio PC, num segundo momento, procurando criar uma nova Internacional” (p. 97). O grupo, ainda que pequeno, ocupou importantes sindicatos e esteve presente nos grandes debates nacionais, como a Constituinte e a luta antifascista. Ainda em 1930, Pedrosa foi para São Paulo e trabalhou no Diário da Noite. Publicou o primeiro ensaio marxista analisando a situação brasileira e as causas da revolução de 1930 e escreveu Revolução Permanente, texto que se perdeu depois de confiscado pela polícia. Com a fundação da Ação Integralista Brasileira, em outubro de 1932, o grupo se mobilizou para a organização de uma Frente Única Antifascista (FUA) das esquerdas. Segundo Nunes (1998), o discurso internacionalista do grupo trotskista “não encontrou grande eco nas massas populares urbanas que tinham um forte sentimento nacionalista que manifestava-se cada vez mais, por força da conjuntura política, como antiimperialismo e como nacionalismo econômico que reafirmassem a soberania e a independência nacionais”. Junto com Geraldo Ferraz e outros jornalistas do Diário da Noite, fundou o semanário “O homem livre”, no qual eram publicadas as li-

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nhas da luta contra o fascismo. Segundo Coggiola (2002), “a FUA teve em O Homem Livre a definição de sua identidade política frente à sociedade civil paulista e, particularmente, em contraposição ao fascismo, representado pela AIB” (p. 8), Associação Integralista Brasileira. O redator-chefe era Geraldo Ferraz, o diretor-gerente, José Pérez e o secretário, Mário Pedrosa. Os artigos que ali foram publicados eram assinados, às vezes sob pseudônimos, por José Pérez, Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Aristides Lobo, Goffredo Rosini, Geraldo Ferraz e Miguel Macedo, com ilustrações do gravador Lívio Abramo (Coggiola, 2002). O jornal possuía qualidades técnicas e editoriais, contendo seções fixas sobre artes plásticas, cinema, economia, cultura, ciências etc. (Coggiola, 2002). Foi nesse periódico que Pedrosa publicou seu primeiro ensaio sobre artes plásticas, o texto sobre a gravurista alemã Käthe Kollwitz, em 1933. Outro veículo de divulgação das ideias do grupo já havia sido fundado em 1932 por Pedrosa e outros amigos, Casa Editora Unitas. Através desse veículo publicou a tradução de um conjunto de textos de Trotsky com prefácio seu, intitulado Revolução e contra-revolução na Alemanha. Apesar de limitada em seu alcance, Ilinapuan Barnasconi Nunes (1998) defende que a ação dessa Frente Única foi fundamental por apontar o movimento popular como estratégia de combate ao fascismo. Pedrosa foi preso pela terceira vez por conta da Revolução Constitucionalista (a segunda vez foi ao distribuir panfletos no dia 1º de maio na Praça Mauá, em 1930).

Aliança com o universo artístico e posicionamento político

Em 1932 foram criadas em São Paulo a Sociedade Pró-Arte Moderna (Spam) e o Clube dos Artistas Modernos (CAM), agremiações que procuravam ganhar alguma autonomia diante da crise no mercado de arte pelo aumento da quantidade de artistas, a carência de espaços para exposição e comercialização e a falta de apoio governamental. As duas, fundadas respectivamente em 23 e 24 de novembro, funcionavam como difusoras da arte moderna e buscavam dar continuidade às pesquisas nesse viés e aos debates sobre temas

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emergentes. Entre os assuntos em pauta estava a relação entre arte e os acontecimentos políticos e sociais com um viés crítico à burguesia, ao Estado e à Igreja brasileiros e a simpatia pelo Estado soviético. Dentre as diversas atividades do CAM contou-se com uma exposição da gravurista alemã Käthe Kollwitz, concertos de música erudita e popular (Camargo Guarnieri, Lavínia Viotti, Elsie Houston e Marcelo Tupinambá) e conferências (Caio Prado Jr., Jorge Amado, Tarsila do Amaral, David Alfaro Siqueiros, Mário Pedrosa etc.). A conferência apresentada por Pedrosa foi a primeira na qual o militante político e jornalista, que até então escrevera sobre política, música e literatura, se aventurou a falar sobre artes plásticas. O título através do qual a palestra ficou conhecida foi As tendências sociais na arte de Käthe Kollwitz. No ano de seu pronunciamento, o ensaio foi publicado em partes no jornal O Homem Livre (6, 7, 8 e 9 de julho de 1933). A conferência foi um pronunciamento político em defesa da artista, que havia sido afastada da escola oficial de arte que dirigia na Alemanha. Em 1932, Kollwitz uniu-se aos socialistas e assinou um apelo contra o Partido Nazista. Quando Hitler assumiu o poder, Kollwitz foi forçada a resignar da Academia Prussiana de Artes. Segundo o artigo de Afonso Schmidt, “diante da situação aflitiva dessa pintora inconfundível, algumas associações européias resolveram distribuir pelo mundo numerosos trabalhos, para que as associações de outros países se encarregassem de organizar exposições e vendê-los” (Schmidt, 1933 apud Mari, 2006, p. 49). Segundo Marcelo Mari (2006), muitos artistas e intelectuais brasileiros adquiriram trabalhos da gravurista: Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Geraldo Ferraz etc. Alguns anos mais tarde, o crítico de arte Sérgio Milliet (18981966) comentou o artigo como tendo tido o mérito de “iniciar em nossa terra uma crítica de fundo sociológico. Num momento em que a crítica artística do país era toda ela impressionista ou convencional, nem sequer técnica, Mário Pedrosa com uma inquietação louvável e uma curiosidade fecunda tentava explicar a obra de arte de um ponto de vista menos superficial”. O materialismo dialético era então uma das principais teorias a informar também a leitura da arte. Milliet jus-

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tificava o crítico argumentando sobre o caráter esquemático fundamentado no marxismo e uma “insuficiente análise técnica” justificada pelo “entusiasmo de um neófito da arte e da revolução” (Miliet, 1949). Pedrosa procurou explicar o caráter sociológico da manifestação artística a partir da ideia de uma unidade entre homem e natureza nos povos “primitivos”, que tinha como resultado uma “realização artística” integrada na qual “trabalho e arte não se separaram” (1933, p. 39) que tinha sido perdida no mundo contemporâneo. A arte apresentava uma função dentro daquela sociedade, que era a manutenção dessa unidade homem/natureza. Ficava implícita a ideia de que essa unidade seria reconquistada após a revolução socialista. Para essa discussão usou majoritariamente autores alemães, como o economista Karl Wilhelm Bucher (que discutia a ideia de economia sem mercado), o arquiteto Gottfried Semper (que defendia a noção de função na arte) e Karl Marx (para falar da luta de classes e de uma arte revolucionária). Além desses, citou o sociólogo Ernst Grosse, que esteve envolvido, no final do século XIX, com o debate sobre a classificação da cultura material e do trabalho artesanal das sociedades ditas primitivas. Grosse negava a classificação da “arte primitiva” como ornamental, considerando a arte das sociedades assim categorizadas como produto de uma sensibilidade difundida entre os indígenas que buscavam, mesmo com suas ferramentas rudimentares, uma representação das formas e dos movimentos das coisas. Segundo Moro-Abadía e Morales (2005), entre meados e final do século XIX a noção de arte primitiva interessou críticos e historiadores da arte (Balfour, Baudelaire, Haddon, Riegl), sociólogos (Grosse), artistas (Cézanne, Ward) e colecionadores (Delafosse). Nesse período a arte primitiva era definida a partir da teoria ornamental, resumindo-se a pequenas esculturas, tatuagens, ornamentações. Frequentemente se fazia comparações com a arte infantil como produto do lazer, mas não de uma reflexão intelectual. A dificuldade de conceber a ideia de artistas selvagens no quadro do evolucionismo do século XIX devia-se à incompatibilidade das duas noções, os “artistas” representando uma das categorias mais elevadas do processo civilizatório e os “selvagens”, sua antítese. No século XX, entretanto, o primitivo

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foi incorporado na arte moderna através de diversos recursos discursivos e pictóricos e foi aos críticos de arte de meados do século XX principalmente que coube fazer essa tradução para o senso comum.36 Pedrosa trabalhava com a ideia de que os “primitivos” ofereciam à “civilização” concepções de mundo redentoras a partir das quais o fenômeno artístico estava integrado ao conjunto das manifestações sociais, constituindo uma síntese destas. O desenvolvimento técnico havia imposto crescentemente uma “separação entre o indivíduo e o mundo ambiente” e, ao contrário do mundo contemporâneo, o fundamento da arte dos povos primitivos estava na natureza e não na subjetividade. Antes dessa “separação”, ocorrida no Renascimento, “as formas de arte e os motivos estéticos eram determinados pelas formas naturais que interessavam mais direta e imediatamente ao próprio homem – a natureza viva, animal. § À medida que a civilização avança, a separação entre o homem e a natureza cresce e o instrumento intermediário entre os dois torna-se cada vez mais complexo” (Pedrosa, 1933, p. 37). Pedrosa estava preocupado em fazer um pronunciamento em defesa do posicionamento político na representação artística, daí sua crítica ao individualismo implícito nas pesquisas técnicas e formais da arte moderna após o impressionismo. Para o crítico, a Renascença, “com as primeiras vitórias decisivas do regime capitalista nascente”, foi caracterizada como um “endeusamento da personalidade humana abstrata”, que resultou paulatinamente na “dissociação crescente na concepção única entre a natureza e a sociedade” (Pedrosa, 1933, p. 41). A produção então se submeteu ao interesse individual, e “surgem para a estética os problemas novos do desenvolvimento da personalidade, as grandes paixões do homem individual e sua relação com o seu próximo”. Com o aguçamento da luta de classes “a individualidade impõe os seus direitos. A arte perde a sua expressão social totalitária” (p. 43), compreendendo “totalitária” como uma arte em que a natureza e as relações sociais eram partes de uma mesma representação. 36 Sally Price (1991) discute alguns dos jogos de poder utilizados na consagração da arte primitiva (“em centros civilizados”).

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Com o antagonismo de classes, Pedrosa (1933) argumentava caber ao proletariado criar uma nova concepção de mundo e elaborar um novo conceito no qual a natureza fosse novamente integrada à sociedade. “A síntese integral e científica entre os dois conceitos [natureza e sociedade], que até agora não se amoldam dentro do cérebro do homem moderno, será uma etapa decisiva no desenvolvimento histórico e cultural da humanidade”. “A arte só poderá ser restaurada na sua dignidade antiga e representar uma função social, embora talvez com prejuízo de sua pureza estética, se se opuser aos valores admitidos” (p. 44). A forma de oposição a esses valores era a tomada de posição junto à classe proletária. Criticou o impressionismo, argumentando que seu fundamento era apenas técnico, baseado em uma intuição “de que nossos sentidos não podem já hoje ser utilizados estreita e empiricamente”, mas que não foram além de uma “delinqüência individualista” hesitante perante as “perspectivas sociais” (Pedrosa, 1933, p. 45). Para ele, a arte dita individualista, isto é, as experiências formais pós-impressionistas, não constituía a maneira mais legítima de participação dos produtores artísticos na sociedade. Não havia conciliação: Pedrosa dividia os artistas em bons e maus. Assim, falava em uma divisão do trabalho na arte moderna que gerou um ecletismo social e filosófico que “não foi capricho individual de ninguém nem movimento superficial de moda. Foi um momento na evolução histórica da estética e uma imposição das forças produtivas e culturais da época” (Pedrosa, 1933, p. 45). A arte moderna estava marcada por um subjetivismo latente que tomava “como escalão universal a própria personalidade, despojando-se assim da austeridade materialista com que crêem na existência dos objetos exteriores” (p. 46). Com essa apreensão impressionista do mundo, argumentava que os “artistas desumanizam-se separando-se da sociedade, isto é, dos seus problemas vitais, corrompem-se e idiotizam-se, restringindo o seu plano social e as suas preocupações estéticas a um puro jogo pueril de formas e naturezas-mortas. A própria sociedade e os homens mesmos são para eles uma espécie de natureza-morta”. Isso significava para o crítico um “infantilismo ideológico e estético” (p. 46).

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Dessa divisão do trabalho em arte, outro grupo de artistas, segundo Pedrosa, buscaria “os elementos de uma expressão poética também moderna nas relações sociais contemporâneas” (1933, p. 46). O “campo artístico” (o termo é do próprio autor) estava então “dividido estética e socialmente: de um lado, a arte desses criadores que ficaram absorvidos por essa segunda natureza superposta à primitiva que é a nossa natureza moderna e mecânica – a técnica – e desligados completamente da sociedade, em parte por estreiteza mental, em parte para não tomar uma atitude em frente à implacável batalha das duas classes inimigas. O ar acaba viciando-se nessa atmosfera fechada, e eles se estiolam num irrespirável individualismo egocentrista (sic) a serviço de uma casta parasitária ou no hermetismo diletante para meia dúzia de iniciados. Voltam passadisticametne à torre de marfim, no meio das fabulosas miragens de aço que os rodeiam. No outro lado, colocam-se os artistas sociais, aqueles que se aproximam do proletariado e, numa antecipação intuitiva da sensibilidade, divisam a síntese futura entre a natureza e a sociedade, destituída afinal dos idealismos deformadores e das convulsões místicas das carcomidas mitologias. É o que explica o realismo do proletariado e dos artistas que o exprimem” (p. 46-48). O individualismo aparece nesse texto como uma categoria de acusação que procurava desqualificar a arte moderna a partir da ideia do abandono da coletividade em prol das vontades individuais, concepção esta que irá mudar após sua volta ao Brasil. Käthe Kollwitz foi apresentada como uma representante do segundo grupo. Para Pedrosa (1933), “o destino da arte de Käthe Kollwitz não está, pois, na própria arte. Está socialmente no proletariado” (p. 49). Assim como a pesquisa individual, o pertencimento nacional foi explicitamente rejeitado quando o autor exaltou o fato de a artista representar “a guerra do lado de lá da barricada social (...) sem a ignóbil masturbação patriótica” (p. 50). A arte era nesse momento uma representação de classe: “pela sua atitude em frente à guerra, define-se a tendência social dominante em Kollwitz – a fidelidade à sua classe. Eis o traço peculiar de sua arte. Filha de pedreiro, continua através de toda a sua longa vida filha de pedreiro, membro da família proletária” (p. 50, ênfase no original).

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Muito antes de Bourdieu (1998) ter discutido a ideia de uma ideologia que naturaliza o gosto na cultura legítima como um dom da natureza, obliterando o caráter culturalmente construído no qual a educação tem papel privilegiado, Pedrosa já falava de um processo de aquisição que se expressa através de formas consideradas legítimas de apropriação. Assim, explicou que a função política da arte de Kollwitz era justificada pela humanidade de seu trabalho subsumida na noção de classe. Mais importante do que defender a ideia de uma arte desinteressada, era defender a noção de humanidade da classe proletária. Para tanto, explicitava o caráter construído da crença no desinteresse do artista e de sua produção. A ideia de universalidade do fenômeno artístico era discutida a partir de dois vieses diferentes, o do individualismo e subjetividade da arte moderna versus a temática social e a expressão de classe. A arte moderna estaria marcada por um subjetivismo latente que tomava “como escalão universal a própria personalidade, despojando-se assim da austeridade materialista com que crêem na existência dos objetos exteriores”. Por outro lado, a universalidade da “expressão social da nova classe, futura senhora dos destinos da sociedade, (...) aspira através da miserável opressão da hora presente (...) um novo humanismo superior, um autêntico e novo classicismo surgido dramática e espontaneamente da própria vida” (Pedrosa, 1933, p. 49). Pedrosa norteava-se pela ideia de uma função específica para a arte, estabelecendo uma analogia entre a arte e a comunicação. A arte era concebida como um instrumento através do qual o artista comunicava uma mensagem ao público. A partir dessa noção, a produção artística era avaliada do ponto de vista da eficiência com que se expressava ou se comunicava. Essa concepção aliava valores morais à arte, e a obra era avaliada em relação à personalidade do artista e à qualidade das emoções comunicadas. Contribuía-se assim para definir uma gama de assuntos considerados expressão do proletariado, por oposição ao que era tomado como representante de um subjetivismo pós-impressionista. Negava-se a dimensão individual ou o fenômeno artístico como expressão da singularidade. Na década de

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1940 essa questão será retomada por ele através dos artigos publicados no periódico Vanguarda Socialista e em sua coluna diária sobre artes plásticas. No texto sobre Kollwitz, a noção de universalidade do fenômeno artístico era fundada na ideia de um assunto internacionalmente compreensível, isto é, aquele tido como assunto social (“a guerra, a fome, o povo – a vida anônima dos trabalhadores: a mãe grávida, a mãe amamentando, o pai morto na guerra, os sem trabalho, a viúva, os prisioneiros, demonstração proletária etc.”) (Pedrosa, 1933, p. 53). E ainda o gênero: “é a artista da mulher proletária. A força popular instintiva profunda desta, sua imensa capacidade de afeição e de sofrimento, aquela jovialidade e simpatia apesar de tudo diante da vida, tudo isto ela gravou na simplificação comovente da madeira, com uma rispidez quase hostil mas realçando pelo contraste a violência e a profundeza do sentimento do artista e a capacidade interior de expressão do próprio material” (p. 53). “Mas que assombrosa universalização!” (p. 49). A arte não era considerada por seu potencial de desenvolvimento individual, como ele faria mais tarde. A noção de criatividade, que foi posteriormente defendida pelo crítico, não fazia nessa época parte de suas preocupações. Seu interesse, no artista e sua produção, estava então no papel que tinham como representativos dos anseios de uma classe social, de seu sofrimento. O que Pedrosa defendia em Kollwitz era sua “atitude política”, que ele considerava “mais do que uma atitude estética”. Assim definiu sua arte como um “traço de permanente fidelidade à classe” (p. 52-53). No processo de defesa da mensagem política na arte, explicitava que “a arte social hoje em dia não é, de fato, um passatempo delicioso: é uma arma”. Seu objetivo era “alimentar o ódio de classe mais implacável. E com isto está realizada a sua generosa missão social” (Pedrosa, 1933, p. 56). Ao contrário do que argumentam alguns pesquisadores que se debruçaram sobre o percurso do crítico de arte (Mari, 2006; Arantes, 1991), não havia uma preocupação em defender a linguagem plástica moderna em nenhuma de suas formas específicas. Seu interesse não era estético, mas moral. O que Pedrosa defendia não era

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somente, talvez nem mesmo majoritariamente, um tipo de linguagem artística, mas uma temática classificada como social. Essa temática deveria se manifestar pela tomada de posição ao lado do proletariado. Fundamentado no marxismo, ele concebia a arte de Kollwitz como uma forma de explicitar os conflitos, estimulando a formação de uma consciência de classe que levasse à revolução. Nesse período de sua trajetória, não havia preocupação com os destinos da arte moderna. A questão das pesquisas formais só aparece em seu texto como crítica ao individualismo dessas experiências.37 Marcelo Mari (2006) argumenta que Pedrosa já se identificava nesse ensaio com as discussões de Trotsky. A relação da URSS com a Alemanha criou cisões internas aos partidos comunistas de todos os países, ao aproximar o comunismo do fascismo. O relatório Zdanov, apresentado em 1934 no Primeiro Congresso de Escritores Soviéticos, estabelecendo o realismo socialista como linha estética oficial da ideologia marxista, criava as bases para uma discussão que se acirraria até o final da década de 1950, na qual a relação entre o posicionamento político e um “partido estético” específico, a representação figurativa, seria contraposto a um discurso dito de vanguarda, de uma representação autônoma simbolizada pela abstração.38 Colocavam-se assim as bases para uma nova rodada de debates sobre a separação entre a forma e o conteúdo. A preocupação de Pedrosa nesse período estava voltada quase exclusivamente para o posicionamento moral que ele exigia dos artistas. Sua postura não era a de um crítico de arte qualificando as obras 37 É possível perceber claramente essa postura neste trecho: “Todas as escolas passaram, as revoluções estéticas se sucederam. O naturalismo cumpriu a sua função e desapareceu. A vaga romântica do expressionismo alagou o país, inaugurando a literatura dos apelos e dos manifestos, socializando-se pela guerra e depois retira-se acalmada a tempestade, e os indivíduos retomam os seus lugares. Contemporânea e sucessivamente vêem e vão todos os ismos estéticos modernos, desde o futurismo e o cubismo até dadá e o neo-realismo mais recente: Käthe Kollwitz continua, porém, o seu rumo inalterado e inalterável. Apenas a artista vai se enriquecendo com todas essas correntes e aprofunda a sua arte, aperfeiçoando a sua técnica e precisando as suas intenções. A obra tem assim a continuidade dramática e interior de um rio que avança, cavando cada vez mais o seu leito e acelerando, numa arrumação progressiva e harmoniosa, as suas águas para o mar” (Pedrosa, 1933, p. 52-53). 38 Para uma discussão histórica sobre o debate entre posicionamento político e linguagens artísticas, cf. Norris (2007) e Amaral (2003).

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e os artistas em termos estéticos, mas a de um militante político preocupado com uma aliança eficaz dos artistas com a ideologia socialista. Dizer que ele “carregava um pouco propositalmente na tinta proletária para espicaçar, ou mesmo sugerir, a sempre alegada fusão entre modernismo e grã-finismo, contra o qual o melhor antídoto poderia ser encontrado justamente no ‘realismo proletário’ da artista alemã, em dosagem compatível com a realidade local” (Arantes, 1991, p. 17) minimiza a eloquência de seu discurso político. Sua presença na conferência do salão da CAM visava antes conquistar alianças do que fazer críticas à burguesia presente. Seu discurso ali era uma propaganda política e não uma análise estética. Sua concepção da arte fundamentada no desenvolvimento da subjetividade, que passaria a defender na década de 1950, só se desenvolveu mais tarde. A preocupação em mostrar a continuidade no pensamento de Pedrosa antes e depois do final da Segunda Guerra tem feito com que alguns de seus investigadores projetem retrospectivamente propostas que só foram feitas anos depois, com o acúmulo de conhecimento sobre o fenômeno artístico e o desenrolar do contexto político nacional e internacional. Naquele momento, a arte de Käthe Kollwitz servia ao propósito de representante de uma classe na qual depositava as esperanças da revolução social. Essa postura se alterou ao longo de sua trajetória. Procurando oferecer subsídios para uma história social da arte no Brasil, Aracy Amaral mostrou que, independentemente da intenção do artista, a obra de arte é “freqüentemente manipulada politicamente em seus estágios de circulação (em galerias, bienais, salões) e consumo” (Amaral, 2003, p. 16). Nesse sentido, uma discussão abstrata sobre a função social para a arte é meramente retórica, já que a função varia de acordo com os interesses de cada ator social em determinado estágio de circulação de uma obra de arte específica. Variando o interesse dos atores nos objetos artísticos, o estatuto desses objetos também varia em relação aos estágios de sua biografia social (Appadurai, 2003). Muitos estudiosos da arte brasileira concordam com a ideia de que Pedrosa instituiu, após o final da Segunda Guerra, uma nova linguagem para falar de artes plásticas (Mari, 2006; Zanini, 1991; Amaral,

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2003; Arantes, 1991). Em 1933 isso já pode ser percebido, mesmo que de forma incipiente. Arantes chama a atenção para a análise dos procedimentos artísticos, isto é, Pedrosa relacionava forma e conteúdo para realçar as propriedades da mensagem. Ele fala da intensidade dramática da madeira violentada por um traço de “rispidez quase hostil realçando pelo contraste a violência e a profundeza do sentimento” e criando um “ambiente tenebroso” e indistinto no qual a “classe inimiga” é notada pela sua ausência (Pedrosa, 1933, p. 53). Portanto, se existem continuidades no discurso de Pedrosa sobre artes, identificáveis desde esse primeiro ensaio, elas estão na construção de um vocabulário específico para falar da produção artística no Brasil. A importância da elaboração de uma linguagem artística que diferencia o valor artístico do valor econômico, medido em termos de quantidade de material e tempo empregados, já foi ressaltada por Pierre Bourdieu (1996): “em primeiro lugar, uma maneira de nomear o pintor, de falar dele, da natureza e do modo de remuneração de seu trabalho, através da qual se elabora uma definição autônoma do valor propriamente artístico, irredutível, enquanto tal, ao valor estritamente econômico; e também, na mesma lógica, uma maneira de falar da própria pintura, com as palavras apropriadas, freqüentemente pares de adjetivos [puro/impuro, inteligível/sensível, refinado/vulgar], que permitem exprimir a especificidade da técnica pictórica, a manifatura, ou mesmo a maneira particular de um pintor, que ela contribui para fazer existir socialmente ao nomeá-la” (p. 326). Entretanto, mais do que uma forma específica de escrever sobre arte, a diferença de Pedrosa em relação aos outros críticos, após a Segunda Guerra, manifestou-se na afirmação de valores diferenciados sobre o fenômeno artístico. Segundo Pedroso e Vasquez (1991, p. 55), o ano de 1934 foi um ano de intensa atuação política. Osvaldo Coggiola (2002) descreve a mobilização dos trotskistas39 na organização de instrumentos po39 A categoria usada hoje para se referir a esse grupo dissidente de esquerda, “trotskista”, grupo ao qual se filiava Pedrosa, foi no começo da década de 1930 uma categoria de acusação usada pelos militantes que apoiavam Stalin. A autodenominação desse grupo dissidente era inicialmente “bolcheviques-leninistas”. A importância que Trotsky ganhou como símbolo da dissidência de esquerda e, principalmente após seu assassinato, acabou por instituir esse rótulo como uma classificação política consagrada.

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líticos de luta antifascismo no Brasil. A atividade da Frente Única contava com a liderança de diversos sindicatos, como dos gráficos, dos bancários, dos ferroviários e dos tecelões, na luta contra os “camisas verdes” ou “galinhas verdes”. Em fevereiro de 1934, O Homem Livre lançou seu último número, que mostrava a fragilidade política e financeira da FUA. Segundo Coggiola (2002), à medida que perderam seus principais órgãos de propaganda e combate político, O Homem Livre e a FUA, os “trotskistas” passaram a se dedicar à construção da frente única sindical e eleitoral.. Segundo Coggiola (2002), além desse jornal, “outro instrumento de ação política da FUA foram as suas poucas, mas conturbadas e violentas, manifestações públicas, em espaços fechados ou abertos. Os antifascistas percebiam a importância da propaganda e da conquista do espaço público para a política fascista. Desse modo, procuraram sempre preparar uma manifestação para o mesmo local e hora daquelas previstas pelos integralistas. Estes faziam o mesmo. Os conflitos eram, pois, inevitáveis” (p. 31). Ao longo de 1934, foram organizados comícios da AIB no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, cada um contando respectivamente com 4.000, 3.000 e 400 integrantes. O último aconteceu em outubro de 1935, quando os integralistas planejaram um comício na Praça da Sé, em São Paulo. Cientes dessa manifestação, foi convocado um contracomício para o mesmo lugar e hora. Segundo Coggiola (2002), há controvérsias quanto às organizações que teriam convocado esse contracomício, mas Pedrosa afirmou no jornal Vanguarda Socialista, em 1945, ter sido um trabalho conjunto de diversas entidades, incluindo o PCB e a FUA. Pela primeira vez participaram em conjunto as forças antifascistas, incluindo anarquistas, comunistas e trotskistas, em uma manifestação pública de grandes proporções, na segunda capital brasileira em importância. O evento é considerado um símbolo da luta antifascista no Brasil e conhecido como a “Batalha da Praça da Sé” (Coggiola, 2002). Esse evento é relevante para a construção da identidade de Pedrosa tanto como militante político quanto como crítico de arte. Todas as cronologias de sua trajetória exaltam o risco envolvido no episódio. Menciona-se sempre a morte do estudante Décio Pinto e o

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fato de Pedrosa ter sido baleado na perna, o que fez com que usasse bengala para o resto da vida. Outro fato repetido é o de que ele foi salvo de ser fuzilado pelos integralistas pela filha de 12 anos de um membro do exército vermelho que se colou em frente aos policiais dizendo que estava lá para ajudá-lo. Por um lado a repetição desse evento minimiza a belicosidade dos antifascistas, por outro constrói uma mítica em torno de sua sobrevivência ao tiroteio. Como crítico de arte, é ressaltado que seu encontro com o trabalho de Portinari se deu pela primeira vez quando, ao fugir desse evento, se escondeu na galeria de arte na qual o pintor expunha. Essa informação, entretanto, não coincide com a data da exposição. O evento na Praça da Sé aconteceu em outubro e a exposição de Portinari na galeria Itá em dezembro, o artigo escrito por Pedrosa (1934) foi publicado em 7 de dezembro no Diário da Noite, um dia antes de inaugurada a exposição. Além disso, é difícil imaginar que alguém fugindo da polícia, ferido, mesmo que se refugiasse em uma galeria de arte teria disponibilidade para observar os quadros cuidadosamente e depois escrever um ensaio sobre eles.

O encontro: Portinari e Pedrosa

Se a versão do refúgio na galeria de arte é inconcebível, é entretanto possível cogitar que, tendo Portinari participado da elaboração de um Clube de Arte Moderna40 no Rio de Janeiro (Rumo, 1934), isso pudesse tê-lo colocado em contato com Pedrosa. Outra possibilidade é imaginar que o fato de o pintor estar naquele período atento às questões sociais, parecendo esboçar inclusive algum desdém pela burguesia paulista, como indica uma carta de Mário de Andrade para Manuel Bandeira, o tivesse aproximado do militante que ensaiava se tornar crítico de arte. Nessa carta, Mário elogiou a exposição de Portinari em São Paulo, reclamando, entretanto, de sua postura desleixada com relação a Paulo Prado: Portinari “fez burrada grossa com o Paulo 40 O Clube, se é que foi de fato fundado, não teve expressividade. Não encontrei nenhuma referência sobre ele, além de dois artigos de jornal mencionando seus fundamentos e os artistas que o estavam organizando.

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Prado, que estava bem disposto a favor dele e me falara pessoalmente quando lhe anunciei a vinda do Portinari, que ia comprar um quadro. (...) Mas o Portinari chegou, não foi visitar o PP, nem sequer telefonou! Apenas mandou convite! Ora o PP que além do mais é um homem de mais de sessenta anos, merecia pelo menos o pagamento da visita que fizera aí no Rio ao ateliê do Portinari não acha mesmo?” (Andrade, M., 1934). Entretanto, é mais provável que a explicação para seu primeiro texto sobre aquele pintor seja mais banal: aquela foi a primeira exposição de Portinari em São Paulo. Pedrosa já havia ensaiado seus primeiros passos na crítica de artes plásticas com relativo sucesso. Soma-se a isso a possibilidade do militante político analisar a obra de um pintor em ascensão, cuja trajetória estava estreitamente vinculada com a burguesia paulista e carioca e cujo trabalho se prestava a uma interpretação afinada com seu posicionamento político. Portanto, falar dessa obra também significava fazer um pronunciamento para essas elites. Apontar o caráter político desse artigo tem como objetivo procurar compreender o processo de transição de seu interesse majoritariamente partidário e ideológico para seu interesse em artes plásticas. Algumas frases ausentes na versão publicada em 1934 apareceram na compilação de textos organizada por Otília Arantes em 1998 (Arantes, 2004).41 As frases omitidas em 1934, apesar de não modificarem o sentido geral do texto apresentado, tornam mais explícito o caráter evolucionista de uma trajetória cuja “contemplatividade sentimental e apriorística da era brodosquiana” vai se individualizando depois que “o artista emigrou para a cidade”. Pedrosa suavizou nesse ensaio o arcabouço teórico marxista, analisando o trabalho de Portinari a partir de uma analogia desta com o deslocamento geográfico do pintor e o processo de incorporação de questões sociais em suas telas. As questões do individualismo e também o caráter de representação de classe reaparecem. 41 Para facilitar a distinção, usarei um asterisco após os termos omitidos no texto de 1934, mas que só apareceram em 1998. Todas as citações utilizadas referem-se ao mesmo texto em suas duas versões, 1934 e 1998 [2004].

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Nesse texto, o primitivo não era mais um grupo social situado num tempo longínquo, como subentendido no texto sobre Kollwitz, mas sim num espaço diferenciado daquele concebido como o espaço por excelência da modernidade, a grande cidade. A um “primitivismo sentimental” referido à “tribo brodosquiana*” que teria marcado a obra inicial do pintor contrapõe “o realismo, e a plasticidade das formas [que] começa a surgir” depois que “o artista emigrou para a cidade” e as coisas começaram “a ter um traço maior de organização social*”. No primitivismo de Portinari sua cidade natal era tomada como etapa evolutiva anterior à cidade moderna. Ainda que eu não tenha encontrado nenhum indício do contato de Pedrosa com a produção antropológica sobre campesinato, é interessante notar que na década de 1920 e início de 1930, esse tema passou a interessar alguns antropólogos que o tomaram emprestado da sociologia rural. Na antropologia norte-americana da década de 1930, por exemplo, a interpretação sobre o camponês era muito próxima daquela apresentada por Pedrosa. Esta categoria social era vista como ocupando uma posição intermediária entre o tribal e o moderno. Por trás de grande parte dos estudos sobre campesinato desse período estava o interesse em compreender como integrar esses grupos considerados atrasados na sociedade nacional. Os temas classificados como ingênuos (“crianças atrás do palhaço”, “circo de cavalinhos”, “cemitério pequeno no fundo, parecendo horta”) são considerados por intelectuais como Mário de Andrade a natureza mesma da pintura moderna brasileira, por sua capacidade de interpretação do Brasil autêntico, original, representante, se assim podemos dizer, de certo “culturalismo artístico” desse período. Assim, se Portinari parecia ser para Mário de Andrade o representante ideal de uma cultura brasileira em construção, o pintor agora aparecia para Mário Pedrosa como um exemplo ideal de militante social através de sua arte. Pedrosa fez nesse ensaio uma revisão da produção de Portinari, dividindo-a em etapas referidas à trajetória do artista. O pintor começou como representante de um grupo social “primitivo” para o qual a arte tinha aquele caráter “totalitário”, não mais encontrado na arte burguesa. Com a chegada do pintor à cidade, identificou um caráter indivi-

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dualista relacionado à “arte pictórica especificamente burguesa – a pintura a óleo e o quadro de cavalete”, sem assim considerar Portinari, “no fundo da sua personalidade artística, o vulgar retratista a que o querem reduzir (e que o sucesso do seu métier nesse gênero poderia confirmar)”. Justificou essa afirmação analisando a relação entre figura e fundo no quadro O mestiço, que “não passaria de um retrato, se Portinari quisesse restringir-se aos limites estéticos do cavalete, mas ele é solicitado agora, não pela figura de um mestiço, mas pela realidade social e material da vida do mestiço, representada pelos planos de fundo”. Pedrosa construiu um caminho de questões estéticas e morais ao qual relacionou a pesquisa plástica de Portinari ao longo da década de 1930. O crítico racionalizou um processo que não necessariamente teve a relação de causa e efeito impressa no ensaio e, talvez, nem mesmo se apresentasse assim para o sujeito desse processo. Para Pedrosa era como se Portinari ao pintar estivesse classificando o mundo: “o artista já conquistou o mundo: distribuiu os seus seres (homens e coisas) pelos seus respectivos lugares, isolou-o como formas em si, no espaço, que definiu”. Esse processo descrito pelo crítico podia não ser necessariamente o do pintor, mas estar referido à reconfiguração da relação do próprio Pedrosa com a arte, como veremos ao longo da década de 1950z. Pedrosa (1934) definiu Café como sendo a “grande realização dessa nova fase. Esse quadro fecha todo um ciclo. É um verdadeiro intermezzo lírico. Tudo o que Portinari vinha acumulando de técnica tem aqui sua aplicação integral (...) é o auge de sua arte como pintor de cavalete”. Apesar de homônima, essa tela não é a mesma premiada no Carnegie Institute no ano seguinte, ao contrário do que afirmou Aracy Amaral (1998) (ver fig. 3 e fig. 4 a seguir)

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Fig. 3 – Café, óleo/tela, c.1934, 43 x 49 cm (tela citada no artigo de Mário Pedrosa).

Fig. 4 – Café, óleo/tela, 1935, 130 x 195 cm. Premiada no Instituto Carnegie.

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O artigo termina com o crítico vaticinando o sentido da arte de Portinari ao relacioná-la às preocupações sociais e à revolução socialista: “Portinari está diante, talvez, dum impasse. Mas pode ser que seja também diante do futuro. Com o afresco e a pintura mural moderna, a pintura marcha no sentido do curso histórico, isto é, para sua reintegração na grande arte totalitária, hierarquizada pela arquitetura, da sociedade socialista em gestação. Portinari já sente a força desta atração. Como se deu com Rivera, com a escola mexicana atual, aliás – a matéria social o espreita. A condição de sua genialidade como pintor está ali. É como uma espécie de esfinge da lenda grega: trata-se para ele de ‘decifrá-la’ ou de ser ‘devorado’” (Pedrosa, 1934, ênfases no original). Vinte dias depois, Oswald de Andrade (1934) repetiu a comparação com o muralismo mexicano. Nesse artigo, relacionou o pintor à nação através da ideia de que Portinari era um produto orgânico da terra de onde veio, sendo essa terra uma tragédia à qual o pintor não só conseguiu sobreviver, como ainda superou, ao tornar-se um artista consagrado: “Candido Portinari é um produto da terra roxa. A terra roxa é uma tragédia. Mas uma tragédia dissimulada em idílio – o idílio que ainda se enrosca nas plantações feudais de Brodowski”. Essa foi a primeira vez em que se falou de uma tragicidade intrínseca a Brodósqui, o que ofereceu as bases para as leituras posteriores da sua tragédia pessoal e também começou a delinear a cidade como temática do pintor. O socialismo e a luta de classes também aparecem relacionados à temática do pintor no artigo de Oswald de Andrade (1934): “A luta de classes penetrou em Portinari, mas no campo, onde correu e armou arapucas a sua infância maravilhada, ainda não se fez sentimento. O trabalhador ainda olha bestificado para o latifúndio em arranjo ideal, longe da célula comunista que o espera e que já hoje o empolga”. Depois de discorrer sobre os retratos e sobre o que considerava outra fase do pintor, o “realismo campônio”, o autor mencionou uma terceira etapa em seu trabalho, “a fase monumental”, com a qual Portinari representava autobiograficamente a luta de classes. Oswald de Andrade oferecia um léxico de questões materialistas que poderia ser interpretado a partir da obra de Portinari.

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As temáticas utilizadas por Portinari em seus trabalhos estavam em consonância com as discussões tanto de intelectuais como Mário de Andrade, que fundamentados no conceito alemão de cultura pretendiam definir a autenticidade das manifestações artísticas nacionais, como com os debates políticos de militantes como Oswald de Andrade e defensores do internacionalismo como Mário Pedrosa. Como colocou Pedrosa, tratava-se de um enigma a ser decifrado. Enunciando o “enigma”, Pedrosa acabou contribuindo para a produção daquilo que pretendia descrever. Em julho, Portinari (1935) escreveu a Mário de Andrade mencionando seu sucesso com suas experiências com afrescos. Decifrado o enigma, o reino de Tebas poderia afinal lhe ser entregue. Pedrosa dividiu a trajetória de Portinari em três “fases” distintas. A inicial, isto é, antes da década de 1930, quando o pintor fazia retratos da elite carioca, foi comentada apenas para ser descartada. Assim, as fases que registra se referem aos anos entre 1930 e 1934. A primeira se referia ao “primitivismo brodosquiano”, a segunda depois de sua chegada à cidade, quando as coisas começaram a ter um traço maior de organização social e aquele momento atual, 1934, parecia ser uma terceira fase (“agora as exigências são outras (...) é uma fase ascendente na evolução criadora do pintor”) que se iniciava com o quadro Café (de 1934 e não o de 1935), “auge de sua arte como pintor de cavalete” e encerramento da fase anterior. O que parece interessante nessa estrutura explicativa do trabalho de Portinari é a própria ideia das “fases”. No artigo que Oswald de Andrade escreveu sobre a mesma exposição, o crítico enumerou ainda outras “fases” referidas às naturezas-mortas e aos retratos e a influência de Picasso. É preciso ressaltar a referência a Picasso. Esse pintor foi durante algum tempo um desafio para os historiadores da arte, devido às suas variações constantes de técnica e temática, que dificultavam a construção da ideia de uma “obra” através de uma lógica interior própria. Até que a ideia mesma de ruptura se consolidasse como o cânone moderno por excelência, explicar uma trajetória com tantas variações havia sido tarefa árdua. Se Van Gogh pode ser apontado como o mar-

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co de um novo paradigma de artista moderno cuja marginalidade era o critério de excelência (Heinich, 1998), Picasso seja talvez a referência do artista inovador, que recria sua obra e se recria com ela. A analogia de Portinari com o artista espanhol foi enfatizada por Pedrosa (1935) no artigo que escreveu apenas quatro meses depois sobre o pintor brasileiro. Essa relação evidencia também os valores da tradição artística vigentes no regime de comunidade que privilegiava uma excelência relativa na medida em que esta era medida pela comparação superlativa com os pares. A sobreposição de um regime de singularidade instituirá aos poucos uma excelência absoluta a partir da qual a comparação será feita pelo negativo, ou de forma distintiva e não mais imitativa (Heinich, 1991). Ainda no artigo de 1934, Pedrosa desenvolveu uma análise formal das cores, texturas e temas utilizados, fazendo uma analogia entre a pintura e a escultura. A esse processo o crítico atribuiu uma intencionalidade apaixonada por parte do pintor. A analogia com a escultura guarda semelhança com a representação de genialidade e singularidade imputada ao artista renascentista Michelangelo Buonarroti. Entretanto, se no Renascimento a anedota que diz ter o artista ordenado a Moisés que falasse fazia parte da representação da consagração do realismo de suas esculturas, no Brasil da década de 1930 o crítico de arte atribuía ao pintor o papel de encontrar uma solução para a contradição dialética entre a exigência da “realidade ponderável, concreta (...) com o seu correspondente técnico a resolver”. A questão “plástica” não se traduzia por uma forma de representação que fosse mais ou menos realista, mas pelo suporte e a dimensão monumental que só a arquitetura poderia oferecer. Podemos ainda ressaltar, sobre o artigo de 1934, a gramática cunhada para apresentar o trabalho de Portinari. Inspirado em algumas técnicas e conceitos do fazer artístico, utilizou analogias com alguns procedimentos da produção escultórica para analisar o possível processo de criação do pintor: assim, em sua análise, o artista “modelou o corpo” na “forma específica da estatuária”. O crítico inseriu também julgamentos de valor relacionados a temáticas sociológicas e históricas que argumentava reconhecer nas obras, tendo o cuidado de separar suas formas de apreensão da intenção do artista: “Por esta

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forma, deu tal força plástica e sensual aquele corpo, que o elevou à dignidade de um símbolo racial. O valor extraplástico (social) surgiu assim independente da intenção imediata do artista”. A ideia de um “símbolo racial” estava relacionada ao papel dos negros no processo de construção da ideia de nação brasileira. Pigmentos, volumes, massas, espaços, tempos, vontade, inspiração foram relacionados uns aos outros na construção de uma imagem do processo de seleção da temática e desenvolvimento do trabalho do pintor: “a fase marrom pertence ao passado (Futebol, 10; Circo, 23; Morro, 9). A vontade criadora cria músculos. Aguça-se a análise do material. O quadro começa a exigir mais consideração. É um universo em si, com suas leis próprias. O pintor busca febrilmente alcançar a unidade estrutural (Morro, 13; Sorveteiro, 22). Pela tensão analítica, a realidade se traduz por uma abstração geométrica de planos e dimensões. Sobre esta trama invisível de linhas e planos, as figuras são fixadas como moscas na teia de aranha. A própria plasticidade das formas como que obedece a uma necessidade de racionalização abstrata” (Pedrosa, 1934). Ao analisar o “itinerário crítico” de Mário Pedrosa, Otília Arantes (1991) considerou que, nesse artigo de 1934, Pedrosa havia abandonado a defesa de uma “arte proletária” e que o “vínculo entre dimensão estética e ponto de vista de classe já não [era] mais evidente” (p. 19). Entretanto, o autor fala explicitamente “de uma contradição dialética fundamental” entre “as exigências da matéria social em sua dinâmica complexidade, e os limites naturais da arte pictórica especificamente burguesa – a pintura a óleo e o quadro de cavalete” (Pedrosa, 1934). A preocupação em encontrar os indícios de um pensamento estético que não se definiria antes do final da década de 1940 dificulta a compreensão do processo de transformação da concepção artística de Pedrosa e transformação axiológica do fenômeno artístico. Nesse sentido, não interessa, para os propósitos deste trabalho, buscar nos ensaios mais antigos do crítico os sinais do que viria a ser desenvolvido posteriormente. Se assim o fizesse, ao invés de compreender seu pensamento a partir do contexto no qual estava inserido no momento em que escrevia seus ensaios, estaria tentan-

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do explicar o passado à luz do futuro. Os ensaios de antes do final da década de 1940 se tornariam previsões do que foi produzido mais tarde. Dom e aprendizagem ou ensino, inspiração e trabalho regular, inovação e imitação de cânones, genialidade e habilidade são indiscriminadamente dimensões importantes a serem consideradas nesse processo de transformação do estatuto da criação artística no Brasil. Ao invés de minimizar um conjunto de valores em detrimento de outro, é preciso descrever e analisar ambos como parte de dois diferentes regimes de valor (regime de comunidade ou regime de singularidade) e de atividade (profissional e vocacional) nos quais a criação artística pôde vir a se organizar no Brasil a partir de então.

fig. 5 – Sorveteiro, óleo/tela, 1934, 44 x 59 cm.

Em 1935, Pedrosa voltou para o Rio de Janeiro e casou-se com Mary Houston. Passou a trabalhar para a filial brasileira da agência de notícias francesa Havas, primeira empresa jornalística encarregada de difundir internacionalmente informações entre diversos ve-

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ículos de comunicação. Essa agência deu origem, em 1945, à agência France-Presse. Em março desse ano, Pedrosa publicou no periódico carioca Espelho (sobre o qual não encontramos nenhuma referência) seu segundo artigo sobre Portinari. O ensaio foi escrito por insistência de Rodrigo Melo Franco de Andrade, que pediu sua contribuição para o periódico Folha de Minas, do qual era o diretor. Tendo deixado a direção do periódico quando o artigo foi apresentado, este foi rejeitado com a alegação de que “era pouco jornalístico”. Assim, o próprio Rodrigo Melo Franco de Andrade se encarregou de procurar outro jornal que o publicasse (Andrade, R.M.F, 1935). Nesse texto, Pedrosa voltou a assumir o tom de um discurso político para falar da “Pintura e Portinari” (título do artigo reproduzido no anexo 3): “O esforço todo da arte moderna tem se reduzido afinal a dar tradição às novas tarefas materiais, aos novos materiais e novos sistemas técnicos que o modo de produção dominante derrama incessantemente, como uma fonte inesgotável. Constituir não uma tradição, isto é, uma seleção de materiais, peneirando, descobrindo o que é constante nestes materiais e técnicas, mas com esta técnica e com esta tradição construir uma nova arte integral, síntese necessária do conteúdo e da forma, só caberá aos artistas modernos revolucionários, inspirados socialmente pelo proletariado e guiados pelo sentido do materialismo dialético no manejo da matéria, das formas e do ritmo. Rivera é o pintor moderno que mais se aproxima dessa condição. Para todo artista que se preza, que é consciente, as artes plásticas constituem uma verdadeira teoria do conhecimento. É um fecundo método materialista de análise. A síntese, é preciso buscá-la na sociedade. Para Portinari a pintura tem sido esse método” (Pedrosa, 1935 ênfase adicionada). Novamente o crítico não aceita conciliação admitindo somente a arte aliada ao proletariado, isto é, posicionada como representante de classe. Referindo-se especificamente ao trabalho de Portinari, argumentou que o tema da literatura não era uma fonte de “inspiração subjetiva”. Era “a própria alma, a lei interna estrutural da composição e das formas materiais do próprio objeto sensível que avassalou o espírito do criador”. A mitologia aparece como justificativa das temáticas de Por-

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tinari, decisão enraizada em uma “disciplina” “materialista” e não no “idealismo” “fantasista” que se poderia apreciar no quadro intitulado Sorveteiro (fig. 5): “As sombras mitológicas (Vênus, Madona) entram aí pela porta do subconsciente e se amoldam, subordinadas, como andaimes, às necessidades interiores da própria obra. Os problemas amadurecem na mão de Portinari. A cabeça fantasista, e tantas vezes, aí, enraizamento idealista, obedece, disciplinada, à mão materialista, e por ela espera. Essa oposição dialética, entre a cabeça e a mão, escolho onde esbarra a maioria dos artistas brasileiros, resolve-se neste no plano realmente necessário”. A preocupação política, que era apresentada como a temática de Portinari naquele momento, não era apenas um impulso externo, mas o resultado de uma “lei interna”. Nesse argumento está implícito um dos valores antinômicos que a arte moderna permite vislumbrar: nos termos de Pedrosa, conteúdo e forma, realidade natural e realidade social, homem e natureza, ser e consciência, ou, em outros termos, objetividade e subjetividade, indivíduo e sociedade (ou cultura), espontaneidade e norma. Para Pedrosa, essas antinomias não são “dominadas” por nenhum artista, mesmo os mais pacientes, que, em última instância, recorrem à “sua vontade despótica para desempatar a contenda”. “A lei dos contrastes domina nas obras mais representativas dos artistas modernos. É uma lei de nossa época. Picasso, antes de mais ninguém. E por isso nenhum artista moderno já ultrapassou esse ponto: realismo idealista ou idealismo realizante (sic)”. É como resultado dessas relações antinômicas que Pedrosa identifica os rótulos atribuídos aos artistas e suas obras: “idealismo abstrato; materialismo abstrato; unidade mecânica, unidade estática”. Argumentou assim que “o maior elogio que [podia] fazer a Portinari é constatar que a evolução de sua pintura já chegou, por si mesma, diante deste problema que constituiu não só o drama de Picasso, como o de toda a sua geração de artistas” (Pedrosa, 1935). Desde seu primeiro artigo sobre Käthe Kollwitz ele vinha tomando ciência da dificuldade de conciliar dois sistemas de pensamento distintos, o materialismo dialético, que se ocupava das relações sociais, e uma representação da arte moderna, que postulava a interioridade do sujeito como fonte de inspiração.

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Usar o materialismo para refletir sobre a produção dos artistas modernos resultava em análises que não eram nem propriamente sociológicas, nem crítica de arte. Autores como Roger Bastide, entre outros, criticariam mais tarde a tentativa de usar o arcabouço teórico marxista para a análise da produção artística, como uma psicanálise da “falsa consciência”, que reduzia a arte a uma “ilusão involuntária” do mundo econômico (Bastide, 1945, p. 46). O questionamento sobre o processo de apreensão e descrição de uma “realidade externa” foi discutido na antropologia sob um ponto de vista diferente. Bateson (1958 [1936]), por exemplo, argumentou, na década de 1930, que os interesses do próprio antropólogo contribuem necessariamente para a construção de uma representação específica a respeito da cultura do “outro”. Esse autor questionava, assim, a relação entre uma “realidade exterior” e os “valores culturais”, isto é, a existência de formas diferenciadas de apreensão dos fenômenos para grupos sociais distintos. Como pano de fundo dessa questão estavam a possibilidade de uma objetividade científica e a capacidade de qualquer ciência em apresentar verdades, postulando ao mesmo tempo a contribuição dos antropólogos para a invenção da cultura nativa. O cerne da questão não estava em como eliminar as múltiplas subjetividades e os constrangimentos políticos pelos quais o texto etnográfico é perpassado, mas principalmente em como explicitar essa multiplicidade de variantes para que o leitor pudesse tirar suas próprias conclusões. O modelo econômico ao qual o pensamento marxista se vincula estava interessado em refletir sobre os conflitos relativos ao mundo do trabalho e a função que a arte poderia ter em superar as relações de dominação. O relativismo, então, não constituía uma questão para a militância política, que precisava considerar uma dada realidade e as condições de possibilidade para agir sobre ela para regular o conflito. No fenômeno artístico, por sua vez, o relativismo extrapola a ideia de “valores culturais” para uma multiplicidade de apreensões de mundo subjetivas contrapostas a uma “realidade externa”. A tentativa de fugir da subjetividade, entretanto, coloca em cena a noção de valores estéticos universais. Nessa concepção, é a noção de uma sensibilidade especificamente artística e não os va-

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lores morais, sociais, religiosos ou intelectuais que é o critério fundamental na economia do fenômeno artístico. Parece ter sido então nesse artigo que Pedrosa se viu pela primeira vez confrontado com o desafio de conciliar essas duas formas de apreensão do mundo, os conflitos de classe, cujo fundamento é a coletividade, e o fenômeno artístico, cuja representação moderna se fundamenta na singularidade do artista-criador. Quem sabe tenha alguma coisa a ver com isso o fato de Pedrosa só ter voltado a escrever sobre artes plásticas sete anos depois, em 1942.42 Enquanto isso, o clima político no Brasil fervilhava com as decisões tomadas no VII Congresso do Comintern em Moscou, em meados de 1935, sobre a formulação de uma Frente Popular.43 Em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, a I Conferência Nacional do PCB institucionalizou em julho de 1934 um novo grupo dirigente, abrindo caminho para o processo que originou a formação da Aliança Nacional Libertadora. A FUA começou a perder influência devido à aliança de Prestes com o PCB, catalisando o movimento popular e tornando o Partido e seu discurso anti-imperialista e nacional-popular a principal força política na condução do processo de oposição ao governo e combate aos integralistas. Os comunistas, que haviam iniciado a década de 1930 com problemas internos relacionados à acomodação das diretrizes da Internacional Comunista (IC), definidas no congresso de 1928, com a articulação da Frente Popular que incluía Prestes, os tenentes e o Partido Socialista Brasileiro fundado em 1933, tornaram-se protagonistas no processo de aglutinação de um amplo espectro social e político para a construção de uma frente contra o fascismo no Brasil (Nunes, 1998). Em novembro estourou, em Natal, depois em Recife e no Rio de Janeiro, uma revolta comunista protagonizada principalmente por militares. O evento foi denominado Intentona pelas forças leais ao governo e desencadeou um processo de institucionalização da ideologia 42 Os três artigos aqui citados, sobre o trabalho de Käthe Kollwitz em 1933 e sobre Portinari em 1934 e 1935, foram os únicos escritos sobre artes plásticas publicados nesse período. 43 A Frente Popular concebia uma ampla aliança entre todas as forças políticas progressistas, diferentemente da Frente Única, que se restringia à esquerda (Castro 2002).

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anticomunista no interior das Forças Armadas (Castro, 2008). Pedrosa passou a ser procurado pela polícia, que o vinculava ao Levante Comunista, o que o levou a fugir para o interior do país. Durante sua ausência, a polícia confiscou sua biblioteca e diversos manuscritos inéditos. Nesse período, mais precisamente no ano de 1936, nasceu sua única filha, Vera Pedrosa, que mais tarde também escreveu sobre artes plásticas antes de se tornar diplomata. Em 1937, viu-se novamente obrigado a ir para a Europa, pois o início do Estado Novo trouxera também ameaças e perseguições políticas. Foi sozinho, sem a família, que só foi encontrá-lo dois anos depois. Constitui parte de sua identidade de militante e exilado político a história de sua fuga em um navio alemão, no qual era servido por um camareiro nazista ao qual procurava despistar mantendo na cabeceira de sua cama um livro de Goethe.

O exílio

O exílio de Pedrosa, entre 1937 e 1945, coincidiu também com o período no qual se intensificou a influência dos EUA sobre o Brasil. Do final de 1937 até início de 1939, ficou em Paris. Uma carta de Pierre Naville a Trotsky o apresentava como seu conhecido pessoal desde o final dos anos 20, argumentando sobre suas prisões e sobre o fato de ele ter examinado e estar traduzindo as “teses de Diego” [Rivera] como forma de consagrar seu caráter oposicionista ao Partido Comunista e leal ao trotskismo. Foi então incorporado ao secretariado da IV Internacional Comunista, contribuindo para sua fundação no final de 1938. O reflexo disso no Brasil foi a fundação, em agosto de 1939, em uma “pequena propriedade rural situada na cidade de Guarulhos” (Kraepovs, 2001, p. 104), do Partido Socialista Revolucionário (PSR), como seção brasileira da IV Internacional. Segundo Kraepovs (2001), “com parcos recursos, pois o POL [Partido Operário Leninista], embora o tivesse como seu representante, não tinha como prover seu sustento material, Mário Pedrosa vivia com o auxílio de sua família e de colaborações na imprensa inclu-

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sive como locutor de rádio. Também chegou a fazer pesquisas para Trotsky, que então preparava biografias de Stalin e Lênin” (p. 106). Além de Naville, encontrou em Paris outros artistas e intelectuais que conhecera no final da década de 1920 e fez novos contatos como o escultor americano Alexander Calder. Na iminência da Segunda Guerra, devido à instabilidade política que já causara a morte do filho de Trotsky e de Rudolf Klement, secretário administrativo da IV Internacional Comunista que Pedrosa substituiu, foi decidido que todo o secretariado deveria ir para os EUA. Pedrosa foi enviado para lá logo depois do acordo da Conferência Internacional de Munique (29-30/9/1938), que marcou uma nova fase rumo à guerra. Chegando à Nova Iorque, começou a participar das atividades do Comitê Pan-Americano (PAC – sigla em inglês) dirigido por Jan Frankel, tradutor tcheco e antigo secretário de Trotsky. O PAC estava incumbido de manter correspondência com as seções da América do Sul e produzir boletins em espanhol com traduções de textos importantes da imprensa trotskista, assim como deveria controlar politicamente a revista Clave, editada por Rivera no México. Trabalhou também no escritório do Coordenador de Assuntos Interamericanos. Colaborou nesse período com revistas de cultura e arte na França, nos Estados Unidos e no Brasil. Apesar de constar nas cronologias de Pedrosa que ele tenha trabalhado nesse período no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), essa informação não foi confirmada pela instituição.44 Em outubro de 1939, Mary Houston e Vera Pedrosa chegaram à Nova Iorque. Em novembro a família mudou-se para Washington, onde Mary conseguira emprego como taquígrafa bilíngue do Departamento de Estado. O pacto germano-soviético apresentou novos problemas para o movimento trotskista. Apesar de Trotsky ver nesse pacto o mérito de desmascarar Stalin e a Internacional Comunista, essa não era 44 A equipe dos arquivos do MoMA, consultada por e-mail em 3/4/2008, nega a presença de Pedrosa como parte do staff do museu na década de 1940. Há, ainda, a possibilidade dele ter trabalhado como assistente na organização de alguma exposição específica. Entretanto, a confirmação dessa informação só poderia ser feita presencialmente, haja vista o volume de documentos que teriam de ser perscrutados.

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a visão de uma minoria da oposição de esquerda à qual se juntou Pedrosa, que considerava que o pacto impunha a necessidade de se revisar vários postulados da IV Internacional. Pedrosa participou intensamente desse debate e foi afastado do Comitê Executivo Internacional da IV Internacional, segundo Kraepovs (2001) devido à forma como conduziu essa discussão, junto com alguns dirigentes do Socialists Workers Party norte-americano (p. 115117). Em carta dirigida a Trotsky, o militante brasileiro criticou o funcionamento das instâncias da IV Internacional e qualificou a substituição da maioria de seu Comitê Executivo Internacional como “um pequeno golpe de Estado” (Pedrosa, 1940 apud Kraepovs, 2001, p. 125). Nesse período chegaram manifestações de apoio de várias seções nacionais da IV Internacional, inclusive do Brasil. O Partido Socialista Revolucionário, seção brasileira da IV Internacional Comunista, declarava-se favorável à defesa incondicional da União Soviética e queixava-se de Pedrosa ter negligenciado seus deveres com o partido. Kraepovs (2001) considera ter sido este “um duro golpe para Pedrosa, pois, na prática, isto acabou sendo como uma espécie de retirada do mandato que recebera da seção brasileira para representá-la junto à direção da IV Internacional” (p. 118). Ele ainda tentou prosseguir no debate político passando, em sua volta ao Brasil, pelo Peru, Bolívia, Chile, Argentina e Uruguai para conversar com grupos da IV Internacional sobre o que tinha ocorrido. Entrou no Brasil por terras do Sul, em 26 de fevereiro de 1941, mas foi preso em 3 de março. Sua soltura foi obtida com a interferência de seu pai, ex-senador da República e ex-ministro do Tribunal de Contas da União, junto à Filinto Muller. Segundo Kraepovs (2001), “após seu retorno a Washington, Pedrosa se afastará das atividades políticas mais ostensivas, embora não deixasse de acompanhá-las” (p. 118). Um comentário de Pedrosa em uma das cartas enviadas ao seu pai, de Washington, corrobora a ideia do afastamento das atividades políticas, mas relaciona isso à nova situação política com a entrada dos EUA na guerra. Comenta que não via mais sentido em escrever

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artigos para o periódico Carioca (para onde vinha escrevendo sobre política), afinal “para que? Agora que todo mundo é pela causa da democratização etc. só serve para aumentar a confusão, principalmente aí no Brasil que é coisa que nunca faltou e agora mais do que abunda” (Pedrosa, 1942). Em 1941, Mary Houston foi convidada por Elsie Brown, chefe do departamento editorial da União Pan-americana,45 para trabalhar, junto com o marido, no boletim dessa instituição (Brown, 1941). Durante sua estadia nos EUA, Pedrosa parece ter enviado com regularidade para o Rio de Janeiro artigos de sua autoria, pelo que se depreende da correspondência trocada com seu pai, que era encarregado de receber o pagamento. Apenas dois artigos foram nomeados: A última carta de Hitler (Pedrosa, 1941) e A quinta coluna da América (Pedrosa, 1941a). Reclamou do jornalismo, nessas cartas, e disse preferir a “pecha de prolixo à de superficial demais, coisa que um verdadeiro jornalista não prefere” (1941). A entrada dos EUA na guerra acarretou dificuldades na comunicação com o Brasil devido à batalha por mar (Pedrosa, 1942a). O efeito disso foi que, frequentemente, as cartas trocadas com sua família nesse período traziam comentários do que havia sido enviado de parte a parte questionando o recebimento – cartas anteriores, presentes, jornais, revistas – e, muitas vezes, o conteúdo das mesmas. Essas referências fazem dessas cartas documentos ainda mais ricos do ponto de vista de uma investigação que busca refletir sobre essa estadia prolongada fora do Brasil. Fica claro que, mesmo fisicamente distante, Pedrosa manteve um forte elo com a família e o contexto brasileiro. Entretanto, o que mais chama a atenção nessa correspondência é o afeto expresso nas linhas e entrelinhas. A primeira das duas perguntas que coloquei no início deste capítulo talvez possa ser respondida a partir de uma análise das autobiografias 45 Antigo nome do secretariado-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA). Fundado em 1889-90 durante a primeira Conferência Inter-Americana como o Escritório Comercial das Repúblicas Americanas em 1902. O nome União Panamericana foi adotado em 1910. A instituição foi criada para promover serviços e informações técnicas para as repúblicas americanas (Pan-American Union 2007).

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de Pedro e Mário Pedrosa, das cartas trocadas nesse exílio entre os dois e das condições particulares que se colocaram nesse período em relação ao contexto político e também ao contato com uma rede de relações no interior do mundo artístico norte-americano, que incluía importantes artistas europeus refugiados nos EUA. Chama a atenção nas cartas a preocupação expressa pelo pai com o rumo profissional do filho e o fato de Pedrosa ter se desviado da religião católica. O exílio já foi pensado do ponto de vista da reconfiguração identitária. Sugeri que, em alguma medida, a postura política de Pedrosa anterior ao exílio foi construída também em oposição aos valores paternos. Não quer dizer que ele tenha adotado o marxismo-leninismo como ideologia somente para se opor ao pai. Entretanto, o distanciamento prolongado da família, que o fez perder momentos importantes na trajetória de seus parentes (sua mãe, de quem fala em sua autobiografia com muito carinho, morreu em 1939; sobrinhos casaram e tiveram filhos, seu pai esteve doente e Pedrosa ficou preocupado e sem informações durante um mês), provavelmente contribuiu para redimensionar seus afetos: sua autobiografia (1974) mostra um rancor apaziguado quanto à posição política do pai. O contexto também se modificara e Pedrosa já não tinha mais vínculo institucional de qualquer ordem. Isso foi ressaltado na carta que escreveu, em 1945, a Paulo Bittencourt, proprietário do Correio da Manhã, sobre sua possível ida à França (Pedrosa, 1945). Soma-se também o fato do fenômeno artístico naquele período nos Estados Unidos apresentar-se como uma verdadeira arena política na qual a noção de liberdade era o novo slogan para a defesa de uma ordem revolucionária e democrática. Defender uma arte figurativa ou abstrata era defender formas distintas de pensar o mundo e de estar nesse mundo. A ideia de liberdade foi nesse processo o conceito central que norteou os debates. Vejamos como Pedrosa se apresentou nesse contexto, através de seus principais artigos sobre artes plásticas. O artigo publicado no Boletim da União Pan-americana foi comentado em uma das missivas endereçadas ao pai (Pedrosa, 1942b). Pedrosa avisou ter enviado o novo número do Boletim para Antonio Bento, “que é amigo do pintor e gosta de pintura”. Argumentou que o

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texto foi resultado de um trabalho ordinário. Para tanto, era permitido ao funcionário sair, fazer consultas, entrevistas, mas não havia pagamento extra, por ser parte das funções do pessoal da redação. Comenta ainda ter achado graça na opinião do pai: Pedro Pedrosa considerou o artigo “muito bom, mas as pinturas horrorosas” (1942b). Otília Arantes (1991) considera esse artigo como o marco de sua “conversão” para o abstracionismo e para reflexões mais sistemáticas sobre questões artísticas. A observação de Arantes chama a atenção para uma mudança de direção em relação à arte, de um “ponto de vista do político” (1991, p. xi) nos textos anteriores, para uma análise cada vez mais interna da obra de arte. A mudança de orientação não pode ser negada. Entretanto, o impulso para encontrar um marco que antecipe temporalmente uma “modernidade brasileira”, concebida em termos de uma trajetória linear rumo à evolução “vanguardista” (Arantes, 1991, p. xiii), representada pela abstração, marca indelevelmente as leituras que Arantes faz dos primeiros artigos de Pedrosa. Com esse comentário queremos chamar a atenção para a importância de se levar em conta as condições particulares da produção teórica e de sua trajetória tanto quanto à sua própria produção textual. Ao mesmo tempo, pretendemos enfatizar a configuração atual dos discursos sobre arte no Brasil, da qual o processo histórico de sua própria constituição está ausente. O processo no qual se instituíram as condições sociais de uma revisão na ideia da autonomia em relação às determinações externas é obliterado em textos que acabam por naturalizar a representação de uma singularidade atribuída a Pedrosa. A introdução do artigo para o Boletim da União Pan-americana parecia o princípio de uma biografia de Portinari. Tratava-se de apresentá-lo para o público latino e norte-americano. O artigo começava apresentando seu pai e sua mãe como italianos que emigraram para as fazendas do interior de São Paulo, onde constituíram família. Em outro trabalho analisei essa construção biográfica do pintor, em geral acompanhada de referências a célebres artistas italianos do Renascimento, como uma forma de inserir o pintor no mundo artístico internacional quase como um cidadão italiano e, portanto, “herdeiro natural” daquela tradição artística.

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Considerando que a Itália e diversos países da Europa têm como princípio de nacionalidade e cidadania a noção de jus sanguinis,46 isto é, um fenômeno biológico e não político ou cultural, a referência ao “sangue italiano” justifica imaginar a pretensão de remeter o leitor a essa associação específica entre nação e indivíduo (Reinheimer, 2006). Sua expressão pictórica é assim relacionada ao passado artístico daquele país, como se Portinari houvesse “herdado” de artistas como Michelangelo e Da Vinci um dom transmitido pela origem italiana. Por outro lado, essa era também uma forma de inserir Portinari em uma cronologia histórica hegemônica, retirando sua produção da periferia, de uma história da arte brasileira, para inseri-lo na história da arte italiana. Entretanto, apesar de citar a ascendência do pintor, Pedrosa não estava atualizando a ideia utilizada por outros comentadores. O crítico ressaltava o contraste entre a vida no interior rural e o posterior ingresso de Portinari no mundo artístico. Assim as “imagens infantis, o apego ao meio familiar e a afeição pelos seus, a simpatia pelo homem do povo, pelo trabalhador braçal e a rudeza de maneiras e um certo quê de manha e de sabedoria plebéia do caipira paulista” que teriam ficado daquela época de “infância pobre” foram enfatizados. Apresentou a pintura como a “revelação” de uma “vocação” que o pintor seguiu ao sair de sua cidade e ir “para o Rio de Janeiro, sem dinheiro, sem proteção, sozinho e tímido”, aos 15 anos (Pedrosa, 1942, p. 114). Essa vocação, entretanto, só se desenvolveu devido ao esforço do artista, que “estudou e experimentou por si mesmo, como um artesão que se preza de conhecer as receitas e segredos do ofício” (Pedrosa, 1942, p. 113-114). O dom então se consagrara com o empenho e o sacrifício de Portinari, permitindo a superação de sua condição social. A acepção religiosa na noção de vocação se refere ao chamado de Deus, o calling, indicando o rumo que se deve ter na vida. Não fazê-lo é considerado um sacrilégio. O empenho e o sacrifício na realização do 46 Segundo Seyferth (2001), “o jus sanguinis que embasa a cidadania em muitos Estados nacionais é a contrapartida legal dessa premissa biológica de natureza primordialista” (p. 175).

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dom referem-se então ao esforço no sentido de atender ao chamado. Emprestado da dimensão religiosa, o dom deixa de ser algo que leva à cura e ao milagre, para levar à obra artística. A versão laicizada da vocação transformou-se na ideia de uma carreira, e foi essa ênfase no aspecto profissional que Pedrosa ressaltava em relação ao pintor de Brodósqui, em detrimento de um privilégio de nascença naturalizado através da afirmação de uma sensibilidade. O passado de Portinari não foi então utilizado como justificativa para sua posição política e temática, como fizeram Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Antonio Bento, cada um à sua maneira, mas como forma de exaltar o esforço empreendido para realizar sua vocação. Pedrosa (1942) falou mesmo de “uma espécie de libertação do passado, uma transição para o quadro das suas reminiscências infantis”, que coincidiu com o “chamado primitivismo da poesia brasileira de então, caracterizada pela volta ao sentimentalismo provinciano dos poetas românticos choramingas do século passado ou pela insistência sobre temas populares ingênuos, por reação anti-intelectual e anti-formal”. Nesse primeiro “ciclo”, ressaltou “o tema sentimental”, que foi associado na história da arte ao trabalho de Brueghel (não fica claro qual deles) (Pedrosa, 1942, p. 116). A particularidade do trabalho do pintor era assim inserida na generalidade de uma história que o situava em relação a outros artistas consagrados. O fio condutor da análise de Pedrosa era a ideia de que Portinari vinha se distanciando das “exigências de ordem sentimental, como num processo doloroso de separação afetiva com o passado”, para se entregar “a novos problemas estéticos”. Falou de uma “época” (que ele delimita como os anos de 1934-1935) na qual o pintor estava preocupado com o problema da composição e, para tanto, recorreu “à lição de Giorgio de Chirico”. Descreveu essa “época”, uma hora como preocupada com “o homem concreto, em grupo ou em seu meio social” e outra como de “idealismo abstrato”. Foi exatamente em 1934 e 1935 que Pedrosa escreveu os dois artigos sobre Portinari, através dos quais defendia a arte como uma “arma” na luta a favor do proletariado e o muralismo como a arte revolucionária por excelência, devido ao seu poder de comunicação.

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Considerando a trajetória de Pedrosa, não parece exagero imaginar que essa análise tinha relação consigo mesmo, tanto quanto com o pintor. Otília Arantes (1991) e Marcelo Mari (2006) sugerem um diálogo com Mário de Andrade citado no texto. Entretanto, se havia um diálogo com outros textos críticos sobre Portinari, havia também um diálogo consigo mesmo, isto é, uma revisão daquilo que ele havia escrito anteriormente sobre arte. Para falar do período que o pintor estava vivendo naquele momento, ele fez uma análise do muralismo. Para tanto, realizou um duplo movimento de comparar o muralismo de Portinari com os muralistas mexicanos, considerando ao mesmo tempo o pintor como parte de um “muralismo latino-americano” analisado em face dos problemas da estética moderna. Tanto o muralismo mexicano como o de Portinari se tratavam de “um mesmo fenômeno de ordem estética”, relacionados à “evolução pictórica européia” e uma “reação às limitações da pintura a óleo”. Nesse sentido, “os artistas europeus resolveram o impasse, decidindo-se a fazer a sua revolução estética ali dentro do quadro a óleo. E por isso mesmo ela se resolveu em profundeza, na impossibilidade de extravasar para outro domínio ou outro gênero, e de análise em análise foi dar no abstracionismo e no superrealismo (sic)” (Pedrosa, 1942, p. 119). Na América, por sua vez, a tentativa mexicana se generalizou por todo o continente, “tornando-se mesmo uma característica da evolução pictórica americana em contraste com a evolução européia” (Pedrosa, 1942, p. 120). A principal diferenciação que fazia entre uma e outra era a presença do assunto e sua relação com a política. Assim, “de fato, se neste continente a pintura moderna não atingiu a profundeza ou a transcendência puramente estética da pintura moderna européia, centralizada em Paris, tem sido no entanto aqui, nos países americanos (México, Estados Unidos, Brasil, etc.), onde se tem feito a tentativa mais audaciosa de uma grande arte sintética capaz de restaurar a dignidade artística do assunto perdida na grande arte moderna puramente analítica, e reintegrar por essa forma o homem humano, o homem social, na pintura de onde havia sido excluído” (Pedrosa, 1942, p. 120). O muralismo latino-americano deixara de

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ser uma arma política para tornar-se uma resposta local aos problemas que a estética moderna estava propondo. Com isso, Pedrosa abria caminho para uma diferenciação entre o muralismo mexicano e o de Portinari. Se no México “essa pintura constituiu uma profunda tendência generalizada, social, criando uma verdadeira escola e um estilo nacional”, no Brasil ela ficou limitada a “uma fase de evolução de um pintor” (Pedrosa, 1942, p. 120-121). Pedrosa continua esclarecendo quais as motivações que levaram Portinari a explorar a pintura mural: “ao artista brasileiro, este gênero se apresentou sobretudo como um meio de desenvolver em campo mais vasto as qualidades de estrutura e todas as possibilidades da plástica monumental a que havia chegado em sua pintura a óleo. Ele queria simplesmente, movido por intrínsecas intenções monumentais, poder entregar-se à vontade às experiências de deformação do plástico. E compreendeu que para isso precisava também, senão de um conjunto arquitetônico, ao menos de um muro, fora do qual não poderiam ser essas intenções expressas ou satisfatoriamente resolvidas”. Os mexicanos, entretanto, “muitas vezes sacrificavam as qualidades estruturais intrínsecas da realização às necessidades interessadas da intenção extrapictórica, da propaganda, do zelo proselitista; o pintor brasileiro nunca sacrificou as exigências plásticas ao elemento que nele sempre foi externo do assunto” (p. 121). Assim, enquanto Portinari fazia murais movido por intenções artísticas (a vontade de fazer experiências de deformação do plástico em tamanhos monumentais), os mexicanos o faziam movidos por intenções políticas, extrapictóricas. Estamos aqui já bastante distantes da defesa de uma “função social” para a arte, mesmo que “com prejuízo de sua pureza estética” (Pedrosa, 1933, p. 44), mas ainda não completamente imersos no sistema de valores da singularidade, para privilegiar o aspecto da interioridade naturalizada da vocação ao invés da dimensão exterior de superação das condições sociais através da aprendizagem. É importante ressaltar o contexto social no qual se insere o texto de 1942. Guilbaut (1996) argumenta que a arte foi nos EUA uma dimensão intensamente politizada do final da Primeira Guerra, até

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o final da década de 1950. Desde meados da década de 1930, nos Estados Unidos, um intenso debate estava em andamento sobre a validade de uma arte que se guiava pelos ditames do Partido Comunista e não pelas pesquisas formais. Os textos publicados em revistas como The Nation, Partisan Review e New Republic eram na época os únicos a tentar articular uma crítica marxista do stalinismo e sua política cultural. Em 1936, alguns intelectuais da oposição da esquerda norte-americana fundaram a revista Marxist Quarterly. No corpo editorial estavam intelectuais de diversas facções da oposição, entre eles Meyer Schapiro. A primeira edição foi publicada em 1937, no momento em que a Comissão de Inquérito, organizada pelo filósofo John Dewey, estava sendo formada para defender Trotsky nos Processos de Moscou47 (Novak, 2008). A semelhança entre fascismo e comunismo se estreitava com as práticas soviéticas, e a esquerda norte-americana se encontrava cada vez mais dividida. No primeiro número, o crítico de arte Meyer Schapiro publicou o artigo Nature of abstract art (1937), no qual refutava as teses formalistas sustentadas pelo então diretor do MoMA, Alfred H. Barr, no livro Cubism and abstract, de 1936. Schapiro reclamava que Barr apresentava a arte abstrata como resultado de um processo interno dos artistas, sem referência às condições históricas do momento de seu surgimento. No texto, o crítico reclamava da linguagem “essencialista” que estava sendo empregada para falar da pureza de uma arte livre “das perversões da razão e da experiência cotidiana” (Schapiro, 1937). Schapiro, assim, se distanciava intelectual e ideologicamente de suas posições anteriores, nas quais assegurava aos artistas um lugar revolucionário ao se aliar ao proletariado. O crítico destruía a noção de independência do artista abstrato em relação ao poder e insistia nas relações da arte abstrata com a sociedade. Dessa forma, mostrava que havia na abstração uma significação mais ampla que aquela reconhecida pelos formalistas. 47 Entre 1936 e 1938, a União Soviética processou vários intelectuais (Trotsky, Zinoniev, Kamenev, Radek, Boudharine), o que minou a confiança dos intelectuais de outros países na estrutura do Partido Comunista. A comissão organizada por Dewey foi encarregada de ir até o México ouvir Trotsky.

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Essa crítica destruía a ilusão de independência defendida por Barr, mas invalidava também a crítica comunista que acusava a arte abstrata de separar o artista da sociedade, encerrando-o em uma torre de marfim. Os comunistas também se agarravam ao argumento de que a arte abstrata estava desvinculada da sociedade. Essa não-independência da arte abstrata desarmava os dois campos. Os pintores de esquerda que rejeitavam a noção de “arte pura”, mas se desviaram da estética comunista, encontraram na negação do trabalho ideológico uma força positiva. Com a justificativa de Schapiro de que o condicionamento social do artista e sua percepção da situação social se inscreve necessariamente em sua produção, a linguagem abstrata também ganhava permissão para ser expressão de uma consciência social crítica. Produzir arte abstrata e incorporar as invenções formais do século XX passou, assim, a ser aceitável (Guilbaut, 1996). Essa possibilidade respondia à necessidade formulada pelas revistas Partisan Review e Marxist Quarterly de que o artista deveria trabalhar independente de partidos políticos e ideologias totalitárias (Guilbaut, 1996). O caminho aberto por Schapiro ganhou ainda mais suporte com o manifesto escrito por Breton e Trotsky (1938),48 publicado na Partisan Review. O manifesto, escrito em forma de uma carta, apresentava uma crítica radical à concepção totalitária da arte sob Stalin e uma defesa da arte independente. Breton e Trotsky propunham reunir todos os artistas revolucionários para “servir à revolução pelos métodos da arte e defender a própria liberdade da arte contra os usurpadores da revolução” (Breton e Rivera, 2008). Breton e Trotsky conclamavam ainda os pensadores e artistas isolados a lutar contra a difamação das tendências progressivas na arte, consideradas como degenerescência pelo fascismo e fascistas pelos stalinistas. Segundo os autores, “a verdadeira arte, não se contenta em fazer variações sobre modelos prontos, mas em vez disso insiste em expressar as necessidades internas do homem e da humanidade de sua época, a verdadeira arte é incapaz de não ser revolucionária, de não

48 Trotsky solicitou em 1938 que seu nome fosse trocado pelo de Rivera. O artigo foi então publicado como tendo sido escrito por Breton e Rivera (Selz, 1999).

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aspirar a uma completa e radical reconstrução da sociedade”. A psicanálise foi acionada para falar do mecanismo da “sublimação” como aquele que permitiria restabelecer o vínculo “entre o ego integral e os elementos externos que ele rejeita” (Breton e Rivera, 2008). Os autores recorreram a Marx para fundamentar a ideia de que a liberdade deve prevalecer na criação artística: “o escritor, diz ele [Marx], deve naturalmente ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas não deve sob nenhuma circunstância viver e escrever para ganhar dinheiro... o escritor não considera de forma alguma seus trabalhos como um meio”. Assim, reafirmavam a arte como uma atividade intelectual sem fins exteriores a si mesma, explicitando, entretanto, que defender a liberdade na arte não significava “justificar a indiferença política”. Sua intenção não era “reviver a chamada arte pura que em geral serve a fins de reação extremamente impuros”, pois “o artista não pode servir à luta pela liberdade a não ser que ele assimile subjetivamente seu conteúdo social” (Breton e Rivera, 2008). A relação entre arte e política havia mudado. Defender então o muralismo como uma linguagem revolucionária pela sua capacidade de comunicação já não condizia com as discussões que Pedrosa estava tendo a oportunidade de acompanhar. Otília Arantes (1991) já ressaltou com propriedade a “descrição do jogo de cores, luz, linhas e planos” (p. 24) utilizada pelo crítico para analisar os painéis de Portinari sem fazer menção a referências “extra-pictóricas” (Pedrosa, 1942, p. 121). De fato, Pedrosa mencionou naquele artigo as relações sociais para excluí-las do domínio legítimo da influência sobre o julgamento crítico da arte. Assim, a ideia de Mário de Andrade de uma “funcionalidade nacional” que teria sido enunciada em relação aos afrescos que Portinari fez para o Ministério da Educação é minimizada com o argumento de que os murais “nunca se prendem literalmente aos assuntos de cada painel nem visam demonstrar coisa alguma” (Pedrosa, 1942, p. 121). Isso poderia ser deduzido do “anti-naturalismo da iluminação de muitos desses murais”. Para o crítico, “nos afrescos de Portinari esteve sempre presente, ao lado ou acima da realidade, a finalidade plástica”. O realismo ao qual faz concessões é, no entanto, “profundo e orgânico;

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eco talvez de suas origens campesinas” (Pedrosa, 1942, p. 121-122). A relação da arte com o social deixava de ser expressa através de uma função predefinida atribuída à arte, o que não significava que Pedrosa tivesse abandonado a ideia de que a arte deveria cumprir a ambição de transformar uma sociedade. Como mencionado no capítulo anterior, Pedrosa atribui mais liberdade à Portinari em relação aos literatos pelo fato de estar fora do Brasil. Na década de 1970, repetiu esse argumento: “comentava eu, entusiasticamente, a maneira atrevida com que o pintor reduzia os detalhes figurativos, pé, nariz, cabeça, camisa, peneira, batel, água, pedra, etc., a manchas coloridas, a signos, a formas geométricas como triângulos, por exemplo, para realçar a força plástica significativa do todo, quando ele, com aquele jeito esperto, à caipira, o bonachão, interrompe: ‘– pois é, eu aqui me sinto mais livre do que no Brasil. Os literatos me atrapalham’. Ele queria dizer com isso que as ideias forçosamente literárias dos intelectuais amigos interferiam freqüentemente com as suas, ou os seus projetos puramente pictóricos”. Tantos anos depois, admitia sua influência sobre o pintor “no princípio de sua carreira, eu também, então seu amigo e freqüentador, me incluo entre aqueles intelectuais” (Pedrosa, 1986, p. 262). A rejeição à literatura fosse ela por parte do pintor ou do crítico era também a negação “dos temas puramente nacionais, ou necessariamente nacionais, pelo medo legítimo de cair nas facilidades da descrição convencional e, sobretudo, pela falta de ressonância ou... ressonância demasiada dos mitos raciais e sociais, isto é, nacionais, que vai criando” (Pedrosa, 1942, p. 123). Dessa negação do nacionalismo, chegava à criação individual: essa nova fase tinha como característica o fato de que “as preocupações de composição tendem a dar lugar à invenção, a unidade de superfície à descontinuidade, e o realismo ao superrealismo” (p. 124). Se havia alguma inspiração extrapictórica, ela era “puramente individual”, que “numa tentativa fora do tempo, o artista tira de imagens quase subconscientes a temática para as suas novas realizações” (p. 125). A influência do surrealismo é explícita não pela afirmação de que Portinari mergulhasse na irracionalidade, como apregoava aquele movimento, mas pelo “profundo sentimento

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interior de liberdade” a partir do qual o pintor tinha executado aquelas composições. A liberdade e a criatividade passaram a ser tomadas como valores essenciais para a realização artística, e o indivíduo passava a ser o portador desses valores. Pensar uma arte relativamente autônoma estava relacionado também ao processo de libertação do indivíduo de seus pertencimentos coletivos, isto é, de classe e nacional. Até então, a crítica de arte brasileira não havia formulado a problemática da arte moderna nesses termos. Esse foi um passo fundamental para uma mudança no campo epistemológico da arte no Brasil. Pedrosa contribuiu para que os modelos culturalista e econômico fossem abandonados, e um novo modelo passou paulatinamente a fundamentar um sistema de pensamento no qual não se concebia que a arte tivesse a função de solucionar conflitos e/ ou que apresentasse sentidos específicos relativos a um referencial político. A produção artística passava a ser tomada como um sistema de representação referido ao mundo interior do indivíduo, a polissemia foi assumida como condição primordial da obra e o sentido passou a ser dado principalmente pela interação entre o observador e a obra de arte (mesmo que alguns observadores, como os críticos de arte, tivessem um estatuto privilegiado para enunciar os significados). Daí também o embaçamento das antinomias normal/patológico, lógico/ ilógico, sentido/não-sentido que Pedrosa contribuiria mais tarde para ocasionar na organização ou apoio de eventos que desrespeitassem as fronteiras legítimas entre essas classificações. A defesa da arte dos alienados, dos primitivos, das crianças,49 que Pedrosa faria a partir do final da década de 1940 estava em sintonia com o interesse expresso desde o século XIX, por tudo que se encontrava nas fímbrias da modernidade (contra os males da civilização) e enfatizado nos textos surrealistas. Essa seria então a nova forma encontrada por Pedrosa para continuar defendendo o ideal de uma sociedade melhor, sem 49 Havia uma disputa da faixa etária para a qual o rótulo de arte infantil deveria se aplicar (Thistlewood, 1986).

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desrespeitar os fundamentos da autonomia da arte: ética e estética aparentemente conciliadas. Em 1943, Mário Pedrosa pediu afastamento da União Pan-americana argumentando que sua situação de saúde não permitia que trabalhasse tempo integral e que o salário de meio expediente não seria suficiente para sustentar sua família (Pedrosa, 1943). Antes de deixar o cargo, entretanto, publicou dois ensaios, um sobre a coleção de arte Widener, na Galeria Nacional de Artes dos Estados Unidos,50 e outro sobre o compositor Camargo Guarnieri. No último período de estadia nos Estados Unidos não sabemos exatamente no que trabalhou, mas tudo nos leva a crer que tenha se envolvido cada vez mais com o universo artístico, pois publicou dois ensaios sobre Alexander Calder. Otília Arantes (1991) considera esses ensaios como o marco de sua “conversão (...) à causa da arte moderna, em particular na sua forma mais radical, a da arte abstrata” (p. 31). Em outros termos, nesses dois ensaios, Pedrosa assumia a singularidade e a autenticidade como critérios fundamentais, valores aplicáveis não somente à produção, mas principalmente ao estatuto dos artistas modernos. Com o fim da guerra e as transformações políticas que isso acarretou, foi convidado por Paulo Bittencourt para ser correspondente do Correio da Manhã na França. Entretanto, seu visto de saída para aquele país foi negado pelos Estados Unidos, que alegou “supostas ligações com a América do Sul” (Pedrosa, 1945). Pedrosa comenta o caso em carta a Bittencourt, explicando que sua única relação com a América do Sul, fora o Brasil, havia sido a viagem realizada em 1940, como correspondente do periódico Common Sense, para o qual realizou entrevista com Victor Raúl Haya de la Torre.51 Para garantir a Bittencourt que seu compromisso era com o convite recebido, argumentou que era um “franco-atirador” sem compromissos com organizações ou grupos: “pela conversa de última hora 50 Em 1942 Joseph Widener doou a coleção de seu pai, Peter A. B. Widener, para a National Gallery of Art. Foi da exposição dessa coleção na galeria nacional de arte que surgiu o artigo de Pedrosa. 51 Político peruano fundador da Aliança Popular Revolucionária Americana em 1924. Órgão de um movimento panlatino-americano inaugurado em 1930. A entrevista de Pedrosa com Haya de la Torre versou também sobre esse movimento, como indica a correspondência enviada a Pedrosa (Haya de la Torre, 1941).

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que tive com a Niomar, pude deparar esse sentimento de desconfiança na ideia de que ‘a Causa’ poderia justificar a quebra de lealdade para com o amigo, a traição da palavra dada. Primeiro, eu não tenho nenhuma ‘causa’ abstrata, impessoal, acima da honra, que exija de mim agir como salafrário, ou trair o amigo que depositou sua confiança em mim. Não pertenço a nenhuma igreja, nem adoro nenhum mito. Nem mesmo pertenço a partidos ou organizações, e não tenho compromissos com nenhum grupo. Sou livre e franco atirador. E não é de hoje que tenho essa atitude” (Pedrosa, 1945). O fato de encontrar-se desvinculado de qualquer instituição por certo favoreceu sua mudança de perspectiva em relação à arte. Na impossibilidade de ir para a França, voltou ao Brasil, onde começou então uma nova militância. Desta vez nas artes plásticas, mas a partir de uma linguagem própria, e não mais de conceitos e temas emprestados à militância política.

Capítulo 3 As grandes profecias são polissêmicas. Esta é uma de suas virtudes e é por isso que atravessam lugares, momentos, épocas, gerações, etc. (Bourdieu, 2002)

Figuração x abstração: arte como arena de disputas No começo da década de 1950, o crítico de arte Mário Barata apresentou sucintamente alguns dos tópicos através dos quais o debate em torno da representação plástica no Brasil se desenvolveu na primeira metade do século XX. Segundo Barata (1954), entre 1922 e 1930, surgiram novos temas, as convenções acadêmicas foram abandonadas e o assunto mitológico e histórico deixou de estar no ápice da hierarquia de temas legítimos. Entretanto, uma das maiores marcas desse período foi a busca do nacional. Entre 1930 e 1940, enfatizou-se o conteúdo humano, com a Revolução de 30 e o romance nordestino influenciando fortemente a literatura e a pintura. Entre 1940 e 1947, houve o embate “entre interferências formalistas e o conteúdo humano da pintura brasileira” (Barata, 1954). Mesmo que os marcos temporais sirvam mais como norteadores do que demarcadores rígidos, Barata oferece uma síntese da relação entre eventos heterônomos e a valorização de diferentes gêneros de pintura, mostrando como a hierarquia destes se modifica com o tempo. O objetivo dos dois próximos capítulos é compreender tanto essas heteronomias como as transformações epistemológicas e axiológicas no debate entre as “interferências formalistas e o conteúdo humano”. 155

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Esse debate pode também ser sintetizado em termos de gêneros de representação pictórica, tendo os defensores do formalismo usado a abstração como recurso tático em oposição àqueles que defendiam uma indistinção entre as dimensões morais e estéticas, através do apoio a uma arte com conteúdo explícito, isto é figurativa. Os termos desse affaire giravam em torno majoritariamente das noções de nacionalismo, posicionamento político e modernização (entendida como os processos de transformação social vinculados à industrialização e à consolidação de uma esfera “científica” ou “acadêmica”). A forma de representação pictórica é então a dimensão através da qual os atores dessa contenda discutiram os valores atribuídos ao fenômeno artístico. O embate entre a representação figurativa e a representação abstrata, que se desenhou principalmente após o final da Segunda Guerra, teve relação direta com a reorganização do panorama político brasileiro e internacional. Desde 1941, o Partido Comunista do Brasil vinha se reorganizando e participando de movimentos políticos diversos, e até ter seu registro novamente cassado, em 1947, teve grande aceitação popular. A temática dita social, isto é, a ênfase em questões como a diferença de classes ou os trabalhadores rurais, a partir de uma representação mais ou menos realista, dependendo do artista, foi estimulada, e a arte tomada como uma arma de combate na luta de classes. Intelectuais como Candido Portinari, Antonio Gomide, Clóvis Graciano, Emiliano Di Cavalcanti, Tomás Santa Rosa, Emílio Goeldi, Lívio Abramo, Oswald de Andrade Filho, Manuel Martins foram alguns dos representantes desse “partido estético”. No Brasil, a legalização do Partido Comunista, em 1945, levou à filiação de artistas de diversas concepções estéticas, que apoiaram de formas variadas sua organização: esses artistas ofereceram trabalhos cujo valor da venda foi revertido para o partido, personalidades reconhecidas tiveram seus nomes indicados para candidaturas diversas e incremento dos quadros políticos e ministraram palestras nas quais a temática da reforma agrária, da miséria do povo e do sofrimento eram centrais.

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Assumir uma posição passou a ser exigência já nesse início de Guerra Fria. O poeta Alphonsus de Guimaraens Filho, por exemplo, ao comentar em um artigo de jornal a palestra que o pintor, cenógrafo e escritor Tomás Santa Rosa tinha pronunciado em Belo Horizonte, argumentou que “a maior tragédia para um homem, principalmente para o homem de cultura, para o cientista, artista, intelectual enfim, é ser um homem sem ideologia, é ficar ao sabor da corrente, é não valorizar o ideal humano que a cada instante tenta encontrar seu caminho, o melhor caminho para a liberdade” (Guimaraens Filho, 1945). A ênfase na noção de ideologia dizia respeito à tentativa de repensar as formas de ocultar, dissimular e naturalizar as divisões sociais e políticas. O argumento de Guimaraens Filho mostra a influência que o marxismo representava naquele momento entre os intelectuais brasileiros e a busca de um sistema teórico e explicativo que permitisse repensar as normas e regras de conduta que haviam orientado até então as representações de uma realidade brasileira, inclusive nas artes plásticas. A entrevista concedida por Candido Portinari como candidato a deputado federal pelo PCB, em 1945, oferece um bom exemplo de como artistas consagrados estavam envolvidos com o debate político daquele momento. O jornalista da Tribuna Popular exaltou o “entusiasmo” de Portinari ao ouvir Prestes falar “da terra e dos camponeses” (entrevista parcialmente reproduzida no primeiro capítulo, Jurandir, 1945). Na plataforma política de Portinari, a questão agrária tinha relação com sua trajetória de vida e com as imagens que ele vinha produzindo desde meados da década de 1930. Uma série de telas pintadas desde 1934 já apresentava motivos relacionados com questões instrumentalizáveis nesse contexto social. Entretanto, mais que as temáticas particulares das telas – café, retirantes, morro, colonos –, o tema do sofrimento e da miséria permeava as considerações acerca de seu trabalho, não somente no Brasil, mas também na Europa. O jornal português Primeiro de Janeiro trouxe, em outubro de 1945, uma entrevista com Portinari cujo título preparava o leitor para o assunto em voga: “Portinari pintor do sofrimento” (Brague,

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1945). Segundo o jornalista, “Portinari não poderá nunca esquecer, sem dúvida, os duros anos da sua infância passados a desbravar o mato brasileiro (...). Seu pai, uns anos antes, impelido pela miséria, deixara a Itália, levando apenas consigo sua mulher e o magro saco do emigrante. E foi de Florença para Brodósqui, no extremo limite da civilização (...). Seus pais continuam a viver lá, no deslumbramento daquele filho cuja carreira os vinga de todos os sofrimentos passados (...). Suas últimas telas que fizeram soltar rugidos a esses senhores do governo, porque não lisonjeavam a sua vaidade de administradores; três grandes quadros, que representam o êxodo dos camponeses do Nordeste, expulsos de suas terras (...). São imagens alucinantes que levam até o infinito as possibilidades de comoção dos seres que resumem e multiplicam o sofrimento humano agravando-o em nós como com ferro em brasa. Se a arte é universal, a miséria não o é menos”. O sofrimento foi tema recorrentemente comentado no ano imediatamente após o final da Segunda Guerra, não somente no Brasil, mas também na Europa e nos EUA. No relatório da Comissão Preparatória para a instituição da Unesco, ocorrido em 1946, falou-se na “publicação de uma antologia do sofrimento e da resistência pelos países ocupados pelo Eixo” (Unesco, 1946a). A indicação, entretanto, foi posteriormente abandonada com a justificativa de que essa temática tinha uma nacionalidade específica e que não dizia respeito a todos os países-membros. A proposta dessa antologia referia-se principalmente à França, onde o Partido Comunista havia acumulado prestígio devido à sua participação nas atividades da Resistência. A legitimidade do Partido Comunista Francês, aliado à burguesia com quem partilhava o poder, fez com que a disputa entre representação figurativa e representação abstrata, logo após a guerra nesse país, fosse relativizada. Leon Degand, crítico de arte do periódico Les lettres françaises. Grand hebdomadaire littéraire, Artistique et politique. Organe du comité national des écrivains français adhèrent au front national, procurava, em janeiro de 1946, colocar a questão do realismo e das pesquisas abstratas na arte em termos diferentes daquele apresentado pelo Partido Comunista.

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Segundo Degand, na Europa, a pintura estava “a uma quinzena de anos vivendo uma crise sobre a qual é vão negar a importância, mas inútil exagerar a gravidade. É uma crise de consciência moral. Certa pintura e certas críticas, entre as mais conscientes da extrema urgência dos seus deveres de honra e de cidadãos, se inquietam de ver os artistas participarem tão pouco, através de sua arte, das perturbações políticas, econômicas, sociais e morais da nossa época, percebem lá uma falta de compromisso grave com a solidariedade humana” (Degand, 1946a). Degand argumentava ainda, em outro artigo, que “uma pintura é desumana, declaram os críticos, se ela não deixa nenhum lugar para a figura humana e se ela não é realista”, concluindo com uma pergunta que se reportava à defesa que Hitler fizera do academismo, classificando a arte moderna como degenerada: “ao academismo de direita, eles se contentariam em opor um academismo de esquerda?” (Degand, 1946). Em fevereiro do mesmo ano, a exposição Arte e Solidariedade, organizada pela Associação Nacional de Antigos Franco Atiradores, acirrou o debate acerca da legitimidade da representação figurativa, do sofrimento como forma de emocionar o público e a temática em geral como meio de conferir valor à obra de arte. Degand aproveitou a exposição para enfatizar a diferença de regimes de valor nos quais operavam a arte e a Resistência, denunciando com isso o uso instrumental da temática: “A arte é uma atividade estética, a resistência uma ação moral. A Resistência é uma coisa, a arte que ai se inspira outra totalmente diferente. Não há nenhuma razão de dedicar à arte que se inspira na Resistência a admiração e o respeito entusiasta que nós dedicamos a própria Resistência. (...) Assim, a pintura que se inspira na Resistência não é a priori nem boa, nem má. Sua qualidade depende, em grande parte, das faculdades do artista, de seu temperamento, de sua ciência. Então argumentamos, não basta ter sofrido ou se sentir solidário de um sofrimento, deve-se, sobretudo traduzir esse sofrimento, o transformar em uma emoção estética e o render comunicável por meio de uma obra. Então, nada é mais difícil hoje que transpor em termos plásticos uma ideia que, por definição, não é pictural” (Degand, 1946b). Degand indicava nesse artigo uma das importantes dimen-

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sões do debate que se seguiria nos próximos anos, a separação entre os valores éticos e estéticos. Com a expulsão dos comunistas do governo do primeiro-ministro francês Paul Ramadier em 1947, Degand foi substituído na revista por George Pillement, que seguia a linha estética mais tradicional do partido, defendendo o realismo socialista (Guilbaut, 1996, p. 160). No ano seguinte, Leon Degand foi convidado por Francisco Matarazzo Sobrinho para ser o primeiro diretor artístico do Museu de Arte Moderna de São Paulo. O museu foi inaugurado com a exposição “Do figurativismo ao abstracionismo” (MAM-SP, 2007). A abstração apresentada como “evolução natural” da arte moderna era parte do conjunto de valores comuns nos quais esse affaire se sustentava, do qual participava também a noção de universalidade. O recurso à temática do sofrimento, entretanto, não tinha somente a dimensão ética de apoio aos partidos comunistas, mas também uma dimensão estética de universalização da arte moderna. Voltando ao artigo português sobre Portinari, podemos ver a noção de sofrimento humano explorada como forma de atribuir à arte moderna uma universalidade fundamentada na ideia de natureza humana a partir da dimensão afetiva: “vi regressar a poucos meses, os sobreviventes de Buchenwald e de Dachau. Esses camponeses do Nordeste brasileiro, perseguidos pela fome e pela sede, têm os mesmos rostos, o mesmo olhar, as mesmas atitudes. Onde pôde Portinari conhecer o seu apavorante abandono, ouvir os seus gritos escutar a sua angústia? Onde? Apenas no seu coração. (...) Quer seja na terra árida do Brasil sub-tropical ou nos presídios nazis, a miséria humana tem a mesma aparência. Trágica significação a dessas telas!” (Brague, 1945). Em 1945, havia sido organizada, na Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro, a exposição Peintres français d’aujourd’hui – arts décoratifs. A exposição foi organizada sob os auspícios da Association Française d’Action Artistique e teve como responsáveis pela Section Peinture, entre outros, René Huyghe, Germain Bazin e Yves Sjöberg (posteriormente, membros do Icom e/ou da Aica). No livro que foi publicado por conta daquela exposição, Bazin falava mais uma vez da força das guerras como momentos de grande crescimento dos povos

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diante do sofrimento, referindo-se especificamente aos pintores franceses (Bazin apud Huyghe, 1945, p. 19). Provavelmente a organização dessa exposição ofereceu a Portinari a oportunidade de conhecer Germain Bazin, então funcionário do departamento de restauro do Louvre, e desse encontro resultou o convite para que o pintor brasileiro apresentasse seu trabalho em Paris. No ano seguinte, Portinari apresentou-se na capital francesa em duas ocasiões diferentes. Um quadro seu foi emprestado por um colecionador francês à Exposição Internacional de Arte Moderna que fez parte dos eventos de inauguração da Unesco e uma exposição individual foi organizada na prestigiosa galeria Georges Charpentier, com texto de apresentação de Jean Cassou, então diretor do Museu de Arte Moderna de Paris. Nessa segunda exibição, Portinari foi apresentado como um homem que “obedece somente às aspirações naturais de seu temperamento. Ele se inclina com paixão sobre a miséria dos trabalhadores da cidade e dos campos, trabalhadores das plantações de café, negros, índios. (...) A exposição de suas obras, que tem lugar no momento em Paris, mostra a diversidade, a liberdade e o poder de seu talento (génie). (...) Mas seguramente, o que nos encanta em alguns pintores, que num momento quando parece que são discutidas, sobretudo questões de vocabulário, ele nos mostra o quê? Um mundo. Que esse mundo não seja o assunto essencial de sua arte nós estamos de acordo. Mas esse mundo é para ele e nele. Ele é a sua origem, sua juventude, sua pátria, e é para nós um mundo desconhecido e exótico (...) Isso que renova a pintura, areja seu campo, cria nela um interesse novo, o humanismo, é menos o realismo que o expressionismo” (Cassou, 1946, p. 5-6, ênfase no original). A concepção da arte como universo autônomo não parecia ser o cerne da discussão. Por isso a ênfase no fato de que o mundo que Portinari apresentava não era “assunto essencial”, no entanto o assunto é o eixo em torno do qual Cassou constrói sua argumentação. A legitimidade das questões apresentadas por Portinari apoiava-se no recurso à naturalização dessa temática através da relação com sua trajetória de vida e sua origem social. Trechos dos artigos publicados na França eram reproduzidos em português nos periódicos cariocas, pelos críticos de arte locais: “Porque ele sofre a tragédia das

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populações retirantes que viu pelos caminhos de sua terra, exaustas, esqueléticas de fome e da canseira do êxodo. A pintura de Portinari é, portanto, rica de fortes prolongamentos humanos. (...) Viagem nem tanto a um país estrangeiro senão à alma desse país” (tradução de trecho do texto de Cassou para o catálogo da exposição) (Bento, 1946). Os posicionamentos político e social do pintor eram utilizados para justificar a concepção estética pela grandeza da temática: “não se trata para ele, pintor comunista, de pintar de tal ou qual forma, mas de exprimir seu eu em função de uma forma de pensar que está ligada à filosofia materialista” (Auricoste, 1946, p. 13). Portinari “nos fala plasticamente de seu país, das alegrias, das misérias, da grandeza dos camponeses”. Entretanto, suas telas “ultrapassam infinitamente a cor local. Todo ser terrestre de boa fé, ali reconhecerá seu bem”. Portinari era apresentado como um artista que, usando as descobertas dos modernos, criou uma arte com conteúdo “para exprimir alguma coisa”, tendo saído “do laboratório” (Lentin, 1946, ênfases no original). Mostrar uma humanidade comum através da temática da miséria era tornar sua arte universal, mas também tornar o povo representado parte da condição humana. O sofrimento articulava a relação entre a ideia de natureza humana e a particularidade nacional brasileira. A indignação em relação às condições sociais era deslocada para a materialidade do quadro dignificando o sofrimento, a pobreza e a miséria no registro estético. A justificativa na defesa do estilo figurativo estava na referência às coisas de ordem externas ao quadro, que desviavam o investimento de uma relação estética em direção à denúncia. A incompatibilidade entre a ideia de apreensão estética e o posicionamento político, apesar de condizente com as teorias estéticas desenvolvidas desde o século XVIII, somente aos poucos será acionada sistematicamente, constituindo a defesa da abstração em uma reformulação do discurso da autonomia da arte. A temática que fizera parte de uma economia artística na qual a grandeza era medida pela competência técnica, aos poucos, será substituída pela noção de originalidade, como fundamento do valor artístico. Novamente o momento parecia ser propício para Portinari. As condições sociais devem ser consideradas no processo de produção

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da eficácia dos objetos e do nome do criador. Outros autores já chamaram a atenção para o caráter coletivo do estabelecimento do valor de uma pintura (Bourdieu e Delsaut, 2004; Price, 2000). Deve-se a um conjunto de atores sociais, consagrados ou não, a produção de um consenso sobre temas, gêneros, estilos etc. Assim, podemos compreender que o que consagrava Portinari não era apenas sua pintura ou sua trajetória, mas o capital acumulado e alimentado pelos campos artísticos, nos quais o pintor se apresentou agindo sob as características que os próprios campos privilegiavam no período. O crítico de arte brasileiro Mário Barata chamou a atenção para essa “sincronia” do pintor e sua temática com as condições de possibilidade do mundo artístico francês naquele momento: “se Portinari viesse a Paris há 10 ou 4 anos atrás, sua penetração seria duvidosa, sua contribuição talvez passasse despercebida. Mas por uma dessas coincidências, que às vezes não o são, o artista brasileiro expôs na Europa numa hora H da pintura, num ‘tornant decisif’ (sic). Justamente a arte social e com ela o figurativo na arte moderna começa a ser entrevista como solução para o impasse e para as conquistas já asseguradas da pintura contemporânea após 60 anos de revoluções plásticas. § A arte puramente como pesquisa ou a arte pela arte esgotou-se durante a guerra que vem de findar. A sua impotência ante os problemas humanos fez perigar a sua energia criadora e levou os artistas e críticos de arte de Paris, durante a ocupação, a um diletantismo intelectual que se transformou num jogo sem razão de ser. A profundidade deixou de ser autêntica para ser um recurso a técnicas feitas, onde não se procura o conteúdo e sim artifícios que forneçam um ilogismo (...) Paralelo a isso o Partido Comunista russo faz uma severa crítica contra certa arte moderna que ele chama expressão duma burguesia em decadência e o mesmo partido francês intensifica uma reação contra a arte pela arte levada ao excesso na França contemporânea. (...) É essa equação artística da Europa no momento, e veremos daqui há pouco, pelas reações da crítica, que ela foi o eixo inicial da vitória de Portinari” (Barata, 1946). A defesa do realismo na arte não prescindia da afirmação de um regime de singularidade no qual o artista deveria participar para

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que sua arte fosse considerada criação de um artista autêntico. Para tanto, entre as variadas afirmações da singularidade do pintor nos artigos publicados em Paris ou no Brasil, encontramos uma anedota que falava ao mesmo tempo do temperamento (genial) do artista e de seu desprezo pela dimensão econômica. A história conta o episódio da visita do duque e da duquesa de Windsor à exposição do pintor em Paris. O casal aristocrático teria se interessado em comprar um quadro do artista, mas pediu que fosse algo mais alegre e decorativo. A atitude de Portinari diante do pedido foi dizer que ele pintava o que via e não via beleza e felicidade. Goffman (1985) já chamou a atenção para o fato de que as anedotas são parte do jogo social na defesa ou ênfase das representações relacionadas a determinado papel social. O comportamento atribuído a Portinari foi usado como afirmação de seu estatuto de artista autêntico, para quem as hierarquias sociais não eram mais importantes que sua obra, esta proveniente de um impulso interno e não de demandas externas, de caráter econômico. A anedota foi publicada em 1946, por Sally Swing (1946 e 1946a), no Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, e em O Estado de São Paulo, e repetida na biografia que Antonio Bento publicou em 1980 (Bento, 2003). No mesmo ano da exposição de Portinari na galeria Charpentier em Paris, Kandinsky, considerado por muitos o pai fundador do abstracionismo, teve uma exposição póstuma organizada na mesma capital. No ano seguinte, Germain Bazin fez um balanço parcial – já que remonta ao final do ano anterior sua recapitulação, e sabemos que essa querela era mais antiga – das revistas que vinham se debruçando sobre o embate entre o realismo e a abstração. Segundo Bazin, na coluna Revue des Revues, René Lacote analisou o debate que se estendia por uma série de revistas francesas sobre o realismo. Segundo o autor, este tinha sido inaugurado em novembro, por Roger Garaudy, em um artigo na Arts de France, revista onde foi publicado o artigo de Bazin. Emmanuel Mounier, depois de tentar estabelecer uma posição em janeiro na revista Esprit, consagrava “à querela do realismo” o número seguinte da mesma revista. A revista Rénovation também publicava naquele ano um texto (de Bob Claessens) sobre o assunto.

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O semanário Action abordava a questão no seu número 9, dedicado à abstração, escrito por Georges Limbour (Bazin, 1947). O artigo de Garaudy, citado por Bazin, foi ilustrado com trabalhos de Portinari. Nele o filósofo discorria sobre o que seria “marxista? As pesquisas de vanguarda ou o assunto?”. Garaudy afirmava que não havia “uma” estética marxista, pois “o marxismo não é uma prisão”, e falava de um regime detestável que teria produzido a destruição do homem, criando a bomba atômica e o divórcio entre a razão e a emoção. Sem fazer referência explícita a uma disputa política travada no campo estético, Garaudy contrapunha o realismo à abstração da mesma forma como o socialismo ao capitalismo (Garaudy, 1946, ênfases no original). As transformações no contexto geopolítico após a Segunda Guerra tiveram grande influência no debate artístico no que concerne às disputas internas aos contextos nacionais entre críticos que defendiam o naturalismo na arte e os defensores da abstração, mas também nas disputas internacionais referentes ao lugar de Paris no novo contexto (o reconhecimento do estilo pictórico de Portinari como um caminho possível estava aí incluído) ou os EUA e o discurso da representação abstrata. Segundo Serge Guilbaut (1996), foi entre 1946 e 1948 que começaram a se consolidar as reestruturações e redefinições das tendências políticas e artísticas nos EUA. As tentativas a racionalizar e normalizar a bomba atômica eram consideradas desconcertantes. A ideia de que a bomba não tinha sido o produto maquiavélico de um cientista, mas do trabalho de centenas de trabalhadores que não percebiam a finalidade última de seu trabalho era incompreensível. O vocabulário realista na arte passava a ser considerado como incapaz de dar conta do horror, já que descrevê-lo era, em certa medida, aceitá-lo. Instalou-se nos EUA o pânico do comunismo como forma de colocar em prática a política internacional (fascista) do presidente Truman. Em 1947, o ministro da justiça organizou uma lista de organizações consideradas subversivas. Era o início da “caça às bruxas” e da desintegração de um grande número de clubes e associações.

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Essa lista, “aliada aos processos de coerção (propaganda, imprensa e educação) colocaram em marcha o processo de supressão de toda discussão política” (Guilbaut, 1996, p. 178). A tensão entre os EUA e a USSR cresceu a ponto de haver a possibilidade de uma nova guerra, em março de 1948. De acordo com Guilbaut, o artista do pós-guerra nos Estados Unidos deixara de ser considerado como uma das vozes da revolução e passara a ser concebido como o guardião do ideal liberal e democrático. Esse discurso, aliado ao investimento na reconstrução e aos constrangimentos políticos aos quais os países se submeteram, tornava a linguagem abstrata uma imagem alternativa plausível de modernidade e desenvolvimento. Nos anos de 1947-1948, a abstração tornou-se establishment nos EUA. Os fundamentos desse novo estilo nos discursos dos críticos de arte eram as noções de alienação e liberdade do artista. A relação da noção de ideologia com a ideia de alienação não pode ser subestimada, mas, se em um primeiro momento essa ideia pode ter sido utilizada tomando o modelo marxista de análise, a partir de 1948 a psicologia passou a formar a malha teórica das críticas de arte norte americanas (principalmente na Partisan Review, revista da qual James Johnson Sweeney, futuro presidente da Aica, integrava a equipe editorial). Para Guilbaut, nesse processo “o indivíduo substituía a história e as relações sociais” (1996, p. 199). Pedrosa percebia as transformações em curso e alertava em um artigo onde comentava a exposição de Portinari, em Paris: “O mundo se tornou menor, as áreas de periferia, outrora vagas regiões coloniais que Paris batizava da expressão desdenhosa de ‘là-bas’, aproximaram-se, cada vez mais do centro, numa permuta de irradiação cultural de que nem sempre o melhor é dado por esse mesmo centro. O mundo colonial se identifica de mais a mais ao mundo metropolitano. Paris, em suma, não decide mais do gosto do mundo nem das suas tendências mais modernas e expressivas” (Pedrosa, 1946). Optar pela defesa de uma ou outra forma de representação era posicionar-se diante dessas transformações. Falando da volta de Portinari de Paris e de sua consagração por lá, Pedrosa anunciava sua plataforma artística ao declarar esperar que

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“o artista brasileiro tenha voltado com maior compreensão da própria obra. Paris lhe deve ter sido um excelente ponto de referência, para, por ela, aferir a sua evolução e tendência mais profundas. Para um artista consagrado como Portinari, a conquista maior que ele poderia trazer de Paris, não são receitas ou influências de moda ou estranhas à própria arte, mas a independência, a independência para com escolas e modas, teorias e sistemas, a lucidez interior irredutível” (Pedrosa, 1946).

A Unesco e a internacionalização da arte

Em grande medida, a autoridade dos intelectuais é proveniente do discurso da autonomia. O debate a respeito da “arte pura e arte engajada” que reaparece periodicamente é ele mesmo parte do processo de revisão e afirmação constante dessa autonomia e consequente reforço da autoridade política através de um engajamento fundamentado na enunciação da objetividade. O embate entre os defensores da figuração versus aqueles que exaltavam as qualidades instrumentais dessa forma de representação foi parte também do processo de revisão da relação do fenômeno artístico com outras dimensões sociais, isto é, de sua relativa autonomia. Principalmente nos quinze anos após o final da Segunda Guerra, o fenômeno artístico hegemônico, até então exclusivamente concentrado na Europa Ocidental, ganhou novos contornos ao incorporar também atores sociais e instituições da Europa do leste, da Ásia e das Américas. Intensificaram-se as trocas de objetos artísticos, pessoas e ideias através de novas instituições internacionais, como a Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica), o International Council of Museums (Icom), a Associação Internacional de Artes Plásticas (AIAP), o Comitê Internacional de História da Arte (CIHA), os museus de arte moderna que começaram a ser inaugurados em diversos países e as bienais internacionais. Grande parte dessas associações não governamentais relacionadas à arte e ainda outras atuantes em diferentes dimensões das manifestações artísticas, como o teatro, o cinema, a música etc., fizeram

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parte de uma “extensão” do quadro de funcionários da Unesco. Essa organização investiu na ideia de estimular o processo de formação de instituições transnacionais com o ideal de contribuir para a manutenção de relações diplomáticas amigáveis entre os países a partir da educação, da ciência e da cultura. Essa era uma forma de expandir sua atuação na execução de seu projeto geral. Esse conjunto de organizações acabou por engendrar formas administrativas e sistemas simbólicos comuns nos Estados nacionais aos quais estavam vinculadas, mesmo que tivessem significados e funcionamentos diferentes dentro de cada país. O contexto internacional ganha existência física em momentos rituais como as conferências internacionais, assim como uma aparência burocrática nas agências internacionais e uma instância definidora de conhecimento nos relatórios globais produzidos por essas agências. É desse princípio que parto para pensar em um contexto internacional de debates sobre arte moderna, que se materializa nos congressos internacionais da Aica, em torno de temas comuns como o debate entre figuração e abstração, por exemplo. As conferências internacionais organizadas por essas instituições, assim como pela própria Unesco, podem ser tomadas como a manifestação física de um contexto internacional cujo espaço político tem aí seus momentos rituais e instâncias definidoras de conhecimento nos relatórios então produzidos.52 Os arquivos da Aica se apresentam assim como fórum privilegiado para a observação desse processo de elaboração de um discurso artístico internacional e suas nuanças nacionais. Esse novo perfil do fenômeno artístico, mais extensivo e intensivamente internacional, assim como o contexto geopolítico cada vez mais tenso rumo à Guerra Fria, favorecia o estabelecimento de um discurso que procurasse se situar o mais distante possível de questões heterônomas à apreciação estética. Uma das características dessas organizações foi a contradição entre uma ideologia supranacional e os sistemas administrativos estruturados a partir das divisões nacionais. Essa característica teve influ52 Cristiana Bastos (1996) menciona essa ideia de um contexto internacional para falar da formação de um conhecimento sobre Aids.

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ências também para o processo de constituição do campo internacional de discussão sobre artes plásticas: a Associação Internacional de Críticos de Arte, assim como essas outras instituições internacionais, se estruturava a partir da noção de Estados nacionais, ainda que idealmente almejasse a superação das clivagens nacionais. Desde o final da Primeira Guerra, as artes já vinham sendo incorporadas na diplomacia internacional, mas isso ocorria principalmente através dos museus e dos debates em torno da restituição de obras de arte que haviam trocado de mãos durante as guerras. Com o objetivo de pensar o aproveitamento da arte na educação e o intercâmbio da produção e dos produtores artísticos, a Unesco acabou ampliando o foco de interesse, antes estritamente colocado sobre as obras, para incluir também os artistas e toda a gama de profissionais envolvidos no fenômeno artístico. Através da Associação Internacional de Críticos de Arte é possível acompanhar a tentativa de compreensão das delimitações nacionais da arte moderna, assim como o paulatino estabelecimento da arte contemporânea, em grande medida temporalmente definida, mas que teve como uma de suas características discursivas mais fortes a noção de internacionalidade. Paradoxalmente, o discurso internacionalista da arte contemporânea negava, implícita ou explicitamente, as delimitações culturais, territoriais e temporais presentes na própria noção de internacionalidade. Em 1946, a Unesco foi inaugurada em Paris com sua primeira Conferência Geral. Foram organizadas então mostras de teatro e de dança, uma exposição de ciências, um ciclo de palestras, mostras sobre experiências educativas e uma Exposição Internacional de Arte Moderna. Esta última foi constituída de um grupo de mais ou menos 1.000 obras de 30 países. Esses números variam conforme o documento consultado: o artigo da Time Magazine (1946) fala em 900 obras, o da France Illustration (1946) em 800 e o catálogo da mostra em 1.000. O número de países também varia entre 27 e 30. Os critérios de seleção das obras foram: sua temporalidade, ou seja, deveriam ter sido produzidas depois de 1939; o caráter representativo do país de proveniência; e a “modernidade da linguagem” (Unesco, 1946c).

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Os reflexos dessa exposição podem ser em parte observados nos relatos dos periódicos da época e na correspondência arquivada pela Unesco. Um pequeno artigo no periódico Le Monde, jornal francês de grande circulação, ajuda a compreender o acolhimento precário da mídia, comentado em correspondência interna logo após o evento (Montagner, 1946). A primeira nota sobre a mostra foi publicada no dia de sua inauguração, referindo-se a uma apresentação prévia organizada para a imprensa artística no dia anterior. Não passa despercebido o tom de ameaça com o qual o jornalista finaliza o texto: “Podemos esperar que nem tudo esteja perdido e que os organizadores tenham aprendido as palavras de cortesia e de polidez que ontem faltavam a seu vocabulário” (Le Monde, 1946). Na revista semanal France Illustration, similar na forma e no conteúdo à revista brasileira Manchete, da década de 1970, o crítico de arte Michel Florisoone questionou o objetivo da Unesco de organizar uma exposição com tal critério de seleção. O crítico usou classificações estilísticas para desqualificar o material exposto. Excetuando os franceses, os trabalhos eram, para ele, acadêmicos e, portanto, em desacordo com um dos critérios. Reclamou também da sala destinada aos únicos trabalhos modernos, aqueles dos pintores franceses, argumentando, entretanto, que isso não “machuca[va] a arte francesa, ao contrário, prova[va] abundantemente que não ha[via] arte no mundo fora da arte francesa” (Florisoone, 1946). O artigo da revista Time ofereceu, na rápida análise do material apresentado no evento, um panorama que parece ser mais condizente com a repercussão que o material artístico produzido fora da França teve na ocasião. A coluna tratou de alguns artistas individuais e não de conjuntos nacionais. A análise da revista condizia com algumas das apreciações qualitativas expressas na correspondência institucional arquivada pela Unesco. Segundo o artigo, para além da constatação da influência francesa na arte de outros países, chamaram a atenção os trabalhos de alguns artistas estrangeiros: Jamini Roy, um artista de Calcutá que teve seu trabalho classificado pelo jornalista como “primitivo” (entre aspas no original); um mural pintado na parede de Umuahia por um artista ni-

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geriano desconhecido (o mural foi fotografado pelo Diretor-geral da Unesco, Julian Huxley, que emprestou a foto para a mostra); Pou Jou, um chinês que baseava seu trabalho nas tradições chinesas do século VI; e os artistas haitianos cujos trabalhos foram estimulados por um californiano, Dewitt-Peter, que se mudara para Port-au-Prince e abrira uma escola de arte que, no ano seguinte, começaria a se expandir para outras cidades do país com a ajuda do governo local. O descaso dos comentadores em relação à mostra organizada pela Unesco fica explícito na escassez de material sobre ela nos periódicos locais. Se os valores do fenômeno artístico são produzidos pelos debates entre os atores desse campo, é importante levarmos em conta que o silêncio é o instrumento de censura mais eficaz que os críticos de arte têm. Os representantes de alguns países participantes da exposição enviaram correspondências questionando a impressão que as obras enviadas causaram. Como resposta, os organizadores mencionavam sempre um desses três artigos, como consagração do evento, sem explicitar o seu conteúdo. Na investigação, a dificuldade inicial de encontrar artigos sobre o evento levou-me a imaginar que a exposição não tivesse, enfim, saído do papel. Esse é o poder dos discursos: falar sobre os artistas e eventos dá existência a eles. A falta de comentários sobre a exposição, entretanto, não dizia respeito necessariamente à qualidade das obras apresentadas. Parte dos países que enviaram trabalhos para o evento aproveitou o material que já estava em Paris para apresentá-lo em exposições com recortes nacionais. Os artigos publicados sobre essas mostras subsequentes indicam uma receptividade por parte dessa mesma mídia artística diferente daquela experimentada em relação à mostra organizada pela Unesco. O crítico de arte francês Jean Leymarie (1946) comentou na época: “as exposições estrangeiras se multiplicam. Paris, lar de inspiração da arte moderna, tornou-se espelho e juiz. Além da confrontação geral organizada pela Unesco no Palácio de Nova York, muitas sessões nacionais se apresentam separadamente: assim a jovem pintura turca no museu Cernuschi, a arte suíça contemporânea na galeria Charpentier e após três de dezembro na Orangerie des Tuilleries, Trinta anos de

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pintura e esculturas tchecoslovacas”. A exposição turca foi elogiada pela jornalista encarregada de cobrir o evento (Auboyer, 1946), e sobre a exposição belga o comentador argumentou que se era possível lamentar a falta de alguns artistas belgas, “os artistas expostos na Orangerie servem como bons embaixadores para nos incitar a alargar o círculo de conhecimento da pintura belga” (Sjöberg, 1946). A participação do meio artístico francês, para além das próprias obras de arte, ficou restrita quase somente ao texto de apresentação do catálogo escrito por Jean Cassou, então diretor do Museu de Arte Moderna. O catálogo abria com uma lista de nomes importantes do universo artístico francês, que se apresentava como comitê responsável pela exposição. “René Huyge (conservateur en chef du départment des peitures au Musée du Louvre), Germain Bazin (conservateur au département des peintures au Musée du Louvre), Raymond Cogniat (inspecteur des beaux-arts, rédacteur en chef d’Arts), Pierre Guastalla (président de l’Union des Arts Plastiques), Jean Cassou (conservateur en chef du Musée d’Art Moderne), Bernard Dorival (conservateur au Musée d’Art Moderne), Agnès Humbert (assistante au Musée d’Art Moderne), Richard Carline (conseiller consultant spécial de l’Unesco pour l’Exposition Internacionale d’Art Moderne), Carola Luke (assistante de l’Unesco pour l’Exposition Internacionale d’Art Moderne)”. Entretanto, logo em seguida a essa lista de nomes ilustres, vinha a explicação da função desse comitê: a escolha dos lugares onde pendurar as obras (“comitê pour le choix des emplacements”) [Unesco, 1946c]). Cada comissão nacional dos países que participaram da Exposição foi incumbida de escolher e enviar as obras que deveriam constar na mostra. Foi sugerido que profissionais especializados de cada país participassem no processo de seleção das peças, mas não houve nenhum contato entre os comitês nacionais de seleção e o comitê francês. Nenhuma estratégia de imprensa, além do convite aos jornalistas para a pré-estreia, foi elaborada para a divulgação do evento. O Brasil teve como comissão de seleção o crítico de arte Sérgio Milliet e os escritores Alfredo Mesquita e Rubem Borba de Morais (Carline, 1947). Entretanto, o desconhecimento da crítica local dos artistas e críticos consagrados em outros países talvez tenha contri-

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buído para que a exposição ganhasse também um caráter burocrático. Isso fica evidente por um conjunto de correspondências trocadas entre funcionários da Divisão de Artes e Letras da Unesco e funcionários de outras entidades relativas à elaboração de outras exposições, que comentaram a necessidade de evitar a “natureza oficial” (Unesco, 1948b) que a Exposição Internacional de Arte Moderna tinha adquirido. Estava em questão aí a legitimidade dos participantes das comissões de seleção, mas também valores estéticos versus valores heterônomos. A organização dessa primeira mostra de artes plásticas, empreendida pela Divisão de Artes e Letras, parece ter funcionado como um alerta para a influência que os diferentes sistemas de cooperação que constituem o fenômeno artístico podem ter ao intervir na forma de recepção final da produção e dos eventos. Era preciso garantir a cooperação positiva por parte dos diversos profissionais relacionados ao fenômeno para que um evento pudesse obter o resultado esperado em seu meio específico e, com isso, também em uma dimensão diplomática mais ampla. A relação entre a dimensão propriamente artística de um evento mostrava-se inseparável de outras dimensões sociais, mas também como uma esfera específica com normas e valores particulares. Além disso, a mediação feita pelos profissionais que se encarregavam da difusão dos eventos aparecia como dimensão imprescindível no programa político-cultural da Unesco. No caso das artes plásticas, essa difusão deveria ser feita pelos profissionais que participavam do que na época era classificado como imprensa artística. Essa categoria estava organizada em um sindicado presidido por Raimond Cogniat, um dos organizadores do primeiro Congresso Internacional de Críticos de Arte (Aica, 1948; Aica, 1961). Parte dos membros dessa imprensa artística participou mais tarde das associações de críticos de arte francesa e internacional. Entre os documentos da Aica, pode-se observar a preocupação em mapear os periódicos para os quais cada membro da associação internacional e das associações nacionais escrevia. Também encontrei, após a inauguração da Aica, solicitações da Unesco de listas de críticos e dos periódicos

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para os quais estes escreviam para divulgação de seus eventos. Isso indica que o mutismo em relação à Exposição Internacional foi eficaz como demonstração de poder, explícita na ameaça do jornalista do Le Monde (1946). Não encontrei nenhum documento nos arquivos da Unesco que discutisse a organização de um congresso de críticos de arte ou o estímulo à formação de uma associação internacional dessa categoria profissional. Entretanto, durante o primeiro Congresso Internacional de Críticos de Arte (Cica), em 1948, Mojmir Vaněk, responsável pela sessão de Belas Artes da Comissão Preparatória,53 argumentou que a ideia de convocar aquele congresso surgiu na primeira Conferência Geral da Unesco, no final de 1946, como desdobramento dos objetivos daquela instituição em relação ao domínio artístico. Ao contrário das reuniões da Conferência Geral da Unesco, os relatórios que foram publicados e arquivados da então denominada divisão de Artes Criativas54 não são a transcrição completa dos processos verbais, e sim os relatórios revisados desses processos. O que para meu propósito poderia ser esclarecedor, pode ter sido, na época, excluído como informação irrelevante para constar em um relatório que visava publicar as decisões e objetivos das discussões travadas. Esses relatórios eram enviados para os representantes das sessões nacionais, que discutiam os assuntos tratados pelas diversas divisões durante a Conferência Geral e definiam as resoluções a serem publicadas no relatório final. Assim, o discurso de Vaněk nos serve como um indício sobre os fundamentos da criação da Aica. Vaněk apresentou sucintamente os objetivos da Unesco, procuran53 Nos arquivos da Comissão Preparatória, não encontrei o nome de Mojmir Vaněk. O crítico de arte da antiga Tchecoslováquia apareceu pela primeira vez nos documentos investigados como um dos vicepresidentes do primeiro Congresso Internacional de Críticos de Arte, em 1948. Dois outros nomes de representantes tchecoslovacos constam nos processos verbais dos debates sobre artes da Comissão Preparatória da Unesco, mas não o de Vaněk. Entretanto, Hélène Lassalle (2002), que foi secretária da Aica durante alguns anos, cita Vaněk como tendo pertencido à Comissão Preparatória. Como não descobri nenhuma outra ligação de Vaněk com a Aica e a Unesco assumi essa como a mais provável. 54 Durante a primeira Conferência Geral, reclamou-se que esse nome não tinha significado algum em francês e reivindicou-se a denominação Artes & Letras. A comissão que cuidava de assuntos relativos à dimensão artística no Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (IICI) era denominada Lettres et Arts, e a agência estatal francesa que cuidava de assuntos relacionados a essa mesma esfera era Arts et Lettres, o que deve ter sugerido o nome da futura comissão da Unesco.

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do situar o papel da Aica em relação a eles: o estudo do lugar das artes na educação geral; a constituição de um serviço de documentação e informação sobre artes; o encorajamento da livre circulação de obras de arte e de artistas; o desenvolvimento dos métodos de reprodução de obras de arte; e o estudo do folclore e das formas de preservação da arte indígena. Havia uma aparente contradição nos objetivos da organização, que pretendia, por um lado, estimular as trocas culturais a fim de contribuir para o ingresso dos países não industrializados na modernidade, e, por outro, preservar e desenvolver as características ou singularidades culturais através do estímulo às manifestações culturais locais. Por um lado, estimular as transformações sociais (industrialização), por outro, preservar as tradições (manifestações culturais locais). Segundo Vaněk, a constituição de uma associação de críticos de arte facilitaria a defesa dos interesses profissionais da categoria e ainda permitiria que estes colaborassem, como uma “organização de especialistas”, em projetos que “por uma ou outra razão a Unesco não pudesse realizar” (Vaněk, 1948). A divulgação e a consagração de exposições e eventos artísticos eram algumas das formas de colaboração desses críticos de arte organizados. Com a extensão dos arquivos da Unesco e a restrição temporal para a realização dessa investigação, é possível que os documentos específicos onde se decidiu pelo incentivo do congresso que levou à instituição da Aica não tenham sido encontrados ou tenham passado despercebidos. No entanto, dos documentos investigados, foi possível supor que a formação da Associação Internacional de Críticos de Arte tenha sido pautada, em certa medida, pela demanda, por parte da Unesco, por informações sobre a produção artística que ainda não havia sido estudada e catalogada pela história da arte e, em parte, pelo interesse dos críticos de arte em ver essa categoria profissionalmente reconhecida. Segundo Jacques Leenhardt, ex-presidente da Aica, a instituição dessa associação foi também uma ruptura com a história da arte, na medida em que as universidades não aceitavam pesquisas sobre artistas contemporâneos.55 A Aica foi então o espaço no qual aqueles que se 55 Comunicado pessoal à autora em maio de 2007.

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interessavam em desenvolver trabalhos sobre essas manifestações podiam discutir comparativamente as ideias, terminologias e abordagens. Veremos adiante como esses profissionais procuraram então construir sua diferença em relação ao papel dos historiadores da arte. A ideia da formação de um centro de informações e documentação sobre essa produção recente estava relacionada também ao interesse da Unesco no estímulo à circulação de pessoas e bens. Esse interesse situava a associação de críticos de arte, no que tange à classificação das sessões nas quais se dividia a organização, na mesma categoria em que estavam classificados “museus e bibliotecas” ou “ciências e filosofia”, e não junto às “humanidades”, categoria na qual se encontrava a história da arte e a arqueologia. As artes plásticas passavam a fazer parte de uma “história do tempo presente”. A pouca visibilidade da Exposição Internacional de Arte Moderna, durante a primeira conferência geral, indicava a necessidade de ter os profissionais que trabalhavam com a divulgação de eventos artísticos junto à mídia impressa como aliados. Ao mesmo tempo, as avaliações em relação a essa exposição indicam que se imaginava para a Unesco o papel de apresentadora de novos talentos,56 o que consistiria em mais um estímulo para a constituição de um centro de informações sobre artistas vivos. O relatório referente a um Bureau International de Documentation Artistique, discutido durante o primeiro Congresso Internacional de Crítica de Arte, apresentava como objetivo “que sejam organizadas as informações e as trocas artísticas no plano internacional” (Cica, 1949). Esses interesses criavam uma distinção entre as obras e os artistas que pertenciam ao passado e aqueles que se situavam em uma temporalidade indeterminada que viria aos poucos a ser classificada como arte contemporânea.57 O desinteresse por parte 56 Um documento interno de avaliação reclamava que nada de inovador havia sido apresentado naquela primeira conferência. 57 Segundo Heinich, a arte contemporânea está entre uma dupla ambigüidade: entre divisão cronológica e categoria estética e entre qualificação e desqualificação. Trata-se ao mesmo tempo de uma temporalidade factual, com base cronológica, e uma temporalidade normativa, com base estética. Aos olhos da lei, a definição é estritamente cronológica, portanto em perpetua evolução, trata-se de obras de arte de artistas vivos ou que tenham morrido a menos de vinte anos; para os leiloeiros, é também a cronologia que prima, mas trata-se de arte posterior a 1945, para os conservadores de museus, sua concepção é ao mesmo tempo cronológica e estética, pois trata-se

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dos museus pela produção dos artistas vivos é explícito na comunicação de Hélène Adhémar, assistente do departamento de pintura e desenho do Museu do Louvre, que falou da existência de um arquivo embrionário sobre todos os pintores franceses “excluindo os pintores vivos” (Adhémar, 1948). Esse processo de delimitação e classificação da produção artística contemporânea foi simultâneo a outros debates e transformações no campo artístico, identificáveis através das discussões travadas nos congressos internacionais organizados pela Aica. A reflexão sobre o papel do crítico de arte, a tentativa de definição dessa categoria profissional em relação à de historiador da arte e de artista plástico e a reflexão sobre a produção pós-impressionista classificada como arte moderna, os debates sobre os direitos autorais, o papel da arte na educação secundária e a definição da arte moderna como nacional, internacional ou universal, são alguns dos temas que podem ser identificados na documentação arquivada pela Aica. Estado nacional e nacionalismo foram algumas das principais categorias a partir das quais se estruturaram os debates durante esses congressos, como é possível perceber pelas temáticas que lidavam com arte e estado, correntes nacionais etc. Assim, no primeiro Cica, além de algumas apresentações tratando da gênese do congresso e da relação deste com a Unesco (Vaněk, 1948; Cogniat, 1948; Cica, 1948), foram discutidos temas como a importância do conhecimento da produção de outros países, além dos países europeus e norte-americanos (Piérard, 1948) e a relação entre “l’Art et l’État” (Lelièvre, 1948). Em 1949, quando foi fundada a Aica, enquanto Sweeney (1949) falou da necessidade de se deixar de lado a noção de nação, Frank Rubin (1949), crítico dinamarquês, falou da “cultura dinamarquesa”, expressa na “arte, nas organizações artísticas e na vida prática”. O crítico Eduardo Vernazza (1949), do Uruguai, falou das “grandes correntes nacionais”, e Chou Ling (1949), das “grandes tendências da pintura contemporânea na China”. Mesmo os trabalhos que se debruçaram sobre linguagens plásticas estavam de uma noção que limita a arte moderna a 1960 e situa a arte contemporânea depois disso até nossos dias (Heinich, 1993). É a essa confusão que a reclamação sobre a falta de novos talentos mencionado na nota anterior se remete.

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em geral voltados para a disputa entre figuração e abstração ou realismo e abstração, que estavam em grande medida relacionadas aos debates sobre ideologias de administração de Estado e nacionalismo. Essa linha de debates com preocupações com delimitações nacionais e o caráter ideológico da produção de cada país se prolongaram durante toda a década de 1950. As forças de maior ascendência no processo de seleção das temáticas que conduziram os debates nos congressos da Aica durante o período investigado foram a filiação da Aica à Unesco e a influência da geopolítica. Na França, por exemplo, Jean Cassou (1945) criticou os artistas franceses que tinham aceitado ir à Alemanha a convite de Hitler (não ficou claro o ano em que isso aconteceu). Ele aceitava a condição de que a arte estivesse acima das questões estritamente nacionais, mas cobrava uma atitude ética dos artistas. Assim, a noção de “universalidade” de valores defendida no fenômeno artístico não era justificativa para uma despolitização diante de questões morais objetivas. A desnacionalização da arte não deveria coincidir com a sua deseticização. Duas formas de justificação diferentes dos atores para apoiar ou criticar as atitudes dos artistas perante as questões da época (através de seus atos ou obras) podem ser identificadas: uma “crítica social”, que reivindicava o posicionamento político diante dos interesses coletivos, e uma “crítica estética”, que privilegiava a singularidade a partir da noção de autenticidade, cada uma com sistemas de valores próprios. É nos textos da Internationale Situacionniste (que no final da década de 1950 escolheu um congresso internacional da Aica como espaço de manifestação dessa insatisfação) onde se pode achar as melhores exposições da formulação de uma crítica artística. Boltanski e Chiapello (1999) mostram que os valores da arte e do artista moderno foram incorporados nas críticas ao capitalismo do final da década de 1960, quando se constituiu uma contestação dos valores do sistema. Entre outras, a crítica artística reclamava da inautenticidade dos objetos, pessoas e sentimentos e da opressão que se opunha à liberdade, à autonomia e à criatividade. É a separação desses dois sistemas de valores, a “crítica social” e a “crítica estética”, e a definição dos valores da “crítica estética” que es-

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tarão em questão ao longo do processo de redefinição da autonomia artística no Brasil no período investigado.

Vocação, singularidade e marginalidade

Se a dimensão político-partidária é importante para explicar a defesa ou não do realismo e da abstração, ela não é suficiente para compreender os conjuntos de valores que esse debate colocava em questão. Parece pertinente fazer uma breve recapitulação das transformações no estatuto do artista na Europa a partir do século XVIII, para entender o sentido histórico que noções como vocação, boemia, autenticidade e marginalidade têm para o fenômeno artístico, para então acompanharmos a paulatina introdução desses valores no discurso dos atores sociais brasileiros. Segundo Heinich (2005), a partir da Revolução Francesa, a arma na luta pela liberdade do artista em relação a leis que decretavam que os trabalhos artísticos fossem registrados antes de serem comercializados foi uma distorção no sentido do termo liberdade, afastando-o do sinônimo “liberalidade” (por oposição aos constrangimentos corporativos) e reconhecendo a particularidade da atividade artística, isto é, sua autonomia: não mais liberal no sentido de privilégio (no momento que estes estavam sendo abolidos), mas libertária (a liberdade como especificidade da arte, isto é, sua não subordinação a critérios heterônomos). Não se tratava mais, como havia sido o caso no século XVIII, do reconhecimento de um estatuto de profissão liberal que associasse pintores e escultores a escritores e sábios, mas a reivindicação da particularidade do artista. O debate em torno dessa reivindicação mostra como a tentativa de abolir os privilégios em nome da igualdade era inconciliável com a ideia de singularidade do fenômeno artístico implícita na noção de excelência dessa dimensão social, usada como recurso discursivo na busca pela liberdade. Durante o século XIX, os autores românticos construíram paulatinamente o paradigma do artista moderno, em parte através da substituição do aprendizado profissional ao qual a atividade artística anterior à Revolução Francesa estava vinculada, pela noção de vocação.

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A vocação é um conceito originalmente constituído dentro da tradição religiosa e estava relacionado ao chamado, isto é, uma relação pessoal com a divindade na qual estavam envolvidas questões como a graça, a salvação etc. Duarte e Giumbelli (1995) procuram mostrar o papel central que a religião cristã teve na formação de uma visão de mundo moderna, na qual a interioridade representa o papel central, mesmo no que tange a instituições e costumes que pretendem se situar distantes dela. A noção de Bildung formalizada na Alemanha do século XVIII, por exemplo, seria a noção de uma “singularidade do espírito individual, reconhecível, sobretudo, pela máxima exploração da ‘sensibilidade’ (tanto na acepção sensória quanto emocional)”, através da qual a interioridade atingiria seu máximo apogeu. Os autores mencionam a teoria da obra de arte de Karl Philipp Moritz, que se remete à interiorização na qual “é o trajeto pessoal que se converte em alvo. A religiosidade é já agora, porém, toda interior; a arte, a Grande Arte do século XIX, será o templo do culto à criação individual, a nova fonte permanente de verdade” (Duarte e Giumbelli, 1995, p. 105). Do processo de desmagicização do pensamento ocidental moderno, o conceito religioso foi adquirindo uma forma laicizada da qual desapareceu a ideia de uma divindade exterior em relação à qual se é chamado, e constituiu-se a ideia de uma divindade interior ao próprio sujeito. Max Weber (1982, 1969) apresentou em dois textos a vocação na ciência e na política. Esses desenvolvimentos podem ser relacionados à noção de vocação com a qual estamos trabalhando nesta investigação do fenômeno artístico moderno. A vocação estaria relacionada à ideia daqueles que vivem “para” uma causa e lutam “por sua obra” (Weber, 1982, p. 100): viver “para” a arte, mas não necessariamente “da” arte e fazer da arte a sua vida num sentido interior. A vocação tem para Weber uma dimensão de realização no mundo e não só de chamado interior. Essa realização deve se dar a partir de escolhas equilibradas entre as determinações externas (ou a ética da responsabilidade) e os valores internalizados pelos indivíduos (ética da convicção), entre a objetividade no sentido de dedicação apaixonada a uma “causa” e uma distância em relação às coisas e aos homens como forma de superar a vaidade. A vocação,

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para o autor, tem relação com a interioridade e se ancora em noções como intuição, inspiração e imaginação. O surgimento da ideia do gênio está associado a estes processos de formação da pessoa com uma ênfase crescente na interioridade, na subjetividade ancorada na ideia da criatividade. Nessa versão laicizada da vocação as disposições incorporadas, em parte de modo inconsciente, são as formas de qualificação dos atores, e sua propriedade fundamental é a ideia de motivações interiores e não de heterodeterminações. A singularidade então é a qualidade desses atores, movidos por uma ética de princípios internalizados. A noção de singularidade passou a referir-se à excelência que, no lugar da capacidade de seguir os cânones, definia o valor de criador. O artista devia provar sua originalidade mostrando que podia ao mesmo tempo exprimir sua interioridade de forma tal que ela alcançasse uma universalidade. A aprendizagem artesanal foi assim excluída desse mundo da vocação e substituída pela noção de dom, uma transmissão pela iniciação própria ao regime vocacional. O entusiasmo, a compulsão, o delírio inspirado são parte dessa concepção de arte que se opõe à aplicação de regras. A ideia de uma possessão mística faz do trabalho artístico uma coisa individual. O artista se torna a arte em pessoa, e o produto final é resultado da convulsão do gênio (oposta à lenta maturação da técnica), somente para os eleitos e quase patológica, singularizada muitas vezes pela loucura (Heinich, 2005). Referindo-se ao romance Le chef-d’oeuvre inconnu, “marginalidade da boemia, mistério da iniciação, entusiasmo de um gesto criador mais que reprodutor, magia transcendendo a técnica, dom inato, mestre fazendo função de médium mais que de professor, sopro divino transpassado no corpo do artista, ascese de uma vida extensa em direção à sobrevivência do nome no além, onde a pobreza material é como a confirmação da posteridade espiritual: assim se explicita na pena de Balzac, pela primeira vez na história da literatura, o paradigma do artista romântico”, é como Heinich define a noção de singularidade apoiada na vocação (2005, p. 19-20). São esses os valores que serão evidenciados nos congressos da Aica e que ganharão no Brasil lugar hegemônico, deslocando os valo-

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res da tradição e da técnica que vigoravam no modernismo representado por Portinari. Essa revisão foi devedora em grande medida da participação de Mário Pedrosa nos congressos da Aica, assim como a sua dedicação ao ofício da crítica de arte no Brasil.

As especificidades do trabalho artístico

De volta ao Rio de Janeiro em 1945, Mário Pedrosa fundou o jornal trotskista Vanguarda Socialista. Logo no primeiro número do periódico, o artigo “O museu de arte moderna como centro de refúgio”, de Anabell, introduzia o assunto da arte moderna usando a metáfora da imigração para falar não somente dos artistas, mas também das obras que, devido à guerra, tinham se transferido para os Estados Unidos. Mencionando o Museum of Modern Art de Nova Iorque (MoMA) como um dos museus que fugia aos moldes clássicos se colocando “na vanguarda da evolução artística”, a autora discorreu sobre manifestações da vida moderna cuja combinação entre arte e indústria as situasse em uma categoria artística, como o design e a moda, que encontravam acolhida naquela instituição. Anabell fez uma apresentação do “prédio inaugurado em 1929, moderno em todos os detalhes de arquitetura, instalações, mobiliário, etc.” (p. 2), falou das salas de espetáculos para acolher o cinema, do serviço de publicação e das aulas de arte, onde “não se aprende a usar o prumo e o esfuminho [mas onde] a infância e a juventude dão livre curso à imaginação criadora, com maior espontaneidade” (p. 6). Nenhuma aproximação entre arte e pertencimento de classe ou concepção ideológica foi mencionada. Esse artigo é parte de um conjunto de textos que delineia perspectivas diferentes sobre arte: os artigos publicados nos periódicos O Homem Livre e Vanguarda Socialista, principalmente por Pedrosa e Geraldo Ferraz. O ensaio sobre o MoMA, que inaugura a reflexão sobre arte naquele periódico, e outros artigos referentes à arte aí publicados podem ser compreendidos como uma revisão da posição anterior que Pedrosa expressou em O Homem Livre. Todos os artigos anteriores defendiam, com maior ou menor ênfase, um estilo artístico

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específico: a arte deveria estar ligada à temática proletária e os artistas deveriam ser nitidamente posicionados em termos políticos. Nesses artigos, os críticos detinham-se principalmente na temática e na trajetória do artista, e não se fazia a distinção de uma especificidade do trabalho artístico. Seguindo a crítica marxista da separação entre trabalho manual e intelectual como parte essencial dos conflitos de classe, a arte era tomada nos artigos de O Homem Livre como um trabalho manual como outro qualquer, e como tal não deveria contar com nenhum tipo de prerrogativa e devia ser colocada a serviço dos interesses coletivos. No conjunto de artigos publicados no Vanguarda Socialista, nenhum deles assinado por Pedrosa, percebe-se um novo enfoque. À arte passou-se a atribuir uma especificidade que era contraditória com uma definição temática a priori e a defesa de uma forma de expressão exclusiva, o realismo (ou figuração). A ideia da arte como um processo de criação individual ganhou ênfase em oposição explícita à noção de que o trabalho artístico devesse estar submetido aos mesmos constrangimentos econômicos, políticos e organizacionais que qualquer outra profissão. O pertencimento de classe (a figuração ou o realismo como temática proletária) ou nacional (a representação da brasilidade dominante, com ênfases diferenciadas desde as primeiras décadas do século XX), que havia definido as temáticas privilegiadas até então, não estava mais em voga. Ao longo dos três anos de circulação do periódico, seis artigos (além daquele sobre o MoMA) parecem relevantes. Três deles procuram mostrar o uso instrumental que o Partido Comunista, no Brasil e na Rússia, fazia dos artistas. Os outros três defendiam a arte como um processo individual, um deles sendo a tradução do artigo de Breton e Trotsky, de 1938. Vemos, por exemplo, em 1945, Geraldo Ferraz defender Portinari de um artigo que criticava suas “deformações”. O autor do artigo comentado por Ferraz, Pedro Pomar, foi classificado como um “neo-teórico de que se serviu o Partido Comunista Brasileiro, para pontificar sobre a liberdade de criação” (Ferraz, 1945, p. 2). O artigo de Pomar tinha sido publicado na Tribuna Popular, órgão de divulgação do PCB, no Rio de Janeiro. Geraldo Ferraz defendia então a

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ideia de que Portinari tinha liberdade de escolher a melhor forma que lhe conviesse para se expressar. Em outro artigo do mesmo ano, “Os artistas plásticos e o partido comunista”, Ferraz criticava a exposição dos artistas em apoio ao Partido Comunista (da qual Portinari também participara). Segundo o autor, a mostra contou em sua maioria com artistas modernos, mas o mais interessante teria sido ver pessoas que nunca se interessaram por arte prestigiarem a exposição. Ferraz argumentou que a nota do PC dizendo que a exposição era a primeira oportunidade na história das artes plásticas brasileiras na qual modernos e acadêmicos puderam expor seus trabalhos lado a lado obliterava o caráter beneficente do evento e o objetivo de conquistar adesões ao partido. Criticava ainda “os quadros e desenhos de caráter ‘social’ [que] no entendimento da turma pululam por aqui e por ali, desde a paisagem convencional das fábricas da ‘burguesia progressista’, até os heróis da frente do trabalho, como na truculenta de Sigaud58, dos estivadores, dos operários, etc.” (Ferraz, 1945b, p. 2, ênfases no original). Em outro artigo, vê-se ainda que a defesa de Portinari não era incondicional. Mas também é possível notar que as críticas ao pintor tinham que ser conduzidas de forma cuidadosa. No início de 1946, o artigo “Assim falou Portinari” criticava a palestra oferecida pelo pintor na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). O artigo comentava a contradição do pintor, “tão aristocrático, retratista de belas e cuidadas damas de nossa melhor sociedade”, em falar que “só é arte aquilo que está ligado ao povo, nesse complexo de nivelamento que envolveu as criaturas da procissão prestista”. E complementava em tom sarcástico: “Ou o povo são também as senhoras embaixatrizes?” (L.F., 1946, p. 5). Segundo o artigo, o prestígio de Portinari teria calado a crítica de arte, que não comentou o que “não é ao menos um discurso aproveitável”. L.F., escondido atrás de suas iniciais, criticou o pintor: “merece a censura e a repreensão que nossos críticos de arte e a imprensa não lhe deram, para que se não deixe pelo silêncio inferir um consentimento 58 O pintor Eugênio de Proença Sigaud (1899-1979).

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à extravagância militante da arte que o Partido Comunista quer que seja indiscriminada, admitindo tudo, mas principalmente essa que satisfaz o gosto medíocre das massas deseducadas e inconscientes, em que germinam as sementes de uma ideologia traída, na solução acomodatícia a que obriga o novo imperialismo mascarado com os andrajos da defunta pátria do proletário”. A contrariedade com relação ao PC é explícita e com ela a crítica ao chamado “realismo socialista”. Como em outros países, a opção do grupo de intelectuais que formava o Vanguarda Socialista por um “partido estético” que tivesse sido, como Trotsky, banido da União Soviética tornava a “liberdade de criação” (Pedrosa, 1949) o melhor conceito para se contrapor aos direcionamentos políticos que vinham norteando as principais concepções estéticas em vigor no Rio de Janeiro e em São Paulo. Entretanto, o silêncio da crítica mencionado no artigo e o fato de o autor não ter assinado propriamente o texto denotam o lugar de prestígio que Portinari ocupava no cenário artístico brasileiro. Podia-se defender o pintor (como feito anteriormente por Geraldo Ferraz), nada impedia também criticar a normatividade estética do Partido Comunista, mas criticar essa normatividade quando utilizada por Portinari requeria certas precauções. Esse prestígio desfrutado por Portinari deve ser levado em consideração ao tentamos compreender os passos de Mário Pedrosa no processo de estabelecimento de um novo paradigma artístico no Brasil. Desqualificar Portinari, talvez o principal representante da arte moderna do país naquele momento, sem ter ele mesmo as qualificações necessárias para fazê-lo, poderia significar sua própria desqualificação como crítico de arte. Para tanto, acompanhar cronologicamente algumas ações de Pedrosa e o contexto no qual elas se inserem contribuirá para a compreensão desse processo. É essencial saber, por exemplo, o posicionamento de Pedrosa em relação ao contexto político partidário. Em 1945, houve a legalização do Partido Comunista, a volta a público da figura de Prestes e o fim da censura. A aliança entre Getúlio Vargas e Luiz Carlos Prestes pela continuidade de Vargas até a formulação de uma nova Constituição seguia a linha determinada pela União Soviética de uma colaboração de classes à qual Pedrosa se opunha. A primeira página do primeiro

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número do Vanguarda Socialista explicitava essa oposição ao fazer uma análise da situação política defendendo Eduardo Gomes para presidência como única forma de se caminhar para a democracia. Mesmo afastado da militância institucional, Pedrosa manteve-se próximo às ideias de Trotsky. Isso é perceptível também na dimensão artística com a tradução e publicação do artigo de Trotsky e Breton (2008), no Vanguarda Socialista. O artigo foi publicado como tendo sido escrito por Breton e Rivera (Breton e Rivera, 1946), assim como feito originalmente na revista norte-americana Partisan Review. Isso conferia maior legitimidade no mundo artístico do que um artigo assinado por um político. O texto defendia a liberdade do artista como a atitude verdadeiramente revolucionária a ser adotada em relação à arte. No mesmo número onde foi publicado o artigo que defendia as “deformações” de Portinari, foi publicado o ensaio “A arte no regime socialista”. Assinado por Emilio Vandervelde (presidente da II Internacional Comunista, em 1914, quando de sua cisão), o texto era a tradução de uma conferência pronunciada por Henry Beaurieu (sobre quem nada descobri) em 1907. A conferência começava distinguindo a arte de todas as outras categorias profissionais interessadas principalmente nos ganhos financeiros. Entre as distinções enumeradas situava-se “em primeira linha, a seguinte diferença fundamental: ao passo que a produção econômica é, por excelência, domínio da disciplina, da ação combinada e da organização coletiva do trabalho, a produção estética exige, ao contrário, a mais completa, e a mais absoluta, liberdade do trabalhador individual”. O texto defendia a ideia de que em uma sociedade sem classes os artistas poderiam trabalhar sem que “a vocação artística de qualquer deles fosse contrariada” (Vandervelde, 1945, p. 3). Organização e disciplina então eram contrapostas à vocação artística e os ganhos financeiros à produção estética. O artigo não negava sua dimensão panfletária quando, na segunda parte, publicada na semana seguinte, declarava que “tudo isso [era] para mostrar que, independentemente de todas as aspirações humanitárias, os artistas têm interesse direto imediato, pessoal, em associar os esforços próprios aos esforços do proletariado para que, juntos, se pos-

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sam libertar da dominação capitalista. E somente então, quando todos os trabalhadores tiverem sido libertados, é que a arte poderá também ser libertada” (Vandervelde, 1945b, p. 6). A presença desses artigos em um periódico cujo interesse central era o debate político59 indica a relevância da dimensão artística naquele momento. O mesmo número onde foram publicados a primeira parte do artigo de Vandervelde e o artigo que defendia Portinari contra as críticas de Pedro Pomar trazia também uma nota não assinada argumentando que, em 1944, Mário de Andrade afirmava que “o artista é o ‘out-law’, o fora da lei, o não-conformista inato, ao qual só é possível o personalismo de estar sempre de acordo com a sua verdade pessoal” (Vanguarda Socialista, 1945, p. 5). Com essa nota, o Vanguarda Socialista requisitava postumamente Mário de Andrade para dar o aval à inauguração de um novo estatuto para o artista no Brasil. O processo, entretanto, não se deu de uma hora para outra, e, se a presença de Mário de Andrade já não era um empecilho para uma reformulação de valores, a de Candido Portinari impunha cautela. No artigo onde comentou a exposição de Portinari em Paris, Pedrosa explicitava o prestígio do pintor e a importância de levar isso em consideração. Falando sobre a disputa entre a representação abstrata e o realismo que teria se acirrado com a exposição de Portinari em Paris, justificava o fato do pintor brasileiro se manter fiel à figuração, ao mesmo tempo, pedindo licença para que outros artistas seguissem caminho diverso: “Portinari sempre foi um artista que nunca suprimiu totalmente o assunto. É natural, pois, que se filie do lado dos ‘figurativos’, mas nem por isso a outra família de artistas perde o 59 Seguem alguns dos títulos de artigos publicados, indicativos dos temas de interesse do periódico ao longo de sua existência: O cinquentenário de Engels (Moniz, 1945), Apresentação da Revista Comunista, por Engels (Engels, 1945), Os dissídios coletivos e o queremismo (sem autor, 1945), Assembleia Constituinte ou manobra? (P.C.L., 1945), Vinte anos de linha justa. Os erros de Trotsky e a infalibilidade de Stalin (Roney, 1945), Stalin e Trotsky ante o problema das eleições brasileiras de dezembro (D’Horta, 1945), Liberdade de comércio para quem? (Pirajá, 1945), Partidos e Revolução (Pedrosa, 1946), O direito de greve é a bitola da democracia (Leite, 1946), A canalha reacionária planeja restaurar a ditadura! (1946), Com esteios do Estado Novo não se defenderá a democracia (M.L., 1947), A política operária em face da crise (Pedrosa, 1947), O papel da luta pelas reformas legais (Leite, 1947).

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direito de viver ou deixa de ser menos ‘moderna’ que a sua. Os jovens artistas brasileiros inclinados ao abstracionismo ou ao surrealismo não se assustem com a opinião do mestre, ainda quentinho de Paris, e prossigam no seu caminho. Aliás, estamos certos de que nem por isso Portinari irá os aterrorizar com o seu prestígio ou a sua maldição. Ele é artista demais para saber que ou o artista é sincero, ou não é artista” (Pedrosa, 1946, ênfases no original). Apesar da presença de Vieira da Silva e Arpad Szenes60 desde o começo da década de 1940 no Rio de Janeiro, foi somente em 1947/1948 que se constituiu o primeiro grupo de artistas abstratos nessa cidade, o grupo Frente, cuja criação, segundo Arantes (1991), foi responsabilidade de Pedrosa. Participaram desse grupo artistas como Ivan Serpa, Almir Mavignier e Abrahan Palatnik. À semelhança do que ocorrera na França do final do século XIX, no Brasil das décadas de 1930 e 1940 a multiplicação dos lugares de apresentação das obras e ensino de arte sinalizava o fim do monopólio do sistema acadêmico e a institucionalização de uma nova organização de arte, mais plural e privada. Só no Rio de Janeiro e São Paulo, podem ser mencionados os seguintes eventos/instituições/agremiações artísticos onde se podiam apresentar trabalhos que fugiam aos cânones da Escola Nacional de Belas Artes: Salão Revolucionário (1930), Núcleo Bernardelli (1931), Família Artística Paulista (1937, 1939 e 1940), Grupo Santa Helena (1931), Salão de Maio (1937 a 1939), Sociedade Pró-Arte Moderna – Spam (1932), Sindicato Nacional dos Artistas Plásticos de São Paulo – Sinapesp (1937) e seu Salão (de 1937 a 1949), Clube de Arte Moderna (1932), Salão Paulista de Belas Artes (1934-) (Itaú, 2007). Após o fim da guerra, não somente os intermediários entre produtores e compradores, mas também os próprios compradores e produtores se diversificaram. O sistema acadêmico de consagração no Brasil foi sendo substituído por um sistema no qual os críticos de arte construíam o renome dos artistas através da publicação de artigos em periódicos mais ou menos especializados. O 60 Artistas cuja produção era classificada como abstrata.

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reconhecimento de um novo artista então passara a estar relacionado também ao prestígio do crítico que o “revelava”. O prestígio dos professores da Escola Nacional de Belas Artes em consagrar um pintor havia sido substituído pela influência dos críticos de arte. Como anteriormente mencionado, as primeiras colunas regulares especializadas em artes plásticas publicadas em jornais de grande circulação apareceram no imediato segundo pós-guerra. A enciclopédia eletrônica 500 anos de pintura no Brasil (Leite, 1999) fala de Antonio Bento como tendo sido o primeiro crítico no Brasil a manter, a partir de 1945, uma coluna de arte regular no Diário Carioca. Já Otília Arantes (1991) indica Mário Pedrosa, com sua coluna diária no Correio da Manhã, a partir de 1946. Independentemente de qual das duas opções esteja correta, importa mais o período no qual se destaca o surgimento de tal “veículo de (in)formação” (Arantes, 1991). A Associação Brasileira de Imprensa tinha inclusive uma sala para exposições onde Portinari apresentou a conferência criticada por L.F (L.F., 1946), o que denota o papel da imprensa em relação ao fenômeno artístico no período. Além das colunas, havia também os textos produzidos para os catálogos de exposições. Esses eram os instrumentos de que os críticos de arte dispunham para a produção e divulgação dos valores que consagravam os artistas e suas obras. Em 1963, fazendo uma crítica à Bienal de São Paulo, um jornalista comentou em tom sarcástico esse novo mecanismo de consagração do mundo artístico. Coelho (1963) oferecia conselhos para artistas que desejassem ter seus trabalhos escolhidos para as bienais: “comece desde já a se aproximar dos críticos e dos militantes entendidos em arte. Procure fazer amizade com eles. Convide-os para jantares. Mostre-lhes seus trabalhos sem susto: eles sempre dizem, após o jantar, que são ótimos, que há talento de sobra. Se fizer alguma exposição, peça que algum deles escreva a apresentação. Ou melhor e mais garantido: peça que todos escrevam cinco linhas e ponha tudo no catálogo. Assim, quando chegar a hora da seleção, você terá todas as chances de ser aceito. Mas não se esqueça de produzir quadros, porque sem nenhum trabalho é impos-

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sível você participar da Bienal. Mesmo que todo o júri considere você um grande praça” (p. 59). A ironia diz respeito à dificuldade em lidar com a perda de prestígio das instituições acadêmicas que antes definiam as premiações e a crescente influência dos críticos de arte e dos novos valores por eles promulgados..61 Foi na coluna de artes que Pedrosa mantinha no Correio da Manhã que encontrei os textos nos quais o crítico enunciou com clareza alguns dos importantes pressupostos que passaram paulatinamente a constituir, no Brasil, os valores artísticos de um regime no qual o indivíduo era o eixo central. Temas como a habilidade versus o dom, manufatura versus vocação, pureza estética versus atitude moral, a anedota versus as “leis da harmonia e da pura emoção” (Pedrosa, 1947h) são aí encontrados. Procurando compreender os processos de produção de crenças, Pierre Bourdieu ressaltou que uma ruptura em um campo relativamente autônomo só é possível por um ator que tenha “uma trajetória atípica e, portanto uma relação específica entre essa trajetória (e o habitus a ela correlativo) e sua posição no campo que lhe predispõe a sentir, pressentir e exprimir uma demanda social ainda à procura de seu modo de expressão legítimo” (Bourdieu e Delsaut, 2004, p. 175). Mário Pedrosa tinha trajetória e habitus atípicos. Sua militância política, as longas temporadas no exterior e o contato com diversos intelectuais estrangeiros (explicitadas na forma de entrevistas para o Correio da Manhã) o posicionavam diferencialmente no mundo artístico brasileiro. Otília Arantes (1991) ressaltou que “Pedrosa não foi o primeiro a reconhecer a necessidade de conhecimentos técnicos, ou de reunir 61 Havia ainda os conselhos para aqueles que desejavam projetar-se mais longe e precisavam relacionarse com os críticos estrangeiros: “Se suas pretensões forem maiores, se você almeja ganhar prêmios, o processo é semelhante, embora mais custoso. Você, antes de tudo, tem que começar a aprender línguas, caso só fale o português. E tem de ser rápido e eficiente nas relações públicas. Os comissários do exterior que vêm ao Brasil nem sempre são fanáticos por arte. Muitos apenas se aproveitam da chance para viajar, conhecer lugares novos, pessoas diferentes e divertidas. Adoram passear, fazer turismo. São portanto muito acessíveis a uma insistência planejada. Por isso é que você precisa saber falar inglês, francês, italiano e pelo menos alguma língua tipo japonês, polonês ou russo. E dispor de alguma verba para oferecer jantares e noitadas em boates. Importante: os que não se utilizam desses processos podem, às vezes, ganhar prêmios, mas constituem exceções” (Coelho, 1963, p. 59).

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tão vasta gama de informações, mas talvez tenha sido o nosso primeiro crítico profissional, strictu sensu, acompanhando de perto a produção artística do seu tempo do ponto de vista de um especialista, fazendo coincidir de forma feliz a crítica jornalística e a crítica culta. Já não era mais a crítica ensaística de cunho nitidamente literário dos mestres modernistas, que embora tivesse trazido a pintura para o centro vivo do processo cultural, não se queria especializada (veja-se Mário de Andrade, que se pretendia um amador e dizia só falar do que lhe convinha, ou seja, do que trazia água para o seu moinho, de um projeto estético maior); também não era o discurso erudito e culturalmente bem aparelhado, saído da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, formado à sombra dos professores franceses, mas voltado sobretudo para o nosso passado (um bom exemplo é Lourival Gomes Machado); muito menos a crônica de circunstância, a crítica de rodapé, autodidata, que, por mais viva e bem escrita que fosse, não era capaz de inserir a produção local e avaliá-la dentro de um quadro mais amplo de referências, históricas ou mesmo teóricas, e, sem desmerecê-las, ficava quando muito num bom plano descritivo” (p. XVI-XVII). Entretanto, esses qualificativos não eram identificáveis em meados da década de 1940. É preciso reconstituir o processo histórico através do qual se forjaram as condições para que Pedrosa assumisse essa posição de vanguarda na crítica de arte brasileira. Para tanto, ressalto no próximo tópico alguns eventos e textos que me parecem relevantes nesse processo de instituição de um conjunto de valores consagrados na Europa como específicos da modernidade aplicados à análise do fenômeno artístico no contexto brasileiro.

Sofrimento psíquico e educação na arte moderna no Brasil

Entre 1946 e 1949, alguns temas foram recorrentes nos textos de Pedrosa, contribuindo para instituir as fronteiras demarcadoras de novos juízos sobre a produção artística no Brasil. Nesse processo foram introduzidos critérios de valor diferentes e ressignificados valores vigentes no incipiente campo artístico brasileiro.

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Pedrosa trouxe para dentro do campo artístico fenômenos até então não considerados como parte daquele universo no Brasil. O crítico usou as experiências com pacientes do hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro (o que mais tarde se tornou o Museu de Imagens do Inconsciente) e a produção artística de crianças para desenvolver uma nova perspectiva a partir da qual questionar os critérios de análise/avaliação do fenômeno artístico. Essa associação entre arte, psiquiatria e educação pode ser observada como um microprocesso associado à produção de subjetividades no qual a categoria criação artística era identificada com um fator de unificação da condição humana. O indivíduo aparecia nessa relação como um valor destacado da trama social. A articulação de um lugar social passava a ser dada a partir de uma categoria relacionada à sua interioridade, a criação artística. A elaboração dessa categoria estava fundamentada na dualidade de um sistema simbólico, dividido entre uma “realidade objetiva” e uma “realidade subjetiva”. O processo através do qual Pedrosa revisou as representações da arte e do artista moderno à luz da prática e da crítica artística nacional incluía a construção de uma gramática específica que era utilizada nos comentários de exposições de artistas plásticos e seus alunos (crianças ou adultos) e de pacientes psiquiátricos. A cada uma dessas categorias de atores era atribuído um valor distinto no sistema artístico e a arte, enquanto uma forma específica de sensibilidade, era construída como um valor diferencial. Luiz Fernando Dias Duarte (2000) chama a atenção para o fato de que no Brasil a relação entre psicanálise e educação, nas primeiras quatro décadas do século XX, se dava tanto no plano das ideias como no plano das relações com o aparelho de Estado, que teve na rede médico-sanitária implantada no começo do século um de seus principais veículos. A “educação” e os recursos psicoterapêuticos apareciam assim como recursos privilegiados no processo de transformação social de “recuperação” de uma população que vinha sendo definida a partir das denúncias da miscigenação. No exame das dimensões psicológicas da obra de Roger Bastide, o autor argumenta que “a laicização geral dos saberes que caracterizou

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a emergência da cultura ocidental moderna, importou inevitavelmente no deslocamento da problemática da interioridade para fora do domínio religioso, ensejando o surgimento da ‘psicologia’ tal como a entendemos hoje, com sua disposição de propiciar um conhecimento objetivo, ‘científico’, sobre a mente, a subjetividade” (Duarte, 2005, p. 9). O discurso de Pedrosa era transpassado por uma crítica à racionalização extrema. Sua referência ao “primitivo” referia-se à busca de uma totalidade considerada perdida no materialismo moderno. A formação católica de Pedrosa provavelmente contribuiu para a reavaliação da experiência artística sob a ótica da psicologia. A arte como uma dimensão da experiência psicológica era assim verbalizada em termos de emoções e sentimentos religiosos, de uma dimensão individual. Pedrosa vinculava os processos de construção da nação e consolidação do Estado brasileiro e o redimensionamento do fenômeno artístico em termos de um fenômeno cujo eixo central era a ideia de uma interioridade construída não mais em relação à religião, mas à psicanálise. Assim vemos, por exemplo, seu comentário sobre a exposição de alunos do pintor Alberto da Veiga Guignard. Pedrosa falou do processo de aprendizado e prática artística fazendo uma diferenciação entre o artista que aprende bem seu ofício e aquele que inova em relação ao aprendizado, ou “que não se forma pelo exercício, mas vem do fundo”. Mencionou “uma certa impressão de monotonia” que podia ser percebida em qualquer “exposição de alunos de um mestre também criador” por ser esta claramente a mostra de alunos que seguem seu mestre (Pedrosa, 1946b). Duas questões merecem ser ressaltadas nessa crítica: a ideia de mestre-criador, que aparece como participante de um novo regime que não é mais o profissional fundamentado na relação ensino/aprendizado, mas um regime que guarda semelhança com a ideia de um médium que, transpassado por um sopro divino, revela a vocação, o dom atribuído ao aluno-artista, através de uma iniciação mística; a ideia do professor como um tipo de médium pode ser notada ainda quando o autor trata da outra questão relevante para análise, que é a de uma monotonia que se refere ao “parentesco que une uma tela a outra, um desenho

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a outro, [dando] ao conjunto uma sensação de repetição” na exposição de “Guignard e seus discípulos” (Pedrosa, 1946b, ênfase adicionada). A noção de repetição dizia respeito ao ensino de uma técnica, e não à revelação de singularidades criativas. Assim, mestre-criador, monotonia, discípulos são noções que fazem parte desse novo léxico de valores, que aproxima religião e emoções, na construção de novas representações sobre o artista, a arte e o processo criativo no Brasil. Para desenvolver a ideia de regimes de atividade (profissional e vocacional), Heinich (2005) sistematiza uma escala de gêneros literários (jornalismo, romancista, dramaturgo e poeta) que se apoia em um triplo eixo: do mais alto ao mais baixo, do mais profissional ao mais vocacional e do mais heterônomo ao mais autônomo. O jornalismo, por exemplo, estaria fundado na primazia do curto sobre o longo prazo, na celebridade mundana em detrimento da glória literária, no poder temporal sobre a força espiritual e na pena mercenária ao invés da “arte pela arte” (ou do quarto círculo de reconhecimento ao invés do primeiro). Uma das características diferenciais entre o regime profissional e o regime vocacional é a “interioridade das motivações ancorada na individualidade” em oposição a um projeto de carreira. O regime de vocação é, assim, aquele que “resiste à tentação de uma carreira mundana que impeça o livre curso da inspiração, a existência de um autêntico talento e não somente de uma aspiração a viver a vida de artista, a capacidade de colocar plenamente em marcha seus dons, sacrificar toda a vida de família” (Heinich, 2005, p. 83). Sem fazer referência à psicanálise, para falar desse regime vocacional, a autora inscreve todo o léxico religioso utilizado na descrição do fenômeno artístico moderno em uma dimensão social laicizada. A experiência da “inspiração”, por exemplo, comum ao regime vocacional do qual participam os criadores (escritores, pintores, músicos), tem como parte de suas representações noções como irracionalidade, irregularidade, intermitência, dúvida, vulnerabilidade, imprevisibilidade, independência da vontade. Entretanto, com o intuito de ir além da constatação do processo de sacralização da arte, ou de produção de uma religiosidade laica, a autora busca nas

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formas de utilização do tempo contrapontos àquelas noções. Assim, o regime vocacional é oposto à regularidade, à previsibilidade e ao controle do governo supostos em uma carreira profissional que tem etapas definidas a serem cumpridas (como as medalhas sucessivas até o prêmio de viagem e a possibilidade de vir a ser um professor e membro do júri que vai reproduzir esse sistema, conforme indicado no segundo capítulo em referência à formação de Portinari). Esse sistema de oposições permite apontar duas formas ideal-típicas de conduta em relação à arte ao identificar as representações atribuídas (e autoatribuídas) ao artista. A inspiração, assim, é o que justifica a atividade criativa, por oposição às heterodeterminações da atividade profissional, que antecipam ou satisfazem a demanda “externa” (do mercado, das relações de serviço, das encomendas) na arte moderna. Se na França os romances foram um dos principais receptores e difusores de valores e representações sobre a criação artística moderna, no Brasil os críticos de arte, principalmente nos quinze anos após a Segunda Guerra, podem ser considerados aqueles que discutiram, reformularam e incorporaram parte dessas representações divulgando-as para o grande público. Mário Pedrosa, após 1945, foi o primeiro a sistematicamente analisar situações concretas no mundo artístico brasileiro à luz dessas representações. As noções de regime profissional e vocacional não podem ser encontradas no mundo social da forma como idealmente definidas, mas suas definições servem para guiar o olhar em relação aos valores que subjazem às categorias utilizadas nas críticas de Pedrosa. À vocação, que era uma hierarquia para a qual contribuíam diversos valores como critérios classificatórios, Pedrosa opunha o amadorismo. Isso pode ser percebido em uma crítica a uma pintora hoje desconhecida: “Ela ainda se divide, indecisa, entre o métier, a profissão e o amadorismo, o diletantismo” (Pedrosa, 1946a). Os termos não são usados com rigor, mas seus valores subjacentes são perceptíveis em uma análise do sistema de pensamento que o autor desenvolvia em seus textos como um todo. A diferença entre a profissão considerada como o artesanato da pintura e a vocação aparece em um artigo sobre Emiliano Di Cavalcanti, representado como um profissional, mas não como uma

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revelação vocacional. Segundo Pedrosa, “Di Cavalcanti não pertence, realmente, à família dos artistas de mil facetas; nele a diversidade vem do aperfeiçoamento da maneira. Pouco a pouco, entretanto, malgrado a lentidão criadora que o caracteriza, a sua invencível “nonchalance”, ele acaba aprofundando os seus meios, e “realizando”. (...) Ele sempre foi um artista de instintos seguros. Seu senso de composição cedo manifestou-se. (...) Esse mestre brasileiro nunca teve alma de artesão porque é sobretudo um sensual amante da vida; nele o homem vence sempre o artista, embora seja este, no entanto, extraordinariamente dotado. Falece-lhe, por isso mesmo, essa fatalidade vocacional que subordinará, inexoravelmente, o homem ao artista, e faz ao criador o escravo da própria obra. (...) Devido talvez à sua forte personalidade é que tateou tanto tempo até achar-se, e, principalmente, aprofundar-se, criando a técnica adequada às suas intenções. A sua arte tem os defeitos e as qualidades de um temperamento fácil, a derivar continuamente na corrente impura e tumultuada da vida” (Pedrosa, 1946c, ênfases adicionadas). Vocação, profissão e artesanato (ou diletantismo) eram dimensões diferentes de participação no fenômeno artístico, hierarquicamente classificadas. A negação de uma vocação a Di Cavalcanti estava relacionada tanto ao amadurecimento gradual de sua obra por oposição à revelação de um dom (opondo este ao aprendizado), quanto ao discurso da contaminação fundamentado na ideia da inspiração, cuja origem é o mundo interior, sagrado, puro e não contaminado pelos perigos da vida mundana. Di Cavalcanti, ao invés de se tornar “escravo da própria obra”, subordinava o artista ao homem. Definia-se, assim, certo tipo de contato com o mundo social, como um tabu que deveria ser respeitado pela “comunidade artística” como um dos valores e princípios fundamentais daquele grupo. O tabu foi descrito por Mary Douglas como uma prática de codificação “que estabelece um vocabulário de limites espaciais e físicos e sinais verbais para proteger as relações vulneráveis” (2002, p. xiii). Burlar esse código é perigoso, pois espalha o mal através do contato entre os membros do grupo. Entretanto, ao contrário do argumento da autora de que essa é uma prática de codificação espontânea, vemos como foram sendo definidas as regras para os tabus no

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processo de estabelecimento de novos valores para o mundo da arte no Brasil, e assim uma sacralidade para o fenômeno artístico. Murilo Mendes contribuiu para nossa compreensão das delimitações desse perigo contagioso que Pedrosa delineava na crítica a Di Cavalcanti. O escritor argumentou que havia um julgamento moral em relação a Emiliano Di Cavalcanti nesse período: “Todo mundo sabia que ele gozava de considerável reputação como animador de movimentos; mas na verdade havia um certo receio em apontá-lo como um pintor de primeiro plano; e tal se dava devido ao aspecto dispersivo do seu talento. O feitio boêmio do homem – boêmia de grande estilo, de resto –, refletia-se na apreciação crítica que se fazia do artista, entretanto subconscientemente como fator desfavorável. Julgava-se que o pintor, apesar de seus dotes excepcionais, seria incapaz de se entregar a um trabalho contínuo e aprofundado. Temia-se pela sorte do pintor Di Cavalcanti” (Murilo Mendes, 1949 apud Amaral, 1985, p. 83). A boemia a que Murilo Mendes fazia referência dizia respeito à dimensão “sensual” à qual também se referia Mário Pedrosa. Emiliano Di Cavalcanti era declaradamente um hedonista. Sua vida sexual era um dos temas centrais em torno do qual o pintor pronunciava seus discursos sobre si. Conhecido como o pintor das mulheres, esse foi (e até hoje é) tomado como seu principal assunto. Em entrevista, em 2006, sua filha, Elizabeth Di Cavalcanti Veiga, reclamou dessa representação sobre o trabalho do pintor. Anos mais tarde, em artigo publicado na revista Manchete, Di Cavalcanti parecia tentar minimizar seu encanto pelos prazeres do amor, declarado em diversas ocasiões. Essa tentativa, entretanto, não passou pelo abandono ou relativização desse prazer, mas por uma redefinição ambígua. Assim defendeu ele a crença de que “talvez seja necessário um bissexualismo de forma puramente cerebral fazendo com que o sentimentalismo amoroso não nos estrague e não infeccione com dulçurosos venenos a obra de arte. Há pintores que pelo amor por uma mulher fizeram as piores obras de arte. Só uma sublimação amorosa acima do sexualismo banal pode glorificar uma obra de arte” (Di Cavalcanti, 1966). Essa declaração do pintor pode ser relacionada à representação do artista moderno cunhada pelo romantismo no século XIX, na qual

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o celibato fazia parte de uma expressão de recusa da vida burguesa. O desinteresse pelo amor e o casamento fazia parte da imagem de dedicação exclusiva à arte e de crítica aos modelos de conforto subentendidos na estabilidade e preocupação com a família. Ser casado era então um símbolo de reacionarismo na arte, contrário à inovação, originalidade e singularidade. Entre casamentos oficiais e oficiosos, Di Cavalcanti teve quatro mulheres importantes em sua vida (sua última companheira, quarenta anos mais nova que o pintor, publicou um livro com as cartas que ele lhe enviou durante os quase vinte anos de relação, com inúmeras menções à vida sexual do casal). Seu hedonismo e as enunciações públicas de seus desejos sexuais pareciam ser tomados como poluidores de sua produção artística. A boêmia que impregnou o imaginário romântico como parte do mito fundador do artista moderno estava fundada, segundo Paulo Guérios, na ética de uma “miséria voluntária em busca do Belo” e não em uma ética hedonista (2001, p. 43). A privação e a falta de regras eram determinantes na representação dessa boemia durante o século XIX francês. A preocupação com o amanhã, isto é, um projeto de carreira regrada, confortável, na direção de uma prosperidade burguesa não pertencia a esse horizonte boêmio. Pedrosa cobrou explicitamente esse tipo de atitude boemia dos artistas brasileiros: “O brasileiro é anêmico em tudo, e nasce velho, e já com medo do que vão dizer. Só é romântico nos livros e na literatura. Jamais na vida, quando é nesta que deve residir o romantismo. Entre morrer de fome e a poesia, entre ser vagabundo e poeta antes de ser burocrata ou negociante, prefere o pasto remansoso da respeitabilidade e do conforto. Ninguém se transvia pelos desvãos da miséria nem pelos desabrigos da aventura. Todos amanhecem sonhando com um diploma, uma medalha, um crachá, um emprego, um seguro, pantuilas e ‘robes de chambre’. Todos se ajeitam de filas, até os mais rebeldes. O espírito do desconvencionalismo lhes é estranho e hostil” (Pedrosa, 1947d). O ideal boêmio valorizava a vida irregular na qual o artista chegava a viver miseravelmente para produzir artisticamente, como se abrindo mão da recompensa material pudesse alcançar uma verdadeira expressão artística. Guérios (2001) argumenta que Murger

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(autor de “Scènes de la vie Bohème” 1845 – um quase-manifesto da boemia, pelo qual os artistas do início do século XX se guiavam) foi o exemplo para a geração anterior ao modernismo da década de 1920 – Olavo Bilac, Raul Pompéia, Aluísio de Azevedo, Paula Nei e Arthur Duarte. Poucos desses boêmios de 1880 chegaram a 1890, muitos morreram, outros se tornaram editores de revistas e jornais, como Olavo Bilac, procurando uma estabilidade e um padrão de vida minimamente “respeitável”. Emiliano Di Cavalcanti entrara na Universidade de Direito em São Paulo com uma carta de apresentação de Olavo Bilac. Em seu livro de memórias, o pintor enfatizou o ambiente intelectual da casa de seus pais e a presença de José do Patrocínio, importante personagem da imprensa e da vida boêmia carioca da belle époque. Segundo Ana Paula Simioni (2002), José do Patrocínio, “além de ter se consagrado na luta pela abolição dos escravos, foi o chefe do grupo boêmio que compreendia Olavo Bilac, Coelho Neto, Aluísio de Azevedo e Paula Nei” (p. 21-22). Além do contato com escritores, editores ou proprietários da imprensa do período, José do Patrocínio parece ter tido também um papel central na trajetória de Di Cavalcanti ao propiciar o contato do pintor com a boêmia. Anos depois daquele artigo de Pedrosa, Di Cavalcanti se declarava um boêmio sem interesse no conforto de “um emprego público, ou na hierarquia de um casamento rico” (Di Cavalcanti, 1955, p. 103). Esses aspectos da representação boêmia podiam ser identificados na ideia de uma pintura irregular, que condizia com a negação de uma carreira convencional bem-sucedida. Entretanto, havia uma dimensão de sua trajetória que passava seja por um julgamento moral de sua sexualidade, seja pela ideia da poluição de sua arte pela dimensão mundana, ou ambos. Ao reclamar do convencionalismo dos artistas brasileiros, Pedrosa creditava ao contexto político a responsabilidade pela atitude antirromântica de subserviência às normas e aos cânones e aproveitava para ensaiar uma primeira crítica a Portinari: “a corrupção da ditadura, ministrada pelo Sr. Capanema, lhes tirou os restos de revolta e independência. Depois, o comunismo, ministrado por Prestes, acolitado ai!

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pelos Niemeyer e Portinari, prolongou o anti-poético, esse o ambiente em que todos querem parecer uns com os outros a fim de obter o aplauso da maioria, o triunfo pela concessão ao convencional, ao real, à moda e ao academismo moral” (Pedrosa, 1947d). Ele transpunha para o contexto nacional uma das representações centrais do artista moderno, adaptando-a aos padrões de moralidade internamente aceitos num campo artístico majoritariamente burguês, que compreendia principalmente, mas não somente, Rio de Janeiro e São Paulo. A crítica de Mário Pedrosa à ditadura e ao comunismo como impeditivos de uma atitude menos convencional referia-se, respectivamente, ao nacionalismo e ao realismo que, estreitamente vinculados, eram estimulados por ambos, o sistema e a ideologia de governo, na produção artística. Essa referência à política era mais uma das regras que separavam a sacralidade da arte de dimensões mundanas, outro elemento da gramática do sagrado e do profano na arte, um tabu, por ameaçar a reivindicação de autonomia da arte (o que na produção acadêmica seria chamado de objetividade). Entretanto, parece que Pedrosa ainda não se sentia confortável para enfrentar essa batalha sozinho e por isso aliou-se ao crítico belga Leon Degand, que acabara de chegar ao Brasil para ser o primeiro diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Como anteriormente mencionado, Degand havia sido recentemente afastado do periódico Les lettres françaises exatamente por defender a representação abstrata na pintura. Pedrosa havia cedido o espaço de sua coluna no Correio da Manhã, dois dias antes, para que o crítico belga publicasse um artigo (ao qual não tive acesso) “sobre a evolução da crítica de arte” (Pedrosa, 1947h). Pedrosa comentou o artigo de Degand ressaltando a questão da “anedota ou assunto do quadro”. Esse era um eufemismo para falar do realismo e do nacionalismo na arte sem fazer referências a essas categorias heterodoxas, mas usando para tanto alguns autores importantes da crítica de arte moderna (Diderot, Baudelaire, Vasari e Lhote). Ele já vinha fazendo esse deslocamento dos termos do conflito da dimensão política para a dimensão estética, da “exterioridade” para a “interioridade”, da heteronomia para a autonomia. Quando Portinari

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expôs em Paris em 1946, no artigo que comentava o evento, o crítico afirmou com veemência: “O diálogo de figurativos e abstratos não é de hoje, mas ao contrario é velho como a própria arte. O Paris de 1946 não o inventou, e nem irá agora pôr-lhe um ponto final, mesmo que seja por intervenção dos Poderes Públicos. Pois mesmo assim, o sentimento desinteressado da criação continuará a brotar por baixo dos decretos oficiais e das decisões partidárias, sob as formas mais caóticas” (Pedrosa, 1946). Pedrosa tentava com isso desarticular o debate em torno da participação política ou do uso instrumental dos artistas e instituir a discussão sobre a autonomia da arte. Essa mudança epistemológica, entretanto, precisava de uma rede de atores, instituições e disciplinas que ainda estava se articulando, ou seja, que o campo se instituísse como uma estrutura de posições relativamente autônomas. No comentário ao artigo de Degand, o procedimento foi o mesmo, transferir o debate para o campo específico da arte, ou falar de política sem falar de política. Assim, comentou sobre o texto do “jornalista francês, Leon Degand, da A.F.P.62 (...) a atitude por assim dizer insólita da crítica moderna relativamente à anedota ou ao assunto no quadro”: “Citando a propósito Diderot e Baudelaire, diz [Degand] que mesmo esses concedem um lugar preponderante à descrição anedótica dos quadros, embora não sacrificando de todo o seu aspecto puramente plástico. Hoje, no entanto, os críticos se consagram exclusivamente, ou quase, às questões de pura técnica ou de métier, desprezando o assunto. A anedota se transformou mesmo num conceito pejorativo” (Pedrosa, 1947h). Pedrosa demarcava assim outro papel para a crítica e a arte contemporânea, que não era se posicionar quanto ao mundo social, mas falar de arte a partir de sua especificidade. Afirmando a sacralidade da arte como dimensão à parte do mundo social, prosseguiu ainda nesse mesmo artigo falando da autonomia do fenômeno artístico. Para o crítico, os artistas modernos eram “homens que pela primeira vez têm consciência de que a arte é um mundo em si. Eles separam a emoção religiosa do primitivo, a emoção social ou natural dos renascentistas do afetivismo estético que os do62 Association France Presse.

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mina. É o artista que chega enfim na escola histórica, a se desprender das várias camadas subjetivas de sua personalidade para se apresentar desnudo, sozinho, diante do universo, como um ser que não somente admira a construção cósmica universal como se sente preso da vontade convulsiva de plasmar um mundo que, se veja exclusivamente pelas leis da harmonia e da pura emoção. Daí a evolução da crítica pictórica de Diderot a Andre Lhote” (Pedrosa, 1947h). Pedrosa defendia o desafio às normas sociais através da relação com o “primitivo” em termos cronológicos (a diferença colocada em uma linha evolutiva), em termos do desvio (alienação mental, marginalidade etc.) ou ontológicos (infância). A oposição aos cânones artísticos referia-se também às normas acadêmicas, mas principalmente ao modernismo vigente desde a década de 1920. Nesse processo, aparecia a ênfase na ideia de criação artística como um mecanismo interior de construção de subjetividade. Essa noção era discutida a partir das pessoas portadoras de transtornos psíquicos e das crianças, identificada assim com a distância da consciência e dos conhecimentos prévios, uma dimensão naturalizada do dom. Enquanto a psicanálise (ou psiquiatria) atribuía cientificidade ao fenômeno, a religião fornecia o modelo da interioridade, da subjetividade e das emoções. Se as ciências sociais se constituíram por oposição ao discurso religioso, isto é, negando a igualdade de estatuto dos dois discursos, o religioso e o social, o campo artístico brasileiro, em meados do século XX, se afirmou em grande medida pela associação do prazer estético ao êxtase sagrado. Assim, argumentando sobre a “força educadora da arte”, Pedrosa atribuía ao fenômeno artístico efeitos psicotrópicos e de arrebatamento religioso: “As obras de arte, com efeito, podem agir sobre os homens, como o álcool, a prédica, o ópio, a política, o amor, a religião, a doença” (Pedrosa, 1947f). Ainda em 1947, Pedrosa proferiu uma palestra, intitulada Arte, necessidade vital, por ocasião do encerramento da exposição de pinturas dos pacientes do ateliê do Engenho de Dentro, que fazia parte da Seção de Terapêutica Ocupacional (STO) do Centro Psiquiátrico Nacional, no bairro do Engenho de Dentro. A STO era dirigida, des-

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de 1946, por Nise da Silveira, e o ateliê era coordenado pelo artista plástico Almir Mavignier. Pedrosa foi fundamental para a legitimação desse trabalho. Segundo Paula Barros Dias (2003), já havia no Brasil, desde o início do século XX, trabalhos que utilizavam a arte como forma de compreender a expressão dos portadores de sofrimento psíquico. Um dos exemplos é o trabalho de Osório Cesar, no Hospital do Juqueri, em São Paulo, que organizou uma exposição dos trabalhos de seus pacientes no MAM-SP em 1948. Entretanto, mesmo tendo a pintora Maria Leontina Franco à frente do ateliê de terapia ocupacional a partir de 1949, o trabalho de Osório Cesar nunca recebeu o mesmo reconhecimento que o de Nise da Silveira. A visibilidade do trabalho do STO deve-se em grande parte ao uso que Pedrosa fez daquelas experiências para desenvolver suas teorias a respeito da criação artística. Em vista das críticas de atores sociais do campo “estreito dos apreciadores e conhecedores das artes plásticas nos nossos meios cultos” (Pedrosa, 1947), Pedrosa construiu um argumento em defesa da autonomia da arte em relação à representação de uma “realidade objetiva” (a “imitação da natureza”) e do talento como algo inato, um dom. No ano seguinte, traduziu as formulações europeias da relação entre arte e transtornos psíquicos, que resultou na classificação “art brut”, e aplicou-a à produção dos pacientes, o que deu origem ao termo “arte virgem” (Pedrosa, 1950). Na formulação de seu argumento, recorreu a uma reconstrução das reflexões sobre o fenômeno artístico na qual enfatizou a importância da noção psicanalítica de “inconsciente” na atribuição de sentido aos “atos aparentemente sem significação ou importância, que se praticam automaticamente, distrações, gestos inconseqüentes, enganos, garatujas, desenhos canhestros deitados no papel sem pensar” (Pedrosa, 1947, p. 42). Com esse raciocínio, defendia a importância do “processo de criação” e não mais somente o “interesse no resultado, isto é, a obra realizada, cujo fim é ser perpetuamente admirada ou adorada, num novo fetichismo” (p. 42). Pedrosa iniciara o texto criticando a mistificação do artista no Renascimento, argumentando que para as pessoas que criticaram a

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exposição, a arte “ainda não perdeu a maiúscula. Ainda é uma atividade à parte, excepcional, e o artista um ser misterioso envolto num halo místico ou mágico” (p. 42). Entretanto, ao discorrer sobre a trajetória do fenômeno artístico através de alguns marcos de sua história, chegou ao “movimento artístico moderno” argumentando ter este reatado “o grande, o verdadeiro, o vivo filão artístico que perpassa através dos séculos e foi cortado pelo maneirismo e a decadência pós-renascentista”. Para o autor, nesse processo havia se elaborado o “novo conceito de arte, o qual não era mais do que a redescoberta do sentimento artístico na sua pureza, tão translúcida na obra dos anônimos artistas primitivos” (Pedrosa, 1947, p. 44). A ideia de “primitivo” para o autor referia-se ao informe e ao essencial, revelava sua crítica à racionalização extrema, e a arte era a dimensão que permitiria acessar uma interioridade “primitiva” e propiciar a liberdade, a autenticidade e a originalidade dos indivíduos. Essa era para ele a dimensão mística, sagrada, da arte. A diferença de atitude do artista moderno, responsável por uma “revolução de valores”, estava em que este, tendo conhecido “o truque da perspectiva italiana”, mas sem “a candura mística do primitivo, nem se mostra passivo diante do jogo de luz da natureza como o impressionista, refaz a perspectiva”. Essa nova perspectiva, denominada de afetiva (termo emprestado de André Lhote), “não pode mais ser reduzida a nenhuma fórmula exterior, pois a transformação que o artista criador impõe à relação natural dos objetos só obedece, e só tem de obedecer, ao ritmo poético, ao ritmo plástico” (Pedrosa, 1947, p. 45). Esse artista moderno recriava então o mundo, ou criava um mundo seu. Era a afirmação de uma “realidade subjetiva”. A sensibilidade artística aparecia como passível de ser encontrada em qualquer pessoa: a “atividade (artística) se estende a todos os seres humanos, e não é mais ocupação exclusiva de uma confraria especializada que exige diploma para nela se ter acesso. A vontade de arte se manifesta em qualquer homem de nossa terra, independente do seu meridiano, seja ele papua ou cafuzo, brasileiro ou russo, negro ou amarelo, letrado ou iletrado, equilibrado ou desequilibrado” (Pedrosa, 1947, p. 46). O desafio era conciliar o rompimento de fronteiras que a afirmação dessa

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sensibilidade ubíqua ocasionava. Normalidade/anormalidade, lógico/ ilógico, sentido e não-sentido tornavam-se cada vez mais dificilmente identificáveis, e eram necessárias novas delimitações que permitissem discernir o que era ou não arte moderna. Ciente da universalização que a aliança com a medicina produzia, argumentou que essa linha de reflexão implicava uma nova confirmação da “unidade congênita da raça humana” (Pedrosa, 1947, p. 44). Essa unidade, entretanto, não se dava entre todos, mas entre, por exemplo, os “homens broncos e anônimos de um povo e as gentes simples de outros povos” ou entre “as artes dos diversos povos primitivos, e as manifestações semelhantes das crianças de todo o mundo” (p. 44). Pedrosa referia-se à universalidade dessa sensibilidade, mas apontava para grupos sujeitos a investimentos civilizatórios. Duarte (2005) argumenta que nas décadas de 1930 e 1940 a relação entre nação, educação, psicanálise e psiquiatria passava pela instrumentalização e defesa de um processo de “civilização” do país. Segundo o autor, os argumentos “passavam necessariamente por algum tipo de ‘reforma moral’ capaz de aparelhar os sujeitos da nação como protagonistas do cenário político desejado” (p. 7). No caso de Pedrosa, essa reforma passava não pela adesão a um culto laico relacionado à ideia de “pátria”, como mostrou Guérios (2001), ou pela defesa dos chamados “valores tradicionais” transpassados por termos religiosos, mas pela ideia de uma intervenção que passasse pela “interiorização”, implementada, sobretudo, através dos aparelhos educativos. Entretanto, era necessário delimitar as fronteiras entre essa sensibilidade artística universal e os artistas como um grupo restrito. Nesse processo, a “vontade”, portanto, a razão, era o que diferenciava o artista dessas “forças espontâneas, vitais, inconscientes, que se acumulam, por assim dizer, nos poros tenros e abertos das crianças” e dos pacientes psiquiátricos (Pedrosa, 1947, p. 46). Se “a arte pictórica já não [era] mais um meio de imitar a natureza, representar a realidade externa” (Pedrosa, 1947, p. 46), ainda era a vontade realizadora que transformava aquelas “amostras embrionárias de arte” – “matéria bruta emotiva da criação formal” – em obras de arte (p. 48). Pedrosa lançava mão de Van Gogh para diferenciar os pacientes

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que expunham e cujos trabalhos estavam sendo comentados pelo crítico e um artista possuidor daquela “terrível vontade quase inumana que vencia o próprio caos interior” (p. 50). Usando o trabalho da pedagoga inglesa Maria Zimmern Petrie,63 de quem o título de sua palestra foi emprestado, Pedrosa definia a arte como “a linguagem das forças inconscientes que atuam dentro de nós” (p. 52), mas ainda era em última instância a consciência que definia os limites do que era arte. Mencionou os surrealistas como um dos ramos “mais significativos da arte moderna”, definidos como uma “família de artistas subjetivos” que abandona o “modelo externo, que passa a ser substituído pela procura incessante de um modelo interior” (Pedrosa, 1947, p. 52). O fenômeno artístico era assim uma maneira de emprestar “forma aos sentimentos e imagens do eu profundo” (p. 54, ênfase no original). Dessa forma, cada indivíduo era considerado como “um sistema psíquico à parte, e também uma organização plástica e formal em potência. Normalidade e anormalidade psíquica são termos convencionais, da ciência quantitativa [entretanto] no domínio da arte elas deixam de ter qualquer prevalência decisiva” (p. 54). Pedrosa ressaltava também que os psiquiatras apontavam traços de esquizofrenia e mania depressiva em pessoas tidas como normais. O crítico construía, assim, a arte como uma dimensão social na qual a irracionalidade podia e até devia se manifestar como forma de questionar as convenções: a loucura era um modelo no qual espelhar o movimento de ruptura com a lógica do trabalho, do mercado etc.64 Para o crítico, “em essência a atividade criadora repete, inconscientemente, a incessante recriação do milagre da vida no organismo; e é isto que dá esse poder exultante ao trabalho da criação pura” (p. 55). A sacralidade da “atividade criadora” é então resumida em termos de uma “essência” ou uma forma de imposição, por parte da natureza, de “leis próprias ao fenômeno artístico mesmo, para que os homens afinal as reconheçam e a elas se rendam. Dessa forma tomaria o mesmo fenô63 Provavelmente o trabalho Art and regeneration (London: P. Elek Publishers 1946), encontrado em sua biblioteca, depositada na Fundação Biblioteca Nacional. 64 Sally Price (2000) fala das representações de irracionalidade, sexualidade, agressividade e instintividade que ligam o louco, o primitivo e o artista.

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meno caráter de verdadeira necessidade vital, pois não seria mais do que a transposição no plano humano das leis da criação cósmica (...) A arte se realizaria pelos mesmos princípios que regem a criação incessante do universo e o seu mecanismo funcional. Ela não repete ou copia a natureza; mas obedece às mesmas leis que esta; transpõe-nas para o plano da criação consciente, isto é, humano. O indivíduo se eleva, assim, no artista, à categoria de arquiteto universal” (p. 55). A naturalização era operada pelo atrelamento da ideia de um processo criativo a uma essência individual que tornava a expressão através da arte extensiva ao gênero humano. Nathalie Heinich (1996) nega a identidade da arte como uma nova forma de religião, a despeito de admitir o caráter quase devocional que assumem a admiração pelos grandes artistas e a sacralização dos objetos artísticos. Para tanto, salienta que aqueles que fazem essa relação da arte com a religião, em geral, o fazem de forma crítica, enquanto aqueles que participam do fenômeno artístico não reivindicam esse caráter religioso. A projeção de elementos religiosos para o plano artístico se faz, para a autora, com a condição de que os fenômenos não se confundam. Nesse trabalho de Pedrosa, o autor apresentou a produção artística como uma transposição “no plano humano das leis da criação cósmica”, em um processo que ultrapassa a aplicação do esquema religioso como simples metáfora ou argumento retórico. O fenômeno não era instituído como uma nova religião, mas os criadores, como entes quase sagrados. A mistificação não é da arte propriamente, mas do indivíduo e seu processo criador. Os elementos religiosos que entraram na receita construíram para o fenômeno artístico uma moralidade à parte de outras dimensões sociais. Uma gramática referida aos sentimentos e emoções foi instituída usando parcialmente a linguagem teológica da alma, mas também os discursos da psicanálise e da psiquiatria. Em termos de lugares de culto, podemos recorrer ao trabalho de Carol Duncan (1995), que apontou os museus de arte como templos de rituais cívicos, onde a arte e a nação são tomadas como entidades quase sagradas. Para Pedrosa, mais do que a arte, um fenômeno abstrato ou os objetos artísticos, eram os artistas que estavam sendo sacralizados.

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Essa sacralização, entretanto, era menos do objeto artístico ou do fenômeno artístico como um todo, do que do processo de criação que aparecia como uma forma de tentar compreender a relação da dimensão interiorizada do indivíduo (ou anterior aos condicionamentos sociais, no caso da criança) e as normas sociais. Isso não era transformar o fenômeno artístico em uma religião, mas era afirmar a sacralidade do processo criativo, que como tal não deveria ser tolhido.

“Nosso vizinho é o mundo inteiro”

Durante o ano de 1948, Pedrosa coordenou um grupo de artistas, constituído principalmente por Ivan Serpa, Abraham Palatnik, Décio Vitório e Geraldo de Barros, que discutia semanalmente a relação entre arte e transtornos psíquicos. Segundo Gláucia Villas Bôas (2006), essas visitas e discussões foram incluídas pela artista Lygia Pape na história do concretismo da década de 1950, que teve Mário Pedrosa como um de seus principais atores sociais. A exposição dos pacientes do STO em 1947 não causou nenhuma grande celeuma no campo artístico. Quirino Campofiorito (1947 apud Dias, 2003) destacou, em nota, sua simpatia pela “interessantíssima Exposição do Centro Psiquiátrico”, inclusive pela beleza artística das peças expostas (p. 128). Falou ainda do trabalho de Osório César, que também desenvolvia algo parecido em São Paulo, relativizando assim a impressão de ineditismo no trabalho de Nise da Silveira. Esse comentário, em alguma medida, também minimizava a participação de Pedrosa nesse empreendimento. Segundo Paula Barros Dias (2003), a maioria das crônicas sobre essa exposição foram positivas por destacarem o valor artístico, científico e educativo de trabalhos, que questionavam as fronteiras da normalidade. Entretanto, alguns artigos, não assinados, que desmereciam o evento e tratavam de forma pejorativa os pacientes e suas produções, foram respondidos por Pedrosa em sua coluna no Correio da Manhã. Esse debate resultou no interesse de médicos, artistas e educadores. O Centro Psiquiátrico Nacional promoveu, então, no Auditório do Ministério da Educação, onde estava a mostra, uma série de conferências para debater essas questões (Dias, 2003).

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Esse seminário permitiu a Pedrosa desenvolver suas reflexões acerca da arte moderna a partir também do diálogo com a educação. O crítico usou a ideia de uma “personalidade artística” para classificar diferencialmente os trabalhos de pacientes que ele considerava ter qualidade estética. Autin, pseudônimo de um paciente, foi apresentado, dessa forma, como um exemplo de “personalidade artística que se prolonga pela doença a dentro”. Esse exemplo era a afirmação de que “o artista em Austin não soçobrou com o soçobro da sua razão consciente” (Pedrosa, 1947b) e, portanto, criação artística e razão não eram mutuamente determinantes. As críticas se concentravam majoritariamente na dificuldade em perceber a diferença entre arte moderna e a produção daqueles pacientes e de crianças. Diante da palestra de encerramento de Pedrosa, Paulo Mendes Campos resumiu o incômodo daqueles que tinham assistido o pronunciamento do crítico: a audiência tinha “se retirado com a impressão de que o artista é mais ou menos anormal e que a realidade do mundo não vale grande coisa” (Campos, 1947 apud Dias, 2003, p. 131). A reflexão sobre os limites entre normalidade e anormalidade contribuiu para a delimitação das fronteiras da criação artística, do artista e da arte moderna. É relevante o fato de Van Gogh ter sido citado algumas vezes nesse texto de Pedrosa (1947) e várias outras vezes em artigos publicados entre 1947 e 1949. Vincent Van Gogh representou uma mudança de paradigma no campo artístico europeu.65 O pintor holandês encarna o investimento da relação ambivalente entre arte e alienação mental, que esteve no cerne dos movimentos intelectuais e artísticos do entreguerras na França. Em 1922 apareceu a primeira publicação de um psiquiatra que mencionava a loucura como central para a arte de Van Gogh (Prinzhorn, 1984 [1922]) e em 1929 foi publicado um trabalho psiquiátrico inteiramente dedicado ao pintor (Pfister, 1929). A esquizofrenia foi exaltada como dimensão constitutiva de sua personalidade e forma de singularização do artis65 Não é à toa que as imagens de Van Gogh são utilizadas como referência nas aulas teóricas no curso de pintura do Parque Lage (Dabul, 2001). O uso daquelas reproduções não se deve a qualidades intrínsecas às imagens, mas ao estatuto do pintor no panteão de artistas modernos.

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ta. Esses estudos foram parte de um processo de naturalização dos artistas em termos de particularidades individuais, a partir da noção de tipos individuais, tal como já havia feito Galton em 186966 (Heinich, 1991). A naturalização do estatuto de artista foi assim parte do processo de desenvolvimento da psicanálise e das tentativas de se racionalizar a excepcionalidade. A relação entre arte e alienação mental, o compromisso entre a interioridade de forças ocultas e sua exteriorização, foi essencial, por exemplo, para o surrealismo, movimento também comentado no texto de Pedrosa: o artista era retirado da normalidade, e a marginalidade, o desvio, passava a ser sua norma; a realidade, por sua vez, era deslocada do mundo externo para um mundo interior, fundamentado na ideia do inconsciente, ou seja, a uma “realidade objetiva” era oposta uma “realidade subjetiva”. Nathalie Heinich (1991) argumenta que, nesse novo paradigma vangoghiano, acontece uma série de deslocamentos do valor artístico: da obra à pessoa, da normalidade à anormalidade, da conformidade à raridade, do sucesso à incompreensão e do presente (espacializado) para a posteridade (temporalizada). Essas são as características do regime de singularidade a partir do qual o mundo da arte passava então a funcionar. O paradigma encarnado por Van Gogh instituía também a ideia da obra de arte como produto do sofrimento. O comentário de Paulo Mendes Campos é exemplar nesse sentido, pois o que Mário Pedrosa fazia era exatamente estabelecer os vínculos com aquele paradigma vangoghiano a partir de situações concretas, isto é, uma vez estabelecido o paradigma na Europa, seus efeitos eram encontrados em fenômenos nacionais que confirmavam sua universalidade. 66 Nancy Stepan (1991) apresenta de forma sucinta a teoria de Galton, que foi o primeiro a sistematizar uma teoria que afirmava diferenças e construía fronteiras supostamente naturais, isto é, biologicamente determinadas, limitando os indivíduos à participação na “raça humana” como membros de “tipos” fundamentais. A eugenia, termo cunhado em 1883 para definir um suposto conhecimento sobre as leis da hereditariedade humana, tem proximidade com a questão da “melhoria da raça” seja através da presença da ideia de “raça humana” ou de porções da população humana percebidas como divididas em raças distintas e desiguais. A eugenia contribuiu também para a estruturação das noções de inclusão e exclusão das populações nos corpos nacionais, dando a esses corpos uma identidade étnica.

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Nesse processo, Pedrosa deslocava o valor da obra para o processo de criação, ou para a particularidade de uma experiência individual. Além da psicanálise, a educação surgia como outra dimensão de um diálogo interdisciplinar com a arte moderna. O crítico acompanhava de perto as experiências de Ivan Serpa com crianças, de Guignard com seus alunos e as aulas de gravura oferecidas por Carlos Oswald, Santa Rosa e Axl Leskoschek no “Centro de Desenho e Artes Gráficas da Fundação (infelizmente)67 Getúlio Vargas” (Pedrosa, 1947a). Segundo Iná Camargo Costa (2001), para Pedrosa essas experiências tinham “método e alcance, inclusive político” (p. 63). A Escolinha de Arte do Brasil, coordenada por Augusto Rodrigues, foi inaugurada em 1948, mas as experiências com educação artística vinham se desenvolvendo no Brasil desde a década de 1930. Herbert Read havia organizado uma exposição de trabalhos infantis no Museu Nacional de Belas Artes, em 1941, e publicou na Inglaterra seu primeiro livro, A educação através da arte, em 1943. Segundo David Thistlewood (1986), as ideias de Read foram um sucesso quase imediato na Europa devido à crença vigente de que as guerras eram resultado da educação que estava sendo oferecida às crianças. A divulgação internacional dessa ideia pode ser percebida nos arquivos da Unesco, que logo de sua inauguração já apresentava interesse no uso da arte na educação (Unesco, 1946, p. 143). Herbert Read contribuiu de diversas formas com aquela organização e também participou intensamente dos congressos da Aica desde seu início, em 1948. Pedrosa citava Read em seus artigos para defender a ideia de que a “inutilidade” da arte, isto é, a ideia de que “uma obra de arte é desinteressada porque não é feita para ganhar dinheiro, nem para provar uma tese, justificar um programa político ou defender um partido. Ela é pura e desinteressada; embora os móveis aparentes ou ocultos do artista sejam os mais contraditórios”, não significava que a arte não tivesse “servidão”. Para o crítico, “em meio à cerração do mundo contemporâneo, em que os povos espavoridos não sabem se já se livraram 67 Incluo a crítica irônica de Pedrosa como forma de mostrar que o interesse pela política não desapareceu quando ele passou a se dedicar mais intensamente à crítica de arte, mas só aparecia residualmente, quando o autor tratava de artes plásticas.

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dos horrores de uma guerra ou se já estão sob a ameaça de outras, a arte tende a integrar-se cada vez mais na vida moderna” (Pedrosa, 1947g). Afirmava, assim, o caráter “desinteressado” (Osborne, 1993) da arte, defendendo ao mesmo tempo uma função para a arte moderna. Ao discutir as várias acepções de autonomia na arte moderna, Eric Michaud (2005) comenta a aporia de se definir para a arte um papel de transformação da sociedade e/ou dos indivíduos que implicaria o repúdio a essa pretensão ostentada de autonomia. Nessa relação com a educação, ficava ainda mais clara a ênfase no processo de criação em detrimento do objeto produzido: “O objetivo principal de uma ocupação artística persistente e sistemática não está, no entanto, na produção de obras-primas, nem mesmo na construção desta ou daquela obra em particular. O que sai das mãos ou da cabeça do incipiente artista ou artesão não é o que importa. O que importa é o que ganha, com tais atividades, a sua personalidade: o controle dos sentimentos, o desenvolvimento harmônico dos sentidos, o despertar da sensibilidade, o equilíbrio interno das emoções” (Pedrosa, 1947g). A arte aparecia novamente como um instrumento, desta vez não mais para a luta de classes, mas como uma mediação na relação entre os sentimentos e as regras sociais. Educação, psiquiatria, psicanálise e artes plásticas juntas formaram um conjunto de disciplinas que se influenciaram mutuamente no processo de reflexão sobre a arte e o indivíduo, transformando o estatuto do fenômeno artístico, seu papel nas relações sociais e as representações sobre uma nova sensibilidade moderna. A reformulação da noção de autonomia da arte se fazia ao custo de deslocamentos que permitiam atribuir funcionalidade não mais à obra de arte ou ao artista, mas ao processo de criação. Mário Pedrosa trazia para o campo artístico as dimensões da educação, da psiquiatria e da psicanálise. Esse processo trazia para o debate da arte moderna uma rede cada vez mais complexa de atores sociais interessados nas condições de consagração de novas áreas profissionais, cujos debates já estavam se desenvolvendo na Europa e nos EUA desde o final do século XIX.

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Uma série de escritores, críticos de arte e artistas contribuiu para a construção das representações do artista moderno, do processo de criação e da arte moderna tanto na Europa como no Brasil. Mário Pedrosa, contudo, encarna sozinho o papel de principal responsável pela articulação dos diversos campos de conhecimento que contribuíram para as transformações no estatuto da arte e do artista, no Brasil. Pedrosa foi, de fato, o principal ator no processo de transformação dos valores e práticas do campo artístico após a Segunda Guerra. Entretanto, só foi possível que esses novos valores tenham sido introduzidos no campo, gerando novas práticas, porque outros atores inclusive de outras esferas disciplinares estavam refletindo e se apropriando dos discursos sobre as condições de produção desse fenômeno na modernidade para a legitimação de práticas inéditas em suas respectivas áreas. O diálogo entre as disciplinas não pode ser negligenciado ao tentarmos compreender esse processo. Foi importante, nessa série de posições sucessivamente ocupadas por Pedrosa no espaço social, ele mesmo submetido a constantes transformações, sua participação, em 1948, no primeiro Congresso Internacional da Crítica de Arte. Esse congresso marcou um importante passo no processo de institucionalização da crítica de arte no Brasil e na França. Como a rede internacional de instituições (associações, museus, comissões) ainda não estava formada, a mediação entre os profissionais e a organização do Congresso Internacional de Críticos de Arte se deu através dos ministérios públicos de seus respectivos países. Assim, o contato entre os críticos dos diversos países convidados a participar dos primeiros congressos internacionais foi feito através das embaixadas das relações exteriores desses países. Imaginamos que o contato com os críticos de arte brasileiros tenha sido feito por Celso Kelly, crítico de arte e membro do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), organização relacionada à embaixada das relações exteriores do Brasil e encarregada de fornecer informações requisitadas pela Unesco nos seus diversos empreendimentos (Unesco, 1948). Entre os documentos relativos ao primeiro congresso, em 1948, encontra-se, além das fichas de inscrição, um pequeno resumo dos

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cargos ocupados por aqueles que se inscreveram no evento. Participaram desse primeiro encontro os críticos brasileiros Antônio Bento (sobre o qual se ressaltou que, além de ser crítico de arte do Diário Carioca, era também admirador e amigo íntimo de Portinari), Mário Pedrosa (crítico do Correio da Manhã), Maria Barreto (cronista de arte d’O Globo), Maria Eugênio Franco (correspondente em Paris para O Estado de São Paulo e contribuinte do periódico Arts et Lettres), Sérgio Milliet (diretor da Biblioteca do Estado de São Paulo; foi também ressaltado, sobre Milliet, o fato de ser ele “uma das personalidades intelectuais mais importantes e remarcáveis do país”), Quirino Campofiorito (professor do Instituto de Arte do Rio de Janeiro, tinha, segundo as anotações, um segundo lugar em termos de importância intelectual em relação a Milliet), Mara de Figueiredo e Oswald d’Andrade (que não tinham nenhum comentário anexado a seus nomes) (Cica, 1948a), e José Martins, Vera Pacheco Jordão e Gilda Cesário Alvim, cujos nomes não constavam nessa lista, mas aparecem em outros documentos do congresso (todos com fichas de inscrição em seus nomes). A menção a Portinari provavelmente dizia respeito à visibilidade que o pintor ganhara com sua participação na Exposição Internacional de Arte Moderna e na exposição organizada por Germain Bazin na galeria Charpentier. Esses eventos renderam a Portinari sua inclusão no livro organizado por Lassaigne, Cogniat e Zahar (Lassaigne, 1947),68 além das várias críticas publicadas sobre o artista.69 Portinari foi ainda citado por um dos expositores desse primeiro congresso, Louis Piérard (1948), como um exemplo a ser seguido em relação

68 Alguns dos tópicos sobre os quais o livro falava são indicativos de temas comuns que estavam sendo discutidos no Brasil e na França no mesmo período e dos processos de delimitação nacional da produção artística: Tentative d’art mural; Art et résistance; Art abstrait et art concret; L’art et la folie; L’art des enfants; Visages de l’art contemporain; L’art flamand en Hollande, l’art hollandaise en Belgique; Les peintres belges; Artiste anglais contemporains; Les collections royales anglaises; La nouvelle peinture française; Peintres de Bretagne; L’art suisse; L’art tchécoslovaque; L’art turc; Artistes sud-américains (com uma foto de uma obra de Portinari, que parece um detalhe de um dos painéis da biblioteca de Washington). 69 Auricoste (1946), Auricoste (1946a), Bazin (1946), Bazin (1946a), Cassou (1946), Chastel (1946), Chevalier (1946), Christ (1946), Cogniat (1946), De Cayeux (1946), Diehl (1946), Emmanuel (1946), Florisoone (1946a), Garaudy (1946), Huyghe (1946), Jakovsky (1946), Lentin (1946), Seghers (1946).

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à visibilidade dada ao pintor, que deveria ser estendida para outros artistas de fora da Europa. Dois anos mais tarde, Portinari foi indicado pelos críticos brasileiros como um dos artistas que deveria ser convidado a participar do primeiro Congresso Internacional de Artes Plásticas organizado pela Unesco. Ele acabou não participando do evento, no qual estiveram presentes Heitor Villa-Lobos, Lúcio Costa, Vinícius de Morais e Thomas Santa Rosa. Uma das resoluções adotadas nessa Conferência foi a organização de uma Associação Internacional de Artes Plásticas com sessões nacionais. No Brasil, essa associação foi inaugurada ainda em 1952, e Portinari associou-se desde o primeiro ano.70 Esses fatos são indicativos não propriamente do prestígio de Portinari na Europa, mas do debate que ele representava, como mencionado no livro de Lassaigne (1947) no ano anterior: “sua exposição particularmente observada foi o ponto de partida de uma controvérsia cuja natureza deixa prever algumas curvas na via estética”. Mais do que o conhecimento por parte dos críticos franceses sobre a produção artística dos países periféricos, tema central da fala de Piérard (1948), a menção ao pintor brasileiro remetia à disputa que sua exposição, em 1946, contribuiu para exaltar e que ainda estava em andamento. Os termos da disputa versavam sobre a validade da representação figurativa, a instrumentalidade da arte e o papel da abstração na autonomia da forma e do artista. A presença de Jean Thomas, Diretor Geral adjunto da Unesco, na abertura do congresso, pedindo “cooperação internacional no domínio artístico”, talvez tenha contribuído para a “atmosfera de cordialidade” que reinou durante todo o evento (Arts, 1948), minimizando as disputas estético-políticas. Afinal, a Unesco era uma das principais patrocinadoras do evento (junto com o Ministério da Educação Nacional francês e o editor da revista Arts, George Wilderstein). Mas 70 Nenhuma documentação, além de dois artigos de jornal (arquivados no Projeto Portinari), foi encontrada sobre a sessão brasileira dessa associação. Entretanto, há indícios de que ela existiu com o nome de Associação Brasileira de Artistas Plásticos, pois consta no acervo de documentos da artista Olly Reinheimer um recibo de mensalidade pela participação da mesma nessa Associação, em 1982.

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os embates não foram totalmente obliterados: para Lionello Venturi (Itália), Herbert Read (Inglaterra), Pierre Lelièvre e Laure Garcia (França), L.P.J. Braat (Holanda), Charles De Mayer (Bélgica), essa foi a questão central discutida em suas comunicações. Esse debate não estava, portanto, nem encerrado, nem era restrito a um único país. Nomes importantes da crítica de arte nacional e internacional fizeram parte dessa associação desde sua fundação até os anos 60: André Chastel, Jorge Crespo de la Serna, Pierre Courthion, Charles Estienne, Paul Fierens, Chou Ling, Miroslav Micko, Herbert Read, Marc Sandoz, Gino Severini, James Johnson Sweeney, Albert Tucker, Lionello Venturi, Eduardo Vernazza, Marcel Zohar, Giulio Carlo Argan, Pierre Restany, Jean Cassou, René Huyghe, Germain Bazin, Meyer Schapiro, Jorge Romero Brest, Jacques Lassagne, entre outros. E da crítica brasileira: Sérgio Milliet, Mário Barata, Mário Pedrosa, Lourival Gomes Machado, entre outros. A última filiação institucional de Pedrosa havia sido em 1938, na IV Internacional Comunista, de onde foi afastado. Após dez anos de estudos e investimentos no campo artístico, ele era novamente membro de uma instituição, mas agora em outra esfera social. Se o seu interesse inicial na arte havia sido pela participação dos artistas na luta de classes, ele agora concebia o fenômeno artístico como uma dimensão de investimento individual, mas ainda assim identificado com a construção de uma nova sociedade. Durante o ano de 1948 foi fundado o primeiro núcleo de artistas abstratos no Rio de Janeiro (diversos autores – Amaral [1991], Mari [2006], entre outros – destacam a exposição de Calder no MAM-RJ nesse ano como importante influência para a formação desse grupo). Nesse mesmo ano, Pedrosa discutiu com o grupo de artistas que frequentava sua casa a experiência no STO e também o que viria a ser a tese Da natureza afetiva da forma na obra de arte. Essa tese foi defendida em 1951 no concurso para professor catedrático na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Brasil, para a cadeira de História da Arte e Estética (Pedrosa, 1951). Em 1949, ele reuniu em um livro as críticas publicadas entre 1933 e 1948, quase todas no Correio da Manhã, seus textos iniciais sobre

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Kathe Kollwitz, Alexander Calder e Candido Portinari e textos mais recentes, incluindo o de encerramento da exposição do ateliê do Engenho de Dentro. Muitos intelectuais consagrados comentaram positivamente o livro: Antonio Bento (1949), Marc Berkowitz (1949), José Lins do Rego (1949), Sérgio Milliet (1949 e 1949a), Cláudio Abramo (1949) e Carlos Drummond de Andrade (1949). Uma crítica não assinada no jornal O Globo resumia o papel do crítico diante das novas formas de expressão: “mais um fruto nos dá a expressão moderna da arte que fugindo aos cânones do academismo não reclama apenas que se veja a obra mas que se interprete também. Aliados aos que fugindo aos preconceitos e convenções de copiar a natureza procuram criar divinizando a arte, os críticos sentiram-se chamados à tarefa apostolar de pregar às multidões de intelados deles fazendo novos convites das artes plásticas em evolução. E entre esses críticos está Mário Pedrosa que, no momento, se encontra na Europa representando com outros patrícios, o Brasil no Congresso que se realiza em Paris” (O Globo, 1949). É indicativo que o comentário seja encerrado com a menção à participação de Pedrosa no congresso internacional em Paris. O olhar estrangeiro novamente servia como legitimação de uma trajetória que vinha até então se construindo como marginal nas discussões sobre arte no Brasil. Até 1949, o crítico já tinha definido os principais pontos de sua concepção sobre o fenômeno artístico e começado a firmar uma posição de destaque no campo. Um dos sinais de que Pedrosa percebia que o processo de renovação das reflexões sobre arte que estava propondo começava a surtir efeito foi o aparecimento de sua primeira crítica contundente ao trabalho de Portinari (Pedrosa, 1949a). Entretanto, se a trajetória das sucessivas posições ocupadas por ele no campo artístico brasileiro estão referidas principalmente ao diálogo com os artistas, críticos de arte e outros intelectuais e profissionais de áreas diversas atuantes no Brasil, não é menos importante o significado da instituição da Associação Internacional de Críticos de Arte. Como colocou o crítico belga Louis Piérard (1948), e o próprio Pedrosa também já havia chamado a atenção em outra ocasião (1946), o mundo após a Segunda Guerra havia encolhido. Em termos também

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artísticos, a vizinhança da França passava a ser “o mundo inteiro” (Piérard, 1948) e não mais somente os países europeus. Isso não significava que os artistas brasileiros, ou de outros países periféricos, teriam chances iguais de participação no mercado internacional de arte. Mas significava que os críticos de arte, principalmente aqueles que participavam desse mercado, não dialogavam mais somente entre si, mas também, e talvez principalmente, com seus pares dos outros continentes.

Capítulo 4 AICA: a inscrição de uma nova ordem A revisão dos valores artísticos esteve intrinsecamente relacionada ao processo de conquista de um novo estatuto para os críticos de arte. Nesse processo, a organização de uma associação internacional ligada à Unesco e, através dela, a outras associações profissionais internacionais representou um papel importante pela legitimidade que conferiu a essa categoria socioprofissional. É ilustrativo o comentário de um crítico de arte, ex-presidente da seção brasileira da associação, com quem tive contato durante esse trabalho de investigação (2006), que mostra a eficácia de tal empreendimento. Segundo ele, atualmente o sentido da troca havia se invertido. Se no começo a Aica é que conferia prestígio aos críticos, hoje eram os críticos que conferiam prestígio àquela. A importância da Aica no contexto brasileiro pode ser inferida pela presença de diversos de seus membros nos eventos e instituições nacionais, como Leon Degand, que foi diretor do MAM-SP, o congresso extraordinário dessa associação, organizado por Pedrosa e outros críticos brasileiros em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, quando da inauguração dessa capital, e a participação de críticos filiados à Aica como jurados nas bienais de São Paulo. A presença de outros críticos, além de Pedrosa, nos congressos e assembleias também não foi esporádica. Assim, apesar de ter sido este o principal difusor dos novos valores, Mário Barata, Antonio Bento, Sergio Milliet e outros também participaram ativamente dos eventos internacionais dessa associação, acompanhando as discussões que eram então traduzidas para o contexto brasileiro. 219

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Nos primeiros anos da associação, entretanto, esse prestígio ainda precisava ser construído entre os próprios críticos. Assim, em 1948, um dos objetivos do congresso foi “lembrar a seus membros que se a crítica deve se mostrar modesta em relação a seu passado, ele não deve menos encarar as esplendidas ocasiões que o futuro lhe oferece” (Aica, 1948). Quase dez anos depois, a questão do estatuto dos críticos reaparecia já em outro patamar. A secretária-geral da Aica, Gille-Delafon, lembrou “um ponto delicado e que inquieta e há muito tempo resta a elucidar: os críticos de arte, de fato, não são admitidos na Unesco na categoria de ‘artistas criadores’ que compreende outros escritores, romancistas, novelistas etc. e os pintores, escultores, arquitetos. É engraçado pensar que Malraux, como crítico de arte, não seja considerado como ‘artista criador’ enquanto o é não importa qual pintor ou arquiteto que freqüentemente faz somente plagiar as formas antigas” (Aica, 1957, ênfases no original). A legitimidade da crítica de arte foi instituída através de uma relação metonímica entre o artista e o crítico. Assim, falar dos novos valores atribuídos à arte moderna durante o período investigado é, em grande medida, compreender os valores que os críticos de arte estavam construindo para si mesmos enquanto categoria profissional. Os congressos internacionais e as assembleias-gerais da Aica serviram como espaço de encontro desses atores sociais. Nesses espaços, trocou-se conhecimento sobre arte moderna e produziu-se um éthos específico para aqueles que se interessavam pela análise e interpretação da produção de artistas vivos. Ao longo do tempo, chegou-se à conclusão de que a crítica de arte era uma forma de interpretar as obras e, portanto, podia ser aplicada tanto às obras do presente como às do passado, contanto que as análises históricas estivessem ausentes. Uma narrativa linear não dá conta de todas as questões que esse processo engendra, já que diversos efeitos se desdobraram em direções variadas. Não é o objetivo aqui sistematizar esse debate, somente indicar alguns dos caminhos que contribuíram para a redefinição de valores e a reafirmação da autonomia artística. Nesse sentido, a organização cronológica dos autores e temas não é a melhor forma

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de apresentar essas disputas, haja vista que a definição do campo se deu nos debates entre temas e autores específicos e não a partir de uma sucessão de fatos, temas, autores e metodologias que se superpõem. Os autores dialogavam com diversas teorias e procedimentos de análise do fenômeno artístico como forma de afirmar um campo profissional e disputar o melhor caminho para a interpretação desse fenômeno. A definição dos métodos e objetivos em relação à crítica de arte era uma forma de tentar unificar uma atividade que se encontrava fragmentada e dispersa. Dialogando com as diversas teorias e procedimentos de análise do fenômeno artístico, os autores procuravam afirmar um campo de estudos e disputar o melhor caminho para se interpretar uma dada realidade. Procurava-se estabelecer modelos legítimos para a interpretação dos fenômenos artísticos através de uma base comum, referindo-se assim às fronteiras com outras disciplinas que tangenciavam essa temática. Assim, o presidente da Aica anunciava em seu discurso de abertura da assembleia-geral de 1952: “Queremos nos unir, unificar sem padronizar” (Fierens, 1952, p. 2). No artigo escrito para a comemoração dos 50 anos da Aica, Hélène Lassalle (2002) chamou a atenção para a atmosfera de paz e harmonia que reinava entre críticos de posturas estéticas opostas. Para a autora, interessava a todos se apresentarem como uma unidade profissional. O diálogo travado com a história da arte, a filosofia e a psicologia apontava para esse processo de delimitação de uma atividade que queria conquistar espaço acadêmico, marcando sua especificidade. O presidente da seção alemã da Aica, Franz Roh, por exemplo, argumentou em 1956 que ainda existia na Alemanha um intenso debate “sobre a questão de se os problemas relativos à arte do século XX e do presente deveriam ser permitidos como teses científicas para o grau de doutor”. Roh declarava: “eu mesmo fui chamado no Congresso Alemão de Historiadores da Arte em Essen para lidar com essa questão. Eu me esforcei para mostrar dialética e teoricamente que a pureza e a profundidade de um trabalho científico não dependem da data do objeto sob escrutínio” (Roh, 1956). Mencionei anteriormente o comentário

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de Jacques Leenhardt sobre a relação das universidades com a arte moderna, argumentando que somente a partir de 1968 passou a ser permitida a produção de artistas vivos como tema de pesquisas acadêmicas (Leenhardt, 2007). A falta de interesse dos historiadores nos artistas e obras de arte do presente e a crescente quantidade de exposições itinerantes de arte moderna criavam um vazio que precisava ser preenchido por um novo tipo de ator social. A intensificação da circulação de exposições foi comentada pela conservadora do museu de Boulogne sur Mer et Calais, Julies Paublan (1948), no primeiro Congresso Internacional de Críticos de Arte. Entretanto, esse fenômeno foi tratado também em diversos documentos da Unesco, como, por exemplo, em um relatório submetido por Claude Lévi-Strauss sobre “uma missão no Paquistão”, no qual argumentava que o Departamento de Belas Artes da cidade de Lahore estava interessado em organizar pela primeira vez uma exposição de pintura moderna.71 O interesse específico por parte do Departamento de Belas Artes paquistanês era proveniente do processo de dissolução do Império Britânico, que dividiu a antiga Índia em dois países e diminuiu consideravelmente a coleção de arte tanto no Paquistão quanto na Índia. O papel que as artes plásticas vinham cumprindo no processo de reestruturação das fronteiras geopolíticas após a Segunda Guerra pode ser percebido em um relatório apresentado na Conferência Geral da Unesco, de 1950, fundamentado em parte em um relatório de René Huyghe (membro do Icom e da Aica). O relatório argumentava que o aumento das exposições temporárias se devia, em grande parte, ao fato dos Estados nacionais estarem recorrendo à arte como forma de se retratar, reconstruir etc.: “nações vitoriosas desejando realçar (enhance) seu prestígio, nações conquistadas ansiosas em se reabilitar, nações industriais em busca de novos mercados, nações jovens invocando seus ancestrais – todas recorrendo à cultura” (Unesco, 1950, p. 2). 71 Dina Lévi-Strauss, esposa do antropólogo, fazia parte do Icom e foi em nome dela que a carta-resposta ao Departamento de Belas Artes daquela cidade foi escrita.

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A preocupação em definir o papel da crítica de arte surgia em grande parte dessa demanda. Julies Paublan (1948) ia ainda mais longe e argumentava sobre a importância das reproduções de obras dos museus serem analisadas por “comentadores autorizados”, que marcassem a orientação da arte nos diferentes países, isto é, que fosse garantida uma linha de interpretação. A Aica foi também, em parte, uma forma de definir quem seriam esses “comentadores autorizados”, e isso era feito através da definição de critérios para a participação na associação. Eram possíveis dois tipos de vínculos, um estritamente nacional, rotulado como “aderente”, e outro internacional, que eram os “membros” efetivos. Somente aqueles que eram “membros” podiam participar das decisões da associação, tinham direito a voto e podiam ocupar posições de prestígio, como a presidência e a vice-presidência. O papel do crítico, que no século XIX se confundia com um “croniqueur de modes artistiques” (Marx, 1949), já não satisfazia esse novo estatuto de analista e intérprete de obras que circulavam por instituições nacionais e internacionais. É na contramão da noção de “cronista de modas artísticas” que o crítico francês Claude Roger Marx (1949) reclamava um novo estatuto para aquela categoria profissional. O crítico inglês Denys Sutton (1948) chamava a atenção para o papel de liderança que os críticos de arte deveriam ter no campo artístico, e diversos outros críticos também discutiram esse tema. Para o francês André Chastel (1949), se o papel do crítico tinha sido claro no período acadêmico, naquele momento ele tinha se tornado menos evidente, e suas responsabilidades vagas. Na época acadêmica sua função era de informar, o que o aproximava dos jornalistas. Entretanto, para o autor, esse não era mais seu papel. Fundamentado em um trabalho de André Malraux, Chastel propunha uma revisão do papel do crítico como instrutor e educador do público: “ele não está mais nem encarregado de formar e instruir metodicamente seus leitores, nem deve buscar antecipar o trabalho do historiador” (Chastel, 1949, p. 1). Segundo Chastel (1949), “é suficiente que ele interesse e provoque; é já muito fornecer amanhã ao ensino e mais tarde à história, análises

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válidas, quadros de reação apreensivas e profundas, fórmulas felizes e imagens claras. Que ele seja (...) testemunho e explicador eloqüente e rápido do que é a razão de ser da arte, isso é suficiente, me parece, para definir realmente seu papel, mesmo se isso é muito mais e muito menos ao mesmo tempo do que se espera dele” (p. 1-2). O papel do crítico era assim diferenciado daquele do historiador, que situava a obra e o artista em seu contexto, procurando os vínculos sociais aí presentes. Ainda que a história não fosse objetiva, a atribuição de uma relação entre a obra e a personalidade artística a um período histórico excluía, para Chastel (1951), a ideia de “liberdade”, noção que fundava as reivindicações da categoria. Para o francês Marc Sandoz, a história da arte determinava as circunstâncias históricas da obra e do artista, partindo dos fatos, analisando os testemunhos e procurando as causas e as fontes. Indo às consequências para articular as conclusões, a história da arte possuía um método próprio. A crítica de arte, por sua vez, consistia em “determinar a posição de uma obra de arte em relação a uma estética: aquela do belo” (Sandoz, 1949, p. 3). Um primeiro ponto de distinção entre a crítica e a história da arte era o grau de certeza sobre as quais ambas se apoiavam; no caso da crítica, “não há verdade absoluta”, ela “está mais sujeita às inflexões de caráter subjetivo”. “Entretanto, a crítica pode dar lugar a um método de análise e, por conseqüência, de conhecimento, que não tem menos valor que o método histórico” (Sandoz, 1949, p. 4). Para Sandoz (1949), caberia à crítica de arte julgar o valor das obras. Assim, questionava ele, “em que nos importa, para apreciar o valor da arte de uma obra, as circunstâncias históricas?” (p. 5). A história interessava após o julgamento, para completar o conhecimento da obra. “Não é porque determinamos que um castelo seja da primeira metade do século XI e não da primeira metade do século XII que teremos estabelecido o valor da arte; esse valor da arte, deve-se julgá-lo em termos de arquitetura e de escultura para determinar sua contribuição no domínio da arte” (Sandoz, 1949, p. 6). A história da arte aparecia então como um critério complementar e “não como um fim em si”. “Fazendo assim, nós destacaremos as características distintivas das obras, ou seja, sua originalidade” (p. 6, ênfase no original).

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Para o crítico e historiador italiano Lionello Venturi, havia um método diferente para a análise de cada nova obra. O crítico se aproximava assim do próprio artista moderno. Para Venturi (1949), “o que importa é evitar não somente as leis da arte, mas também as leis da crítica, para criar continuamente verdades novas”. E foi fundada nessa relação metonímica da crítica de arte com o próprio artista que Paul Firens declarou não ter estado inteiramente de acordo com sua indicação para presidir novamente o congresso internacional, em sua segunda edição (apesar de tê-lo finalmente aceito). Nas palavras do crítico belga: “Me parecia que a crítica de arte, como a arte mesma, repugnava as repetições, o status quo, que sua lei era, senão o progresso, ao menos a evolução, a mudança. Mas me fizeram ver que toda a regra precisa de uma exceção que a confirme” (Fierens, 1949). Fierens falou da crítica de arte como uma espécie de “apostolado”, no qual o crítico tem “o dever, a todo preço, de descobrir sua verdade e a dizer” (Fierens, 1949, p. 3, ênfase no original). Por isso, em sua opinião, “não há crítico digno desse nome se não for livre e sincero” (p. 3). Alguns dos valores considerados como fundamentais para a arte e o artista, noções como originalidade, liberdade e sinceridade, eram reforçadas pela sua inserção na constituição da identidade socioprofissional dos críticos de arte. No processo de autonomização do campo, as regras a partir das quais as obras e os artistas eram julgados deveriam valer também para os outros atores e instituições que configuravam o espaço social no qual o fenômeno estava inserido. É nesse sentido que o uruguaio Eduardo Vernazza (1949) desafiou: “façamos gravar em nossos espíritos a palavra artista”. Além de intérpretes, os críticos eram agora juízes das obras e artistas, através dos diversos novos prêmios que foram criados na década de 1950, dos quais compunham os júris. Para esse novo espaço social que os críticos se preparavam para ocupar, era preciso estender para si a legitimidade de outras categorias socioprofissionais, como a de artista, historiador ou filósofo, marcando ainda assim sua especificidade. A filosofia aparecia então como a disciplina que ordenava e formulava os princípios universais implícitos na interpretação e avaliação que a crítica de arte fazia. A crítica de arte devia se servir da filosofia

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como um instrumento para o reconhecimento da garantia teórica, da justificação interna das obras, mas “os fins de uma não pod[iam] se confundir com os fins de outra” (Assunto, 1954, p. 1). Lionello Venturi fez uma distinção parecida à do crítico italiano Rosario Assunto ao atribuir à filosofia o papel de responder “à pergunta: o que é a arte? [Enquanto] a crítica tem o papel de encontrar a relação entre a obra individual e a definição filosófica que da arte se pode deduzir se aceitamos a obra no domínio da arte, ou a excluímos” (Venturi, 1954, p. 1). Os críticos estavam preocupados, sob diferentes pontos de vista, com a disciplina enquanto autoridade legítima para construir representações sobre a “arte viva” (o que aos poucos ganhou a classificação de “arte contemporânea”). Havia nesse processo uma tentativa de se constituir a ideia de uma cientificidade para a crítica de arte. As teorias sobre “atenção desinteressada” desenvolvidas no século XVIII (Osborne, 1993) e os discursos da “arte pela arte” pronunciados no século XIX por autores como Flaubert, Baudelaire, Banville, Huysmans, Villiers, Barbey e Leconte de Lisle (Bourdieu, 1996a) encontraram novas condições para desafiar os modelos de análise e interpretação da obra de arte, sem fazer referências ao mundo social. O surgimento no começo do século XX da abstração, uma arte cujo tema central era ela mesma, o surgimento de uma rede de instituições internacionais e o contexto geopolítico (a recente história do fascismo – de direita e de esquerda – e as redivisões do mundo pós Segunda Guerra) sugeriam o afastamento da história, das ideologias políticas, dos pertencimentos coletivos (em geral, associados ao pertencimento nacional ou de classe) e apontavam para o indivíduo e a psicologia como conhecimentos disciplinares nos quais fundamentar os novos cânones artísticos. Essa possibilidade, que era quase uma exigência, esteve presente nas palavras do presidente da Aica, Paul Firens (1949): “na escala internacional onde iremos nos situar, trataremos de transcender os particularismos mais marcados e unificar os princípios de nossas relações assim como nossos métodos de trabalho” (p. 4). Entretanto, a subjetividade era rejeitada como tautológica. A proposta do norte-americano Helmut Hungerland (1949) sugeria assim

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uma crítica que fosse empiricamente fundamentada na obra e não em fatos históricos. Com uma interpretação bem mais sociológica que aquelas de seus colegas de associação, Hungerland rejeitava a ideia de uma completa subjetividade da avaliação estética que estava implícita nas noções de singularidade e autenticidade atribuídas aos objetos artísticos e seus produtores (artistas e críticos). Argumentava que, se o crítico era um intérprete, as escolhas para interpretar umas e não outras já traziam implícitos julgamentos de valor. Sua questão então não era se os julgamentos de valor comparativos eram possíveis, mas como avaliar comparativamente sem cair em um sistema de valores absolutos e universais. Para o autor, a crítica devia estar fundamentada na psicologia da percepção, pois as similaridades se davam em termos da totalidade, da configuração da obra, de sua Gestalt,72 e não de características específicas. O substantivo, que significa forma/configuração, em alemão, havia sido transformado em conceito no início do século XX por um grupo de estudiosos interessados em investigar as bases fisiológicas da percepção visual (Engelmann, 2002). Uma das preocupações de Hungerland era compreender “as bases para a classificação das obras de arte” e mostrar o porquê de percebermos como similares pinturas classificadas como pertencentes ao mesmo estilo. Hungerland partia de uma situação hipotética na qual duas pessoas discordam em relação aos valores estéticos de uma pintura, para argumentar que é possível transformar o julgamento estético das pessoas. Para ele, o desacordo refere-se às diferenças de opiniões, interesses, desejos, atitudes etc. O crítico de arte tinha que ser capaz de fazer uma pessoa mudar de opinião quanto ao valor de uma obra de arte. Para ele, “já que a crítica de arte não está preocupada exclusivamente com a atitude do percipiente, mas com as condições na obra de arte em relação às quais tais atitudes são tomadas, seria necessário 72 Hungerland utilizava o conceito de Gestalt aplicado às artes plásticas dois anos antes de Pedrosa defender a tese “Da natureza afetiva da forma nas artes plásticas”, isto é, no ano em que Pedrosa estava discutindo todas essas questões com os artistas que frequentavam o atelier do STO. A tese de Pedrosa foi defendida em 1951, para o concurso para a cadeira de História da Arte e Estética da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Brasil (Pedrosa, 1951). É possível inferir que ele tenha assistido à comunicação do crítico norte-americano e sido influenciado por ela.

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chamar atenção para aqueles aspectos do trabalho que, na opinião do crítico, tornariam uma mudança [de opinião por parte do percipiente] desejável e justificável” (Hungerland, 1949, p. 8). A definição de arte e dos valores estéticos tinha relação com o papel que estes tinham em determinado grupo cultural e o comportamento das pessoas perante a arte e não com qualidades da obra de arte. O papel do crítico era, diante da não aceitação de determinada obra, “induzir” (inducement) a pessoa a mudar as expectativas e ressaltar aspectos da obra que levassem a novas atitudes em relação à experiência estética e a obras específicas. Não era assim suficiente prever certas consequências, como a sensação de prazer, caso se adotasse uma nova atitude. Isso seria reafirmar o que era socialmente aceito, isto é, a experiência de prazer ante a obra de arte. Hungerland argumentava que a tentativa de esclarecer a questão, justificando o valor da obra através de categorias como “harmonia”, “integração” etc., tomadas como propriedades do objeto, faziam confundir mais do que esclarecer. Argumentava que a obra devia ser abordada a partir dos objetivos propostos por ela, e não pelos valores socialmente aceitos para a arte, isto é, os “padrões perceptivos” já estabilizados. Segundo Hungerland (1949), “enquanto a relativa estabilidade e uniformidade de padrões perceptivos é a base para a crítica organizada, ele cria, por outro lado, o problema com o qual estamos lidando aqui. Desacordos em relação aos valores estéticos de obras de arte freqüentemente, se não regularmente, ocorrem quando novos estilos aparecem na arte que não podem ser criticados em termos dos padrões de percepção prevalentes e aceitos” (p. 12). “Freqüentemente se condena como ruim tudo que difere do que se está acostumado a perceber” (Hungerland, 1949, p. 13). Hungerland propunha que, “durante o processo de verificação, o crítico deve apoiar suas afirmações se referindo constantemente em fatores pictóricos observáveis, e deve guiar a percepção do observador por meio de uma descrição que opera com constantes referências cruzadas (cross-reference) entre o que o crítico argumenta que o percipiente deveria ver e aqueles fatores na pintura os quais deveria

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apoiar seu argumento” (p. 16). Ele argumentava que esse método não faria “desaparecer todos os desacordos”, nem justificaria “todos os julgamentos de valor”, mas acreditava que contribuiria para uma maior clareza da crítica (p. 17). O autor falava assim de uma crítica empiricamente fundamentada na obra e em sistemas simbólicos, e não na normatividade de categorias perceptivas “alegadamente universais”. Mostrava o processo de construção e desconstrução de valores mais ou menos relevantes. Talvez ainda mais interessante seja o indício que ele ofereceu de como se efetua a abertura de novos espaços hermenêuticos dentro de um sistema de interpretações no qual se substitui a descrição das obras e das reações que elas suscitam pela busca de novos sentidos. Ao sugerir a inserção de uma obra e seu produtor no horizonte da história da arte a partir de um novo referencial, para que esse referencial faça sentido, ele deve ser relacionado a um horizonte de iniciativas pictóricas classificadas na história da arte. Nathalie Heinich (1991) divide esse processo de entrada de um artista na história da arte em dois momentos: 1) a saída do silêncio, que o diferencia de seus pares e 2) o reconhecimento dos críticos, que estabelecem sua grandeza em relação a um sistema de valores e um conjunto de outros artistas. Esse é, portanto, um processo duplo de particularização e generalização. No caso específico aqui descrito, o espaço hermenêutico que se abre é um espaço em um sistema de interpretações no qual o artista será inserido, que o tornará relevante para a história da arte, mas também para outras disciplinas com as quais a arte moderna mantém relações, como a psicologia, a filosofia e a educação. Em matéria artística, uma obra supõe a preexistência de um enigma que deve ser desvelado pelo trabalho hermenêutico: o enigma pode ser relacionado à sua grandeza, novidade, sentido, seu autor ou origem. É essa ideia de um enigma a ser desvendado que instaura um trabalho hermenêutico potencialmente interminável. Nesse sentido, qualquer estudo, acadêmico ou não, contribui para a ampliação desse espaço ao sugerir novas interpretações para as obras, os artistas e seus contextos. É provavelmente devido a esse processo que os crí-

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ticos de arte, ao invés de fazerem considerações negativas sobre um artista que não lhes interessa consagrar, calam-se a seu respeito. O diretor-geral adjunto da Unesco, Jean Thomas (1949), em seu pronunciamento de abertura do segundo Congresso Internacional de Críticos de Arte, mostrou a força da metáfora do enigma na arte moderna e o papel do crítico nessa representação: “se consideramos que toda obra de arte comporta um enigma, o crítico de arte é quem tem o poder de decifrar esse enigma (...). Ele formula e transmite; ele ajuda os outros a verem” (p. 2). Esse papel do crítico de arte não estava sendo discutido somente em sua dimensão simbólica, mas também em sua dimensão moral e jurídica de regulamentação da prática. O tema dos “direitos autorais” dos textos produzidos e também da reprodução de imagens para acompanhar as análises, que já aparecia nos debates da Unesco, esteve também presente nos congressos e assembleias da Aica. Outra forma de direito, nesse caso não jurídica mas moralmente discutida, foi a questão do direito à liberdade de criação do artista e, por extensão, do crítico de arte. Se no século XIX a oposição ao mundo “burguês” fez da boemia o estilo de vida próprio ao artista moderno (Bourdieu, 1996), na década de 1950 a noção de liberdade era o que permitiria aos artistas (e críticos de arte) se distanciarem do papel de “intelectuais engajados”, que eles mesmos tinham contribuído para construir ao colocarem sua produção à disposição das ideologias e das administrações públicas. Mas, como uma reivindicação moral, a ideia de liberdade vinha fundada em um direito. Assim, não foram poucas as menções ao direito dos artistas e críticos à liberdade. Em 1950, o americano James Johnson Sweeney, que se tornaria presidente dessa associação em 1957, propôs uma moção aceita por unanimidade: “1) que o artista deve ter liberdade de criação, de exposição e de publicação de suas obras, isto é, a mesma liberdade dos escritores em uma imprensa livre; 2) que os homens livres têm o direito de ter opiniões diferentes em matéria de gosto e que esse direito implica uma tolerância recíproca no que concerne os ensaios artísticos que podem criar divergências; 3) diante do perigo que nós conhecemos das

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restrições à arte nós deploramos toda ação que tenda a limitar a liberdade do artista e de suas exposições por razões estrangeiras a sua arte” (Buccarelli, 1950, p. 9). Esta era também uma questão da honra de críticos e artistas que não deveria ser abalada pela interpretação de atores não autorizados: “nada, nomeadamente, pode ser feito que possa levar infração à reputação ou a honra do autor de uma obra. Ora, chegou que, sob pretexto de moralidade pública, certos quadros ou estátuas de valor foram eliminados como atentados aos bons costumes. Podemos, apoiados sobre a Convenção Internacional, impedir que artistas honrosos ou os críticos de arte que os defendem sejam objeto de uma suspeita que desonra” (Aica, 1951). A noção de honra fundada no reconhecimento do direito à liberdade como condição para o exercício da atividade crítica tem uma dimensão de ordem moral de consagração de um status ou posição social. O reconhecimento desse status estava associado à participação no mundo social e às obrigações recíprocas que isso acarretava. O elo social implicitamente proposto nesse empreendimento coletivo, sem um líder expressamente designado, era o afastamento da dimensão ideológica dos discursos críticos sobre arte. Assim, fazia sentido a declaração do crítico e attaché cultural egípcio em Roma, de que “a liberdade do crítico [era] um dever antes de ser um direito” (Bey, 1948). Naghi Bey explicitava os termos da retribuição: “até aqui o real, o “figurativo” era o ponto de partida, construímos a partir de agora um mundo abstrato ao lado do físico” (p. 2). Em troca do preenchimento da nova posição social, os críticos exigiam liberdade e, em retribuição, ofereciam uma forma diferente de fruição das artes: um passo a mais no processo de instituição da estética como uma forma de apropriação específica e da ruptura como novo cânone artístico. Como parte desse processo, o tema da repatriação de obras de arte foi descartado por ser “muito delicado e arriscar de se tornar político” (Aica, 1948: p. 6). Atribuía-se, assim, também à crítica de arte, um caráter desinteressado, e a disputa politicamente fundamentada que separava os críticos era transferida para o domínio estético. Era nesses termos que Gille-Delafon, secretária da Aica desde a primeira conferência em

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1948, declarava em um relatório dedicado à Unesco: “nós nos conhecemos todos agora, nós nos tornamos amigos, confrades no verdadeiro sentido do termo. Assim, a AICA realizou o maravilhoso prodígio de unir homens sem que o espírito partidário reine entre eles. Estão aqui somente os críticos de arte e falamos apenas uma língua, aquela da estética. Vocês já puderam constatar: só os problemas de estética para levantar o interesse geral dos membros da AICA e é somente sobre a questão da arte abstrata ou concreta que eles se encontram divididos. O que é além do mais sua razão de ser” (Gille-Delafon, 1948, p. 2). O presidente da Aica, Paul Firens, reafirmou em 1950: “estamos aqui para promover uma obra pacífica: a edificação de um mundo moral onde se abolem os constrangimentos, onde se eliminam as restrições, onde se abrandam as regras e as compartimentações, onde cada indivíduo e cada nação respire melhor e renuncie a seus egoísmos” (p. 1). “Todos aspiram a um ideal de cultura, de justiça, de sinceridade” (Fierens, 1950, p. 4, ênfase adicionada). Foi assim que mais tarde o modernismo poderia ser associado à teoria positivista do progresso (Bertheux, 2004), onde a arte abstrata aparecia como o ápice de uma cadeia evolutiva à qual todos os sistemas de arte deveriam aspirar.

Abstração: uma forma de viver de modo novo realidades antigas

Segundo Denis Mylonas (1976), durante a Segunda Guerra diversas instituições privadas colocaram a ideia da criação de uma nova organização internacional que lidasse com questões culturais e educativas. A ideia foi acolhida pelos “Estados com reações diversas que refletiam suas preocupações em salvaguardar os interesses nacionais” (Mylonas, 1976, p. 16). A Unesco surgiu dessas demandas e do reordenamento social e político dos Estados nacionais ocasionado pela Segunda Grande Guerra. Seu papel no processo de consolidação da forma social e jurídico-administrativa do Estado nacional tem sido enfatizado (Castro, 2005, p. 61), tanto como resultado de um “mapeamento” das relações entre os Estados nacionais (Robertson, 1994, p. 31) como das tentativas de administração dessas relações em um

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mundo dividido por blocos ideológicos teoricamente opostos (Huxley, 1946a, p. 9). Desde o início dos debates sobre a formação da Unesco, as artes foram tomadas como uma das dimensões sociais capazes de contribuir para a educação e para o bem-estar social. No texto elaborado pela Conferência dos Ministros Aliados da Educação, a ideia de “cooperação em matéria de educação e o encorajamento de trocas culturais no que concerne as artes, as humanidades e as ciências” era o fundamento que “servir[ia] à liberdade, à dignidade e o bem-estar geral” (Unesco 1945, p. 7). Tanto esse documento quanto o Projeto Francês do Estatuto da Organização de Cooperação Intelectual das Nações Unidas, ambos tendo fundamentado as discussões preliminares em torno da constituição da Unesco, tinham a difusão em massa – através do rádio, da imprensa e do cinema – como eixo central em torno do qual estruturar o processo educativo enfatizado pela instituição (Unesco, 1946a). Assim, a educação e os meios de divulgação em massa deveriam se articular para atingir os objetivos apresentados no primeiro artigo do pré-projeto e ratificados no Ato Constitutivo da Unesco: a) colaborar para o trabalho do avanço mútuo de conhecimento e compreensão dos povos através de acordos internacionais que promovam o livre fluxo de ideias pela palavra e pela imagem; b) dar um impulso à educação popular e à difusão da cultura; c) manter, aumentar e difundir o conhecimento (Unesco, 1945, 2007). Profundamente marcados pelos eventos políticos europeus, os ideais da Comissão Preparatória denotam a tentativa de promover a superação do que pareciam ser as razões da guerra e dos totalitarismos. Assim, o projeto dessa Comissão sugeria que cada Estado-membro se esforçasse para pôr um fim à “incompreensão mútua entre os povos, o combate às falsas doutrinas da desigualdade das raças e dos homens e de encorajar os princípios democráticos da dignidade, da igualdade e do respeito à pessoa humana” (Unesco, 1946a, p. 5). Como os objetivos da Unesco eram extremamente amplos, era preciso contar com uma estrutura que ultrapassasse a da própria organização. Para tanto, a instituição disporia da contribuição de ou-

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tras organizações intergovernamentais especializadas (CMAE, 1945), assim como podia fazer acordos a título de cooperação e consulta com organizações não governamentais internacionais para o desenvolvimento de suas atividades. A Aica é uma dessas organizações cujo vínculo com a Unesco tinha um caráter menos estável do que associações com relações formais de consulta – como o Icom –, que dispõem de espaço físico no prédio da Unesco e orçamento anual garantido pela organização. A especificidade das artes nos textos preparatórios, e depois definitivos, da Unesco reside na função contraditória que é atribuída a essa dimensão em relação ao nacionalismo. Enquanto nas outras esferas sociais o etnocentrismo era rejeitado como atitude geradora de conflitos, às atividades criativas era atribuída uma função social de construção e afirmação de identidades coletivas, em geral pensadas como nacionais: “No caso das artes por outro lado, o acento estará fortemente sobre a diversidade, pois cada região, cada povo, tem uma cultura artística que lhe é própria, que possui raízes históricas e que leva a marca das influências geográficas particulares. A Unesco deve velar para que essa fecunda variedade não se encontre em nada diminuída, como ela poderia ser, por exemplo, no caso onde a arte e a cultura de regiões não industriais se perdem ou se degradam com o contato com as civilizações industriais. Ela deve esforçar-se para evitar o divórcio que se produz freqüentemente, na atualidade, entre a arte e a massa da população e estimular cada nação a intensificar as formas de música, de arte e de literatura que exprimam verdadeiramente o espírito do país e do povo. Em um mundo civilizado, liberado das ameaças de guerra, o nacionalismo deveria sobreviver somente sob esse aspecto cultural. É preciso que a Unesco se esforce para favorecer o nascimento desse estado de coisas no qual os sentimentos legítimos de fé e de solidariedade de cada grupo encontrem sua expressão no domínio das artes no lugar de engendrar um desejo de simples importância material, de riqueza ou de poder militar e político” (Unesco 1946b, p. 10, ênfases adicionadas). É nesse contexto de discussões que se organizou o grupo de profissionais interessado em discutir a produção artística do presente no que iria se chamar Associação Internacional de Críticos de Arte.

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Segundo Ramon Tio Bellido (2002), presidente da Aica na década de 1990, a associação teve um financiamento regular da Unesco através de projetos e subvenções. Entretanto, a relação entre as duas instituições se estabeleceu sempre a partir de oportunidades pontuais, inspiradas ou sugeridas por uma ou outra, sem que houvesse uma real continuidade ou que se desenhasse uma política em favor de um objetivo comum. Uma das razões foi a dificuldade em definir em termos profissionais a atividade flutuante do crítico de arte. Essas dificuldades são similares àquelas encontradas na definição da morfologia social da categoria artista (Heinich, 2004). Os critérios clássicos de pertencimento a uma categoria profissional – diplomas, rendimento, pertencimento a associações profissionais – não são suficientes para delimitar as fronteiras entre críticos de arte profissionais e amadores e críticos de arte e outros produtores de literatura sobre arte. A atividade da crítica de arte pode ser acompanhada de outras, secundárias, que complementam ou oferecem o essencial dos rendimentos financeiros e é uma atividade que pode ser aprendida ou exercida sem passar por um ensino oficializado. As estruturas de afiliação coletivas são então uma forma de institucionalizar esses profissionais e atribuir legitimidade à categoria. O último contrato da Aica com a Unesco foi em 1985, quando o autor aponta “o começo do fim, ou ao menos de uma época de vacas gordas que permitia à Unesco intervir notavelmente no funcionamento cotidiano das ONGs e de ajudá-las a flexionar seus investimentos intelectuais” (Tio Bellido, 2002, p. 149). A razão dessa mudança se deveu, segundo o autor, à retirada dos EUA da Unesco e, com isso, o fim dos recursos provenientes desse país, que contribuía com um quarto das receitas da organização. Portanto, a relação da Aica com a Unesco não foi determinante, mas teve forte influência no processo de constituição de um campo internacional de discussão sobre artes plásticas. Muitos membros da Aica participaram da Comissão Preparatória na qual se discutiu a formação da Unesco e eram membros também de outras instituições

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que contribuíam com essa organização (Germain Bazin, Jacques Lassagne, René Huyghe, Raymond Cogniat, Jean Cassou, Michel Florisoone). As temáticas desenvolvidas, ou vetadas, durante os congressos e assembleias da associação estavam assim estreitamente vinculadas ao contexto político e aos interesses dos críticos de arte de se estabelecerem como uma categoria socioprofissional. O nacionalismo era, nos primeiros anos de formação, uma das principais preocupações esboçadas nas conferências da Unesco. O contexto de formação dessa organização, e também da Aica, era marcado pelas tensões que se seguiram após a Segunda Guerra, pela redivisão política dos países e pela divisão do mundo em dois blocos ideológicos hegemônicos. Na dimensão específica que aqui interessa, é importante ressaltar que os campos artísticos francês, brasileiro e norte-americano haviam, desde a década de 1930, sido pautados pela produção de imagens realistas de cunho revolucionário, liberal ou reacionário, quase sempre com fins promocionais, para além do próprio artista. Assim, a noção de liberdade, recorrente na esquerda francesa do período por influência do existencialismo, tornou-se um tema presente tanto nos congressos da Aica como nas reuniões da Unesco como forma de repensar a identidade do artista moderno. O uso dessa categoria em relação à arte servia como uma forma de recolocar o debate sobre a autonomia artística que ficara enfraquecido pelo intenso engajamento político dos artistas nas primeiras décadas do século XX. A moral era transferida assim para uma dimensão de responsabilidade individual e não mais determinada por fatores socioeconômicos, históricos e culturais. A ênfase na noção de liberdade artística era uma recusa da heteronomia, mas também uma forma de obliterar, na dimensão do discurso, os conflitos existentes entre países tão diferentes em termos de administração de Estado e ideologias, como Estados Unidos, França, Brasil, Tchecoslováquia, Grécia, Japão, Alemanha, Inglaterra etc. A forma de representação abstrata que no começo do século XX foi acusada de individualista e de ser desconectada com outras dimensões sociais, mas que já tinha sido defendida por Meyer Schapi-

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ro (1936) como representativa da sociedade contemporânea e por Trotsky e Breton (1938)73 como forma revolucionária por excelência, era então posta sob escrutínio dos críticos. O interesse na abstração observado nos temas dos congressos e assembleias da Aica é uma dimensão do campo artístico que diz respeito à crítica de arte, não necessariamente aos artistas daquele período. Daí Guido Lodovico Luzzatto ressaltar que qualquer artista naquele congresso se sentiria “estrangeiro”, pois se falava de coisas abstratas e de “linhas de evolução” da arte que são “estrangeiras” às necessidades dos próprios artistas (Aica, 1957). A partir da representação abstrata era possível refletir sobre a autonomia da arte, distanciando-se ainda mais da história, mas tentando igualmente relativizar a subjetividade do fenômeno. Foi isso que fez Mário Pedrosa em 1953: argumentou que “assim como a ciência levou longo tempo para se descolar dos empreendimentos estrangeiros à sua natureza e só desenvolveu seus métodos até sua especificidade atual recentemente, com a teoria da relatividade, o fenômeno artístico não estava por assim dizer isolado – e como tal analisado – na nossa época. (...) O cubismo deu à obra realizada uma nova dignidade, e a tela cubista é um universo em si, com suas leis e eventos. A arte abstrata coroa esse longo processo em direção à autonomia do fenômeno artístico, passando do objeto ou só guardando as impressões do espaço (...) ela não se confunde mais nem com a magia, nem com a religião, nem com a política, nem com a moda, e é julgada a partir de suas próprias leis e exigências” (p. 2-3). A escolha da abstração como “partido estético” a ser defendido não se deveu somente ao debate político com os fascismos de esquerda e direita. Ela foi uma escolha tática dos críticos para redirecionarem os discursos artísticos. Ao falar da relação da crítica com a história da arte, André Chastel explicita essa dimensão das escolhas: “a atividade crítica tem toda sua eficácia, aplicada à arte presente, onde o escritor de arte tem a responsabilidade – às vezes saborosa, às vezes desagradável – de designar o que lhe parece importante e achar os ter73 Para a discussão de ambos os textos, ver capítulo 3.

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mos aptos a perpetuar o efeito” (Chastel, 1949, p. 2). Para ele, a crítica na França devia deixar de lado sua faceta “autoritária e dogmática em favor da precisão tática. Trata-se menos de dizer o que é, o que será no futuro etc. que dizer simplesmente o que se passa no domínio da sensibilidade” (idem). E dizendo, fazer acontecer. A sistematização de uma realidade subjetiva através da noção de uma interioridade sistematizada pela psicanálise no conceito de “inconsciente” tinha tornado aceitável a produção de objetos e imagens que não fossem relacionadas a realidades externas identificáveis. Isso aparece em diversas comunicações, como a do turco Kemal Yetkin (1953): “hoje estamos de acordo que o que o artista quer traduzir em formas plásticas não é um tema objetivo, mas a realidade subjetiva de sua visão” (p. 2). Mas a representação dessa realidade estava condicionada ao abandono das influências heterônomas: “o assunto encontra seu artista se ele não o procura. Só o artista que cuida da sua liberdade de criação de toda tentação política ou outra, e que só escuta sua exigência interior, concordando sempre com a técnica que terá a chance de sobreviver” (Yetkin, 1953, p. 3). A tentativa de sistematizar uma metodologia para a crítica de arte estimulou os críticos a iniciarem uma investigação sobre a terminologia usada nos escritos sobre arte. A investigação não foi muito longe (somente um relatório da comissão designada para estudar o tema consta nos arquivos da Aica), mas o primeiro termo a ser perscrutado foi “abstrato”. Na investigação, Giulio Carlo Argan argumentou que os termos utilizados até então eram fundamentados nos significados dos dicionários de belas artes produzidos no século XVIII e começo do século XIX. Esses termos tinham sido cunhados pela tradição clássica quando se imaginava que os valores da arte eram universais e não mudariam. Portanto, a noção de “abstrato” dicionarizada não estava relacionada a uma forma pictórica específica, mas a um adjetivo que podia ser aplicado a manifestações de diferentes épocas e grupos sociais. É nesse sentido que o crítico brasileiro Antonio Bento buscou retirar do cubismo o mérito de ter concebido uma forma de “criação pura”, retrocedendo a ideia de arte ao paleolítico. Segundo o autor,

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“o artista não reproduzia então a realidade das coisas que o cercava. Ele as representava, ou melhor as recriava, se servindo de símbolos, de estilização ou de imagens arbitrárias. É por essa razão que quaisquer desenhos dos homens das cavernas podem ser considerados como trabalhos de criação pura, desmentindo assim o princípio que se tornou o ‘slogan’ estético do cubismo” (Bento, 1948, p. 2). Se, por um lado, André Chastel explicitava a importância de escolhas táticas, por outro, não parecia haver nesses autores a percepção de que eles estavam efetivamente reconstruindo o universo artístico a partir dessas interpretações, e não simplesmente revelando os significados inerentes às manifestações artísticas modernas, ao tentarem identificar o que era a arte contemporânea. Como diria Bourdieu (1996), seus textos não eram enunciações normativas, mas performativas, que, sob a aparência de dizer o que é, criam uma visão do mundo social de acordo com as crenças do grupo. É importante reforçar que essa construção não era um ato consciente, uma articulação maquiavélica de um grupo de críticos de arte tentando “dominar o mundo” (da arte). Mesmo porque havia a crença em uma essência, isto é, acreditava-se que o valor dos objetos artísticos e dos artistas fossem realidades objetivas neles inscritas. Nessa concepção, cabia ao crítico efetivamente revelar essas obras e seus criadores. Essa convicção tornava suas interpretações ainda mais contundentes, pois estas naturalizavam os fenômenos artísticos e seus significados. No final da década de 1950 encontramos reclamações dos críticos quanto ao não reconhecimento da Unesco em termos do estabelecimento de um vínculo institucional mais estreito, como o mantido com o Icom, por exemplo. Entretanto, se o prestígio dos críticos era relativo junto à Unesco, no espaço social das relações artísticas eles eram os inventores de uma nova perspectiva, na qual “a arte reivindica[va] para si mesma o direito de ser também um meio de conhecimento” (Pedrosa, 1953, p. 5). Grande parte desses autores já eram então consagrados em seus países e outros tantos se tornaram personalidades internacionalmente conhecidas, com publicações traduzidas para vários idiomas. Em certo sentido, a sistematização da crítica de arte que eles pretendiam foi efetivamente alcançada a

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ponto de ser possível hoje conceber a estética como uma modalidade possível de qualificação das obras ou de seus autores, paralelamente à moral, à racionalidade econômica ou ao sentimento de justiça, considerando que esses diferentes tipos de julgamento não têm a mesma pertinência em termos das qualidades propriamente artísticas de uma obra. Eric Michaud (2005) argumenta que a história da arte e dos artistas contribuiu para a escalada dos racismos e nacionalismos. Segundo o autor, no século XIX a história da arte pretendeu construir para si um discurso de autonomia, fixando fronteiras raciais e nacionais e forjando as regras de uma nova ordem econômica e social. Era assim imprescindível que o processo de constituição dessa perspectiva, a estética como um “meio de conhecimento”, passasse pelo abandono dos modelos culturais e econômicos na análise do fenômeno artístico. Argan foi um dos que tocaram diretamente no assunto. Para o autor italiano, com a libertação do naturalismo, a arte moderna não só recusou “a experiência da natureza exterior, mas a arte moderna quis recusar algo que esteve sempre estreitamente ligado com a experiência da natureza, isto é, as formas tradicionais de ver essa natureza, as maneiras tradicionais de conceber essa natureza, de refletir sobre essa natureza, os sentimentos que eram enfim não somente os sentimentos do indivíduo, mas de um grupo, de uma nação”. Argan acreditava que recusar o naturalismo era, sobretudo, recusar “os nacionalismos de tradição, as tradições nacionais, sobre uma base de cultura internacional”, ainda que ele negasse a ideia de valores universais (Aica, 1957, p.43). Luiz Fernando Dias Duarte (2005a) mostrou como a noção de “natureza” teve um papel central no processo de divulgação de um saber científico, a partir da qual se construiu esse conhecimento sobre a realidade e o fundo sensível em torno do qual os imaginários das nações se constituíram. Segundo o autor, “a própria noção de ‘cultura’ só pôde se impor lentamente ao lado dessa ‘natureza’ primordial” (p. 1). No Brasil, o processo de naturalização do nacional pode ser percebido como um conjunto de variações étnicas que comporiam a

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diversidade nacional. Esses tipos nacionais seriam o resultado de um caldeamento de raças que era apresentado como a associação entre personalidade e paisagem nacional (Daou, 2001). Assim, as noções de população e identidade nacional foram construídas pari passu, e a noção de cultura nacional era tornada parte da paisagem, ou da natureza primordial da nação. Na decoração do Teatro Municipal de Manaus é possível ver a representação da natureza amazônica como forma de afirmação de uma identidade singular estetizada, domesticada e eternizada nas pinturas (Daou, 2007). O uso da natureza como forma de simbolização nacional não foi prerrogativa da pintura e pode também ser encontrado em outras manifestações artísticas. Compreende-se, assim, por que a noção de uma separação entre arte e natureza (ou realidade) era interpretada por Argan como um distanciamento do nacionalismo. Em termos dos modelos econômicos de interpretação, o belga Leon Degand (1949) foi um dos que rejeitaram as noções marxistas na compreensão do fenômeno artístico. Rebatendo um dos fundamentos da crítica marxista, de que houve “um divórcio entre arte moderna e o público” (p. 1), Degand defendeu que a “a arte não é realmente compreendida a não ser por uma minoria de pessoas dotadas e avisadas. Os outros toleram, confundem, ignoram, preferem a leitura de jornais, o futebol, o cinema, as cartas ou o tabaco” (p. 2).74 Em relação à abstração, Degand defendia que a identificação de um corpo, um muro ou um carro em uma tela não significava que se tivesse compreensão das artes plásticas. Para ele, a arte moderna só era incompreensível para aqueles que não compreendiam a arte antiga: “Eles aprenderam com Marx que a arte faz parte da superestrutura, correspondendo estreitamente à estrutura econômica que a determina. E, ignorante das emoções específicas da arte, estão satisfeitos em con-

74 Em 1952 (repetido em 1957), Pedrosa usou o mesmo argumento de Degand para rejeitar a leitura marxista do fenômeno artístico e argumentar que a arte não é feita para as massas, mas para alguns interessados no fenômeno (Pedrosa, 1952 e 1957q). O aparecimento de questões discutidas nos congressos da Aica em artigos publicados por Pedrosa denota a relevância que essa associação teve para o seu pensamento.

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cluir simplesmente que a arte vale como manifestação de uma situação econômica dada. Aprenderam com uma série de pensadores russos, anteriores à revolução de 1917, comunistas ou não, que a arte não escapa do demônio da suficiência a não ser que ela contribua à saúde moral do ser humano” (Degand, 1949, p. 3). Uma das especificidades da atividade artística no século XX é que ela é somente parcialmente orientada pela finalidade econômica. Assim, qualquer análise que parta de um modelo econômico examinando o fenômeno artístico, seja a partir dos pertencimentos de classe, da posição social ou de categorias como infraestrutura e superestrutura, deixa de fora sua especificidade. Degand não negava os constrangimentos que influíam sobre a arte, mas chamava a atenção para outras dimensões do fenômeno que são mais importantes no processo de construção de reputações na arte. O crítico oferecia indícios nessa comunicação da existência e importância dos “círculos de reconhecimento”. Colocava assim em evidência a economia paradoxal da atividade artística a partir da qual o reconhecimento pela pequena quantidade de membros vale mais em confiança estética do que em valor monetário, e é mais qualificador do que a grande quantidade (o grande público). Quanto mais autônomo o campo artístico, mais essa cadeia de reconhecimento se torna referência para um processo de consagração do artista que escapa à linearidade dos determinantes econômicos. Ainda tratando da questão da terminologia, o francês Jean Bouret também oferecia indícios sobre os círculos de reconhecimento ao explicitar a participação diferenciada de críticos de arte e artistas plásticos nesse espaço social complexo formado pela relação entre produtores, especialistas, colecionadores, artistas consagrados e novatos, herdeiros detentores de capital econômico ou cultural e recém-chegados e as posições relativas de um campo, elas mesmas hierarquizadas: “não esqueçamos que a pintura é tanto um problema comercial quanto espiritual, e é certo que por ondas, que por tempo, se tem mais ou menos interesse em ser ou não [considerado] um pintor abstrato. E a contestação do vocabulário dos críticos vem freqüentemente da parte de pintores que se recusam a serem englobados em tal ou tal categoria” (Aica, 1957, p. 49). Bouret referia-se à complexidade de um sistema no qual

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singularidade e generalidade são valores complementares no processo de consagração artística. Querer ou não ser reconhecido como pintor abstrato implicava uma avaliação daqueles círculos de reconhecimento e de uma escolha entre posteridade e ganho financeiro. A importância do crítico de arte e a relação contraditória dessa categoria profissional com os artistas são explicitadas na comunicação da italiana Nicco Fasola. Fasola argumenta que “a palavra abstrato pode ter sido um termo aproximativo que surgiu no primeiro momento que essas tendências apareceram vis-à-vis tendências muito diferentes, mas que hoje essa expressão não é mais suficiente” (Aica, 1957, p. 7172). O debate sobre a abstração era uma opção dos críticos que deixava de lado uma série de outras “tendências” e “estilos” que estavam sendo produzidos no momento mesmo em que estavam debatendo essas questões. Entretanto, a arte abstrata parecia uma possibilidade de reorientação dos discursos artísticos e de transformação dos significados do fenômeno artístico. Essa possibilidade aparecia através de outros eufemismos, como o da transformação do ser humano. A noção de autonomia pode estar relacionada ao artista, à obra e/ ou ao público, podendo em um mesmo discurso uma ou mais dessas dimensões estarem presentes. Em relação ao indivíduo, a emancipação da arte aparecia no século XVIII/XIX como indissociável da emancipação crescente daquele. Assim, a temporalidade tornava-se constrangedora, pois a subjetividade deveria se afirmar em relação a suas próprias regras (Michaud, 2005). Em relação às obras de arte, autonomia significa o rompimento com a noção de mimese pela pesquisa de leis formais próprias a cada uma das artes. Daí o debate pela libertação da pintura da subserviência à literatura. Outra acepção da noção de autonomia relaciona-se à independência da atividade artística em relação ao seu público e às condições de sua recepção. Vemos nos debates da AICA todas essas noções serem pronunciadas às vezes pelo mesmo crítico. Victor Servranckx, por exemplo, falava da possibilidade da arte abstrata em “tornar-se um instrumento dos mais capazes de conduzir a alma humana a seu destino, sua realização”. Mas, para tanto,

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precisava-se de “vulgarizadores, mais ainda de iniciados, oráculos e magos. Questão de hierarquia mais que de escolha. Não será suficiente ter artistas iniciados, será preciso ter críticos iniciados. Que eles não se esqueçam que aquilo no qual a inteligência toca é, por isso, inferior. Uma arte inteligentemente social, é, por essência e necessidade, apensar de certos sucessos, uma arte inferior e de adaptação” (Servranckx, 1949, p. 4). Havia uma crítica à racionalização e à “materialidade da civilização moderna”, e a arte abstrata aparecia como uma forma de redenção: “no seio do cubismo o maquinismo da era moderna se encontra ampliado. Em contrapartida, na arte abstrata não-figurativa constatamos já a presença de outra tendência profunda do ser, que exprime outra coisa que a sociedade de hoje, a ultrapassa. Essa impulsão secreta de todo o ser, ultrapassando a modernidade, é tão antiga como o homem. Essa impulsão desperta secretamente em nosso sangue, transmitido do fundo das eras e se manifesta nas realizações artísticas de alguns de nós, obedecendo assim aos nossos mais longínquos ancestrais, talvez pré-humanos, prefigurando o porvir” (Servranckx, 1949, p. 2-3). O pré-humano, primordial, primitivo, original era a referência a uma totalidade considerada perdida no “materialismo” moderno. Cabia à arte moderna a tarefa de mudar o ser humano (tarefa que para uma parte relevante desses críticos tinha, em outra época, sido do marxismo). Assim, “um amor forte vem da noção do perigo e do desejo de salvar; assim ele é levado a querer transportar e transformar o ser que é o objeto desse amor. Não podemos conceber uma arte forte, que não tenha o desejo de mudar, de transformar o ser humano, de levar a outro lugar. A arte abstrata se propõe a mudar o ser; não tanto os objetos, os aspectos fugitivos do entorno do homem, mas o homem eterno, em sua essência. Dito de outra forma, ela quer reconvertê-lo aquilo que deixou de ser. Chamemos as coisas pelo seu nome: a arte abstrata quer regenerar a alma humana: torna-te o que és” (Servranckx, 1949, p. 3). Essa regeneração, entretanto, não passava pela racionalidade, mas por outras formas de pensamento distintas da linguagem discursiva. Era assim que, para Pedrosa, “todas as escolas lógicas, semânticas e filosóficas (estavam) prontas a dar às manifestações artísticas a digni-

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dade de um pensamento articulado intelectual” (Pedrosa, 1953, p. 8). Era no reencontro com “suas bases intuitivas (que) o artista moderno (descobria) suas afinidades espirituais com a arte de culturas pré-gregas e culturas primitivas do passado ou contemporâneas” (p. 4), redescobrindo essa totalidade perdida. Essa forma de classificação específica que é a estética, que Lévi-Strauss (1976) concebe como inversa à apreensão científica por apreender o todo antes de suas partes, aparece aqui como uma construção eminentemente moderna. O que esses críticos faziam ao eleger a abstração era escolher o caminho mais direto para a revisão dessa forma de apreensão, ao mesmo tempo pagando tributo àquela manifestação artística que tinha permitido sua formulação mais bem acabada. Sobre esse novo “meio de conhecimento”, Pedrosa (1953) argumentou em seu texto sobre a relação entre arte e ciência: “Nesse modo o conhecimento vem por descobertas; deve-se descobrir, de fato, entre suas partes constitutivas, entre suas estruturas parciais, as ligações, as aproximações repentinas, inesperadas ou impossíveis de esperar por desenvolvimento lógico, mas que somente nos dão e de supetão a significação do pensamento simbólico global presente. Esse pensamento, essa ideia não é demonstrativa e não implica nenhuma solução transferível, não sendo de outro lado jamais demonstrável em suas partes. Mas é uma verdade, uma verdade do nascimento de um novo ser. O aporte desse conhecimento novo não é jamais uma lei, e certamente não um conceito puro, mais que uma imagem, é um evento. Assim, para esse outro modo de pensar simbólico, o campo cognoscível é alargado, e nós nos aproximamos um pouco mais da natureza das coisas, ou melhor, do misterioso trabalho de elaboração formadora da natureza” (p. 9). Era nessa nova perspectiva de apreensão do mundo que Pedrosa (1953) podia declarar que “o que a ciência e, sobretudo, os eventos da arte moderna nos mostram é que a era do racionalismo sistemático e exclusivista passou” (p. 11). As comunicações apresentadas nos congressos e assembleias-gerais da Aica são o testemunho do processo de sistematização dessa nova forma de apreensão estética cujo marco não era nem espacial, nem temporal, mas estilístico. A arte abstrata era então definida a posteriori como o marco da arte contemporânea,

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uma nova etapa da arte moderna. A arte abstrata passava a ser considerada mais do que uma forma de pintar ou esculpir, ela tornava-se “uma forma de VIVER, de viver de modo novo as realidades antigas; (...) uma ética que prepara seu ritual e talvez um dia uma moral” (Servranckx, 1949, p. 3, ênfases no original). Havia uma dimensão de sacralidade nessa nova forma de viver as “realidades antigas”, daí o uso de tantos termos emprestados da dimensão religiosa. Discípulo, concílio, dom, vocação, revelação, “pontífice do academismo”, “grão-sacerdote do culto de Rafael” são termos que podem ser encontrados nos textos dos críticos da Aica e também nos artigos publicados por Pedrosa no Brasil no mesmo período. Servranckx (1949), por exemplo, falou da arte abstrata como uma passagem para o sagrado. Entretanto, o uso de categorias do mundo religioso não significava a construção de uma homologia entre as duas dimensões sociais, arte e religião. Seu sentido parecia estar antes relacionado à construção de um espaço de sacralidade, uma moralidade própria à dimensão estética. Era essa sacralidade que permitiria que a liberdade do artista viesse antes que os códigos de conduta específicos de outras esferas sociais. O jogo não é meramente estético, mas tratava de posições “em relação ao mundo, uma ética e mesmo uma política que se projetam nos valores da criação” (Heinich, 1991, p. 26-27).

A liberdade como fronteira

O discurso da liberdade inscrevia a arte em uma nova ordem de valores com seus símbolos de prestígio e desonra, avaliados em termos de suas próprias normas e idioma. No Brasil, os termos da representação da identidade do novo artista moderno não estavam sistematizados, mas apareciam dispersos nos artigos e comunicações que Pedrosa apresentava. Como notado anteriormente, a importância da relação do crítico com a Aica pode ser inferida pela presença, dentro de curtos intervalos de tempo, de temas discutidos nas assembleias e congressos internacionais dessa associação nos artigos de Pedrosa. Sua presença em quase todos os eventos organizados de 1948 até

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1960, o fato de ter sido eleito vice-presidente duas vezes e ter ficado em terceiro lugar na eleição para presidente em 1966, assim como a mobilização da Aica em favor dele quando do decreto de sua prisão durante a ditadura militar, indicam a centralidade dessa associação na trajetória profissional de Pedrosa como crítico de arte. A forma de divulgação dessas representações não se limitou às colunas diárias em diferentes periódicos, principalmente do Rio de Janeiro e São Paulo. Ao longo da década de 1950, Pedrosa ministrou palestras em outras capitais, como mostram algumas notas de jornal. O ciclo de conferências organizado em Minas Gerais, por exemplo, foi descrito pelo jornal como tendo sido, apesar do título “História da Arte”, não “um relato a respeito de eventos artísticos cronologicamente agrupados, mas sim uma definição da concepção artística de cada uma das grandes culturas do passado” (Folha, 1951). Agrupada em diferentes “momentos” artísticos, a última conferência tratava do “momento moderno”. A explicitação desses valores gerava expectativas sobre o que deveria ser um artista moderno e como os grupos que compartilhavam esses valores deveriam aderir às normas de conduta e aos atributos aí implícitos. Junto com diversos críticos de outros países, Pedrosa estava reafirmando os valores da modernidade artística a partir do novo contexto social. A identidade individual que sua trajetória tinha delineado naquele momento era adequada a essa tarefa performativa. Sendo “repudiado à direita e mal visto à esquerda” (Arantes, 1991, p. XIV), Pedrosa era visto como um marginal, o que o aproximava das representações do artista que ele estava contribuindo para afirmar e instituir. Talvez por isso tenha sido ele, e não outro ator social brasileiro, a se tornar “uma espécie de mentor dos artistas em início de carreira ou que já trilhavam um caminho fora do eixo consagrado pela tradição modernista” (Arantes, 1991, p. XV). Em um mundo dividido entre esquerda e direita, para um crítico que se opunha a ambos os posicionamentos políticos defender uma “arte apolítica” como a forma revolucionária propriamente dita era em si uma postura política. Era assim que “o fenômeno artístico, livre e autêntico (podia ser considerado) em essência de natureza subversi-

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va. Pelas novas imagens, pelas novas formas que cria, ele atenta contra a ordem moral e cultural dominante. Toda experimentação formal e cultural verdadeiramente nova é perigosa aos cânones assentados. O homem livre e o artista se encontram, hoje, por isso mesmo, no mesmo plano espiritual” (Pedrosa, 1947e). A identidade do revolucionário era atualizada em Pedrosa na medida em que se constituíam os novos valores para o artista no Brasil. Ao mostrar o processo de constituição de um discurso da “estética pura” no século XIX, Bourdieu (1996) argumentou que o fato das manifestações artísticas de então ainda estarem atreladas à “ilusão da realidade” tornava aquela revolução parcial, pois ainda havia uma confusão entre os valores estéticos e morais. Ainda que essa revolução não se complete nunca (afinal não se pode conceber um fenômeno social que seja independente dos grupos sociais que o instituem), a conjunção da representação abstrata na pintura e a ideia do “inconsciente” como fundamento explicativo de uma “realidade interior” contribuíram para que se concebesse essa nova “revolução estética” como “a verdadeira revolução”, aquela que permitiu finalmente à arte separar-se de outras dimensões sociais. Foi nesses termos que Pedrosa reforçou a breve revisão da trajetória da crítica de arte de Denis Diderot a Andre Lhote, feita por Leon Degand, apresentando o momento atual como ápice de uma “pura emoção”: “os artistas modernos são homens que pela primeira vez têm consciência de que a arte é um mundo em si. Eles separam a emoção religiosa do primitivo, a emoção social ou natural dos renascentistas do afetivismo (sic) estético que os domina. É o artista que chega enfim na escola histórica, a se desprender das várias camadas subjetivas de sua personalidade para se apresentar desnudo, sozinho, diante do universo, como um ser que não somente admira a construção cósmica universal como se sente preso da vontade convulsiva de plasmar um mundo que, se veja exclusivamente pelas leis da harmonia e da pura emoção” (Pedrosa, 1947h). Regularmente, Pedrosa publicava artigos sobre artistas europeus modernos e as discussões subjacentes. Cézanne, Mondrian, Van Gogh e os irmãos Duchamp foram algumas das formas através

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das quais temas caros ao projeto estético de Pedrosa foram abordados. A revisão desses valores, entretanto, dizia respeito também à reorganização política do mundo. Assim, a Europa era renegada como inovadora e a América exaltada como o espaço social, no qual se podia encontrar as propostas para o futuro (“a América reconhece melhor o futuro – que está com Tauber-Arp. M. Bill, Bodmer, Rice Pereira, Uhlman e o nosso Palatinik, uma criança – do que a velha Europa, gloriosa e venerada na sua velhice – 1951a, p. 42). Pedrosa procurava enfatizar a ideia de que, no processo de reestruturação do mundo, no qual a revisão dos valores da arte estava inserida, “a Europa (passava a ser) apenas uma das províncias do mundo” (Pedrosa, 1947i). Nesse projeto, o indivíduo era afirmado como ator social, independente de seu pertencimento nacional. Numa análise de cunho materialista, Pedrosa explicou o porquê do indivíduo estar surgindo como o território da identidade na arte: “a concorrência tecnológica (obrigava) todos os países a se porem em dia com ela, para não perecer”. Nesse processo, “os instrumentos de comunicação se mecanizam, e o artista, que tem de lidar com eles, não guarda consigo mais nenhum segredo corporativo que recebeu do mestre, e este de outro mestre mais velho, e assim por diante, através das gerações. Por fim, o artista de nossos dias, quer se encontre na Índia ou no Canadá, tem de manejar os mesmos instrumentos e materiais para tirar deles o melhor resultado, do ponto de vista de sua arte. Os métiers se igualam, e as ocupações também. Daí o grau de parentesco que as criações mais ousadas da arte contemporânea vão tomando, independentemente dos países, de suas tradições e idiossincrasias” (Pedrosa, 1958a). Entretanto, não era a história de vida pessoal do artista que informava sua obra e nem era a obra considerada uma projeção do artista. Isso, para Pedrosa, era “mitologia barata da psicanálise” (1947j): “Não se trata da pessoa biográfica do artista, e sim do que Croce chama de a pessoa estética do artista, isso é o artista como criador da obra de arte. Seus casamentos, divórcios, excentricidades e outros cacoetes publicitários não interessam ao apreciador cons-

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ciente, isto é, ao crítico” (Pedrosa, 1947k, ênfases no original). Era a ideia de uma “universalidade do espírito humano” (Pedrosa, 1957a), de que “a imaginação plástica é universal por definição e necessidade” (Pedrosa, 1946d). Uma forma de tentar compreender a noção de indivíduo é através da ideia de um inconsciente estrutural que une as espécies mono-individuais (Lévi-Strauss, 1976). Dessa perspectiva, tratar-se-ia de uma “estética estrutural” que seria subjacente à espécie humana. Se, por um lado, essa seria uma forma de esquecer que esse era o valor que estava sendo enunciado e, portanto, produzido por Pedrosa e seus colegas da Aica e afirmado por um conjunto de instituições internacionais, não se pode tampouco minimizar a eficácia de tal construção. Tratava-se de transformar o indivíduo em sujeito de uma nova revolução, que não passava mais por políticas partidárias ou identidades nacionais, mas por uma “revolução da sensibilidade” (Pedrosa, 1957q). Esses indivíduos não eram identificáveis por fronteiras convencionais como nacionais, de faixa etária, de educação formal, gênero, etnia etc., mas por uma sensibilidade específica. Foi nessa linha que Pedrosa apresentou em 1951 sua tese para o concurso à cadeira de História da Arte e Estética, sobre “A natureza afetiva da forma na obra de arte” (Pedrosa, 1951b). Apesar de não ter sido publicada até 1996, as hipóteses ali reunidas foram apresentadas em diversos artigos nos jornais. Neles, o autor falou das descobertas da psicologia que abriram espaço para o aprofundamento da pesquisa sobre a criação artística como parte de uma “natureza humana” (Pedrosa, 1958b). Para Pedrosa a sensibilidade não estava relacionada somente à racionalidade, mas tinha influência também de uma “fatalidade biológica, (da) reação sensorial primeira, (da) força organizadora espontânea do aparelho perceptivo (...) a interação afinal de todo o complexo psíquico posto em movimento”. O que a obra representava para Pedrosa era, assim, “algo de universal e permanente (...) o que ela traz é uma formalização de vivência desconhecida, uma organização simbólica nova, perceptiva ou imaginária” (Pedrosa, 1959).

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Um autor identificado como A.C. comentou o artigo de Pedrosa “Forma e personalidade”75 (Pedrosa, 1951c), que retomava algumas das questões formuladas em sua tese: “Pedrosa mostra o que há de poético e grandioso na concepção que tem do mundo o selvagem, o que há de fundo e intuitivo na concepção que tem do mundo a criança, o que pode haver de grave e belo na visão aos alienados, e como é importante que o artista continue a refrescar a terra seca da nossa era industrial com o húmus que vai buscar em cavernas esquecidas ou em parques perdidos, porque ele é o civilizado que conservou em si a pureza do antepassado selvagem, ele é o homem são que sabe mirar a realidade com o inconvencionalismo dos loucos e ele é o adulto que nunca deixou morrer na pupila o encantamento com que as crianças vêem o mundo criado de novo a cada novo dia” (A.C., 1951). Era em parte essa naturalização do processo criativo como algo intrínseco à espécie humana, parte de sua constituição biológica, que permitia a Pedrosa unir “loucos”, “crianças”, “selvagens”, “analfabetos” e “artistas” em uma mesma classe, a de criadores. Essa nova classe de atores sociais era delimitada por uma sensibilidade específica, naturalizada nos processos de percepção. Era nesses termos que Pedrosa defendia o trabalho de crianças, internos e analfabetos como arte: “ainda para muita gente é motivo de perplexidade, senão de cepticismo, o que as crianças fazem no plano da arte. Presos a velhos preconceitos de uma época em que, para algo ser melhor ou mais belo, ou mais, sábio, era imprescindível ter sido primeiramente inferior ou rudimentar, não se conformam os adultos em que lhes venham dizer que um menino possa fazer pintura digna de gente grande, ou que um negro analfabeto dos confins da África seja capaz de esculpir com a mesma mestria e força de um mestre da Grécia clássica” (Pedrosa, 1957b). A psiquiatria e a psicanálise, em interseção com a biologia, era a forma de relacionar a arte à objetividade das disciplinas científicas. Entretanto, o “convencionalismo artístico” impediria essa sensibilidade inata de se manter na vida adulta: “O dom da expressão é 75 O artigo foi republicado em Forma e percepção estética, organizado por Otília Arantes (1996), mas não há referência sobre o veículo no qual tenha sido primeiramente publicado.

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inato no homem. Se não é hoje mais espalhado é porque a educação de nossos dias é toda feita para embotá-lo. (...) Os dons de expressão, a sensibilidade inata no homem não resistem ao convencionalismo artístico que reina nas casas de família, no colégio público e privado e tem sua glorificação máxima, sua codificação inabalável no ensino das academias de arte e nos Salões anuais” (Pedrosa, 1951d). Através de seus comentários sobre as crianças, Pedrosa falava dos valores que compreenderiam parte das representações do artista que ele contribuía para instituir: “a criança (...) não se guia por essas receitas (de representação da realidade) e obedece instintivamente ao funcional intrínseco ao material em que trabalha, e às limitações do plano em que age. Dotada de poderosa capacidade de síntese, não se perde em detalhes insignificantes, ao mesmo tempo que se deixa guiar pelo impacto afetivo das cores com o gosto certeiro e franco. A arte cresce dentro dela como o coração e o cérebro. Para salvá-la do adulto, Herbert Read imaginou uma nova educação que se não limitasse a desenvolver no menino e no adolescente as faculdades intelectuais e a habilidade manual mas se dedicasse a desenvolver e apurar nele as faculdades emotivas” (Pedrosa, 1951d). A crítica contra as “receitas” já não se referia às regras acadêmicas de pintura, mas à ideia de continuidade. O artista deveria estar constantemente insatisfeito. A busca ininterrupta de algo novo era o que estava em jogo. Em um contínuo que vai de um polo profissional ao vocacional, da carreira ao dom, Pedrosa explicitava a importância de uma singularidade constituída a partir de um cruzamento entre vocação e excentricidade, tal como já havia sido popularizado pela vida boemia. A originalidade era o novo valor do criador que substituía a capacidade de seguir os cânones e o critério de sua medida dizia respeito à expressão de uma interioridade que não estivesse restrita à subjetividade do artista. Os tipos ideais que se situam nos polos desse contínuo são representados por Pedrosa através das categorias “sinceridade76 e personali76 Notar que os significados dessa categoria não são estanques. Mais acima neste capítulo a categoria foi enunciada como fazendo parte das representações do artista moderno, junto com liberdade e originalidade. Isso só reforça a ideia do caráter socialmente construído das emoções e das transformações que ocorrem na atribuição de significados a categorias de sentimentos.

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dade” (Pedrosa, 1957c). Nesse artigo, ele argumentou que o julgamento estético procurava outros pontos de apoio que o tradicional conceito do belo. Com o abandono do naturalismo, a originalidade passava a ser o princípio exterior e formal de apreciação. Com isso, entretanto, mal aparecia uma obra considerada original, se exigia do artista que buscasse algo novo. Cada nova obra devia reafirmar a vocação através da inovação. A noção de sinceridade estava relacionada à continuidade, que oferecia o fundamento para a noção de estilo: “Outrora, havia um estilo sobrepessoal (sic.), o estilo de uma época: nele todos participavam, com maior ou menor originalidade, e ninguém pedia contas aos artistas pelo seu ar de família ou semelhança” (1957c). A noção de personalidade era contraposta à sinceridade como critério de classificação do artista. Segundo Pedrosa, a sinceridade que tinha implícita a continuidade na obra de um artista, era o “congelamento” da satisfação com o “semi-domínio na sua arte”, que identificava o pintor com um homem prático “que decide simplificar sua existência”. Argumentava que, passado o impacto da experiência que gerou a obra, a sinceridade se tornava uma simulação, uma teatralização. A metáfora do teatro dizia respeito ao engajamento moral do artista na temática representada em oposição à denúncia da hipocrisia de uma apropriação comercial. A autenticidade era assim forjada pela oposição à constância. O dom, a vocação, era confirmado pela continuidade da busca da constante inovação, que inscreveria cada trabalho diferente no conjunto de uma obra resultante da sensibilidade de uma personalidade singular. As representações de singularidade de que Pedrosa lançava mão se tornaram familiares através dos estereótipos da boemia, que supunham um sistema de valores usado para analisar desde o artista fora do comum (como Leonardo Da Vinci, Rafael ou Miguel Ângelo, que eram exceção à norma de suas épocas), até a institucionalização da transgressão própria à arte contemporânea. A excentricidade do comportamento, que fora desacreditada como negativa no artista acadêmico, ganhava um sentido positivo de insatisfação com as normas e lócus da autenticidade na arte contemporânea. O enaltecimento de comportamentos desviantes aparece em artigos nos quais fala

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de artistas específicos, como Ligia Clark: “ressaltamos nela, antes do mais, a coragem, a afoiteza, ou, como costuma dizer, a tendência suicida quando com isso quer significar a fidelidade à ideia e a indiferença do artista pelo sucesso imediato” (Pedrosa, 1957d, ênfases no original). Mencionava também a busca de Ligia Clark por novos materiais, abandonando a tela e os materiais convencionais: o desvio havia sido paulatinamente transformado em inovação estilística e em norma. Outra inflexão importante nesse processo foi a inversão temporal que adiava a consagração para o futuro. É, segundo Heinich (1991) , “a inversão paradoxal que, pela extensão da temporalidade de referência, permite construir a excelência no desconhecimento (méconssaissance) e de transmutar as formas mais escuras da escala em provas de valor ou, ao menos, argumentos de valorização: fazendo o mundo da arte moderna aquele por excelência onde, conforme os Evangelhos, os últimos estão sempre no direito de esperar serem um dia, os primeiros” (p. 215). Falando sobre a troca, Bourdieu argumenta que o lapso de tempo interposto entre o dom e o contradom e a incerteza é o que permite à reciprocidade ser percebida como um ato de generosidade, sem cálculo, colocando em suspenso o interesse pessoal (Bourdieu, 1996a). À medida que aumenta a autonomia da produção cultural, aumenta também o intervalo de tempo necessário para o reconhecimento, por parte do público, das normas próprias de sua percepção. Assim, a consagração ganhava com essa inversão um caráter paradoxal, ao poder ser identificada também com a leviandade de uma linguagem comercial ou a acomodação ao reconhecimento e sanção das normas vigentes. A dimensão econômica passava a funcionar às avessas para o fenômeno artístico, e o triunfo simbólico era quase sinônimo de fracasso econômico (pelo menos a curto prazo), e inversamente (a longo prazo). Essa inversão, que estende o prazo da consagração econômica, é uma importante contribuição para a representação da gratuidade do fenômeno artístico. Autenticidade e temporalidade invertida eram as duas concepções nas quais Pedrosa se apoiava para duvidar da vocação artística do pintor francês Bernard Buffet. Para ele, Buffet não era inovador e ti-

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nha enriquecido vendendo coisas “de gosto duvidoso” para os turistas americanos (1958c). A consagração ampla passava a ser um sinal de uma relação privilegiada com a dimensão econômica e moral em detrimento da estética, e a obscuridade a possibilidade do dom, uma vocação ainda não reconhecida. Foi assim que Pedrosa (1954) reclamou a consagração de Alfredo Volpi, que começara como pintor de paredes, passara por uma pintura figurativa, mas tinha encontrado uma forma de representar abstratamente seus temas figurativos: “Já é tempo, com efeito, de tirá-lo da obscuridade jovial em que vive, e sagrá-lo como o mais autêntico dos mestres de sua geração”. À época da pesquisa, a obra desse artista passava por uma revisão na qual se questionava se não teria havido um exagero na valorização de suas qualidades. A mudança de uma atividade profissional para um regime vocacional cuja norma passava a ser a interioridade das motivações deslocava também o critério de avaliação das obras. A noção de beleza passava a não ser mais tomada como central para a avaliação da qualidade, demarcando também um distanciamento entre a esfera douta do discurso sobre arte e o senso comum. A qualidade da obra deveria ser avaliada segundo as intenções do criador, a partir dos códigos específicos de uma gramática construída pelos especialistas. Esse tema também foi analisado por Pedrosa: no artigo intitulado “Arte e moral”, usou o trabalho do filósofo Julien Alvar para argumentar que a noção de beleza “tende a desaparecer do vocabulário crítico”. E “se não é mais questão de beleza, então a questão do feio não se coloca. O julgamento procura, então, outros pontos de apoio. A apreciação em bom ou em mau, que se tornou tão habitual, não abrange a dupla antinômica do belo e feio” (Pedrosa, 1957e, ênfases no original). Mais uma vez, a questão da moral se impunha nesse processo de revisão dos valores artísticos. Uma vez que a beleza era em grande medida o resultado de um julgamento moral, uma forma de controle social a partir de códigos de conduta heterodoxos à arte, a avaliação das obras de arte deveria partir de outro critério. A moral não deveria pautar a relação entre as atitudes, desejos e necessidades dos atores sociais e objetos artísticos. Assim, a negação da beleza funcionava como mais uma forma de afirmação da estética como uma dimensão social espe-

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cífica. Nesse processo, valores econômicos e morais eram sistematicamente afastados como critérios de avaliação das obras, através da revisão das normas de comportamento dos artistas (e críticos de arte). Havia uma luta pela legitimidade da definição de arte. Daí Pedrosa criticar a tentativa de criar leis que institucionalizassem essa divisão: “os artistas modernos do Brasil, isto é, os artistas tout court, não precisam de nenhum protecionismo especial; se os outros, isto é, os acadêmicos precisam, paciência. A lei não pode visar ao particular e sim ao geral. A existência oficial de dois salões é portanto um anacronismo. E mais do que um anacronismo, é um absurdo jurídico, estético e ético. Urge, pois, que a lei em vigor seja modificada para que, doravante, só haja oficialmente um salão (...) como não pode haver duas espécies de arte, não pode haver também duas espécies de julgamento ou de júri” (Pedrosa, 1957f, ênfases no original). Oficializar a divisão era admitir a multiplicidade de critérios de julgamento, a subjetividade das avaliações e, com isso, colocar em dúvida a autoridade dos avaliadores, isto é, dos críticos. Entretanto, a ideia de um monopólio da definição por parte de qualquer grupo reduz a complexidade de um universo repleto de controvérsias. Podemos ver, por exemplo, na dimensão prática da seleção para um evento artístico, um conflito entre críticos de arte e artistas modernos, aos quais tenderíamos a atribuir um consenso na definição do que seria o fenômeno artístico legítimo. Em uma polêmica com os artistas não selecionados para a IV Bienal de São Paulo, a respeito dos critérios de seleção dos críticos de arte (Pedrosa, 1957g,h,i,j,k,l,m), a vocação e a sacralidade da criação artística foram relativizadas por Pedrosa e o artista passou a ter um papel diferente daquele que vinha sendo enunciado pelo crítico. O júri, composto por José Geraldo Vieira e Lívio Abramo (ambos eleitos pelos artistas) e Lourival Gomes Machado, Flávio d’Aquino e Armando Ferrari, recusou cerca de 80% das obras inscritas para participarem do evento. Alguns artistas de São Paulo mostraram insatisfação com o resultado, o que fez Vieira pedir demissão do júri de seleção, que ainda tinha mais um lote de trabalhos enviados do estrangeiro para ser analisado. José Geraldo Vieira, pseudônimo de Manuel Germano, publicou um artigo no Jornal do Brasil onde falava da discordância entre críti-

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cos e artistas. Pedrosa respondeu ao embate no artigo “Em defesa da Bienal”, defendendo a soberania dos críticos: “nunca se viu espetáculo mais lamentável que o dado pelos artistas de São Paulo, descontentes com os resultados da seleção. Parecia já termos passado da fase primária em que a crítica não existia, nem se podia fazer qualquer restrição aos artistas e à sua obra. O artista apresentava-se, então, como uma espécie de ser extraordinário, intocável ao qual todos nós, míseros mortais, tínhamos de prestar eterna vassalagem” (Pedrosa, 1957l). Na delimitação de papéis, Pedrosa mudava o discurso sobre o estatuto do artista: “eu, de mim, sou franco: não sou agradecido a ninguém por ser artista. Ou por querer ser artista. Artista para mim é um ser como outro qualquer. É uma profissão como outra qualquer. Freqüentemente a profissão é um equívoco. Os artistas por equívoco são legião. Entre os protestatários mais assanhados de São Paulo, os equivocados estavam certamente em maioria. (...) Que nenhum artista, bom, sofrível ou mau veja com olhos complacentes ou com indiferença um grupo de senhores reunir-se e rejeitar suas obras, é natural. Os artistas verdadeiros, porém, quando mandam obras suas a julgamento, têm confiança nelas. Há, contudo, um limite a essa reação justa e, afinal, humana, do artista recusado” (Pedrosa, 1957l, ênfase no original). A liberdade, preconizada como condição sine qua non para a criação artística, encontrava naquela polêmica a manifestação de seus limites. Era a inversão temporal que redimia esse conflito latente entre críticos de arte e artistas plásticos: “o pintor ou escultor, consciente de seu valor, ou, pelo menos, confiante de que virá algum dia fazer coisa aceitável ou boa, sabe que amanhã terá mais sorte com júris ou na apreciação pública. § Ele não produz para este júri ou aquele, para esta bienal ou aquela outra, para tal ou qual salão. Ele produz por necessidade incoercível porque sente ter alguma coisa a dizer, e o faz numa tranqüila ou angustiosa (conforme o temperamento) espera da posteridade (...) Sobre esse rigor do júri, se feriu, como era natural que ferisse, não caiu como um raio aniquilador. Eles não consideram o júri de agora, ou qualquer outro júri futuro, como expressão de uma sentença inapelável, de um julgamento final. Antes o consideram com certeza filosófica, amarga ou irônica, e simplesmente aguardam outra

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oportunidade mais feliz de ver o valor de sua obra afinal plenamente reconhecido” (Pedrosa, 1957l, ênfases adicionadas). A posteridade aparece assim duplamente redentora: é uma forma de minimizar a responsabilidade dos críticos pelos seus possíveis equívocos, ao não selecionarem no presente um artista que no futuro pode vir a ser consagrado, e cria o ideal da revelação se ele selecionar, no presente, um artista que, não sendo ainda aceito por outros círculos de reconhecimento, poderá sê-lo em um futuro incerto. É importante lembrar que, desde o final da década de 1930, Roger Bastide já estava em São Paulo produzindo uma reflexão sociológica sobre o fenômeno artístico. Pedrosa não estava indiferente a essa produção, como podemos constatar pela presença de três publicações de Bastide em sua biblioteca, duas delas da década de 1940. A influência do professor francês na produção de outros atores sociais do período pode ser percebida pela menção que Mário Barata fez ao sociólogo ao proferir uma palestra na Escola Nacional de Belas Artes, sobre a relação entre “criação artística e sociedade”, em 1957. Membro da Aica desde o primeiro congresso, Mário Barata era formado em história da arte e estética pela Sorbonne. O esforço em mostrar o “condicionamento social da arte” (Barata, 1957, p. 58), que ganhara alento em 1936, com um congresso realizado pela Liga das Nações sobre o tema “Arte e realidade”, era o movimento inverso de revisão encabeçada no Brasil por Pedrosa. Enquanto Mário Pedrosa, Ferreira Gullar, Waldemar Cordeiro e alguns outros críticos e artistas procuravam destacar a singularidade e a vocação como valores fundamentais para o fenômeno artístico, essa outra perspectiva tornava o artista e sua produção determinados por valores heterônomos ao campo. O processo de generalização (necessário para inserir mesmo os artistas singulares em alguma cronologia histórica a partir da criação de um novo espaço hermenêutico) era efetuado pelos autores a partir da ênfase em suas produções e na relação destas com os condicionamentos sociais, econômicos e/ou políticos. Foi nessa disputa entre sociólogos, historiadores e estetas pela forma de interpretar as obras que a estética conquistou seu espaço como uma dimensão específica de apreensão do mundo. Ao priorizar uma “estética sociológica” (Bastide, 1945) que abria mão de analisar com-

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portamentos, valores e representações sobre os diversos atores que participavam do fenômeno artístico e tomava a arte como uma forma de comunicação, sociólogos e historiadores disputavam a interpretação das obras, colocando-se em posição homóloga aqueles que constituíam o fenômeno que deviam analisar. Entretanto, mesmo tentando levar em conta o discurso da autonomia, a especificidade do fenômeno artístico ficava subsumida às outras dimensões sociais, e a arte acabava reduzida a funções sociais: comunicar, expressar e/ou representar. A noção que delimitava a fronteira entre o fenômeno artístico e as outras dimensões sociais era a liberdade. E foi em nome da liberdade que, em 1957, Pedrosa aproveitou a morte de Diego Rivera para criticar mais uma vez a tentativa dos artistas de se comunicarem com o público: “em arte não há conciliação nem arranjos externos. O artista verdadeiro não pode fazer concessões no plano da criação ao gosto público, ou aos preconceitos dominantes. Uma de suas funções mais importantes é ao contrário de apurar o gosto público, ampliá-lo, vencer os preconceitos dominantes e propor novos estalões de sensibilidade, que irão posteriormente se revelar mais consentâneos com a própria época” (Pedrosa, 1957n). Essa crítica era direcionada também à sociologia, que buscava compreender o fenômeno a partir de sua dimensão comunicativa. Para Pedrosa (1957o), “toda boa pintura é de ordem abstrata: [pois] são seus valores intrínsecos, e não a maior ou menor fidelidade da representação externa, que determinam a maior ou menor qualidade estética”. O que deve distinguir uma obra das outras são as “qualidades formais”. “O problema da crítica é discernir essas qualidades, destacá-las, descobrir-lhes o significado empírico, emocional, plástico e espiritual, ou simbólico”. Para ele, o crítico refazia o caminho do artista em sentido inverso, repetindo de algum modo a “experiência criadora que engendrou a obra” ao recriá-la (Pedrosa, 1957p). A aliança entre artistas e críticos, mesmo tensa, ainda era mais prestigiosa para ambos os papéis sociais do que aquela que poderia ser feita entre sociólogos e/ou historiadores e artistas, ou entre políticos e artistas. Toda essa discussão sobre os valores na arte moderna também pode ser percebida a partir do affaire entre os defensores da figuração e os adeptos da abstração. A revisão de alguns valores antigos e o aprimora-

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mento de um discurso próprio à dimensão estética em contraposição aos aspectos considerados heterônomos ao fenômeno artístico permearam esse debate até a vitória final da abstração como coroamento desse novo regime de atividade e avaliação da produção e do produtor artísticos. Para apresentar como esse debate se desenrolou no Brasil, volto ao Rio de Janeiro, no final da década de 1940, para ver a instituição da abstração como um marco estilístico-temporal a partir das críticas de Mário Pedrosa à produção de Candido Portinari.

Figuração x abstração no Brasil

Volto assim ao Rio de Janeiro, em 1948, para ressaltar o artigo que Mário Pedrosa (1948) escreveu sobre A primeira missa no Brasil, pintada por Candido Portinari. O artigo fazia um elogio ao trabalho como sendo “sem dúvida alguma uma das realizações mais pujantes da arte brasileira de todos os tempos”. Pedrosa analisou a forma de construção da cena e a estrutura do quadro elogiando o fato de Portinari ter pintado um tema histórico sem cair na descrição realista. O artigo foi estruturado a partir da descrição formal, e não do conteúdo ou “assunto” da obra. O autor ensaiou, entretanto, uma crítica ao “sentimentalismo” presente em outras obras de Portinari ao mencionar a distância que A primeira missa tinha “dos excessos pueris das lágrimas de cimento armado da série retirantes” (Pedrosa, 1948). Vemos aí um Mário Pedrosa mais condescendente em relação à representação figurativa do que aquele que se apresentará a partir de 1949. Havia, nessa condescendência, ambas as dimensões, ética e estética. A “opção” (o quadro fora uma encomenda) de Portinari por um tema histórico e não mais “social” contribuía para a simpatia de Pedrosa por distanciar-se do acervo de temas cujos significados vinham sendo explorados pelo Partido Comunista desde, principalmente, 1940. No entanto, o “partido estético” adotado por Portinari também teve influência na positividade dessa análise. O pintor brasileiro parecia afastar-se das concepções modernistas brasileiras das décadas de 1920 e 1930 ao optar por uma forma de “abstração”. O adjetivo, explicitamente

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usado por Pedrosa, não tinha o significado artístico que seria desenvolvido ao longo da década de 1950, que se referia à representação na qual conteúdo e forma são alheios a qualquer representação figurativa. A ideia de abstração referia-se então ao abandono de uma leitura histórica do tema, isto é, a uma reinterpretação do evento: “O mestre brasileiro não carece de truques para impor-se ou ser compreendido. Ele está agora diante do caminho que ainda tem de percorrer, sozinho. E deve mesmo caminhar sozinho. A solução que acaba de dar a um gênero histórico como o da missa é a prova de seu poder criador. Resolutamente ele suprimiu uma série de problemas falsos, como o da luz natural, da realidade histórica, etc. foi mais longe, e suprimiu a natureza do tema que devia transpor para a tela. Era o seu direito. E apresentou a sua solução de modo magistral” (Pedrosa, 1948, ênfases adicionadas). Pedrosa comparou o quadro de Portinari com o de Vitor Meireles (1860 – fig. 6) sobre o mesmo tema para construir seu argumento. Assim, enquanto a cena de Vitor Meireles havia sido representada “ao ar livre”, a de “Portinari era celebrada no recolhimento interior, sob a luz artificial de um templo. Dir-se-ia uma filmagem no atelier, entre cenários. Sua missa não visa ainda ao proselitismo. Ela é apenas para os iniciados; inicia, prepara os fiéis para saírem a campo, uma vez terminada, a propagar a fé por aquele mundo virgem, desconhecido. E não é esta precisamente a sua finalidade?” (Pedrosa, 1948). O quadro, entretanto, pode ser interpretado como uma paisagem ao ar livre (as montanhas ao fundo oferecem a impressão de que pode também ser um espaço aberto – fig. 7) ou um “interior” feito com pilastras, mas sem paredes. Mais interessante do que a interpretação sobre o fato de o ritual se passar ao ar livre ou na interioridade de uma construção é a justificativa oferecida para a solução de Portinari: “era o seu direito”. A linguagem estética justificava uma interpretação particular que atribuía o “direito” de desprezar os dados históricos. Mesmo que a falta de um sentido restrito para a noção de abstração ainda permitisse a Pedrosa aceitar a figuração, os valores da arte moderna já estavam incorporados à sua gramática de ação.

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Fig. 6 – Victor Meireles, Primeira missa no Brasil, 1860. Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes.

Fig. 7 – Candido Portinari, A primeira missa no Brasil, 1948. Montevidéu.

Se, em 1948, Pedrosa ainda não declarara abertamente “guerra contra a figuração”, em agosto de 1949 ele publicou sua primeira crítica contundente contra Portinari (Pedrosa, 1949a). Não era a

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primeira vez que se referia ao abstracionismo.77 Entretanto, até então a noção de abstração tinha um significado mais amplo para esse autor do que aquele que ele assumiria pouco tempo depois. O sentido da crítica de Pedrosa ao painel de Portinari não era restrito nem ao domínio estético, nem ao ético. Tratava-se de uma combinação de ambos, o contexto político no Brasil aliado ainda ao novo estatuto que Mário Pedrosa adquirira após a publicação do livro Arte, necessidade vital (com as críticas positivas anteriormente comentadas) e sua participação no Congresso Internacional de Críticos de Arte e na fundação da Aica e da ABCA (seção Brasileira da Aica), das quais o autor tornou-se membro. Entretanto, o evento mais importante para compreendermos o porquê dessa crítica ter sido formulada nesse ano e não em outro qualquer, talvez tenha sido sua participação na Aica. Os valores defendidos pela maioria dos críticos mais consagrados daquela instituição condiziam com aqueles a partir dos quais Pedrosa vinha construindo sua trajetória no campo da crítica de arte brasileira. Apesar de não haver no Brasil uma oposição radical a ele, havia uma hegemonia de certas concepções artísticas pautadas pela consagração de Portinari e pelo apoio de diversos intelectuais à ideologia soviética. Romper com interpretações heterônomas da arte no Brasil significava confrontar a rede de relações que se organizava em torno de Candido Portinari e do Partido Comunista. Somente com a nova posição no espaço social, assumida em 1949, esse desafio foi possível. A crítica foi formulada em relação ao painel Tiradentes, finalizado por Portinari em 1949. O painel destinava-se ao salão de uma escola em Cataguases, Minas Gerais, projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer. O trabalho de Portinari foi recebido calorosamente pela crítica, especializada ou não,78 com elogios ao trabalho e críticas ao 77 Ver capítulo 4. 78 Aquino (1949), Bento (1949), Callado (1949), Campofiorito (1949), Campofiorito (1949a), Campofiorito (1949b), Conversam... (1949), Del Picchia (1949), Ferraz (1949), Kelly (1949), Lima (1949), Martins (1949), Milliet (1949), Moraes (1949), Rego (1949), Reis Junior (1949), Squeff (1949), Wainer (1949) teceram elogios ao painel.

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suposto boicote pela participação do pintor no Partido Comunista (declarado novamente ilegal em 1947). É provável que a crítica que estimulou a reação de Pedrosa tenha sido a de José de Moraes. O autor falava que a importância de Portinari residia também no domínio político, fazendo um paralelo entre a Inconfidência mineira e “sua continuação hoje, não mais reduzida a um pequeno grupo de patriotas, mas, sim, envolvendo todo o nosso povo (dirigido) pela sua vanguarda revolucionária”. A interpretação metafórica de Moraes finalizava com uma analogia entre Prestes e Tiradentes: “Salve, Portinari. Com este teu painel mostraste (...) que temos um Prestes simbolizado naquele Tiradentes barbado, encarando com altivez seus algozes” (Moraes, 1949). Portinari havia aderido ao PC, tendo sido candidato (sem ser eleito) a deputado pelo Estado de São Paulo em 1945, e a senador pelo mesmo estado em 1947. Em termos morais, a crítica de Pedrosa ao painel era uma censura ao posicionamento político não somente de Portinari, mas de todos aqueles que se colocavam ao lado do Partido Comunista. Em termos estéticos, Pedrosa ressaltava o desenvolvimento do tema que “como os antigos, Portinari preocupou-se em narrar os episódios do drama, sem que entretanto os elementos principais deste se repetissem rítmica ou visualmente, ou mesmo psicologicamente”. Para Pedrosa, Portinari caía na mera “catalogação dos detalhes com vista apenas no assunto”. Paradoxalmente, entretanto, a crítica ao realismo do painel era complementada com uma censura ao fato dele não ser didático: “vários estrangeiros que não conheciam o episódio, não atinavam com o que se passava na tela e vinham pedir explicações. Se lendo o texto do catálogo, mais no espírito de livreto de ópera que de catálogo sobre pintura, é que ficavam eles compreendendo o que viam. Ora um dos motivos originais do mural foi precisamente o de ensinar o povo iletrado, dispensando-se o alfabeto” (Pedrosa, 1949a). A crítica à falta de didatismo do quadro reforçava a ideia de que, mesmo o tema tendo sido representado de forma realista, não estava ainda assim cumprindo sua função pedagógica, afinal tratava-se de uma escola. É possível perceber que a perspectiva de Pedrosa não era radical contra a figuração, mas a todo um conjunto de valores artísticos que

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se encontravam concentrados em Portinari. No comentário ao trabalho de Djanira, também chamara a atenção para a possibilidade de se apreciar um trabalho figurativo de um ponto de vista formal. Falando da “evolução” da pintora, que, segundo o crítico, “cresceu dentro da artista”, “a preocupação pelo assunto vai desaparecendo, ao passo que os problemas puramente plásticos se impõem cada vez mais. Eles se sucedem numa complexidade crescente. Muitas vezes, uma figura, um cachorro ou uma bola estão neste ou naquele plano, com tal ou qual tom, simplesmente para manter o equilíbrio ou valorizar a composição. Não estão ali para representar, mas em função do quadro” (Pedrosa, 1948a, ênfase no original). Entretanto, não se tratava apenas de um confronto entre arte oficial e arte independente segundo o esquema da geração precedente, mas da demarcação entre diferentes categorias de arte independente e do próprio sentido dessa independência. Assim, a arte moderna que Pedrosa defendia era considerada pelo crítico como a única forma de arte legítima, e portanto a defesa dessa nova forma de representação desafiava os valores do estilo anterior. É nesse sentido que Otília Arantes (1991) nota que, aos poucos, “a luta contra o realismo socialista o levará (Pedrosa) por vezes a extremos de intolerância em relação a toda arte que permanecesse figurativa” (p. 29). Pedrosa provavelmente se deu conta paulatinamente de que não bastava sinalizar a existência de uma maneira de compor um quadro, mesmo figurativo, a partir de preocupações formais em um ambiente no qual o assunto do quadro acabava sempre colocado em primeiro plano. O debate não se dava em um único domínio, estético ou ético, em nenhum dos dois lados desse embate. Segundo Aracy Amaral (2003), o realismo era visto, no segundo pós-guerra, “como um novo humanismo visível na arte, em contraposição à conflagração sangrenta de que saía o mundo, e em cujo desfecho a tecnologia mortífera acenara com um engenho traumatizante, como a bomba atômica” (p. 230). Foi nesse sentido que a ideia de uma natureza humana foi enfatizada através da questão do sofrimento. Daí também a crítica à abstração como uma arte da alienação associada a um formalismo vazio e à influência dos EUA.

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Para o crítico Flávio de Aquino (1948), por exemplo, a abstração era o “choque entre um mundo que, para se libertar de uma realidade por demais cruel, foge para o hermetismo da torre de marfim, com outro que deseja a reabilitação do homem, por intermédio de todos os meios disponíveis, de todas as energias, inclusive as culturais”. O abstracionismo era a recriação de um mundo no “quadro-objeto fora de qualquer ideia hedonística, social, imitativa ou sensorial”, enquanto o figurativismo representava “toda a humanidade, toda uma época pairando sobre a obra como um monumento sintético de uma emoção recebida”. Aquino questionava se deveria “a arte depender exclusivamente da arte, isto é, da sua perfeição como jogo ou ciência, estando o homem ausente com toda a sua existência, todas as suas inclinações”. Não havia nessas considerações a negação de que a abstração pudesse abrir caminho para uma maior liberdade plástica. O autor reclamava, no entanto, o “caráter inquisitorial” da contenda que, para afirmar esse novo caminho para a arte, precisava negar completamente o antigo (Aquino, 1948). Nesse processo de destruição e reconstrução de valores, novos critérios classificatórios eram utilizados para situar tanto as obras como seus autores. A instituição da abstração como um marco estilístico-temporal no campo artístico significava uma reconfiguração desse universo, do qual os críticos de arte também participavam. Foi assim que Pedrosa colocou românticos, neoclássicos e impressionistas juntos para falar de um realismo na pintura (ao qual a abstração se opunha): “a pintura do século 19, como as demais artes, era dominada pelo que se chamou de realismo; (...) O Realismo abrange grande variedade de grupos e escolas: do naturalismo, (...) às diversas tendências ou escolas ditas românticas ou neoclássicas. § Até o início da revolução estética, esses dois grupos travavam batalhas que queriam ser mortais, mas não eram. (...) Os românticos também podiam ser incluídos nos realistas. Eles se limitavam a recorrer ao exótico, aos espetáculos raros, ou a poetizar certos ângulos de cenas e coisas da natureza habituais. No fundo a grande diferença estava no assunto, num amor mais intenso das cores” (Pedrosa, 1949b). Campofiorito criticou essa reorganização dos estilos artísticos. O autor argumentou que românticos e realistas se diferenciavam, na

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época, tanto por questões de posicionamento político quanto estéticas. Entretanto, a distância “que disfarça os detalhes” e embaça a vista tinha feito com que Pedrosa os colocasse juntos, diferenciando-os apenas por “nuances de ordem pessoal que davam à pintura dos primeiros, assuntos exóticos e cores audaciosas, e aos segundos, uma severidade de pensamento e de visão” (Campofiorito, 1949c). As questões morais que diferenciavam cada um daqueles estilos, ou grupos de artistas, eram obliteradas por Pedrosa, ao colocá-los juntos a partir de uma nova classificação. Esse recurso ressaltava a nova forma de representação (a abstração) apenas a partir de sua dimensão estética, isto é, uma suposta ampliação das possibilidades plásticas aparentemente mais defensável naquele contexto, diante da justificativa moral dos partidários da figuração. Nesse período coexistiam críticos de diversas formações, como Sérgio Milliet, José Geraldo Vieira e Geraldo Ferraz, da literatura; Luiz Martins e Lourival Gomes Machado, da sociologia; Quinino da Silva, da pintura e do jornalismo; ou somente do jornalismo, como Ibiapaba Martins e Fernando Pedreira. A enorme maioria precedia a época da implantação do modernismo no Brasil. O mais entusiasta do abstracionismo foi Mário Pedrosa, e, por essa razão, alvo de críticas (Amaral, 2003). Se esse embate tinha uma dimensão ética e outra estética, tinha também uma dimensão pessoal. Pedrosa, como o primeiro e principal defensor da abstração no Brasil durante muitos anos, foi considerado “um grande lançador de talentos novos” (Deus, 1952), por aglutinar em torno de si artistas, críticos e outros atores sociais que se identificavam de alguma forma com as propostas da nova linguagem. Assim, em 1952, Mário Barata sugeria que o posicionamento em favor da abstração fosse uma estratégia na construção de singularidades, por oposição aos cânones consagrados por artistas como Di Cavalcanti, Portinari e outros: “Há vinte anos atrás Portinari era bandeira contra os ídolos. Hoje, alguns círculos intelectuais estão tentando destruí-lo, em onda que arrasta vários desprevenidos. Tornou-se agora moda fa­lar mal da pintura do artista de Brodowski. Alguns o fazem, por ouvir falar. Outros porque toda

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moda nova dá cunho de personalidade, é algo snob” (Barata, 1952, ênfase no original). Em 1953, Bento (1953) e Campofiorito (1953) apostavam no declínio da arte abstrata por não terem ainda compreendido que não era uma forma de representação específica que estava em questão, mas os novos valores que estavam sendo projetados nela. Entretanto, diversos atores sociais e instituições já consagravam a abstração como representante do futuro da arte moderna, ou início da arte contemporânea. Vários eventos diferentes, entre manifestos como o de Waldemar Cordeiro (manifesto Ruptura, em 1952) e a inauguração da I Bienal de São Paulo, em 1951, vinham contribuindo para o fortalecimento desse “partido estético”.79 Assim, já era possível encontrar manifestações como a de Ferreira Gullar (1953), com uma crítica na qual os valores éticos implícitos no trabalho de Portinari eram usados como fundamento da crítica à sua dimensão estética. Aproveitando uma exposição de Portinari no MAM-RJ, Ferreira Gullar fez uma apreciação da obra do artista. O autor começava argumentando sobre a relação entre os círculos de reconhecimento e sua consagração. Falou do ápice do renome e prestígio que Portinari chegou a desfrutar entre artistas, intelectuais e uma parte do público, mas que há alguns anos, com a consagração plena por parte do público, ele vinha sofrendo críticas nos círculos mais restritos. Essa observação mostra as diferentes instâncias de reconhecimento com critérios de avaliação específicos em relação às obras. Entretanto, fala também das representações de que estava investido o pintor de Brodósqui e contra as quais Gullar se colocava, aliando-se a Pedrosa na defesa da abstração. Gullar reclamava que se separasse o “ fator discursivo (...) de natureza extra-plástica, como as ideias políticas, religiosas ou filosóficas que o quadro pretenda expressar”. O crítico argumentava que os interesses e a personalidade do artista só interessavam se tivessem influência na qualidade plástica. Levar em conta esses fatores significava prender a obra dentro de limites temporais, levando-a 79 Para uma análise histórica desse debate, ver Aracy Amaral (2003).

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a julgamento dentro de quadros estritos e instáveis. Para o crítico e poeta, de todas as objeções que se podia fazer a Portinari, a mais grave era a de que “ele não concebe plasticamente. Noutras palavras, não é movido pela intuição de relações formais ou de estruturas plásticas; sim pelo assunto, pelo impulso narrativo”. Assim, “a ausência de sentido plástico é preenchida pelo sentido dramático-narrativo”. Para o crítico, a “pintura narrativa sempre exprimiu as verdades duma cultura comum ao artista e ao povo, e a sua derrocada começa com a derrocada dessa unidade cultural que a religião cristã criara e mantivera durante séculos” (Gullar, 1953, ênfases no original). Havia ainda dificuldade em compreender os novos cânones que se iam firmando para a arte na Europa. Assim, em 1953, Carlos Flexa Ribeiro argumentava que não se poderia subestimar as contribuições do abstracionismo para a “libertação do poder criador do artista e a consagração mesmo da autonomia da arte em face do mundo exterior, como mundo das aparências”. O autor concluía, a partir da constatação empírica, que era “típico do nosso tempo a pluralidade das tendências, a inquietude perpétua das pesquisas criadoras, e premência constante da ideia de inovar” (Maurício, 1953). Flexa Ribeiro considerava, entretanto, que uma “estabilização estilística” surgiria “quando as próprias raízes sociais de que se alimenta o mundo da arte deixarem também de ser sacudidas pela inquietação” (Maurício, 1953). Em relação à abstração, acreditava que era “lícito reconhecer-se que essa contribuição encontra-se numa encruzilhada: para um lado seguem os que querem prosseguir pesquisando e tendem por isso, a ultrapassar as limitações do abstracionismo, para o outro lado, os que com poucas exceções estão convertendo, a partir de agora, o abstracionismo no mais recente de todos os academismos” (Maurício, 1953). Na constatação de que a abstração já não era novidade e da exigência de que se ultrapassassem as “limitações do abstracionismo” para não se cair em outro “academismo”, o professor Flexa Ribeiro não percebia que estava contribuindo para o novo “estilo”, “academismo” ou cânone: a constante inovação, a transgressão das fronteiras instituía-se como nova norma, reiterando os valores artísticos consagrados no começo do século XX.

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Em 1954, a declaração de Mário Pedrosa, que Portinari e Segall não fizeram falta da II Bienal de São Paulo, causara escândalo, chegando a resultar em seu afastamento da Tribuna da Imprensa, cujo diretor, Carlos Lacerda, se recusou a publicar a resposta às críticas às suas declarações. Em sua resposta, Pedrosa explicitou o papel central que Portinari ainda detinha nos círculos mais amplos de admiração: “tenho por mim que protesto se faz quando algum direito é postergado, uma injustiça revoltante é cometida, um tabu é violado ou um ritual ou um elemento do sagrado na sociedade é desrespeitado. Compreende-se a indignação de um patriota diante da insolência do cidadão que fica de chapéu na cabeça quando a bandeira nacional passa. É justo o tremor de indignação do fiel diante da grosseria do incréu que entra na igreja para perturbar o santo ofício da missa ou escarnecer dos sacramentos que ali se estão realizando – confissão, comunhão, batismo etc. Mas que um órgão de crítica literária saia de sua rotina para vir protestar, acometido de verdadeira síncope sagrada, contra uma opinião (certa ou errada, não importa) de um crítico profano, dá realmente para espantar” (Pedrosa, 1954). Na busca pelo novo, criticava os trabalhos apresentados por Portinari naquele período. Segundo o crítico, não significava que os artistas deviam caminhar necessariamente para o abstracionismo, mas deveriam se impor novas questões. Para Pedrosa, Segall, Di Cavalcanti e Portinari, ao contrário de Volpi, não tinham encontrado e superado novos desafios plásticos em sua arte. Os três artistas estariam satisfeitos com seu prestígio e glória. Pedrosa representava no Brasil a crítica especializada que revelava novos talentos, consagrando como novo cânone a transgressão das fronteiras artísticas já instituídas. Não exercia somente uma atividade jornalística como reflexo de uma opinião pública, mas produzia um conjunto de novos critérios de valor que consagrava a transgressão do imperativo da figuração e abria caminho para a transgressão das transgressões, próprio da arte contemporânea. Em 1955, Portinari concedeu uma entrevista a Flávio de Aquino na qual falava do “fim da arte” (Aquino, 1955). Outros autores usaram a ideia de “morte” para falar das transformações ocorridas no

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fenômeno artístico desde, principalmente, o fim do século XIX (Gullar, 1993). Sem ignorar a crítica sociológica que desqualifica as metáforas organicistas para tratar de fatos sociais, a noção de um fim para este fenômeno, no caso de Portinari, referia-se explicitamente à institucionalização de um novo conjunto de valores que transformava radicalmente a noção mesma do que era arte e, portanto, o prestígio que o pintor tivera desde meados da década de 1930. A transgressão como novo cânone instituía um constante deslocamento das normas artísticas, dando visibilidade a tudo que até então ficara de fora do campo artístico. É assim que os estudos sobre luz e movimento, que resultarão nos aparelhos cinecromáticos de Abraham Palatnik, serão premiados na 1ª Bienal Internacional de São Paulo em 1951. Daí o incômodo de Portinari que resulta na declaração: “não afirmei categoricamente que a arte ia acabar. Não sou profeta. Tudo me leva a crer, porém, que seu fim virá, que no mundo de hoje a pintura e a escultura cada vez mais perdem sua razão de ser. Se a pintura vai acabar ou não, acho que é uma pergunta que precisa ser feita e é uma pergunta que não me sai da cabeça. (...) Todos estão preocupados com meios mais diretos e eficientes de informação e propaganda. (...). § Na realidade, o que importa é saber se alguém precisa de nós, se nossa profissão é necessária à sociedade do nosso tempo. A arte, que antes tinha existência útil, que era o melhor meio de propaganda, hoje precisa de uma propaganda danada para ser vista. (...) hoje, o rádio, o cinema, o jornal, a televisão, tudo substituíram. E isso não acontece apenas no Brasil, é um fenômeno universal, é da época...” (Aquino, 1955). Portinari explicitava a função que ele e outros artistas de sua geração haviam cumprido ao falar da perda de prestígio da pintura com o fim de um papel social a ela atribuído. O objeto pintado e o pintor são, na fala de Portinari, metonimicamente tratados como parte de um todo que conforma o fenômeno artístico. Constituído de objetos, pessoas e valores, a classificação das coisas no universo artístico refere-se também à classificação das pessoas e aos valores aí implícitos. As lutas de classificação implicam não somente a categorização dos produtos

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artísticos, mas trazem consigo valores morais que dizem respeito ao lugar dos atores no mundo social. O importante é perceber que objetos e pessoas são investidos de representações que desconsideram fronteiras entre arte e sociedade. A arte é um fenômeno social cujos atores que o constituem representam papéis que são instituídos a partir das relações com diversas dimensões sociais mais ou menos amplas, como economia, política ou história, filosofia, psicologia etc. Ao falar da terceira Bienal de São Paulo, Sergio Milliet (1955) fez um balanço dos debates artísticos no Brasil: “a polêmica que continua já fez muito pela arte, e muito fará ainda. Antes de mais nada, focando a atenção dos figurativistas nos verdadeiros problemas da pintura, do desenho, da escultura, e induzindo os outros a justificar solidamente as razões que os levam a optar pelo abstracionismo. Do diálogo surgiram e se afirmaram algumas verdades esquecidas, como a de que vale a arte pelos seus elementos estéticos somente, seja ou não figurativa, ou a de que, se o assunto não é necessário, tampouco prejudica a realização artística”. Flávio de Aquino, que em 1948 atribuía aos pintores abstratos uma fuga do mundo social, em 1957 argumentava que, “no caso da arte abstrata, a emoção é mais verdadeira que a decorrente de uma história bem determinada, pois que se concentrou inteiramente na sua própria estrutura sem ser desviada ou perturbada por incidentes anedóticos”. Aquino alegava que desde que “Maurice Denis escreveu que um quadro é ‘antes de tudo, uma superfície plana coberta de cores arrumadas segundo uma certa ordem’, desde esse dia, o caminho para o abstracionismo era inevitável”. As estéticas do passado eram “estéticas mortas”. “Hoje, cabe à Abstração (sic) o título de movimento revolucionário e jovem”. Para ele, “a pintura abstrata, além de procurar resolver questões já enunciadas pela arte de antigamente, coloca e pretende resolver também outros problemas nascidos dentro dela própria” (Aquino, 1957). No final do século XIX se iniciou um processo de desconstrução dos princípios definidores da obra de arte a partir de sucessivas transgressões: o impressionismo transgrediu os cânones acadêmicos da representação, o fauvismo os códigos de figuração das cores,

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o cubismo a figuração dos volumes, o expressionismo as normas da objetividade da figuração, o futurismo os valores humanistas, o dadaísmo os critérios do sério, o surrealismo os do provável. Os abstracionismos, aqui representados nesse embate, questionaram o imperativo da figuração, questionando mais essa fronteira e provocando novos escândalos (Heinich, 1993). As sucessivas transgressões, das quais o embate aqui descrito é um exemplo, fazem parte do processo de instituição do novo cânone artístico, a ruptura como princípio da arte contemporânea. Em 1960, Mário Pedrosa se despedia, “pelo menos por enquanto, da crítica militante”, argumentando que seus “possíveis e amados leitores, ter-me-ão, agora, de outro ângulo: do de diretor de um museu de arte moderna, e responsável por uma bienal. É muito trabalho e responsabilidade. Talvez muitos desses meus possíveis leitores me prefiram, assim, de longe, numa posição menos agressiva ou mais neutra que a de crítico militante, de óculos e lápis na mão” (Pedrosa, 1960, ênfases no original). Ele foi convidado por Matarazzo para ser diretor do MAM-SP e da Bienal de 1961. No começo da década de 1960, quase todos os representantes do modernismo brasileiro da primeira metade do século XX haviam falecido: Oswald de Andrade, mentor do modernismo junto com Mário de Andrade, havia falecido em 1954; Santa Rosa, em 1956, Lasar Segall, em 1957, Pancetti, em 1958, Paulo Rossi Osir, em 1959, Alberto da Veiga Guignard e Candido Portinari, em 1962, e Anita Malfatti, em 1964. Os valores representados pela figuração já não tinham mais defensores. Com os elementos da nova gramática estabelecidos, Pedrosa ganhara ainda o poder de selecionar aqueles que, identificados com a representação do artista contemporâneo, podiam contar com aquelas duas instituições em seu processo de consagração. A explosão do mundo da arte em uma multiplicidade de instâncias de julgamento deu lugar a uma heterogeneidade de percepções, olhares, gostos, operando uma divisão hierarquizada entre competências desiguais. A arte contemporânea instituída a partir das diversas rupturas passa a se apresentar como um jogo de transgressões onde artistas, críticos e espectadores reagem às transgressões e às

reações uns dos outros. Às instituições cabe sancionar as inovações, integrando as novas fronteiras e ampliando a compreensão do fenômeno artístico, ao mesmo tempo instituindo uma nova margem a ser transgredida. Transgressão, reação, integração é o triplo jogo no qual se inscreve a arte contemporânea (Heinich, 1993) e do qual fez parte o embate aqui descrito. A incorporação de um dos mais acirrados defensores da abstração em instituições de consagração no campo artístico brasileiro exigia dos artistas que se arriscassem em novas propostas. Dali para frente, a noção de liberdade ganharia novos sentidos.

Considerações finais

Fig. 8 – Hélio Oiticica, Bandeira seja marginal seja herói, 1968.80

Nesta investigação, o fenômeno artístico apresentou-se como um fato social total (Mauss, 2003) a partir do qual foi possível observar questões jurídicas, religiosas, estéticas, morais, econômicas e morfológicas. As transformações sociais se revelaram a partir do lugar atribuído aos artistas. Observando os discursos da crítica de arte no Brasil, foi possível perceber que, a partir do final da década de 1940, até principalmente o começo da década de 1960, o artista foi perden80 O culto da marginalidade encontrou em Hélio Oiticica um dos seus maiores representantes no Brasil.

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do seu papel de representante de uma nacionalidade ou classe social, e noções como autenticidade, singularidade, criatividade, espontaneidade, sensibilidade serviram para desentranhar o indivíduo da trama social e torná-lo o eixo central de um fenômeno pensado como universal. O nacional e o nacionalismo como temáticas, ponto de partida de muitos outros fenômenos sociais (Leitão, 2007), estiveram presentes como parte do esforço de dar visibilidade internacional para a produção artística brasileira no modernismo das décadas de 1920 e 1930. Após a Segunda Guerra, observamos o processo de incorporação de novos valores e as disputas que isso acarretou com a geração anterior, que introduzira no Brasil discursos modernos em um universo ainda acadêmico nos valores e na prática dos artistas, críticos e historiadores da arte. Na Europa, a nova morfologia social do fenômeno artístico, com a ampliação da rede institucional, de papéis socioprofissionais relacionados ao fenômeno e o incremento da quantidade de artistas, assim como o contexto político, contribuíam para que a noção de liberdade fosse reivindicada como reforço dos processos de distinção interna dos membros desse grupo social. A reivindicação da liberdade como uma demanda moral, fundada na noção de direito, reforçava o valor da singularidade contra as convenções sociais. Foi esse mesmo contexto histórico que propiciou no Brasil a inauguração dos museus de arte moderna e da Bienal de São Paulo, multiplicando as instâncias de exibição e consagração e ampliando o contato internacional entre os diversos atores envolvidos no fenômeno artístico. A ideia de liberdade assumiu conotações diferentes ao longo do tempo, estando seus significados relacionados aos valores consensuais entre os críticos de arte de cada período. Em um momento, a liberdade foi acionada para justificar a opção pela “deformação” expressionista em uma obra; em outro, foi usada para defender a abstração contra a obrigatoriedade de um posicionamento político através da produção artística no uso da forma de representação figurativa. A noção de liberdade apareceu como uma categoria relacional cujo significado só pode ser compreendido em seu contexto histórico.

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Todas essas manifestações fizeram parte, no Brasil, do processo de incorporação no universo artístico nacional desse regime de singularidade cujas principais características são a inversão da temporalidade e a fundamentação em noções como liberdade, autenticidade e autonomia. No regime de singularidade, a noção de liberdade sustenta o valor da ideia de autenticidade e aparece como defesa moral do desvio. A participação de Mário Pedrosa, simultaneamente, no campo artístico brasileiro e internacional foi essencial nesse processo, e foi através de seus escritos que observamos essa transformação axiológica nas representações sobre a arte e o artista no Brasil. Com uma trajetória atípica que passava pela formação em direito e a militância política de esquerda, Pedrosa produziu na década de 1930 seus primeiros textos sobre artes plásticas como libelos políticos. Nesse período, norteava-se pela ideia de uma analogia entre arte e comunicação, que reservava aos artistas plásticos a função de transmitir através de seus trabalhos informações específicas relacionadas a posicionamentos políticos diversos. Nesse período, Candido Portinari era o artista mais consagrado no Brasil pela combinação de sua origem social, história de vida e carreira artística, assim como a linguagem plástica e as temáticas desenvolvidas em seu trabalho. Foi então em grande medida em oposição aos valores representados por Portinari que Pedrosa contribuiu para desviar o foco central da produção artística dos pertencimentos coletivos para um indivíduo universal. Nessa mudança de foco não se tratava mais da pessoa (eu social, feixe de direitos e deveres), mas também não era exatamente o indivíduo no sentido de um ser biológico ao qual se liga um conjunto particular de emoções, sentimentos, instintos, estados mentais, reações etc. Tratava-se de uma singularidade reconhecida a partir de uma produção artística fundada nos valores da vocação e da autenticidade, expressa pela comparação negativa com toda a produção artística anterior. A noção de autenticidade mudava de sentido e deixava de estar relacionada à ideia de “espírito de um povo” para estar relacionada a uma excelência absoluta a partir da qual a obra de um artista deveria ser diferente de tudo até então produzido. Havia

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nesse discurso a tentativa de construir uma objetividade estética, suprimindo a subjetividade implícita nos critérios de julgamento dos críticos de arte. Assim, no início da segunda metade do século XX, seguindo de perto os debates sobre crítica de arte travados nas assembleias e congressos da Aica, Mário Pedrosa contribuiu para a consagração no Brasil dos regimes vocacional e de singularidade, abrindo caminho para que a delimitação da arte contemporânea como nova classificação artística viesse a ser instituída. Essa objetividade almejada pelos críticos de arte acarretou uma revisão na noção de autonomia da arte, que se apoiava no discurso da separação entre arte e política, estética e ética, forma e conteúdo. A partir dessa nova perspectiva, as obras de arte deixavam de ser avaliadas do ponto de vista da eficiência com que expressavam ou comunicavam alguma coisa, e a estética tornava-se um critério de julgamento em si, distinto da moral, da economia e da religião. Essa transformação axiológica tinha como corolário uma mudança epistemológica a partir da qual a arte deixava de ser tomada como expressão (de sentimentos, de intenções etc.) para tornar-se um sistema social. Em outras palavras, a arte perdia uma função específica e ganhava em autonomia, não no sentido de se libertar de todos os vínculos sociais, mas de uma liberdade relativa para escolher o vínculo a ser estabelecido de acordo com os interesses, as alianças, os desejos dos diversos atores envolvidos, principalmente na recepção e difusão das obras de arte. Esse novo estatuto para a criação artística só pôde se estabelecer a partir do momento em que o contexto institucional ofereceu as condições necessárias. Foi preciso que se formasse no Brasil um mercado de arte plural e privado no qual oferecer obras que fugissem aos cânones da modernidade nacional. Esses cânones passaram na década de 1920 e 1930 principalmente por alguns traços culturais diacríticos e nas décadas de 1930 e 1940 pela noção de arte social, privilegiando temáticas que enfatizassem o trabalho e o sofrimento de formas variadas. Somente com a complexificação do universo artístico, com a formação de um sistema de consagração dos artistas

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e estilos que fugissem aos modelos culturalistas e econômicos até então utilizados na avaliação do fenômeno artístico, a expansão das oportunidades de exposição dos novos artistas e a inserção do Brasil em um mercado internacional cujo discurso dominante era o da singularidade e da autenticidade é que os novos valores atribuídos ao artista e à criação no Brasil puderam ser reformulados. Norbert Elias (1995) analisou um processo similar em seu trabalho sobre Mozart. O contexto histórico social no qual se inseriu a trajetória e a vida de Mozart não coincidia estritamente com o conceito de autonomia da produção intelectual e artística. Assim, a dramaticidade da vida de Mozart deve ser pensada em termos de seu desejo de querer ser gênio numa sociedade e numa época que ainda não conheciam este conceito romântico e o contexto institucional ainda não estava pronto para receber aquela nova forma de lidar com a música. No Brasil do século XX, enquanto não surgiu uma configuração social que acomodasse os valores constituídos para o fenômeno artístico na Europa a partir do romantismo, não foi possível, mesmo que já se fizesse uso de noções como vocação, gênio e autenticidade no começo do século XX, que esses conceitos se tornassem parte de um regime específico de avaliação do artista e sua produção. Somente com o novo contexto foi possível a substituição da capacidade de seguir os cânones como critério de valor, vigente na primeira metade do século XX, pelo privilégio da originalidade fundada na interioridade. Assim como Norbert Elias, optei por não recorrer a uma reconstituição estritamente cronológica fundamentada em fatos considerados a posteriori como pertinentes para a construção da história de vida de um certo autor, isto é, procurei não constituir o que Bourdieu define como uma “ilusão biográfica” para falar da trajetória de Mário Pedrosa. Também não foi minha escolha trabalhar com o “campo da crítica de arte” explicitando as tomadas de posição no contexto cultural dos artigos publicados pelo crítico ou as características dos autores com os quais dialogava, levando em conta posição, origem social, opinião política e religiosa e tipo de educação. O processo de institucionalização da crítica de arte, que teve como um de seus pontos altos

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a fundação da Associação Internacional de Críticos de Arte em 1949, não era o cerne da minha preocupação. Desde meados da década de 1960, a sociologia da produção artística vem instrumentalizando a capacidade crítica dos atores ao procurar explicar o processo de construção dos valores, denunciando a crença no dom como ideologia. Lygia Dabul (2001) mencionou, em seu trabalho de campo no Parque Lage,81 que os atores sociais partícipes dessa dimensão do universo artístico carioca produzem uma “sociologia deliberada”, pensada por oposição a uma “sociologia espontânea”. Noções como campo artístico, concorrência, senso comum, cultura, inexistência de talento e estilo, violência simbólica etc. são usadas como uma linguagem que afirma o privilégio daqueles que são familiares aos valores do fenômeno artístico. Nathalie Heinich (2005) também discorreu sobre a denúncia que, em nome do desvelamento sociológico das desigualdades, acaba redobrando a privação dos menos familiares. Daí minha opção por uma sociologia descritiva, que privilegiou investir sobre a singularidade como um modo de valorização e definição da arte: um sistema coerente de representações e ações que incorpora atores sociais e objetos como agentes em interação. Acredito que os atores sociais são competentes para avaliar, tomar posição, denunciar e julgar as situações. Assim, analisar a produção crítica dos atores me permitiu reconstituir os sistemas de grandezas a partir dos quais as obras e os artistas foram diferencialmente avaliados. Para tanto, fugi de tomar por objeto o objeto das palavras e ações dos atores sociais partícipes do fenômeno artístico, isto é, as obras de arte, e sim observar as palavras e ações que constituem esses objetos como tal. O caminho para compreender o processo de instituição dos novos valores para classificação dos artistas foi observar o contexto no qual se desenrolou o affaire figuração versus abstração. Meu interesse foi compreender o porquê da profusão de discursos em torno dessas 81 Instituição de ensino livre de artes plásticas do Rio de Janeiro que privilegia uma arte definida como contemporânea.

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duas formas de representação. Se no Brasil a abstração ainda era um estilo que precisava se opor à figuração para se consagrar, na Europa ela já não constituía uma novidade. Por que então esse debate também se estabelecia naquele contexto, no qual a abstração já era uma inovação? Para tanto, procurei mostrar ao mesmo tempo o processo de construção da crítica de arte como uma forma de discurso particular na Europa, em oposição à filosofia da arte, à história da arte e à psicologia da arte, a partir principalmente dos debates nas assembleias e congressos da Aica, assim como o contexto de discussão sobre artes plásticas no Brasil e as transformações nas propriedades de posição de Mário Pedrosa e Candido Portinari, que faziam com que um e outro assumissem lugares privilegiados na definição dos valores consagrados para a arte e o artista moderno no Brasil. Procurei, dessa forma, perceber os efeitos de poder que pesam sobre a disputa e os argumentos dos atores no processo de rejeição aos cânones e instituição de novas fronteiras artísticas. Esse affaire sobre a forma de representação dos objetos artísticos mostrou uma atribuição diferencial de valor aos indivíduos que os produziam e/ou produziam discursos em suas defesas ou ataques. Numa dimensão social cuja representação vigente é a de que os criadores são produtos de suas criações, mais do que o inverso, é possível observar as formas de classificação das obras (estilos, períodos históricos ou gêneros) estando atentos aos valores e representações que dizem respeito aos atores que participam do fenômeno. As lutas de classificação implicam não somente a categorização dos objetos, mas trazem consigo valores morais que falam do papel que os atores ocupam no mundo social. A defesa de uma arte autônoma, autêntica e proveniente de um artista sensível, a quem se atribui uma vocação avaliada em termos de uma conduta na qual o sacrifício, o desinteresse, a inspiração e a renúncia ao mundo sejam as formas de se contrapor às normas sociais, é também um enunciado performativo de como deve ser o artista nesse novo regime de grandeza. Por tanto, as obras são tomadas como atores que participam do fenômeno artístico, agindo sobre os seres humanos. Trata-se de compreender o que motiva o interesse

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dos atores sociais sobre os objetos artísticos, como se justificam e se estabelecem os julgamentos de valor, as interpretações, as instituições e os objetos de amor ou de desdém desses atores. Mário Pedrosa defendeu a abstração com uma crítica ancorada no conteúdo e não no sujeito da obra, e uma escrita marcada pelo interesse na forma e não no assunto do quadro. Entretanto, mais que a abstração propriamente, o que estava em jogo era um embate sobre os critérios de modernidade artística, marcando um rompimento com os juízos de gosto estabelecidos: a um regime cuja característica era o respeito aos valores da aprendizagem e da moral se sobrepuseram os valores da inovação, da raridade e da criação individualizada. Nesse processo, não se tratava somente de um novo critério de julgamento estético, mas uma ética cuja lógica da distinção acionava um sistema de valoração que converteu aos poucos o desvio em princípio de excelência. Valores como autenticidade, singularidade, liberdade etc. tornaram-se constitutivos da representação do artista no Brasil, fazendo parte da imagem que os atores têm de si e que pretendem manter diante dos outros. Psicanálise, psiquiatria, educação e arte moderna se apoiaram mutuamente nesse processo de consagração de novas perspectivas, discursos e práticas em seus campos específicos. A arte que desde o começo do século XX já estava sendo utilizada como expressão visível das novas formulações teóricas da psicanálise e da psiquiatria (Lima, 2007) e da educação, portanto como “recurso científico”, ganhou com Mário Pedrosa o estatuto de produção artística, isto é, a confirmação da qualidade estética dessa produção. Por um lado, a loucura inaugurava, com os novos critérios da crítica de arte, um valor que escapava à avaliação ordinária da psicanálise e da psiquiatria, por outro a marginalidade do artista era naturalizada a partir da ideia de uma sensibilidade artística cientificamente reconhecida. A sensibilidade, como uma dimensão interior, era a naturalização de atributos diferenciais a partir dos quais era possível identificar uma nova classe de seres humanos: os criadores. Assim definida, essa categoria de atores não estava relacionada a nenhum pertencimento coletivo. Teoricamente qualquer um, independentemente de etnia,

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nacionalidade, faixa etária, condição econômica e mesmo condição psíquica, podia ser reinscrito na trama social a partir desse atributo considerado inato. A psiquiatria ao mesmo tempo legitimava esse dom natural dos criadores e instituía a arte como dimensão social na qual a irracionalidade era aceita e mesmo estimulada. A crítica à racionalidade encontrava na relação entre arte, psicanálise, psiquiatria e educação uma forma de questionar as fronteiras da normalidade, da lógica e do sentido. Partindo da noção de um rompimento por parte dos pacientes psiquiátricos com as regras sociais, e de um vínculo ainda por ser estabelecido com essas normas por parte das crianças, o desvio era instituído em norma contra a temática expressa, a lógica da carreira artística e a comunicabilidade da obra. Uma importante contribuição nesse processo foi o idioma da religião, que construía a representação da marginalidade artística a partir de uma gramática da interioridade (sacrifício, inspiração, vocação, dom, renúncia) e sacralizava o processo de criação. Retirava-se assim a ênfase no produto final, a obra de arte, colocando-a no processo. A infância e a loucura eram parte importante da inversão econômica e de rompimento com a lógica de uma “realidade objetiva”. Esse processo instituía uma separação entre a estética e outros critérios de avaliação da obra de arte. Entretanto, a separação teórica da crítica de arte moderna e contemporânea entre ética e estética não é tão facilmente distinguível nas situações empíricas quando se observa o posicionamento crítico dos autores. Há sempre uma dimensão moral nas realidades empíricas do fenômeno artístico, mesmo que sua relação com as normas éticas de outras dimensões sociais seja ambígua, relativa ou flutuante. Nesse sentido, Pedrosa defendia a abstração não somente como caminho da autonomia, mas também com a intenção de possibilitar uma forma de manifestação da criatividade que permitisse o desenvolvimento de indivíduos críticos e criativos. A defesa ao mesmo tempo da arte “infantil”, “primitiva”, dos “loucos” e de “vanguarda” dava a impressão a Pedrosa de que havia uma dimensão revolucionária naquele fenômeno social, por ultrapassar

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fronteiras temporais, sociais etc. (Arantes, 1991). Assim, a defesa da abstração não dizia respeito apenas a um juízo de valor fundado no dado cronológico de oposição ao usado, obsoleto ou antigo, na modernidade do estilo. Não era tampouco apenas a noção de progresso em termos estilísticos, mas subentendia uma filosofia que conferia universalidade a partir das noções de sensibilidade e criatividade psicologicamente inscritas no corpo (o que nesse período queria dizer também biologicamente inscritas).82 Entretanto, a relação com a psicanálise e a psiquiatria era ambígua. Por um lado, essas disciplinas, em suas dimensões do estudo dos mecanismos fisiológicos da percepção, contribuíam para que a noção de sensibilidade, concebida como inerente ao ser humano, fosse diferencialmente identificada em alguns indivíduos. Por outro, as disciplinas em si retiravam da arte seu caráter de universalidade devido à carga de subjetividade que elas também representavam. Assim, o indivíduo como feixe de experiências, sentimentos e intenções também era negado como parte dessa representação sobre a produção artística. Não interessavam os dados de uma trajetória particular, mas a universalidade da criação. Os discursos sobre o papel imaginário do artista e seu lugar simbólico mostraram como a noção de criador passou a articular as dimensões quantitativas e qualitativas analisadas por Simmel em relação ao indivíduo. O criador era então aquele que, destacado da trama social a partir de sua singularidade, era reintroduzido em uma coletividade pela relação com outras singularidades. Particularização e generalização sendo, assim, as duas faces complementares das representações e práticas do fenômeno artístico. Entretanto, o processo de singularização pode cada vez mais ser identificado em relação a outras categorias socioprofissionais a partir da ideia de criador. Dessa forma, profissionais de áreas mais ou menos próximas à criação artística, como técnicos de cinema, diretores de teatro e até empreendedores, são incorporados à categoria de criadores. 82 Nesse período, as questões relativas à mente eram tratadas como questões fisiológicas, daí procedimentos de intervenção como a lobotomia, por exemplo (Castro e Lima, 2007).

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Assim como a singularidade não está restrita ao universo artístico, a noção de vocação também não está restrita ao regime de singularidade. Nathalie Heinich (2005) mostrou que é possível também a existência da vocação em regime de comunidade, como atestam os conventos, os regimentos militares e as coletividades de exercício médico, por exemplo. A especificidade do fenômeno artístico é que o cruzamento da vocação com o regime de singularidade precipitou a atividade artística para formas mais radicais. Inspiração, subjetividade, originalidade são assim requisitos para o exercício vocacional na arte, em oposição à aplicação das regras, a padronização e a imitação do sistema acadêmico. A realização mais alta dessa nova norma é a noção de gênio, exaltando a inovação contra a reprodução de modelos. Numa mesma linha de continuidade que leva de um regime mais coletivo ao mais individual, seria possível colocar as chamadas artes populares como um regime oposto ao regime de singularidade. Naquele regime de produção, o conhecimento é frequentemente ancorado na continuidade de uma tradição familiar, e muitas vezes grande parte da comunidade está envolvida na realização de um mesmo artigo. Ainda assim, como mostra Sylvia Porto Alegre (1994), mesmo que a preocupação com a originalidade e a individualização das obras não se dê da mesma forma como no regime de singularidade, as representações sobre o dom constituem parte das categorias de hierarquização desses produtores. Nesse mesmo continuum, é em relação ao sistema acadêmico do século XIX que os valores do regime de comunidade que ainda podem ser identificados no contexto de formação e discussão sobre o trabalho de Portinari são mais nitidamente observados. Foi em relação a esse sistema que o modernismo do qual Portinari veio a se tornar um dos representantes tardios se rebelou, abrindo caminho para a instituição dos valores que Mário Pedrosa contribuiu para difundir. Assim, não é contraditório ler artigos sobre Portinari nos quais noções como vocação, autenticidade e inspiração são acionadas para falar da excelência de seu trabalho. Portinari assumiu um papel de mediador entre esses dois regimes devido à formação acadêmica e ao discurso, à temática e à linguagem

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pictórica não acadêmica. Pedrosa deixou isso claro ao comentar, em um congresso da ABCA, em 1961, que Portinari fora transformado em um “aríete de que nós, intelectuais latino-americanos, na crítica da época, nos utilizamos para defender aquilo que para nós era arte moderna, porque Portinari teve prêmio no Salão de Belas Artes e era o primeiro artista de arte moderna que teve ingresso no Salão; por isso foi transformado em bandeira de combate. Quem era moderno não sabia pintar um pé direito” (ABCA-Pedrosa, 1961, p. 53). Nesse comentário, mais importante que os prêmios e a participação no Salão de Belas Artes, é a menção à sua formação acadêmica. Essa formação, como um processo de transmissão de conhecimentos técnicos, perdeu completamente o valor no novo regime, e com isso a posição de Portinari nesse sistema foi revista. Quando os novos valores já estavam estabelecidos, o autodidatismo se tornou uma forma de reforçar a ideia de inatismo e dom, e as transgressões começaram a aparecer como causa da incompreensão, não mais sancionando uma incompetência, mas um valor autêntico que escapava à avaliação ordinária. Na biografia que Callado escreveu sobre Portinari, o pintor declarou nunca ter tido “diploma nenhum. O primeiro foi o meu prêmio Carnegie de 1935” (citado em Callado, 1978 [1956], p. 19). A reafirmação da falta de uma educação formal havia sido, nas décadas de 1930 e 1940, um dos critérios que contribuíram para que o pintor fosse eleito “a mais útil, a mais exemplar aventura de arte que já se viveu no Brasil” (Andrade, M., 1938), por aproximá-lo da noção de autenticidade defendida por Mário de Andrade e outros modernistas. A declaração do pintor a seu biógrafo, entretanto, omitia parte da verdade. Se Portinari não teve uma educação escolar, sua formação artística havia sido acadêmica. Em 1956, quando foi publicada a biografia, com as mudanças nos critérios de valor artístico, o atributo do autodidatismo só seria eficaz no enaltecimento de seu prestígio se estivesse referido à falta de educação artística formal. Pedrosa contribuiu para a revisão dos valores no universo artístico brasileiro construindo uma gramática específica, na qual o indivíduo foi explicitamente acionado como discurso de superação das di-

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visões étnicas, nacionais, culturais e territoriais. Entretanto, a revisão na noção de autonomia da arte, que se apoiou no discurso da separação entre arte e política, estética e ética, forma e conteúdo, negando as delimitações temporais, territoriais e culturais na arte moderna após a Segunda Guerra, não selou definitivamente essa separação. Após o golpe militar de 1964 no Brasil, a representação figurativa se tornava mais uma vez transgressora. Fazer trabalhos figurativos que remetessem a uma crítica ao governo autoritário colocava a relação entre autonomia e liberdade em novo patamar que consagrava novamente a figuração como transgressão. A noção de autonomia representada pelo afastamento dos valores morais era colocada em suspenso em favor da liberdade de expressão (Couto, 2005). O propósito deste trabalho foi identificar o processo de sobreposição de um regime moderno (ou da singularidade) ao regime tradicional (ou de comunidade), e os valores da raridade em contraposição aos da conformidade, e não definir categorias de profissionais que se encaixem em um ou outro. Tendo em conta que esses regimes são tipos ideais, descarto a ideia de que os atores possam ser rigidamente classificados. Rejeito também os princípios da identidade e da não contradição aplicados a sujeitos humanos, pois os atributos das identidades são situacionalmente acionados e, portanto, não podem ser amarrados em categorias analíticas que determinem as ações dos atores sociais. Assim, um mesmo artista pode assumir posturas características do regime profissional em dada situação e discursos valorativos próprios do regime de singularidade, entre outras combinações possíveis. Não se tratou aqui de validar ou invalidar a dimensão individual, mas de compreender como os atores constroem, justificam e implementam essa dimensão como um valor em seus discursos e atos. Como uma síntese criadora, a representação é sempre parcial em relação à realidade e, apesar de manter relação com seu substrato, pode lhe ser independente e criar novas representações. Daí a ideia de que as “representações são fatos sociais” (Rabinow, 1999). A insistência dos atores na dimensão singular do fenômeno artístico serviu para mostrar que essa ideia é útil para pensar formas de classificação da

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realidade social e processos de naturalização dessas classificações e a descrição dos discursos que fundaram o embate entre figuração e abstração, acompanhados do contexto histórico e das trajetórias dos principais atores ai envolvidos indica que não há uma oposição simétrica entre as realidades empíricas e o universo das representações.

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Mário Barata (Unesco4-6-2007 1948 [?]).

Mário Pedrosa (Unesco4-6-2007 1949 [4]). Sérgio Milliet (Unesco4-6-2007 1949 [5]).

Vera Pacheco Jordão (Unesco4-6-2007384).

Entrevistas

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Lista de siglas ABCA ABI AIAP AIB AICA ANL BNF CAM CEDEM CG CGL CIA CICA CIHA CMAE CP DIP ENBA FAP FBN FUA IBECC IC ICOM IICI IPHAN LCI MNBA MoMA OEA OIM ONGs

Associação Brasileira de Críticos de Arte Associação Brasileira de Imprensa Associação Internacional de Artes Plásticas Ação Integralista Brasileira Associação Internacional de Críticos de Arte Aliança Nacional Libertadora Bibliothèque Nationale de Frace Clube dos Artistas Modernos Centro de Documentação e Memória da UNESP Conferência Geral Grupo Comunista Leninista Central Intelligence Agency Congresso Internacional de Críticos de Arte Comitê Internacional de História da Arte Conferência de Ministros Aliados da Educação Comissão Preparatória Departamento de Imprensa e Propaganda Escola Nacional de Belas Artes Federal Arts Project Fundação Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro) Frente Única Antifascista Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura Internacional Comunista International Council of Museums Instituto Internacional de Cooperação Intelectual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Liga Comunista Internacionalista Museu Nacional de Belas Artes Museu de Arte Moderna de Nova York Organização dos Estados Americanos Office International des Musées Organizações Não Governamentais 321

ONU Organização das Nações Unidas PAC Comitê Pan-Americano (sigla em inglês) PC Partido Comunista PCB Partido Comunista do Brasil PCF Partido Comunista Francês POL Partido Operário Leninista PSR Partido Socialista Revolucionário SBBA Sociedade Brasileira de Belas Artes SINAPESP Sindicato Nacional dos Artistas Plásticos do Estado de São Paulo SPAM Sociedade Pró-Arte Moderna SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional STOR Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação do Centro Psiquiátrico Nacional (núcleo inicial do Museu do Inconsciente) UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura WPA Works Progress Administration

Anexo 1 Pedrosa, Mario. Villa-Lobos et son peuple. Revue Musicale. Paris, France, 1929.

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Anexo 2 Pedrosa, Mário. 1935. Pintura e Portinari. O Espelho, Rio de Janeiro, RJ, mar. 1935. (PR-278).

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Anexo 3 Alguns trechos de críticas escritas na primeira metade do século XX, a título de comparação com as críticas de Mário Pedrosa. Demoro, Lauro M. Escola Nacional de Bellas Artes: exposições dos alumnos. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, RJ, [1923]. PR-1.1 “neste ela [a modelo] está em posição de maior comodidade, chegando a ter até aparência de distinção. / A figura assume então um ar de altivez. Cerra as pálpebras, como que, cheia de pudor, não podendo enfrentar o olhar devassador de suas linhas e contornos. É a transmutação antagônica do quadro de Oswaldo. Pena é que Portinari se descuidasse, ao contrário de seu colega, um tanto dos detalhes. A mão direita está pessimamente tratada, indispondo mal o observador”. F. & N. Um retratista moderno: Candido Portinari. [s.n., Rio de Janeiro, RJ, ago. 1924]. PR-7.1 “que quer de estranhamente sedutor desprende-se de seus qua-

dros. A certa distância, o colorido que é vibrante envolve-se como que numa cortina de frescura e delicadeza (...) A pintura de Portinari é cheia de calor, cheia de entusiasmo, cheia de ânsias, de mocidade, de vida! Isso se justifica: soubemos que Portinari é um menino, talvez dezoito anos não tenha ainda, mas é um menino talentoso. Portinari procura já, incessantemente e com toda a robustez de sua alma juvenil de seu temperamento ardente aquilo que se chama individualidade. E vai em bom caminho (...) Em qualquer exposição, seus quadros são Portinari” .

Kelly, Celso. Um sonhador e um artista. O Jornal, Rio de Janeiro, RJ, 1925. PR-14.1

“só o grande idealismo pode produzir a grande arte. Arte sem ideia, arte sem imaginação, não mais se compreende hoje, depois que ficou totalmente aniquilada a teoria de que a arte fosse a cópia da Natureza e depois que o realismo se viu ruir com suas próprias obras. / É essencial no artista ser idealista e no homem ser sonhador”.

Andrade, Mário de. Candido Portinari. Diário Carioca, Rio de Janeiro, RJ, abr.

1935. PR-329 “Portinari imprime uma tal força de verdade, de severidade

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às obras dele, que se tem a impressão de que o artista não se diverte nunca. A heterogeneidade dele não é um defeito, e jamais seria um diletantismo, é um drama intenso. É principalmente o drama do artista e do homem, e que não quer abandonar nem os direitos desinteressados da arte pura, nem as intenções interessadas do homem social. É o drama ainda do estudioso duma curiosidade insaciável, que de tanto pintar virou virtuose. Porque Portinari além do mais é um virtuose. Duma virtuosidade extraordinária, eu direi mesmo implacável a virtuosidade do artista não entra em lutas propriamente com as intenções do homem expressivo, porque Portinari é dum equilíbrio psicológico magnífico e domina a tela com maestria. Mas se a gente não percebe a luta que na certa se deu no criador e que o artista conseguiu dominar, a virtuose pode sobrepujar de tal maneira a razão expressiva, que o valor social do quadro meio que se dispersa”. Andrade, Mário de. Portinari. Revista Academica, Rio de Janeiro, RJ, maio 1938.

PR-7605 “Estou seguindo de perto esta obra em que Candido Portinari vai

lentamente, com uma honestidade absoluta, alcançando o que quer. Inquieto e inseguro de si mesmo como o são todos os espíritos verdadeiramente conscientes, sensível à menor aleive, Portinari tem sofrido a obra que está criando, com uma intensidade de martírio. Não faz mal. Tudo nele, as irritações, as revoltas, as malquerenças, as irregularidades psicológicas são duma verdade solar, ele não plagia nem macaqueia os defeitos dos gênios. Em compensação está vivendo, vivendo e pensando a obra nascente com uma paternidade quase absurda, de tão ereta. Se a obra vai surgindo esplêndida, o espetáculo do artista não será talvez menos forte que a obra. Seguro de mão e inseguro de espírito, Portinari como que tem ciúmes de todos os afrescos que já se fizeram no mundo. Não estou longe de pensar ele seria a mais útil, a mais exemplar aventura de arte que já se viveu no Brasil. E, como o talento ajuda a honestidade e a técnica, vai surgindo a obra formidável”.

Chateaubriand, Assis. O bazar do turco. O Jornal, Rio de Janeiro, RJ, 10 dez. 1942.

PR-627 “Grandezas e misérias do Brasil, sua sensibilidade, suas tragédias secretas, a contra-revolta obscura das suas classes desafortunadas, o frenesi dos sambas, dos batuques, o desengonço do frevo, a melancolia, sem azedume, dos negros e dos mulatos, que a escravidão policiou, o cavalo-marinho e o africano, o enterro dos simples e dos humildes, o tocador de flauta e o malandro dos morros, em toda essa comédia humana a palheta de Portinari deita cores imortais. Seu estilo não tem sombra de artifício. Fatigados de tanto aca-

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demismo, de tanta arte de repetição e de decadência, os brasileiros se volvem para a interpretação mágica desse operário da arte nacional autêntica, que é Portinari. Aqui ele está solto. Não teve governo, Capanema, admoestações estatais, nada, para o sufocar ou estrangular. Ficou por conta do demônio interior que o possui, e compôs estas fábulas que sobem pelas paredes acima como labaredas de fogo do gênio infernal que o devora. Portinari é o maior e mais fantástico pintor de negros que ainda viu a espécie humana. Ele sente a África com sua magia, os seus mistérios, a sua volúpia, como nenhum outro artista do pincel. É preciso ser florentino de sangue e de centelha como ele é, para produzir estas maravilhas murais que aí estão. O gênio puro e universal de Florença enterrou olhos, alma, coração nas raízes negras e amarelas do povo brasileiro, e veio, da Baixa do Sapateiro, do morro do Querosene, do bas-fond das duas cidades com esses diamantes negros que sacudiu a mancheias por ali além. Mas não foi só o negro e o mulato que ele viu. Viu também o jangadeiro e viu o gaúcho, isto é, viu o norte e o sul do Brasil, na serena unidade dos materiais que lhe alimentam a força com as suas peculiaridades e o seu rutilante colorido humano”. Milliet, Sérgio. Um pouco de pintura. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, RJ, 14 out.

1945. PR-861 “Esse trabalho grandioso parece-me construir-se sobre os três

elementos que outorgam à obra plástica o sentido da perenidade. Embora aparentemente preso à moda do dia, e à primeira vista influenciado por Picasso, o painel de Portinari transcende o imediato, e introduz na inteligência do mestre espanhol uma nota nova, bem brasileira, de humanização do cubismo. Como construção, todo um jogo de retas, horizontais e verticais, põe um esqueleto sólido na moleza da ogiva que serve de moldura e prepara o espírito para a apresentação da personagem principal, pesada e rude, no centro do conjunto. Não falta, tão pouco ao painel a imaginação que não só agrupa em blocos bem distribuídos as figuras secundárias mais ainda se compraz no expressionismo das fisionomias e atitudes, bem como na detalhação (sic) anatômica em repetido contraponto com a estilização de inúmeros elementos. Quanto à sensibilidade tem-se a evidência no colorido e, mesmo, com certo excesso que talvez venha a cansar, no preciosismo do estrelamento de algumas superfícies e no abuso do efeito gráfico”.

Lista de imagens 63

Figura 1 - Charge publicada por conta da viagem de Portinari para desfrutar o prêmio de viagem ganho no Salão de arte da Escola Nacional de Belas Artes, Correio da Manhã, 16/05/1929.

99 Figura 2 - Charge publicada no jornal Vanguarda Socialista, dirigido por Pedrosa, em 05/10/1945. 127 Figura 3 - Candido Portinari, Café, óleo/tela, c. 1934, 43 x 49 cm.

127 Figura 4 - Candido Portinari, Café, óleo/tela, 1935, 130 x 195 cm.

132 Figura 5 - Candido Portinari, Sorveteiro, óleo/tela, 1934, 44 x 59 cm.

262 Figura 6 - Victor Meireles, Primeira missa no Brasil, 1860, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

262 Figura 7 - Candido Portinari, A primeira missa no Brasil, 1948, Montevidéu (coleção particular). 275 Figura 8 - Hélio Oiticica, Bandeira seja marginal seja herói, 1968.

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Este livro foi composto em Cambria 10/14 e impresso em papel offset 75g pela Vozes, em Petrópolis, para a editora Garamond no mês novembro de 2013.

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