Canteiro de Histórias: textos sobre aprendizagem histórica

May 22, 2017 | Autor: André Bueno | Categoria: History, Art History, Teaching History
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Referência Bibliográfica BUENO, André; CREMA, Everton; ESTACHESKI, Dulceli; NETO, José Maria [org.] Canteiro de Histórias: textos sobre aprendizagem histórica. Rio de Janeiro/União da Vitória: Edição Especial Ebook LAPHIS/Sobre Ontens, 2017. ISBN: 978-85-65996-46-4 Edição Especial Ebook LAPHIS/Sobre Ontens: www.revistasobreontens.blogspot.com.br

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ANDRÉ BUENO DULCELI ESTACHESKI EVERTON CREMA JOSÉ MARIA NETO

CANTEIRO DE HISTÓRIAS: TEXTOS SOBRE APRENDIZAGEM HISTÓRICA

Edição Especial LAPHIS/Sobre Ontens 2017

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Sumário UMA BREVE APRESENTAÇÃO .............................................................................. 7 SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA NA CHINA: SOBRE AQUILO NÓS PODEMOS APRENDER COM OS CHINESES EM TERMOS DE METODOLOGIA DE HISTÓRIA ................................................................................................................. 9 DESENVOLVER COMPETÊNCIAS EM HISTÓRIA ATRAVÉS DA INTERPRETAÇÃO DE FONTES ICÓNICAS ......................................................... 12 ARTICULAR HISTÓRIA E EDUCAÇÃO: DESAFIOS COLOCADOS AOS PROFESSORES DE HISTÓRIA PORTUGUESES ................................................... 28 ESTADO DE LA CUESTIÓN SOBRE LA DIDÁCTICA DE LA HISTORIA EN ESPAÑA .................................................................................................................. 37 O MOVIMENTO SERTANEJO DO CONTESTADO: DESCOMPASSO ENTRE A PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA E O ENSINO ESCOLAR ................................ 52 ANTIGUIDADE ORIENTAL: UM DESAFIO IMPRESCINDÍVEL PARA A VERDADEIRA UNIVERSIDADE BRASILEIRA.................................................... 63 CONECTANDO OS SABERES: O ENSINO DE HISTÓRIA POR MEIO DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA NO ENSINO MÉDIO .................................................... 71 AS RELIGIÕES E O ENSINO DA HISTÓRIA ........................................................ 81 GÊNERO E ENSINO DE HISTÓRIA: ENCARANDO O ROSTO DA HUMANIDADE ....................................................................................................... 90 A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE HISTÓRIA: O ENSINAR E O APRENDER HISTÓRIA ............................................................................................................... 94 ANTES SONHAVA, HOJE NÃO DURMO: A LIBERDADE DE ENSINAR SOB ATAQUE................................................................................................................ 105 CINEMA EM SALA DE AULA: PARA ALÉM DO FILME HISTÓRICO ............. 109 ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: DIÁLOGOS E REFLEXÕES PARA A PRÁTICA EDUCATIVA .................................................. 122 INTERDISCIPLINARIEDADE NA INICIAÇÃO À DOCÊNCIA COMO ESTRATÉGIA PARA O ENSINO DA HISTÓRIA................................................. 126 EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA: O QUE É ISSO?............................................ 130 O MEDIEVALISMO BRASILEIRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL: UMA ABORDAGEM BIBLIOGRÁFICA................ 143 AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E AS IDEIAS DE JOVENS ESTUDANTES SOBRE A CONQUISTA DA AMÉRICA A PARTIR DO CONFLITO ENTRE EUROPEUS E INDÍGENAS .................................................................................. 154 O CINEMA E AS ÁFRICAS NO ESPAÇO ESCOLAR: QUATRO POSSIBILIDADES DE ABORDAGEM ................................................................. 170

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A REPRESENTAÇÃO LATINA EM HOLLYWOOD: QUESTÕES QUE PODEM SER ABORDADAS NO ENSINO DE HISTÓRIA ................................................. 182 MESA ESPECIAL: INVESTIGANDO AS PRÁTICAS DE ENSINO DE PROFESSORES DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA (BRASIL- 1998 - 2016) ............................................................................................................................... 188 SOBRE OS DESAFIOS DE ENSINAR E APRENDER HISTÓRIA: INQUIETAÇÕES DE UMA PESQUISA ................................................................ 205 A MÚSICA E O PROFESSOR PESQUISADOR .................................................... 211 MARX, POIS O BRASIL PRECISA DE PROFESSORES DE HISTÓRIA “ANTENADOS” .................................................................................................... 217 CONFLITOS: DISPUTAS ENTRE NARRATIVAS E SENTIDOS NA RELAÇÃO ENTRE CULTURA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA EM UMA PESQUISA COLABORATIVA NO IFPR (CAMPUS CURITIBA) ........................................... 221

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UMA BREVE APRESENTAÇÃO Canteiro de Histórias é a edição eletrônica das conferências apresentadas no 3º Simpósio Eletrônico Internacional de Ensino de História. Nessa terceira edição do evento, trazemos as discussões mais recentes sobre o Ensino e a Aprendizagem histórica no Brasil. Em meio a crises dos mais diversos tipos – que envolvem mesmo a supressão da História nos currículos – o desafio de levar o conhecimento histórico a nossa sociedade continua. Talvez, em muitos anos, a questão de como ensinar História nunca foi tão premente. O valor estratégico, ético e cultural da História tem sido cada vez mais evidenciado, diante das inúmeras tentativas de aboli-la do ensino. Essa situação nos coloca diante dos inúmeros desafios que temos que encarar; e como ensinamos história? O que temos ensinado? Não estarão os próprios historiadores divididos ou distantes da sociedade? O que nos falta, e o que temos feito? Tantas perguntas atravessam longas distâncias, e nos trazem, nesse livro, nossos convidados de além mar. Todas as opiniões são fundamentais. É momento, mais do que nunca, de compartilhar experiências, dúvidas e pontos de vista. E daqui, de nossa pátria tão querida, aqueles que estão no olho do furacão não se calam, e colocam em questão suas esperanças e visões do caminho. Talvez não seja demais encerrar essa breve apresentação com dois pensamentos fundamentais para a Educação Brasileira – tão óbvios, tão repetidos a exaustão, e mesmo assim, tão pouco realizados. Propostos por dois pensadores antitéticos entre si, notável pensar que, em se tratando de Educação, ambos entenderam que a raiz do problema era a mesma. Que chegue a hora de pô-los em prática.

Sou contra a educação como processo exclusivo de formação de uma elite, mantendo a grande maioria da população em estado de analfabetismo e ignorância. Anísio Teixeira Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica. Paulo Freire

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CONVIDADOS INTERNACIONAIS

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SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA NA CHINA: SOBRE AQUILO NÓS PODEMOS APRENDER COM OS CHINESES EM TERMOS DE METODOLOGIA DE HISTÓRIA Bony Schachter Neste ensaio eu irei compartilhar com o leitor minha experiência pessoal enquanto estudante de história na China. Observando o presente texto a partir de tal perspectiva, cumpre enfatizar que não se trata este de um artigo científico, mas sim de observações que mesclam minha experiência de vida enquanto doutorando na China com meus conhecimentos específicos de historiografia, tanto ocidental quanto chinesa. Na China, história sempre foi e continuará sendo por bastante tempo um assunto bastante sensível. A historiografia tradicional chinesa pré-moderna era um empreendimento intelectual e cultural bastante diferente daquilo que nós entendemos por história enquanto disciplina acadêmica moderna. Em termos bastante amplos, a historiografia chinesa tradicional entendia a história como uma narrativa ao mesmo tempo factual e moral. Factual, pois a história como tal não era vista pelos chineses como literatura ou ficção. Há a ideia de correspondência entre a narrativa e o que é narrado. Obviamente, tal ideia não se confunde perfeitamente com aquilo que nós entendemos por fato, mas não é possível negar que a China tradicional tinha como importante a correspondência entre narrativa e objeto narrado. Moral, pois o objetivo da escrita da história não era simplesmente o de colecionar narrativas acerca do passado, mas sim exaltar ou condenar as figuras históricas pelos seus atos e pelo legado que deixaram para a posteridade. Assim sendo, a historiografia chinesa possui um interesse maior pela verdade moral que pela verdade, vamos dizer, científica da narrativa. Isto é, importa mais a lição a tirar dos fatos do que os fatos em si. Como consequência, figuras históricas de peso sobrevivem no registro histórico não apenas em uma, mas em várias versões. História, na China pré-moderna, sempre foi uma questão de construir e manter autoridade. Por esta razão, história moderna é um assunto extremamente sensível: você não vai ter a chance de ir para a China para estudar o massacre da Praça da Paz Celestial em 1989, por exemplo. Se na China pré-moderna discurso moral e histórico não se dissociavam, a situação na China contemporânea tende a não ser muito diferente. Na China contemporânea, a ideia de história continua tendo um peso significativo na tentativa das lideranças políticas do país de manterem a própria autoridade, bem como um senso coletivo de distinção e superioridade cultural chinesas. Como

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ocorre em todas as outras áreas de Ciências Humanas, o estudo e o ensino de história são relativamente controlados pelos ditames ideológicos do Partido Comunista. Engana-se quem pensa, no entanto, que a produção acadêmica chinesa, em termos de historiografia, é uma repetição de ideologia de partido. Há, sim, muitos livros de história – especialmente os livros de ensino fundamental e médio – que contam a história da China com base em ideologia de partido. No entanto, também há pesquisa séria ocorrendo nas universidades chinesas, especialmente Qinghua, Beida e Fudan. Em tais universidades de elite, os alunos chineses entram em contato com metodologias de história nos padrões ocidentais. No entanto, não é isto que torna uma boa pesquisa chinesa boa. Os chineses contam com uma tradição historiográfica bastante longa. Não é realista esperar dos mesmos que eles se ocidentalizem do dia para a noite, como que num passe de mágica. Na verdade, desde o século XVIII, na China se desenvolveu uma tradição filológica bastante útil como ferramenta para o estudo da história. É neste ponto que eu entro no tema principal deste breve ensaio: aquilo que temos a aprender com os chineses em termos historiográficos. Enquanto aluno do curso de História da Arte da UERJ, posso dizer que tive uma excelente formação teórica em termos de historiografia. No Brasil, eu fui exposto a um estudo rigoroso da formação da história da arte enquanto uma maneira de pensar e escrever a história de objetos artísticos. Na China, eu me voltei para o tema da religião e, portanto, tive que me dedicar a fontes escritas, como fazem historiadores que não trabalham principalmente com cultura visual e material. Minha percepção inicial ao ler os trabalhos de história dos chineses é que eles são bastante pobres em termos conceituais e historiográficos. No entanto, em algumas áreas de pesquisa, notei também que os chineses possuem certas habilidades investigativas que seus colegas ocidentais não possuem. Tais habilidades investigativas correspondem ao domínio chinês da filologia. A filologia é uma ferramenta extremamente útil para qualquer pessoa interessada em estudar a história da China. O que chamo aqui de filologia na verdade é o uso conjunto de várias metodologias para o estudo textual da civilização chinesa. Tais metodologias incluem o estudo de edições de textos, o estudo de catálogos de livros antigos, a identificação de caracteres proibidos em determinado período histórico, a identificação de períodos históricos pelo uso de determinados caracteres etc. O objetivo de tais metodologias é, principalmente, a datação da evidência escrita com o fim de arranjar a evidência no tempo e no espaço de maneira precisa. Este tipo de discussão é extremamente focado, no sentido de que seu escopo é bastante específico. A metodologia filológica chinesa pode nos ajudar, por exemplo, a identificar o período em que um texto foi escrito, ou então determinar se a autoria de um determinado texto antigo é confiável ou não. Tal metodologia permite determinar não apenas a existência de um texto enquanto edição presente, mas também a circulação do texto em períodos anteriores. Em outras palavras, é apenas por meio da filologia que o historiador é capaz de organizar as fontes com as quais deseja

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trabalhar de modo a construir a sua própria narrativa histórica. A filologia permite ao historiador que trabalha com a China submeter as fontes com as quais deseja dialogar a um estudo sério de sua origem, data, distribuição geográfica etc. Não raro, os melhores trabalhos chineses de história são, na verdade, trabalhos de filologia. Esta disciplina, dado o seu apreço pelo acúmulo de dados com o objetivo de apresentar evidência indiscutível acerca de um determinado assunto específico, não possui grandes ambições teóricas. No ambiente acadêmico chinês, altamente pressionado pelas pressões ideológicas da política do dia, a filologia se sobressai pelo seu apreço a evidências e empiricismo, de modo que discussões teóricas e filosóficas não são de grande interesse para quem estuda a China do ponto de vista da descoberta de novos materiais e evidência empírica. O aluno brasileiro que desejar estudar a China certamente irá se beneficiar enormemente se puder aprender este tipo de metodologia filológica. Aliada à já excelente formação historiográfica proporcionada em universidades brasileiras, a formação filológica se revela um elemento fundamental na formação do historiador cujo tema é a China. Apenas com as ferramentas proporcionadas pela filologia o historiador ocidental pode entender a China em sua especificidade.

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DESENVOLVER COMPETÊNCIAS EM HISTÓRIA ATRAVÉS DA INTERPRETAÇÃO DE FONTES ICÓNICAS Glória Solé Introdução A imagem exerce nos nossos dias um grande poder e influência. As crianças desde muito cedo vivem rodeadas por imagens, por exemplo, imagens televisivas, gravuras de livros, cartoones, revistas, páginas de Internet, fotografias, quadros, etc. Estas fazem parte de um sistema de representação, sendo a linguagem visual, parte integrante da leitura. Antes de uma aprendizagem formal da leitura, as crianças contactam com as imagens dos livros, observam-nas, descrevem-nas, produzem inferências, realizam deduções. Segundo Bruner (1966) a representação icónica ou imagem visual é uma das três formas características de representar e aprender acerca do mundo, o que implica desenvolver uma aprendizagem e competências de literacia visual, alfabetização visual que deve se iniciar na infância (Calado, 1994; Cooper, 2006; Solé, 2009; Freitas, Solé & Pereira, 2010; Turnet-Bisset, 2005). Para Calado (1994) as imagens materiais são sistemas de representação, podendo-se utilizar a propósito da linguagem visual os conceitos de leitura, alfabetismo e aprendizagem. Reforça a autora a importância de alfabetização visual das crianças, equipando-as com “as competências necessárias para viver no mundo em que estão inseridas de uma forma consciente e interveniente” (1994: 18). Defende a necessidade de aprendizagem da leitura das imagens tal como é o da escrita, argumentando que “[a] ideia de que a compreensão das imagens é imediata é uma ilusão. Há um alfabeto e uma gramática visuais que é necessário aprender” (1994: 21). Na perspectiva de Nodelman (1990) as imagens não oferecem, na maior parte das vezes, uma metodologia para serem lidas, o que leva a que cada pessoa construa a sua própria interpretação, desvalorizando a informação que ela de facto proporciona na construção dos relatos que constroem a partir destas. Lopes e Melo (2009) defendem que há uma complementaridade entre o texto visual e o verbal (como tarefas), procedimentos inerente à compreensão dialógica ao processo de leitura da imagem, pois “[o]acto de apreciação de uma imagem é sempre consubstanciado através de actos de «tradução» de uma informação icónica para termos verbais, ainda que esta mesma se mantenha silenciosa e privada” (2009: 112). Os autores reforçam a diferença entre os procedimentos operados entre a interpretação de um texto escrito e a exploração de uma imagem, em concreto a fotografia. O texto escrito é linear, constituído por uma trama narrativa, com uma sequência, com causas e consequências. Na imagem estas

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características apresentam-se mais difusas e aleatórias, cabendo ao observador construir essa tal sequência e preencher as lacunas, atribuindo-lhe uma sequência que não se limite apenas à informação relevante dos elementos visuais observados, mas que lhe permita, embora de um modo provisório, compreender os agentes fotografados ou representados no seu contexto temporal. Na interpretação de uma imagem como fonte para compreender o passado, os alunos transportam consigo o seu conhecimento tácito histórico, mas também os conhecimentos históricos adquiridos em contexto formal e informal. As fontes icónicas são uma importante fonte de evidência e um recurso pedagógico para o ensino da História, contribuem para promover nas crianças o pensamento crítico, permitem que estas compreendam o passado e encorajam-nas a praticar a interpretação histórica, a realizar inferências e questionar as evidências. As crianças precisam de ser estimuladas a observar de forma crítica e atenta fontes icónicas, promovendo-se a discussão. Este artigo visa realçar a relevância das fontes icónicas como fontes promotoras do desenvolvimento de competências históricas nos alunos desde os primeiros anos de escolaridade, como o demonstram vários estudos internacionais que passaremos a apresentar, seguido do estudo empírico que realizamos com alunos portugueses do 3.º ano (1.º CEB).

Enquadramento Teórico O uso de fontes icónicas é muito comum e valioso no ensino da História. É um poderoso recurso para estimular o pensamento, a linguagem, a discussão e desenvolver conceitos de tempo nas crianças. Neste sentido Hoodless (1996) refere que crianças pequenas “são capazes de aprender a ‘ler imagens’, procurarem pistas para se informarem e colocar questões sobre o passado” (1996:15). Permite estimular as crianças a elaborarem perguntas, comentários sobre detalhes, reconhecer mudanças e permanências, proceder a sequencializações, realizar inferência e deduções. Vários autores (West, 1981, 1986; Blyth,1988; Lynn, 1993 citados por Harnet, 1998) salientam a quantidade de informação histórica que as crianças podem aprender a partir de fontes visuais. West (1986) neste estudo desenvolveu atividades com crianças encorajando-as a trabalhar como historiadores usando gravuras como fonte de informação. Conclui que este recurso pedagógico contribui para o desenvolvimento de conceitos de evidência, causa e efeito, promovendo também o poder de observação e dedução. Também Blyth (1988) na sua investigação demonstra como as gravuras podem contribuir para a compreensão histórica das crianças. Conclui que crianças de 9 anos quando exploram gravuras são capazes de se envolverem na discussão de conceitos abstratos como mudança, poder, sequência e evidência. Lynn (1993) notou que crianças dos 6-7 anos não são capazes de identificar pistas históricas específicas quando sequencializam gravuras, mas baseiam-se na cor da imagem.

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Constatou que as crianças mais pequenas revelam padrões com base na cor das imagens, diminuindo esta tendência à medida que as crianças crescem. West (1981) relata um projeto que realizou com 1400 alunos, para além do trabalho com outras fontes objetuais e documentais usaram também fontes visuais. Verificou que por vezes os alunos são incapazes de descrever com precisão o que veem nas imagens, e alguns até dizem ver o que lá não está, ou concentram-se numa parte imagem. Utilizam linguagem rudimentar e frases curtas, principalmente as mais novas. Embora revelem dificuldades em se exprimirem, por vezes utilizam vocabulário específico em termos temporais e históricos. O autor conclui que este projeto contribuiu para desenvolver nos alunos capacidades de interpretar diferentes tipos de imagens, assim como desenvolver conceitos de autenticidade e de tempo que resultaram do treino por eles realizados. Contribuiu para promover o sentido de tempo, revelando os alunos maior capacidade para identificar o período da imagem do que compreender se é contemporânea ou não. Para Cooper (1995) as crianças pequenas podem aprender a observar, comentar e a fazer inferências sobre as gravuras. Parece que crianças de 3 a 6 anos preferem progressivamente padrões visuais mais complexos, pois “quando uma criança descobre o que pode ganhar quando observa imagens, a interpretação de uma ilustração torna-se um esforço maravilhoso” (1995: 86). As ilustrações dos livros são uma boa maneira de introduzir as crianças no exercício de observação, para iniciá-las nas destrezas da descodificação de gravuras e fotografias. Podem aprender a falar sobre as ideias, os estados de espírito, humores e sentimentos que representam, isto através das linhas, formas e cores. As destrezas adquiridas podem ser canalizadas posteriormente para analisar ilustrações de livros sobre o passado. Destaca as potencialidades da utilização de pinturas por crianças, dando estas, uma dimensão histórica a muitos temas: contos populares, alimentos, roupas, casas, crianças, animais de companhia. A partir destas podem extrair informação muito diversificada, realizar deduções e inferências sobre acontecimentos e aspetos da vida quotidiana. Harnett foi uma das investigadoras que deu um grande contributo na investigação relacionada com a exploração de fontes icónicas pelas crianças do ensino primário (Harnett, 1993, 1995, 1998) estudos esses direcionados para o ensino da História. Harnett (1993) verificou no seu estudo que as crianças de onze anos eram capazes de reconhecer nas imagens que exploraram determinados períodos, nomeadamente a época Vitoriana. Refere o sucesso das crianças em sequencializar imagens de determinados períodos históricos, embora afirme que se torna uma atividade ameaçadora. Este estudo integra-se nesta linha de pensamento ao sugerir que a maneira das crianças explorarem as imagens está relacionada com o seu estádio de desenvolvimento. Harnet (1995) neste seu outro estudo realizado com alunos do 4.º ano (8-9 anos) e 5.º ano (10-11 anos ) procurou investigar como as crianças observam as imagens, que tipo de questões colocam, e identificar se estas se centram sobre pormenores

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específicos ou num conjunto de pormenores de contexto mais amplo. O estudo procurou identificar principalmente as questões históricas colocadas, tendo sido estas categorizadas: Questões acerca do tempo; Questões acerca da evidência. Alguns alunos elaboraram questões de uma grande sofisticação agrupando-as numa série. O estudo revelou diferenças no modo como as crianças percecionam a mesma imagem e que esta se reflete no tipo de questões colocadas. É importante analisar com os alunos diferentes estratégias de explorar as imagens, por exemplo no caso de pretenderem obter o máximo de informação sobre uma pintura concreta é um tipo de pesquisa exaustiva, se querem encontrar uma informação determinada é uma pesquisa mais seletiva. Destaca a autora que, tarefas deste tipo permitem encorajar as crianças a desenvolver diferentes estratégias de análise de fontes, contribuindo para desenvolver nas crianças capacidades para utilizar fontes históricas e reconhecer características que têm significância histórica. Reforça novamente a ideia que as diferenças encontradas nas respostas das crianças podem estar relacionadas com as suas capacidades e estádio de desenvolvimento, mas acrescenta também a necessidade de se atender ao contexto histórico das imagens. O conhecimento histórico sobre um determinado período também influenciou as questões que elas faziam permitindo-lhes ir além da simples observação. Determinado tipo de imagens tem mais potencial do que outras para explorar ideias históricas. Estes aspetos devem ser importantes não apenas para avaliar as capacidades que estas têm, mas também como fontes a serem usadas nas aulas. Em conclusão a autora salienta que o estudo mostrou que as crianças são capazes de retirar uma quantidade de informação histórica das gravuras e interpretá-las de forma diferente, também mostrou que as crianças podem ser ajudadas a desenvolver o seu skill de interpretação das imagens e a capacidade de trabalhar melhor as fontes históricas. Sobre esta temática a autora escreve um capítulo na obra History and English in Primary School: Exploring the Links (Harnett, 1998) que contém sugestões e informação particularmente relevantes, em que descreve de que modo as gravuras contribuem para o envolvimento das crianças na aprendizagem da História e da Língua Materna. Neste capítulo destaca em que medida a exploração de imagens promove o desenvolvimento da linguagem contribuindo para ajudar as crianças na organização das suas experiências e em comunicar o seu conhecimento aos outros, apresentando exemplos concretos em contexto de sala de aula. Estes estudos vêm demonstrar as potencialidades pedagógicas da utilização de fontes icónicas para desenvolver nas crianças competências de interpretação e inferência, promover a linguagem e a compreensão histórica e temporal, que se processa gradualmente. De seguida iremos apresentar uma atividade investigativa realizada em contexto de sala de aula com recurso a fontes icónicas, em que se se procurou que alunos do 3.º ano, observassem, analisassem e comparassem duas imagens do mesmo espaço da cidade de Braga (Portugal) em épocas diferentes, reconhecendo semelhanças e diferenças, identificando o que é que mudou mas também o que

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permaneceu ao longo do tempo, integrada no âmbito da investigação realizada no meu doutoramento (Solé, 2009). O Estudo Metodologia e descrição dos procedimentos A atividade foi realizada numa turma do 3.º ano constituída por 25 alunos de uma escola de Braga (Portugal) que participou ao longo de dois anos no projeto de investigação sobre o ensino da História no 1.º Ciclo no âmbito do meu doutoramento (Solé, 2009). Esta atividade intitulou-se: Conhecer a cidade de Braga em diferentes épocas através de gravuras e fotografias. A professorainvestigadora entregou a cada par de alunos duas imagens do mesmo espaço, o Largo do Paço em Braga, uma delas do século XIX (imagem A- anexo 1) e a outra uma fotografia atual (imagem B- anexo 2) para observarem, analisarem, discutirem e identificarem o que era semelhante, ou seja o que se mantinha e o que era diferente. Foram constituídos 11 pares e um grupo de três alunos, ou seja no total 12 grupos. A aula foi áudio gravada e aleatoriamente foram colocados em 5 grupos um gravador para registar a discussão do grupo. A investigadoraprofessora ao longo da atividade foi recolhendo notas de campo e procedendo a observação participante ativa (Everston & Gree, 1986). A investigadoraprofessora foi o elemento principal da observação (Lessard-Hébert, Goyette & Boutin, 1994; Erickson, 1986), estando envolvida na realidade social da sala de aula de modo a observar e interpretar as perspetivas e significados dos alunos que observa, de modo a compreender a dinâmica do processo de ensinoaprendizagem. Os alunos em pares preencheram uma ficha síntese, registando as conclusões a que chegaram na discussão (áudio gravada em 5 grupos). Em grande grupo procedeu-se à análise comparativa das imagens, que também foi áudiogravada. A partir dos dados recolhidos através de várias técnicas (observação participante ativa, notas de campo, registo áudio da aula da discussão em grupos e trabalhos dos alunos) a investigadora procedeu à elaboração do diário de aula (D.A [=Diário de Aula]. 25-05-05). A análise e interpretação dos dados realizouse com recurso a vários instrumentos e técnicas de recolha de dados e nos trabalhos dos alunos, que culminaram na elaboração do diário de aula construído a partir dos dados recolhidos.

Análise dos dados e discussão dos resultados Os alunos em pares observaram duas imagens do Largo do Paço, uma do século XIX (Anexo 1- Imagem A) e outra uma fotografia atual (Anexo 1-imagem B), discutiram sobre o que viam nas imagens, compararam-nas e identificaram o que se mantinha e o que era diferente. Procurou-se que os alunos identificassem o que persistiu ao longo do tempo e o que mudou. Alguns alunos reconheceram de imediato o espaço e pareceram ter um esquema mental da sua localização, enquanto outros manifestaram desconhecer onde se situava. Só com alguma ajuda

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é que o José Nuno* o identificou pelo nome, localizando-o corretamente: Largo do Paço. É onde fica a Biblioteca. Entreguei-lhes uma ficha para ser preenchida como síntese da discussão do par, com três perguntas: 1- O que veem na imagem?; 2- O que há de semelhante/parecido nas imagens?; 3- O que é diferente nas imagens? Para uma posterior análise dessa discussão decidi gravar alguns grupos, como só tinha cinco gravadores e eles eram 11 pares e um grupo de três elementos, por sorteio decidiu-se os pares onde iria ser gravada a discussão. Pedi previamente autorização aos alunos para o fazer explicando os objetivos desta gravação. A atividade de exploração das imagens foi um pouco demorada. Ao circular pelos vários pares de alunos constatei uma situação que registei em comentário no diário de aula: C.O [=Comentário do Observador].- Apercebi-me que a maioria foi bastante sintética nos registos realizados, enquanto na discussão eram mais exaustivos. A linguagem escrita revelou-se um limitador na explicação que estes dão às observações. (D. A. 3.º ano 25-05-05) Ao observarem a imagem antiga (imagem A) vários alunos destacaram a liteira que se encontrava no lado direito da imagem, e apesar de não saberem qual a sua designação, sabiam para que servia. Depois de lhes ter sido dito como se chamava alguns alunos integraram este novo termo no seu vocabulário. Analisámos comparativamente o que cada um dos cinco pares gravados discutiu e o que registou na sua ficha. Assim com o par José Nuno e José Filipe a sua discussão foi mais exaustiva que o registo realizado, muitos aspetos interessantes discutidos não foram posteriormente registados na ficha. Estes alunos compararam as duas imagens em função do que tem uma e a outra não tem, usando com frequência as expressões: “aqui tem”, “aqui está”, “aqui não tem”. Identificaram ao mesmo tempo mudanças e permanências na arquitetura das casas/prédios, mas também progresso ao nível dos transportes. Por exemplo na discussão o José Nuno aponta: Aqui tem muitas janelas e aqui só tem duas. (…) José Nuno: Aqui estão janelas estão separadas e aqui estão juntas. (…) Aqui tem prédios e aqui tem casas. Aqui tem os homens a montar uns cavalos. (…) Aqui tem um coche e aqui não; (…) aqui tem um carro; Aqui está em obras, aqui não está. Na imagem B não tem toldes. (D.A. do 3.º ano 25-05-05) No mesmo edifício do Largo do Paço, o José Filipe aponta para a diferença nas arcadas do prédio do lado direito: Na imagem A as colunas estão fechadas no edifício da direita. O José Nuno deduz o que as mulheres estariam a fazer junto ao chafariz: Estas duas vão lavar roupa. O José Filipe distinguiu também as imagens ao nível do suporte material da evidência: Isto é um desenho. Uma observação atenta no desenho permite-lhes concluir que este não reproduz a realidade pela evidência da fonte, pondo em causa a veracidade do que está desenhado, ao

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constatarem que a estátua está de frente: A fonte e a sua imagem aqui está deste lado e na outra está do outro. Esta constatação permite evidenciar nestes alunos uma iniciação à interpretação e crítica das fontes. O par Bruno e João Miguel em relação às duas imagens limitaram-se a enumerar o que viam, sem analisar as imagens no seu conjunto, ou no seu contexto ou época. Descreveram a imagem B, salientando o que se destaca como atual: Casas, andaimes, (…) Aqui tem uma obra. Chafariz. Temos aqui um correio. Uma cabine da Câmara. Em relação à imagem A destacaram: um armário (liteira), casas, cavalos, cafés, flores, chafariz, um castelo. A mesma estratégia é utilizada quando as compararam e identificaram o que é semelhante e o que é diferente, realçando que se mantém: as casas, o castelo e o chafariz. Colocaram várias hipóteses sobre o que lhes pareceu estarem a fazer as pessoas junto ao chafariz. Inicialmente deduziram que a roupa seria um animal, mas depois de uma análise mais cuidada inferiram que estariam a ir buscar água, afirmando que podiam ser talvez jarras e que as pessoas estavam a meter água. No registo escrito, indicaram que provavelmente essas pessoas estariam a lavar roupa. O par Mariana e Bernardete mantiveram uma coerência entre a discussão e o registo escrito dos dados. A discussão permitiu compreender melhor alguns comentários que registaram na ficha. Este par embora ainda proceda a uma descrição enumerando o que veem numa e noutra por comparação vão identificando o que mudou ao longo do tempo: Vemos pessoas, casas, o chão é um bocado diferente, vemos rochas numa imagem e noutra não e vemos casas que numa há e noutra não há. Vemos a lavar roupa no chafariz. Vemos cafés, carros com muitas flores, lojas de roupas, vemos mais casas e carros na imagem B. Este chafariz está mais recente do que o outro. Pessoas a andar a cavalo na imagem A. (D. A. do 3.º ano 25-05-05) Identificaram o que permaneceu ao longo dos tempos, reconhecendo que a traça arquitetónica de certos edifícios se mantém usando para isso com frequência expressões temporais “ainda tem”; “continua lá”; “ainda está lá”: Chafariz igual, continua lá. Há uma igreja que ainda está lá. Casas que ainda estão lá. Casas maiores do que outras. Cafés que ainda estão lá. Sim, mas restaurados. U/m castelo que ainda está lá. A igreja também ainda está lá. Uma casa igual. Os defeitos da casa ainda continuam. (D. A. do 3.º ano 25-05-05) Compararam o passado com o presente, realçando as mudanças ocorridas ao longo do tempo, resultando essas mudanças do progresso tecnológico ao nível dos transportes, aplicando terminologia específica neste domínio de conhecimento: Antigamente os transportes eram diferentes. (…) Antigamente a pessoas andavam em cavalos, carroças, burros e agora são transportes

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tipo carro, camiões, mota. Os transportes públicos. (…) Na imagem A há uma liteira e na B não. Na imagem A há carroças. (D. A. do 3.º ano 25-05-05) Destacam também evolução na arquitetura e no urbanismo: O chafariz está um bocado restaurado. Casas que havia lá e que agora já não há. Igrejas. Antigamente havia cafés, supermercados, vendiam roupa, e agora é misturado. Também as janelas eram diferentes e agora é de abrir e fechar para os lados, e antigamente tinha que se levantar para cima. (D. A. 3.º ano 25-05-05) Também identificam diferenças ao nível do vestuário: As roupas das pessoas são mais antigas, os sapatos. No par Belinda e José Marco prevalece um discurso mais sintético no registo escrito e alguns aspetos que foram referidos na discussão não foram mencionados na ficha, mas também verificámos o contrário, no texto escrito da ficha existem aspetos que não foram discutidos pelo grupo o que poderá ter sido iniciativa pessoal de um dos membros do grupo. Este grupo limitou-se a descrever e a enumerar o que veem nas imagens, e a registar as diferenças contrapondo o que uma imagem tem por oposição à outra, utilizando como estratégia a dicotomia entre o passado e o presente identificando elementos indicadores de progresso tecnológico: Numa imagem há um correio e na outra não. Há uma pessoa de cadeira de rodas numa imagem na outra não. Numa imagem há cavalos na outra não. Numa há lojas e na outra não. (…) Nas casas novas vêem-se antenas, nas outras não, numa imagem tem pipos, na outra não, numa imagem aparecem cavalos na outra não, numa imagem vê-se carruagens na outra não, etc. (D. A. do 3.º ano 25-0505) Deduziram o que as pessoas estavam a fazer junto ao chafariz na imagem A: Vemos pessoas a ir buscar água ao chafariz. Este grupo procede também a uma crítica à fonte icónica (imagem A) ao interpretar a evidência que esta lhes permite concluir da falta de rigor de quem desenhou o chafariz ao colocar a estátua ao contrário: Esta imagem é mais estúpida, numa imagem vê-se aquele lado e na outra vê-se por cima. No par Luís e Paulo a diferença entre o que discutiram oralmente e o que registaram ainda foi mais notária do que em relação aos outros pares, por terem maiores dificuldades na escrita. Distinguiram o que veem utilizando também como estratégia a dicotomia entre o passado e o presente, contrapondo o que uma imagem tem por oposição à outra:

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Aqui algumas janelas são iguais e outras não. As carroças são parecidas como os carros, só que não são bem-parecidas. Aqui tem cavalos, mas na fotografia mais recente não há cavalos. Aqui tem um correio, só que no passado não havia nenhum correio, só que na recente há um correio. Aqui tem pedras, só que na mais antiga não há. (D. A. do 3.º ano 25-05-05) No entanto este grupo foi capaz de proceder a algumas generalizações, indicando as mudanças tecnológicas que ocorreram ao longo do tempo, resultantes do progresso tecnológico, mas considerando ainda o passado como tecnologicamente deficitário: Antigamente não havia televisões e aqui já há televisões. Nas casas antigas não havia antenas, nem televisões. Nas mais recentes há televisões e antenas. Nas mais recentes há vidros novos, casas melhoradas e casas melhores. (D. A. do 3.º ano 25-05-05) Procederam a uma análise minuciosa de alguns aspetos visualizados nas duas imagens, foram os únicos a reconhecer outro tipo de diferença no chafariz: Aqui em baixo da fonte tem assim umas coisinhas e na mais recente tem escadas. Em relação aos restantes grupos em que não foi possível registar a discussão por falta de gravador, analisámos posteriormente as suas fichas de registo e verificámos que a generalidade dos restantes sete grupos limitaram-se a enumerar o que veem nas imagens, indicando o que é diferente ou semelhante, fazendo-o de forma sintética enumerando os vários elementos ao nível da arquitetura, dos transportes e do progresso tecnológico, mas sem realizarem generalizações por escrito, embora alguns desses grupos possam tê-las-ão feito na discussão, quando por exemplo indicam diferentes tipos de transportes (liteira, carruagem, cavalos, camião) ou simplesmente quando indicam como diferente os meios de transportes, como o fazem três grupos (Sílvia e o Júlio; o Ricardo Manuel e o Marco Ângelo; Ricardo Manuel, Paula e Irene). Também o progresso tecnológico é indicado pela existência das antenas das casas na imagem B pelos grupos: (Ricardo Manuel, Paula e Irene; Roberto Manuel e Marco Ângelo). Procedemos à construção de um quadro onde registámos os elementos referidos pelos grupos para cada questão. Estes elementos foram agrupados em categorias: Arquitetura/Urbanismo; Transportes; Progresso tecnológico; Ações/ Pessoas/Objetos/Vestuário. Os elementos identificados na primeira pergunta “O que veem na imagem” em relação à imagem A relacionam-se mais com a categoria arquitetura/urbanismo: chafariz (12 grupos); casas/prédios (11 grupos), igreja (11 grupos); a segunda mais frequente relaciona-se com os transportes: cavalos (10 grupos), liteira (9 grupos) e pessoas (7 grupos), destes sete grupos apenas um deles para além de referir pessoas no geral, acrescenta verem também pessoas a lavar roupa, mais dois grupos também o referem, outros dois referem pessoas que vão buscar água

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ao chafariz e um grupo específica que vê pessoas a andar a cavalo, o que permite verificar que 12 grupos referem verem pessoas. Para a imagem B as palavras mais referidas estão ligadas à categoria arquitetura/urbanismo: casas/prédios (11 grupos), chafariz (8 grupos), seguida da categoria progresso identificada pelo marco do correio (7 grupos), e pessoas (5 grupos). Em relação à imagem B dos 11 grupos que se referem às casas/prédios 4 destacam a particularidade de uma delas se encontrar em obras. Pude constatar que os alunos foram mais descritivos e enumeraram mais informação em relação à imagem mais antiga. Os alunos centraram a descrição da imagem em informações relacionadas com os edifícios e seus pormenores. Na maioria dos casos, foi nesta primeira pergunta que os alunos mais escreveram e o que disseram permitiu-lhes responder mais facilmente às outras perguntas. A maioria dos alunos limitou-se a enumerar o que viam, sem descreverem a vida, as ações. Surgiram apenas de forma esporádica algumas frases: Carruagem puxadas por bois; pessoas montadas em cavalos; pessoas a ir buscar água; pessoas a encher potes; pessoas a lavar roupa. Em relação à segunda pergunta: “O que é semelhante?”, identificaram como semelhante essencialmente elementos da arquitetura/urbanismo: o chafariz (11 grupos), as casas/prédios (11 grupos) e o castelo (7 grupos), em menor número a igreja (4 grupos). Sobre as diferenças encontradas, terceira pergunta “O que é diferente”, a categoria mais evidente foi a da arquitetura/urbanismo: os pormenores das casas (janelas, varandas, toldes/telhados); a igreja (7 grupos) que dizem não ter a torre, as casas/prédios (6 grupos), a parte debaixo do chafariz (6 grupos), as obras (5 grupos), seguida da categoria dos transportes, em que sobressai a referência à carrinha/carros (6 grupos), e às pessoas (5 grupos). Foram mais exaustivos na lista das diferenças do que nas semelhanças. Em grande grupo os alunos exploraram as imagens, referiram as conclusões a que tinham chegado. Vários alunos foram referindo vários aspetos que tinham sido referenciados no trabalho de pares. Nesta discussão os alunos aperceberam-se que algumas das interpretações que realizaram sobre as imagens por vezes não eram as mais corretas, o que lhes permitiu compreender que pode haver várias interpretações acerca da mesma fonte e que umas podem ser mais plausíveis do que outras, trabalhando-se assim com os alunos a interpretação, a crítica das fontes e a evidência histórica. Por exemplo reconheceram que as pessoas não estavam a lavar roupa no chafariz mas que iam buscar água à fonte. Constataram outras semelhanças e diferenças que não tinham registado na sua ficha. Nas semelhanças realçam principalmente as construções que se mantém, ou seja os prédios que mantém a mesma arquitetura como resume o Roberto Manuel: Um castelo, o edifício do Largo do Paço, o chafariz e as casas. Em relação às diferenças realçam-nas nos transportes identificando evolução e mudanças no meio de locomoção surgindo vários comentários: Os carros são diferentes. Os carros eram puxados por cavalos e por bois (Paulo); [Agora] São

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mais confortáveis (Paulo); A gasolina ou gasóleo (Paulo). Também na arquitetura/urbanismo realçam alterações na fachada de alguns prédios, ao nível das varandas, janelas, telhados e sótão: O sótão das casas, na maioria das casas tem assim uma parte mais alta (Anabela); As varandas, as janelas (Tiago). Mereceu atenção o pormenor das colunas (pilares) no edifício do Largo do Paço: Aqui no Largo do Paço na imagem A as colunas estão fechadas e na B estão abertas (José Marco). A estátua do chafariz mereceu grande destaque surgindo vários comentários: Numa a estátua está virada para um lado e na outra está virada ao contrário (José Nuno); É diferente o chafariz na mais antiga a bordinha é de pedra e na outra tem escadas (Anabela). Em termos tecnológicos e de comunicações, destacam por exemplo as antenas dos prédios, o marco de correio e a boca-de-incêndio, mas nenhum grupo se referiu aos fios elétricos. Constatou-se que alguns alunos distinguem na imagem mais antiga diferenças sociais embora não tenham ainda consciência destas, assim surgem referências a mulheres a lavar no chafariz, ou a ir buscar água à fonte, a soldados e cavaleiros que um dos alunos designa de mosqueteiro. Também na discussão em grande grupo a maioria dos alunos limitou-se a enumerar o que viam e poucos foram os que retiraram conclusões em termos de mudanças ocorridas entre o passado e o presente para o mesmo espaço. Reconhecem elementos que se mantém e outros que são novos, mas o discurso não é explicativo. A título de sistematização podemos realçar que com esta atividade pudemos verificar que os alunos: 1) quando comparam duas imagens a maior parte deles limita-se a enumerar o que veem na imagem sem proceder a generalizações; 2) frequentemente comparam as imagens em função do que uma tem e outra não tem; 3) reconhecem permanências principalmente ao nível da arquitetura e urbanismo; 4) nas diferenças invocam principalmente o progresso ao nível dos transportes, mas também pormenores na arquitetura e urbanismo e nas ações das pessoas, reconhecendo assim mudanças ao longo do tempo; 5) alguns evidenciam já uma iniciação à interpretação e crítica das fontes, essenciais para a compreensão da evidência histórica; 6) alguns apresentam várias hipóteses de interpretação e reconhecem que umas são mais plausíveis do que outras; 7) alguns distinguem as imagens ao nível do suporte material da evidência: desenho e fotografia;

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8) dizem muito mais na discussão oral do que registam por escrito, o que confirma as limitações dos estudos que se baseiam apenas em testes de “papel e lápis”, que não revelam na sua plenitude o conhecimento das ideias e conceções dos alunos e da capacidade de compreensão histórica. 9) não precisam de conhecimentos históricos para explorar as imagens, fazem-no com base nos conhecimentos informais que possuem sobre vários indicadores da cultura material e do progresso tecnológico; 10) usam com frequência vocabulário de tempo qualitativo para explicar a anterioridade ou posterioridade das imagens. 11) aplicam vocabulário específico histórico como liteira e carruagem.

Considerações Finais Um dos recursos importantes para o ensino da História é a utilização de fontes icónicas, consideradas de grande valor para o desenvolvimento da compreensão histórica nos alunos desde os primeiros anos de escolaridade. Com esta atividade e de outras com recurso a fontes icónicas que realizámos no nosso estudo (Solé, 2009) verificámos que persiste um padrão que é frequente em crianças mais novas, principalmente até aos 7 anos, o de descreverem o que veem nas imagens por oposição/comparação ao presente, “ainda não têm”; “é diferente de agora”, encontrado também por Cooper (1995). Mas utilizam também expressões temporais que refletem situações de continuidade ou mudanças: “já é”; “ainda usam”; “já usam”; “já não usam”. Através da exploração de imagens os alunos reconhecem mudanças mas também permanências, e já não é tão evidente a ideia de passado deficitário (Barton, 2002), assim como a ideia de progresso linear tão extremo, embora estas conceções ainda persistam em alguns alunos. Há mesmo alunos que neste nível de escolaridade revelam já capacidade de proceder a interpretações e a certos tipos de generalizações, integrando a imagem/fotografia no seu contexto e inferindo sobre determinados comportamentos e estatuto socioeconómico das pessoas retratadas, servindo-se de indicadores da cultura material, padrão encontrado no estudo realizado por Harnett (1993) e Barton (2002). Verificámos que os alunos procedem de maneira diferente consoante a tarefa indo ao encontro da ideia de mediação defendida por Barton (2002), o que justifica alguns resultados interpretativos que parecem ser contraditórios. Por exemplo, quando comparam apenas duas imagens do mesmo espaço em períodos diferentes a maioria dos alunos limita-se a descrever e a enumerar o que veem na imagem sem proceder a generalizações e frequentemente comparam-nas em função do que

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uma tem e outra não tem, embora também reconheçam permanências principalmente ao nível da arquitetura e urbanismo, assim como diferenças e mudanças relacionadas com mudanças na cultura material, ao nível do vestuário e na tecnologia. Em contrapartida, quando têm que analisar várias imagens sobre o mesmo espaço e sequencializá-las, as descrições integram inferências e deduções, e não se limitam a comparar duas a duas, comparam três ou mais imagens em diferentes períodos. Também constatámos melhores resultados em tarefas de sequencialização de imagens quando estas integram indicadores sobre progresso tecnológico, por exemplo automóveis de diferentes épocas (Solé, 2009). Distinguem as diferentes tipologias de fontes icónicas (desenho, pintura ou fotografia), mas alguns alunos quando se baseiam exclusivamente no suporte material da evidência, ou seja por exemplo considerarem que uma imagem a preto e branco é mais antiga do que outra a cores pode induzi-los em erros na sequencialização de imagens. Evidenciaram nestas atividades com recurso a fontes icónicas a utilização e aplicação de vocabulário específico de História, assim como vocabulário temporal, em que aplicam de conceitos de tempo associados à cronologia. Encontrámos neste ano de escolaridade (3.º ano) nesta atividade descrita diferenças ao nível da compreensão histórica, enquanto alguns evidenciam ainda ideias que se situam num nível muito baixo de compreensão da evidência, outros revelam já ideias muito mais elaboradas em relação a este aspeto da compreensão histórica. Verificou-se que há alunos que realizam interpretações plausíveis e alguns até procedem à crítica às fontes, procedimentos essenciais para a compreensão da evidência histórica, confirmando-se o que vários investigadores têm constatado nos seus estudos, o de se encontrarem vários níveis de desenvolvimento num grupo de alunos da mesma faixa etária. Este estudo permitiu constatar e reforçar a ideia que as fontes icónicas contribuem para promover nas crianças o pensamento crítico, permitem que estas compreendam o passado e encorajam-nas a praticar a interpretação histórica e questionar as evidências. Têm por isso enormes potencialidades para o desenvolvimento da compreensão histórica e do tempo histórico, possibilitando comparar passado e presente, reconhecer mudanças e permanências, desenvolver nas crianças competências de interpretação, encorajar as crianças a questionar, a avaliar a credibilidade da fonte. É importante destacar que o recurso da imagem como auxiliar didático pelo professor requer que estes dominem a sua gramática e saibam escolher adequadamente as imagens que julguem mais pertinentes para os objetivos pretendidos. Para além disso, o professor tem um papel importante no sentido de promover a discussão e colocar perguntas adequadas para a sua exploração. Deverá por isso promover competências relacionadas com o processo de interpretação, análise e crítica de múltiplas fontes históricas, e em particular as

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fontes visuais, que por norma são menos exploradas e valorizadas pelos professores do que as fontes escritas.

ANEXOS Anexo 1

Imagem A- Gravura do Largo do Paço, séc. XIX . VIVIAN, George. Scenery of Portugal & Spain. London: P. & D. Cognaghi & Co.,1839. D.S. XIX 573.

Imagem B- Fotografia do Largo do Paço, 2004 (fonte: autora).

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Notas: *Adverte-se que os nomes dos alunos quando citados são pseudónimos. **Este trabalho é financiado pelo CIEd - Centro de Investigação em Educação, projetos UID/CED/1661/2013 e UID/CED/1661/2016, Instituto de Educação, Universidade do Minho, através de fundos nacionais da FCT/MCTES-PT. ***Este artigo é uma versão revista e melhorada da comunicação apresentada no Congreso International Innovación metodológica y docente en Historia, Arte y Geografia e publicada nas actas do congresso: Solé, M. G. (2012). O uso de fontes iconográficas no ensino da História no 1.º CEB (Ensino Primário) num estudo de caso em Portugal. In F. R. D, Villa; R. L. Facal, M. C. S. Vázquez, J. A. S. Gárcia e M. V. Pérez (Ed.) Atas do Congreso International Innovación metodológica y docente en Historia, Arte y Geografia (pp. 811-834). Santiago de Compostela.

Referências Bibliográficas Barton, K. C. (2002) “Oh, that’s a Tricky Piece!”: Children Mediated Action, and the Tools of Historical Time. The Elementary School Journal, 37 (1), 89-106. Blyth, J. (1988). History 5-9. London: Hodder and Stoughton. Bruner, J. (1966). Towards a Theory of Instruction. Cambridge, MA: Harvard University Press. Calado, I. (1994). A utilização educativa das imagens. Porto: Porto Editora. Cooper, H. (1995). History in the Early Years: Teaching and Learning in the first three Years of School. London: Routledge. Cooper, H. (2006). History 3-11: a guide for teachers. Oxon: David Fulton Publishers. Erickson, F. (1986). Qualitive Methods in Research on Teaching. In M. Wittrock (Ed.), Handbook of Research on teaching. (3.ª Edition).( pp. 119-161). New York: Macmillan. Everstson, C. M. & Green J. L. (1986). Observation as inquiry and method. In M. Wittrock (Ed.), Handbook of Research on Teaching (pp. 162-213). New York: Macmillan. Freitas, M. L.; Solé, M. G. & Pereira, S. (2010). Metodologia de História. Luanda: Palas Editora.

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Harnett, P. (1993). Identifying Progression in Children's Understanding: The use of visual materials to assess primary school children's learning in history. Cambridge Journal of Education, 23 (2), 137-154. Harnett, P. (1995). Questions about the past. Children's responses to visual sources in primary history. European Conference of Educational Research Association, Poalt University. Harnett, P. (1996). Question about the past: responses to historical pictures from primary school children. West Historian, 25, 19-26. Harnett, P. (1998). Children Working with Pictures. In P. Hoodless (Ed.), History and English in Primary School: Exploting the Links (pp.69-86). London: Routledge. Hoodless, P. (1996). Time and Timelines in the Primary School. London, Historical Association. Lessard-Hébert, M., Goyette, G. & Boutin, G. (1994). Investigação Qualitativa: Fundamentos e Práticas. Lisboa: Instituto Piaget. Lopes, J. M & Melo, M. C. (2009). A fotografia: o que ela me (não diz)! – ou como dar lugar a diferentes vozes. Babilónia, 6 (7), 109-126. Nodelman, P. (1990). Words about Pictures: The Narratives Art of Children’s Picture Books. Athens, G.A: University of Georgia Press. Solé, M.G. (2009). A História no 1.º Ciclo do Ensino Básico: a Concepção do Tempo e a Compreensão Histórica das crianças e os Contextos para o seu Desenvolvimento. Tese de doutoramento, Ramo de Estudos da Criança, Área de Estudos do Meio Social. Braga: Universidade do Minho, Instituto de Estudos da Criança. Turner-Bisset, R. (2005). Creative History in the Primary Classroom. London: David Fulton. West, J. (1981). Primary school children's perception of authenticity and time in historical narrative pictures. Teaching History, 24, 8-10.

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ARTICULAR HISTÓRIA E EDUCAÇÃO: DESAFIOS COLOCADOS AOS PROFESSORES DE HISTÓRIA PORTUGUESES Marília Gago Raquel Pereira Henriques Nota introdutória Que competências é possível desenvolver com o ensino da História atendendo às diversas demandas, desde os quadros normativos à reflexão epistemológica? Como quebrar as amarras de funcionamento instituídas, aceites como inevitáveis, e que acabam por influenciar o trabalho realizado com os alunos? Como contribuir para construir um pensamento histórico, quer de professores quer de alunos, que permitam o desenvolvimento de uma consciência histórica humanista? Foram sobretudo estas questões que nos nortearam e sobre as quais resumidamente refletiremos. Partimos, no entanto, dos professores, porque nenhum está imune aos problemas que se colocam à sua profissão. As práticas pedagógicas que promovem resultam, também, de algumas condicionantes. Martin Lawn diz-nos claramente que os professores são uma das “tecnologias” do sistema educativo (1999) e, nesse sentido, poderá ser conveniente ao poder político um docente mais controlável, enredado num trabalho burocratizado e dependente do que Delfim Santos designou como a “pedagogia dos resultados” (s.d., p. 5), ou seja, das classificações obtidas pelos alunos nas avaliações finais. As exigências cada vez mais amplas que se lhes colocam numa sociedade de informação, em que se conjugam a maior complexidade científica e tecnológica com a redução dos laços familiares e a competitividade exercida por outros meios de formação e de socialização contribuem para uma crise de identidade, explicitada por Antón Costa Rico: Así, podemos contemplar hoy la diversidad de papeles que se les atribuyen: transmisores, formadores, protectores de la infancia, moldeadores de personalidades en formación…; incluso el papel de “investigador”, o el de “intelectuales”, que deberían desarrollar un “pensamiento crítico” en relación con las decisiones profesionales a adoptar en el día a día (Rico, 1999, p. 69).

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Por seu turno, François Dubet relembra as dificuldades em trabalhar com alunos que não sabem para onde querem ir, pressionados pelas famílias para estar ali (2002, p. 147), ou seja, há que considerar as condições com que o professor se confronta muitas vezes e às quais se acrescenta ainda o número elevado de turmas e de alunos por turma, a extensão dos programas, a pressão da comunidade. Tendo em conta estes desafios, entre outros, tentaremos olhar para dentro da sala de aula e perceber algumas contingências e modos de as superar.

Os espaços Para refletir sobre as práticas é necessário considerar o espaço educativo: tal como diz Viñao Frago, a perceção e a interiorização da disposição material dos espaços e da sua dimensão simbólica é um processo cultural (1993-1994, p. 27). Em primeiro lugar esse espaço está organizado, na maior parte das escolas, para ensinar o mesmo a muitos, como se fossem um só, o que quer dizer que, objetivamente, se pretendem uniformizar saberes. Em segundo lugar, ao transmitir estímulos e ao impor limites, o espaço regulamenta também o quotidiano, as interações sociais, contribui para construir um universo que é mais do que simbólico, é cultural. Independentemente do tipo de escola e da arquitetura dos edifícios, o espaço educativo tem-se organizado a partir de uma célula principal, a “classe”, a turma, bem como da necessidade de construir várias salas de aula para funcionarem em simultâneo, da forma mais eficiente possível (Silva, 2002, p. 27 e Hamilton, 1991, p. 39). Se o mobiliário que ainda hoje identificamos com certos espaços escolares e rotinas eram o estrado, o quadro preto a que se associavam por sua vez o ponteiro, a régua e o esquadro, a sala surgia e surge ainda como um espaço de forças normalmente contrárias, visível nas carteiras alinhadas dos alunos, em filas sequenciais, de frente para o quadro e para a secretária do professor. A disposição dos elementos simbólicos que identificam uma autoridade legitimada (Reboul, 2000, pp. 53-55) e que são, como diz Fernando Marques, “uma forma silenciosa de ensino” (2003, p. 15), favorecem uma visão global dos alunos, sentados e geometricamente alinhados, expectantes ou não. Nada na organização racional daquela “cerimónia”, como lhe chamou Francisco Dias Agudo (Palestra, Janeiro de 1958, nº 1, p. 61), daquele espaço cenográfico, poderia confundir os papéis previamente definidos, “ocupa[ndo], ainda hoje, um lugar relevante na memória coletiva” (Nóvoa & Marques, 2004, p. 205). Estabelece-se de imediato uma hierarquia percetível, e quer alunos quer professores sabem que atitudes deles se esperam, o que é previsível, aceite ou condenado. Os territórios estão assim definidos e opõem-se, o que por si só

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esclarece funções e métodos. À partida, poder-se-á pensar que o palco deste cenário é claramente desfavorável ao lado menos numeroso, mas os limites que escudavam alunos, as regras sociais interiorizadas e generalizadas e a aceitação tácita do professor como um “locutor autorizado” (Bourdieu, 2003, p. 106) tornaram-no, até à década de setenta do século XX, inquestionavelmente poderoso. Esta perspetiva foi sendo alterada e, apesar da sala de aula poder parecer semelhante, estável, e de muitas práticas parecerem eternizar-se, a escola foi-se transformando, bem como a relação de forças entre alunos e professores (ver Nóvoa, 1999). Nas últimas décadas, os novos recursos eletrónicos, o trabalho a pares ou em grupo, as preocupações em promover métodos de trabalho autorregulados, começaram lentamente a impor a necessidade de modificar a conceção espacial das salas, bem como de alargar o tempo de trabalho prático conjunto em disciplinas onde essas metodologias se perspetivaram como fundamentais para o desenvolvimento de capacidades distintas. Não se entenda destas palavras que são aqueles recursos técnicos, aqueles novos suportes que fazem a diferença, porque esta depende do modo como se organizam as aprendizagens. Entenda-se é que um primeiro impacto visual com o espaço de trabalho determina imediatamente qual a conceção de poder que ali está subjacente e a mesa do professor em destaque, por exemplo, funciona como referencial, mesmo que o professor circule entre os alunos.

Algumas recorrências Ao longo do século XX português, em determinadas conjunturas políticas, sociais e culturais como a Primeira República (1910-1926), a «Primavera Marcelista» (1968- 1974), a revolução de 25 de Abril de 1974 e nas décadas mais recentes, o aluno foi sendo colocado no centro das propostas pedagógicas dos educadores. Para além de um ensino mais individualizado, as preocupações educativas que se verificaram nesses períodos foram, em traços muito gerais e também por isso redutores, as de estimular a não-diretividade, contrariar um ensino expositivo, privilegiar a compreensão gradual dos fenómenos, estabelecer uma relação intrínseca entre a escola e a vida. Havia ainda que estimular o contacto com o meio local, com as atividades laborais, com o património. As «lições de coisas» consideradas essenciais pela Educação Nova ou Escola Nova e consignadas na legislação de 1911, ressurgiram em finais da década de sessenta, quando organismos institucionais como o Centro de Estudos de Pedagogia Audiovisual ou o Gabinete de Estudos e Planeamento da Ação Educativa promoviam sessões de formação para os professores sugerindo o trabalho com as fontes, a análise da multiperspetiva, o trabalho em grupo, a organização de debates, a saída do espaço escolar, a necessidade de assegurar uma

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«pedagogia do concreto» a partir de objetos, de documentos escritos e iconográficos, de representações espaciais. Logo após a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, promoveu-se a abolição da distinção entre trabalho manual e intelectual, referindo-se que os professores eram, fundamentalmente, os «animadores» do processo educativo. Deveriam rejeitar a memorização e estimular o espírito crítico e a criatividade como condutores da verdadeira aprendizagem. Para que a escola não permanecesse isolada da realidade e para que respondesse às necessidades dos estudantes das camadas mais populares, os professores deviam realizar trabalhos no âmbito da história local, partir do meio mais concreto para a compreensão mais abstrata da realidade. O aluno tinha de estar ativo, devia sobretudo compreender como poderia aprender e, dessa forma, envolver-se diretamente na planificação das tarefas escolares e opinar sobre a gestão do programa, as formas de avaliação, a construção do currículo. Pretendia-se “desenvolver nos alunos o sentido da responsabilidade, o espírito de solidariedade, o gosto do esforço, estimulando sempre a espontaneidade e a criatividade” (Programas,1975, p. 7) e dotar os alunos de métodos de trabalho que o autonomizassem, que privilegiassem de igual modo a teoria e a prática, o pensamento e a ação, a ciência e a técnica. Já no século XXI, e depois de um retrocesso em que a escola se fechou de novo sobre si própria, com salas de aula que deixaram de comunicar entre si, o professor foi solicitado a organizar o seu trabalho em função de um aluno que se deseja mais autónomo. O professor de História deve contribuir para o desenvolvimento de diversas competências relacionadas com a utilização apropriada de fontes históricas, com a interpretação do quadro temporal e espacial dos acontecimentos e conjunturas, com a contextualização de diferentes situações e com a capacidade de comunicar a aprendizagem do pensamento histórico. [Em 2001 foi publicado, no âmbito da Reforma Curricular do Ensino Básico, o documento Currículo Nacional do Ensino Básico - Competências Essenciais. No caso da História a construção do pensamento histórico dependia do desenvolvimento das competências referidas e diz-se, também o seguinte: “Adota- se aqui uma noção ampla de competência, que integra conhecimentos, capacidades e atitudes e que pode ser entendida como saber em ação ou em uso” (p. 9).] No que diz respeito à comunicação do pensamento histórico, a construção das narrativas não deve ser exclusivamente escrita, oral ou pictográfica. É sobretudo essencial conseguir redigir um ensaio escrito, lógico e com argumentação clara e fundamentada, é necessário saber organizar/participar num fórum de debate, fundamentando-se em fontes diversificadas, saber construir um guião, cenários ou figurinos para uma dramatização, criar um poema ou letra de uma canção sobre um tema histórico (ver Rüsen, 2016).

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Este quadro de orientação normativa parece estar em linha com a conceção da História como um processo de pesquisa, como um produto de várias maneiras de pensar sobre o mundo. Ou seja, uma História interiorizada e providenciadora de luz para a vida. Como afirma Shemilt (2000) a História não pode ser desagregada em pedaços mas deve ser contextualizada, de forma válida e útil para informar o presente. Perspetiva-se o presente quando se propõe uma visão longitudinal, através de olhar retrospetivo visando a compreensão do que terá acontecido para o que está a acontecer. Deste modo, 

É dado sentido ao passado;



É representado o passado como parte de um processo em contínuum;



São desenvolvidas competências ao nível do relacionar e do utilizar recorrentemente os diferentes segmentos temporais, que podem funcionar como uma “luz” para a compreensão futura da realidade.

Quando falamos da relação do eu, do indivíduo com a História, falamos de consciência histórica. Assim, e na sua aceção mais ampla, este conceito é coletivo e relacionado com a cultura histórica de uma sociedade. A aprendizagem histórica é conceptualizada como especificamente relacionada com os procedimentos cognitivos de consciência histórica. Ou seja, a educação histórica parece ocorrer quando as competências de experienciar o tempo passado, interpretando-o de forma histórica, e utilizando-o na orientação da vida, são desenvolvidas. Partilhando-se as ideias de Rüsen (2016) a experiência, a interpretação e a orientação são fundamentais para a educação histórica numa linha de um novo humanismo. A consciência histórica desenvolve-se no complexo processo de socialização e individualização humana. Este processo de desenvolvimento não é um simples acumular de capacidades, deve ser compreendido como um processo. O processo de diferenciação, de fazer sentido histórico pela consciência histórica pode ser concebido como um processo de desenvolvimento de competências, em que o nível subsequente pressupõe o precedente e o expande. Esta perspetiva dinâmica e continuada de desenvolvimento é entendida como um processo estruturado de competência lógica e específica da História, podendo os diferentes níveis serem visíveis na mesma pessoa conforme o contexto em que a consciência histórica é expressada. Em momentos chave da história da educação em Portugal nos séculos XX e XXI, as propostas de desenvolvimento da disciplina de História apontam para esta necessidade de uma História que forme e enforme sentido e identidade, realçando-se: o fim da monarquia e o início da República em 1910; o fim da ditadura e o regresso da democracia a Portugal, em 1974 e o início do século XXI com a proposta de um quadro de competências-referência para o estudo da História. Esta recorrência de repensar o ensino da História em momentos de mudança espelham as necessidades que todos os indivíduos e sociedades sentem para dar sentido ao seu percurso. Repensar-se no caminho da compreensão do

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“eu”, do “nós” de forma continuada. Neste quadro, a formação de professores e o modo como estes fazem sentido da sua consciência histórica e do seu papel enquanto educadores é repensado também, naturalmente. Entre os professores portugueses têm havido momentos pontuais de reflexão sobre as conceções de História e de consciência histórica. Existem, também, alguns estudos com este foco [Ver estudos desenvolvidos por Gago, 2016; Pinto, 2016; Magalhães e Gago, 2009; Barca, 2002] e a ideia que a compreensão da natureza do conhecimento histórico e a sua significância é vital para os professores de História parece ser uma reflexão transversal. Articulando de forma agregadora os conceitos de consciência histórica e narrativa histórica, as ideias mais frequentes entre professores de História apontam para uma visão em que o passado é útil para a vida, no plano social e pessoal, porque permite aprender lições que devem ser devidamente contextualizadas, procurando-se que exista um passado que nos fornece exemplos não para serem seguidos stricto sensu, mas para servirem de base de reflexão acerca da mudança em progresso e permitirem a contextualização do presente. A partilha de um quadro histórico/cultural, de tradições e valores, permite a coesão da identidade no sentido nacional que nos difere do “Outro”, em relação com o “Nós”. A imparcialidade do historiador seria ideal, contudo o consenso é inaceitável. Aponta-se já para a heterogeneidade de competências e de pensamento dos alunos tendo em atenção a faixa etária e a escolarização. Estas ideias aproximam-se do que Rüsen (1993) propõe como consciência histórica de tipo exemplar em que a preocupação central parece ser demonstrar competência para cumprir as regras e as finalidades que lhes são propostas em termos organizacionais. Esta situação parece ser visível quando em termos de sentido das aprendizagens dos alunos se realça o conhecimento histórico substantivo que demonstra a validade de regras, que permita a contextualização do presente. Ou seja, os professores parecem querer operacionalizar a frase “Conhecer o passado, compreender o presente e perspetivar o futuro” pela continuidade do que já foi demonstrado no passado. Contudo, e talvez face às novas orientações curriculares do desenvolvimento de competências essenciais propostas no início do século XXI em Portugal, consideram ser necessário desenvolver o raciocínio crítico dos alunos. Neste sentido, o professor parece demonstrar um conhecimento aditivo, na medida em que vai tentando articular os seus conhecimentos e destrezas anteriores com as novas orientações, mas parece fazê-lo por acumulação, sugerindo que não refletiu acerca do que Lee (2002) designa por “the big picture”. Os conceitos estruturais da disciplina de História e a sua compreensão são a chave para o desenvolvimento de capacidades, princípios e dispositivos heurísticos para que se trate o passado não como lições ou leis de História. Os protocolos substantivos, para serem realmente úteis, requerem a experiência de princípios metodológicos. Deste modo, o conhecimento histórico substantivo não funciona como lição. No processo de construção desse conhecimento substantivo, desenvolve-se e enriquece-se o campo intelectual dos alunos. E esta

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construção é útil, pois ajuda-os a pensar acerca do mundo contemporâneo (Lee, 2002). Tornar claro o campo conceptual dos professores torna-se extremamente importante para lhe permitir dar uma resposta coordenada com as novas demandas normativas e da epistemologia da História para que o professor de História possa orientar os seus alunos no desenvolvimento da sua consciência histórica numa linha humanista. Na formação de professores de História urge repensar como operacionalizar educacionalmente as questões relacionadas com a Epistemologia do conhecimento social. Neste sentido, a promoção da reflexão docente de forma viável e frutuosa deve ser um percurso a ser construído entre professores de História e educadores/formadores de professores de História, isto é, entre a escola e o ensino superior, visando o contínuo crescimento profissional de forma transformadora. Esta dimensão encontra-se interligada com a necessidade de articular a formação inicial e contínua, as questões curriculares, os debates teóricos e operacionalizações educativas, uma profissionalidade docente transformadora, com o re-pensar dos perfis de profissionalidade de educadores de História capazes de responder com uma qualidade dinâmica aos novos desafios. Parece ser também fulcral re-pensar a consistência entre os documentos oficiais, as experiências de ensino-aprendizagem e os conteúdos programáticos. As políticas educativas europeias afirmam que o ensino-aprendizagem da História visa desenvolver o pensamento histórico dos alunos. Porém, de acordo com dados de vários estudos pode-se concluir que esta finalidade, nomeadamente na Europa, é facilmente esquecida ou ignorada na prática da aula de História, a qual em muitos países ainda assenta na transmissão do conteúdo factual (Virta, 2002; von Borries, 2000). Em Portugal foram emanadas as competências básicas e essenciais a desenvolver ao longo do ensino básico, mas a preparação/formação de professores quanto às experiências de ensino-aprendizagem consonantes com o documento referido, e que se encontra baseado nas teorias cognitivas e de construtivismo social, têm ocorrido de forma reativa e não proativa. Por outro lado, a articulação entre o documento de competências do ensino básico, as experiências de ensino-aprendizagem e os conteúdos programáticos encontra- se ainda em por fazer de forma sistemática, podendo afirmar-se a inconsistência que decorre desta situação com a qual o professor de História tem de lidar no seu quotidiano profissional.

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ESTADO DE LA CUESTIÓN SOBRE LA DIDÁCTICA DE LA HISTORIA EN ESPAÑA Pedro Miralles Martínez Introducción En esta ponencia se pretende estudiar el estado actual de la didáctica de la historia en España con referencias a los últimos decenios. Trataré tanto la investigación como las propuestas curriculares innovadoras, enfatizando en la formación del profesorado, que a la postre es la función esencial del área de Didáctica de las Ciencias Sociales, y en las perspectivas y los retos actuales y futuros. La formación del profesorado y la innovación educativa deben estar ligadas a la investigación didáctica. Todas deben partir de la práctica, de los problemas a los que se enfrenta tanto el profesorado en su docencia como el alumnado en su aprendizaje. La innovación educativa debería ser el principal motor de la investigación didáctica pero ésta no puede depender exclusivamente de la Universidad, sino que es el profesorado en las aulas quien debe movilizar el desarrollo y la experimentación de proyectos de innovación. Es sabido que la investigación educativa en general, y en didáctica de la historia en particular, ha avanzado muchísimo, pero su difusión y su conexión con la práctica han sido poco abordadas e implementadas. Por tanto, hay que fomentar y potenciar el engarce entre la innovación educativa y la investigación didáctica, de manera estrecha, para prevenir la disociación entre la actividad científica y su difusión en el aula. Los currículos españoles siempre han sido un obstáculo y una dificultad para la innovación, con la única salvedad de los diseños experimentales de la reforma de las enseñanzas medias. Durante el decenio de 1980, un sector minoritario, pero muy dinámico, pugnó por dar protagonismo al alumnado en el proceso de aprendizaje, superando las viejas rutinas memorístico-repetitivas. A partir de esta experimentación la mayoría de los libros de texto incorporaron algunos avances significativos para la enseñanza de la historia, como cierta variedad de fuentes documentales, planteamiento de problemas históricos con propuestas de investigación individual o en pequeños grupos, confrontación de informaciones con puntos de vista diferentes sobre un mismo hecho, etc. Este tipo de actividades se habían ensayado previamente en los materiales alternativos diseñados por los grupos de profesorado más innovadores (LÓPEZ FACAL, 2008). Algunos de estos manuales se organizaban en torno a problemas relevantes de carácter interdisciplinar que partían del presente, analizaban el pasado y establecían las posibles perspectivas del futuro inmediato. Intentaron una enseñanza más reflexiva y crítica, así como superar el enfoque cronológico, culturalista y transmisivo propio de una historia general y legitimadora de lo existente (VALLS,

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2007). No obstante, el peso de la industria editorial, las reticencias del profesorado y la falta de voluntad política por asentar la Reforma fueron la causa de su fracaso: las administraciones educativas, basándose en la creencia de que un aumento de los contenidos en los currículos supone que el alumnado aprenderá más, optaron por acabar con las propuestas reformadoras. Frente al predominio de los temas sobre los problemas (LUIS, 2002) y la inclusión de más contenidos, el reto actual es abordar los problemas metodológicos y didácticos del aprendizaje, labor que nunca se ha hecho con seriedad. A partir del Decreto de Humanidades de 2001 se produce un nuevo retroceso, al ampliarse los contenidos preceptivos y disminuir el desarrollo de las capacidades de identificar, relacionar, valorar… hechos y procesos históricos (LÓPEZ FACAL, 2008). El currículo disciplinar, academicista y culturalista debería sustituirse por un currículo basado en problemas y organizado en proyectos de trabajo (PÉREZ GÓMEZ, 2002). Fruto, en buena parte, de este currículo academicista es la precariedad existente en la actualidad con respecto a grupos de innovación en todos los niveles educativos. Los grupos que fueron pioneros en innovación, que surgieron al amparo de la reforma de las enseñanzas medias y la LOGSE, han desaparecido en su mayoría. En la actualidad se ha producido un estancamiento y un declive de las prácticas innovadoras (PRATS, 2008a). El resultado final del intento de cambio educativo hacia una historia más comprensiva, explicativa y formativa ha sido un relativo fracaso. La Ley Orgánica de Educación de 2006 y los desarrollos curriculares en la gran mayoría de las comunidades autónomas han ampliado los contenidos factuales y han reforzado la metodología descriptiva, cronológica y memorística.

Qué sabemos sobre qué y cómo se enseña En este apartado voy a intentar realizar un análisis sintético sobre el estado de la enseñanza de la historia en España atendiendo a diferentes etapas educativas y ámbitos de investigación. La investigación en didáctica de la historia ha tenido un aumento significativo durante los dos últimos decenios, en la extensión a etapas y temáticas no investigadas, en la cantidad de trabajos y en la calidad de los mismos: primeros proyectos I+D, contratos con empresas e instituciones, másteres oficiales, doctorados de calidad, etc. Podemos afirmar que en los últimos años se han puesto las bases para superar el permanente estado de área que está en sus inicios y en precaria construcción. Una investigación que, a grandes rasgos, se ha centrado en tres grandes ámbitos temáticos: el alumnado (su aprendizaje, sus concepciones y su rendimiento); el profesorado, su enseñanza (metodología, recursos, evaluación) y su pensamiento, y el currículo (diseño, selección, secuencia, organización y desarrollo). Si comparamos la innovación llevada a cabo en las distintas etapas educativas, podemos observar que la Educación Infantil es la única etapa donde se han

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generalizado métodos y estrategias innovadores (rincones, talleres, método de proyectos, etc.). Sin embargo, aún son muy exiguas las experiencias con contenidos de ciencias sociales, y menor aún la investigación sobre los mismos. Los motivos pueden estar en la escasísima presencia de las nociones sociales en los currículos de esta etapa y en que el profesorado ha considerado que su nivel de abstracción impedía su aprendizaje por el alumnado (LOISON, 2008). No obstante, cada vez está más asumida la premisa de que en esta etapa se pueden enseñar y aprender contenidos que inicien al niño en el tiempo. El alumnado de esta etapa posee una idea de la duración y hasta un cierto sentido de la historia. En estas edades, el aprendizaje de nociones históricas está más relacionado con la selección de contenidos y las estrategias que se empleen para su enseñanza que con las capacidades y la edad del alumnado, pudiendo obtenerse mejores resultados si se modifican la metodología didáctica y los recursos. El niño y la niña se aproximan a los contenidos históricos de la misma forma que aprenden a través de los cuentos, conectando su experiencia personal con la nueva información. Se utilizan el método de proyectos y los talleres y se imbrican en ellos los contenidos curriculares, así acceden a los mismos de forma contextualizada y significativa. Esta forma de enseñar y aprender les lleva a reflexionar y a contrastar lo que saben con lo que van aprendiendo, en un proceso continuo de acomodación/asimilación que enriquece su experiencia y les lleva a comprender mejor el presente. De las experiencias llevadas a la práctica hay un alto nivel de satisfacción por los excelentes resultados que se han obtenido, por resultar muy agradables y motivadoras para el alumnado y por ser muy estimulantes para el profesorado y las familias (PÉREZ, BAEZA y MIRALLES, 2008). En la Educación Primaria, el área de Conocimiento del medio ha pasado de ser un “cajón de sastre” a su “asignaturización”, como proceso de construcción y “burocratización” del “código pedagógico del entorno”, proceso en el cual han tenido un papel fundamental las editoriales y sus libros de texto (MATEOS, 2008). Entre los didactas de la historia hay posturas encontradas sobre si la historia debe aparecer o no como asignatura independiente. Pero en lo que todos coinciden es que en esta etapa hay una gran deuda investigadora tanto sobre los aprendizajes históricos como sobre su enseñanza (SANTISTEBAN y PAGÈS, 2006). De las escasísimas tesis doctorales destaco la de SERRA (2002), que analiza en los contenidos de los libros de texto la precariedad de la enseñanza de la historia en esta etapa, sobre todo en el ciclo inicial. Las posibles causas radican en tres factores: a) los académicos (la aplicación restrictiva de algunos postulados del modelo piagetiano en la enseñanza de la historia en los primeros niveles educativos); b) los institucionales (la escasa incorporación de contenidos históricos en el currículo de los primeros ciclos de Primaria) y c) los derivados de la propia actuación docente (déficits formativos y dudas e incertidumbres ante la inclusión del tratamiento del conocimiento histórico en las programaciones de aula).

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De los también muy exiguos proyectos de investigación en esta etapa, hay que subrayar la labor de ESTEPA (2007) y TRAVÉ (2007) con el proyecto Investigando Nuestro Mundo (INM 6-12), por la implementación de una metodología investigativa en el aula y por su transferencia a la formación inicial y permanente del profesorado. Subrayamos la experimentación de unidades didácticas en colegios y el diseño de un plan general de formación basado en un enfoque investigador. Se integran innovación, investigación y formación del profesorado en y desde la práctica educativa. En Educación Secundaria Obligatoria y Bachillerato, la enseñanza de la historia ha respondido y responde, en general, a un único modelo: el tradicional y memorístico-repetitivo. Esta metodología se caracteriza por la explicación del profesor y/o la lectura por el alumnado del libro de texto y la aclaración por el profesor de algunos conceptos a la vez que se indica lo más importante para que el estudiante lo subraye. A continuación el estudiante realiza las actividades del libro de forma más o menos mecánica y descontextualizada. La secuencia termina con el estudio del alumnado para superar el examen. Esta combinación de la lección magistral con el dictado de apuntes, la lectura del libro de texto y la formulación de preguntas al alumnado unido a que buena parte de los temas se repiten curso tras curso provoca en el estudiante el aburrimiento (MERCHÁN, 2005, 2007; MARTÍNEZ y MIRALLES, 2008). Lógicamente, estas estrategias son apropiadas para conseguir la transmisión del conocimiento y el mantenimiento del orden (MERCHÁN, 2002), pero no para la comprensión del proceso histórico. No obstante, en los últimos años se observa una paulatina introducción de estrategias que tienden hacia una enseñanza con mayor participación del alumnado y una metodología didáctica que se orienta hacia un aprendizaje significativo; aunque todavía es mucho el camino que falta por recorrer (MIRALLES y MARTÍNEZ, 2008). En Secundaria Obligatoria, y quizás aún con mayor incidencia en Bachillerato, la significación del examen es tal que en buena medida determina lo que sucede en las clases de Historia (MERCHÁN, 2005). Frente a la utilización casi exclusiva del examen, se debería tender al uso de instrumentos de evaluación como el cuaderno de clase, la carpeta de trabajos representativos, el portafolio y los mapas conceptuales, considerados como herramientas innovadoras en el aula. Estos instrumentos no sólo miden la transmisión de conocimientos, también permiten comprobar si se están adquiriendo las competencias que deben lograr los estudiantes, potencian la autorregulación de los aprendizajes y proporcionan una mayor interacción entre alumnado y profesorado (ALFAGEME y MIRALLES, 2009). Con todo, existen poco estudios empíricos sobre la evaluación en esta etapa entre los que destacamos las recientes investigaciones llevadas a cabo por el grupo DHIGECS sobre las relaciones entre la frecuencia de las pruebas de evaluación objetiva y los resultados del alumnado, que concluyen que este tipo de ejercicios mejoran la eficiencia del aprendizaje y son un importante instrumento didáctico (SANS y TREPAT, 2006; TREPAT e INSA, 2008; INSA, 2008), y las tesis

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doctorales de MARTÍNEZ MOLINA (2008) y MONTEAGUDO (2014), que muestran una radiografía de las evaluaciones de Historia en Educación Secundaria y Bachillerato a través del análisis de las programaciones didácticas, los recuerdos de los estudiantes y los exámenes. Según estas tesis las capacidades cognitivas que se evalúan son las de conocer, analizar, comprender, relacionar, situar y valorar, por este orden. Coinciden totalmente las preguntas de los exámenes con los epígrafes del decreto de currículo y las preguntas de la prueba de selectividad. Es evidente que no sólo el alumnado estudia aquello que es relevante para la evaluación sino que el profesorado enseña aquello que se va a evaluar en esas pruebas.

¿Cómo se podría enseñar historia? los retos de la investigación y la formación del profesorado Las investigaciones sobre la formación inicial del profesorado y sus concepciones son cada vez más abundantes. Hay que continuar la investigación sobre la formación inicial del profesorado de Primaria y ampliarla al profesorado de Infantil y Secundaria. Destacan las tesis doctorales dirigidas por PAGÈS (2004), para quien el análisis de los orígenes y de la racionalidad de los conocimientos previos del alumnado que estudia Magisterio debe ser el punto de partida del currículo de su formación en didáctica, ya que si no se tienen en cuenta difícilmente se producirá un cambio conceptual y dichas representaciones previas serán un obstáculo en su formación didáctica. Un aspecto esencial es indagar, e intentar modificar, las concepciones que tienen estos estudiantes de profesor, ideas que son difíciles de cambiar (HENRÍQUEZ y PAGÈS, 2004). En general, los resultados de nuevo concluyen que el aprendizaje de las ciencias sociales se ha basado en la memorización de contenidos. Innovar e investigar suponen aprender cómo hacer algo nuevo: sin formación no puede existir investigación e innovación. Además, hay que potenciar aquellos modelos de formación permanente que se basan en un análisis de la práctica docente. Por tanto, hay que unir formación, investigación, innovación y práctica educativa. Es necesaria la colaboración del profesorado no universitario, especialmente en las etapas de Educación Infantil y Primaria, en la investigación. Hay que aprovechar para ello los posgrados pero también hay que mejorar la formación en el grado, en la actualidad se tratan muy poco los contenidos relacionados con la iniciación a la innovación y la investigación. Los nuevos títulos de Maestro de Educación Infantil y Primaria y el máster en Profesorado de Secundaria señalan, como novedad, entre sus competencias: la reflexión sobre la práctica; la innovación y la mejora de la educación; el dominio de las técnicas de observación y registro así como el análisis de los datos obtenidos; el conocimiento de experiencias y ejemplos de prácticas innovadoras; la competencia y la aplicación de metodologías y técnicas básicas de investigación educativa; el diseño de proyectos de innovación.

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La necesidad de correlacionar el análisis sobre la enseñanza y las creencias de los profesores con estudios sobre el proceso de aprendizaje y las representaciones de los estudiantes se mantiene como terreno inédito por lo que su conocimiento ayudará a saber lo que ocurre en las clases de Historia (WILSON, 2001). Se precisa iniciar la investigación sobre el pensamiento del profesor de didáctica y todo lo relacionado con su trabajo. Es imprescindible encadenar teoría y práctica en la formación del profesorado, investigar la práctica docente del formador del profesorado es emprender la investigación sobre el propio profesorado universitario de didáctica de la historia (PAGÈS, 2004; PRATS, 2008a). Innovación, investigación y desarrollo profesional del profesorado deben ir en la misma dirección. Es precisa la cooperación entre las universidades y los colegios e institutos, lo que requiere la instauración de equipos estables con participación de profesorado de todos los niveles. Ejemplos en este sentido son los grupos catalanes DHIGECS y GREDICS, el valenciano Gea-Clío o el Grupo Andaluz de Investigación en el Aula. Además, se necesita participar en redes internacionales con países europeos (EUROCLIO, HEIRNET) y americanos. Es urgente un salto a Europa que nos permita concurrir en la amplia oferta de programas europeos de docencia e investigación. Las administraciones educativas deben incentivar económica y profesionalmente al profesorado innovador mediante su valoración en una trayectoria tanto de tipo horizontal como vertical, que en la actualidad no existe. Son necesarias medidas para que sea realmente efectiva la promoción profesional y la implantación de un itinerario que parta de los niveles docentes inferiores y llegue a la Universidad. Investigaciones holísticas y “buenas prácticas”. En la investigación hay que tener en cuenta tanto el punto de vista de la enseñanza como del aprendizaje; hay que integrar múltiples elementos y variables, métodos y técnicas (WILSON, 2001). No sólo hay que preguntar al profesorado sobre sus clases, sino también recoger la opinión del alumnado sobre la enseñanza que reciben, visión sobre la que existen escasos estudios (MERCHÁN, 2007; MARTÍNEZ, MIRALLES y NAVARRO, 2009). Pero también hay que consultar a los equipos directivos y a los agentes de apoyo externo a los centros (inspectores, asesores de formación, etc.) y, en algunos casos, como en los niveles iniciales, a las familias. Hay que profundizar en los problemas de la práctica con la finalidad de que la investigación sea útil al profesorado para la mejora de su docencia (PAGÈS, 2001; SANTISTEBAN, 2006). En cuanto a los métodos, hay que ser más rigurosos y sistemáticos para que no ocurra que una cuarta parte de las tesis doctorales del área tenga una metodología “inclasificable” (PRATS, 2008a). PRATS (2002, 2003) ha defendido en sus investigaciones la combinación de diversas vías y no de forma exclusiva ni excluyente; es un grave error considerar incompatible el uso de métodos cualitativos y cuantitativos. Las investigaciones sobre los criterios para determinar lo que se considera una buena práctica docente son una línea muy actual y necesaria. Existen básicamente dos aspectos sobre los que indagar: el análisis de las conductas de los profesores y el estudio de las creencias y el conocimiento del profesorado en su ejercicio

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docente (HENRÍQUEZ y PAGÈS, 2004). El reto para el futuro es el análisis de las buenas prácticas, con estudios cuantitativos y cualitativos. La práctica educativa es una construcción social (MERCHÁN, 2007). En el pensamiento y la acción del profesorado confluyen muy diversos conocimientos. Se aprende de analizar y reflexionar sobre las buenas prácticas. Pero ¿qué es una buena clase de Historia? En España no hay estudios que den una respuesta a esta pregunta clave, pero sí en Estados Unidos, y pueden servir de modelo (HENRÍQUEZ y PAGÈS, 2004). Según las investigaciones recopiladas por WILSON (2001), las estrategias de enseñanza más positivas y “efectivas” intentan desarrollar de forma coherente pocos temas, potenciar las habilidades de pensamiento de los estudiantes dedicando tiempo suficiente para explorar las ideas previas, depender menos del libro de texto y más de las fuentes primarias y de materiales elaborados por el profesorado, preguntar al alumnado y que justifique y argumente sus respuestas, llevar a cabo discusiones en grupo, etc. Historia y ciudadanía. El conocimiento y la comprensión históricos no pueden desligarse y deben estar centrados en la formación de la ciudadanía. En la actualidad, la historia que aprende el alumnado no le sirve para situarse y comprender el mundo, no lo forma como ciudadano ni le ayuda a componer sus señas de identidad (PAGÈS, 2003; SANTISTEBAN, 2006). La finalidad de la investigación en didáctica de la historia debe ser la formación de enseñantes para mejorar la enseñanza de la historia y “la formazione di una cittadinanza democratica capace de affrontare le sfide della società dell'informazione e della conoscenza senza rinunciare al proprio protagonismo come agente sociale” (PAGÈS, 2000, p. 46). De la globalización ha surgido un nuevo concepto de ciudadanía relacionado con la residencia, no con el nacimiento (PAGÈS, 2003). Una ciudadanía basada en el concepto de “glocalización”, que une localización y globalización para entender el actual proceso de transformación en el que se produce la interacción entre las dinámicas local y global. Hay que resaltar la trascendencia de la historia en el campo de la formación política de los futuros ciudadanos. Pese a su necesidad, en España prácticamente no se han estudiado las relaciones entre la conciencia histórica y la formación de actitudes políticas en los estudiantes que permitan el desarrollo de la ciudadanía en contextos de multiculturalidad, como sí ha ocurrido en Europa, Estados Unidos y Canadá (HENRÍQUEZ y PAGÈS, 2004). La historia puede ayudar a los jóvenes a participar en la vida política, desarrollando su razonamiento histórico como una forma de pensamiento crítico (PAGÉS, 2008). La memoria histórica y el pasado reciente. Un tema que la didáctica también tiene que rescatar del olvido es el de la “memoria histórica”; frente a la desmemoria, el pasado más o menos reciente y el presente deben ocupar su lugar en la educación histórica de la ciudadanía (PÁGÈS, 2008). MATOZZI (2008, p. 41) entiende la memoria “como capacidad de recordar los conocimientos históricos aprendidos y volverlos disponibles para la interpretación del presente”. Evidentemente

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memoria no es historia (PRATS, 2008b) y no hay que caer en el “presentismo” (CARRETERO y BORRELLI, 2008). Se trataría de transformar la memoria que construimos las personas, como almacén de datos, hechos y emociones, en historia, como archivo de representaciones significativas reelaboradas consciente y críticamente (LLÀCER, 2008). Tanto en la investigación como en la enseñanza de la historia la memoria debe ser “deconstruida” para convertirla en historia. El siglo XX se ha caracterizado por diversos acontecimientos catastróficos que no pueden volver a repetirse, por ello hay que “educar a los alumnos en la prevención de crímenes contra la humanidad” (PÁGÈS, 2008, p. 48). El presente como historia y la prospectiva. Una de las recientes líneas de investigación histórica es la historia del tiempo presente. La historia puede también ocuparse del presente. Esta orientación analiza un presente prolongado, bajo la categoría de “presente continuo”, con la finalidad de arrostrar con mayores fundamentos el futuro. En consecuencia con este enfoque, algunos historiadores sugieren que se inicie el diálogo con la prospectiva. En el caso de la didáctica, el presente debe ser incorporado pero también descodificado (PRATS, 2008b). La finalidad social de la historia añade al análisis y gestión del pasado y la comprensión e interpretación del presente, el poder proyectar, construir y enseñar el futuro (CARRETERO, 2007). La macroinvestigación de Angvik indagaba en las relaciones que los estudiantes conciben entre el pasado, el presente y el futuro, a partir de su conocimiento del pasado (SANTISTEBAN, 2006). Muchos investigadores consideran que la finalidad principal de la enseñanza de la historia es desarrollar la conciencia histórica en el sentido de interpretar el pasado no sólo para comprender el presente sino también con la vista puesta en el futuro (PAGÈS, 2003). El profesorado no ha valorado esta parte de la temporalidad que está por construir. Pero este uso funcional de la historia es preciso para acercarnos a la educación de la ciudadanía, crítica y participativa (LLÀCER, 2008). Para ello es necesario el pensamiento creativo, capaz de generar empatía y proyectos de futuro (SANTISTEBAN, 2006). Historiografía y enseñanza de la historia. Aunque la historiografía no puede estructurar el desarrollo curricular y la investigación histórica suele ir en una dirección y la didáctica en otra, no se puede negar su influencia en la enseñanza. La historiografía se ha renovado, y en este sentido la enseñanza de la historia podría seguir sus pasos. Algunas corrientes historiográficas, como la historia oral, de las mujeres, la familia, los jóvenes, la vida cotidiana, el tiempo presente, la prospectiva o el revival of narrative, tienen grandes potencialidades didácticas y son muy útiles en la enseñanza de la historia, tanto para los contenidos conceptuales como para los procedimentales y actitudinales (MIRALLES, 2005). Los currículos deben cambiarse teniendo en cuenta la renovación que ha tenido la ciencia histórica (SANTISTEBAN, 2006). En Primaria la selección de los contenidos debería responder a los enfoques historiográficos de la “Nueva Historia” (SANTISTEBAN y PAGÈS, 2006). Aunque las dificultades son importantes, ya que los currículos no recogen la historiografía, existe una escasez

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de materiales didácticos apropiados y el profesorado debe emplear grandes dosis de voluntarismo, esfuerzo y tiempo para trabajar con una metodología que tenga en cuenta, a la vez, la didáctica y la historiografía. Evidentemente, no se trata de incluir nuevos contenidos aplicando los antiguos esquemas didácticos ni tampoco es posible integrar nuevos contenidos en los ya recargados programas, sino de seleccionarlos (MIRALLES, 2005). El aprendizaje en cooperación es un reto ineludible. Sin la participación activa y reflexiva del alumnado y sin el trabajo en equipo no puede educarse en la temporalidad, la memoria histórica y la ciudadanía mediante el desarrollo de actitudes de diálogo, negociación y consenso (LLÀCER, 2008). Son muy escasas las experiencias y las investigaciones al respecto. Destacamos una tesis (LARA, 2001) y una experiencia (SERRANO et al., 2008). Hay que ir hacia un aprendizaje cooperativo mediante el estudio de casos, problemas y proyectos. Además, es una demanda de la enseñanza universitaria adaptada al ECTS. Si el Bachillerato quiere preparar para la Universidad debe implementar estas metodologías. Los libros de texto siguen dirigiendo la actividad en las clases de Historia. No sólo se mantiene su tradicional apogeo sino que en los últimos años ha aumentado. En investigación didáctica existe una línea que no se ha desarrollado lo suficiente, la que se centra en estudiar el papel del libro de texto con relación al desarrollo del currículo y el uso que de él hace el profesor. No todo el profesorado utiliza el texto escolar de la misma forma, existe un margen de autonomía profesional a la hora de decidir la forma de usar estos materiales. Destacamos el estudio de Burguera (GRUP DHIGECS, 2008) y un proyecto I+D de la Universidad de Murcia coordinado por N. Martínez que ha indagado sobre el uso que hace el profesorado de Bachillerato de los manuales. VALLS (2007) enumera los siguientes retos investigadores: el nuevo concepto de libro que supera el simple texto escolar al convertirse en un banco de recursos audiovisuales y multimedia; el uso por el alumnado y el profesorado del manual; las buenas prácticas y la eficacia de su uso en el cambio conceptual en el alumnado y sus preconcepciones e ideas y, por último, el grado de aceptación de los manuales entre el profesorado. Determinados recursos informáticos pueden emplearse para innovar como edublog, webquest, cazatesoros, videojuegos, programas de autor, herramientas visuales, pizarra digital interactiva, realidad virtual, etc. Todas estas aplicaciones por sí mismas, si no se utilizan de forma adecuada, no originarán innovaciones en la enseñanza de la historia. Si no cambia la metodología las TIC no servirán de mucho. El principal reto estriba en orientarnos hacia un procesamiento social de la información y una construcción colaborativa del conocimiento (en la línea de la web 2.0). Para ello el aprendizaje cooperativo y la enseñanza en colaboración en el uso de las TIC son estrategias esenciales. El uso de estos medios debe fomentar el pensamiento autónomo, creativo y crítico. Internet debe ser un instrumento para cuestionar el conocimiento, para aprender a pensar históricamente.

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Impulso al pensamiento histórico y crítico. La investigación sobre la formación del pensamiento histórico, el aprendizaje de la historia a partir de fuentes históricas y la explicación histórica han tenido poco desarrollo (SANTISTEBAN, 2006). Son precisamente los temas que más pueden ayudar a una enseñanza de la historia basada en el principio de que sirva para pensar históricamente. El alumnado además de memorizar información debe aprender a procesarla e interpretarla. El tratamiento de la información, el aprender a aprender, la generación del conocimiento, la metacognición, la toma de decisiones, la creatividad, la solución de problemas y el pensamiento crítico son elementos claves de la instrucción. Los contenidos curriculares de Historia son los mecanismos que sirven para enseñar el pensamiento crítico (HERVÁS y MIRALLES, 2006). Entre el profesorado se observa una tendencia a estimar las habilidades más complejas implicadas en el pensamiento crítico, pero no aparecen en la práctica como objeto de enseñanza o lo hacen en grado claramente menor a la importancia que se les otorga declarativamente (COLL, ONRUBIA y MAURI, 2008). En definitiva, la innovación del profesorado en las aulas de Educación Infantil, Primaria y Secundaria debería ser el motor de la investigación didáctica, y ésta debe repercutir directamente en las aulas. Hay que comprobar qué ocurre en las aulas, partir de los problemas que existen, elaborar propuestas didácticas innovadoras y dar a conocer las experiencias renovadoras (PAGÈS, 2001; SANTISTEBAN, 2006). El profesorado universitario que investiga en didáctica de la historia no debe de perder el horizonte de la práctica escolar y de su mejora. Sus investigaciones deben ser útiles, estar basadas en la práctica y en la medida de lo posible contar en la investigación con estos docentes. Sin investigación de calidad no podemos conocer cómo aprende el alumnado ni cuál es la mejor forma de enseñanza, y la finalidad de la investigación es renovar el aprendizaje y la enseñanza de la historia.

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CONVIDADOS NACIONAIS

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O MOVIMENTO SERTANEJO DO CONTESTADO: DESCOMPASSO ENTRE A PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA E O ENSINO ESCOLAR Alexandre Assis Tomporoski Introdução O Movimento Sertanejo do Contestado, outrora deflagrado na região do Planalto Norte Catarinense e Sul do Paraná, entre os anos de 1912 e 1916, consistiu num complexo e multifacetado movimento social, no qual a população local – representada pelos caboclos – enfrentou metade do contingente de soldados do Exército brasileiro, além de milhares de capangas armados pelos coronéis da região, em uma luta fratricida que ceifou dezenas de milhares de vidas. No âmago deste movimento, encontrava-se a luta dos caboclos pelo direito de autogerirem suas vidas e manterem suas relações sociais, econômicas e culturais, com a predominância de um forte traço religioso, dentro de parâmetros que consideravam justos. Concomitantemente ao massacre físico desencadeado contra a população local, instaurou-se um estigma àquela população, ao território e à própria história do movimento, tendo sido seus protagonistas alcunhados de "fanáticos" e "jagunços" e, durante muitas décadas, considerados pessoas cuja suposta ignorância fora responsável pela guerra e, de certa maneira, pelo atraso no desenvolvimento daquela região. Apesar de profícua produção que aborda o movimento – cabe lembrar que as primeiras interpretações foram publicadas pelos militares que combateram no Contestado – durante décadas sua história foi relegada a segundo plano ou interpretada como uma odisseia de matutos no interior do Brasil. A partir do início dos anos 2000, a retomada de esforços na análise e interpretação do movimento do Contestado, geraram avanços e novas perspectivas sobre a história daquele conflito social. A sofisticação da instrumentalização teóricometodológica, aliada a um período de expansão dos programas de pós-graduação no Brasil, propiciou o desenvolvimento de novas pesquisas sobre a temática, as quais, por sua vez, contribuíram para a superação de antigos mitos historiográficos e preconceitos relacionados. Embora a constatação de que houve significativos avanços na produção acadêmica sobre o Contestado, percebe-se que o acesso às informações e ao conhecimento produzido, seja pela sociedade em geral, seja pelo público escolar, permanece bastante restrito, persistindo muitos dos vieses interpretativos já superados pela historiografia, ainda considerando os rebeldes como sertanejos ignorantes e miseráveis, os quais, imbuídos de um exacerbado fanatismo religioso, teriam cometido atrocidades inomináveis.

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A partir da identificação deste problema, qual seja, a defasagem entre a produção acadêmica e o ensino do Contestado, o presente texto aborda algumas questões pertinentes a esta problemática, apresentando possíveis alternativas para suplantar esta ausência de sintonia entre os conhecimentos acerca da história e do território do Contestado, provenientes de pesquisas recentemente produzidas, e o conteúdo desatualizado ensinado aos alunos das redes escolares - tanto públicas quanto privadas - visando suprimir mitos e preconceitos, infelizmente ainda presentes na memória.

O movimento sertanejo do contestado É plausível afirmar que diferentes fatores motivaram a adesão dos revoltosos às trincheiras rebeldes do movimento sertanejo do Contestado: Para os habitantes de Taquaruçu e Perdizes, locais de origem do movimento, a rebelião foi o caminho trilhado após a violência que os coronéis e o governo, em sua totalidade, haviam praticado contra o monge José Maria.Para os sitiantes e posseiros dos vales do Timbó, Tamanduá e Paciência, era um meio de combater a presença cada vez mais agressiva dos coronéis Fabrício Vieira e Arthur de Paula e Souza, que desejavam estender suas propriedades e sua influência política sobre aquelas regiões. Para as oposições políticas formais aos chefes municipais de Curitibanos e Canoinhas, significava uma oportunidade ímpar de minar o poder do coronel Albuquerque e do Major Vieira. Para os antigos maragatos de todo o planalto, a “guerra santa” significava a volta à ativa e uma chance de desforra contra os pica-paus (MACHADO, 2004, p. 259). Portanto, é admissível considerar uma conjunção de fatores no período que antecedeu o início do conflito, e que a abrangência de tais elementos era razoavelmente delimitada. Ou seja, fatores que foram determinantes para a adesão dos sertanejos em determinada região não se manifestavam em outros locais. A presença de antigos federalistas, em todo aquele território, decorria da necessidade de muitos ex-combatentes maragatos se refugiarem naquela área após o término da Guerra Federalista (1893-1895). Estes indivíduos desempenhariam papel decisivo no conflito, ao assumirem funções militares de comando nos redutos. O despotismo dos chefes políticos municipais, em especial na região norte do planalto catarinense, gerava reações incisivas nos grupos de oposição. O início das hostilidades entre as forças legais e os caboclos, resultou em estímulo para alguns indivíduos aderirem às trincheiras rebeldes, para o fim de combater tais déspotas.

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Os coronéis, que atuavam de forma contundente na expansão fundiária e exerciam influência política, também passaram a enfrentar resistência, e o início dos embates incitou muitos indivíduos a aderirem ao movimento – inclusive famílias inteiras – que haviam sido vítimas de agressões perpetradas pelos coronéis da região. A reação de uma parcela da população do planalto as injustiças praticadas contra José Maria, um curandeiro que fora elevado ao grau de mártir após sua morte em combate no Irani, à frente dos caboclos, também apresentava um significado intrínseco. Anteriormente, em torno de José Maria, haviam se reunido estratos da população do planalto catarinense, especialmente posseiros e sitiantes, que foram alvo de um processo de açambarcamento de suas terras, levado a efeito por coronéis daquele território, em decorrência da crescente valorização das terras. Este processo foi intensificado pela inserção do capital estrangeiro naquela região, representado pela construção do leito ferroviário da Companhia Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande e pela instalação e atuação de sua subsidiária, a madeireira e colonizadora norte-americana Southern Brazil Lumber and Colonization Company, no vila de Três Barras, em 1911, quando aquele município ainda se encontrava sob domínio do estado do Paraná, apesar da contestação dos catarinenses. A atuação das duas empresas desalojou milhares de sertanejos, gerou impactos irreversíveis ao meio ambiente e dilacerou as práticas econômicas tradicionais e o modo de vida da população local. Este cenário multifacetado, imerso em profunda tensão social, agravou-se. Após resistirem a repetidos ataques desfechados pelas forças legais, os rebeldes organizam, a partir de meados de 1914, uma ampla ofensiva no planalto catarinense. Os alvos de seus ataques desvelam o sentido do movimento: estações ferroviárias e instalações da Lumber Company; propriedades dos coronéis da região e prédios públicos. A racionalidade do movimento embasava-se na noção de que as autoridades constituídas (os governantes), o capital estrangeiro e a classe dominante (os coronéis), representavam os agentes que destruíram seu modo de vida, massacraram seus "irmãos" e cometeram injustiças. A partir de fins de 1914 e durante o ano de 1915, o movimento enfrenta o cerco implementado pelo General Setembrino de Carvalho, o qual dispunha de aproximadamente 6 mil homens do exército brasileiro, e de outros mil vaqueanos, capangas dos coronéis da região, contratados para trabalhar na repressão. A desagregação do movimento se completou com a prisão do último líder rebelde, Adeodato, em julho de 1916. No decorrer das décadas subsequentes, o trauma associado ao conflito social e ao genocídio praticado contra os caboclos, impôs, à população que reside no território Contestado, sentimentos impregnados de vergonha, cominando no silenciamento. Este fato se evidencia no amplo desconhecimento - não apenas em âmbito nacional, mas, também, no próprio território que fora palco do movimento

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- acerca das novas pesquisas que se produziram sobre o Contestado, que estão desconstruindo estigmas e mitos. Além do trauma que deixou marcas indeléveis naquela população, uma estratégia de omissão em relação à memória do movimento, implementada pelos poderes públicos, resultou no silenciamento do Contestado. É razoável considerar, dentre as razões para esse silenciamento, a atribuição, as oligarquias políticas, de uma parcela de responsabilidade sobre a deflagração do conflito, caso do então governador, Coronel Vidal Ramos. Por outro lado, o Contestado caracterizou-se como movimento não-branco (apesar da presença de imigrantes e descendentes nas fileiras rebeldes), levado a cabo por uma população indesejada, residente em um estado no qual a narrativa da epopeia imigrante tornou-se fundamental, inclusive para justificar políticas públicas que ao longo do tempo privilegiaram regiões de ocupação imigrante – especialmente alemães e italianos – em detrimento de outras regiões habitadas por não-brancos, que não receberam os mesmos recursos econômicos e benefícios estruturais. Hodiernamente, a maioria dos municípios que integram o território do Contestado enfrenta um processo de expansão fundiária, outrora já vivenciado, que promove a concentração da propriedade da terra, sob controle de grandes proprietários rurais e de empresas multinacionais. Em decorrência deste processo, ocorre a perpetuação do modelo econômico baseado primordialmente no extrativismo, que gera enorme passivo ambiental, particularmente devido a silvicultura, além de manter uma estrutura social desigual e injusta, fato que na atualidade se manifesta através dos baixos índices de desenvolvimento humano, identificados no território do Contestado. Constata-se que o processo de silenciamento da história do Contestado desenvolveu-se com tal amplitude que impediu, inclusive, que o tema fosse tratado de forma adequada pelas escolas de ensino básico de todo o Brasil e, em especial, pelas escolas situadas na região palco do conflito.

O ensino escolar do movimento do contestado Em decorrência do processo de silenciamento imposto ao Contestado, o ensino deste tema nas redes escolares foi profundamente prejudicado. Nas ocasiões que integra o currículo escolar, o movimento do Contestado aparece de forma marginal, normalmente inserido no contexto das "Revoltas da Primeira República". De posse de um espaço reduzido, o tema costuma estar espremido em um parágrafo, evidenciado por uma foto do monge João Maria e ou um mapa da ferrovia. Contudo, o tema Contestado não é apenas subanalisado, mas também vitimado pela reprodução de antigos preconceitos e mitos historiográficos, cuja interpretação imputa aos caboclos a pecha de ignorantes, pessoas que não

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compreendiam a importância do progresso representado pela ferrovia. Em algumas ocasiões, os textos tratam os caboclos como vítimas do descaso do Estado. Em outros casos, a explicação se fundamenta no "fanatismo" religioso, que teria levado os pobres ignorantes a adotarem uma postura agressiva e irracional. Portanto, com raras exceções, a narrativa sobre o Contestado, descrita nos livros didáticos, costuma variar entre a ignorância e a irracionalidade do caboclo. Ele raramente emerge como agente do processo e condutor de sua própria vida. Em pesquisa realizada com a participação de docentes da rede pública de ensino, da região da AMPLANORTE, foram coletados dados que após analisados se mostraram reveladores, em relação ao ensino escolar do Contestado. A Associação dos Municípios do Planalto Norte Catarinense é formada pelos municípios de Bela Vista do Toldo, Canoinhas, Irineópolis, Itaiópolis, Mafra, Major Vieira, Monte Castelo, Papanduva, Porto União e Três Barras. Todos esses municípios situam-se no território que foi palco do conflito armado entre os anos de 1912 e 1916. Inicialmente, verificou-se que a maioria dos participantes era constituída por professores(as) formados(as) no curso de Pedagogia. De fato, nessa amostra, cerca de 53% dos consultados eram formados em Pedagogia. Do grupo pesquisado, aproximadamente 70% dos docentes consultados lecionavam para Séries Iniciais e o Ensino Fundamental. No que tange à disseminação de histórias sobre a guerra do Contestado, em torno de 79% dos participantes declarou ter ouvido, na infância, menções a histórias sobre o movimento, evidenciando o quão incutido na cultura popular encontra-se este episódio da história brasileira. Constata-se que desde muito jovens estes profissionais tiveram contato informal com a temática, principalmente por meio da memória familiar. Embora o ano de 2016 tenha demarcado o centenário de encerramento da guerra do Contestado, surpreendentemente, a cada 04 (quatro) participantes da pesquisa, pelo menos 01(um) respondeu que teve algum parente ou conhecido envolvido na guerra. Estes dados permitem vislumbrar a dimensão de importância do Contestado para aquela população, bem como sua relação intrínseca com a história do conflito. Verificou-se, também, que apenas metade dos participantes estudou o tema "guerra do Contestado" na escola; ao considerar o estudo deste tema na universidade, este percentual eleva-se para 53%. Este último percentual justificase pelo acentuado índice de formados em Pedagogia que compunha a amostra pesquisada. Além disso, uma fração significativa do grupo realizou estudos de graduação na Universidade do Contestado, instituição de ensino superior que durante muitos anos manteve a disciplina de História do Contestado na grade curricular de todos os cursos de graduação.

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Acerca da bibliografia sobre a guerra do Contestado, 74% dos participantes declararam conhecer algum livro sobre esta temática. Não obstante a extensa e qualificada produção sobre o tema, fatores tais como a longa e extenuante jornada de trabalho em sala de aula, a escassez de recursos para aquisição de livros e o uso indiscriminado de uma linguagem estritamente acadêmica, tendem a afastar os professores do acesso às boas obras que discorrem sobre o Contestado. Em contrapartida, algumas das obras mais acessadas pelos docentes, em sua maioria adquiridas pelos poderes públicos estadual e municipal, apresentam uma versão há muito superada dos eventos sucedidos no período de 1912-1916, inclusive, repetindo e dando amplitude a preconceitos e mitos historiográficos, ainda tratando os rebeldes como "fanáticos". Dos docentes consultados, cerca de 90% afirmaram que esta temática integra o conteúdo curricular aplicado no município, e, praticamente a metade (49%) dos componentes do grupo, declarou que aborda o tema Contestado em suas aulas. A discrepância entre o percentual que declarou constar no currículo a temática e o percentual que afirmou ensinar a temática, justifica-se pelo fato de uma parcela dos docentes consultados não ministrar disciplinas das quais o tema componha o currículo, como Educação Física, por exemplo. Constata-se que algo em torno de metade dos professores consultados abordam o tema Contestado em suas aulas. Por um lado, tal fato é motivo de regozijo, pois consiste em temática precípua para a compreensão do processo histórico que caracteriza todo o território, além de representar um episódio importante da história brasileira. Porém, em contrapartida, cabe verificar os métodos de abordagem do tema que vêm sendo utilizados pelos docentes, além da coerência das estratégias de ensino implementadas em sala de aula. Entre os docentes consultados, destacaram-se numericamente aqueles que responderam empregando o termo "aula". Subentende-se que utilizam a metodologia de aula expositivo-dialogada, com uso de materiais de apoio, os quais não foram especificados. Porém, outras atividades também se destacaram, como, por exemplo, visitas a museus ou locais históricos. Também foram referenciadas atividades como teatro, poesias, confecção de maquetes, desenhos, danças típicas e ervas medicinais. Os dados coletados permitiram vislumbrar o perfil do docente e a consistência do processo de ensino-aprendizagem relacionado à temática do Contestado, nas escolas da região. Há, ainda, dois aspectos cruciais a serem analisados, quais sejam, de que modo os docentes compreendem o movimento do Contestado e quais as principais dificuldades que enfrentam para abordar o tema em sala de aula. Em relação ao primeiro aspecto, em sua maioria, identificam o Contestado com a Questão de Limites entre Paraná e Santa Catarina ou, genericamente, ao "messianismo". Neste quesito, visualiza-se uma profunda disparidade entre os resultados de estudos e pesquisas em contraposição à concepção corrente sobre a

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temática. Averiguou-se, ainda, que mais de 85% dos participantes identificou, na atualidade, a existência de permanências relacionadas àquele conflito e que ainda hoje marcam a região, em especial, a presença do extrativismo como principal fonte de atividade econômica. No que tange as principais dificuldades enfrentadas pelos docentes, 47% dos participantes declarou consistir na ausência de material didático adequado. Neste contexto, 29% dos participantes declarou não ter tido acesso a quaisquer materiais didáticos - sobre a temática Contestado - distribuídos pelos poderes públicos. Dos respondentes, 26% declarou inexistir livros sobre o assunto na biblioteca da escola, e mais de um terço afirmou não ter acesso a material audiovisual sobre o Contestado. Os participantes que expressaram comentários ou opiniões, majoritariamente, expuseram sua preocupação quanto a necessidade de material didático adequado para preparação de suas aulas. Os resultados obtidos evidenciaram que expressiva parcela dos entrevistados ignorava estudos sobre o Contestado, e, dentre aqueles que empreendiam esforços para ampliar seus conhecimentos, visando abordar a questão em suas aulas, sobrevinham dificuldades para acessar obras acadêmicas e material didático qualificado.

Possibilidades para o ensino escolar do contestado Os pesquisadores e pesquisadoras que vêm se dedicando ao estudo do Contestado contribuíram, nas últimas décadas, para uma profícua e qualificada produção acadêmica. Contudo, também perceberam que este conhecimento permanece restrito ao meio acadêmico, distante do acesso por estudantes e da sociedade em geral. Por isso, constata-se a necessidade de se realizar uma "tradução", ou seja, elaborar uma narrativa alternativa deste conhecimento, efetivamente acessível aos demais estratos sociais. Dentre os pesquisadores que se dedicam a esta questão, encontra-se o professor Paulo Pinheiro Machado, que em um trabalho intitulado "Treze questões para refletir sobre o ensino escolar do movimento do Contestado", apresentado no III Simpósio Nacional do Centenário do Contestado, realizado na UNESPAR, em União da Vitória, em novembro de 2015, sintetizou as preocupações dos pesquisadores do Contestado sobre a necessidade de pensar estratégias de ensino para a temática. A análise de Machado considera o pressuposto de um descompasso entre a produção escolar e o conhecimento historiográfico sobre o tema. Objetivando superar este problema, uma alternativa de solução consiste na avaliação daquelas práticas e experiências já implementadas, desenvolvidas por professores da região ao longo das últimas décadas.

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Entre os assuntos abordados por Machado, merece destaque, em primeiro lugar, a importância de um trabalho de nacionalização do tema, que compõe um cenário mais amplo, relacionado ao projeto modernizador da República, que almejava eliminar os não-brancos. Em contrapartida, o ensino do tema precisa abordar a longa trajetória que conecta o Contestado a uma tradição de luta camponesa - em especial, aquela associada a tradição religiosa de São João Maria - que remonta ao século XIX e se mantém na atualidade, representado pelos movimentos sociais que militam pela Reforma Agrária. Outrossim, cabe destacar que o Contestado também apresenta características comuns a outros movimentos latino-americanos, em particular a luta pela terra, a luta antioligárquica, a resistência a atuação de empresas multinacionais e o deslocamento compulsório de populações. Portanto, é razoável considerar, inclusive, uma abordagem mais ampla sobre o evento, articulando sua análise em nível internacional. Ademais, urge desconstruir mitos historiográficos como, por exemplo, a epopeia imigrante ou a preponderância do messianismo, este, muitas vezes, ainda denominado "fanatismo" religioso. Em relação aos imigrantes, oriundos de diferentes nações, em sua maioria provinham das camadas mais pobres de suas sociedades, e, na ausência da aprendizagem obtida através do convívio com caboclos e indígenas, aliada a falta de recursos adequados, não teriam suportado as severas condições de vida existentes no território sob análise. Outro aspecto relevante, concernente ao ensino do Contestado, consiste na necessidade de desvelar o que de fato representou o movimento: a tentativa de construção, por parte dos rebeldes, de um novo projeto de sociedade, marcadamente caracterizada por valores comunitários e anticapitalistas. Por fim, em uma região deprimida econômica e socialmente, onde o trauma da guerra ainda persiste no cotidiano, a história do Contestado pode proporcionar à população local o reconhecimento de uma identificação positiva com seu próprio passado, elemento basilar para construção da cidadania. Certamente, o estabelecimento de novos paradigmas na formação dos docentes, representa condição sine qua non para a mudança almejada por pesquisadores e especialistas. Porém, em convergência aos dados coletados acerca do perfil dos docentes da região e sua prática de ensino do Contestado, pode-se afirmar que o próximo - e mais importante passo - consiste na elaboração e distribuição massiva de material didático e material de apoio aos docentes, apresentando os resultados inovadores suscitados pelas pesquisas recentes que abordam o tema Contestado.

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Considerações finais A partir do início dos anos 2000, observou-se um revigoramento nas pesquisas científicas que abordam a temática Contestado, e, nos últimos anos, vem ocorrendo a consolidação dessa área de pesquisa, principalmente em decorrência das sessões do Simpósio Nacional sobre o Centenário do Movimento do Contestado, evento que vem reunindo pesquisadores de diferentes universidades e de distintas áreas do conhecimento. Os estudos sobre o Contestado, além de abundantes – realizados a partir de uma instrumentalização teórica ampla e sofisticada, que considera intensa busca e utilização de fontes inéditas – estabeleceram novas abordagens e interpretações acerca daquele movimento social, as quais vêm suplantando preconceitos e estereótipos que, a título de exemplo, definiam os rebeldes revoltosos como "fanáticos" ou "jagunços". Embora os resultados advindos de recentes pesquisas permitirem estabelecer novos paradigmas, em oposição aos mitos e preconceitos que a longa data predominam e influenciam a construção de uma percepção negativa sobre o Contestado, tais resultados não são acessíveis à população em geral, inviabilizando o advento de novas perspectivas, que poderiam contribuir para o reconhecimento de uma identidade positiva em relação aos rebeldes e ao movimento sertanejo do Contestado. Portanto, conclui-se que há a necessidade premente de se produzir e distribuir material didático que considere os novos paradigmas sobre a temática, além de elaborar e implementar estratégias que permitam aproximar os universos acadêmico e escolar, com o propósito de disseminar o conhecimento científico produzido sobre o tema Contestado – amiúde circunscrito aos especialistas – a sociedade em geral.

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ANTIGUIDADE ORIENTAL: UM DESAFIO IMPRESCINDÍVEL PARA A VERDADEIRA UNIVERSIDADE BRASILEIRA André Bueno Você não pode falar de oceano a um sapo das fontes, porque ele tem por limite o lugar onde mora. Não pode falar de gelo a um inseto do verão, porque ele é limitado pela vida curta que tem. Não pode falar do Caminho a um professor, porque é limitado por seus conhecimentos. Porém, agora que você emergiu da esfera estreita em que vivia e já viu o grande oceano, reconhecendo sua própria pequenez, posso falar-lhe dos grandes princípios. [Zhuangzi, séc. 4 aec]

Em todas as ocasiões que tive oportunidade de lecionar a disciplina ‘Antiguidade Oriental’, sempre procurei começar o curso instigando os alunos a entenderem por quais razões continuamos a aprender sobre Egito, Mesopotâmia, Israel... Uma das melhores brincadeiras era perguntar: ‘Qual a maior religião que surgiu no Ocidente?’, a que os alunos costumam responder, taxativos, que é o Cristianismo. Basta lembrar que o Cristianismo, assim como quase todas as grandes religiões de hoje, surgiu no ‘Oriente’. Esse ‘Oriente’ é absolutamente impreciso: ele engloba um conjunto de civilizações do ‘Próximo Oriente’, isto é, a região da Mesopotâmia, mas também o Egito, civilização africana nativa, a Pérsia, Índia... O aluno universitário aprende, pois, a lidar com uma imprecisão conceitual e geográfica profunda, que, quando tornar-se professor, reproduzirá aos seus alunos. O escopo, pois, de ‘Antiguidade Oriental’ tem sido menosprezado pelos currículos de história atuais, que insistem em modernizar-se abolindo o passado. Por mais contraditório que pareça, quando se fala em reformar o ensino de história no Brasil, costuma-se questionar a validade de ensinar esse aspecto da trajetória da humanidade – e ao invés de expandir os conhecimentos do aluno, ampliando e diversificado sua oferta de visões de mundo, tenta-se na verdade restringi-lo, encaixando-o em visões historiográficas absolutamente reducionistas. Como já afirmei em outras oportunidades, assim como é impossível falar de religiosidades sem entender o papel do Oriente, é impossível falar de política ou escravidão sem retornar a Antiguidade, e assim vamos... Quem insiste em perspectivas imediatistas da História, está quase sempre a correr o risco de acreditar que praticamente tudo foi inventado no século 19 pra cá, sem saber que os historiadores de Antiguidades já conhecem muitas dessas informações faz tempo.

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A história do pensamento se insere diretamente nesse ponto. A academia brasileira, de forma geral, aferra-se de maneira dogmática a crença de que a busca do conhecimento, instituída pela razão e guiada pela lógica, tem sua gênese na Grécia dos filósofos. Essa é uma visão eurocêntrica, basicamente criada no século 19, por pensadores europeus [com destaque para Hegel], que buscavam criar uma história do pensamento ocidental autônoma, original e imune a influências externas, a ‘Filosofia’. Ela tinha, como pressuposto fundamental, provar a dominância do pensamento europeu sobre o restante do mundo, numa época marcada pelo imperialismo e o colonialismo. Obviamente, esse debate tem profundas implicações e divergências, que se estendem para além do espaço previsto nesse texto. Todavia, não é exagero afirmar que a aceitação indiscutível desses paradigmas tem dificultado, sobremaneira, o próprio desenvolvimento do ensino de história, filosofia e ciências humanas no nosso país. A questão, pois, não é afirmar ou negar se a ‘Filosofia’ tem origem grega: afinal, a palavra, tanto como o movimento, surgiram na Grécia. O problema, mais amplo, é outro: é a atitude, convicta, de negar aos pensares ‘orientais’ a sua inserção no mundo das ideias da Humanidade. Para piorar essa visão excludente, a universidade brasileira mantém ainda uma tradição, herdada de suas raízes no ensino religioso, de ser o que poderíamos classificar de ‘devocional’: os eventos humanos acontecem apenas uma vez, e são miraculosos. O ‘milagre’ do pensamento grego é um desses raros eventos, sem paralelo na história da humanidade, como querem acreditar muitos autores. Mais uma vez, temos que nos perguntar o quão contextual é essa visão. Até o século 18, as civilizações mais desenvolvidas do planeta estavam na Ásia. Todas contavam com tradições intelectuais milenares, que nunca precisaram da Filosofia grega pra existir – e que continuam a existir hoje, apesar da Filosofia [agora, Ocidental]... Assim, precisamos nos perguntar o que estamos perdendo não estudando, devidamente, o ‘Oriente’.

Outras Raízes A universidade no Brasil, hoje, tem dado um novo valor ao papel da história africana, o que é gratificante e mostra uma luz de esperança no fim do túnel das ciências humanas. No entanto, a conexão da história africana com o Egito antigo, por exemplo, precisa ser relevada – sob o risco de cairmos nas questões sobre o ‘contemporanismo’ que citamos antes. Tal contribuição seria fundamental para mostrar, por exemplo, que os tão propalados mentores do pensar ocidental – os gregos – beberam diretamente nas fontes africanas e ‘orientais’, como eles mesmos nos informaram. Essa foi a parte que autores como Heidegger [ocidentalista, nazista e racista convicto], por exemplo, quiseram deixar de fora da história do pensamento: Platão, Pitágoras, os ‘pré-socráticos’, entre outros, perambularam pelo ‘Oriente’, em busca de conhecimento. Os gregos da Ásia

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menor, inclusive, não precisavam ir longe: estavam ao lado da Mesopotâmia, da Pérsia e de Israel, e podiam estudar com sábios dessas civilizações diretamente. O que parece interessante propor, portanto, é um entendimento histórico que privilegie um continuum do desenvolvimento do pensamento humano. Entender o que somos nós hoje, brasileiros, é compreender nossas raízes culturais européias, africanas e indígenas – e quanto as nossas matrizes européias, elas se fundem diretamente com os processos de trocas culturais estabelecidos com África e Ásia desde a mais remota antiguidade, e não somente [e apenas] depois do século 16.

Buscar identidades Nesse sentido, busquei, em experiências recentes, redimensionar a perspectiva pela qual trabalhava com ‘Antiguidade Oriental’. Usualmente, o conteúdo fundamental dessa disciplina centra-se na evolução humana em direção aos perímetros urbanos, a construção da política, a formação das tradições culturais e o início da organização do trabalho coletivo. Tais proposições são válidas, e mesmo indispensáveis, para compreendermos o cerne milenar das organizações humanas, desde sua passagem dos tempos neolíticos até o estabelecimento sedentário e urbanístico de algumas culturas. Procurei, no entanto, construir outro foco de abordagem para a mesma. Realizaríamos uma investigação em direção as suas formas de pensar, as suas expressões mais diversas no campo do pensamento, principalmente no que consistiam suas revoluções éticas. Tal experiência já havia sido proposta por Karl Jaspers [1949], com sua teoria da ‘Era Axial’ – período em que as civilizações do mundo antigo teriam presenciado o surgimento de sábios pensadores ao longo do eixo euro-asiático, que reformaram suas culturas e formas de ver o mundo. A teoria de Jaspers, embora válida em alguns aspectos, é difícil de ser sustentada atualmente por razões simples: ela é circunscrita temporal e espacialmente, se atinha a um conjunto específico de civilizações, e dependia de uma suposta sincronia contextual que hoje, sabemos, não existiu. No entanto, Jaspers atentou para alguns elementos importantes: as civilizações, em dado momento, encontram-se, pelas mais diversas razões, em momentos de reelaboração de sua racionalidade, ensejando uma resignificação da relação entre a tradição e a construção do conhecimento. Isso significa o seguinte: as civilizações não deixam de possuir os seus mitos porque alguns autores os desafiaram [mesmo os gregos não escaparam disso]. Porém, o desafio lançado por esses pensadores estimula uma mudança gradual no modo de ver o mundo, o que em alguns casos culminou, mesmo, na formação de novas visões religiosas.

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Arnold Toynbee [1972/1987] propôs que as civilizações passam por desafios existenciais – contextos de crise específicos, nos quais a capacidade de enfrentar as dificuldades e de se reinventar determina sua continuidade ou desaparecimento. Embora esse modelo possa ser criticado por sua universalidade genérica, ele nos chama atenção à possibilidade de mudança que afeta todas as civilizações. Retomando a ideia de Jaspers, mas com as devidas adaptações, não podemos, portanto, falar de Era Axial, mas sim, de um ‘Fenômeno Axial’, um episódio no processo de evolução histórica das sociedades e culturas em que essas são postas a refletir, pelas mais diversas motivações, sobre suas organizações e mentalidades. Embora esses modelos teóricos sejam relativamente antigos, eles estão sendo repensados em função das novas descobertas arqueológicas em curso, que tem comprovado um processo interativo, no mundo antigo, muito mais amplo do que se supunha. Ou seja, estamos diante de um novo quadro histórico, em que as relações culturais são mais dinâmicas, intensas e abrangentes, demolindo a perspectiva compartimentada da Antiguidade. As civilizações antigas se desenvolveram em interações umas com as outras – no contexto do Mediterrâneo, principalmente, a interação África-Próximo Oriente-Europa é impossível de ser dissociada – e crer ou insistir em um desenvolvimento autônomo e exclusivo para qualquer uma delas é, no contexto atual, uma tentativa infrutífera e superada. Desse modo, procuramos construir um outro expediente para abordar as civilizações ‘orientais’: uma busca para identificar suas conquistas intelectuais, suas contribuições para a história do pensamento humano, nos mais diversos ângulos, e que se encontrassem ainda presentes em nossas formas de pensar. Para isso, foi elaborada a seguinte metodologia: cada civilização receberia uma abordagem histórica do seu modelo civilizacional e, no seguir, seus textos sapienciais seriam colocados em contexto, permitindo observar como determinados conceitos éticos podiam ser inferidos e interpretados em cada uma delas. Privilegiou-se a construção de um panorama temporal anterior ao período clássico grego [ou seja, antes dos séculos 8 -7 AEC], no sentido de verificar o que já havia sido produzido nessas culturas, e que poderia ter sido transmitido aos filósofos gregos. Nesse processo, dois fenômenos foram percebidos: a construção de conceitos vero similares em culturas e contextos diferentes, ou a elaboração de conceitos e teorias próprias, em uma determinada civilização, em função de determinados desafios. Um amplo espaço temporal mostrou as dificuldades em afirmar qualquer sincronia nas produções intelectuais dessas civilizações; mas nem por isso, impossibilitou inferir suas múltiplas influências e trocas.

Foram analisados: -Egito, e seus textos Ptah-Hotep e Amenemope [Xavier, 1968 e Araújo, 2000];

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-Mesopotâmia [especificamente, Sumérios e Babilônios], com as Instruções de Shurupak e código de Hamurabi [Bueno, 2016 e Bouzon, 1986]; -Israel, a literatura profética e os livros de Sabedoria [Provérbios e Sabedoria]; -Pérsia, e os Cantos de Zaratrustra [Gaer, 1966]; -Índia, com os Vedas, os Upanishads e o Dhamapada [Xavier, 1972 e Yutang, 1958] -China, com o Yijing, e textos selecionados de Confúcio e Laozi [Bueno, 2009 e 2011]; Foi bastante revelador e gratificante constatar, por exemplo, que egípcios e sumérios já possuíam livros sapienciais muito antes do surgimento da ‘Filosofia’. A reflexão ética já estava estabelecida nessas sociedades, embora seus procedimentos lógicos estimulassem a ponderação, e não dedução, sobre certos princípios. Doravante, a constatação de outros elementos fundamentais ao pensar [quer sejam o monoteísmo hebraico, o dualismo persa, a universalidade e a transmigração da alma indiana, por exemplo] revelou um conjunto de contribuições históricas duradouras e originais, que foram gradualmente incorporadas aos debates do pensamento grego, e depois mediterrânico, no que culminaria com as fundações do ‘Pensamento ocidental’.

Dificuldades Não sem dificuldade, esse debate foi proposto e desenvolvido; há um condicionamento tão grande, relativo à concepção de herança eurocêntrica, que era comum a refutação, por parte dos alunos, dessas evidências textuais e materiais. As críticas mais comuns consistiam em: -argumentar que a filosofia, única e distinta de tudo mais, era um milagre ou conquista grega, recorrendo à teoria consagrada de modo tautológico e exclusivo; -aceitar tais proposições implicaria que ‘tudo que foi ensinado, então, seria mentira’ [ou seja, de que qualquer possível outra origem do pensar lógico não pode ser aceita] -aceitar tais proposições nos tornaria menos ‘europeus’, enfraquecendo a noção de cultura brasileira [aqui, são vários os pontos notáveis: a negação de que o diálogo e a troca cultural são enriquecedoras, a crença da ‘superioridade’ européia sobre o restante do mundo, a ideia de ‘degeneração’ da cultura brasileira se ela for mais ‘afro-asiática’, etc]. No mais, foi recorrente, em alguns casos, a pura e simples negação da literatura apresentada. Essa postura revelou a total insegurança, por parte de alguns, diante

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da possibilidade de repensar a formulação de uma nova identidade cultural, com matrizes diversas e amplas.

Conquistas A identificação dessas dificuldades, porém, fez ressaltar o processo positivo de aquisição do conhecimento, e do desenvolvimento dos recursos e instrumentos de reflexão histórica e filosófica. Uma série de atividades foi elaborada, consistindo na apresentação e análise de documentos, em que os leitores eram estimulados a meditar e correlacionar os fragmentos com seus conhecimentos históricos e pessoais. Alguns cuidados foram tomados, para que as visões atuais não fossem projetadas diretamente sobre o passado, causando anacronismos. Por outro lado, alguns elementos conceituais puderam ser identificados, possibilitando um reconhecimento de valores, ideias e teorias que continuam a existir desde o passado, num longo e contínuo fenômeno de continuidade histórica. Evitou-se, igualmente, criar uma ideia homogenizadora do ‘pensamento oriental’, que induziria a um processo de associação imprecisa, recorrendo ao problemático quadro orientalista. As civilizações foram apresentadas distintamente, em suas especificidades, problemas e mecanismos culturais; sua originalidade, e suas respostas frente aos desafios históricos e naturais, foram colocadas em destaque, de modo a cristalizar uma concepção de autenticidade das mesmas. No entanto, pudemos com esse último recurso, enfatizar a presença do pensamento e da ação humana, o uso da razão, a criatividade no processo de desenvolvimento do conhecimento, demonstrando de forma clara que o fenômeno da construção do saber não era único, nem exclusivo, e nem se deu de uma só vez: mas sim, que ele foi múltiplo, variado, diverso, temporalmente amplo e intrinsecamente conectado aos dilemas e problemas que cada uma dessas civilizações teve que enfrentar. Esse quadro rico de possibilidades permitiu-nos, por fim, recriar o panorama do ‘Oriente’ de modo diversificado e desmistificado, desconstruindo a vaga concepção de unicidades generalizantes que usualmente acompanham o estudo das civilizações afro-asiáticas. Ademais, a oportunidade feliz de inserir a extensa dimensão histórica humana na restrita cronologia da história tradicional ocidentalizada, por si só, permitiu que os participantes da experiência pudessem constatar e visualizar a profundidade de suas ‘ausências’ no conhecimento historiográfico e na história do pensamento humano. A partir dali, o estudo das outras partes do mundo – notavelmente, África e Ásia – tornara-se indispensável.

Conclusões Essa experiência foi bastante reveladora no sentido de mostrar que o público universitário, por mais crítico e inovador que se proponha, traz consigo ainda uma

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série de preconceitos e construções históricas equivocadas e superadas, que se projetam sobre o modo como os cursos se desenvolvem e se estruturam. Notavelmente, porém, a academia – que deveria ser responsável por promover uma mudança nesse panorama – muitas vezes reproduz, também, teorias e modelos tradicionais, que contribuem para a permanência desses paradigmas problemáticos. Num contexto contemporâneo em que se prega a diversidade, o desafio de estudar a ‘Antiguidade Oriental’ revela que as raízes dos diálogos, das trocas e das mestiçagens culturais são muito mais antigas do que se supõe, e sobre suas experiências - bem ou malsucedidas -, as civilizações construíram o arcabouço sobre o qual, hoje, se debruçam em problemas e alternativas. Impossível de desprezar, sob o risco de tornar o suposto especialista em história num candidato a uma polida ignorância, a ‘Antiguidade Oriental’, em suas amplas perspectivas, continua a ser indispensável na formação do autêntico pensador de ciências humanas. E, a universidade brasileira, talvez disposta finalmente a assumir a diversidade dos pensares, precisa compreender, inequivocamente, o papel deste tão mal estudado ‘Oriente’ numa formação acadêmica mais completa, profunda e consciente.

Referências ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a Eternidade: A literatura no Egito Faraônico. Brasília, UNB, 2000. Bíblia de Jerusalém.São Paulo: Paulus, 2001. BOUZON, Emanuel. Cartas de Hammurabi. Petrópolis: Vozes, 1986. BUENO, André. Cem textos de história Asiática. União da Vitória, 2011. Disponível em: http://asiantiga.blogspot.com/ BUENO, André. Cem textos de história chinesa. União da Vitória, 2009. Disponível em: http://chinologia.blogspot.com/ BUENO, André. Cem textos de história indiana. União da Vitória, 2011. Disponível em: http://www.historiaindiana.blogspot.com/ BUENO, André. Sabedorias do Oriente. Rio de Janeiro, 2016. CONFÚCIO. Analectos. São Paulo: Martins Fontes, 2009. [trad. Simon Leys] CONFÚCIO. Diálogos. São Paulo: Ibrasa, 1996. [trad. Anne Cheng] COOMARASWAMY, Ananda. O Pensamento vivo de Buda. São Paulo: Martins, 1968.

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GAER, Joseph. A sabedoria das grandes religiões. São Paulo: Cultrix, 1966. JASPERS, Karl. The origin and goal of History. Yale: Yale University press, 1965. [original: 1949] LAOZI (Lao Tzu, Lao Tsé). Daodejing. São Paulo: Hedra, 2002. [trad. Mário Sproviero] LIN, Yutang. Sabedoria de Índia e China. Rio de janeiro: Pongetti, 1958. McKENZIE, Steve. Como ler a Bíblia. São Paulo: Rosari, 2007. NOVAK, Philip. A sabedoria do Mundo. São Paulo: Nova Era, 2011. RENOU, Louis. Hinduísmo. Rio de janeiro: Zahar, 1969. TOYNBEE, Arnold. Um estudo da História. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [original: 1972] XAVIER, Raul. Milinda Panha. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1972. XAVIER, Raul. Os Upanichadas. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1972. XAVIER, Raul. Os Vedas. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1972. XAVIER, Raul. Textos sagrados das pirâmides. Rio de Janeiro: Livros do Mundo inteiro, 1968.

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CONECTANDO OS SABERES: O ENSINO DE HISTÓRIA POR MEIO DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA NO ENSINO MÉDIO Carla Satler Universidade Regional de Blumenau

O Ensino Médio no Brasil tem sido tema de discussões há anos, para além da autoritária reforma sancionada recentemente, é a identidade e finalidade destes três anos de estudos o ‘nó’ que não se consegue desatar. Se para alguns educadores o Ensino Médio é uma preparação, uma passagem para o Ensino Superior, outros defendem que ele pode ter um fim formativo em si mesmo e, nesse sentido, entende-se que se faz necessário a oferta de opções profissionalizantes para aqueles que não pretendem cursar o Ensino Superior. Nota-se que esta divergência permeia algumas discussões sobre a atual reforma do Ensino Médio, cujo embate está longe de proporcionar uma solução, talvez por pensar uma solução única, mas de fato seja necessário oferecer uma diversidade de opções que atendam aos anseios e necessidades dos estudantes. Aliás, grupo que não teve espaço para exprimir sua opinião sobre o assunto. E quando me refiro a espaço, quero dizer a oportunidade de criticar, opinar, sugerir, ou seja, construir junto uma proposta que também atenda as expectativas geracionais destes estudantes. Devido a esta ‘crise identitária’, considero difícil lecionar no Ensino Médio, de certa forma compartilho com os estudantes a angústia de pensar o seu futuro, afinal como devo planejar as aulas de história? Uma revisão de conteúdo tendo por fim o ENEM e vestibulares, ou focada na análise e debate, com o intuito de proporcionar a formação de um cidadão atuante, crítico em relação ao mundo do trabalho e a sociedade. Alguns poderão dizer que é possível e necessário fazer os dois, mas basta uma leitura rápida nas últimas provas de história do ENEM e dos vestibulares, para se perceber que os assuntos e detalhes solicitados nestes exames estão muito além dos conteúdos elencados nos livros didáticos e nas propostas curriculares estaduais. Ao se ater a detalhes como datas, locais, personagens históricos, quer dizer, favorece muito mais um conteúdo a ser decorado, ao invés de ser debatido e questionado, portanto parte de uma concepção de aulas de história que pouco se relaciona com a formação de estudantes atuantes e críticos. Os responsáveis pela elaboração destas provas parecem ter pouco conhecimento sobre a realidade das salas de aula brasileiras ou mesmo as propostas que temos feito para o ensino desta disciplina. Ou seja, a partir das provas de ingresso no ensino superior que são realizadas, torna-se muito difícil conciliar estes dois ‘modelos’ de ensino médio.

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Como professora universitária, também destaco que esse formato de Ensino Médio que possibilita aos estudantes passarem muito bem nos vestibulares, pouco desenvolve as habilidades e competências necessárias ao estudante universitário. Nesse sentido, o Ensino Médio torna-se uma passagem tão somente, distante das necessidades dos jovens, da universidade e mesmo da sociedade, pois no momento é difícil estabelecer um diálogo com o mundo do trabalho e, mais difícil ainda, com uma percepção mais filosófica da vida. Entendo que para além da mudança da estrutura ou do currículo do ensino médio, é na prática cotidiana que se efetivará uma real possibilidade de ressignificação destes três anos de estudo. Tal análise foi possível após lecionar para o Curso Integrado em Química do IFSC – Jaraguá do Sul/SC, mais especificamente por atuar junto ao Programa de Iniciação Científica ‘Conectando os Saberes’. É preciso confessar que adentrei com desconfiança e certo desconforto no Programa, ainda atrelada a uma concepção de áreas de atuação. E a princípio o ‘Conectando os Saberes’ parecia estar mais vinculado à formação na área de exatas e biológicas, dado ser parte integrante de um curso técnico em química, mas logo foi possível perceber os resultados em textos, provas, apresentação de trabalhos e debates em que alunos e alunas apresentavam argumentos com criticidade, citações e autonomia, que tanto se almeja. É a experiência desta relação entre sala de aula e a iniciação científica que se pretende abordar, como uma possibilidade de repensar o cotidiano do Ensino Médio e tentar desatar este ‘nó’ identitário.

Conectando os Saberes O Programa de Iniciação Científica ‘Conectando os Saberes’ foi desenvolvido primeiramente pelos professores Clodoaldo Machado, Valmor Frantz e Viviane Grim do IFSC-Jaraguá do Sul/SC. [Para maiores informações o site é: https://sites.google. com/site/csifsc/principal]. ‘Conectando os Saberes’ é uma unidade curricular do Curso Técnico Integrado em Química, cujo principal objetivo é proporcionar aos alunos e alunas vivenciar a experiência da pesquisa científica. Da 1ª a 6ª fase todos estão envolvidos no desenvolvimento de uma pesquisa. As turmas são divididas em seis grupos de pesquisa com seis alunos e alunas em média, sendo que na primeira e segunda fases desenvolvem pesquisas relacionadas ao tema ‘Sociedade e Meio Ambiente’ na terceira e quarta fases novamente ‘Sociedade e Meio Ambiente’ e ‘A Química e a Vida’ e, por fim, nas quinta e sextas fases o tema é ‘A Química e a Indústria’, voltado para as especificidades do curso técnico. Nas fases ímpares são escolhidos temas e orientadores, assim como se dedica à elaboração do projeto de pesquisa e, nas fases pares é o desenvolvimento da pesquisa e escrita do relatório, com exceção da sexta fase, em que artigo científico substitui o relatório final [Projetos e Relatórios do 1º Ano podem ser lidos no site: https://sites.google.com/

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site/csifsc/fases1e2]. Ao final de cada semestre há bancas de qualificação dos projetos e finalização das pesquisas, portanto, a cada ano as alunas e alunos passam por um processo de vivência da pesquisa científica semelhante ao universitário, o que lhes possibilita desenvolver a ‘alfabetização científica’ [Slides de apresentação de um projeto de 1º Ano: https://www.dropbox.com/s/i43fdb2xs5dcly2/CS%20-%20Dist%C3%BArbios%2 0do%20Sono.pptx?dl=0]. É possível definir alfabetização ou letramento científico como a capacidade de usar os conceitos, habilidades e valores científicos para tomar decisões cotidianas, distinguindo-os entre evidências científicas e opiniões pessoais, assim como reconhecer os principais conceitos, hipóteses e teorias da ciência e está apto a usá-los. (National Science Teachers Association - EUA, 1982 apud ROSA; MARTINS, 2017) O Programa de Iniciação Científica ‘Conectando os Saberes’, possibilitou aos alunos e alunas um Índice de Letramento Científica* – ILC - de 70,9% em nível 4 ao fim da sexta fase do Ensino Médio, e na primeira fase 82,3% alcançaram um nível intermediário, um ótimo resultado ao compararmos com os resultados da pesquisa do Instituto Abramundo (2014) sobre o ILC brasileiro em que “Mais da metade (52%) daqueles que cursaram ou estão cursando o ensino médio encontram-se no nível 2 enquanto a proporção de pessoas com nível 3 é de 29% e apenas 4% atingem o nível 4.[...] O índice torna clara a dificuldade de grande parte dos entrevistados em realizar tarefas simples: 43% deles declararam ter problemas para compreender gráficos e tabelas, enquanto 48% acham difícil interpretar rótulos de alimentos.” (ABRAMUNDO apud VOSS, 2014) A preocupação com a ‘alfabetização científica’ nas ciências exatas e biológicas é muito semelhante nas ciências humanas e das linguagens no que diz respeito à interpretação de texto, leitura crítica da história, da sociedade, de imagens, dos meios de comunicação, assim como os alunos e alunas desenvolverem a habilidade de problematização da realidade e do processo como é construído o conhecimento histórico. Como dito anteriormente, as duas primeiras fases do Programa são dedicadas às pesquisas sobre ‘Sociedade e Meio Ambiente’, em que geralmente estão sob à orientação dos professores de História, Geografia, Língua Portuguesa, Sociologia, Filosofia, Biologia, assim como profissionais técnicos da área da Psicologia, Assistência Social e Pedagogia. É nessa etapa que conseguimos pôr em prática o ensino da História por meio da pesquisa, e permitir que os estudantes construam criticamente sua interpretação dos fatos estudados a partir da pesquisa de campo e de uma bibliografia elencada, pois se entende que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção.” (FREIRE, 1996, p.12) Mas por mais que tenhamos ciência da afirmação de Paulo Freire acima, ou seja, que o ensinar deve superar a rotina de professores ensinando e alunos/alunas aprendendo, as dificuldades do cotidiano e da infraestrutura escolar, a formação dos professores, entre outras situações, por vezes conduz as aulas à mera transferência, mesmo que se desenvolvam formas

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muito criativas de transmissão de conhecimento, muitas vezes elas não modificam o papel de passividade imposto aos alunos e alunas. Ao definirem um tema, escreverem um projeto e depois desenvolverem a pesquisa bibliográfica, documental e de campo alunos e alunas estão atuando como protagonistas da construção do seu conhecimento. Para além da obrigação escolar, estes estudantes estão comprometidos com a investigação, com o saber que escolheram aprofundar e estão instigados a compreender a realidade da cidade em que residem. A pesquisa científica permite aos estudantes acessar o que Bateson designou como terceiro nível da educação** em que é possível “desmontar e reorganizar a estrutura cognitiva anterior ou desembaraçar-se totalmente dela, sem um elemento substituto.” (BATESON apud BAUMANN, 2013) Além dos estudantes, o curso e a escola estão comprometidos com o Programa ‘Conectando os Saberes’, pois há uma programação de desenvolvimento que envolve encontros quinzenais no turno de aula, nos quais os/as orientadores e demais professores auxiliam na elaboração do projeto ou da pesquisa, na semana entre estes encontros há um encontro de orientação no horário de contraturno dos estudantes, e claro, a pesquisa de campo ou laboratório no qual eles trabalham prioritariamente no grupo, e por fim, a escrita do relatório ou artigo. O ‘Conectando os Saberes’ mobiliza a escola e educadores, pois a cada etapa alunos e alunas têm novos desafios pessoais para compreender o pensamento e a metodologia científica. Se no primeiro ano é a primeira pesquisa que realizam e compreender, elaborar e executar objetivos exigem exercícios de reorganização dos saberes, a partir do segundo ano alguns acrescentam as experiências laboratoriais e aprimoramento da pesquisa de campo, fato que faz com que compreendam como se dá a construção do conhecimento. As pesquisas são interdisciplinares, pois entre os temas escolhidos os grupos precisam do auxílio dos professores de diversas áreas, destaco alguns temas do primeiro ano para uma melhor compreensão: ‘Como são Construídos os Padrões de Beleza na Infância a partir dos Contos de Fadas’, ‘Distúrbios Alimentares em Jovens de Jaraguá do Sul: Suas Consequências Sociais’, ‘Distúrbios do Sono em Alunos e Professores do IFSC - Jaraguá do Sul/SC: causas e consequências’, ‘Acessibilidade Infraestrutural para Pessoas com Deficiência Física nas Escolas Públicas de Ensino Fundamental e Médio de Guaramirim/SC’, ‘Expressões da Violência Contra a Mulher Estudante do IFSC - Jaraguá Do Sul/SC’, ‘O Impacto Sociocultural da Imigração de Haitianos para Jaraguá do Sul/SC’, ‘A Música e sua Relação com a Qualidade de Vida dos Idosos de Jaraguá do Sul/SC: um Estudo de Caso no Centro de Convivência’, ‘Um Estudo Sobre a Arborização Urbana em Jaraguá do Sul’, entre outros; observem que apesar da diversidade, todos precisam de uma historicização para a análise dos conceitos que perpassam a pesquisa, compreender as descontinuidades ao longo da história e as interpretações conceituais usadas no tempo presente. Tal processo exige dos professores uma atitude de questionamento constante, orientadores são aqueles que perguntam, instigam, questionam os documentos pesquisados, a mídia, etc., jamais oferecem respostas prontas, apontam bibliografias que ajudem a reavaliar

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os dados da pesquisa de campo, sobretudo, quando estes trazem resultados muito diferentes das expectativas dos estudantes-pesquisadores. Quer dizer, alunos e alunas são motivados a repensarem seus saberes e a realidade. Muitas vezes a pesquisa de campo traz resultados bem distintos aos esperados pelos estudantes, fato bem interessante, pois é preciso reler e acrescentar bibliografia, além de superar o senso comum na forma de avaliar a cidade e a história. Segundo a aluna Poliana Telles, atualmente na quarta fase do curso: “Do meu ponto de vista, o Conectando fornece uma percepção mais séria e mais clara a respeito do que realmente é o estudo. A pesquisa científica e a organização do pensamento para direcionar o projeto de forma que alcance o objetivo proposto são habilidades que desenvolvemos, levamos conosco e colocamos em prática em todas as outras disciplinas. A capacidade de associar o resultado de uma observação com a bibliografia utilizada ao longo do projeto também representa outro resultado desse treinamento acadêmico. O Conectando nos ensina como fazer ciência e como utilizá-la, e principalmente, entender que o que aprendemos nas aulas, seja de Física, Química, História ou Sociologia, chegaram até nós da mesma maneira, baseados nos fundamentos da pesquisa e do estudo.” Pedro Demo defende que as atividades de ‘sala de aula’ devem ser substituídas por pesquisa, particularmente entendo que as atividades devem ser complementares. Pois se a forma como vem sendo trabalhado os conteúdos no Ensino Médio tem se mostrado desconectado com a realidade, ensinar apenas por meio do desenvolvimento de pesquisas pode ser limitante aos conteúdos de cada tema selecionado. Por meio da metodologia desenvolvida no ‘Conectando os Saberes’ foi possível fazer com que os estudantes compreendam melhor os conteúdos selecionados para estudarem, mesmo que não estejam fazendo uso naquele momento de tal assunto, sabem que no decorrer de sua vida particular ou profissional poderão fazer uso desses conhecimentos, pois sabem onde eles serão aplicados no cotidiano ou profissionalmente. Nas aulas de História destacam-se a análise crítica das fontes documentais, em que os estudantes passaram a pôr em xeque os meios de comunicação e, posteriormente, outros documentos, pois compreendem o processo de construção de uma ‘fonte de pesquisa’. E, ao exercitarem a pesquisa de campo, puderam perceber como a história de suas cidades, seus heróis foram construídos, entender que por vezes os fatos foram descritos pelos ‘vencedores’, portanto uma nova leitura precisa ser realizada. Tal atitude diante dos fatos históricos permanece presente nas discussões sobre história geral e do Brasil, algo que em muitos momentos permitiu avançar as discussões em sala de aula. O entrelaçamento entre as pesquisas e o conteúdo estudado em sala de aula é o aspecto em que o ‘Conectando os Saberes’ demonstra o maior diferencial, pois os conteúdos deixam de ser um rol de conteúdos que os estudantes não entendem o porquê de estudarem, para se tornarem base fundamental para a pesquisa. Sobre essa relação Milena Leithold, também aluna da 4ªfase, comenta: “Os conteúdos estudados em sala de aula deixaram de ser algo que você ‘precisa saber pra tirar

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notas boas’ e passaram a ser informações, conhecimentos valiosos que passei a colocar e/ou perceber no meu cotidiano, criando uma relação entre o que a gente aprende na escola e o que acontece no mundo. Quanto à forma de estudar, o Conectando Saberes alimentou muito a minha curiosidade, além de ajudar a aprimorar minhas escolhas de leituras para pesquisa; no que anteriormente eu abria o primeiro site que via pela frente, hoje sou muito mais seletiva com as fontes de informações e já virou corriqueiro ler artigos que, antes, não leria.” No IFSC-Jaraguá do Sul não há nenhum preparo para o vestibular, como aulas de revisão e similares, entende-se que o objetivo do Curso Técnico e da Instituição em si é formar profissionais nas áreas dos cursos, sendo que no quarto ano os alunos e alunas têm o estágio profissional e o Projeto Integrador, um trabalho de conclusão de curso. Mas destaca-se que no ano 2016 os estudantes de Jaraguá do Sul obtiveram 58% de aprovação – em relação ao número de inscritos/aprovados – no vestibular da UFSC, o maior índice do estado de Santa Catarina, no ano anterior foram 61%. Foi muito superior às escolas particulares que dedicam o terceiro ano do ensino médio a uma exaustiva rotina de preparação e treino para os vestibulares. O índice de 2015 levou a uma série de questionamentos, curiosidade de pesquisadora, afinal por que alunos e alunas que não tiveram aulas ou cursinhos preparatórios se destacaram desta forma neste vestibular? Foi no processo de coordenação das atividades do ‘Conectando os Saberes’ da Primeira Fase, orientação de diversas pesquisas que foi possível perceber o quanto se torna mais apurada a interpretação de texto e realidade dos estudantes. Habilidades e competências que são amplamente usadas em sala de aula e, consequentemente, nas provas vestibulares. Para além de uma reforma curricular, carga horária, flexibilização do currículo, como foi imposto pelo atual MEC, é o cotidiano escolar do Ensino Médio que precisa ser repensado. O exemplo exposto aqui é uma das possibilidades, outras podem ser criadas e desenvolvidas de forma a ressignificar estes três anos de estudos. Essa nova relação com o conteúdo aprendido possibilita aulas mais participativas, assim como resultados melhores nas avaliações, visto que a capacidade de interpretação e argumentação se aprimora. E, novamente lembrando Paulo Freire: “fazendo pesquisa educo e estou me educando (...), pesquisar e educar se identificam em um permanente e dinâmico movimento!” Para os professores a orientação de projetos de pesquisa também se torna um contínuo processo de formação e aprendizado, portanto implementar a iniciação científica no ensino médio traz resultados para instituição de ensino como um todo.

Referências BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Ricardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 12ª. Ed. São Paulo, Paz e Terra, 1996. INSTITUTO ABRAMUNDO. Letramento Científico um Indicador para o Brasil (2014) http://www.abramundo.com.br/experimenta/assets/downloads/LetramentoCientifi co.pdf MACHADO, Adilbênia Freire. Ancestralidade e Encantamento como inspirações formativas: filosofia africana mediando a história e cultura africana e afro-brasileira. Dissertação (mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, 2014. ROSA, Katemari; MARTINS, Maria Cristina. O que é Alfabetização Científica, Afinal?https://www.academia.edu/1618987/O_QUE_%C3%89_ALFABETIZA% C3%87%C3%83O_CIENT%C3%8DFICA_AFINAL VOSS, Cristian. A Pesquisa Como Metodologia de Ensino: Um Estudo do Programa Conectando Saberes e suas aproximações com a Alfabetização Científica. Jaraguá do Sul: IFSC, 2014. (Trabalho de Conclusão de Curso em Licenciatura em Ciências da Natureza)

Notas *Foram estabelecidos quatro diferentes níveis de letramento: Nível 1 – Letramento não-científico: Descrição: Localiza, em contextos cotidianos, informações explícitas em textos simples (tabelas ou gráficos, textos curtos) envolvendo temas do cotidiano (consumo de energia em conta de luz, dosagem em bula de remédio, identificação de riscos imediatos à saúde), sem a exigência de domínio de conhecimentos científicos. Os indivíduos classificados no Nível 1 revelam ter domínio das habilidades de reconhecimento e localização de informações técnicas e/ou científicas apresentadas em suportes textuais simples (gráficos e tabelas simples, textos narrativos curtos) envolvendo temáticas frequentemente presentes em situações cotidianas. Nível 2 – Letramento científico rudimentar: Resolve problemas que envolvam a interpretação e a comparação de informações e conhecimentos científicos básicos, apresentados em textos diversos (tabelas e gráficos com mais de duas varáveis, imagens, rótulos), envolvendo temáticas presentes no cotidiano (benefícios ou riscos à saúde, adequações de soluções ambientais). No Nível 2, os indivíduos revelam a capacidade de resolver problemas cotidianos que exigem o domínio de linguagem científica básica, por meio da interpretação e da comparação de informações apresentadas em diferentes suportes textuais (gráficos com maior número de variáveis, rótulos, textos jornalísticos, textos científicos, legislação)

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com diversas finalidades. Dentre os conhecimentos científicos básicos exigidos podem ser citados o uso e a interpretação de medidas de tendência, a compreensão de fenômenos naturais e impactos ambientais. Nível 3 – Letramento científico básico: Elabora propostas de resolução de problemas de maior complexidade a partir de evidências científicas apresentadas em textos técnicos e/ou científicos (manuais, esquemas, infográficos, conjunto de tabelas) estabelecendo relações intertextuais em diferentes contextos. No Nível 3, os indivíduos apresentam a capacidade de elaborar propostas para resolver problemas em diferentes contextos (doméstico ou científico) a partir de evidências técnico e/ou científicas apresentadas em diferentes suportes textuais (infográficos, conjunto de tabelas e gráficos com maior número de variáveis, manuais, esquemas) com finalidades diversas. A construção de argumentos para justificar a proposta apresentada exige neste nível o estabelecimento de relações intertextuais e entre variáveis. Nível 4 – Letramento científico proficiente: Avalia propostas e afirmações que exigem o domínio de conceitos e termos científicos em situações envolvendo contextos diversos (cotidianos ou científicos). Elabora argumentos sobre a confiabilidade ou veracidade de hipóteses formuladas. Demonstra domínio do uso de unidades de medida e conhece questões relacionadas ao meio ambiente, à saúde, astronomia ou genética. No Nível 4, os indivíduos são convidados a avaliar e confrontar propostas e afirmações apresentadas em linguagem científica de maior complexidade, envolvendo diferentes contextos (cotidianos e científicos). Para justificar as decisões apresentadas, os indivíduos aportam informações extratextuais para formular argumentos capazes de confrontar posicionamentos diversos (científicos, tecnológicos, do senso comum, éticos) por meio de linguagem relacionada a uma visão científica de mundo. VOSS, Cristian. A Pesquisa Como Metodologia de Ensino: Um Estudo do Programa Conectando Saberes e suas aproximações com a Alfabetização Científica. Jaraguá do Sul: IFSC, 2014. (Trabalho de Conclusão de Curso em Licenciatura em Ciências da Natureza) **Sobre os níveis de educação definidos por Bateson temos: “O nível mais baixo é a transferência de informação a ser memorizada. O segundo, a ‘deuteroaprendizagem’, visa ao domínio de uma ‘estrutura cognitiva’ à qual a informação adquirida ou encontrada no futuro possa ser absorvida e incorporada. Mas há também um terceiro nível, que expressa a capacidade de desmontar e reorganizar a estrutura cognitiva anterior ou desembaraçar-se totalmente dela, sem um elemento substituto. Esse terceiro nível foi visto por Bateson como um fenômeno patológico, antieducativo mesmo. [...] Creio que essa é uma das mais notáveis modificações no ambiente da educação, e potencialmente também em suas metodologias – e, com efeito, no próprio significado do conhecimento e na forma de sua produção, distribuição, aquisição, assimilação e utilização.” BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Ricardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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Apresentações de Pesquisa dos Grupos de Primeira Fase

Bancas Formadas por Professores e Técnicos do IFSC

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Participação em Feiras de Ciências (Em geral, são as pesquisas do segundo e terceiro ano que participam devido a temática) Para assistir ao vídeo: http://febrace.org.br/virtual/2017/EXA/268/

Debate e Lançamento do Livro: Jovens, Política(s) e Cidade(s) Atividade complementar ao ‘Conectando os Saberes’

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AS RELIGIÕES E O ENSINO DA HISTÓRIA Carlos André Silva de Moura O objetivo do texto consiste em apresentar algumas propostas que possam contribuir com os debates metodológicos sobre a História das Religiões, as suas principais referências, os seus objetos e objetivos de pesquisa e as contribuições para o ensino da História. Destacamos que não temos a intenção de formular um domínio teórico sobre o tema, mas nos concentramos em apresentar uma forma de se estudar os processos históricos que envolvem as questões religiosas. Neste sentido, inicialmente, apontamos um percurso da História Cultural, fundamental para a compreensão dos estudos sobre as religiões. Em sequência, discutimos alguns pontos sobre a Escola Italiana de História das Religiões, dialogamos sobre a expansão dos objetos de pesquisa, que atualmente são associados como opção para o estudo das religiões e apresentamos algumas discussões na relação da História das Religiões com o ensino da História. A perspectiva de uma História Cultural das Religiões pode ser compreendida a partir das suas conexões com as consequências da chamada “virada cultural”, notadas, sobretudo, a partir da década de 1970, quando grupos de historiadores questionavam esquemas teóricos herméticos e generalizantes, com a intenção de abordar os fenômenos culturais mais específicos em seus recortes temporais e espaciais. [As questões teóricas e metodológicas não foram os únicos aspectos importantes que conduziram os novos estudos da história das religiões. Karina Bellotti demonstrou a importância de alguns eventos históricos, a exemplo da independência dos Estados Unidos da América, o processo de secularização em vários países, a chamada “concorrência” religiosa, dentre outros, para a elaboração de novas abordagens sobre as religiões e suas relações com a cultura, sociedade e o cotidiano. (Cf. BELLOTTI, 2011)]. Neste sentido, focaram-se as distinções de natureza cultural em detrimento das explicações sociais, políticas e econômicas mais gerais. Isso significa dizer que ocorreu uma mudança na percepção de situações cotidianas que hoje são tratadas pelo substantivo cultura e não mais por sociedade (BURKE, 2008, p. 07 – 11). A partir do exposto, as relações econômicas e sociais não seriam anteriores às culturais que, por sua vez, não estariam determinadas por aquelas. De tal modo, compreendemos que os campos econômicos e sociais também são locais de práticas e produções culturais, de fundamental importância para o trabalho dos pesquisadores que se debruçam sobre os seus objetos com abordagens teóricas voltadas para o cultural. Assim sendo, a História Cultural das Religiões aproxima-se da perspectiva analítica proposta por Michel De Certeau, quando se utiliza da metáfora do

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urbanista para nos auxiliar na compreensão da atuação do cultural sobre o social. Para o autor: As maneiras de utilizar o espaço fogem à planificação urbanística: capaz de criar uma composição de lugares, de espaços ocupados e espaços vazios, que permitem ou impedem a circulação, o urbanista é incapaz de articular essa racionalidade em concreto com os sistemas culturais, múltiplos e fluidos, que organizam a ocupação efetiva dos espaços internos (apartamentos, escadarias etc.) ou externos (ruas, praças, etc) e que debilitam com vias inumeráveis. Ele pensa em uma cidade vazia e a fabrica; retira-se quando chegam os habitantes, como diante dos selvagens que perturbarão os planos elaborados sem eles. Ocorre o mesmo com as maneiras de viver o tempo, de ler os textos ou de ver as imagens. Aquilo que uma prática faz com signos préfabricados, aquilo que estes se tornam para os usuários ou os receptores, eis algo essencial que, no entanto, permanece em grande parte ignorado (DE CERTEAU, 1995, p. 233 – 234). Para Michel De Certeau, os moradores que ocupam os locais planejados pelo urbanista impõem práticas culturais que reconstroem ou alteram o modo de vida previsto por seu idealizador. Desta forma, os sistemas culturais múltiplos inferem uma lógica própria e impõem uma ação que transforma o plano original. O responsável pelos espaços ocupados não tem a capacidade de controlar as invenções e reinvenções culturais de um grupo específico ou de uma organização social. Nesse sentido, as práticas culturais não apenas refletem as identidades sociais, mas atuam em suas construções. Quando a cultura deixa de ser determinada pelas estruturas materiais, passa a representar um campo maior dentro do qual os objetos de estudo da história passam a ser considerados. Dessa forma, ao entendermos a História Cultural como “uma operação historiográfica que busca, cada vez mais, orientar a sua prática de pesquisa por um ou outro conceito antropológico de cultura” (BENATTE, 2014, p. 62), legitimamos a relação entre este campo historiográfico e a Escola Italiana de História das Religiões que, desde as suas origens no início do século XX, propunha o entendimento das religiões como fenômenos culturais. A esse respeito, destaca-se que, desde a década de 1920, alguns intelectuais na Itália se debruçaram sobre os estudos históricos das religiões, construindo uma tradição sobre a temática no país. A principal proposta destes pensadores se constituía em não reduzir as suas pesquisas a indagações fenomenológicas, como produtos culturais redutíveis (SILVA, 2011, p. 15). Para o desenvolvimento dos estudos científicos sobre as religiões, foi necessária a dessacralização das suas abordagens e do próprio conceito utilizado por seus pesquisadores. Com isso, rompeu-se com uma visão eurocêntrica sobre a religião

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através da estruturação de novas investigações que superavam as compilações e descrição de crenças religiosas (BELLOTTI, 2011, p. 17, 22). A dessacralização das abordagens foi fundamental para as propostas voltadas para o ensino da História, uma vez que se abandonou uma produção de base eclesiástica, com discussões da religião no singular, para se reconhecer a pluralidade do conceito que envolver as religiões. Neste sentido, as temáticas que também debatiam as religiões passaram a ser trabalhada como mais uma construção histórica dentro do conteúdo programático. Com as publicações da revista Studi e Materiali di Storia delle Religione, além das obras do pensador Raffaelle Pettazzoni (1883-1953), tiveram início os debates que marcaram o posicionamento teórico do grupo italiano dedicado aos estudos da história das religiões. Suas propostas tinham como principal argumentação as abordagens históricas, sociais e antropológicas dos eventos religiosos (SILVA, 2011, p. 15). O percurso da Escola Italiana de História das Religiões é longo e, de acordo com Adone Agnolin, advém da influência dos estudos que tinham como referência o Istituto di Studi Storico-Religiosi da Università La Sapienza, na cidade de Roma, com a coordenação do professor Raffaelle Pettazzoni. O método históricocomparativo, proposto por esse intelectual, defendia a natureza humana e cultural dos fatos religiosos. A partir da influência do docente, outros pesquisadores contribuíram com essa abordagem, a exemplo de Ernesto de Martino, Angelo Brelich, Vittorio Lanternari, Dario Sabbatucci, Marcello Massenzio, Paolo Scarpi, Gilberto Mazzoleni e Nicola Gasbarro (AGNOLIN, 2013b, p. 53 – 68). Em decorrência da vinculação com os estudos realizados naquele instituto, criouse a nomenclatura Escola Romana de História das Religiões na cidade de Urbino, em 1973. Hoje o grupo é mais conhecido como Escola Italiana de História das Religiões, congregando pesquisadores que ressaltavam a historicidade das religiões, “[…] dos movimentos religiosos enquanto produtos culturais e redutíveis à razão histórica”. Tais propostas estavam na intercessão da história com a antropologia, desconsiderando as análises des-historicizantes e isoladas teoricamente (SILVA, 2011, p. 15; MASSENZIO, 2005, p. 19 – 21). As intercessões com essa escola apontam para o estudo das religiões a partir de um posicionamento particular da História Cultural. O que também significa pensá-las como partes integrantes de culturas específicas, desenvolvidas em contextos temporais e espaciais precisos, os quais participam da construção de determinadas realidades, uma vez que atuam nas formas de imaginar ou representar as sociedades construídas, também, através das suas práticas. Para Karina Bellotti, as práticas culturais tecidas no cotidiano são as principais responsáveis pela formação das identidades individuais e coletivas, em detrimento das ortodoxias e dos preceitos oficiais de cada religião. Tais estruturas seriam apropriadas e modificadas pelos sujeitos históricos que, através das maneiras de

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absorver as suas ortodoxias religiosas, resignificam e recriam as religiões a partir das suas experiências histórico-culturais específicas (BELLOTTI, 2011, p. 30 – 34). São as práticas culturais ou as maneiras encontradas, por cada grupo ou contexto, de vivenciar suas religiões que tornam suas experiências únicas e inéditas, pulverizando, assim, a religião como objeto de estudo. Isso ocorre pela possibilidade de se observar uma distinta ocorrência de elaboração das ortopráticas que, segundo Nicola Gasbarro, constituem-se em um conceito contraposto ao de ortodoxia no estudo das religiões, analisando as práticas e exercícios do culto mais que os dogmas e os sistemas de crenças (GASBARRO, 2006, p. 71). Ainda para o autor, a fé e as suas expressões não podem ser consideradas apenas como resultados das ortodoxias religiosas. Para a condução das investigações históricas, estes aspectos devem ser compreendidos como das ortopráticas sociais que são oriundas das diversas configurações culturais (GASBARRO, 2013, p. 85). São, portanto, as ortopráticas, invenções e reinvenções em termos de práticas religiosas. O seu conceito abrange as regras rituais e as “ações inclusivas e performativas da vida social” e das artes de fazer cotidianas (Cf. GASBARRO, 2006; GASBARRO, 2014, p. 190). Com essa perspectiva de análise, distanciamonos das classificações atribuídas apenas ao fenomenológico, pois entendemos o processo a partir da sua historicidade. Além disso, amplia-se o campo de estudos da história das religiões que deixa de abranger apenas a investigação das instituições religiosas, passando à observação das práticas culturais ocorridas não necessariamente em seu interior, mas em variados outros espaços. Os estudos sobre a religião ultrapassaram os muros dos redutos eclesiásticos, com abordagens sobre os diálogos culturais, os símbolos ou a consideração do sagrado e do profano como elaborações históricas, não se resumindo a um enfoque teológico. O cristianismo deixou de se configurar como único elemento explicativo, fundamental para a compreensão das práticas sociais e das novas abordagens conceituais sobre a religião (BELLOTTI, 2011, 16 – 22). Para Eliane Moura da Silva, estudar historicamente os movimentos e os pensamentos religiosos significa debater teoricamente as possíveis abordagens dentro desta área de estudo. Por isso, compreendemos que é a partir da História Cultural que conseguimos analisar os fenômenos religiosos em suas construções, com a elaboração de uma forma de pensá-los e uma maneira pela qual podem ser compreendidos (SILVA, 2010, p. 11, 13). Com essa abordagem, também evitamos as generalizações, uma vez que se alarga e pluraliza o conceito de religião, com a compreensão das representações que aspiram à universalidade determinada por aqueles que as elaboram. Vale salientar que cada cultura constitui sua própria ortoprática, construída por diferentes sujeitos que, em suas zonas de contato, atuam a partir das relações de poder

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assimétricas (SILVA, 2012). Ao participarem de tal construção social, as religiões atuam na elaboração das identidades culturais que, por suas vezes, podem ser compreendidas como vias de “mão dupla”, resultantes de complexas hibridizações (HALL, 2003, p. 31) produzidas junto aos fenômenos de comunicação religiosa, notados como vetores de produção cultural (GASBARRO, 2014, p. 191 – 192) onde, para cada objeto de estudo desse domínio, é possível afirmar que determinada cultura forma historicamente os seus sistemas religiosos (SILVA, 2011, p. 21). O estudo das religiões não contribui apenas para um novo olhar no conteúdo programático das instituições de ensino, mas colabora com a formação de novos conceitos cotidianos. Com uma abordagem no plural, temos a oportunidade de “[…] compreender o outro atrás de seus véus e templos, rituais e orações”. Tornase também um exercício de tolerância, ponto fundamental em sala de aula, de respeito à história e a memória de cada cultura (SILVA, 2015, p. 206). Dificilmente as religiões aparecem como tema principal nos livros didáticos de História. Assuntos como Reforma Protestante, Contrarreforma Católica, judaísmo, islamismo, em grande medida estão alinhados a outras temas. No entanto, tais práticas estão presentes no cotidiano dos estudantes e não podem ser debatidos de modo generalizante. Questões como “terrorismo”, intolerância religiosa, preconceitos culturais, mídia e religião, devem ocupar um lugar de destaque nas aulas de história. Temas como estes necessitam de um debate aprofundado, conceitual e científico, que não tenha espaço para discursos apologéticos. Para isso, é necessário repensar um trabalho inter / trans / pluridisciplinar com a construção das identidades, das memórias coletivas, das experiências místicas e culturais (SILVA, 2015, p. 213, 214). Com base nas pesquisas voltadas para a História Cultural, as religiões não são compreendidas enquanto essencialismos ou fenômenos inerentes à determinada “condição humana”, segundo a qual, em razão de sua finitude, os grupos humanos elaborariam, independentemente das diferentes épocas e lugares, crenças sobre a dimensão supra-histórica da realidade. Tais ideias da escola fenomenológica, que tinha como principal expoente Mircea Eliade (BELLOTTI, 2011, p. 21 – 23), foram questionadas pelos pressupostos da Escola Italiana das Religiões. As propostas da escola italiana têm como diferencial possibilitar aos investigadores e docentes que se utilizam desta corrente, compreender o seu objeto de trabalho em um universo sociocultural diverso. Para isso, é necessária “a valorização das religiões como produtos culturais historicamente determinados”, com abordagens que permitam “análises e comparações entre formações religiosas específicas” (SILVA, 2010, p. 14). Por isso, é possível optar pela designação de religiões no lugar do termo religião. O conceito no singular apresenta a concepção de um modelo único, enquanto o plural apresenta a sua multiplicidade (AGNOLIN, 2013a, p. 43 – 45; AGNOLIN, 203b).

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Como objeto de pesquisa, as religiões devem ser abordadas em função das culturas onde se desenvolvem historicamente. Uma vez que não são consubstanciais ao homem, as suas diferentes práticas também impõem a necessidade de abordá-las em suas diversidades historicamente fundadas (AGNOLIN, 2013a, p. 39 – 48). Segundo Rafaele Pettazzoni, uma das principais especificidades deste ramo de pesquisa se traduz em perceber que “[…] toda religião é produto histórico, culturalmente condicionado pelo contexto e, por sua vez, capaz de condicionar o próprio contexto em que opera” (MASSENZIO, 2005, p. 149). Sendo assim, a diversidade de religiões depende da diversidade das histórias. O método proposto por Raffaele Pettazzoni é conhecido como histórico-comparativo e defende a natureza humana e cultural dos fatos religiosos, com o seu estabelecimento na contramão da fenomenologia, que procurava leis gerais e semelhanças formais (AGNOLIN, 2013b, p. 53 – 68). Portanto, uma vez que as religiões operam dentro dos processos relativos às culturas onde emergem, pode-se afirmar que, em suas especificidades, são sempre inéditas, contradizendo a ideia de que existiria uma essência religiosa inerente à condição humana. As religiões passam a ser pensadas como frutos da necessidade de “diferenciar e determinar as peculiaridades precípuas de cada processo histórico, para entender, também, além das texturas fundamentais comuns, as irrepetíveis soluções criativas concretas, historicamente realizadas” (MASSENZIO, 2005, p. 25). Os docentes e pesquisadores que trabalham com os fenômenos religiosos devem se manter atentos ao “[…] uso e sentido dos termos que em determinada situação geram crenças, ações, instituições, condutas, mitos, ritos, etc”. Partindo deste princípio, é necessário pensar a religião como categoria conceitual e metodológica, aberta a mudanças culturais, históricas e sociais (SILVA, 2011, p. 18). Com as abordagens da História Cultural das Religiões, sobretudo as que têm como base as propostas da Escola Italiana de História das Religiões, surgiram novos problemas e inovadoras abordagens. Entre tais propostas, destacamos o método comparativo, que tem a possibilidade de apresentar novas questões, além de contribuir com o repensar de temáticas já estabelecidas (Cf. SOURCE, 1959). De tal modo, tem-se a possibilidade de se desenvolver analogias, identificar semelhanças e diferenças entre as realidades estudadas, perceber as variações de um mesmo exemplo ao elaborar as suas conexões (BARROS, 2014, p. 17). Os modelos das culturas políticas, as variedades dos catolicismos no Continente Americano ou na Europa, as missões cristãs na África ou Ásia, as ações dos intelectuais no meio eclesiástico são alguns exemplos de unidades comparativas que podem ser elaboradas ou repensadas a partir das propostas da História Cultural das Religiões em sala de aula. Para Raffaele Pettazzoni, o cristianismo para o crente é incomparável, mas como produto histórico pode ser confrontado.

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Se o entendermos como evento único e excepcional, o colocaremos fora da história, mas visto no plural torna-se um elemento de estudo. A comparação favorece o advento da forma supranacional da religião, observando a produção dos elementos individuais que visam transformar a religião em um modelo homogêneo e universal (SOURCE, 1959). Para Karina Bellotti, atualmente, os estudos que têm como base a História das Religiões abordam os diálogos “[…] entre essas fronteiras antagônicas e entre expressões religiosas individuais/coletivas e instâncias sociais diversas” (BELLOTTI, 2011, p. 41). Neste sentido, temáticas que se valeram de aspectos interdisciplinares ganharam maior incidência nos debates entre os historiadores, sociólogos, antropólogos e os demais ramos do conhecimento. Os debates que enfatizaram questões como mídia e religião (BELLOTTI, 2004; BELLOTTI, 2010), comunicação e religião, os fundamentalismos (SILVA, 2006), culturas visuais religiosas, cultura material e imaterial religiosa, gênero e religião (SOUZA, 2006; SOUZA, 2004), ensino e religião (SILVA, 2015), os diálogos inter-religiosos, as afinidades entre a religião e a política, as relações entre religião e o mercado de entretenimento, dentre outros assuntos, fortaleceram-se nos espaços de produção. Tal realidade não se percebe apenas pelas novas abordagens teóricas e metodológicas, mas pela configuração de novas possibilidades de pesquisas e o surgimento de novas demandas em sala de aula, pelos novos materiais e questionamentos que os historiadores se fizeram e ainda fazem sobre o conceito de religião e religiosidades. Ao estudarmos a religião, com o olhar da História Cultural, não desejamos limitar ou criar um conceito filosófico sobre o tema, mas demonstrarmos as diferentes maneiras como os indivíduos compreendem o religioso e o vivenciam em um determinado momento histórico e cultural (BENATTE, 2014, p. 65). A História Cultural das Religiões amplia os horizontes metodológicos, com ênfase no caráter plural do conceito de religião e nas relações históricas dessa com as culturas das quais participa.

Referências AGNOLIN, Adone. História das Religiões: Teoria e Método. In. (Re)conhecendo o Sagrado: reflexões teórico – metodológicas dos estudos de religiões e religiosidades. São Paulo: Fonte Editorial, 2013a. AGNOLIN, Adone. História das Religiões. Perspectiva histórico-comparativa. São Paulo: Paulinas, 2013b. BARROS, José D’Assunção. História Comparada. Petrópolis: Vozes, 2014.

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BELLOTTI, Karina Kosicki. “Delas é o Reino dos Céus” – Mídia evangélica na cultua pós-moderno do Brasil (anos 1950 – 2000). São Paulo: Annablume / FAPESP, 2010. ______. História das Religiões: Conceitos e debates na era contemporânea. História: Questões & debates, Curitiba, p. 13 – 42, n. 55, UFPR, 2011. ______. Mídia, Religião e História Cultural. Rever, São Paulo, p. 01 – 05, v. 04, 2004. BENATTE, Antonio Paulo. A História Cultural das Religiões: contribuições a um debate historiográfico. In. SILVA, Eliane Moura da; ALMEIDA, Néri de Barros (Org.). Missão e Pregação: a comunicação religiosa entre a História da Igreja e a História das Religiões. São Paulo: FAP – UNIFESP, 2014. BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2008. DE CERTEAU, Michel. A cultura no plural. Campinas: Editora Papirus, 1995. GASBARRO, Nicola. A modernidade ocidental e a generalização de “religião” e “civilização”: o agir comunicativo das missões. In. SILVA, Eliane Moura da; ALMEIDA, Néri de Barros (Org.). Missão e Pregação: a comunicação religiosa entre a História da Igreja e a História das Religiões. São Paulo: FAP – UNIFESP, 2014. ______. Missões: A Civilização Cristã em Ação. In. MONTERO, Paula. Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. ______. Religione e/o Religioni? La sfida dell’antropologia e della comparazione storico-religiosa. In. MARANHÃO Fº., Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). (Re)conhecendo o Sagrado: reflexões teórico – metodológicas dos estudos de religiões e religiosidades. São Paulo: Fonte Editorial, 2013. HALL, Stuart. Da diáspora - Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. MASSENZIO, Marcello. A História das Religiões na Cultura Moderna. São Paulo: Hedra, 2005. SILVA, Eliane Moura da. “Os Anjos do Progresso no Brasil”: as missionárias protestantes americanas (1870 – 1920). Rever. São Paulo, p. 103 – 126, nº. 1, 2012. ______. Estudos de Religião para um Novo Milênio. In. KARNAL, Leandro (Org.). História na Sala de Aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2015.

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GÊNERO E ENSINO DE HISTÓRIA: ENCARANDO O ROSTO DA HUMANIDADE Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski Entre meus livros prediletos está a obra de Bonnie Smith, ‘Gênero e História: homens, mulheres e a prática histórica’ (2003). A autora, ao longo de quase quinhentas páginas, discorre sobre como a escrita da história se tornou masculina por tradição. Escreve sobre as mulheres que eram consideradas historiadoras amadoras e foi com esse livro que tomei conhecimento de algumas autoras, como, por exemplo, Germaine de Stäel, escritora do fim do século XVIII, que só agora teve uma obra traduzida para o português (STÄEL, 2016). Mary Wollstonecraft também teve seu excelente texto, ‘Reivindicação dos direitos da Mulher’, publicado em português em 2016. Smith (2003, p. 156) argumenta que “as biografias dos grandes historiadores homens – aqueles que escreveram sobre política – ajudam a explicar como passamos a exaltar o historiador homem e a menosprezar ou até mesmo suprimir a obra histórica das mulheres”. Demorou para que a escrita das mulheres fosse reconhecida. Demorou para que as mulheres fossem reconhecidas como sujeitos da história. Os livros didáticos de história ainda dedicam pouco espaço para a ação das mulheres na história, quando aparecem são menosprezadas, estão apenas em figuras, em quadros complementares, como se fossem anexos da história ou como personagens secundárias, por exemplo, ao apresentar Anita Garibaldi a definem simplesmente como a esposa de Giuseppe (ESTACHESKI, 2016). Os programas das diferentes disciplinas nos cursos de graduação e pós-graduação ainda trazem uma maioria de autores masculinos e isso não quer dizer que mulheres não escreveram sobre os temas, mas que muitas ainda não são conhecidas ou reconhecidas. Cada espaço conquistado é fruto de um processo de luta. Não foi simples e nem gratuito o reconhecimento de muitas autoras. Antes disso, não foi fácil alcançar o direito de ingresso nas escolas e depois nas universidades, assim como o aparecimento nos livros escolares como partícipes ativas de eventos históricos. E ainda há muito a conquistar. Se houve e ainda há distinção entre o trabalho de homens e mulheres na prática histórica, é porque houve e ainda há relações desiguais de gênero em nossa sociedade. Essa relação entre um passado de discriminação e um presente de conquistas não pode nos conduzir a uma ideia de evolução que, por vezes, pode parecer estável ou inevitavelmente progressiva. Turini faz uma interessante reflexão a esse respeito em seu texto ‘A crítica da história linear e da ideia de progresso’ (2004). Não é possível pensar a história como um caminhar de um passado difícil para um

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futuro inexoravelmente melhor. Esse posicionamento geraria comodismo e perdas quando nos referimos, por exemplo, à igualdade de gênero. Essa é uma questão que necessita de constante reflexão e de empenho diário para que mais pessoas tenham mais acesso a direitos e tenham a possibilidade de vida digna. Parece inconcebível que em pleno século XXI seja necessário afirmar que mulheres têm os mesmos direitos que homens, mas ainda é necessário lutar por igualdade salarial, ainda é preciso justificar a presença de mulheres em alguns espaços e mulheres ainda são criticadas pela vivência de sua sexualidade, pela roupa que vestem ou escolhas que fazem. Após tantas conquistas de mulheres, retrocedemos ao ler uma matéria em revista, infelizmente de circulação nacional, exaltando a figura de uma mulher, Marcela, apresentada como “bela, recatada e do lar” com o claro propósito de crítica a outra mulher, Dilma, que atingiu o mais alto posto político no Brasil, a presidência da República (LINHARES, 2016). O texto corroborou para discussões sobre ‘o lugar das mulheres’, debate que parece tão ultrapassado, mas que ainda resiste. Esse retrocesso é perceptível também no famigerado projeto ‘Escola sem Partido’, cujo nome encantador é ardiloso, engana fácil pessoas desatentas. Sou professora de Metodologia de Ensino de História, Didática da História e Estágio Supervisionado na Universidade Estadual do Paraná, campus de União da Vitória. Tenho alunos e alunas que atuam nas escolas da região. No final do ano passado, dois deles vieram me procurar porque na escola em que trabalhavam uma professora desenvolveu atividades com as crianças sobre a igualdade entre homens e mulheres, sobre as lutas do movimento feminista. Atitude corretíssima que demonstra uma mudança positiva no ensino que antes não abordava tais questões. Porém, uma mãe de aluna ficou descontente e enviou uma carta à escola reclamando da postura docente. A carta é cópia de partes do projeto citado anteriormente e pede que a escola se abstenha de várias condutas, inclusa entre elas a de “adotar, promover, aplicar ou, de qualquer forma, submeter os alunos aos postulados da teoria ou ideologia de gênero”. Após tanto trabalho para que as ações das mulheres começassem a ser ensinadas na escola, o projeto vem prestar um desserviço à sociedade. E se para as mulheres isso é retrocesso, a questão é muito pior se pensarmos nas pessoas homossexuais, ainda mais discriminadas e significativamente menos visíveis na história ensinada até os dias de hoje. Se a história foi transformada em uma história masculina pela tradição, como aponta Smith (2003), ela também foi transformada em heterossexual pela mesma tradição. Os defensores do projeto usam da boa fé de pessoas que desconhecem os estudos de gênero para distorcer questões, para assustar pais e mães. A mãe que enviou a carta à escola aqui da região estava preocupada com a educação da filha, achando que ao estudar sobre o movimento feminista e sobre a igualdade entre homens e mulheres, a criança abandonaria a fé adotada pela família. Uma mulher que se assusta com uma professora que ensina para sua filha a história de mulheres que lutaram para que todas as outras, inclusive ela, tivessem uma vida mais digna. Isso

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é resultado de uma sociedade machista e heteronormativa que aprisiona pessoas em concepções preconceituosas. A escola é laica. Não pode nem promover e nem discriminar crenças. O papel da escola é a socialização do conhecimento historicamente construído e a produção do saber escolar. Isso significa que mesmo que a pessoa não acredite em dinossauros porque eles não aparecem no mito de criação que adotaram em sua fé, a escola ensinará sobre eles, porque comprovadamente existiram. A disciplina de História na educação básica tratará sobre mudanças e permanências no tempo. Inevitavelmente abordará questões que antes eram pensadas de determinada maneira e hoje são tratadas por outras perspectivas. A terra era entendida como plana, a terra é redonda. Mesmo que a Igreja Católica condenasse tal pensamento, os fatos históricos, a realidade gerou transformação e o que era absurdo passou a ser aceito, pois é real. A escola precisa trabalhar com as questões de gênero. A dignidade humana depende disso, já que, talvez, seja esse o único espaço em que muitas pessoas terão acesso a esse conhecimento. É absurdo o prefeito de Ariquemes (RO) mandar arrancar folhas dos livros didáticos que tratam de diferentes constituições familiares e da diversidade sexual (CARLOS, 2017), porque existem diferentes constituições familiares, existem pessoas homossexuais e elas estão nas escolas. Assim como foi preciso entender que a terra é redonda é preciso compreender que tentar proibir tais temas não faz sentido. É fechar os olhos à realidade e colaborar para o desconhecimento que fomenta o preconceito que conduz à discriminação e à violência. Em seu mais recente livro publicado no Brasil, Rüsen (2015, p. 32) discorre sobre a alteridade e sobre a necessidade de alimentar em nós o potencial humano. Para ele a história ensinada deve “encarar o ‘rosto da humanidade’” e nesse sentido é fundamental o trabalho sobre a diversidade para uma educação inclusiva que tenha como resultado o desenvolvimento social. A história é a ciência que estuda as ações humanas no tempo, como afirmou Bloch (2011) e todas as pessoas merecem ser reconhecidas. Homens, mulheres, homossexuais ou heterossexuais agem no mundo, sendo, portanto, sujeitos da história. Criam, recriam, transformam e por isso devem compor o currículo escolar de história. Negar ‘o outro’ não o faz desaparecer, só nos torna menos humanos, mais preconceituosos.

Referências BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011. CARLOS, Jeferson. Prefeitura manda tirar trechos de livros escolares com união entre gays. G1. 23/01/2017. Disponível em: http://g1.globo.com/ro/ariquemes-e-

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vale-do-jamari/noticia/2017/01/prefeitura-manda-arrancar-paginas-de-livrosescolares-sobre-homossexuais.html. Acessado em: 25/01/2017. ESTACHESKI, Dulceli de Lourdes Tonet. História das mulheres: entre historiografia e livros didáticos. BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton (orgs.). Para um novo amanhã: visões sobre aprendizagem histórica. Rio de Janeiro/União da Vitória: Edição Ebook LAPHIS/Sobre Ontens, 2016. LINHARES, Juliana. Marcela Temer: bela, recatada e do lar. Revista Veja, 18 de abril de 2016. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/bela-recatadae-do-lar. Acesso em 25/09/2016. RÜSEN, Jörn. Humanismo e didática da História. Curitiba: WA Editores, 2015. STÄEL, Madame de. Da Alemanha. São Paulo: UNESP, 2016. SMITH, Bonnie. Gênero e História. Homens, mulheres e prática histórica. Bauru: EDUSC, 2003. TURINI, Leide Alvarenga. A criticada história linear e da ideia de progresso: um diálogo com Walter Benjamin e Edward Thompson. Revista Educação e Filosofia. V. 18, N. 35/36, janeiro/dezembro, 2004. WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Boitempo, 2016.

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A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE HISTÓRIA: O ENSINAR E O APRENDER HISTÓRIA Everton Carlos Crema Maria Auxiliadora Schmidt A perspectiva da Educação Histórica parte do entendimento de que a história é uma ciência particular, que não se limita a considerar a existência de uma só explicação ou narrativa sobre o passado, mas, pelo contrário, possui uma natureza multiperspectivada. Isto, contudo, não significa aceitar o relativismo de todas as explicações sobre o passado e o presente, mas entender que existe uma objetividade a História [Schmidt; Barca, 2009. p 12.]. Em diversos momentos durante nossa carreira profissional, nos perguntamos, quando não somos questionados sobre a importância e validade do ensino de história. Em uma visão mais intimista, refletimos sobre o ensino e a relação da didática da história com a historiografia e a própria teoria da história em busca de respostas. De qualquer forma, acredito, que para muitos, inclusive eu, essas questões originaram angústias e incertezas, que durante o percorrer dos anos, aulas e muito estudo, formam ficando mais claras ou então menos perturbadoras. Nos dias de hoje, esses questionamentos se apresentam mais importantes e urgentes ocupando o centro do debate, fomentado pela polarização políticoideológica nacional, pela ‘ideia’ de uma escola sem partido e naturalmente pelo projeto da reforma educacional brasileira, que retira a história e outras importantes disciplinas do currículo obrigatório. Nossa proposta de discussão, parte das ideias e de uma teoria do ensino de história propostas por Jörn Rüsen, aqui apresentadas distintamente: 1) A relação da teoria da história com a didática da história e 2) A importância do ensino e do conhecimento histórico. Buscaremos apresentar as ideias e o debate resultante de forma propositiva, dentro dos limites e interesses do 3º Simpósio Eletrônico Internacional de Ensino de História, que busca divulgar e congregar professoras e professores, pesquisas, pesquisadores, debate e interesse acerca do ensino de história. Segundo Rüsen (2015), o ensinar e o aprender história tem na escola um dos mais destacados ‘lugares do aprendizado’, importando que a própria didática da história exista como uma disciplina acadêmica e área do conhecimento histórico, possuindo e construindo seus próprios métodos e teorias. De certa forma a didática e a metodologia de ensino da história sempre refletiram os métodos da teoria historiográfica, transformando a metodologia da pesquisa em historiografia em uma metodologia do ensino da história. Evidentemente que pesquisa, ensino e

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extensão, seja na universidade ou na educação básica, devem e podem andar juntas, mas a especificidade, singularidade e diferença entre a pesquisa historiográfica e a didática de ensino é grande e distinta. Parte do problema pode ser entendido a partir da criação do estatuto científico moderno durante o século XVIII, as ciências humanas e sociais, refletiram em grande parte os paradigmas das ciências exatas, numa época onde não existia a universalização ou pluralização do conhecimento, muito menos a educação era um direito social ou uma prática institucional. Nesse sentido o ensinar história foi fortemente influenciado pelos caminhos da ciência da história, privilegiando a pesquisa e distanciando-se de uma ‘filosofia do ensino da história’. A consequência prática é que a didática e o ensino de história vinculadas ao campo teórico historiográfico não pensaram a si próprias, tanto em termos teóricos, conceituais ou metodológicos. A partir do século XX, em parte influenciada pelo historicismo alemão, o campo do ensino e didática da história começou a dar passos mais firmes, numa caminhada que ainda realiza, em direção a um estatuto científico e metodológico próprio, o que muito interessa as professoras e professores de história se pensada a relação do processo de aprendizagem com a construção do pensamento histórico, distinta da historiografia histórica. A didática da história é a área em que essa competência é analisada cientificamente e na qual são elaboradas estratégias e práticas de sua obtenção. Poder ensinar história com competência pressupõem, naturalmente, familiarmente com as formas e os conteúdos especializados próprios ao pensamento histórico. Esse pressuposto não esgota, todavia, o tratamento científico da aprendizagem histórica. Com efeito, a história é aprendida também nas instituições acadêmicas da ciência da história (afinal, é no espaço acadêmico que os especialistas são formados). Essa aprendizagem não está entanto, incluída no objeto especifico do pensamento histórico (abstração feita da própria história da aprendizagem histórica). (RÜSEN, 2015, p. 248) Jörn Rüsen defende que a didática da história possui um campo próprio, natural e legítimo, a ciência da aprendizagem histórica, pois precisamos compreender cientificamente os processos de aprendizagem e compressão histórica. De forma objetiva se deseja, um avanço do ensino e compreensão histórica a partir da própria teoria da história e da especificidade do pensamento histórico em direção a um ensino de história significativo, permitindo que as ‘estruturas historiográficas’ ensejem a criação de conhecimento histórico válido, aplicável a realidade e a criação de sentido crítico para nossas alunas e alunos. Sobretudo, percebido e compreendido pela didática da história como uma metodologia científica de ensino própria. Apresenta-se importante percebermos que os modelos metodológicos e cognitivos tradicionais de ensino se baseiam em teorias do conhecimento e modelos advindos da psicologia da educação, que apesar de

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importantes, não possuem a especificidade do pensamento histórico, muito menos tem no tempo e em sua relação critica com o presente uma equivalência. Quando nossas alunas e alunos nos questionam sobre o que é a história? Recorremos a respostas advindas da historiografia clássica ou da teoria da história e não da didática ou metodologia do ensino da história. Reproduzimos o dilema da formalização cientifica do conhecimento histórico, onde os pressupostos científicos de razoabilidade, plausibilidade e verossimilhança substituem a validade e perspectivas individuais da compreensão histórica. Não estamos defendendo que a teoria da história, nem a historiografia, não sejam história ou não possuam validade pela espécie de cientificidade que possuam ou produzam, pois, o são certamente. Entretanto, devemos perceber crítica e contextualizadamente que a resposta adequada a pergunta: o que é a história? Deve emergir do processo de aprendizagem histórica perspectivada pela validade do conhecimento histórico que encerra e sobretudo, pela experiência reflexiva e qualitativa que a professora e professor dominam na sua esfera de atribuição docente. Ou seja, devemos olhar diretamente para as estruturas de ensino/compreensão histórica, para ensinarmos não só o conhecimento histórico, mas para construirmos uma percepção da compreensão do processo histórico, subsidiado pelo conhecimento da ciência de referência e não o contrário. Nesse procedimento, remete-se ao conteúdo empírico chamado “história” ou ao manejo cognitivo deste. A tessitura complexa das relações entre essas duas dimensões do “histórico” não é, regra geral, objeto de uma reflexão detida. No entanto, a questão está justamente aí: a aprendizagem se dá como um processo mental. Ou seja: a especificidade da aprendizagem histórica só pode ser entendida se forem entendidos também os respectivos processos e as formas de lidar com a experiência do passado. Pois é somente por intermédio desses processos que o passado se torna história. (RÜSEN, 2015, p. 248-249) Como a compreensão do tempo é fundamental para a história, e em grande parte resultado da experiência humana, a dinâmica do ensino da história não pode ser fragmentada do contexto histórico continuado, nem da experiência pessoal. Refletindo sobre isso Rüsen apresenta a relação da teoria da história para com a didática da história a partir de três categorias/dimensões da história: 1) Material (realidade), 2) Formal (científica) e 3) Funcional (explicativa), em conjunto essas categorias formariam a consciência histórica, categoria da didática da história. Em nossas salas de aula, salvo engano, todo o processo de preparo da aula, toda a didática e metodologia de ensino que nos utilizamos, parte de uma historiografia e teoria histórica em direção ao ensino e didática tradicionais, negligenciamos a ideia de que a “reflexão sobre a didática da história tem de começar, pois, com a análise dos processos mentais da constituição histórica de sentido”, (RÜSEN, 2015, p. 249). Devemos tentar reflexivamente nos aperceber de como nossos alunos compreenderiam o processo histórico, em termos didáticos e cotidianos,

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pensando como seriam suas consciências históricas, tomadas como ponto de partida em direção a historiografia. A mudança de lugar e foco é fundamental e de resultado, pois ao criticar o modelo tradicional de ensino da história, modelo que desconsidera a didática e a metodologia da história como um campo próprio e válido, e que, infelizmente, ainda persiste muito fortemente na academia e na universidade brasileira, nega um esforço reflexivo qualitativo próximo do aluno e de sua experiência histórica, que é também uma capacidade de compreensão. Grande parte do problema se encontra nas licenciaturas e bacharelados de história ao reproduzirem em suas disciplinas de didática, metodologia ou mesmo nos estágios, um ensino de história tradicional, baseado na historiografia formal científica, que acaba por negar a consciência histórica do aluno. Segundo Schmidt (2009) o distanciamento na formação inicial e continuada do professor em relação a percepção programática da disciplina, impediriam a integração da consciência histórica com os fatores constitutivos da história. Para a autora, “tais considerações põem em relevo a importância de serem sistematizados referenciais teóricos que indiquem os caminhos possíveis de uma cognição histórica situada na própria racionalidade da História” (SCHMIDT, 2009, p. 32). Também podemos apontar para a falta de experiência dos docentes universitários, na educação básica nacional, em parte pelo tipo e modelo da carreira universitária e as exigências da formação acadêmica. Não diferentemente, mas de maneira cruel, essas características acabam por manter um distanciamento entre a educação básica e o ensino superior, que também pode ser observado em relação aos órgãos institucionais ligados à educação, em todas as esferas públicas. As secretarias de educação em nível municipal, estadual ou federal, pouco se articulam propositiva ou estrategicamente, fora o que se exige do ponto de vista legal. Precisamos romper com as propostas de ensino de história tradicionais, mantendo a forte e importante base de pesquisa, historiografia e teoria que recebemos em nossas formações superiores. Em relação ao ensino da história, não estamos sugerindo uma escolha/troca entre a teoria da história e uma didática da história, pois se isso ocorresse inverteríamos ou manteríamos o ‘sentido do erro’, nesse caso e muito frequentemente em nossas vidas, os extremos, seja a falta ou o excesso, se apresentam viciosos. Propomos que a teoria da história subsidie a didática da história em nossas aulas, criando um ganho qualitativo e reflexivo significativo. Os professores da educação básica, em todos os níveis, possuem a experiência docente e os anos de prática em sala de aula, formulando e preparando aulas, atividades, trabalhos, avaliações, correções e reflexões considerando o percurso do aprendizado do aluno, percebendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, relacionando os conteúdos formais da história, as experiências de vida e aos conhecimentos da vida prática. Precisamos sistematizar reflexivamente em nossas aulas que tipo de ensino de história queremos, precisamos nos perceber propositivamente como pesquisadores, e somos, pois, isso infere na qualidade da compreensão que ensejamos e sobretudo na satisfação docente e discente de uma boa aula.

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Dito isso, e num segundo momento da reflexão, observamos a importância da história como disciplina escolar e conhecimento científico repousando na condição fundamental da necessidade de orientação no tempo, seja pela experiência ou carências da vida prática, seja pela necessidade de orientação cultural em relação aos saberes universais. Essa capacidade de agir em conformidade como o tempo, com as transformações cotidianas determinam nossa relação com essa ‘mudança’ e tornam fundamentais o conhecimento histórico e a capacidade de compreensão histórica, não como um referencial temporal, mas como uma consciência. Só podemos perceber a mudança em relação aos fatos históricos e sua temporalidade se compreendermos ou referenciarmos o processo de mudança enquanto tal, em direção a um entendimento. Ocorre uma integração entre a consciência histórica, linguagem e a narratividade, já que se estrutura um procedimento mental da constituição de sentido, baseadas nos processos cotidianos da comunicação / compreensão humana. Como resultado a narrativa histórica se desenvolve quando exprime um contexto temporal, que articula sistematicamente a interpretação do passado com um entendimento do presente, em relação as expectativas do futuro. Nesta orientação, o tempo é visto como a experiência de mudança do homem e do seu mundo e como a esperança de que estas mudanças estejam relacionadas entre si, para que as pessoas possam se organizar no fluxo do tempo. Essa interpretação do poder na consciência humana é baseada em experiências do tempo em direção às expectativas (e esperanças), ou seja, de que o significado formado através da experiência do tempo é realizado através do ato de contar histórias. Neste ato, forma-se “história” no sentido de uma estrutura de uma experiência no tempo. (RÜSEN, 2012, p. 38) Nesse sentido temos na narratividade tanto um mecanismo didático metodológico como uma ferramenta de avaliação extremamente eficaz, no sentido, de que, ao analisarmos a narrativa de nossos alunos dento do percurso educacional, podemos auferir e diferenciar o conhecimento da compreensão, os níveis e tipos léxicos postos nas narrativas ensejadas. Para além disso a narrativa se apresenta muito mais próxima da consciência histórica do aluno como é resultado da capacidade cognitiva e interpretativa em relação ao conhecimento histórico significativo. O que desejamos demonstrar é a força e a importância da narratividade como prática metodológica reflexiva e a necessária valorização da narrativa dos estudantes. Rüsen (2012), defende que a aula precisa ser concebida reflexivamente, valorizando o lugar e a identidade do aluno, assim uma narratividade ampla e plural permite a identificação e reconhecimento do aluno com a história e sua importância. Se a aula tradicional, repetitiva e singularizada na figura/discurso do professor for o que acontece nas salas de aula, a falta de identificação, aceitação e subjetividade do próprio sentido crítico da história, limita o surgimento de um discurso de argumentação racional fundamental ao processo de orientação temporal individual.

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O ponto positivo é que, quando o processo de aprendizagem, nas aulas, corresponde ao objetivo de ensino da competência narrativa, também (ainda fortemente hipotético) satisfaz o conhecimento do processo do desenvolvimento da consciência histórica na socialização individual dos alunos. Então, ele precisa ser organizado de tal forma que o poder de interpretação da narrativa histórica, ou seja, a transformação do conhecimento abundante sobre o passado humano estará (sempre em vista dos problemas de orientação da vida prática presente) basicamente ligada à auto-atividade dos alunos. (RÜSEN, 2012, p. 62). Sabendo da relação da objetividade do conhecimento histórico científico com o conhecimento subjetivo do aluno, devemos nos preocupar com a variedade de ideias e consciências históricas de nossos alunos, em direção a uma multiperspectivação da realidade. A professora e o professor de história devem buscar apresentar/ensinar os conteúdos programáticos da disciplina relacionandoos da melhor maneira possível com o cotidiano, cultura e experiências de seus alunos, a identificação de suas demandas e carências de orientação da vida prática, mesmo sob pontos de vista diferentes e divergentes, construirá um interesse natural, manifesto pela capacidade narrativa argumentativa que reflete os horizontes de possibilidades de nossos alunos, ampliando o processo partícipe da comunicação do pensamento histórico e geração de sentido nos contextos sociais. São diversas as possibilidades de elaboração do pensamento histórico, exemplarmente, listamos as formas e o conteúdo especifico da constituição histórica de sentido, que articuladas entre si, e não necessariamente em sua totalidade, permitem perceber as relações do processo de criação do pensamento histórico.[Rusen, 2015]

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Tabela I Fonte: Adaptado de RÜSEN, Jörn. Teoria da História: uma teoria da história como ciência. p. 89.

FORMA

CONTEÚDO

Discurso semântico da simbolização

Concepções de sentido

Estratégia cognitiva da produção do saber

Concepções de pesquisa

Estratégia estética da representação

Concepções de apresentação

Estratégia retórica da orientação

Concepção do uso prático

Discurso político da memória coletiva

Concepção da cultura política

Dada a importância da narratividade, não somente para o pensamento e orientação histórica, mas também para a didática e metodologia do ensino da história, apresentaremos sucintamente os tipos narrativos da constituição de sentido que constroem o pensamento histórico. Para Jörn Rüsen, (2007) os princípios da orientação histórica são estruturas narrativas típicas, correspondentes ao tempo e suas temporalidades, diretamente ligadas a vida cotidiana, perspectivada pelo indivíduo. Os quatro tipos narrativos, em conjunto criam uma narrativa válida de sentido, fundamental para as carências da orientação da vida prática. São os tipos narrativos que conformam e preenchem o horizonte explicativo que o conhecimento histórico fornece, sendo eles do tipo 1) tradicional, 2) exemplar, 3) crítico e 4) genético, a saber: No sentido tradicional o tempo é imutabilizado como experiência, nesse tipo narrativo/compreensivo a mudança histórica, ou seja, o tempo, é negado, principiando valores e mentalidades passadas, na prática seus tópos narrativos buscam construir uma identidade comum, coesão e estabilização das mudanças. De certa forma a narrativa tradicional é fundamental para a construção o ‘eu’, do indivíduo social, entretanto, como conceitos e interpretações do mundo não são neutras, a potencialização do sentido tradicional, vem negando o próprio devir e a mudança histórica, e com ela tudo o que se transforma com o próprio tempo, originando novas forma sociais, ideias de mundo ou práticas cotidianas. “a

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inquietação provocante das mudanças no tempo da vida humana é domesticada pela representação, na profundeza ou na raiz do tempo, da permanência dos princípios que, empiricamente produzem a ordem” (RÜSEN, 2007, p. 49). O Sentido Exemplar retoma em seu tópos a força explicativa dos exemplos e experiências passadas e presentificadas, pois possuem sentido explicativo para a vida prática, na forma de regras para o agir. A carga explicativa da experiência pretérita se torna um modelo explicativo justificado do agir, respaldado na própria história, seja em relação a historiografia ou a própria experiência pessoal próxima. As sucessões, mudanças, crises na história, mesmo o erro e o fim de civilizações, permitem o entendimento dos processos passados, nos deixando possibilidades de ação concretas no presente. A consciência histórica unifica o tempo, o passado e o presente, se fundem num modelo explicativo válido e ‘atualizado’ pois não buscamos reproduzir o passado e sim aprender com ele, já que “a identidade histórica assume a forma de uma competência reguladora que torna a práxis possível. As representações do ordenamento da vida, que constituem a identidade, passam a ser criticáveis e fundamentais à luz de princípios. ” (RÜSEN, 2007, p. 52-53.) A forma crítica, naturalmente se põem a desconstruir e criticar os modelos de interpretação hegemônicos da história, buscando apresentar visões alternativas, conflitantes e distintas da experiência histórica, através de uma linguagem e uma narrativa inovadora. A nova narrativa critica opera mecanismos conflitantes e questionadores do conhecimento histórico consagrado, a ironia, a subversão e a ruptura da continuidade, recriam os horizontes de possibilidade e as carências de orientação da vida prática. Uma das principais contribuições do tipo narrativo critico é a possibilidade da formação da identidade histórica a partir da divergência, da negação e da negatividade. Com a nova linguagem narrativa, novas realidades surgem e o tempo, objeto e caminho da história acaba por se tornar julgável, mesmo que numa abstração hipotética, pelo princípio da possibilidade. Pela crítica sujeitos desconstroem o mundo e a si próprios, tendo na própria retórica a força da criação de uma nova argumentação e da possibilidade da criação de novas identidades. Modelos consagrados de autocompreensão e da legitimidade históricas das relações sociais são desmantelados quando contrastados com as possibilidades alternativas da memória histórica. Do mesmo modo, as interpretações históricas das circunstâncias atuais da vida, e as perspectivas de futuro da vida prática que elas decorrem, são desconstruídas pelo conflito das experiências históricas, abrindo espaço para outros e novos modelos de interpretação. (Rüsen, 2007, p.55) Por sua vez, o conhecimento genético, sugere que a própria mudança temporal se constitui como uma forma de compreensão histórica, acaba sendo incorporado na consciência histórica como um adjetivo positivo da mudança, fundamental na compreensão de si e do mundo, pois negar a mudança é negar a condição

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fundamental do tempo, inclusive a forma em que pensamos nossa existência. O novo redefine a relação entre a expectativa e a experiência a partir da transitoriedade, onde o futuro se apresenta aberto como possibilidade. A forma de conhecimento histórico genético, permite que o experimentar a vida de forma extremamente subjetiva vá se constituindo em um mecanismo de reconhecimento comum da mudança. O resultado desse processo é a apreensão individual do discurso histórico que mais do que uma compreensão do processo da mudança, se torna em termos concretos, possibilidades de vida e do agir na vida, em relação as carências de orientação. No modo da constituição genética de sentido, a experiência histórica adquire uma nova qualidade temporal. Ela passa a ser determina categorialmente pela divergência estrutural entre a experiência de tudo que se acumulou até agora e a expectativa do inteiramente diverso... A plenitude das mudanças temporais, que se rememora, é integrada numa determinação de sentido (direção) que remete a um futuro para além do presente, e faz aparecerem como transitórias as circunstâncias da vida. (Rüsen, 2007, p.59) Portanto, a compreensão dos tipos narrativos do conhecimento histórico no processo de formação da consciência histórica e seu uso na didática do ensino de história, conferem a ambas uma condição qualitativa/compreensiva significativa, pois refletindo acerca da articulação entre os tipos narrativos na compreensão do processo histórico, podemos compreendê-los mais objetivamente e utilizá-los subjetivamente em termos didáticos e metodológicos na elaboração de nossas aulas, em toda as suas fases, inclusive no processo avaliativo, sobretudo no que toque a narratividade, claro, também perceptível na escrita de nossos alunos. Outra questão importante é percebermos que a tipologia descrita não é ou possui meramente uma função analítica, mais também prática, pois acaba por permitir uma organização do conhecimento e um uso direto da compreensão histórica produzida na esfera da vida prática. Nesse sentido, “ A tipologia da constituição narrativa de sentido pode exercer, pois, uma função esclarecedora em sua reflexão sobre os fundamentos da história como ciência. ” (RÜSEN, 2007, p.66). Exemplificando o esquema dos topos/tipos constitutivos do pensamento histórico temos:

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Tabela II Fonte: Adaptado de RÜSEN, Jörn. História Viva: teoria da história III formas e funções do conhecimento histórico. p. 62. [Rusen, 2007] Tipo da Constituição histórica de sentido

Relação ao presente

Representação no fluxo temporal

Formas de comunicação

Constituição de identidade

Sentido de tempo

Tradicional

Origens do ordenamento do mundo e formas da vida

Duração na mudança

Adesão

Adoção de ordenamentos prévios (imitação)

O tempo é eternizado enquanto sentido

Exemplar

Eventos que mostram regras gerais no agir

Validade supratemporal das regras do agir

Argumentação com força de julgar

Competência regulativa em situações de agir (astúcia)

O tempo é especializado enquanto sentido

Crítico

Aconteci mentos que questionam orientações históricas

Rupturas, descontinuidad e, oposições

Tomada consciente de posição em distanciament o

Rejeição de formas sugeridas de vida (convicção)

O tempo tornase julgável enquanto sentido

Genético

Mudanças inseridas nas formas da vida

Evoluções, alterações e ajustes na vida

Relacionamento discursivo de posições divergentes

Individualização (formação)

O tempo é temporalizado como sentido

A importância da reflexão acerca da constituição do pensamento histórico, seja dentro da ciência de referência, seja na didática e metodologia do ensino da história, ou ainda na vida prática de nossos alunos, repousa em parte na condição de pensarmos o passado como processo, implicando em causa e efeito. Se a ciência da história, fruto do seu próprio tempo, tempo presente da escrita da história, não olhar o passado, incorremos na possibilidade de desrealização do passado no presente, ou seja, não haveria uma continuidade explicativa e

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integradora do tempo e do agir no tempo. Segundo, o ensino da história, desligado do passado, negaria o próprio devir e as experiências reais que orientam culturalmente nossa tomada de decisões e a história perderia a capacidade de geração de sentido critico, pela impossibilidade de se comparar as experiências históricas do ponto de vista da subjetividade pessoal, criando no presente uma objetividade plena. Por último, sem uma orientação temporal, nossos alunos, teriam limitadas as condições de elaboração hipotética do conhecimento histórico e o conhecimento do ensino da história seria assimilado de forma acrítica e unidimensionalmente, o que se refletiria nas ações da vida prática. Todo conhecimento produzido pela humanidade, deve se voltar em benefício da sociedade de forma válida, propositiva, permitindo a criação de um conhecimento significativo e transformador.

Referências RÜSEN, Jörn. Teoria da História: uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora UFPR, 2015. RÜSEN, Jörn. Aprendizagem Histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W. A. Editores, 2012. RÜSEN, Jörn. História Viva; teoria da história III, formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: UNB, 2007. SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel. Aprender história: Perspectivas da educação histórica. Ijuí: Editora Unijuí, 2009.

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ANTES SONHAVA, HOJE NÃO DURMO: A LIBERDADE DE ENSINAR SOB ATAQUE Fernando Seffner A liberdade de ensinar é um direito dos professores? Quais seus limites? Como ela se relaciona com o direito de aprender dos alunos? E se o professor ao ensinar estiver promovendo a discriminação e o preconceito contra grupos sociais e indivíduos, ele tem liberdade para fazer isso? Quem tem a precedência na educação das crianças: a família, a escola, as religiões? É dever da escola promover as aprendizagens científicas, e as verdades científicas por vezes se chocam com valores morais de grupos sociais, como se resolve isso? Também é tarefa da escola promover a formação cidadã, que muitas vezes lida com temas sensíveis. Os temas sensíveis são aqueles atravessados por divergências pessoais e políticas. A família tem o direito de exigir que o aluno não fique em sala de aula quando ali está se ensinando um tema sensível no qual ela não concorda com a abordagem escolar? As diretrizes curriculares podem obrigar crianças e jovens a certos aprendizados? Como fica a liberdade de ensinar dos professores em relação a gestão democrática da escola, prevista em lei? Estas perguntas são uma pequena parte das questões que hoje em dia tiram o sono de professores e professoras, e também de famílias, alunos e alunas, comunidade escolar e gestores. São perguntas de difícil resposta. É tarefa árdua chegar a um acordo em questões como essas. Tudo isso se complica porque vivemos tempos de anti- intelectualismo, e uma das manifestações é tentar transformar a escola em local onde os debates são proibidos, amordaçados. Aprovam-se reformas educacionais que visam transformar a escola em local apenas de preparação para o trabalho. Tramitam e já foram aprovados algumas vezes projetos como “escola sem partido”, articulam-se movimentos como o intitulado “contra a ideologia de gênero”, criam-se comissões para debater o estatuto da família e pedidos de alteração na LDB que garantem, entre outras coisas, que os valores morais da família tenham precedência sobre aqueles da escola. São tempos muito turbulentos para a educação pública, e especialmente para a função docente. Está visível para todo mundo: é difícil ser professor ou professora hoje em dia. Não se tratam apenas dos baixos salários, se tratam de outros ataques à tarefa de ensinar. Pensando nessas questões, essa sala de debates vai investir em duas direções.

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PRIMEIRA DIREÇÃO: compromisso ético do debate Vamos insistir em uma postura que é adequada à abordagem dos temas sensíveis. Um componente da educação em temas sensíveis é a capacidade de construir acordos entre indivíduos e grupos cujas opiniões diferem, estabelecendo um “modus vivendi” que implica manutenção do espaço de diálogo. Compreender que há diversidade de pontos de vista é sinal de sabedoria, e colocar-se na posição do outro é esforço pedagógico de grande efeito pessoal. Diversidade não é só valor moral de aceitar os outros, é dinâmica cognitiva e de planejamento, que necessita ser incorporada ao trabalho dos educadores. A educação em temas sensíveis visa à construção de uma democracia respeitosa das diferenças. Vamos praticar isso neste debate.

SEGUNDA DIREÇÃO: compreender a liberdade de ensinar Vamos investir a energia do debate para tentar compreender o que é a liberdade de ensinar, ou liberdade de cátedra, marca muito importante da educação pública republicana. Vamos assumir que a liberdade de ensinar não é um direito absoluto, pelo simples motivo de que não existem direitos absolutos. Ela é um direito que se encontra moderado por outros direitos: os direitos constitucionais de igualdade e não discriminação; o direito de aprender dos alunos; as orientações das diretrizes curriculares; os compromissos da escola com a alfabetização científica e com a formação cidadã; o compromisso com o pluralismo democrático; as exigências de respeito à diversidade e de inclusão de todos e todas no sistema escolar; o direito à formação integral; a legislação da gestão democrática da escola. Para aquecer o debate, vamos lançar provocações, na forma de pequenas frases, charges e imagens. Começamos então.

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PRIMEIRA PROVOCAÇÃO: Não existe educação neutra, toda neutralidade afirmada é uma opção escondida. (Paulo Freire) Vamos discutir um pouco essa frase? Que implicações ela traz para o ensino de história? SEGUNDA PROVOCAÇÃO: Podemos pensar que a liberdade de ensinar está sempre funcionando em conexão com outros marcadores, ela é um direito, mas está moderada por outros direitos e compromissos, como representamos na figura abaixo. Que implicações isso traz para o ensino de história? Dê sua opinião. TERCEIRA PROVOCAÇÃO: Três instituições buscam educar as crianças e jovens ao longo dos tempos: as famílias, as religiões e a escola. Quais os limites e direitos dessas três instituições em relação a educação? A escola, por exemplo, é de frequência obrigatória. Com que idade a criança ou o jovem pode discordar da família e querer aprender o que deseja? Quem quer comentar isso? Que implicações isso traz para o ensino de história? QUARTA PROVOCAÇÃO: Circula na internet o texto abaixo, do qual recortamos apenas algumas partes. Utilize essas provocações do texto para pensar: como você defenderia a necessidade de termos a História como disciplina obrigatória no ensino médio? E como você defenderia também a liberdade de ensinar dos professores de História? “O brasileiro do futuro O brasileiro do futuro não estuda Arte, Filosofia, Sociologia e Ed. Física. O brasileiro do futuro é sem partido. O brasileiro do futuro não critica nem protesta. O brasileiro do futuro não precisa ter memória social. O brasileiro do futuro não discute gênero na escola. O brasileiro do futuro vai à escola para aprender a trabalhar. [...] Que brasileiro e futuro é esse?

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[...] Osvaldo Ferreira Neto Aracaju, 23 de Setembro de 2016. (Confira a matéria na íntegra em http://expressaosergipana.com.br/texto-desergipano-viraliza-e-e-atribuido-leandro-karnal/) QUINTA PROVOCAÇÃO: A liberdade de ensinar, ou liberdade de cátedra, é uma manifestação da liberdade de expressão. As duas estão asseguradas na constituição. Que implicações têm isso para o ensino de história?

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CINEMA EM SALA DE AULA: PARA ALÉM DO FILME HISTÓRICO Igor Lapsky

Introdução O uso de filmes em sala de aula é uma realidade para o professor. Muitos, ao pensarem em temáticas relacionadas a distâncias temporais distintas, que vão desde a Antiguidade até a Guerra Fria, optam por utilizar películas para retratar uma época e discutir elementos específicos desenvolvidos na história. Desta forma, é escolhido em sala de aula a categoria filmes históricos, utilizada primeiramente por Marc Ferro na década de 1970. No artigo “O filme: uma contra-análise da sociedade?” (1975), o autor desenvolve o argumento em prol da utilização dos filmes como fonte histórica e operacionaliza a relação cinemaHistória a partir de produções relacionadas à Revolução Russa. Partindo da análise de Marc Ferro, outras produções enalteceram a importância do uso de filmes nas pesquisas históricas, desenvolvendo argumentos embasados na categoria cunhada por Ferro. Autores como Pierre Sorlin (1980; 1992), Christian Délage (2013), na França, Jorge Nóvoa (2009), no Brasil, e Robert Rosenstone (2010), nos Estados Unidos, discutiram a forma de trabalhar os filmes, trazendo novas possibilidades para os historiadores desenvolverem métodos para análise de filmes históricos. No âmbito do ensino de História, muitas produções sobre o uso de filmes em sala de aula pelo professor já foram desenvolvidas. A tese central é que o cinema não pode ser tratado como uma forma de “diversão” ou “passatempo” para os alunos e o professor e os filmes utilizados em sala devem passar por um planejamento para utilização, pois é uma ferramenta importante para ilustrar determinados períodos aos alunos, a partir dos diversos elementos existentes em um filme.1 Nesse sentido, a operacionalização do uso das produções cinematográficas se dá a partir de narrativas históricas, atreladas a algum período que está sendo estudado em sala. Desta forma, precisamos partir para algumas reflexões: por que somente filmes históricos? É possível trabalharmos com outras possibilidades? O objetivo deste artigo é analisar o uso de filmes de ficção como ferramenta de debate em sala de aula. Para tal, utilizaremos exemplos de análise que podem ser feitos com filmes de grande bilheteria nos Estados Unidos (blockbusters), que possuem maior alcance nas diferentes localizações e classes sociais.

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A tese central que desenvolvemos nesse trabalho é que é possível trabalhar com filmes de ficção nas aulas de História. Partindo da conceituação de Marc Bloch em Apologia da História ou o Ofício do Historiador em que o autor diz que “História é o estudo dos homens no tempo” e que a História do Tempo Presente é um campo de trabalho consolidado para os historiadores, as produções cinematográficas de ficção possuem uma estreita relação com os anseios daquela sociedade no período em que o filme foi produzido. Desta forma, analisar as grandes bilheterias é compreender uma representação da sociedade, a partir de suas agendas e posicionamentos enquanto grupo. Para desenvolvermos nossa tese, é preciso compreender a forma de funcionamento do cinema enquanto uma indústria cultural consolidada, que possuiu relações estreitas com a sociedade. Desta forma, analisaremos o papel de Hollywood nesse processo para então realizarmos um exercício de trabalho com filmes de grande bilheteria, como Avatar (2009) e Os Vingadores (2012).

Cinema das massas – o sistema de Hollywood O cinema foi uma inovação tecnológica que desde sua criação no final do século XIX foi voltado para o grande público. Ao contrário das casas de ópera e dos teatros da época, exclusivos para as camadas mais abastadas da sociedade, as exibições de filmes eram para trabalhadores, custando apenas um nickel (cinco centavos de dólar) nos Estados Unidos nos primeiros anos do século XX. O complexo de Hollywood é fruto da mudança de localização de diversas produtoras independentes devido ao truste formado em 1907 pelas maiores empresas cinematográficas dos Estados Unidos chamado de Moving Picture Patents Company (MPPC).2 Além do truste, outra causa das mudanças de diversos produtores para a costa oeste dos Estados Unidos deve-se à cobrança de patentes da empresa de Thomas Edison, localizada em Nova Jersey, que reclamava a exclusividade do uso da tecnologia utilizada para a gravação e exibição de filmes. Clima, vegetação e paisagens também contribuíram para a mudança das companhias para o oeste dos Estados Unidos, permitindo a utilização da paisagem próxima aos estúdios para gravação de filmes. Este fator é fundamental para compreendermos a quantidade de westerns (faroestes) lançados pelas produtoras, o principal gênero de filme norte-americano nos primeiros anos do cinema no país. O sistema de produção de Hollywood foi sendo desenvolvido com objetivo de lançar grande quantidade de filmes para produzir lucro aos produtores. Os estúdios no local passaram a centralizar todas as etapas de produção de filme: gravação em lugares fixos ou paisagens próximas ao complexo, processo de edição, organização, divulgação e distribuição. O objetivo do complexo era

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manter a produção de filmes em escala, possibilitando as mais de 20 mil salas de cinema dos Estados Unidos nos anos 1910, ter novos trabalhos cinematográficos em exibição semanal, pois a fórmula inicial, em que os lançamentos eram exibidos quinzenalmente, não era suficiente para manter o funcionamento de todas as salas de cinema. A dificuldade em torno da manutenção dos cinemas estava na estrutura complexa que existia no funcionamento das mesmas. Segundo o professor emérito da Universidade de Maryland, Douglas Gomery, o sistema implantado em 1916 pela empresa Balaban & Katz, em Chicago, obteve muito sucesso e foi disseminado por todo o país (1997; 43-52). Segundo o autor, a empresa adotou uma estratégia em 5 estágios para captação de público no cinema: 1. Localização: a escolha do local para ser construída sala de cinema deveria ser através do critério de concentração de capital. Considerando que a sociedade norte-americana trabalhava no centro da cidade e a classe alta possuía prédios na região, Balaban & Katz montavam cinemas nestas regiões, pois assim as salas estariam sempre cheias, devido ao grande volume de filmes lançados. 2. Arquitetura: os cinemas, como ficavam em locais com grande circulação de capital, grandes construções com design clássico, que remetiam à França e Espanha, com detalhes de arte contemporânea. As casas possuíam escadas monumentais, tornando a entrada do público um momento espetacular, com salões espaçosos e um grande letreiro luminoso na entrada. As salas eram baseadas nos grandes teatros e casas de ópera, onde as pessoas eram divididas em balcões e plateia. 3. Serviços: durante os primeiros anos do cinema, não existia uma preocupação em fazer filmes voltados para o público infantil, dificultando o acesso das famílias ao cinema. Diante deste quadro, Balaban & Katz ofereciam um serviço para cuidar de crianças em locais específicos nos cinemas: grandes salas com brinquedos eram construídas para pais deixarem seus filhos com pessoas contratadas para cuidar deles durante a exibição do filme. 4. Atrações: eventos especiais eram realizados durante feriados, como musicais e rápidos shows de palco que antecediam o filme. Além disso, uma orquestra se localizava dentro da sala para tocar música de acordo com o gênero e cenas dos filmes, para melhorar a experiência do público. 5. Estrutura: antes do sistema de Balaban & Katz, os cinemas nos Estados Unidos ficavam fechados na época do verão por causa do calor intenso nas salas de projeção. Além de todo o serviço oferecido ao público, a empresa também fez os primeiros experimentos de ar-condicionado no cinema, através da utilização de sistema de gelo picado nas tubulações, possibilitando a abertura das salas. O ar-condicionado foi um dos

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principais meios de captação do público, pois as propagandas durante o verão utilizavam o cinema, além de ser diversão, como um meio de amenizar a temperatura da época. O sistema implantado por Balaban & Katz foi disseminado por todo o país com muito sucesso e todos os elementos analisados acima ainda permanecem como estratégia de captação de público no cinema. O sistema hollywoodiano para obtenção de lucro com o cinema também permitiu o desenvolvimento da imagem dos artistas, que eram utilizados como ferramenta publicitária dos filmes. Com isso, as preferências por determinados atores permitiram a constituição de grupos de fãs, que compravam revistas sobre a vida das estrelas. Assim, o sistema de estrelato (star system) se consolidou nos Estados Unidos, levando o modelo para outros países.

Os códigos de conduta da indústria cinematográfica norte-americana: da criação do monopólio ao lobby político Um dos elementos fundamentais para situarmos o desenvolvimento do cinema norte-americano como uma indústria produtora de filmes com histórias comuns é o estabelecimento de códigos de conduta dos filmes. Segundo Douglas Gomery (2008), estes códigos serviam para garantir o monopólio da produção e, principalmente a distribuição de filmes nos Estados Unidos, uma vez que o número de produtoras naquele momento propiciava uma alta concorrência nas grandes cidades. A primeira tentativa de monopólio a partir da formação de trustes foi o Motion Pictures Patent Company (MPPC), fundado por Thomas Edison em 1908 para controlar o uso de equipamento pela Biograph, Edison, Vitagraph e empresas concorrentes no cenário internacional, como a Pathé. O acordo tinha como objetivo enfraquecer as produtoras que estavam surgindo e criar modelos para o cinema norte-americano. Neste sentido, o processo de produção de filmes foi padronizado desde a quantidade de rolo, que determinava a duração, até o processo de distribuição, só permitido para salas cadastradas ao grupo. Com o desenvolvimento de outros gêneros, principalmente o épico, e o fortalecimento de Hollywood, o MPPC foi a falência em 1918, devido a sua iniciativa ter sido considerada ilegal nos Estados Unidos (GOMERY, 2008; p.7), acompanhado da instauração do modelo industrial pensado por Adolph Zukor, dono e fundador da Paramount Pictures. Adolph Zukor estruturou um modelo de produção nas bases industriais. O sistema de estúdio, em que as várias etapas da elaboração do filme são feitas em um local, possibilitou o aumento da produtividade das empresas em crescimento, que passaram a dominar o mercado norte-americano a partir da década de 1920, quando os filmes sonoros começaram a ser realizados. Neste contexto, são criados

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diversos organismos para controlar a produção e manter o monopólio dos Big Five, composto por Paramount, MGM, Fox, Warner e RKO, como a Motion Picture Producers and Distributors of America (MPPDA) em 1922 por Will H. Hays. Hays, presidente do órgão entre 1922 e 1945, montou uma série de regras ao longo da década de 1920, conhecidas como Código Hays, que as empresas deveriam cumprir para terem seus filmes distribuídos para os cinemas do país. Os filmes não poderiam ter cenas de sexo, nudez, cenas de amor prolongadas, tornar vícios atraentes, como o jogo e a bebida, ofender crenças religiosas, enfatizar violência e divulgar gestos vulgares (GOMERY, 2008. P. 67). Com isto, Hays, influente no Partido Republicano, argumentava que a própria indústria tinha seus mecanismos de censura, conseguindo findar as tentativas de intervenção do governo na produção de filmes. Porém, com os anos 1930 e a entrada de Franklin Delano Roosevelt na presidência dos Estados Unidos, Hays precisou ceder e aliou o código de conduta com as exigências do governo, firmando uma parceria que embasaria a produção de filmes ao longo da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria. Com a morte de Roosevelt em 1945, Hays é substituído do cargo pelo Eric Johnston, republicano e membro da Câmara de Comércio dos Estados Unidos. Johnston formulou o código pensado por Hays durante a Guerra Fria, baseado no anticomunismo idealizado pelo presidente Henry Truman e o senador Joseph McCarthy. Sua primeira iniciativa foi alterar o nome do órgão para Motion Pictures Association of America (MPAA), nomenclatura existente até os dias atuais. Segundo Gomery, Johnston utilizou sua grande influência tanto na política quanto em Hollywood para projetar os ideais norte-americanos pelo mundo, sendo considerado um melhor gestor do que Hays. Uma das principais tomadas por Jonhston medidas foi a revisão do código com objetivo de conseguir competir com a indústria da televisão, que tinha uma proposta de levar a experiência do cinema para as casas das famílias. Com a mudança do código escrito por Will Hays, novas temáticas passaram a ser abordadas no cinema, tornando a proposta dos filmes mais ousada e trazendo mais público para as salas de cinema. Neste sentido Johnston, foi um ator central para o aumento da divulgação de filmes que quebravam alguns tabus da sociedade norteamericana, principalmente em relação ao sexo e à violência. Ele morreu em 1963, deixando vaga a presidência da MPAA, que foi assumida pelo interino Ralph Hetzel até 1966, quando foi indicado pelos estúdios o lobista Jack Valenti, assistente do presidente Lyndon Johnson, que ficaria no cargo até 2004. Segundo Gomery, Valenti foi responsável por findar a maioria dos pontos pensados pelo conjunto de regras escritas por Hays, seguidas da flexibilização proposta por Johnston. Uma das primeiras medidas feitas em relação ao código foi em 1968, quando adotou o sistema de classificação etária para o cinema, divididos em quatro categorias que definiam o público de cada filme. Este sistema passou a ser utilizado também pela televisão a partir dos anos 1990.

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Com uma boa relação com democratas e republicanos, utilizou sua influência em Washington para aumentar o poder dos grandes estúdios, fortalecendo ainda mais a indústria cinematográfica norte-americana. Além disso, foi responsável por conseguir realizar as transmissões da entrega do Oscar3 em todo o mundo a partir de 1969. Com a internacionalização da cerimônia da premiação da indústria cinematográfica norte-americana, os estúdios ganharam mais força em outros países, expandindo seus modelos de produção para outros mercados.4 Valenti ficou na presidência da MPAA até 2004 devido sua grande influência política. Segundo Gomery, para obter apoio do governo, ele cedia atores do cinema e da televisão para campanhas políticas e atuou em todas as eleições, desde Nixon até George W. Bush. Isto o transformou no lobista mais bem pago dos Estados Unidos nos anos 1990, ganhando cerca de 100 mil dólares por ano para sustentar o poder da indústria cinematográfica em Washington (2008; p. 288298). Após a saída de Jack Valenti, foi indicado o democrata Dan Glickman para o cargo. Antigo secretário da agricultura no governo Clinton entre 1995 e 2001, foi indicado para alterar a forma de trabalho da MPAA e integrá-la ao mundo digital, tecnologia que havia se desenvolvido ao longo do fim do século XX e já estava popularizada em 2004. Um dos maiores desafios de Glickman foi a tentativa de combate à pirataria virtual5, acompanhando o que a indústria fonográfica já havia feito no início dos anos 2000, quando o criador do Napster foi processado por pirataria por representantes do Metallica, banda de trash metal fundada nos anos 1980.6 Em 2011, o cargo foi assumido por Christopher Dodd, senador do estado de Connecticut pelo partido democrata entre 1981 e 2011, que continuou a luta contra os crimes na internet, sendo um dos principais apoiadores da SOPA, uma proposta para criar um conjunto de leis com objetivo de regularizar a navegação na internet, colocando a responsabilidade da pirataria nas pessoas que disponibilizam o material na rede e nos que fazem o download do mesmo.7 A atuação destas lideranças da MPAA durante o século XX nos mostra como que a indústria cinematográfica está relacionada à política norte-americana. Além da produção de filmes de propaganda na Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria e na Guerra contra o terrorismo, as relações entre os estúdios e os partidos eram estabelecidas para fortalecer a indústria e a própria imagem dos políticos. A criação de um "código de disciplina" pelo cinema começou como uma tentativa de fortalecer um determinado grupo e terminou como jogada política, conduzida por lobistas e membros dos governos.

Realizando um exercício: Avatar e Os Vingadores Partindo da análise da indústria cinematográfica norte-americana em que toda produção deve ser voltada para obtenção de lucro para os investidores e a parte

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mais expressiva do montante é oriunda das bilheterias internas e externas aos Estados Unidos, os filmes de grande audiência nos cinemas nos mostram um padrão de preferência da sociedade, que consome agendas contidas no subtexto dos longas-metragens. Escolhemos para o artigo filmes que estão entre as maiores bilheterias dentro e fora dos Estados Unidos. As análises serão realizadas a partir da compreensão dos debates do período em que os filmes foram realizados. Em 2009, período em que os debates sobre o funcionamento das instituições norte-americanas eram evidentes por conta dos problemas oriundos das guerras no Oriente Médio e da crise econômica que levou uma série de grandes empresas à falência no país, Avatar é lançado com uma pauta de discussão sobre o meio ambiente, o papel predatório das indústrias de mineração e a relação entre culturas e povos diferentes. Avatar (James Cameron, 2009, 162 min), é a maior bilheteria do cinema norteamericano fora do país e a segunda maior dentro dos Estados Unidos9, sendo batido pelo sétimo filme da saga Star Wars em 2015. Avatar nos mostra a história do soldado paraplégico Jake Sully (Sam Worthington), que é chamado para substituir seu irmão gêmeo em um trabalho de levantamento antropológico e ambiental durante uma missão de exploração de recursos no planeta Pandora no ano de 2154. Ao chegar ao local, Sully é integrado à equipe da doutora Grace Augustine (Sigourney Weaver) para assumir o controle do Avatar, uma criatura construída em laboratório com as mesmas condições biológicas dos seres de Pandora, produzido para ser utilizado pelo seu irmão. Em 2012, ano de eleições presidenciais nos Estados Unidos, os debates sobre segurança e instituições ainda eram recorrentes, quando Os Vingadores, produzido pela Marvel Studios, foi lançado. O filme tem uma pauta de relação tensa entre povos diferentes (mais um filme de seres humanos contra extraterrestres) e o debate sobre privatização da segurança do país, presente em outros filmes da série Homem de Ferro. Os Vingadores (The Avengers, Joss Wheldon, 2012, 143 minutos), quinto da lista das maiores bilheterias dentro e fora dos Estados Unidos, conta a história da tentativa de invasão da Terra por seres alienígenas que vieram ao planeta para exterminar a raça humana. Para combater tal ameaça, é acionado o grupo dos vingadores, formados por heróis icônicos, além do Capitão América, como o Homem de Ferro (Robert Downey Jr.), Hulk (Mark Ruffalo) e Thor (Chris Hemsworth), que se unem para lutar contra os alienígenas invasores na cidade de Nova Iorque. O objetivo dos heróis é claro: união em situação adversa para proteger a liberdade do povo americano, uma vez que a invasão é feita a partir numa das maiores cidades dos Estados Unidos. Analisaremos os dois filmes a partir das categorias de segurança interna, segurança internacional e a relação com o “outro”, temáticas de debates presentes desde os atentados de 11 de setembro, quando a política em relação aos países do

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Oriente Médio e potenciais ameaças se tornou uma agenda, perdurando nos governos Bush, Obama e Trump9.

Segurança interna Em Avatar, há um debate importante com relação à defesa da vida e dos seus direitos, quando a tribo dos Omaticaya, que habitam o planeta Pandora, resolvem se defender contra a companhia de exploração dos recursos minerais, legitimando o ataque aos mercenários contratados para oprimir os habitantes e garantir a destruição da floresta. Desta forma, os Omaticaya, reivindicando o direito de defender sua propriedade (no caso, as árvores sagradas e as que abrigavam as pessoas), pegam em armas para lutar contra o invasor e vencem. A vitória, neste caso, legitima e reforça a Segunda Emenda. No final de Os Vingadores, vemos um debate sobre a capacidade destrutiva dos heróis ser uma propriedade privada. Após a vitória do grupo contra os alienígenas, uma série de programas de televisão passam a discutir em como os heróis podem representar uma ameaça à sociedade, uma vez que eles possuem alto poder destrutivo. A resposta que conclui este debate é dada pela enfermeira salva pelo Capitão América: ele não pode ser considerado uma ameaça por ter poderes que tem um alto potencial destrutivo, pois suas habilidades foram utilizadas para salvar vidas e defender a cidade das consequências da invasão extraterrestre. A mesma questão ocorre nas histórias de Hulk, Homem de ferro e Thor. O monstro verde, em filmes anteriores, tenta ser controlado pelo exército e afastado da sociedade para evitar que a "arma" possa ser controlada por agente externos às forças de segurança do estado; Tony Stark, o homem de ferro, a partir de seus conhecimentos tecnológicos, declara que privatizou a paz mundial quando desenvolveu os protótipos da armadura que usa; e Thor teve sua arma capturada por agentes de segurança para evitar que saísse do controle dos órgãos do estado. Todos, em algum momento, foram considerados ameaças e depois absolvidos por terem salvado os cidadãos americanos.

Segurança internacional No primeiro filme listado podemos ver o debate sobre política externa a partir da a questão da segurança internacional aliada à extração de recursos minerais. Podemos perceber este ponto quando analisamos a forma de atuação da corporação dirigida por Parker Selfridge (Giovanni Ribisi), que investe pesado em tropas mercenárias para garantir a segurança da empresa e "pacificar" a relação com os Omaticaya, resistentes à presença dos terráqueos em seu planeta. Ao mesmo tempo que o processo de securitização é implementado por mercenários, há uma tentativa de investimento na tribo, com intuito de facilitar o trabalho dos mercenários. Estas medidas são realizadas para garantir a extração de minérios

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valiosos para a empresa, que seriam revendidos no planeta Terra por altas quantias. Desenvolvido como crítica por James Cameron, a corporação é um retrato dos Estados Unidos na guerra contra o terrorismo, quando o país utilizou empresas de segurança, como a blackwater, para garantir a segurança de empresas (principalmente as petroleiras) e agentes importantes localizados no Afeganistão e Iraque. No segundo filme, a questão da política externa pode ser vista em determinados momentos na história: o primeiro, mais direto, é a reação do líder da iniciativa vingadores, Nick Fury (Samuel L. Jackson), quando a invasão extraterrestre é vencida pelos heróis. Fury é questionado pelos governantes por ter deixado os heróis "soltos" após a ação e ainda permitir que os fatos que ocorreram na cidade de Nova Iorque tenham se espalhado pelas emissoras de televisão pelo mundo. Em resposta, Fury afirma que sua decisão foi proposital, pois os demais seres que tentarem invadir ou atacar o país sofreriam as mesmas consequências que os alienígenas que tentaram destruir Nova Iorque. Desta forma, a política de manutenção da paz através de um aparato militar fortalecido se mostra clara no pensamento de Fury, que coaduna com o pensamento em relação à política externa americana desde o final da Guerra Fria.

Relação com o “outro” A questão da relação com o outro também é um tema central em filmes listados nesta categoria. Em The Avengers, os extraterrestres são liderados pelo vilão Loki (Tom Hiddlestom), irmão de Thor, que planeja vingança por ter sido derrotado quando tentou usurpar o reinado de Asgard. Para tal, ele planeja uma invasão seguido de destruição do planeta Terra, local estimado por Thor e que possuía tecnologia para a migração entre mundos, importante para uma nova tentativa de entrar em guerra contra Asgard. O diálogo entre Loki e Tony Stark mostra que não há negociação de paz com o outro: enquanto o primeiro mostra a quantidade de alienígenas preparados para invadir Nova Iorque, o segundo reforça o poderio de suas armas e companheiros, com a frase: "nós temos o Hulk". Os seres invasores, como a maioria dos inimigos que enfrentaram os Estados Unidos ao longo do século XX, não possuem rosto, são todos iguais e comandados por forças externas desconhecidas, mas que não são páreo para o grupo de heróis, que, mesmo em menor número, conseguem destruir todos os alienígenas. No caso de Avatar, o diretor James Cameron retratou uma guerra ocorrida pela defesa de um território e a exploração de recursos minerais, diferente do que foi realizado no filme da Marvel. Os Omaticaya assumiram o papel de insurgentes a uma ordem imposta pela empresa de mineração, podendo ser comparados ao povo iraquiano e afegão quando contrariados pela política norte-americana de apoiar governos impopulares e promover a entrada de empresas para explorar os campos de petróleo na região10.

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Considerações finais Partindo da análise de que todo filme deve ser compreendido pelos seus diversos textos e o subtexto (TEIXEIRA DA SILVA, 2004), que corresponde ao seu contexto de produção e lançamento, defendemos a tese de que filmes de ficção de grande público devem ser utilizados em sala de aula, de forma que o professor possa realizar um debate planejado e relacionado ao debate da sociedade contemporânea à obra cinematográfica. Desta forma, filmes que possuem uma maior facilidade de contato com os alunos poderiam ser relativizados pelo professor, que auxiliará no processo de reflexão do que está sendo discutindo na história. Filmes de ficção nos mostram os anseios de uma sociedade contemporânea, em que os heróis e os vilões funcionam como uma representação dos medos e esperanças da sociedade. Obviamente, essas questões só podem ser pensadas a partir da obtenção de “experiências”, defendidas por Marc Bloch (2002) como um dos elementos centrais para o pesquisador desenvolver análises mais consistentes de um objeto. As “experiências” para análise dos filmes de ficção e os filmes históricos se darão pela vivência dos alunos - a realidade de cada um, como defende Pierre Sorlin (1992) - e pelo papel do professor como mediador dessas informações, que são massificadas pelo cinema muitas vezes sem uma análise. Um dos exemplos mais expressivos desse caso é A vida é bela (La vitta è bella, Roberto Begnini, Itália, 1997, 117 min) em que, sem a devida contextualização e a compreensão de que o cinema não tem compromisso com a verdade, pode ser encarada de forma que o Holocausto possa ser relativizado, levando a acusações infundadas11. Portanto, o filme deve ser visto para além de uma ilustração do passado. Ele pode ser compreendido pelo seu presente, analisando o ser humano em seu tempo, o elemento central para todo historiador. Essa percepção aumenta nossas possibilidades de trabalho com filmes em sala, auxiliando em atividades mais dinâmicas e lúdicas para nossos alunos, que se sentem mais próximos do que está sendo estudado.

Referências bibliográficas FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade?. In: NORA, Pierre. História: Novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. GOMERY, Douglas. The Hollywood Studio System. In: NOWELL-SMITH, Geoffrey. The oxford history of world cinema: the definitive history of cinema worldwide. New York: Oxford University Press: 1997

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______________.The Hollywood Studio System: A History. London: British Film Institute, 2008. ROSENSTONE, ROBERT. A história nos filmes os filmes na História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. SILVA, F. C. T. Cinema e guerra: um encontro no presente. In: TEMPO, Rio de Janeiro, no. 16. SORLIN, Pierre. Sociología del cine: La apertura para la historia de mañana. México: Fondo de Cultura Económico, 1992. SOUZA, Éder Cristiano. O uso do cinema no ensino de História: Propostas Recorrentes, Dimensões Teóricas e Perspectivas da Educação Histórica. In: Escritas, vol 4, 2012.

Notas 1. Muitos livros e artigos sobre a temática foram publicados. Para ter uma análise aprofundada sobre a questão, ver: SOUZA, Éder Cristiano. O uso do cinema no ensino de História: Propostas Recorrentes, Dimensões Teóricas e Perspectivas da Educação Histórica. In: Escritas, vol 4, 2012; MOCELLIN, Renato. O cinema e o ensino de História. Curitiba: Nova Didática, 2002.; NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003; NOVA, Cristiane. O Cinema e o conhecimento da História. In: Olho da História, n.º3, 2003. 2. A união durou até 1911, quando a principal empresa de rolo de filmes participante do truste, Eastman Kodak, mudou o contrato de exclusividade e passou a vender material para produtoras independentes. 3. O Oscar criado na década de 1920, sob o contexto do fortalecimento da indústria cinematográfica norte-americana. A primeira cerimônia ocorreu em 1929, quando a associação avaliou os filmes realizados nos dois anos anteriores. Entra as premiações dadas, podemos destacar: Melhor filme artístico, Melhor Diretor de filme dramático, Melhor roteiro adaptado, Melhor roteiro original, Melhor direção de filme de comédia, Melhor atriz, Melhor Ator, e Melhor Filme. Naquele momento, foram doze categorias avaliadas e não existiam todas as categorias que podemos ver nos últimos anos da entrega do Oscar, que acontece no final do inverno nos Estados Unidos (atualmente são 24, sem contar as premiações de homenagens). A primeira premiação consolidou o poder da chamada Academia, que se expandiu ao longo da década de 1950, quando passou a ser exibida na televisão nos Estados Unidos. Para mais informações, ver: http://oscar.go.com/oscar-history Acesso em: 01/03/2017.

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4. A premiação para melhor filme estrangeiro começou em 1947, ao final da Segunda Guerra Mundial e deu a premiação para o filme italiano Sciuscià, de Vitorio de Sica. Nos primeiros anos, a premiação foi dominada pelos cinemas italiano, francês e japonês, que possuem 9 dos 10 primeiros prêmios entregues nesta categoria. Para mais, ver: http://www.oscars.org/awards/academyawards/legacy/ Acesso em 01/03/2017. 5. Ver: CNET. MPAA wants ISP help in online piracy fight. Disponível em: http://www.cnet.com/news/mpaa-wants-isp-help-in-online-piracy-fight/ Acesso em 26/09/2014. 6. Para mais informações, ver: Rolling Stone Brasil. Metallica x Napster aconteceu há 8 anos. Disponível em: http://rollingstone.uol.com.br/noticia/metallica-x-napster-aconteceu-ha-8anos/#imagem0 Acesso em 01/03/2017. 7. LA TIMES. MPAA's Chris Dodd takes aim at SOPA strike. Disponível em: http://latimesblogs.latimes.com/entertainmentnewsbuzz/2012/01/doddlashes-out-at-sopa-strike.html Acesso em 01/03/2017. 8. Ver: http://www.boxofficemojo.com/alltime/world/ Acesso em 01/03/2017. 9. As perspectivas de cada governo em relação à temática são distintas: Bush defendeu a política de guerra contra o terrorismo, intensificando a presença das Forças Armadas norte-americanas no Oriente Médio e as fronteiras com os Estados Unidos; Obama retirou as tropas do Iraque e aumentou no Afeganistão e desenvolveu um debate sobre o controle de armas nos Estados Unidos; Bush, no início de seu mandato, discute a finalização do muro entre Estados Unidos e México e a proibição da entrada de imigrantes no país, oriundo das regiões de refugiados. Para ver mais sobre a política externa de bush e Obama, ver: VIDIGAL, A. A. F. Algumas tendências da Política Externa dos Estados Unidos após o fim da Guerra Fria. In: Intellector. Ano III, Vol. III, No.6. Rio de Janeiro, 2007; POWELL, Charles. La política exterior y de seguridad de Barack Obama: ¿Hacia un nuevo paradigma geopolítico estadounidense?. Real Instituto Elcano. Madrid, 2015. 10. PODHORETZ, John. Avatarocious: Another spectacle hits an iceberg and sinks. The Weekly Standard, Vol 15. No. 15. 2009. Disponível em: http://www.weeklystandard.com/Content/Public/Articles/000/000/017/350 fozta.asp# Acesso em 01/03/2017 11. O filme foi considerado como negacionista, ou seja, que relativiza o Holocausto. Para mais, ver:

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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq16059830.htm Acesso em 01/03/2017.

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ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: DIÁLOGOS E REFLEXÕES PARA A PRÁTICA EDUCATIVA Jaqueline Ap. M. Zarbato “Folheava o livro Photographias de Lisboa 1900, de Marina Tavares Dias, quando parei numa imagem que tinha algo de muito familiar — e, ao mesmo tempo, algo de profundamente distante das minhas memórias. É uma fotografia de um chafariz de pedra, daqueles que existem em várias zonas de Lisboa. Mas havia neste qualquer coisa que eu reconheceria mesmo que apenas o vislumbrasse: olhei para ele todos os dias durante pelo menos 20 anos.O chafariz da Rua de Entrecampos fica junto à casa onde cresci, encostado à linha do comboio e, hoje, em frente do edifício da EDP que um dia ali despontou, demasiado grande para tudo o que o rodeava. Na parede de um dos seus “braços” estão cartazes de publicidade antigos — Licor Cointreau, Aguas Fuente Nueva, Odol, o melhor para os dentes. E, à frente, duas carroças com grandes rodas de madeira, puxadas por burros e carregadas até ao limite com trouxas de roupa lavada. Montadas em cima das trouxas, as lavadeiras saloias, de saias compridas e lenços na cabeça, lançam ao fotógrafo um olhar entre a curiosidade e a suspeita”. Crônica Rua entrecampos, Portugal. Disponível em https://www.publico.pt/local/noticia/quando-a-minha-rua-era-umaaldeia-1716448. Acessado em 08/07/2016

Esse texto retirado da crônica Rua entrecampos, Portugal em que o autor narra a partir de suas lembranças, exaltadas num livro de fotografias, as minúcias e as táticas cotidianas de um tempo e a relação com o patrimônio cultural e das estratégias culturais das pessoas que circulavam na rua contribuiu para ‘ alimentar’ nossa inquietação sobre a narrativa do contexto cultural brasileiro. Em que podemos abordar a partir do patrimônio, a investigação sobre as cidades, praças, ruas, lugares, edificações, e as muitas lembranças e histórias escondidas ou silenciadas nas ‘vielas’, nos casarões, nas fotografias, que remontam o entrelaçar de diferentes culturas que fundamentam o patrimônio cultural brasileiro. A complexidade da abordagem sobre o patrimônio cultural na aula de história tem sensibilizado diferentes fundamentações, estudos e narrativas. Há ainda, alguns

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encaminhamentos epistemológicos de um lado, sobre o patrimônio cultural e, de outro lado sobre a educação patrimonial, pois para alguns estudiosos, abordar a questão do patrimônio já pressupõe educar. E para outros, é necessário utilizar o conceito de educação patrimonial, uma vez que estabelece critérios e inserções no espaço escolar. Como aponta Fernandes (1992/93) objetivo da educação patrimonial é "desenvolver a sensibilidade e a consciência dos educandos e futuros cidadãos da importância da preservação dos bens culturais”. No conteúdo das diretrizes educacionais, tem-se nos Parâmetros Curriculares Nacionais, (PCN´s/1997) o destaque sobre o patrimônio, em que propõem ao aluno “conhecer a diversidade do Patrimônio etnocultural brasileiro, tendo uma atitude de respeito para com as pessoas e grupos que a compõem”. A Educação Patrimonial, tradução do Heritage Education – expressão inglesa, surge no Brasil em meio a importantes discussões da necessidade de se aprofundar o conhecimento e a preservação do Patrimônio Histórico-Cultural. Foi exatamente em 1983 que se iniciam efetivamente as ações de Educação Patrimonial por ocasião do 1º Seminário sobre o “Uso Educacional de Museus e Monumentos”, no Museu Imperial de Petrópolis, RJ. O princípio básico da Educação Patrimonial: Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento individual e coletivo. (HORTA, 2004). De certa forma, nesses tempos em que as pessoas não se reconhecem mais nos lugares em que habitam, em que tudo é fluído, em que a democratização, massificação, mediatização, no dizer de Pierre Nora (1981, p. 7), provoca uma “oscilação cada vez mais rápida de um passado definitivamente morto, a percepção global de qualquer coisa como desaparecida – uma ruptura de equilíbrio”. Realidade que Horta (2005, p.12) definiu como “agnosia social”, a incapacidade de reconhecer o universo que nos rodeia devido a carência de habilidades de interpretação, representação e reconhecimento desta realidade, pertencentes ao pensamento e a memória. Como orienta o PCN para o Ensino Médio,( 2002, p 306) deve-se: Introduzir na sala de aula o debate sobre o significado de festas e monumentos comemorativos, de museus, arquivos, áreas preservadas, permeia a compreensão do papel da memória na vida da população, dos vínculos que cada geração estabelece com outras gerações, das raízes culturais e históricas que caracterizam a sociedade humana. Retirar os alunos da sala de aula e proporcionar-lhes o contato ativo e crítico com as ruas, praças, edifícios públicos e monumentos constitui excelente oportunidade para desenvolvimento de uma aprendizagem significativa. A metodologia da Educação patrimonial pode contribuir para a compreensão do passado, instigando nos/as alunos/as os sentimentos de pertencimento ao seu lugar, com a inserção e utilização de procedimentos que podem constituir relações identitárias entre o educando e a história local através da construção de saberes

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sobre o patrimônio cultural. Segundo Matozzi (2008, p 138), para abordar a questão do patrimônio é necessário analisá-lo segundo algumas premissas: Primeiramente, porque os bens culturais são simplesmente marcas que devem ser transformadas em instrumentos de informação, mas se tornam elementos que marcam o território e são o meio de seu conhecimento. Em segundo lugar, porque são considerados parte de um patrimônio difuso no território,em relações com instituições e administrações que têm poderes de gestão de alguns aspectos do território (governos locais, superintendências, direções de museus e de sítios patrimoniais...).Graças ao uso dos bens culturais e graças à educação para o patrimônio, o aluno adquire conhecimentos sobre o território e sobre os problemas da sua gestão e pode tornar-se um cidadão consciente, interessado e crítico Assim, abordar as inter relações e diálogos possíveis sobre ensino de história e educação patrimonial. Uma vez que, no fazer e saber da história ensinada, pode-se fundamentar as práticas educativas, inserindo diferentes elementos teóricos e metodológicos, como: fontes históricas, documento monumento, edificações, festas, tradições de grupos sociais, etc, que são definidos no campo da cultura material e imaterial. E é neste percurso que a Educação Patrimonial contribui com o ensino de história, pois amplia o ‘olhar’ sobre as questões culturais, além de possibilitar um inserção metodológica da prática de leitura e de crítica da manutenção, valorização e disseminação dos bens culturais e de que forma ensinar história a partir deles. Para Maria de Lourdes Horta (1999) há alguns princípios que devem reger a educação patrimonial, para que seja possível compreender o processo permanente e sistemático do trabalho educacional, que utiliza o patrimônio cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. Segundo a autora, a partir do entendimento de que os objetos e expressões do patrimônio cultural são ponto de partida para a atividade pedagógica, é possível ampliar esse conhecimento e os dados observados e investigados diretamente. Pois: A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho da Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural. A observação direta e a análise das “evidências” (aquilo que está à vista de nossos olhos) culturais permitem à criança ou ao adulto vivenciar a experiência e o método dos cientistas, dos historiadores, dos arqueólogos, que partem dos fenômenos encontrados e da análise de seus elementos materiais, formais e funcionais para chegar a conclusões que sustentam suas teorias. O aprendizado desse método

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investigatório é uma das primeiras capacitações que se pode estimular nos alunos, no processo educacional., desenvolvendo suas habilidades de observação, de análise crítica, de comparação e dedução, de formulação de hipóteses e de solução de problemas colocados pelos fatos e fenômenos observado. Este encaminhamento de entrelaçar as concepções do ensino de história com a educação patrimonial contribui também para o processo de formação inicial e continuada de professores, tendo em vista, que amplia os horizontes sobre as questões das histórias e das culturas. Desta maneira, congregar professores/as, pesquisadores/as, estudantes e demais interessados em discutir as questões que envolvem o ensino de história e educação patrimonial. Vivemos um tempo histórico em que é importante salientar a contribuição das diferentes culturas, de suas heranças, do pertencimento, do estranhamento. E na prática educativa, o/a professor/a se depara com inúmeros conceitos, fontes, saberes, concepções históricas, que podem ser fundamentadas a partir da utilização da metodologia da Educação Patrimonial, com: levantamento de objetos históricos, saídas de campo, memórias de habitantes, utilização de fontes de arquivos, entre outros.

Referências Bibliográficas BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: História. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 1998. FERNANDES, J.R.O. Educação Patrimonial e cidadania: uma proposta alternativa para o ensino de historia. In Revista Brasileira de História (Memória, História e Historiografia) São Paulo. Vol.13.n. 2526, pp.265-276. Set 92/agos 93. GIROUX, H. Cruzando as fronteiras do discurso educacional. Trad. Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 1999. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Monumentalidade e cotidiano: Os patrimônios culturais como gênero do discurso. In._OLIVEIRA, Lucia Lipp (Org.) Cidade: História e Desafios. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002. HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina. MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia Básico de educação Patrimonial. Brasília: IPHAN/Museu Imperial, 1999. MATOZZI, Ivo. Currículo de História e educação para o patrimônio. Educ. rev. [online]. 2008, n.47, pp. 135-155.

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INTERDISCIPLINARIEDADE NA INICIAÇÃO À DOCÊNCIA COMO ESTRATÉGIA PARA O ENSINO DA HISTÓRIA Jeannie da Silva Menezes A Universidade Federal Rural de Pernambuco atua junto a CAPES na realização do PIBID/UFRPE desde 2007, quando enviamos a primeira proposta da instituição. Em 2008, teve início o trabalho ininterrupto com a iniciação a docência que se estende aos dias atuais. O eixo estruturador da proposta da UFRPE é “Ciência e contexto: o letramento científico na educação básica” que é trabalhado em uma perspectiva interdisciplinar. O objetivo deste artigo é refletir sobre algumas experiências interdisciplinares na vigência do PIBID da área de História na UFRPE. Neste texto, buscamos trazer para a reflexão os papéis da interdisciplinaridade no ensino da história, percebendo-a nas suas muitas perspectivas, como já dissemos em outro texto em vias de publicação, enquanto uma atitude, um modo de pensar, um pressuposto da organização curricular e um fundamento para as opções metodológicas do ensinar. Conforme está assinalado no subprojeto que orienta a nossa área de atuação no PIBID, previmos a promoção de ações interdisciplinares com o objetivo de integrar as metodologias de ensino das áreas de conhecimento envolvidas na proposta institucional (matemática, biologia, química, física história, português, informática e ciências agrárias). Em princípio, o subprojeto de história registra os desafios ao ensino da história no contexto atual, sobretudo pela necessidade do reconhecimento da dinâmica cultural escolar e da defesa de um currículo multicultural, que são pressupostos do nosso subprojeto no PIBID. Daí se apresentam alguns desafios para as aulas de História, somados à visão fragmentada do conhecimento. Enfim, a disciplina de História não tem sido fértil de projetos interdisciplinares (CARRETERO, 1997) porém são eles um caminho necessário a trilhar. Segundo Morin “o pensamento contextual busca sempre a relação de inseparabilidade e as inter-retroações entre qualquer fenômeno e seu contexto, e deste com o contexto planetário” (MORIN apud THIESEN, 2008, p.545). Na medida em que a interdisciplinaridade é uma reação à abordagem disciplinar nomalizadora, ela sempre se caracterizará pelas trocas. Especialistas que promovam a interação entre as disciplinas em um mesmo projeto de ensino podem tornar possível a introdução de novos temas no currículo e de uma perspectiva multicultural nos conteúdos considerados universais, desse modo possibilitando

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“auscultar o currículo real reconstruído no cotidiano escolar” (FONSECA, 2011, p. 37). O PIBID da UFRPE (SEDE) tem conveniadas as escolas estaduais Ministro Jarbas Passarinho, EREM Professor Cândido Duarte, EREM Dom Bosco, Colégio Agrícola Dom Agostinho Ikas, EREM Ginásio Pernambucano, EREM Trajano de Mendonça e Escola Técnica Estadual Alcides do Nascimento Lins. A observação das mais diversas atividades realizadas naquelas escolas ao longo dos anos de 2013 – 2016, possibilitou refletirmos sobre as iniciativas construídas em uma perspectiva interdisciplinar. Oficinas interdisciplinares de História e Direitos Humanos na Escola Cândido Duarte que tematizaram o Estatuto da Criança e do Adolescente e a história da infância no Brasil. A edição de um livro de poesias e de um jornal escolar na Escola Dom Bosco reunindo temas, alunos e resultados de projetos das áreas de História, Letras e Biologia são alguns dos produtos da execução desta perspectiva. O projeto “Um minuto de história” na Escola Técnica Estadual Alcides do Nascimento Lins tem levado os alunos e bolsistas a produzirem curtas metragens de 1 minuto sobre temáticas como o racismo. Nesta última escola, realizamos também oficinas pedagógicas interdisciplinares sobre o conceito de gênero e sobre as relações de gênero ao longo da história em uma perspectiva crítica da homofobia e de seus efeitos no presente. O que a experiência do PIBID/História tem revelado é que a prática interdisciplinar funciona como uma estratégia de ação. Se na trajetória de construção da disciplina, percebemos que o ensino da História é área de interesse interdisciplinar por excelência (FURET apud CERRI, p. 2009), nem a História e tampouco as Ciências Sociais têm sido campos férteis de projetos interdisciplinares e nos perguntamos as razões para esta constatação (CARRETERO, 1997). Sabemos que o ensino não é mero veículo de transmissão das concepções historiográficas. Segundo Cerri, ele “envolve a formação de habilidades metódicas, mediante o domínio de regras particulares de inferência e decisão e de um posicionamento teórico que permita ordenar e explicar os fatos históricos de modo compreensível” (2009, p. 150). Isto quer dizer que também nos espaços de ensino se opera a construção teórica. Não cabendo, portanto, a idéia apartada de que a História-ciência produz enquanto a História ensinada reproduz, divulga ou didatiza para o mundo dos não-iniciados (CERRI, 2009, p. 154). Enfim, para Sílvio Gallo (1997), a transversalidade abandona os verticalismos e horizontalismos e os substitui por um fluxo que pode tomar qualquer direção sem nenhuma hierarquia, possibilitando conexões inimagináveis entre as várias áreas do saber (GALLO apud FONSECA). Eis o estado ideal que um projeto interdisciplinar pode alcançar e o ensino de História está apto a recebê-lo, como nossa experiência tem mostrado.

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Referências BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais (1a a 4a séries): história, geografia. Brasília : MEC/SEF, 1997. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais (5a a 8a série): história. Brasília : MEC / SEF, 1998. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio: ciências humanas. Brasília : MEC / SEF, 2000. BRASIL. Secretaria de Educação Básica. PCN+ - Ensino Médio, Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: 2002. BRASIL, Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o Ensino Médio: Ciências humanas e suas tecnologias. – Brasília, 2006. v. 3. CARRETERO, Mario. Construir e ensinar as Ciências Sociais e a História. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. CERRI, Luis Fernando. Espaço Plural. Ano X, n. 20, Primeiro semestre/2009, 149-154p. __________. Fronteiras interdisciplinares no Ensino da História. Anais do Seminário Perspectivas. São Paulo, 1988 DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente e ensino de História. Revista História Hoje, v. 2, n. 4, 2013, p. 19 – 34. FAZENDA, Ivani. Práticas Interdisciplinares na Escola. São Paulo: Cortez, 199 FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v.94, n. 3, p.111-124, maio/jun., 2000. GUIMARÃES, Selva. Didática e Prática de Ensino de História. 12. ed. Campinas, São Paulo: Editora Papirus, 2011 LIMA, Aline Cristina da Silva ; AZEVEDO, Crislane Barbosa de. A interdisciplinaridade no Brasil e o ensino de História: um diálogo possível. Revista Educação e Linguagens. Campo Mourão, v. 2, n. 3, jul/dez 2013 RÜSEN, Jörn. Razão Histórica. Brasília: EdUNB, 2001

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SILVA, Marcos Antônio da; FONSECA, Selva Guimarães. Ensino de História hoje: errâncias, conquistas e perdas. Revista Brasileira de História., São Paulo , v. 30, n. 60, p. 13-33, 2010 . THIESEN, Juares da Silva. A interdisciplinaridade como um movimento articulador no processo ensino-aprendizagem. Revista Brasileira de Educação. V. 13, n. 39, set/dez 2008, p. 545-554. UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO. Subprojeto da área de História – PIBID UFRPE, Recife, 2013.

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EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA: O QUE É ISSO? Kalina Vanderlei Silva Apresentação O que é história? Para que serve a história? Como ensinar história? Como aprender história? Como pesquisar história? Essas são perguntas clássicas que estão na base da formação de todo historiador desde que a disciplina foi formada no século XIX, e mesmo antes, em todos aqueles filósofos e escritores que se esforçavam por entender o mundo a sua volta. Essas perguntas também estão no conteúdo programático de várias disciplinas dos cursos de História no Brasil, porque elas são importantíssimas. O profissional que trabalha com a história deve tê-las em mente, refletir sobre elas e tentar respondelas, apesar das respostas nunca serem fáceis nem simples e do fato de que elas mudam todo o tempo. E são essas perguntas que moldam o campo chamado Epistemologia da História.

O que é epistemologia A palavra epistemologia vem do grego e significa estudo do conhecimento. Ela deu origem a todo um ramo de conhecimento filosófico: um ramo cujo objetivo é estudar as formas de produção de conhecimento cientifico. Assim, toda ciência tem sua epistemologia, e a Filosofia tem a disciplina chamada Epistemologia que está encarregada de fazer uma reflexão geral sobre as formas e métodos de produção de conhecimento. A Epistemologia enquanto área da Filosofia é uma grande teoria geral do conhecimento e que se preocupa, em primeiro lugar, em estabelecer uma diferença entre ter conhecimento e ter opinião. Todo mundo tem uma opinião, ou várias, acerca de tudo. Mas essas opiniões são subjetivas, pessoais, sujeitas a preconceitos e sentimentos variados, muitas vezes baseadas em superstições, e mudam todo o tempo. Assim, ter opinião sobre um assunto não é conhecer o assunto. Só o método científico, objetivo, empírico, baseado em fontes, permite o acesso ao conhecimento de fato. E esse é o primeiro objetivo da Epistemologia: estabelecer que o conhecimento científico é diferente do senso comum, e como ele é diferente. E seguindo esse objetivo, vem

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o segundo objetivo da epistemologia: estabelecer quais as fontes para a produção desse conhecimento? Nesse sentido, a epistemologia de cada disciplina científica tem como objetivo principal produzir os métodos usados pelos cientistas daquela área de saber para produzirem suas pesquisas e chegarem a seus resultados. E por causa da especificidade de cada disciplina científica, os métodos de produção de conhecimento serão diferentes de uma ciência para a outra: uns trabalham com técnicas de laboratório, outros trabalham com cálculos, outros trabalham com documentos e entrevistas. Assim, se o objetivo da Ciência como um todo e de todas suas disciplinas é produzir conhecimento, o que só pode ser feito através da pesquisa, o objetivo da Epistemologia é construir as ferramentas para que esse conhecimento possa ser alcançado. De forma simples, o método científico é um conjunto de regras para a produção de uma experiencia que busca conhecer mais sobre um objeto ou um assunto. Claro que ele é muito mais complicado do que isso, e que cada ciência constrói sua própria coleção de métodos, mas a explicação mais simples sobre o que é o método cientifico é que ele é uma coleção de regras que todo cientista precisa seguir para conduzir sua pesquisa. Visto a importância atual da Ciência, que está em todas nossas atividades cotidianas, e que se tornou importante a ponto de ter se tornado quase uma religião em si, não é de espantar que a Epistemologia enquanto disciplina filosófica seja uma das áreas mais importantes da Filosofia hoje. Qual a natureza do conhecimento? Qual a origem do conhecimento? Quais seus limites? Essas são questões que se destacam atualmente na Epistemologia. Além, é claro, de que matérias, fontes, experimentos são possíveis, e permitidos, para a Ciência. E são questões que se multiplicam nas epistemologias de cada disciplina especifica, como veremos com o caso da Epistemologia da História.

Epistemologia da História: a produção de conhecimento em história Então o que é a Epistemologia da História? Considerando que Epistemologia é a disciplina que investiga a produção do conhecimento, então a Epistemologia da História tem como objetivo estudar a produção de conhecimento histórico, e faz isso a partir tanto da reflexão sobre seus materiais e fontes, quanto seus métodos e, por fim, as próprias concepções teóricas que, ao longo de métodos e fontes, embasam os resultados encontrados pelos historiadores. Em geral, os próprios currículos dos cursos de História no Brasil separam os tópicos que constituem a Epistemologia da História em disciplinas teóricas,

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disciplinas voltadas para os métodos de pesquisa, e disciplinas voltadas para os métodos de ensino. Mas esses elementos não podem ser pensados de forma separada quando o que se está buscando é produzir conhecimento histórico, pois eles funcionam em conexão. Para entender isso é preciso entender o que é o conhecimento histórico. Isso é quase o mesmo que perguntar o que é História, mas enquanto a História é a disciplina geral, o conhecimento histórico é o conjunto dos resultados mais imediatos encontrados pelo historiador. Ou seja, são as repostas para as perguntas que ele se coloca ao se debruçar sobre as fontes históricas, usando os métodos de pesquisa mais apropriados para essas fontes e refletindo sobre as mesmas a partir de determinado conjunto de teorias. Mas conhecimento histórico é também o que o professor ensino todos os dias em sua sala de aula; é como ele organiza os fatos e dados sobre determinada sociedade no tempo e como ele apresenta esses resultados aos alunos. Como ele encontra significados no material estudado e como ele repassa esses significados para seus estudantes. De forma nenhuma o conhecimento histórico produzido por historiadores e professores se limita apenas a copiar e decorar fatos e nomes retirados de documentos e livros. Contra essa ideia gerações de historiadores se levantaram ao longo do século XX. O conhecimento histórico, seja em sua faceta de pesquisa ou na de ensino, tem uma função muito clara: ele é uma ferramenta para a formação de um pensamento independente e crítico. Quem estuda história, ou seja, quem tenta desvendar as diversas formas como a humanidade se organizou ao longo do tempo e do espaço, e os porquês dessas sociedades e culturas, aprende a ver a humanidade em sua complexidade, aprende a entender as razões que levam às ações cotidianas dos diferentes atores sociais. Assim sendo, a afirmação de Heródoto sobre a História ser o estudo do passado para entender o presente ainda é válida hoje. O primeiro passo para a produção do conhecimento histórico é a pesquisa. A pesquisa histórica é a área mais ‘mão na massa’ da disciplina. É nela que o historiador se depara com os materiais mais básicos para a produção do conhecimento: as fontes históricas. O objeto da história, o passado, é algo muito intangível. Não é possível medir, pesar, calcular, atomizar, o passado (ou o presente), visto que ‘passado’ é uma abstração, uma construção conceitual da mente humana para explicar seu entendimento do tempo. Nesse sentido, com um objeto de trabalho tão subjetivo, e tão inalcançável, como o historiador pode trabalhar? Através dos vestígios deixados pelas pessoas que viveram nesse passado: objetivos, textos, arte, ideias, cidades, plantações. Todas as ‘sobras’ do passado humano são fontes para a história, são documentos históricos, sejam elas textos, imagens ou objetos.

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Como tais fontes são os únicos vestígios do passado, a pesquisa histórica se baseia totalmente sobre elas. O historiador deve identificar, selecionar e estudar tais fontes para acessar o período no qual as mesmas foram produzidas. Obviamente ele não pode simplesmente pegar um desses vestígios e tirar suas conclusões, sem estudar o período antes, sem preparar um projeto com questões, hipóteses, métodos selecionados; sem se apropriar de teorias específicas. Tudo isso constitui o exercício da produção de conhecimento histórico. A fonte histórica, por si só, não carrega o conhecimento histórico pronto.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Machu_Picchu#/media/File:Sunset_across_Machu_P icchu.jpg Essa é a cidade de Machu Picchu, nos Andes peruanos, atualmente Patrimônio Histórico da Humanidade remanescente do Império Inca. A cidade hoje é um parque nacional aberto à visitação turística, o que significa que qualquer pessoa pode apreciar os muitos vestígios históricos deixados na cidade, majoritariamente vestígios materiais de natureza arqueológica. Ou seja, qualquer visitante pode ter acesso as fontes históricas deixadas na cidade. Então, isso significa que qualquer visitante pode fazer uma análise histórica da sociedade inca que a construiu? Não.

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Na verdade, muitos são aqueles que visitam a cidade e acreditam que a mesma foi construída com a ajuda de ... alienígenas! Isso apesar dos inumeráveis estudos históricos e arqueológicos produzidos ao longo do século XX e início do XXI que procuram identificar as várias construções na cidade, que na verdade foi construída por pessoas muito reais, para ser um palácio para o imperador inca. Não há nada de misterioso em Machu Picchu, mas a falta de informação sobre a sociedade inca, e muitas vezes o preconceito, faz com que muitos leigos ainda acreditem em explicações fantasiosas para a construção da cidade.

Fonte; https://pt.wikipedia.org/wiki/Carta_a_El-Rei_D._Manuel#/media/File:Cartacaminha.png Essa é a carta escrita em 1500 pelo escrivão da armada de Pedro Alvares Cabral, Pero Vaz de Caminha, ao rei de Portugal então D Manuel I, informando sobre a tomada de posse do território que mais tarde seria o Brasil. Um documento considerado por muitos como a certidão de nascimento do Brasil, e amplamente acessível a todos em sua versão original, como exposta acima, ou em uma versão

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transcrita, como aquela disponibilizada pela Fundação Biblioteca Nacional: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf Ou seja, mesmo que o indivíduo não saiba utilizar as técnicas da paleografia para transcrever o documento original, uma metodologia muito especializada, ele pode encontrar a versão atualizada do documento com facilidade. Então, isso significa que qualquer pessoa pode ler a carta de Caminha? Sim, claro. E isso significa que qualquer pessoa poderá analisar tal carta, compreendendo os significados contidos nela e o que ela significa para a sociedade que a produziu? Definitivamente não. As 27 folhas da carta descrevem o que o escrivão viu da terra, e sua impressão, que ficou famosa, de terra fértil. No entanto, o que a carta não mostra, mas que o estudo da política portuguesa do período deixa claro, é que o escrivão se sentia na obrigação de encontrar alguma coisa na terra que valesse a pena o investimento português na colonização. Como ele não teve notícia de ouro, prata ou pedras preciosas, ele fez questão de frisar para o rei a fertilidade da mesma. O que esses dois exemplos nos mostram é que mesmo as fontes históricas mais acessíveis e famosas podem ser de difícil análise, e de mais difícil compreensão. E analisá-las e entender seus significados dentro do contexto histórico que as produziu esse é o objetivo do trabalho de pesquisa do historiador. E isso só é possível quando o historiador utiliza as ferramentas certas, sejam técnicas como a arqueologia e a paleografia, sejam as teorias históricas que facilitam a construção das perguntas que devem ser feitas às fontes. E a produção do conhecimento histórico não pode ser feita sem o recurso às teorias da História que ajudam o historiador a entender e explicar os dados coletados nas fontes, e integrá-los com significados mais amplos, relativos não apenas à sociedade que produziu tais fontes, mas à Humanidade em geral. E diversas são as correntes teóricas que se propõe a explicar a história, correntes que quando vistas em conjunto compõem toda uma área especifica de conhecimento histórico chamada de Teoria da História. Uma área intensamente integrada à Filosofia. Mas antes de mais nada, existe uma pergunta teórica básica, a pergunta mais básica da Epistemologia da História, na verdade, sobre a qual precisamos refletir: a História é ou não é uma ciência? Essa pergunta não tem uma resposta simples, de fato o que ela gera é uma discussão infindável, que começou com a própria História como disciplina, no século XIX, quando os primeiros historiadores tentaram estabelecer a história como uma ciência social, ao lado da nascente sociologia. E apesar de diversas críticas aos procedimentos dos cientificistas do XIX, os historiadores europeus da primeira metade do século XX continuaram a tentar estabelecer a história como ciência, apesar de sobre diferentes parâmetros científicos. Foi apenas no final do século XX, com a queda da própria modernidade e a crítica geral à Ciência, que muitos historiadores começaram a defender o status não-cientifico da História.

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Esses pesquisadores criticavam o status da História como ciência principalmente porque os resultados da pesquisa história não podem ser reproduzidos, como nas ciências naturais, e não obedecem a leis, como a Física. Além disso, o conhecimento histórico é muito subjetivo, suscetível à influência das questões pessoais de cada historiador, e do próprio momento no qual a pesquisa está sendo produzida. Mas se a História não é uma ciência, então o que ela é? Alguns diriam que é uma forma de arte, visto a subjetividade envolvida na sua produção. E os pôsmodernistas do final do século XX tentaram transformar a História em uma outra forma de literatura. Mas também essa perspectiva encontra, hoje, seus críticos, pois, se a História não pode reproduzir seus resultados como as ciências naturais, e se ela definitivamente não obedece a ‘leis’ da Física, por outro lado, ela certamente obedece a uma rigidez formal que é certamente derivada do método cientifico. Além disso, se os historiadores são influenciados por questões subjetivas, também os físicos, os matemáticos, os químicos o são. Nenhuma ciência é totalmente objetiva, como Einstein ensinou. Isso não transforma a História em ficção, pois o historiador, diferente do escritor ficcionista, não pode simplesmente inventar dados, fatos e personagens. Ele precisa seguir as fontes históricas. O que não significa, por outro lado, que a História não seja parente da Literatura, pois ela certamente é. Os historiadores são, afinal de contas, escritores. O que eles não são é ficcionistas. Onde isso nos deixa? Afinal, a História é Ciência ou Arte? Ou nenhuma das duas coisas? Não vamos encontrar uma resposta que seja consenso para essas perguntas, pois diferentes correntes teóricas explicam a natureza da Historia a partir de diferentes filosofias. Umas tendem mais para a ciência, como os materialistas históricos, outras tendem mais para a arte, como os pós-modernistas. Mas o que podemos, sim, afirmar, é que independente dessas discussões, a História é uma disciplina com regras específicas, mas que segue o método cientifico na organização de sua pesquisa, na busca e exposição de seus resultados. A verdade é que cada historiador tem sua própria filosofia acerca da natureza da história, defendendo que está é mais ou menos científica, ou mais ou menos artística. E a percepção teórica que cada pesquisador possui influencia muito os resultados que ele obtém, pois influencia que perguntas ele faz a suas fontes, e como ele explica os dados obtidos. Como as teorias da Historia influenciam a produção do conhecimento histórico? Talvez a principal função das teorias quando aplicadas à pesquisa histórica seja fornecer uma base racional ao conhecimento produzido. É a teoria que permite que o resultado da pesquisa seja um texto explicativo, baseado em considerações críticas e produzido dentro de um arcabouço de conhecimento compartilhado por muitos outros profissionais, e que não seja simplesmente o resultado da opinião do indivíduo que o está escrevendo. É a teoria que permite o acesso aos

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significados dos dados, da sociedade estudada, da experiência humana no tempo, e que faz com que o verdadeiro conhecimento histórico não seja apenas um amontoado de datas e nomes. Mas a produção do conhecimento histórico também é feita através do ensino, o que torna este uma parte essencial da epistemologia da história. E no caso do ensino de História muitas vezes nos deparamos com um dilema. Esse ensino não é majoritariamente teórico? No que consiste a prática da história? Se essa prática é a pesquisa histórica, ou o próprio ato de ensinar, como envolver alunos do ensino fundamental e médio na prática da história? Essas questões têm levado muitos professores a procurarem inovações tecnológicas, a produzirem dinâmicas que envolvam os alunos no ensino, entre outras coisas. Ou seja, os professores de História estão constantemente preocupados em encontrar maneiras de transformar o ensino de história em algo no qual os estudantes também podem participar. E em geral os resultados encontrados giram em torno de novas tecnologias de ensino. A dificuldade em separar teoria e prática em História reside no fato de que a história é vivência, é uma produção constante que envolve pensamento e reflexão. Aqueles que procuram uma prática de história ‘fácil’ e ‘rápida’ acabam se decepcionando. Isso não quer dizer que a prática da história não pode ser engajante, muito pelo contrário. Quando o aprendiz percebe o quanto a história é inclusiva e como ela pode ser acessível a todos, ele dificilmente esquece essa lição. A prática em história não é apenas a pesquisa histórica, mas o trabalho dos alunos com fontes históricas certamente permitirá uma aproximação maior entre esses e os meandros do conhecimento histórico. Muitos são aqueles que acreditam que uma aula de História para ser ‘prática’ precisa usar os mais modernos suportes tecnológicos: tablets estão na moda agora, mas eles são apenas uma atualização de uma onda que começou com o uso de filmes nas aulas de história, depois passou para o retroprojetor, depois para os slides. No entanto, como bem lembra o historiador Leandro Karnal: “uma aula pode ser extremamente conservadora e ultrapassada contando com todos os mais modernos meios audiovisuais. Uma aula pode ser muito dinâmica e inovadora utilizando giz, professor e aluno. Em outras palavras, podemos utilizar meios novos, mas e a própria concepção de História que deve ser repensada.” (KARNAL, 2003, p 9) Nesse sentido, podemos empregar todos os instrumentos da moda para o ensino, mas sem a nossa compreensão de que o conhecimento histórico é composto não por fatos e datas, mas pela consciência das vidas das pessoas em diferentes períodos e sociedades, não estaremos ensinando uma história de qualidade.

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E como a história é composta pelas vivências humanas, talvez a melhor maneira de ensiná-la seja fazer os alunos entenderem que eles também são parte desse conjunto. Ou seja, a melhor maneira de ensinar história é envolver o aluno.

Fonte: Calvin & Haroldo. Bill Watterson. © Universal Press Syndicate Se a produção do conhecimento histórico é feita também em sala de aula, em parceira com os alunos, e se cabe ao professor facilitar o acesso ao conteúdo da disciplina, então com que ferramentas ele pode contar? Como já disse Lenadro Karnal, um professor pode ser excelente com apenas giz e quadro negro. Isso é o mais importante e não podemos esquecer. No entanto, na sociedade da era digital a atenção de estudantes e, por que não dizer, de professores está viciada no mundo digital. Isso aumenta os desafios dos educadores que precisam competir por atenção com a Internet. Por isso muitos são aqueles que devotam tempo à construção de metodologias didáticas que utilizem, por exemplo, recursos digitais. Por outro lado, o uso de ferramentas digitais pouco vai adiantar se tudo que você está ensinando é uma lista de fatos sem conexão com o mundo atual e a vida dos estudantes. E percebendo isso é que muitos professores se dedicam ao desafio maior ainda de criar novas abordagens temáticas, que transformem o próprio conteúdo em algo dinâmico e interessante. Assim, em termos de ferramentas para o ensino de História temos as obvias opções tecnológicas, que incluem a utilização de DVDs, Projetores, Tablets, e temos as ferramentas imateriais, que consistem em escolhas metodológicas e temáticas feitas pelo professor. No caso das ferramentas físicas, muito já foi dito e escrito. E entre elas, a mais clássica para ensino de história para adolescente são os filmes. Uma ferramenta, no entanto, que requer mais cuidado do que muitos professores empregam. Os filmes, mesmo os documentários, são obras de arte que devem ser analisadas como tal. Apesar disso, por serem obras em um formato facilmente reconhecível pelos estudantes, eles podem ser uma excelente porta de acesso para diversos conteúdos programáticos, desde que fique bem entendido que o filme somente não ensina história.

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Atualmente alguns professores estão apostando também no uso de jogos e músicas para tentarem relacionar os conteúdos exigidos pelos programas brasileiros à realidade dos alunos. Além, é claro, do uso de ambientes virtuais, blogs, mídias sociais: ou seja, da internet. Mas, como podemos usar os ambientes virtuais, os programas de busca, os blogs e as redes sociais para ensinar história? Afinal, se fosse simplesmente o caso de procurar um tema no Google ou na Wikipédia, para que escolas e professores? Vejamos o blog e página de Facebook História nas Redes Sociais.

Fonte: http://historianasredessociais.blogspot.com.br/

Fonte: https://www.facebook.com/historianasredessociais

O blog, assim como sua página de Facebook, foram criados pelo então estudante de ensino médio Guilherme Corona, que em 2016 se preparava para começar a cursar a graduação em História. Seu trabalho é excelente por duas razões principais: traduzir o conteúdo das aulas de História no ensino médio para a linguagem dos adolescentes nas mídias sociais; e engajar centenas de adolescentes em discussões acerca de conteúdos históricos. O material, no entanto, não é sem problemas: o mais notável sendo a reprodução de concepções bastante conservadoras da História. Exemplo:

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Fonte: http://historianasredessociais.blogspot.com.br/2016/01/descobrimento-dobrasil-nas-redes.html

Fonte: http://historianasredessociais.blogspot.com.br/2016/01/descobrimento-dobrasil-nas-redes.html

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Ou seja, uma hilária interpretação de Cabral no Twitter. Excelente, não? Então, qual o problema? O próprio conceito de descobrimento do Brasil, que é no mínimo controverso. Então aqui voltamos para a citação de Leandro Karnal: não adianta usar os recursos mais modernos se nossa concepção da História não é atual. Mas isso é uma crítica ao estudante criador do blog História nas redes Sociais. Não! É uma crítica à História que foi ensinada para ele no ensino médio. Lembremos que ele criou o site a partir do conteúdo que aprendeu na escola. Ou seja, quaisquer problemas que o site apresente são reflexos das aulas e dos livros didáticos disponibilizados aos adolescentes. No geral, entretanto, a iniciativa do blog está entre os melhores exemplos de como as mídias sociais e ambientes virtuais podem ajudar a engajar jovens e adolescentes com a produção do conhecimento histórico. Em tudo isso vemos que, apesar do uso de diferentes ferramentas, o que faz a diferença é o engajamento do educador, e as opções temáticas que o mesmo faz e como ele aborda tais temas. A criatividade é, sem sombra de dúvida, importantíssima, mas não menos importante é a compreensão dos significados por trás de cada fato e personagem. Sem esses significados, ou seja, sem a compreensão de como as atitudes de cada pessoa moldaram os acontecimentos, não há produção de conhecimento histórico.

Referências BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. CANABARRO, Ivo dos Santos. Teoria e métodos da história I. Ijuí : Ed. Unijuí, 2008. CERRI, Luis Fernando. Ensino de histórica e consciência histórica: implicações didáticas de uma discussão contemporânea. Rio de Janeiro: FGV, 2011. FERREIRA, M. M. ; FRANCO, R. . Aprendendo História: Reflexão e Ensino. 2. ed. Editora FGV, 2013. FONSECA, Thais Nivia de Lima e . História & Ensino de História. Belo Horizonte, Autentica. 2006.

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GIANNATTASIO, Gabriel e IVANO, Rogério. (orgs.). Epistemologias da história: verdade, linguagem, realidade, interpretação e sentido na pósmodernidade. Londrina, PR: Eduel, 2011. KARNAL, Jaime (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004. MELLO, Ricardo Marques de. O que é teoria da história? Três significados possíveis. Revista História & Perspectivas. V 25, n 46, 2012. PINSKY, Carla (org). Fontes Históricas. São Paulo, Contexto. 2005. PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Novos temas nas aulas de história. São Paulo, SP: Contexto, 2009 PINSKY; DE LUCA; KARNAL (org). O Historiador e Suas Fontes. São Paulo, Contexto. 2009. PROST, Antoine. Doze Lições sobre História. Belo Horizonte, Autentica. 2008. SANT’ANNA, Ilza; MENEGOLLA, Maximiliano. Didática – aprender a Ensinar. São Paulo, Loyola. 2002. SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, edição n. 2, 2006. SILVA, Marcos A.; FONSECA, Selva G. Ensinar História no século XXI: em busca do tempo entendido. Campinas (SP): Papirus, 2007. TESSER, Gelson. Principais linhas epistemológicas contemporâneas.Educ. rev. no.10 Curitiba Jan./Dec. 1994 VIEIRA, Maria do Pilar; PEIXOTO, Maria do Rosário; KHOURY, Yara Aun. A Pesquisa em História. São Paulo, Ática, 1989. WATERSON, BILL. BOX CALVIN E HAROLDO - 7 VOLUMES. São Paulo, Conrad do Brasil. 2011.

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O MEDIEVALISMO BRASILEIRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL: UMA ABORDAGEM BIBLIOGRÁFICA Luciano José Vianna Introdução Recentemente acompanhamos os debates sobre o Ensino de História na BNCC, cuja proposta inicial limitava os conteúdos de alguns períodos, dentre eles o Medievo (Base Nacional Comum Curricular). Entretanto, no que diz respeito à História Medieval, tais debates ocorrem há tempos em nosso país especificamente com foco no desenvolvimento, na perspectiva interdisciplinar e na reflexão sobre o vínculo entre a História Medieval e o nosso território. Nos últimos vinte anos ocorreu uma ampla divulgação dos estudos medievais no Brasil, com a realização de diversos eventos, constituição de grupos de estudo e pesquisa e a especialização cada vez maior por parte dos pesquisadores. Este panorama proporcionou não somente a consolidação dos estudos medievais no território brasileiro, mas também possibilitou uma reflexão sobre a importância da presença do mesmo em nossos currículos no âmbito do ensino, principalmente a partir do ponto de vista que somos parte de uma civilização ocidental. Face à conjuntura de reformulação da BNCC, o Ensino de História Medieval no Brasil ficou no primeiro plano dos debates nas universidades, nas mídias e redes sociais. Para pensar o Ensino de História Medieval em nosso país devemos observar diversas perspectivas, como uma problemática holística que envolve várias questões. Neste sentido, a proposta deste texto é apresentar o desenvolvimento, a perspectiva interdisciplinar e a reflexão sobre o vínculo da História Medieval com nosso território através da análise de diferentes referências bibliográficas produzidas por medievalistas brasileiros ou que lecionaram no Brasil publicadas nos aproximadamente últimos vinte anos.

O Ensino de História e o Ensino de História Medieval no Brasil: alguns aspectos A observação feita por Lenia Márcia de Medeiros Mongelli sobre a situação dos livros didáticos que abordam conteúdos de História do Brasil serve como ponto de partida para nossas reflexões:

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Uma rápida consulta aos livros didáticos destinados ao que hoje se chama ‘ensino médio’ – de onde saem nossos universitários – denuncia talvez o adversário mais resistente dos estudos medievais no Brasil: para a maioria inconteste do público medianamente culto, nossa história começa no século XVI, com Pedro Álvares Cabral e o ‘achamento’ do Brasil, com a era das Navegações. Este é o prato oferecido à degustação nas escolas, inclusive pelas obras paradidáticas, publicadas pelas principais editoras do país.” (MONGELLI, 2001, 146-154). As palavras de Lenia Márcia Mongelli nos proporcionam a reflexão sobre o Ensino de História em sala de aula. Tais declarações confirmam que muitas vezes o conteúdo ministrado não é discutido e problematizado em sala de aula, principalmente no sentido de estabelecer uma continuidade entre a História Medieval e a História do Brasil, de forma que o discente, em seu processo de formação como professor de História, não se torna consciente da reflexão histórica que deve realizar ao abordar e lecionar conteúdos oriundos do período medieval. Ademais, as palavras destacadas indicam um problema que está vinculado a uma série de informações presente não somente no âmbito acadêmico, mas também na prática do Ensino de História na sala de aula. Ao considerar o século XVI como o início da História do Brasil, desconsidera-se todas as influências das produções literárias e visuais que encontramos nos séculos XV, XIV, XIII, XII, etc... na Europa medieval, assim como diversos outros aspectos que apresentam vínculos com a história brasileira (e também da América) no século XVI, como por exemplo a produção historiográfica medieval com seus diversos gêneros históricos, o ressurgimento das cidades a partir do século XII, o surgimento das universidades, o desenvolvimento comercial em termos de Europa ocidental desde o século XII, entre outros (devemos alertar que a perspectiva aqui abordada se refere, por uma questão de especialização, aos aspectos da Europa medieval, mas claro está que a abordagem de outras perspectivas devem ser realizadas, como por exemplo a própria história do território do continente americano antes da chegada do homem europeu). Segundo Circe Maria Fernandes Bittencourt, as finalidades do Ensino de História são: construir uma identidade nacional; constituir identidades; formar o cidadão crítico e político; formar os cidadãos intelectualmente e proporcionar uma formação humanística aos educandos (BITTENCOURT, 2004, 99-132). Neste sentido, um dos objetivos do Ensino de História é demonstrar para o aluno como a realidade social, cultural, política e econômica existente durante determinada época foi modificada, adaptada e representada e, no caso da abordagem de um período como a história do século XVI no Brasil, como a continuação desta mesma realidade foi adaptada a partir de uma experiência anterior. Para realizar este processo, (e tangenciando um pouco com o aspecto da didática, embora não seja o principal aspecto a ser destacado nestas páginas), de acordo com Schmidt, entendemos que a sala de aula é um espaço onde ocorre uma relação de

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interlocutores construindo sentidos para proporcionar “condições para que o aluno possa participar do processo do fazer, do construir a História” (SCHMIDT, 2004, 54-66). Neste sentido, neste processo do “construir a História”, deve-se levar em consideração toda a formação dos personagens europeus que chegaram às terras americanas em suas perspectivas culturais, políticas, sociais, etc... para compreendermos alguns aspectos do processo que se desenvolveu em terras americanas a partir do século XVI. Ao destacar uma breve perspectiva com base no desenvolvimento, na interdisciplinaridade e na reflexão sobre o vínculo da História Medieval com nosso território, desejamos salientar a necessidade da cooperação constante entre ensino e pesquisa para o desenvolvimento do Ensino de História Medieval no país, promovendo, desta forma, na perspectiva de Bergmann, uma reflexão histórico-didática, considerando que o processo didático deve se preocupar os efeitos da consciência histórica no contexto no qual o ensino é realizado: Uma reflexão é histórico-didática na medida em que investiga seu objeto sob o ponto de vista da prática da vida real, isto é, na medida em que, no que se refere ao ensino e à aprendizagem, se preocupa com o conteúdo que é realmente transmitido, com o que podia e com o que devia ser transmitido. Refletir sobre a História a partir da preocupação da Didática da História significa investigar o que é apreendido no ensino de História (é a tarefa empírica da Didática da História), o que pode ser apreendido (é a tarefa reflexiva da Didática da História) e o que deveria ser apreendido (é a tarefa normativa da Didática da História) (...). Nesse sentido, a didática da História se preocupa com a formação, o conteúdo e os efeitos da consciência histórica num dado contexto sócio histórico (BERGMANN, 1989/1990, 29-42). Uma proposta com base na formação de cidadãos política e intelectualmente críticos a partir de uma perspectiva de reflexão histórico-didática que problematize o objeto/conteúdo abordado, almejando alcançar a formação da consciência histórica, minimiza a possibilidade do futuro professor encontrar uma discrepância entre as práticas que aprendeu na universidade e o que ensinará em sala de aula. Neste sentido, o conteúdo aprendido pelo futuro professor de História não seria estritamente reproduzido em sua atuação na sala de aula: antes haveria um processo no qual este professor-pesquisador, através da pesquisa e de sua aprendizagem pedagógica, elaboraria uma proposta de ensino a partir de sua aprendizagem e não tomando como base única e exclusiva o livro didático. Dessa forma, ao problematizar o conteúdo de História Medieval propondo uma reflexão histórico-didática para os discentes, a intenção é proporcionar bases e fundamentos para que o mesmo utilize o livro didático juntamente com outras fontes: O livro didático, em si, não constitui um problema propriamente dito. A forma como ele é utilizado é o que faz dele um problema. Para o

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professor que concilia o conteúdo do livro didático com a utilização de outras fontes, esse livro jamais será tido e/visto como um problema (...). (HIPÓLITO). Alguns aspectos do Ensino de História Medieval podem ser abordados a partir de reflexões oriundas das pesquisas sobre o período realizadas no Brasil. De forma geral, o que se percebe nas pesquisas realizadas no Brasil sobre o Medievo é que este período se tornou diverso e múltiplo em suas espacialidades e temporalidades, sendo impossível abordá-lo a partir de uma perspectiva única, padronizada, como se a mesma experiência que ocorreu em determinado território durante este período se repetisse em outros contextos. De acordo com José Rivair de Macedo: É evidente que nos últimos trinta anos muito se pesquisou a respeito das especificidades nacionais e regionais da Europa Medieval, dos grupos sociais, etários e de gênero na Idade Média; muito se debateu a respeito dos sistemas de valores, das formas culturais, das representações e dos traços do imaginário medieval. A Idade Média ensinada na escola, todavia, não é Idade Média dos pesquisadores (MACEDO, 2003, 109-125). A perspectiva apresentada por José Rivair Macedo, de que o Medievo apresentado nas escolas ainda não é o dos pesquisadores, repete-se nos dias de hoje. Alguns livros didáticos utilizados atualmente não apresentam, principalmente, o aspecto da diversidade e da multiplicidade voltada para o Medievo em diversos temas: políticos, econômicos, religiosos, etc... No caso do Medievo sabemos que o mesmo pode ser dividido em diversas etapas, as quais apresentam diferenças em diversos aspectos: Primeira Idade Média, Alta Idade Média, Idade Média Central e Baixa Idade Média (FRANCO JÚNIOR, 2001, 15-17, 198). Dessa forma, este espaço-tempo algumas vezes ainda é visto em uma perspectiva homogênea, sem a preocupação de repensar conceitos e suas aplicabilidades espaciais e temporais para os diversos casos existentes e que ficam evidenciados em se tratando de pesquisa histórica e dos resultados finais das mesmas, como artigos, dissertações e teses.

Pesquisar o Medievo no Brasil: desenvolvimento, interdisciplinaridade e vínculo com a história local Atualmente, os estudos realizados no Brasil sobre o Medievo são contrários à perspectiva tradicional sobre o período, ou seja, uma época tenebrosa, sem avanços tecnológicos e científicos e cheia de superstição, onde havia um domínio total da Igreja sobre os comportamentos sociais e culturais. Ao contrário, este período tem sido analisado e compreendido de uma forma completamente diferente, graças principalmente aos estudos de Jacques Le Goff. Novas leituras sobre o Medievo foram realizadas, aproximando-se aos seus diversos significados

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originais e, consequentemente, à sua importância em termos de diversidades temáticas a serem estudadas, de forma que hoje “nenhum erudito defenderia com seriedade aqueles velhos chavões” (MACEDO, 2003, 109-125). Alguns textos publicados entre os anos finais da década de noventa do século passado e os primeiros anos do século XXI, escritos por medievalistas brasileiros ou que atuaram como professores de História Medieval no Brasil, indicam diversos aspectos sobre o status quaestionis da História Medieval em nosso país. Percebemos uma série de dificuldades para o desenvolvimento dos estudos medievais em território brasileiro, a ponto de afirmarem que os estudos medievais no Brasil eram muito limitados, tanto no aspecto de formação de profissionais como no espaço destinado à área, de forma que não havia “una tradición, una escuela y, sobre todo, no existen recursos para aplicar en la preparación y formación de especialistas” (PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994, 223-228). Outra questão presente era a falta de bibliografias, de fontes, de novas publicações, o restrito acesso a revistas estrangeiras, o pouco espaço para fomentar um debate sobre o período e as trocas de ideias científicas, além da formação limitada e da falta de apoio institucional para quem se dedicava ao estudo desta área (PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994, 223-228). Entretanto, mesmo com estas limitações, alguns autores já observavam o Medievo de forma diferente, principalmente através do vínculo que o mesmo apresentava com nossa contemporaneidade. De um mundo completamente estranho passou-se a compreendê-lo como um período próximo, que devia ser conhecido e que era necessário à formação intelectual do historiador envolvido com pesquisas sobre a História do Brasil. Dessa forma, passou-se a compreender o Medievo como um período no qual foi criado o mundo moderno e no qual o nosso cotidiano apresentava diversos vínculos com aquele contexto, como as universidades, os bancos, a imprensa, e principalmente os “sistemas de representação política e os fundamentos da mentalidade científica que caracterizam a civilização ocidental.” (FERNANDES, 1999). Já havia, portanto, uma tentativa de compreender o Medievo como uma época com a qual nós, herdeiros de uma cultura ocidental, mantínhamos uma continuidade. Esta busca por uma identidade ou por uma aproximação com o período foi crucial para estabelecer um vínculo com o mesmo e também para colocar os estudos medievais em evidência na produção historiográfica brasileira. Além disso, embora o desenvolvimento das pesquisas brasileiras sobre a História Medieval apresentasse uma influência francesa, principalmente advinda do contato com os Annales (FIGUEIREDO NOGUEIRA, 2002, 291-297; PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994, 223-228) e com os influenciadores bibliográficos desta nova forma de ver o Medievo, como Huizinga, Le Goff e Duby (FERNANDES, 1999), tal contato favoreceu a renovação dos estudos sobre o Medievo, principalmente multiplicando suas abordagens, observando este período a partir de uma perspectiva interdisciplinar e com uma diversidade de temas, o que ajudou no processo de reabilitação da História Medieval (PEDREROSÁNCHEZ, 1994, 223-228).

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O próprio fato de tornar-se uma disciplina importante foi ganhando destaque, o que influenciou diretamente na consideração da História Medieval para a formação do historiador brasileiro, não somente para entender o passado português, mas sobretudo para compreender a história e a cultura dos países do continente americano, o que se refletiu em uma preocupação cada vez maior com os estudos sobre o mundo ibérico medieval (FIGUEIREDO NOGUEIRA, 2002, 291-297). Neste sentido, a relevância dos estudos medievais tornava-se evidente e mais próxima ao identificar neste período da história diversas continuidades e presenças com a nossa contemporaneidade: Pode-se afirmar, portanto, que os estudos medievais também auxiliam a compreender a história e a cultura dos países americanos: a própria expansão marítima, que ocasionou a descoberta do Novo Mundo, tem suas raízes solidamente vincadas na Idade Média. Temas da literatura medieval, como a gesta de Carlos Magno, permanecem vivos ainda hoje na poesia de cordel nordestina; além disso, é sabido que diversos escritores brasileiros de nosso século, entre os quais Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e Adélia Prado, beberam fartamente de fontes medievais. (FERNANDES, 1999). Desse modo, embora a situação dos estudos desenvolvidos no Brasil sobre o Medievo fossem iniciais e apresentassem diversos problemas, havia uma ideia geral de que os mesmos eram importantes para a formação do historiador, principalmente para aqueles que atuariam com temas voltados para a História do Brasil (PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994, 223-228). O diagnóstico proporcionado por Figueiredo Nogueira nos primeiros anos do século XXI demonstrou a expansão dos estudos medievais em diversas universidades brasileiras, identificando principalmente os cursos de mestrado e doutorado que apresentavam em suas produções dissertações e teses produzidas sobre temas medievais, assim como grupos de estudo e pesquisa e laboratórios voltados para discussões sobre o Medievo, ainda que grande parte desta realidade estivesse presente nas regiões sul e sudeste do país (FIGUEIREDO NOGUEIRA, 2002, 291-297). Entretanto, mesmo com esta expansão dos estudos medievais no ensino superior, sua presença no ensino fundamental e médio ainda era muito ínfima, restando-lhe, como afirma Leão, “o espaço da pós-graduação”: Em tal contexto, não é de espantar que haja por aqui pouco espaço para os estudos medievais. Afinal, que fazedores de currículo, que apontadores de caminhos, para não dizer de diretrizes, ousariam incluir em suas propostas estudos tão inúteis? Afinal, que problema premente do país se resolveria com tais estudos? Que solução imediata eles ajudariam a trazer para as necessidades do povo? O pragmatismo latente em tais tipos de questões pode explicar, em parte, a situação dos estudos medievais no Brasil. Inexistentes no ensino fundamental (o que se entende, aliás), mal aflorados no ensino médio, reduzidos nos cursos de graduação nas áreas em que poderiam caber, resta a tais

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estudos o espaço da pós-graduação, para onde foram pouco a pouco sendo ‘acuados’. Este é o destino, no Brasil, de disciplinas como o latim, a história da língua, a filologia românica, a história medieval, a filosofia medieval, a literatura medieval e outras: resta-lhes o espaço da pós-graduação (LEÃO, 2001, 138-145). O Medievalismo brasileiro permaneceu por décadas sem estabelecer um diálogo profícuo internamente entre as subáreas, tais como História, Filologia, Literatura, Filosofia, História da Arte, etc..., característica que se modificou com a presença das propostas da História Cultural (FRANCO JÚNIOR, MONGELLI, VIEIRA, 2008, 177-219). Por outro lado, a cada vez maior presença da disciplina História Medieval nos currículos das universidades brasileiras foi acompanhado pelo processo de estabelecimento de um diálogo entre os diversos campos do saber que envolviam os estudos medievais, principalmente com as áreas do conhecimento citadas acima. Gradativamente, a História Medieval começou a adquirir mais espaço na estrutura política dos departamentos e das agências de pesquisa. Devemos observar também que esta mudança ocorreu a partir de uma perspectiva global relacionada à historiografia: na transição dos anos 70 para 80 observa-se uma série de reflexões teórico metodológicas principalmente advindas da História Cultural, na qual o aspecto interdisciplinar era um dos mais evidentes e necessários (COELHO, 2006, 29-33). Neste sentido, as atuais demandas dos estudos sobre a História Medieval no Brasil giram em torno à necessidade de se estabelecer um diálogo entre os diversos campos do saber promovendo uma interação interdisciplinar na pesquisa histórica, abordando perspectivas tais como da Paleografia, Codicologia, conceitos literários e filosóficos, gêneros literários, entre outros (SILVA, 2013, 1-15). De todas as formas, o desenvolvimento dos estudos medievais acompanhou a institucionalização dos estudos históricos em terras brasileiras (ALMEIDA e SILVA, 2016, 13-16). O diálogo estabelecido com centros de pesquisa e movimentos internacionais também se tornou possível nos últimos anos. A formação de diversos grupos de pesquisa com a participação de pesquisadores estrangeiros, e redes de colaboração com a presença de pesquisadores brasileiros, favoreceu a interação e fomentou experiências de diálogo internacional (SILVEIRA, 2016, 39-59). Com isso, novas abordagens, novos métodos e, principalmente, novos temas surgiram no cenário historiográfico medieval. Podemos citar, por exemplo, a publicação da coletânea de verbetes intitulada Dicionário Temático do Ocidente Medieval, publicado em dois volumes e traduzido para o português em 2002, que fornece ao pesquisador brasileiro uma diversidade temática em relação ao Medievo com oitenta e dois artigos, tais como “Além”, “Alimentação”, “Anjos”, “Bíblia”, “Catedral”, “Cidade”, “Deus”, “Diabo”, “Heresia”, “Igreja e Papado”, “Indivíduo”, “Literatura”, “Marginais”, “Memória”, “Mercadores”, “Natureza”, “Parentesco”, “Peregrinação”, “Santidade” “Sexualidade”, “Tempo”, entre outros. A diversidade de temas apresentados nesta obra proporciona um novo olhar sobre o período, desvinculando-se “dos setores tradicionais da historiografia como

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‘Arqueologia’, ‘História da Arte’, ‘História Econômica’” (LE GOFF e SCHMITT, 2002, 11-18). Com base no que foi apresentado, destacamos alguns aspectos proporcionados pelo desenvolvimento do Medievalismo brasileiro e que podem ser abordados no Ensino de História Medieval no Brasil. 1. Aspectos temáticos. Um exemplo desta mudança temática no cenário historiográfico sobre o Medievo é a presença cada vez maior dos estudos vikings e escandinavos em terras brasileiras. Um dos principais problemas dos estudos vikings no Brasil diz respeito à interpretação a partir do imaginário moderno, o qual associa algumas imagens que foram fruto da idealização romântica do século XIX, as quais apresentam os vikings como guerreiros com capacetes enormes e com chifres laterais, como seres impiedosos e cruéis. Os principais responsáveis por esta divulgação errônea são a cultura de massa e a indústria cinematográfica. Ademais, de certa forma esta visão errônea do período viking também se transfere para o livro didático, que além dos diversos erros e equívocos citados acima, dedicam um curto espaço para o período (LANGER, 2002, 85-98). 2. O passado medieval português. De acordo com Macedo, o processo de “descolonização do ensino da Idade Média” refere-se ao fato de se observar com mais atenção os aspectos que vinculam a História Medieval peninsular ibérica à chegada do homem europeu às terras americanas sobre o aspecto da continuidade. Dessa forma, enfatizar os aspectos deste território europeu seria mais viável em termos de Ensino de História Medieval “pelo simples fato de pertencemos a um conjunto cultural específico, no caso, o ibero-americano.” Neste sentido, poderse-iam revelar características do passado medieval que ainda interagem com o presente brasileiro (MACEDO, 2003, 109-125). 3. A continuidade do Medievo no Brasil. Um dos aspectos mais importantes no que diz respeito à História Medieval e sua vinculação com nosso território é referente aos sistemas de valores e às “raízes” brasileiras que estariam localizadas no passado medieval de Portugal. Um dos principais problemas apontados pelos historiadores sobre a História do Brasil é a realização do estudo da história do nosso território sem considerar a longa experiência do homem europeu em sua formação social, política e cultural (FRANCO JÚNIOR, 2008, 80-104). Os períodos finais do Medievo em Portugal, de certa forma, repercutiram no contexto colonial, principalmente a partir do aspecto das continuidades (FRANCO JÚNIOR, MONGELLI, VIEIRA, 2008, 177-219). Em todo caso, o Medievalismo brasileiro já apresenta em seu discurso a ideia de que os estudos medievais em nosso país ajudariam a compreender quais aspectos do Medievo se encontram nas estruturas mais elementares da civilização brasileira (AMARAL, 2011, 446-452). 4. O século XVI. Atualmente em um dos projetos de pesquisa que desenvolvemos, intitulado As crônicas do século XVI: o homem entre o Medievo e o “Novo Mundo” (VIANNA, 2014), analisamos diversas crônicas portuguesas e castelhanas compostas no século XVI. Tais crônicas apresentam a característica

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do contato entre dois mundos, ou seja, a percepção do homem entre o Medievo e o “Novo Mundo”, as quais foram compostas em um contexto de chegada do homem europeu ao continente americano. Tais objetos historiográficos representam, a partir da perspectiva europeia, a manifestação dos primeiros contatos estabelecidos entre estes dois mundos, onde os aspectos do imaginário medieval se sobrepuseram e foram utilizados para explicar, a partir de uma perspectiva medieval, as primeiras percepções sobre o território americano. Além disso, destacam em seu conteúdo uma série de aspectos voltados para uma presença comportamental medieval em seus fólios. Por exemplo, a mentalidade dos personagens que as escreveram se reflete precisamente nestes documentos, pois os mesmos demonstram os seus medos, anseios, curiosidades, evidenciando, em suas primeiras experiências com as terras do continente americano, características vinculadas ao seu imaginário.

Conclusão Nestas páginas nossa intenção foi abordar, de forma inicial e através da análise de um corpus bibliográfico produzido nos últimos vinte anos, os aspectos que o Medievalismo brasileiro apresenta, realizando uma reflexão sobre o vínculo da História Medieval com nosso território. Através de diversas publicações de medievalistas brasileiros, assim como de professores estrangeiros que atuaram no país, podemos observar o surgimento e o desenvolvimento do Medievalismo no Brasil, o qual apresentou diversos problemas e desafios para a manutenção da disciplina em termos curriculares. Observamos também os aspectos da pesquisa na área, como a mesma foi realizada em nosso território nos aproximadamente últimos vinte anos e como favoreceu para o avanço de uma melhor compreensão sobre o período. Observamos também que os estudos medievais no Brasil, com o passar do tempo, apresentaram um maior diálogo interdisciplinaridade, o que favoreceu um contato maior e cada vez mais evidenciado entre a diversas áreas que estudam o Medievo, tais como História, Filologia, Filosofia, História da Arte e a Literatura. Este diálogo proporcionou uma busca cada vez maior por novas abordagens temáticas e transversais, ampliando os temas referentes ao período e estabelecendo cada vez mais um diálogo interdisciplinar. Por último, porém não menos importante, este período deixou de ser compreendido como um contexto distante no tempo e estranho à nossa realidade. Passou-se a estabelecer com o mesmo diversos vínculos com nossa contemporaneidade, destacando-o como próximo em diversas manifestações contemporâneas. Este foi um dos principais motivos para colocar os estudos medievais e o Ensino de História Medieval na ordem do dia. Ao adotar esta perspectiva de vínculo e de continuidade entre alguns aspectos da História Medieval e da História do Brasil, principalmente considerando a formação do

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homem europeu em questões sociais, políticas e culturais, podemos compreender melhor como ocorreu a chegada destes personagens às terras americanas.

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Disponível em:

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AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E AS IDEIAS DE JOVENS ESTUDANTES SOBRE A CONQUISTA DA AMÉRICA A PARTIR DO CONFLITO ENTRE EUROPEUS E INDÍGENAS Marcelo Fronza Introdução Pesquiso as ideias históricas dos estudantes por meio das histórias em quadrinhos a partir da epistemologia da história. Este trabalho é produzido a partir do grupo de professores historiadores ligado ao Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica (LAPEDUH/UFPR) e faz parte do projeto de pesquisa Os jovens e as ideias de verdade histórica e intersubjetividade na relação com as narrativas históricas visuais vinculado ao Grupo Pesquisador Educação Histórica: Didática da História, consciência histórica e narrativas visuais (GPEDUH/UFMT/CNPq). Insere-se no conjunto de pesquisas relativas à linha de investigação ligada à cognição histórica situada (SCHMIDT, 2009, p. 22), que tem como princípios e finalidades a própria ciência da História e servem de embasamento à área de pesquisa da Educação Histórica, um campo de investigação que estuda as ideias históricas dos sujeitos em contextos de escolarização, de tal forma que é estruturada por pesquisas empíricas que dialogam com a teoria da consciência histórica (RÜSEN, 2001, 2012). Com isso, investigo as ideias históricas de jovens estudantes graduandos do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Brasil, sobre os conflitos entre europeus e indígenas durante a conquista da América, que teve lugar em torno de 1492 e 1550, quando confrontados por duas narrativas históricas gráficas sobre este tema histórico. Busco compreender como esses jovens se orientam temporalmente a partir da dimensão sofrimento humano do outro narrado por esses artefatos da cultura histórica.

As histórias em quadrinhos como artefatos da cultura histórica dos jovens estudantes As histórias em quadrinhos são narrativas históricas visuais que permitem a investigação de como os jovens percebem, interpretam e se orientam e se motivam historicamente no fluxo temporal entre o passado, o presente e as

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expectativas de futuro. Ao instigar a compreensão histórica dos estudantes, essas narrativas possibilitam que os jovens construam historicamente os seus posicionamentos políticos, estéticos, cognitivos e éticos perante os desafios que enfrentam em sua práxis vital (RÜSEN, 2007). Dessa maneira, é possível dizer que os jovens estão imersos no presente e entendem suas experiências como um modo da vida prática do seu presente. Isto, de modo que a sequência temporal da cronologia ou da linearidade não fornece significado ou sentido de orientação algum, quando estes sujeitos entram em contato com os artefatos da cultura histórica. Mas as histórias em quadrinhos, na sua relação direta com o jovem ― portanto, sem a mediação da sequência temporal abstrata imposta pela cultura escolar contemporânea ―, produzem estes significados e sentidos históricos. Uma das formas de se superar o autoritarismo do ensino de História dominante na cultura escolar seria ordenar o tempo. Mas devo considerar como ordenar a temporalidade sem utilizar a sequência temporal escolarizada. Isso se torna possível quando o tempo é temporalizado, isto é, quando uma narrativa fornece ao presente um passado em que os jovens possam aprender sobre sua práxis socal. A aprendizagem histórica ocorre quando estes jovens, em um segundo momento, percebem a diferença entre as experiências do passado e as do presente. Segundo Rüsen (2007, p. 109), isto acontece, quando os sujeitos, em contato com as “fontes da tradição”, tais como os as histórias em quadrinhos, percebem o outro como um “estranho” que é narrado, como um personagem relacionado à alteridade do passado. Isso pode gerar o aumento da “capacidade de empatia” nos jovens e a disposição para compreender a “particularidade de sua própria identidade histórica”, que revela sua alteridade em relação aos outros sujeitos, os quais possuem orientações que ele adota ou se confronta no processo de consolidação intersubjetiva de sua identidade. Compreendo que são os valores presentes nas narrativas históricas que permitem o auto-reconhecimento nos jovens. Os valores são aqueles elementos morais, políticos, estéticos, cognitivos e ideológicos que possibilitam o envolvimento dos jovens com o passado. Não é uma linha temporal abstrata que faz com que o jovem envolva a sua identidade histórica em formação com o passado de outros seres humanos, mas sim o reconhecimento ético da diferença entre os valores do outros homens do passado com os valores que os jovens enfrentam na alteridade presente na vida prática contemporânea. Assim, a continuidade do fluxo temporal entre passado, presente e futuro é compreendida pelo jovem. Tendo isso como princípio, neste trabalho proponho uma investigação sobre a compreenção histórica que os jovens estudantes têm do confronto entre uma narrativa histórica gráfica italiana e um capítulo de livro didático de história organizado estética e didaticamente como uma história em quadrinhos, que foi

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muito utilizado no Brasil, nas escolas públicas, durante as décadas de 1970 e 1980.

Investigação sobre ideias de jovens estudantes sobre a conquista da América Partindo desse princípio teórico, defini como público alvo dessa pesquisa um grupo de 4 estudantes, com idades de 21 a 30 anos, do terceiro ano do curso de licenciatura em História da Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Para isso, produzi um instrumento de investigação baseado nos critérios metodológicos da pesquisa qualitativa (LESSARD-HÉBERT, GOYETTE & BOUTIN, 2005). Os jovens dessa universidade pública foram investigados em 20 de junho de 2016. A referida turma é composta por 11 estudantes. No entanto só 5 estavam presentes no momento da aplicação do instrumento e uma não entregou até os dias da redação deste artigo. Os nomes são fictícios e baseados em personagens históricos já quadrinizados. Posteriormente, no dia 27 de junho, o restante da turma recebeu o instrumento de investigação, mas ainda não recebi os questionários. A proposta inicial desta investigação seria pesquisar as ideias históricas de estudantes do ensino médio da rede pública de Mato Grosso. Contudo, desde o início de junho de 2016, as escolas públicas estraram em greve devido à tentativa, da parte do governo estadual, de privatização da gestão e dos serviços dos estabelecimentos escolares, o que gerou um movimento de ocupação estudantil desses espaços, além da paralisação dos professores estaduais. Esse instrumento de investigação contêm questões diretas e abertas relativas ao confronto de fragmentos de cinco páginas de duas histórias em quadrinhos que têm a pretensão da abordar didaticamente, a partir de critérios historiográficos, a temática dos conflitos entre os europeus e os indígenas ocorridos durante a conquista da América (1492 até 1550). A primeira narrativa histórica gráfica, a versão A, denominada Conquista e colonização da América é um capítulo do livro didático organizado como história em quadrinhos História Geral: história para a escola moderna (CASTRO & ZALLA, 1971) escrito pelo historiador brasileiro Julierme de Abreu e Castro e desenhado pelo quadrinista argentino Rodolfo Zalla.

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VERSÃO A

CASTRO, Julierme de Abreu e; ZALLA, Rodolfo. História Geral: História para a Escola moderna. São Paulo, IBEP, 1971, p. 237.

Os livros didáticos de Julierme organizados como histórias em quadrinhos apresentam uma concepção de ensino de história na qual a abordagem se relaciona à prática da memorização e da retenção de informações pontuais a partir de uma narrativa quadripartite genérica que se apresenta como uma história total, mas uma história eurocêntrica. Essa concepção de um ensino objetivo está relacionada a uma compreensão da história como conhecimento objetivo tradicional.

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VERSÃO A

CASTRO, Julierme de Abreu e; ZALLA, Rodolfo. História Geral: História para a escola moderna. São Paulo, IBEP, 1971, p. 241.

O estilo didático dos livros didáticos de História de Julierme, a partir das histórias em quadrinhos de Zalla, dispõe os textos de forma a deviar a atenção do leitor em relação à narrativa histórica tematizada, já que a imobilidade das imagens somadas ao excesso de informação escrita faz valorizar as concepções eurocêntricas em relação aos conflitos entre indígenas e europeus durante a conquista da América. Isto porque estas visões eurocêntricas reconhecem somente

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as ações dos conquistadores. É perceptível, no entanto, verificar como os elementos estéticos de uma narrativa histórica gráfica, podem, por meio da imagem, potencializar as possibilidades de desenvolvimento do aprendizado histórico, mas ao mesmo tempo, a limitação das características estéticas relativas ao texto pode se contrapor e atenuar ao poder imaginativo das imagens. Mesmo com essas limitações históricas e didáticas, o livro didático de Julierme e os quadrinhos de Zalla marcaram uma geração inteira de estudantes brasileiros. A orientação temporal é uma categoria vital da epistemologia da História que deve ser trabalhada livros didáticos de História e nas histórias em quadrinhos. Contudo, mesmo que um livro didático de história organizado como história em quadrinhos se apresente sem uma análise aprofundada de sua natureza estética não quer dizer que os jovens que os lêem não desenvolvam uma aprendizagem histórica elaborada. A segunda narrativa histórica gráfica presente no instrumento de investigação, a versão B, chamada Colombo (ALTAN, 1989) roteirizada e desenhada pelo quadrinista italiano Francesco Tulio Altan é uma história em quadrinhos que busca a reconstrução do conhecimento histórico por meio de uma contra-narrativa pautada em uma consciência histórica crítico-genética e iconoclasta sobre os conflitos entre os indígenas e os europeus no tempo da conquista da América.

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VERSÃO B

ALTAN, Francesco Tulio. Colombo. Porto Alegre/São Paulo: LP&M Editores, 1989, p. 71.

Essa história em quadrinhos narra o processo de violência sofrida e resistência praticada pelos indígenas nos primeiros contatos culturais proporcionados pelas primeiras viagens do explorador europeu Cristóvão Colombo ao novo continente. A dimensão do sofrimento humano narrada nesta história em quadrinhos pode permitir aos jovens estudantes a expansão da intersubjetividade que é o principal parâmetro para a aprendizagem histórica significativa. Ela diz respeito à

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ampliação da capacidade de comunicar e articular memórias históricas por meio da formação da identidade dos sujeitos.

VERSÃO B

ALTAN, Francesco Tulio. Colombo. Porto Alegre/São Paulo: LP&M Editores, 1989, p. 84.

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Seguindo os critérios de Peter Lee (LEE; ASHBY, 2000; LEE, 2006), essas histórias em quadrinhos procuram controlar anacronismos em relação aos sujeitos e às situações do passado representadas. A partir disso, apresento duas perguntas voltadas para respostas diretas e abertas. A primeira é uma questão argumentativa referente as possíveis diferenças entre as versões A e B. Esta questão foi inspirada na teoria de Robert Martin (1993) e nas investigações de Peter Lee (LEE & ASHBY, 2000; LEE, 2006) e de Isabel Barca (2000) e buscava detectar as diferenças nas concepções de verdade que os jovens observaram nas duas histórias em quadrinhos confrontadas. A questão a ser abordada é: “Você percebe alguma diferença entre as versões A e B? Qual (is)?”. A questão referente a se os jovens percebem alguma diferença entre as versões foi respondida positivamente por todos sujeitos investigados. Assim, no quadro 1, os jovens mobilizaram categorias quando justificaram suas respostas a partir das três operações da consciência histórica (RÜSEN, 2001): QUADRO 1 – DIFERENÇA ENTRE AS VERSÕES Operações mentais

Categorias mobilizadoras Fatos sobre diversos territórios Grandes figuras (heróis)

Experiência histórica

Situações cotidianas Relações Encontros Etnocentrismo Diferenças culturais Comparação estética realista sobre o passado

Interpretação histórica Comparação estética sobre o passado

Orientação histórica

Relação com a interculturalidade

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1. A experiência histórica A operação mental da experiência histórica foi explicitada por todons os jovens investigados nesta questão. Podemos citar dentre as experiências do passado citadas por esses sujeitos os fatos relativos aos diversos territórios narrados na versão A, a desconstrução dos heróis e a dimensão do cotidiano promovidas pela versão B. Tambem relataram a importância das relações, dos encontros entre indígenas e europeus, e que essas experiências passadas se apresentavam nas diferentes versões em quadrinhos seja de uma forma eurocêntrica, seja a partir das diferençãs culturais. É importante notar que essas experiências históricas foram claramente mobilizadas pelas operações mentais da interpretação histórica, predominantementwe pela dimenção estética da cultura histórica (RÜSEN, 2009) e da orientação história a partir do princípio da interculturalidade (RÜSEN, 2014). 2. A interpretação histórica A forma de gerar significação histórica por meio da operação mental da interpretação histórica foi explicitamente abordada por três jovens a partir das seguintes categorias: 2.1.Comparação estética realista sobre o passado Uma estudante mobilizou essa categoria articulando elementos estéticos e realistas da interpretação histórica. “Sim. Tendo a versão A uma abordagem mais expositiva referente a fatos sobre diversos territórios e, na versão B, um olhar mais voltado para o humor, não se apegando a nomes de grandes figuras, mas procurando mostrar fatos ‘realistas’ do cotidiano.” (Marjane – 21 anos – Cuiabá). Marjane, ao compreender que a versão A se propõem a abordar de modo mais expositivo as experiências do passado relativas aos diversos territórios compreendeu bem a estética realista tradicional proposta peo capítulo A conquista e colonização da América escrita por Julierme de Abreu e Castro e desenhada por Rodolfo Zalla. A forma como essa narrativa didática expõe as experiências se dá pela apresentação dos diversos tipos de conquista e colonização que os europeus realizaram na América no forma de uma conhecimento objetivo tradicional (BARCA, 2000). Contudo, Marjane também entendeu que a versão B, a partir dimensão estética do humor, deslegitima as histórias dos grandes heróis da conquista América (“não se apegando a nomes de grandes figuras”) em prol da siginificação histórica de experiências do passado mais realistas pautadas no cotidiano dos sujeitos comuns. Ela compreende que a história em quadrinhos Colombo, de Altan é uma contranarrativa pautada numa consciência histórica crítica em relação às interpretações históricas tradicionais sobre o período.

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2.2.Comparação estética sobre o passado Essa categoria foi mobilizada por dois estudantes quando perguntados sobre as diferenças entre as duas histórias em quadrinhos. “Sim. Há diferença no estilo literário, no estilo do desenho e na forma como são apresentadas as relações.” (Manolo – 30 anos – Cuiabá). “Sim. Uma é mais séria e a outra é uma caricatura do encontro” (Miguel – 25 anos – Cuiabá). A resposta de Manolo se refere a como as relaçoes humanas ocorridas durante a conquista da América apresentam três níves de interpretação estética. A primeira está no estilo literário de ambas as histórias em quadrinhos; a segunda no estilo do desenho; e a terceira na forma de interpretação das experiências do passado. Esse estudante percebe o estilo didático da versão A de Julierme e o estilo contranarrativo iconoclástico da versão criada por Altan. Já Miguel também nota que a dimensão estética influencia a forma de interpretação do passado, pois considera a versão A como séria e a versão B como uma caricatura da história do encontro entre europeus e indígenas. Esses estudantes compreendem que a dimensão estética da cultura histórica mobiliza formas diferenciasdas de interpretação da relidade passada. Os jovens perceber que é possivel interpretar no histórico, o estético das formas de apresentação (RÜSEN, 1994). 3. A orientação histórica A forma que os jovens orientam o sentido temporal foi revelada em uma das respostas dos estudantes a partir da seguinte categoria: 3.1 Relação com a interculturalidade A categoria relativa à interculturalidade foi a que mobilizou a forma de orientação temporal percebida por um jovem. “Sim. [Na versão] A, a insistência no eurocentrismo, e a outra [a versão B] aborda mais as diferenças culturais.” (Jacob – 22 anos – Cuiabá). Para Jacob a interculturalidade se expressa nas diferentes forma de orientação temporal expressas pelas histórias em quadrinhos. Na versão A, o capítulo didático de Julierme, esse estudante percebe o predomínio de relações etnocêntricas da narrativa gráfica. O que é interressante, é que no confronto com a versão B, de Altan, ele compreende as diferenças culturais são as chaves de leitura para se compreender o encontro entre indígenas e europeus na América e, portamto, reconhece como válidas as perspectivas históricas dos outros reconstruindo uma multiperspectividade humanista (RÜSEN, 2012).

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A segunda questão argumentativa busca comprender as ideias históricas que esses joves estudantes operam quando quando confrontam o princípio da interculturalidade. A questão foi fundamentada na teoria do novo humanismo vinculada aos conceitos de intersubjetividade e interculturalidade (RÜSEN, 2014, 2015). Com ela busco compreender se os jovens graduandos de Cuiabá entendem ou não se os conflitos são chances de comunicação intercultural que se fazem valer. Portanto a questão é: “Considerando as narrativas das versões A e B, como você compreende que devem ser as relações com os indígenas do Brasil e da América? Por quê?”. A questão a como os jovens commpreendem que devam ser com os indígenas no Brasil e na América, a partir das narrativas de Julierme Castro (versão A) e Altan (versão B) levou à redução de dados a partir do no quadro 3, que expressa como esses sujeios mobilizaram categorias quando justificaram suas respostas a partir das dois princípios relativos ao novo humanismo de Rüsen (RÜSEN, 2012, 2014): QUADRO 3 – NOSSA RELAÇAO COM OS INDÍGENAS NO BRASIL E NA AMÉRICA Operações mentais

Categorias mobilizadoras

Experiência histórica

Relações do passado com o presente Relações de exploração

Interculturalidade

Relações de reconhecimento

7. A experiência histórica A forma como a contingência do passado se expressa pela experiência histórica foi expressa a aprtir de uma categoria. 7.1. Relações do passado com o presente Um jovem expressõou o princípio da experiência histórica quando perguntado sobre como deveria ser as relações com os indígenas no Brasil e na América. “Devem ser analisadas e compreendidas a partir de uma visão do período e contrapor essas relações com o presente” (Jacob – 22 anos – Cuiabá). A experiência histórica é o um princípio humanista que permite compreender as diferença entre o antes e o depois a partir da contingência histórica. Para Jacob as relações com os indígenas devem ser vistas em sua perspectiva experiencial, pois

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devem ser compreendidas por meio das perspectivas do período, e destacada essa diferença temporal, confrontar com as contextualizações históricas do presente. A contingência histórica exprime uma compreensão sobre a dimensão do sofrimento humano, que será abordada na categoria seguinte (RÜSEN, 2012). 8. A interculturalidade O princípio da interculturalidade enquanto compreensão empática em relação ao outro se revelou presente em duas categorias; 8.1. Relações de exploração Dois jovens expressaram se por meio da categoria ligada ás relações de exploração nas relações com os índígenas no Brasil e na América. “Uma relação de exploração. Porque os indígenas foram explorados e exterminados” (Miguel – 25 anos – Cuiabá). “A relação apresentada na versão A se coloca por confrontos diretos, dominação e a escravidão imediata, tendo pressão da parte dos colonizadores. Na versão B, uma abordagem mais ‘relaxada’ tanto da parte dos nativos quanto pelos próprios portugueses.” (Marjane – 21 anos – Cuiabá). Para Miguel o que marcou as relações entre os europeus e brasileiros com os indígenas foram as relações de exploração por meio da dominação e do extermínio desses sujeitos. Também Marjane comnpreende que as histórias em quadrinhos permitem entrever os conflitos e as disposições humanas. A dimensão do sobremento humano fé o elemento que marca as relações entre indígenas e europeus. Para ela, em A conquista e colonização da América, de julierme de Castro e Rodolfo Zalla, os confrontos diretos, a dominação e a escravidão são formas etnocêntricas de dominação dos indígenas. Na verssão de Altan, Colombo, ela aponta para uma visão mais “relaxada” dos povos indígenas e dos portugueses nas suas relações. Para ela, as lutas pelo reconhecimento sustentam conflitos culturais contemporâneos (RÜSEN, 2014). 8.2. Relações de reconhecimento Um jovem expressou-se por meio desta categoria ao entender o reconhecimento entre os sujeitos como a base das relações com os indígenas. “As relações com os indígenas devem ser as mais comuns possíveis, pois são pessoas como nós, os não indíos, respeitando a diversidade cultural de cada um.” (Manolo – 30 anos – Cuiabá). Para Manolo, as relações com os povos indígenas devem ser comuns, pois o que rege a compreensão deste jovem é o princípio da humanidade e da reciprocidade entre os sujeitos. Isto porque, para ele, os indígenas “são pessoas como nós”, o

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qeu levam ao reconhecimento das diversas perspectivas tem uma em relação à outra. Nesse sentido, Manolo compreende que intersubjetividade internaliza, nos estudantes, o princípio da humanidade em suas próprias biografias em relação com as dos outros no tempo e no espaço (RÜSEN, 2012). Entende como possíveis as chances de comunicação intercultural, pois as culturas aprendem umas das outras e se modificam no relacionamento mútuo, se interpenetram, delimitam-se umas em relação às outras, combatem-se (RÜSEN, 2014, p. 296).

Considerações finais Como conclusão, é possível verificar se estes jovens estudantes entendem, a partir do contronto narrativos dessas interpretações históricas quadrinizadas, que alguns dos elementos fundamentais desses artefatos da cultura histórica, como o humor e sua estrutura narrativa, por exemplo, facilitam muito a apreensão do conhecimento histórico elaborado de um modo intersubjetivo e humanista. Considerando que as experiências investigativas explicitadas buscam seguir como critério os princípios de uma cognição histórica situada na epistemologia da História e na teoria da consciência histórica que demarcam parâmetros para a construção da interculturalidade nos processos de formação docente em História, aponto a título de conclusão algumas breves reflexões sobre esse tema. Ainda não é possível apresentar algum resultado sólido sobre investigações realizadas pelos estudantes de História no Mato Grosso. Mas uma constatação já é possível: os estudantes em formação na universidade percebem que a multiplicidade das experiências do passado pode ser internalizada por meio dos testemunhos fornecidos pelas evidências construídas a partir de fontes como histórias em quadrinhos, seriados, filmes, músicas que dizem respeito aos sujeitos envolvidos. Portanto, perceberam que a operação da experiência histórica mobiliza o autoconhecimento que constitui a identidade histórica dos jovens. Verificou-se que as operações mentias da consciência histórica expressam sim as diferentes formas de abordagem em relação à multiperspectividade das experiências históricas, à controvérsia das interpretações e à pluralidade de formas de orientação de sentido no tempo que constituem as relações intersubjetivas e interculturais no processo de formação histórica da humanidade na qual a iniciação docente está intimamente ligada. E isso vale para o processo de formação docente. Essa consciência possibilita, sim, a construção de critérios humanistas e intersubjetivos que forneçam princípios para a formação de uma identidade histórica baseada na interculturalidade, ou seja, no reconhecimento mútuo das diferenças regidas por uma alteridade igualitária.

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O CINEMA E AS ÁFRICAS NO ESPAÇO ESCOLAR: QUATRO POSSIBILIDADES DE ABORDAGEM Marilda dos Santos Monteiro das Flores Washington Santos Nascimento Nas últimas décadas o grande público tem assistido a uma quantidade de filmes que visam contar alguma história alusiva a África, sobretudo filmes de ação como Falcão Negro em perigo (2002, Ridley Scott), Lágrimas do Sol (2003, Antoine Fuqua), Hotel Ruanda (2004, Terry George), O Senhor das Armas (2005, Andrew Niccol), Diamante de Sangue (2006, Edward Zwick) e O Último Rei da Escócia (2006, Kevin Macdonald). Romances como Amor sem fronteiras (2003, Martin Campbell), A Massai Branca (2005, Hermine Huntgeburth). Dramas: O Jardineiro Fiel (2005, Fernando Meirelles), A Intérprete (2005, Sidney, Pollack) e Babel (2006, Alejandro González Iñárritu) e etc. Entretanto estes filmes se passam na África, mas geralmente os protagonistas não são os africanos. Normalmente apresentam duas vertentes básicas, que não se excluem e são complementares. Primeiro são filmes que vitimizam, destituindo-os de sua capacidade política, como seres passivos, incapazes de mudar seu destino, o destino do seu país e continente, por isto precisam da ajuda humanitária dos países desenvolvidos. Em uma segunda linha, mais complementar em relação à primeira, são em grande parte filmes que ressaltam a África enquanto um espaço de pobreza, ditadores, tráfico de armas, guerras civis, violência, selvageria.... Fazendo uso assim de imagens canônicas (imagens-padrão), estereotipadas e continuamente reiteradas em relação ao continente africano. Neste cinema comercial há também um segmento a parte, que são os filmes em torno de Nelson Mandela, que de certa maneira acabam também reiterando determinados estereótipos com uma idealização (em graus variáveis) em torno do líder sul-africano. A exemplo de Mandela: Luta pela Liberdade (2007), Mandela ( 2009 de Justin Chadwick) e Invictus (2010, Clint Eastwood). Isto sem falar dos inúmeros filmes infantis, que vão do Rei Leão (1994, Roger Allers) a Madagascar (2005, Eric Darnell). Mesmo nestes filmes o reforço das imagens do continente africano enquanto espaço exótico e selvagem é recorrente. O que se vê em parte destes filmes é que a África tem sido apresentada ao grande público como um continente distante, miserável e carente do mundo ocidental. As produções, especialmente após o período da Segunda Grande Guerra e Guerra Fria, apresentam uma sociedade homogênea, que sofre as mazelas da espoliação e as consequências da separação do domínio europeu como a fome, inúmeras

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doenças, guerrilhas, violência contra mulheres, crianças e muitas fugas. Esse cenário leva o espectador a questionar se a independência foi ou não um momento de libertação para os povos. Nesses filmes, como dito acima, o protagonista não é o africano, mas o “bom homem” europeu ou norte-americano que surge como o libertador. Essas produções refletem o olhar da sociedade ocidental para os povos da África, que dificilmente é observada em suas particularidades. Um filme dificilmente apresenta o contexto social de Angola, Moçambique, Benin, Mali, Marrocos, Burkina Faso ou Burundi, onde nasce o rio Nilo. De maneira geral, apresenta uma sociedade genérica que, na visão dos produtores ou mesmo dos espectadores, poderá representar qualquer país africano. Excluindo-se algumas produções pontuais e vinculadas aos centros mais antigos, como por exemplo o Egito, o cinema africano só ganhou importância e amplitude por volta da década de 60 do século XX, depois dos processos de independência do continente. Ele serviu assim como um dos instrumentos que possibilitou a construção de uma ideia de nação, sendo utilizado por aqueles que ascenderam ao poder. Mas, também em grande parte dos casos, apresenta um mergulho no mundo africano com suas mazelas, questões e também com a beleza de sua diversidade. A partir de nossa participação em fóruns de discussão como o Núcleo de Apoio à Pesquisa Brasil África da USP (http://brasilafrica.fflch.usp.br/), o GT de África da ANPUH e suas listas de pesquisa e eventos, assim como mostras de cinema realizadas na UFMG, UFBA, UFRJ, UFF, PUC-SP, USP... o olhar para as produções africanas tem possibilitado perceber o investimento dos cineastas em romper com eras passadas e apresentar estratégias de mudanças. Bem, a análise de alguns sites e blogs voltados ao cinema africano, como Cine África (http://cine-africa.blogspot.com.br/), Mostra África (http://mostraafricahoje.blogspot.com.br/), Filmes África (http://filmesafrica.blogspot.com.br/), Afrocine (http://www.afrocine.org/) dentre outros, permitiram observar os caminhos da produção fílmica do continente. Por conta da nossa experiência de docente na área, selecionamos abaixo quatro possibilidades de abordagem com filmes e curtas que podem ser úteis em sua utilização em sala de aula, além de apresentar (e comentar) algumas sugestões de obras “batidas”, mas de fácil acesso aos professores. Na primeira abordagem, discutiremos sobre o cinema produzido na/ou a partir da África, depois sobre filmes infantis, documentários e por fim na quarta abordagem, uma pequena reflexão sobre cinema comercial. Antes disso faremos uma discussão sobre os diferentes usos dos filmes em sala de aula.

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Usos (e abusos) dos filmes em sala de aula: algumas reflexões metodológicas Muitas vezes o filme é utilizado como uma ilustração do conteúdo dado, entretanto o mesmo pode (e deve) ser entendido enquanto uma produção artística e cultural, devendo desta forma ser central em nossos debates/diálogos em sala de aula. A reflexão sobre uma obra fílmica deve levar em conta a sua produção e outros aspectos disponíveis, antes mesmo da exibição em ambiente de aprendizagem. Saber quem e como produziu, o contexto social, político no momento da produção etc. Detalhes como escolha de atores, locais para locação, dentre outros, ajudam a perceber como a seleção das imagens auxiliam a representar o momento. Mesmo que a película represente um período passado, a sua produção foi organizada para se pensar a partir do presente, com os embates e com a visão do momento da filmagem. Os critérios de escolha de um filme devem levar em consideração o público alvo e o seu tempo de duração. Em uma sala de aula, filmes que necessitam de mais tempo para a sua exibição (duas ou mais aulas), exigirão do professor a seleção para o momento da interrupção. O corte deverá ser pensado previamente e num momento específico da trama e não no final do tempo da aula. O critério de interrupção abrupta gera desinteresse e torna a exibição de filmes um momento enfadonho. As imagens, abundantes em nosso tempo comunicam com mais velocidade e clareza uma mensagem, portanto as interrupções podem ser pensadas de tal forma que não sejam estanques, mas parte integrante do momento de aprendizagem. Além disso, quando trabalhamos com temas que destacam o continente africano, a reflexão fílmica sobre o local da produção e sobre as parcerias que envolveram o projeto poderão fornecer mais elementos para um posterior debate. A falta de um ambiente próprio para a exibição de filmes nem sempre significa um entrave. Um recurso que tem surtido efeitos muito positivos é a exibição de curtas, documentários, trechos editados ou trailer oficial de um filme. Esse recurso tem funcionado como o princípio do sal, ou seja, despertar o sabor. Na maioria das vezes, o uso do trailer ou trechos editados (encontrados na internet) são muito eficientes para ilustrar um tema ou um conceito no momento da aprendizagem. O retorno é mais efetivo, à medida em que essas pequenas partes acabam despertando o interesse em ver o filme completo. O potencial de um filme permite uma leitura dos envolvimentos da produção e o trailer, geralmente, apresenta os momentos de maior expectativa de um filme. Um exemplo é o trailer do filme Zulu, de 1964. Zulu é um filme histórico de guerra, britânico, que mostra a Batalha de Rorke's Drift entre o exército britânico e o reino zulu em janeiro de 1879, durante a Guerra Anglo-Zulu. A película retrata a batalha contada do ponto de vista do inglês. A produção fílmica, justifica a guerra apresentando os africanos como guerreiros cruéis e em quantidade superior ao número de soldados entrincheirados e assustados com a chegada dos guerreiros. A música ao fundo, os olhares do comandante aparecem como um chamamento à

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guerra e os soldados, atendendo ao comando lutam até a vitória (O trailer do filme poderá ser encontrado no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=O7zoPJCuTBA&t=11s) Esse trailer foi compartilhado em uma rede social e os alunos (a maioria), no dia da aula já estavam com o vídeo salvo nos celulares. Após discussão sobre conceitos de imperialismo e neocolonialismo, algumas questões e muitas reflexões começaram a surgir. Qual o motivo do ataque dos guerreiros? O que representava a presença dos ingleses em solo africano? O que foi o neocolonialismo? A partir dessas, outras questões foram surgindo e nas aulas seguintes já haviam assistido o filme na íntegra e mais que isso, estavam buscando mais informações sobre o tema e trazendo sugestões de outros vídeos. Resultado: mais que uma exibição enfadonha, que poderia ter acontecido por causa do tempo da película, a discussão do conteúdo, associado à exibição de pequenos trechos, permitiu outros olhares sobre o continente, à medida em que analisamos juntos a produção. A atividade com o uso de trailers tem sido desenvolvida com as turmas do Ensino Fundamental e Médio. O retorno tem sido muito positivo, especialmente por conta das sugestões de outros filmes e o aumento do interesse nas aulas de história. Por fim, é importante destacar que o uso do cinema deve transcender a sala de aula, adentrando em todo o ambiente escolar com a construção de mostras de cinemas, além do estudo de determinados cineastas africanos (uma excelente opção é Ousmane Sembene) e mesmo pesquisas sobre a influência e trânsitos de brasileiros no continente, como Glauber Rocha e Rui Guerra. Igualmente importante, o estudo das produções dos países, ou seja, ao invés de falar de um “cinema africano”, diante da diversidade do continente, pensar nos estudos separados por países, África do Sul, Angola, Moçambique, Senegal e etc. Abaixo listamos quatro possibilidades de abordagem em sala de aula, provavelmente alguns dos links colocados neste texto podem estar desativados quando vocês forem acessar, nossa sugestão é colocar o nome do filme completo no Google ou Youtube que provavelmente ele será novamente localizado. A seleção que fizemos leva sobretudo em questão o acesso aos filmes e também o público alvo ao qual destinamos este texto, ou seja, professores da Educação Básica e não especialistas em cinema africano, assim algumas obras relevantes foram desconsideradas, por serem de difícil acesso e/ou abordagem das mesmas em sala de aula.

A África pelos africanos: o cinema produzido no continente Para o professor da educação básica ou do ensino médio que queira fazer uso de cinema africano em sala de aula, nossa primeira sugestão é fazer uso de filmes

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produzidos a partir do continente. É bem verdade que, em grande parte, as produções cinematográficas, hoje, são multinacionais envolvendo profissionais de diferentes lugares. Entretanto, o que importante neste caso é perceber de onde parte o olhar e qual o lugar de fala do cineasta. Isso ajuda no processo de formação de público, mostrando ao aluno a existência de outras matrizes cinematográficas diferentes do modelo norte-americano ao qual conhece e está habituado. A produção do cinema africano reflete a sociedade em que ele está inserido, assim como qualquer outro cinema em outros continentes. Geralmente buscam parcerias com diferentes países e têm abordado problemas sociais como violência doméstica, violência entre os jovens, alcoolismo, questões políticas ou religiosas. O documentário FITXICÊLU (feiticeiro) de São Tomé e Príncipe, por exemplo, apresenta a questão do ancião que está sendo abandonado e submetido a maus tratos, muitas vezes pela própria família. Para justificarem o abandono são acusados de feitiçaria e assim são espancados e abandonados nas ruas. O documentário, mais que apresentar um problema social, discute questões herdadas do período colonial e apresenta um conflito a partir do confronto entre as raízes religiosas adquiridas com o colonizador e a tradição herdada pelos antepassados. Assim como esse documentário, outros filmes representam oportunidade de olhar para o continente africano e perceber as individualidades de cada povo.

Sugestão 1 O HERÓI (Zezé Gamboa, Portugal, Angola, 2004) Sinopse: Após uma violenta guerra civil de 27 anos, Angola encontra-se numa situação em que tudo está por refazer. A reconstrução Nacional passa necessariamente pelo reencontro de valores morais e pela reintegração de seres por vezes perdidos e mutilados física e espiritualmente, que precisam encontrar o seu lugar como elementos válidos de uma sociedade, ela própria em reanimação, e reencontrar a sua dignidade como humanos. Alguns comentários No filme é possível pensar os países africanos no pós-guerra de independência, na guerra civil, na busca por identidade e por uma ideia de nação. Além disso, faz uma denúncia do sistema político local, do afastamento desta elite dirigente dos reais problemas do povo e de sua instabilidade. Neste sentido é possível fazer algumas análises comparativas entre Brasil e Angola, historicamente ligados, com perfis de políticos parecidos.

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Indicações de leitura Uma análise pertinente deste filme foi feita por Rudi Rebelo e pode ser conferida aqui: https://nossaavenida.wordpress.com/2014/11/03/o-heroi-de-zeze-gamboa-espelhopolitico-social-de-uma-angola-pos-guerra/ Onde encontrar: O filme está disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=4Wlh76KcCjA

Sugestão 2 TERRA SONÂMBULA (Teresa Prata, Moçambique, 2007) Sinopse: Terra Sonâmbula é um filme moçambicano. São duas histórias pessoais separadas pela guerra e unidas por um diário. Entre a Guerra Civil e as histórias de um diário perdido, o menino Muidinga e o velho Tuahir são os heróis deste filme. Eles movem-se entre refugiados em estado de delírio. Para não enlouquecerem, têm-se um ao outro. A estrada por onde caminham, como sonâmbulos, é mágica: entende os seus desejos e move-os de um lugar a outro, não os deixando morrer enquanto eles não alcançarem o tão sonhado mar. Alguns comentários: O filme é uma adaptação do livro de Mia Couto, Terra Sonâmbula, e uma produção portuguesa e moçambicana que retrata o período da guerra civil. O cenário é Moçambique após a independência e os personagens da trama são o velho Tuahir e o menino Muidinga que caminham à beira de uma estrada. Eles são dois fugitivos das guerrilhas e tornam-se companheiros de viagem. Não possuem mais família nem amigos. O motivo da viagem é a busca pelos pais do menino. Caminhando pela estrada eles vão se conhecendo e percebendo as atrocidades da guerra. Indicação de leitura: Existem algumas resenhas sobre o livro de Mia Couto. Mas a leitura da obra está disponível em: http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/09/LivroTerra-sonambula.pdf

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Onde encontrar: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iukiUyEU-tw

A África para crianças: o uso de filmes infantis A África que é apresentada às crianças, ainda é um território onde elas morrem de fome, doenças e são afastadas ou abandonadas pelos pais. Também é um local com grandes, venenosos e ferozes animais que vivem entre os seres humanos que parecem ter o conhecimento das linguagens e mistérios da fauna. A vegetação, com árvores de tamanhos inimagináveis, é cercada de espécies venenosas cujo antídoto só é de conhecimento de algum idoso que vive isolado. Quando chega o tempo das chuvas os rios se transformam em caudalosas armas de destruição ou quando aparece o deserto, ele é o local da morte de sede, tudo apresentado como representação de um só lugar: África. Bem, com esse cenário é muito difícil, quando essa criança crescer, ter uma expectativa diferenciada do continente. A ideia de que animais vivem soltos dá à África a sensação de local de aventuras. É a ideia que se reproduz e acompanha a criança até a idade adulta. Por isso, o trabalho com imagens permite um olhar diferenciado sobre o continente, mas com imagens que contrastem com a reprodução da ideia de cultura única: “Na África, a África tem...” Algumas produções direcionadas para o público infantil possibilitam pensar as particularidades do continente.

Sugestão 3 KIRIKU E A FEITICEIRA Direção: Michel Ocelot. Kirikou et la sorcière, França/Bélgica,1998. Sinopse: Kiriku é um menino que já falava quando ainda estava na barriga da mãe. A história faz parte da cultura africana e trata da determinação na luta pela liberdade. “Kiriku nasce para ser livre, tanto que quando ainda está na barriga da mãe ele diz: “Mãe, dê à luz a mim! ” Segundo o diretor e roteirista Michel Ocelot, foi também uma grande oportunidade para mostrar o povo africano e alguns de seus valores. O roteiro foge do óbvio, ao contrário do que acontece em outras produções do gênero. E conta ainda com boa trilha sonora e personagens cativantes”. (Fonte: www.correioweb.com.br)

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Algumas reflexões: Kiriku talvez seja o filme que tenha merecido mais destaque nas escolas brasileiras, apesar de ser um filme produzido na França e Bélgica, ele consegue adentrar em determinadas particularidades do ser africano (sobretudo aqueles nascidos no oeste), que podem ser importantes na discussão sobre de diversidade e inclusão a ser feito nas series iniciais. Além disso o reforço das boas ações, mesmo ante a possíveis críticas. A nosso ver a análise sobre as “lendas africanas” que aparecem no filme pode ser perigosa, pois dá a impressão para as crianças de que as sociedades tradicionais são “atrasadas”, “ fixas no passado”. O filme traz questões pertinentes e atuais que ajudam as crianças a pensarem o contexto que as cerca e é isso que deve ser levado em conta. Outra questão que o filme aborda é o problema da água que é tratado como uma questão de maldição. Enquanto os adultos atribuem à feiticeira todos os males, o menino Kiriku vai em busca das respostas. Isso pode servir de estímulo às novas descobertas e a não aceitação de um senso comum sem uma reflexão sobre outras possibilidades de respostas para algumas questões. O filme teve algumas continuações como “Kiriku: os animais selvagens,” de 2002 e “Kiriku, os homens e as mulheres”, de 2015. O filme de 2002 é indicado para crianças muito pequenas, visto fazer uso da música para contar suas histórias, possibilitando desta forma um processo de iniciação musical diferente do que é visto, por exemplo nos filmes da Disney. Sugestão de atividade e indicações de leitura: A revista Nova escola preparou um plano de aula que pode ser adaptado para todo o fundamental I, mais informações podem ser conseguidas no link: http://rede.novaescolaclube.org.br/planos-de-aula/introducao-cultura-africanacom-o-filme-kiriku-e-feiticeira O Folha de Cultura do Jornal “O Estadão” fez uma análise bem pertinente do filme “Kiriku: os animais selvagens” Link: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,kirikou-os-animais-selvagens-ealternativa-de-animacao,51115 Onde encontrar Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=L1EsTJOhxkw # É possível achar o filme complete na livraria paulinas ou mesmo no Youtube

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Sugestão 4 KHUMBA (África do Sul, Anthony Silverston, 2014) Sinopse: Khumba é uma pequena zebra que nasce com a metade do corpo sem listras. O animal logo sofre o preconceito de todos ao redor, e segundo uma lenda local, o seu nascimento é responsável pela falta de chuva na região. Para tentar remediar este grande problema, Khumba decide partir em uma viagem solitária pela savana africana, para encontrar um lago mágico capaz de restituir as listras que lhe faltam, trazendo de novo a chuva ao seu povo. No caminho, ele encontra outros animais com traumas pessoais e isolados de seu bando, como uma fêmea gnu, um avestruz e um tigre cego de um olho. (http://www.adorocinema.com/filmes/filme-205730/) Reflexões: O filme possibilita a discussão sobe as diferenças e a percepção de que não se é sozinho no mundo. É uma animação que apresenta questões de coragem, auto aceitação e a busca por alcançar o objetivo. A procura pelo lago acaba unindo um grupo de animais que possuem as suas mazelas pessoais. Sugestão de atividade e indicações de leitura: Uma das temáticas do filme é a questão do outro, a aceitação e respeito. Após exibição, um debate sobre as temáticas do filme poderá estimular a discussão e a percepção do ambiente escolar. Onde encontrar Disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=QwOK2ISjO_w

Filmes clássicos e documentários O uso de filmes caracterizados como clássicos podem sofrer interferência do professor, pois em muitos casos a qualidade da imagem, do som, o figurino, dentre outros aspectos podem sofrer alterações. Com o controle remoto nas mãos uma cena poderá ser vista algumas vezes para que as mudanças sejam percebidas. A imagem em preto e branco não significam perda da qualidade, mas uma possibilidade diferente de observação. Os documentários, apresentados como documentos imagéticos, oferecem outras possibilidades, pois, mesmo que façam parte de uma produção organizada e com uma finalidade específica, são apresentados como representações da realidade.

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Também não trabalham com atores profissionais, mas com personalidades da vida real. Entre alguns podemos observar:

Sugestão 5 A BATALHA DE ARGEL (Argélia e Itália, 1966) Sinopse: Dirigido pelo italiano Gillo Pontecorvo (1919 - 2006), o filme apresenta momentos decisivos da guerra pela independência da Argélia (1954 - 1962), marco no processo de libertação das colônias africanas. Enfocando o período entre 1954 e 1957, o longa-metragem mostra como agiam os dois lados do conflito: o exército francês recorria à tortura e à execução dos inimigos e a FLN (Frente de Libertação Nacional) usava técnicas de guerrilha e de terrorismo. Público Alvo: Ensino Médio Algumas observações: Mais do que a guerra pela independência da Argélia, o filme pode ser lido/trabalhado como uma fonte do cinema político de Gillo Pontecorvo, apresentando suas análises sobre o colonialismo e a violência política, temas também abordados em sua obra “Queimada! ” de 1969, que retrata aspectos da revolução haitiana. Assim, a nossa sugestão não é a exibição do filme completo aos alunos que pode se tornar enfadonho, sobretudo pelo fato de não serem coloridos, mas sim construir um projeto de pesquisa que analise a vida e obra de Pontecorvo e sua produção cinematográfica. Uma outra forma de análise da obra é situar a Argélia e o norte da África frente aos conflitos atuais e temas que são relevantes como a Primavera Árabe e os conflitos no Sudão. A análise da produção fílmica aliada ao contexto de produção e posteriormente, ao contexto de exibição (atualidade) permitem a comparação entre as mudanças sociais e econômicas transcorridas desde a produção. Além disso, há a possibilidade de reflexão sobre a influência de outras culturas no Brasil. Onde encontrar: O filme é facilmente encontrado no Youtube, mas também pode ser comprado, isto porque em 2014, A Batalha de Argel ganhou uma nova edição em DVD feita pelo Instituto Moreira Salles (IMS), além de um ensaio do crítico José Carlos Avellar.

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4. O cinema comercial: possibilidades de usos O cinema comercial é aquele que cumpre a função de entretenimento. O objetivo não é travar nenhuma discussão teórica ou moral, mas gerar um lucro mais rápido e certo aos seus produtores. O uso desse tipo de material, associado a uma discussão sobre a influência do cinema no cotidiano, possibilitará uma crítica sobre os temas abordados na produção fílmica, entre outras possibilidades.

Sugestão 6 DISTRITO 9 (EUA, Nova Zelândia, África do Sul, 2009) Sinopse: Uma nave alienígena 'encalha' sobre a cidade de Johannesburg. Os seus milhares de tripulantes acabam isolados num gueto, submetidos à violência da polícia local e negociando com contrabandistas. Curioso paralelo com o apartheid, neste bom filme produzido por Peter Jackson) Comentários. O bom deste filme é que ele traz uma linguagem acessível e conhecida dos alunos, além disso permite discutir questões essenciais no processo formativo, como respeito e convivência com a diversidade, além disso é possível entrar em debate sobre o Apartheid na África do Sul e a construção de campos de refugiados. Em uma perspectiva mais ampla é possível também usar o filme para discutir sobre a questão dos refugiados, tema cada vez mais necessário ante aos desdobramentos do mundo atual. A migração não é um problema só da África. O tempo todo pessoas estão mudando de um lugar para o outro em busca de melhores condições de vida. Esse também é o caso do Brasil, que apresenta uma grande movimentação entre as regiões. Onde encontrar: o filme está disponível para venda em lojas do ramo. Considerações Finais O uso de filmes como fontes para o trabalho em sala de aula permite observar e perceber a História através de outras lentes ou distintos pontos de vista. Um filme pode ser percebido como um vestígio do passado, remoto ou não e é uma testemunha da sociedade que o produziu, além de constituir arquivo importante e ser um reflexo do seu tempo. Além disso, possui uma função social pode ser um material diferenciado para o historiador. Como uma representação do passado, a produção fílmica trabalha com as emoções e se utiliza das imagens para transmitir ideias, além de possuir a capacidade de recriar cenas que estavam em um passado distante, inclusive

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sugerindo temas. Também permite uma experiência físico-sensorial estimulando e alimentando a memória ao possibilitar o reviver de um fato. Vale lembrar que um filme não apresenta apenas uma coleção de fatos organizados de maneira cronológica para ser apreciado pelo espectador, “trata-se de um drama, uma interpretação, uma obra que encena e constrói um passado em imagens e sons” (NOVA, 1996). Portanto, analisar imagens, pensar sobre a produção e refletir sobre questões sociais que envolvem a exibição de uma obra fílmica é um exercício que desenvolve a reflexão histórica. Por fim vale a pena, mais uma vez, enfatizar que o uso do cinema em sala de aula constitui-se uma ferramenta indispensável para o entendimento da história africana. Ele não deve substituir a leitura bibliográfica/debate sobre o tema que será abordado, ou mesmo ser utilizado para preencher algum vazio didático. A sua correta utilização possibilitará a ampliação das perspectivas e novas formas de olhar (e sentir) o continente africano.

Referência Bibliográfica BOUGHEDIR, Ferid, O cinema africano e a ideologia: tendências e evolução, In MELEIRO, Alessandra (org.), Cinema no mundo: indústria, política e mercado, África, Vol. 1, São Paulo: Iniciativa Cultural, 2007, Pp. 37-56 CAPELATO, Maria Helena. Et al. História e Cinema. São Paulo: Alameda, 2007 JAMESON, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995. NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2006 NOVA, Cristiane Nova. O cinema e o conhecimento da História In: Revista O Olho da História: revista de História contemporânea - nº 3 – dez 1996 NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni. Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Ed. da UNESP, 2009 _______, Jorge; SILVA, Marcos. Cinema-História e Razão Poética: o que fazem os profissionais de História com os filmes? IN PESAVENTO, Sandra; CARVALHO, Euzebio. et ali (org.). Sensibilidades e sociabilidades: perspectivas de pesquisa. Goiânia: Ed. PUC-GO, 2008. Pp.11-18. ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

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A REPRESENTAÇÃO LATINA EM HOLLYWOOD: QUESTÕES QUE PODEM SER ABORDADAS NO ENSINO DE HISTÓRIA Maytê R. Vieira Certa vez, conversando com uma colega sobre cinema algumas perguntas nos incomodaram: como Hollywood representa o latino em suas produções? Como a televisão norte-americana apresenta o latino? Qual a visão e o imaginário em torno deste povo que constitui uma grande gama de imigrantes nos Estados Unidos que vão em busca do “sonho americano”? Toda esta discussão surgiu de um comentário sobre uma famosa entrevista concedida pelo ator argentino Ricardo Darín ao programa de televisão semanal Animales Sueltos [Setembro, 2013]. Um dos assuntos abordados é sua recusa a um convite para atuar em Hollywood. O que nos chamou atenção foi o motivo alegado: Ricardo Darín: - Antes de fazer essa cara, me escuta, me deixe argumentar, me ofereceram fazer um narcotraficante mexicano! Alejandro – E? Ricardo Darín: - E porque querem que eu faça um narcotraficante mexicano? Então todos os narcotraficantes são latino-americanos? No país que tem o maior consumo da face da Terra? Primeiro, não gostei. [...] A fala de Darín traz implicações relativas a forma como a América Latina é representada no cinema e na televisão norte-americanos. A capacidade de moldar imaginários que o cinema possui é o que o torna um grande construtor de estereótipos. A dominação do mercado cinematográfico, principalmente nas Américas, por Hollywood é consequência da forma como o cinema se desenvolveu em seus primeiros momentos como indústria. Antes da 1ª Guerra Mundial os filmes eram, basicamente, originários da França, Itália, Inglaterra, Alemanha e Rússia que possuíam um forte mercado de produção e distribuição. Após a Guerra este domínio passou aos Estados Unidos enquanto a Europa se recuperava. Segundo Mattos (2006), no final 90% de todos os filmes assistidos no mundo, em todos os continentes, eram americanos. Produções de outros países europeus e latinoamericanos, continuaram ocorrendo, mas com dificuldade de competitividade pela força dos investimentos feitos pelos estúdios estadunidenses nos mercados internacionais com o intuito de vender e fazer circular seus filmes. Mais

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recentemente produções latino-americanas, incluindo-se aí as brasileiras, tem se desenvolvido e lutado para ganhar espaço nas salas de cinema multiplex possibilitando um processo de modificações do estereótipo do latino-americano, entretanto ainda há muito a ser percorrido para quebrar definitivamente um imaginário construído durante anos de produções massivas. De acordo com alguns autores os estereótipos latinos (criminosos, empregados, coadjuvantes) se devem a implantação do Código Hays, que não permitia a miscigenação de etnias, portanto, somente os atores estadunidenses poderiam protagonizar ou ter papéis de importância nos filmes. Este código de censura que foi estabelecido em Hollywood dos anos 1930 a 1960 por conta da pressão de religiosos e conservadores, que se escandalizavam com cenas consideradas impróprias: nudez, prostituição, uso de drogas, miscigenação racial, uso de palavras de baixo calão, etc. A censura já se encerrou atualmente, porém, a postura do cinema com a origem de alguns atores permaneceu. Não somente dos latinos, os indígenas e os africanos, mesmo aqueles estadunidenses também foram sempre deturpados e estereotipados por Hollywood. O autor Robert Stam (2000), um estadunidense que pesquisa sobre cultura e é considerado um profundo conhecedor do cinema brasileiro, em seu livro Introdução à teoria do cinema retrata os vários cinemas ao redor do mundo e sua perspectiva dentro dos Estados Unidos. Ele fala que frequentemente o homem latino é estereotipado como violento, membro de gangue, toureiro ou revolucionário, enquanto a mulher é sempre hipersexualizada. Os mexicanos são comumente retratados nos filmes de faroeste, por exemplo, de forma inversamente proporcional ao anglo americano (termo usado por ele), ou seja, enquanto o primeiro é preguiçoso e desmazelado, o segundo é o forte trabalhador e conquistador, isto no que ele chama de ficção de conquista. “A moralidade é definida pela cor, quanto mais escura pior será a personagem.” (STAM, 2000). Isto revela padrões opressivos de preconceito. Para Stam (2000) não somente a imagem, mas a forma de filmagem também é fundamental para demonstrar este preconceito, ele sugere que ao analisarmos um filme buscando estas questões que observemos: quanto tempo eles aparecem na cena? Como são filmados? Quanto tempo aparecem em comparação com os euroamericanos? São personagens ativas ou apenas elementos decorativos? Como se posicionam? Se, por um lado, o cinema é mimese e representação, por outro, é também enunciado, um ato de interlocução contextualizada entre produtores e receptores socialmente localizados. Não basta dizer que a arte é construída. Temos de perguntar: Construída para quem e em conjunção com quais ideologias e discursos? Nesse sentido, a arte é representação não tanto em sentido mimético quanto político, de delegação de voz. (STAM, 2000, p. 305) Uma outra análise apontada pelo autor é de algo que consideramos de alguma maneira inocente: desenhos animados. Neste contexto específico, os estúdios

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Disney mostram personagens e lugares latinos, africanos e orientais sob estereótipos totalmente preconceituosos de forma naturalizada o que nos dá um panorama desalentador de como uma minoria que detém o monopólio do poder da imagem vê uma maioria e cria representações sem nenhum pudor sobre ela. Imagem de Zé Carioca, por exemplo, é um clássico nesse sentido. O latino (aqui referido como os povos de línguas originadas do latim como alguns europeus (espanhóis e italianos) e os da América Latina englobando Américas do Sul e Central e o México), desde as primeiras décadas, é retratado como o bandido, o malandro. Isto é visível nos faroestes que retratam a conquista e expansão de fronteiras nas terras de um povo preguiçoso, pobre e servil sendo coadjuvantes para o heroico cowboy americano. Nos anos 1970 e 1980 o papel passou a ser de mafioso (para os italianos) e narcotraficantes das mais diversas origens: México, Colômbia, Bolívia, etc. Neste ponto, voltamos a fala de Darín que demonstra o quanto esta imagem ainda está posta. Numa outra frente, temos a questão das mulheres. E evoco como um exemplo primordial Carmem Miranda. A atriz foi convidada para participar de produções cinematográficas nos Estados Unidos durante o período de 1940 a 1945 em que a política externa norte americana estava voltada para conquistar e moldar o restante das Américas através da utilização de atores latino-americanos no cinema hollywoodiano. A ideia era promover a amizade e a troca cultural, porém deixando claro a superioridade dos Estados Unidos sobre o restante. “Ao lado de outros artistas latino-americanos, seu papel era suavizar, naturalizar e disseminar as narrativas interamericanas [...] por meio da comédia, da música, de suas curvas, das piscadelas e do grande sorriso.” (MACEDO, 2013). Neste contexto, Carmem Miranda representa bem a maneira distorcida como eram apresentadas e representadas as mulheres latinas. Suas roupas precisavam deixar a mostra as pernas, o abdômen, os braços e o busto, suas unhas e boca pintados de vermelho e as roupas tinham uma forte conotação de inspiração nos trajes caribenhos. A baiana da atriz mescla identidades diversas ao mesmo tempo em que as distorce, confundindo e negando as diversas etnias, costumes e culturas que convivem nas Américas do Sul e Central e no México. Além do agravante de mostrar a mulher latina como objeto de desejo e disposta ao sexo fácil, a mulher caliente, como a cubana Estelita Rodriguez que atuou na década de 1950 e era chamada de Cuban fireball (bola de fogo cubana). A representação e a apresentação delas induz à ideia de que as mulheres latinas são somente para desfrutar. Neste período propagou-se e consolidou-se a imagem da América Latina como o paraíso para as férias dos estadunidenses com suas praias, belezas naturais, mulheres permissivas e homens servis, onde seu dinheiro compra tudo por tratarse de lugares pobres e subdesenvolvidos. Mesmo com toda a evolução das últimas décadas ainda há muito que mudar nesta visão que compartimenta conhecimentos, que não vê os verdadeiros sujeitos sociais, que contempla o outro somente de acordo com seu desejo. É a cultura de que o homem branco, civilizado, racional é

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aquele que vem da Europa (ainda assim, partes dela) e dos Estados Unidos da América. Mais recentemente as mudanças, bem vindas, tem sido por conta das produções e inserções da América Latina no cenário dos Estados Unidos e da Europa. Vários filmes de qualidade inquestionável tem tido visibilidade, assim como diretores e atores latinos, tem ganho cada vez mais espaço. A qualidade e a capacidade do cinema latino-americano tem crescido cada vez mais conquistando o público e competindo no e com o mercado internacional, esperemos que este desenvolvimento faça com que avance cada vez mais a desconstrução dos estereótipos. Prova disto, são os excelentes diretores e atores latinos que tomado cada vez mais espaço, além de cinemas nacionais que tem se destacado pelo mundo afora, como é o caso do Novo Cinema Argentino, nas palavras de Fernando Mascarello (2008) que tenta ter no cinema uma forma de reflexão, de catarse, mostrando conflitos pessoais e do indivíduo, algumas vezes de um realismo desconcertante ao nos fazer encarar um mundo ao qual temos que nos adaptar. A intenção desta breve exposição era deixar em aberto as questões para discussão e aprofundamento, com este intuito seguem abaixo algumas sugestões de alguns links para leitura e filmes e séries para serem assistidas usando os critérios de análise sugeridos por Stam (2000). Espero que rendam boas observações e debates futuros.

Alguns sites Mesmo se tratando de publicações não científicas, os artigos fazem um bom apanhado geral sobre o assunto e servem como exemplos de filmes a serem analisados: http://super.abril.com.br/linha-do-tempo-a-historia-dos-latino-americanos-emhollywood http://super.abril.com.br/blogs/cultura/como-os-artistas-latino-americanosconquistaram-hollywood/

Sugestão de Filmes: (títulos em português) A máscara do Zorro (1920, 1940, 1974 e 1998) (todos disponíveis na internet) Meu amor brasileiro (1953) (Latin lovers) Sete homens e um destino (1960)

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Boulevard night (1979) Amores brutos (2000) Frida (2002) O labirinto do fauno (2006) O segredo dos seus olhos (2009) No (2012) Gravidade (2013) Relatos Selvagens (2014) Birdman (2014) Narco (2015) – série original da e disponível na Netflix

Bibliografia de apoio: BALIEIRO, F. F. Carmem Miranda entre desejos de duas nações: uma análise de suas personagens baiana e latino-americanas no cinema. In: Anais do XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais, Salvador, 2011. BAPTISTA, M; MASCARELLO, F. (orgs). Cinema mundial contemporâneo. Campinas, SP: Papirus, 2008. GUSMÃO, N. M. M. Linguagem, cultura e alteridade: imagens do outro. In: Cadernos de Pesquisa, nº 107, p. 41-78, julho/1999. LIPOVETSKY, G. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009. MACEDO, K. B. Formas de desrespeito na representação latino-americana de Hollywood, através de Carmem Miranda (1940-1945). In: Anais eletrônicos do Seminário Internacional Fazendo Genêro 10 – Desafios atuais dos feminismos, Florianópolis, 2013. MATTOS, A. C. G. Do cinetoscópio ao cinema digital: breve história do cinema americano. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. MASCARELLO, F.; BAPTISTA, M. (orgs.). Cinema mundial contemporâneo. Campinas, SP: Papirus, 2008.

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PAIVA, C. C. O cinema de Hollywood e a invenção da América. Mídias e interculturalidades locais e globais. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/paiva-claudio-hollywood-invencao-america.pdf Acesso em: 25 jun. 2015. STAM, R. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003.

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MESA ESPECIAL: INVESTIGANDO AS PRÁTICAS DE ENSINO DE PROFESSORES DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA (BRASIL- 1998 - 2016) Marlene Cainelli Kátia Maria Abud Geyso Germinari Iracema Oliveira Lima Magda Maria Peruzin Tuma Marcia Elisa Tete Ramos Maria Conceição Silva Marisa Noda Ronaldo Cardoso Alves Apresentação Temos como pressuposto neste estudo que a possibilidade de analisar as narrativas dos professores sobre a história permite entender como se constrói a consciência histórica que forma as identidades do indivíduo e sua relação com o local em uma sociedade hoje marcada pela globalização espacial e digital. Nossa proposta de periodização se justifica, em dois momentos, primeiro pelo encaminhamento em 1998 dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que em sua elaboração propunha uma renovação no ensino de história principalmente nas relações dos alunos com o conhecimento histórico, propondo eixos temáticos, ciclos de estudo, tornando-se um indicador de mudanças metodológicas no ensino de história no Brasil. Em segundo pelas pesquisas em ensino de história que se efetivaram no Brasil, a partir da consolidação da temática de ensino de história nas pós-graduações. Nesta pesquisa também estamos trabalhando com Peter Seixas (2016) tentando perceber qual o lugar da educação histórica na produção de conhecimento na escola e na formação do pensamento histórico. Nosso interesse principal de investigação é o papel das metodologias de ensino história na Educação básica, entendendo que a História ensinada da escola estaria na zona de transição entre a História disciplinar e a memória coletiva (Seixas, 2016). Iremos discutir nesta apresentação os primeiros estudos exploratórios realizados pelo projeto no Brasil, com professores nos Estados do Paraná.

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Introdução Os objetos tratados nessa investigação estão articulados, organicamente, em torno da preocupação com os significados e os sentidos que a História tem para os sujeitos, no mundo contemporâneo. Nessa perspectiva, é importante lembrar que a escrita da História, bem como seu ensino, no mundo contemporâneo sofre de imperativos urgentes, como as questões relacionadas ao sujeito, a narrativa, os documentos e a multiperspectividade dos diálogos epistemológicos e metodológicos. Nesse quadro atual, perguntas se colocam, tais como quais os desafios da ética, da constituição de memórias e do papel da História e dos historiadores em entender este mundo multiperspectivado? Será o tempo de perguntarmos novamente “Para que serve a História” Qual o papel do Historiador”? E qual o significado do ensino da História”? Estas perguntas, ao mesmo tempo que provocam desconfortos, alimentam um permanente desassossego nos historiadores, impelindo-os, assim como ao anjo de Walter Benjamin, ao enfrentamento do tempo que não cessa em passar, com suas crises paradigmáticas e necessidades de respostas. Nesse sentido refletir sobre o ensino de história ensinado na escola indica, em primeiro lugar, a necessidade de conhecer os caminhos possíveis para dar sentidos ao passado. Para responder a pergunta “Como dar sentido ao passado Rusen (2009) aponta duas formas de lidar com o passado em nome do futuro. A memória e a História. A memória torna o passado significativo, o mantém vivo e o torna uma parte essencial da orientação cultural da vida presente. Essa orientação inclui uma perspectiva futura e uma direção que molde todas as atividades e sofrimentos humanos. A história é uma forma elaborada de memória, ela vai além dos limites de uma vida individual. Ela trama as peças do passado rememorado em uma unidade temporal aberta para o futuro, oferecendo às pessoas uma interpretação da mudança temporal. Elas precisam dessa interpretação para ajustar os movimentos temporais de suas próprias vidas. (Rusen, 2009, p.164) A importância do ensino de História nesse processo é indicada também pelo historiador Peter Lee, quando argumenta “Não se escapa do passado. Ele é construído a partir de conceitos que nós empregamos para lidar com o dia a dia do mundo físico e social” (LEE:2011, p.29)). Assim, esta relação Passado e História é um dos pontos centrais do entendimento do que se ensina ou se aprende em História. Como afirma Rusen(2001), o mero fato de pertencer ao passado não faz de tudo algo histórico, é necessário torná-lo historicamente possível e o passado só se torna história quando expressamente interpretado como tal; abstraindo-se dessa interpretação, ele não passa de material bruto, um fragmento de fatos mortos, que só nasce como história mediante o trabalho interpretativo dos que se debruçam, reflexivamente, sobre ele. (RUSEN, 2001, p.95). Da mesma forma, a perspectiva pela qual lidamos com o passado é responsável por aquilo que Rusen (2009) chama atenção, “ é o futuro em curso que demanda

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uma revisão crítica dos conceitos de história e memória até agora desenvolvidos”. Por isto, as escolhas que fazemos sobre o que lembrar do passado nos levam a uma perspectiva do futuro pretendido como uma orientação da vida presente em curso. É no âmbito dessas reflexões que se insere a Educação Histórica enquanto área do conhecimento e campo de estudos e pesquisas. Ao abordar a questão epistemológica de uma cognição histórica situada na própria ciência da História, que privilegia a construção do pensamento dos sujeitos a partir dos conceitos da natureza do conhecimento histórico, essa área do conhecimento está criando um caminho em busca da construção de um novo paradigma para a aprendizagem histórica e, portanto, para o seu ensino, descortinando novas possibilidades de se aprender a lidar com o passado. Isabel Barca ao pensar a educação histórica e suas formas se articular com o passado afirma A educação histórica é um campo de investigação que pressupõem e não autoriza a que, em História, se legitime toda e qualquer interpretação do passado: o compromisso com as fontes disponíveis e a coerência com o contexto constituem princípios em que se baseia a validação de uma ‘conclusão’ histórica(...). A mobilização destes princípios ajudará também a distinguir entre níveis de discurso sobre o passado - especulativo, histórico ou de senso comum. Os jovens, tal como os adultos, precisam de exercitar estas competências de selecção e avaliação da informação com base em critérios racionais, sem esquecer o sentido humano da vida. (BARCA,2007, p.6) Nessa direção, a forma como a história é ensinada hoje são referências fundamentais para o entendimento deste percurso de constituição de um novo paradigma para a teoria da aprendizagem e do ensino de história. De um lado, envolvem questões relacionadas à metahistória como forma de constituição da reflexão sobre o pensamento histórico. De outro, explicitam a relação que se estabelece na formação do pensamento histórico com o passado a partir do entendimento da multiperspecitva em história, da evidência, da empatia e da consciência histórica formada a partir da interpretação da fonte. Ao assumirmos a perspectiva da Educação Histórica nesta investigação, compreendemos que, sendo a História uma ciência é importante considerar que não existe uma só explicação ou narrativa sobre o passado, mas que este possui diversas perspectivas, entendendo que há uma objetividade na produção do conhecimento histórico. (SCHMIDT,2009). Desta forma, a história precisa ser conhecida e interpretada, tendo como base as evidências do passado e o desenvolvimento da ciência e de suas técnicas. A partir desses pressupostos, a Educação Histórica atribui uma utilidade e um sentido social ao conhecimento histórico, que é a formação da consciência histórica. A partir desse compromisso, diversos conceitos têm sido alvo na pesquisa da Educação Histórica, como o conceito de significância, mudança,

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evidência, consciência histórica e narrativa histórica. Várias pesquisas se concentram em investigar processos de aprendizagem, procurando responder como acontece o processo de produção de narrativas históricas pelos alunos, a partir das aulas de história e do uso de livros didáticos, tendo como suporte o significado do ensino de História na formação do pensamento histórico. Como objetivos específicos dessas investigações podem ser citados: Analisar a produção de narrativas históricas pelos alunos, procurando entender a sua compreensão histórica, tendo como referência a função da explicação histórica na produção de narrativas históricas. Em nossa pesquisa optamos pela investigação junto a professores do ensino fundamental na perspectiva de formar um quadro importante de discussões epistemológicas e metodológicas no campo da configuração do que se entende hoje por aprendizagem e ensino de história, especificamente no âmbito da teoria da consciência histórica. O que é ensinar história hoje? Quais os pressupostos da didática da Histórica? Quais são os fundamentos que sustentam as escolhas dos conteúdos e da forma de pensar a história a ser ensinada no século XXI?

Enquadramento Teórico Em pesquisas recentes sobre o ensino de História no Brasil nos aspectos relacionados a metodologia do trabalho docente podemos afirmar que a forma de ensinar História em muitos casos não se afastou do seu início no século XIX. Muitas das características que predominavam em sala de aula naquele período ainda podem ser vistas no século XXI. Podemos citar entre elas, o ensino mnemônico, as leituras e explicações do texto, o apego ao livro didático, as avaliações de centradas em questões de múltipla escolha. Como indicado na pesquisa realizada por Gevaerd (2009). A partir de observação de aulas de professores, essa pesquisadora concluiu que a ênfase das aulas dadas por professores da educação básica recaía em uma metodologia em que predominava uma aprendizagem na perspectiva da memorização, e isto acabava por dificultar que a professora centrasse a aprendizagem na leitura e escrita de narrativas históricas pelos alunos. Segundo a pesquisadora: Como a professora não partiu das ideias prévias dos alunos para realizar sua intervenção pedagógica, de modo geral as narrativas produzidas pelos alunos seguiram a lógica dos manuais didáticos, predominando narrativas fragmentadas. (...) esse jeito de os alunos produzirem suas narrativas indica duas questões fundamentais. Primeiramente que, do ponto de vista didático, a aula precisa ser modificada, pois é preciso trazer as ideias prévias dos alunos como elementos constitutivos da aprendizagem e da metodologia de ensino da História (...) A segunda questão é a necessidade da incorporação, por parte dos professores, da ideia da narrativa histórica como uma

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maneira de aprender e ensinar a história (...). (GEVAERD, 2009, pp.290-291). No trabalho desenvolvido por Tiago Sanches (2009) em sua dissertação mestrado o autor chegou à conclusão que apesar de conhecer as teorias e discussões recentes sobre ensino História que apresentavam nas respostas dos questionários, as professoras em sala de aula recorriam ao esquema leitura e explicação do texto para desenvolver os conteúdos de História nas séries iniciais. Segundo o autor Nestes casos, os professores, ao lecionarem a disciplina de História transmitem o conteúdo histórico aos alunos esperando que estes apreendam as informações e as reproduzam no momento das avaliações. Nesta perspectiva o saber histórico consistiria neste conjunto de informações históricas recebidas pelo aluno durante o processo de aprendizagem escolar. As aulas são muitas vezes divididas em pontos, organizados sequencialmente de acordo com a data dos acontecimentos, em uma visão progressiva da sociedade. Esses conteúdos são transmitidos aos alunos descolados das necessidades da vida prática, não possuem aplicabilidade em sua compreensão da mesma, perdendo assim sua função de orientadora no tempo. (Sanches, 2009, p.55) Em pesquisa que realizamos nos anos de 2010 a 2012 ao investigar a forma de ensinar história de professores das séries iniciais e finais da educação básica percebemos em nossas observações que a aula de história se concretiza por aquilo que está no texto, ou seja, no livro didático. É o livro didático que dita o ritmo da aula, os exercícios e o conhecimento histórico a ser ensinado. É em torno das informações organizadas neste livro, que o professor estrutura a aula, pois depois da leitura que eles realizam de forma individual e silenciosa – não chegamos a presenciar momentos de leitura compartilhada ou em voz alta – o professor explica organizando as informações do livro na lousa. Essa atividade é bem ampla envolvendo a sala toda. O professor coloca o título dos tópicos do livro que ele quer que os alunos copiem e vai perguntando as características do conteúdo que os alunos leram, compondo com essas respostas os tópicos que eles terão anotados em seu caderno e assim discutindo e acrescentando novas informações ou reformulando as colocações dos alunos, considerando que os alunos tiveram uma compreensão parcial ou diferente do sentido que o livro expressaria. (Cainelli, 2012). As questões relativas as formas de abordagem do conteúdo histórico são muito importantes na pesquisa que realizamos. Nas observações que realizamos nos projetos anteriores que desenvolvemos na cidade de Londrina no Paraná, chegamos à conclusão que a aula de história se concretiza por aquilo que está no texto, ou seja, no livro didático. É o livro didático que dita o ritmo da aula, os exercícios e o conhecimento histórico a ser ensinado. Nas observações também percebemos que o professor poucas vezes escreve textos na lousa para que as crianças copiem ou traz textos para sala de aula, geralmente utiliza os textos

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organizados no livro, seguindo a organização cronológica deste para ensinar os conteúdos em sala de aula. É em torno das informações organizadas no livro didático, que o professor estrutura a aula. Nesse sentido podemos relacionar com que nos diz Bittencourt ...o livro didático é também um depositário de conteúdos escolares, suporte básico e sistematizador privilegiado dos conteúdos elencados pelas propostas curriculares; é por seu intermédio que são passados os conhecimentos e técnicas considerados fundamentais de uma sociedade em determinada época.” (BITTENCOURT, 1998, pg.72) Pretendemos realizar investigações sobre as formas de conhecimento histórico presente em aulas de História, bem como a relação de professores com esse conhecimento, tendo como referência a produção intelectual sobre ensino de história produzida no exterior e principalmente no Brasil. Tendo como pressuposto que a possibilidade de analisar as narrativas dos professores sobre a história permitirá entender como se constrói a consciência histórica que forma as identidades do indivíduo e sua relação com o local em uma sociedade hoje marcada pela globalização espacial e digital. Não se trata de pensar a função da história como aprisionadora do indivíduo e sim de pensar como a História pode orientar os indivíduos cognitivamente para orientar-se pessoal e socialmente. (Schmidt, 2009) Nossa proposta de periodização é justificada em dois momentos. Primeiro pelo encaminhamento em 1998 dos Parâmetros Curriculares Nacionais, documento que serviu de indicativo para as propostas curriculares dos estados brasileiros a partir de então e até hoje é usado como referência para políticas públicas como o Enen e o PNLD que em sua elaboração propunha uma renovação no ensino de história principalmente nas relações dos alunos com o conhecimento histórico. E ao propor Eixos temáticos na estrutura do ensino fundamental e depois médio tornou-se um indicador de mudanças metodológicas no ensino de história. Em segundo lugar pelas pesquisas em ensino de história que se efetivam neste momento no Brasil a partir principalmente da consolidação da temática de ensino nas pós-graduações em Educação. Com relação ao Estado do Paraná neste período está em vigor o currículo Básico do Paraná documento que posteriormente servirá de matriz para a produção das Diretrizes Curriculares de História para Educação Básica do Estado do Paraná de 2008. O currículo básico do Paraná foi resultado de um intenso processo de discussão coletiva que envolveu professores da rede estadual de ensino e de instituições de ensino superior. Vinculava-se ao materialismo histórico dialético, matriz teórica que fundamentava a proposta de ensino-aprendizagem de todas as disciplinas do currículo. Chegou à escola em 1990 e vigorou, como proposição curricular oficial no Paraná, até o início do século XXI. No caso do Estado de São Paulo temos que levar em consideração que foi o Estado que primeiro se debruçou pós ditadura militar em repensar os currículos e as práticas de ensino de História.

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No que tange o trabalho com os sujeitos da cultura escolar, especialmente com relação aos professores pretende-se através da coleta e estudo de dados empíricos compreendermos as noções que estes constroem sobre a história É nosso interesse como afirma Barca (2011) entender como se formam as ideias históricas , em primeiro lugar porque só se pode mudar aquilo que se conhece e em segundo lugar para promover um conteúdo histórico estruturante que não valorize apenas a reprodução pouco refletida de conhecimento de temáticas curriculares, mas também a formação da consciência Histórica. As ideias serão coletadas através da construção de narrativas pelos professores, entendendo a narrativa no sentido atribuído por Isabel Barca (2011) “como expressão de ideias sob qualquer formato – que se comunica a compreensão histórica e os sentidos que lhes são atribuídos”. Também utilizaremos o recurso dos estudos exploratórios e questionários direcionados para colocar em confronto as teorias produzidas na área de conhecimento do ensino de história e as narrativas dos professores. Pretendemos, neste estudo, analisar o professor de história da educação básica com a perspectiva de entender como a história é ensinada. Nesse sentido buscamos o que Rusen chama de “trato reflexivo do homem com seu mundo” (Rusen, 2001). É a relação que este profissional tem com seu mundo que efetivamente determina a forma de ensinar história, são suas carências de orientação e seus critérios de sentido que dão forma ao conteúdo ensinado ou teoricamente pensado. Nas observações realizadas no campo de pesquisa o olhar do pesquisador irá se debruçar sobre as relações que estes profissionais apresentam sobre a história a ser ensinada e como estes operacionalizam esta tarefa. Com relação à metodologia de pesquisa nosso especial interesse se direciona tanto sobre quais os repertórios de conhecimento sobre a história este professor utiliza para ensinar história como a entender como enquanto indivíduo este faz suas escolhas e como este vê a história com sentido para sua vida e de seus alunos. Também pesquisamos quais os instrumentos metodológicos são mobilizados na experiência pedagógica de ensinar história. Entendemos este professor de História como um indivíduo que como qualquer outro participa da história por estar envolvido em seu processo e enquanto tal tem carências de orientação e perspectivas de futuro. Para Rüsen (2010) diante da importância já comprovada por especialistas da utilização do livro no processo de ensino aprendizagem é possível se pensar em um livro didático de história ideal? O autor afirma que um livro didático deve oferecer explicações inteligíveis e verificáveis, sem se limitar, entretanto, a meras informações de fatos, bem como evitar por princípio argumentações monocausais e insistir no fato de que a interpretação histórica está aberta por princípio às argumentações multicausais. Assim, deve apresentar o conhecimento histórico de forma argumentativa, e evitar qualquer aparência de uma certeza dogmática. (RÜSEN, 2010 p.123).

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Neste processo, podemos perceber que o professor faz do livro a figura central do processo de ensino aprendizagem da história na sala de aula, as discussões e os conteúdos que os alunos anotarão partem do conhecimento e das características discutidas pelo livro didático. A partir dele se estrutura a aula e a organização da discussão dos conhecimentos históricos acerca das sociedades estudadas. Entendemos a partir destes primeiros estudos que predominantemente as aulas de história na educação básica acabam por não considerar as pesquisas recentes que abordam a forma de aprendizagem de crianças e adolescentes. A prática pedagógica do professor de História não considera os aspectos derivados destas investigações em detrimento da tradição consolidada de “cumprir o programa ou vencer os conteúdos do livro didático”. Outro fator importante na manutenção de uma metodologia da história que privilegia o conhecimento a partir daquilo que está no livro didático sem relações com os conhecimentos do indivíduo é abordado na tese de doutorado da pesquisadora Helena Veríssimo que em seu trabalho sobre avaliação em Portugal chega à conclusão que ainda incidem nas aulas de história a elaboração avaliativa a partir das teorias behavioristas das décadas de 60 e 70 do século XX e que ainda servem de suporte para práticas avaliativas no ensino de história do século XXI. A avaliação ainda hoje argumenta a autora Baseia-se na observação dos comportamentos externos, sem mergulhar na complexidade da consciência humana para explicar a aprendizagem. Os progressos da aprendizagem em história são medidos pela memorização dos fatos e capacidades interpretativas mais ligados a questão de interpretação de textos do que propriamente a questões históricas. Ainda são medidos em termos de certo ou errado para suas conclusões sobre os temas propostos. (Veríssimo,2013, p. 21) Nessa direção é que surgiram as questões presentes na proposta dessa investigação, até que ponto as produções acadêmicas em torno do pensar o ensino de história estão contribuindo para a prática do professor em suas escolhas metodológicas e teóricas em sala de aula? Como podemos perceber na atuação do professor de História a vida prática como ponto de partida e ponto de chegada do seu agir docente? A consciência histórica tem sentido como função e finalidade do aprender e ensinar a história? Entre as análises que propomos está a análise das práticas em sala de aula, a partir de Lee (2001) para quem deve haver uma articulação entre os conceitos substantivos (aqueles relacionados com alguns conteúdos específicos da história, tais como descobrimento do Brasil, ditadura militar brasileira) e os conceitos de segunda ordem (aqueles relacionados à epistemologia da história, tais como evidência, explicação histórica, narrativa). Nesse sentido, uma questão fundamental que se apresenta, qual seja a de se procurar entender quais relações o professor estabelece com as produções da ciência de referência e com as pesquisas sobre ensino de história e novas

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metodologias para ensinar história e seu trabalho em sala de aula? Que significados a produção do conhecimento pode ter na relação teoria e pratica docente? Entendemos importante a questão da ciência de referência e historicamente a dimensão que se estabeleceu entre o que seria ensinar e o que seria produzir conhecimento histórico. Segundo Schmidt Um primeiro pressuposto é o de que o professor (historiador) não pode, em hipótese alguma, ser um mero reprodutor/transmissor, depositador de conhecimentos, mas necessita estabelecer, em sua profissionalização, uma relação orgânica entre ensino e pesquisa. Essa relação não implica em transformar ensino em pesquisa, mas entende que a articulação entre a forma pela qual cada um se pensa como professor e a condição de viver a atividade de professor é produzida historicamente. Neste sentido, é importante que se busque superar a lógica perversa da divisão técnica do trabalho, que separou, historicamente, aqueles professores que são autorizados a produzir conhecimento, daqueles a quem é permitida apenas a sua transmissão. (Schmidt, 2012, p.101) A pluralidade de saberes necessários à formação docente leva-nos a ponderar a importância dos saberes relativos à ciência de referência para a formação do docente e a pluralidade dos conhecimentos que atuam na ação pedagógica. Tardiff e Raymond argumentam: Os saberes que servem de base para o ensino, tais como são vistos pelos professores, não se limitam a conteúdos bem circunscritos que dependeriam de um conhecimento especializado. Eles abrangem uma grande diversidade de objetos, de questões, de problemas que estão relacionados com seu trabalho. Além disso, não correspondem, ou pelo menos muito pouco, aos conhecimentos teóricos obtidos na universidade e produzidos pela pesquisa na área da Educação. .... Os saberes profissionais dos professores parecem ser, portanto, plurais, compósitos, heterogêneos, pois trazem à tona, no próprio exercício do trabalho, conhecimentos e manifestações do saber-fazer e do saber-ser bastante diversificados, provenientes de fontes variadas, as quais podemos supor que sejam também de natureza diferente. (TARDIFF e RAYMOND, 2000, p.6) Essas questões apontam em direção à concepção de prática docente como um lugar de fronteira como bem já apontou (FONSECA,2010) nas relações entre a formação, a pesquisa, os saberes e as práticas em sala de aula. Estamos ousando pensar nas relações que se estabelecem no momento da das escolhas de conteúdo e metodologias pelo professor, como este se apropria do conhecimento produzido em sua área de conhecimento, no nosso caso a ciência da História? Como afirma Selva Guimarães Fonseca,

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O professor não opera no vazio – é óbvio. Mas o que isto significa? A sala de aula é um espaço pleno de experiências. Os saberes, os valores culturais e políticos e os hábitos são transmitidos e reconstruídos na escola por sujeitos históricos, que trazem consigo um conjunto de crenças, significados, valores, atitudes e comportamentos construídos nos vários espaços de vivência, antes e durante o processo de escolarização. (FONSECA, 2010, p. 400)

A investigação em curso Os trabalhos que vêm sendo desenvolvidos em nossa pesquisa propõem um diálogo com as metodologias de investigação qualitativa, na área educacional. Nessa direção nos apoiamos nas discussões de LESSARD-HÉBERT; GOYETTE e BOUTIN (2012), a expressão metodologia qualitativa abarca um conjunto de abordagens as quais, consoantes as investigações, tomam diferentes denominações, sendo que o termo investigação qualitativa, vai significar para os tipos de dados que este tipo de investigação produz e também para os modos de proceder os postulados que lhes estão associados, tendo os sujeitos pesquisados e a realidade que permeia estes um papel central, cabendo ao pesquisador decifrar o significado da ação humana, e não apenas descrever os comportamentos. As metodologias qualitativas de investigação constituem o conjunto de diretrizes que têm orientado as investigações científicas realizadas no campo da educação histórica. O foco da investigação será delimitado nas questões relacionadas à cognição e metacogniçao histórica, tendo como fundamento principal a própria epistemologia da História. Entre as investigações realizadas no âmbito da Educação Histórica, encontram-se estudos sobre aprendizagem histórica, consciência histórica, ideias substantivas e ideias de segunda ordem em História e sobre narrativas históricas. Nesta pesquisa iremos a partir das categorias definidas pela educação histórica elaborar instrumentos de investigação que possa evidenciar as ideias históricas dos professores de História e como a relação entre estas ideias e a sala de aula constituem hoje o fazer histórico da disciplina de História em sala de aula. Uma das características da pesquisa em educação histórica no Brasil é o fato das investigações terem como lócus o espaço da sala de aula. A observação e a investigação das ideias dos professores nos levarão a perceber no ato do exercício do professor o dialogo estabelecido, as ideias, as interferências cotidianas externas e internas na produção do conhecimento histórico. Nesse sentido o papel do pesquisador se enquadra na efetiva presença no campo de pesquisa, pois o mesmo estará no campo de investigação em meio ao desenvolvimento do objeto de pesquisa. Será de interesse do pesquisador a interferência no processo de ensino aprendizagem assim como observar, relatar, mapear as condições que este ensino se desenvolve. Cabe destacar que o pensamento do professor será trabalhado nesta investigação de forma a respeitar

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suas ideias e convicções, tanto sobre os conteúdos a serem ensinados como no tocante as metodologias de ensino. Nesse sentido, compactuamos do pensamento de Carlota Boto que afirma ser o professor um intelectual “porque tem no ensino parte imprescindível de sua existência”(BOTO,2005, p.42) Alguns questionamentos são importantes para esta pesquisa como por exemplo: é possível perceber algum movimento dos professores da educação básica em sala de aula em direção às pesquisas sobre ensino de história realizadas nos últimos 20 anos? Nosso estudo exploratório será aplicado em 4 estados brasileiros Paraná (nas cidades de Londrina, Maringá, Jacarezinho e Irati) São Paulo (nas cidades de São Paulo e Assis) Goiás (na cidade de Goiânia), Bahia (na cidade de Vitória da Conquista). Para validação deste instrumento optamos pela estratégia de aplicarmos um questionário piloto com professores que participam do Programa de Desenvolvimento educacional (PDE)** em Londrina, um programa de formação continuada que funciona no Paraná. Este primeiro estudo foi desenvolvido pelo grupo de professores com uma estrutura que o dividiu em três momentos: um perfil do professor que indicasse algumas informações necessárias para o entendimento do sujeito que responde as questões, emite opiniões e constrói narrativas. Aqui nos apoiamos em Tardiff (2012) entendendo a importância da história de vida de cada professor nas suas escolhas profissionais e acadêmicas. Num segundo momento o questionário abordou questões relativas a forma de constituição das aulas de história sugerindo narrativas que caracterizassem como os professores explicariam algumas temáticas, no caso foram eleitas duas temáticas (imigração e descobrimento do Brasil). Também elencamos algumas narrativas para serem interpretadas que dizem respeito ao conceito de História, do conceito de educação e a relação que os jovens hoje estabelecem com o passado. Em uma terceira parte foram colocadas questões com o objetivo de entender quais as metodologias que os professores utilizam em aulas de história e no sistema de avaliação da aprendizagem.

Conclusões parciais, algumas considerações do estudo piloto Dos questionários realizados com os professores emergiram estruturas de pensamento diversificados. Neste texto optamos por detalhar as primeiras discussões do grupo em torno de duas questões: Para uma das questões que reportam a uma narrativa que indicasse a forma como explicaria o processo de descobrimento do Brasil algumas questões chamaram a atenção: Percebemos nas primeiras analises que a forma de ensino se aproxima daquilo que Bodo von Borries denominou de “aprendizagem reprodutiva e memorial”,

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argumentando que “Infelizmente, conhecimento lento e rapidamente perecível é típico da escola” (Conferencia ministrada no X seminário de Educação Histórica LAPEDUH – UFPR). A forma como os professores narram a explicação que dariam aos alunos sobre o processo de descobrimento demonstra que não há relações com a multiperspectividade, ainda é predominante a história factual. Entendemos que o fato de solicitarmos uma explicação ao partir de um conteúdo substantivo pode ter de certa forma induzido os professores nas escolhas por estes conteúdos para explicação histórica. Vejamos algumas destas explicações: A professora Rose [Todos os nomes são fictícios para preservar a identidade dos professores] que tem 38 anos de idade e ministra aulas há 12 anos “ Mencionaria as grandes navegações e porque os europeus saíram navegando a partir do século XV. Comentaria sobre a viagem de Pedro Alvares Cabral. ” O professor Jorge que tem 42 anos e ministra aulas há quinze anos “Inicialmente apresentaria alguns aspectos do contexto histórico da transição do feudalismo para o capitalismo, em seguida abordaria os elementos históricos das origens da expansão marítima. Na sequência destacaria os fatos que contribuíram para o pioneirismo português. Feito esta abordagem apresentaria o projeto de colonização portuguesa no Brasil”. A professora Elizabete, 44 anos, com 16 anos de magistério: “ Como as despesas pelas rotas terrestres eram altas e a notícia de que a Espanha tinha encontrado ouro nas novas terras, a Oeste da Europa corria, Portugal resolve conferir se as notícias eram verdadeiras uma vez que a Espanha tenha chegado no Continente Americano primeiro que Portugal. ” O professor Marcos com 41 anos e 12 de magistério: “ A colonização brasileira ocorreu em 1500 d.c quando na Europa ocorria a Expansão Marítima Européia. Portugal e Espanha disparam na frente em busca de novos e lucrativas rotas marítimas. Em 1500, os portugueses à frente de seu tempo com a Escola de Sagres, anunciam a descoberta de um novo território. Não deram a real importância a terra encontrada, pois a intenção era aproximar mais o comércio com as índias. A colonização portuguesa só ocorre a partir de 1530, surgindo as plantações de cana de açúcar e o tráfico de escravos que era usado como mão de obra. ” Outras considerações que fizemos advindas das análises preliminares desta narrativa diz respeito ao fato de que em momento algum os professores nas suas explicações consideraram metodologicamente os conhecimentos prévios dos alunos, também não levaram em consideração o uso de fontes para explicar o processo do descobrimento, apenas uma professora anunciou o possível uso de mapas “para explicar de onde vinham as grandes navegações”. Na narrativa dos conteúdos substantivos é perceptível que estas estão aprisionadas nos livros didáticos, podemos afirmar isto tendo em vista o discurso cronológico e canônico dos acontecimentos que levaram ao descobrimento do Brasil, as grandes navegações, a chegada de Cabral, o encontro com os indígenas, a tentativa de chegada às Índias, a descoberta do ouro e a rivalidade com os Espanhóis.

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Outro fator que nos faz afirmar este aprisionamento nos livros didáticos é a falta de historicidade na narrativa dos acontecimentos históricos. Desta forma encontrar uma resposta para as perguntas de Peter Seixas em sua matriz também é um objetivo de nossa pesquisa.

History/Memory Matrix for History Education Eine Geschichts-/GedächtnisMatrix für den Geschichtsunterricht BY SEIXAS, PETER ON FEBRUARY 25, 2016 ( tradução livre : Giovana Maria Carvalho Martins e Rebecca Carolline Moraes da Silva) Agora voltamos à história escolar com uma nova ferramenta. Isso nos permite examinar práticas além da tão simples questão “qual (ou de quem) história está sendo contada” pelos professores de História, livros didáticos e currículos escolares? Isso ajuda a entender o sentido das formas nas quais a História é ensinada nas escolas. Ela é confinada ao semicírculo de fundo vermelho, descaradamente destinadas a moldar a memória coletiva? É confinada à metade azul, promovendo as competências disciplinares dos estudantes? Ou é localizada na banda roxa de transição? (Seixas, p.4, 2016) Now we return to school history with a new tool. It allows us to examine practices beyond the too simple question, “which (or whose) story is being told?” by history teachers, textbooks and curricular prescription. It helps to make sense of the forms in which history is taught in schools. Is it confined to the red bottom semicircle, unabashedly aimed at shaping public memory; is it confined to the blue top half, promoting students’ disciplinary skills; or is located in the purple transitional band (Tradução Giovana Maria Carvalho Martins e Rebecca Carolline Moraes da Silva)

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O que nos leva a afirmar mesmo que inicialmente que as respostas que obtivemos até agora indicam que a história ensinada pelos professores está confinada nos livros didáticos e são eles que determinam o que é ensinado. Desta forma podemos afirmar que existe uma relação estreita entre os problemas que os alunos do ensino fundamental e médio apresentam no Brasil com relação ao ensino aprendizagem da História, mais especificamente na construção de textos coerentes sobre o passado e estão habituados a apresentar respostas diretas, sem uma prática continuada de escrita narrativa, em situação de aula seguindo a lógica construtiva de narrar a história dos livros didáticos. Outra questão que levantamos revelou que os alunos concebem os conteúdos de história e a forma como eles são ensinados de acordo com a História tradicional, baseada em fatos importantes, ensinados de maneira cronológica onde "entendem, equivocadamente, que otimizar o tempo em sala de aula significa priorizar a leitura e a explicação do professor sobre o capítulo do livro didático, seguindo-se a realização de exercícios" (CAIMI, 2006, p. 25). Solicitamos também que os professores analisassem a seguinte frase sobre a História: “ Se eu fosse um antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas, sou um historiador, é por isto que amo a vida”. (Marc Bloch). Numa primeira análise dessas estruturas podemos perceber que para os professores o conceito de História se aproxima de: Uma história que serve de modelos para o presente (História mestra da vida). O professor Marcos “ Com o estudo através da interpretação histórica, pelo olhar do historiador é possível entender melhor o mundo que vivemos e qual o nosso papel dentro da sociedade que ocupamos. Estudamos como foi o nosso passado, o passado da sociedade, da etnia, revoluções guerras a fim de repensarmos sobre a nossa atitude enquanto ser histórico e que sou capaz de mudar situações de forma individual e ou coletivo. ” O professor Carlos “ Interpretando a frase digo que nós historiadores amamos mesmo a vida, esse amor é tão grande que nos dedicamos a compreender o passado para explicar o presente. ” Professora Sonia: “Como historiador e como tal amo a vida no sentido de que procuro conhecer a minha realidade e analisar o passado para entender as consequências no futuro. ” Professora Soraia: “O passado e o presente na visão do historiador estão ligados um explica o outro e o passado explica o presente fazendo com que os indivíduos se conheçam. ”

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Questão da História mestra da vida Buscamos em nossa investigação encontrar espaços onde a prática da sala de aula ancorada nas pesquisas sobre ensino de história realizada no Brasil indicaria a localização de um ensino história na banda roxa da transição. Que seria nas palavras de Seixas onde a educação histórica está localizada na ponte roxa entre práticas históricas e crenças memoriais, onde professores competentes têm considerável autonomia para resolver a cultura memorial dos alunos em suas aulas e onde as memórias da comunidade – talvez até as memórias divididas – são submetidas à (e ampliadas pela) crítica, análise histórica, realimentando a memória coletiva( Seixas, 2016, p.5)

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promoção do professor para o nível III da carreira, conforme previsto no "Plano de carreira do magistério estadual", Lei Complementar nº 103, de 15 de março de 2004. O objetivo do PDE é proporcionar aos professores da rede pública estadual subsídios teórico-metodológicos para o desenvolvimento de ações educacionais sistematizadas, e que resultem em redimensionamento de sua prática.

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SOBRE OS DESAFIOS DE ENSINAR E APRENDER HISTÓRIA: INQUIETAÇÕES DE UMA PESQUISA Nucia Alexandra Silva de Oliveira A História foi criada como disciplina escolar no Brasil nas primeiras décadas do século XIX e como diferentes estudos têm nos apontado (NADAI, 1993; BITTERNCOURT, 2007; FONSECA, 2011; SCHMIDT, 2012) desde o início deste processo foram bastantes intensos os debates sobre o que deveria ser ensinado nas escolas e como isso seria feito. Quase dois séculos depois, a discussão sobre o que ensinar nas escolas em diferentes disciplinas coloca-se com a apresentação da chamada Base Nacional Comum Curricular (BNCC) [O documento da Base Nacional Comum Curricular foi apresentado no ano de 2015 no portal do Ministério da Educação para conhecimento e envio de propostas ao texto que continua em construção durante o presente momento. Para o estudo deste projeto considera-se que será analisada a versão final que seus organizadores acreditam deva ser apresentada ao longo do ano de 2016]. Aliás, no que se refere a história a questão não apenas se coloca mas vira debate, ou melhor dizendo: torna-se um embate! Afinal: que história deve ser ensinada aos nossos estudantes? Que conteúdos devem estar presentes no documento e consequentemente nas escolas? Tais debates ainda estão em curso e nos próximos tempos devem provavelmente ser temas de muitas pesquisas dentro da área de ensino de História. Aqui, interessa pontuar que em ambos os movimentos evidenciam-se páginas importantes da história como disciplina escolar! Temáticas que tanto ontem quanto hoje precisam ser evidenciadas para que possa compreender cada vez mais a relevância da presença e da manutenção da história dentro dos currículos escolares de diferentes níveis de ensino em nosso país. Pensando sobre tais questões a discussão aqui proposta faz parte do projeto que desenvolvo junto ao Laboratório de Ensino de História (LEH) do Curso de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). O referido projeto tem o título de “Entre textos e sujeitos: percursos de ensino e aprendizagem de História do Brasil (1998-2016)” e conta com duas bolsistas de Iniciação Cientifica e uma bolsista de Iniciação Cientifica de Ensino Médio [As bolsas de pesquisa estão relacionadas aos editais PIC&DTI - Programa Institucional de Iniciação Científica e de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação e PIBIC-EM, ambos da UDESC]. O objetivo geral do projeto é investigar como conteúdos de história do Brasil têm sido elaborados em documentos oficiais tais como legislações e livros didáticos e como têm sido vivenciados no processo de ensino e aprendizagem por professores e estudantes da Educação Básica formando o pensamento histórico desses sujeitos. Ou seja, trata-se de uma investigação sobre ensino de História do Brasil como componente

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da História como disciplina escolar vivenciada tanto através de prescrições e normativas quanto na vivência escolar de professores e estudantes. O presente texto procura dialogar com o citado projeto e alindando-se ao objetivo citado a intenção é promover reflexões sobre os percursos da História como disciplina escolar no Brasil e ainda, apresentar os objetivos propostos em nossa pesquisa no sentido de buscar interlocutores para nossa reflexão. Vale destacar ainda que o projeto que desenvolvemos tem como principal ambição participar do diálogo sobre o vivo e dinâmico processo de construção da história como disciplina escolar e para isso optamos justamente por investigar percursos de ensino e aprendizagens relacionadas ao ensino de história do Brasil nos últimos 20 anos. A ideia é partir de um recorte cronológico que se inicia nos anos 90 com a publicação de documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para alcançar atividades escolares em nossos dias. Algumas perguntas são norteadoras desta investigação e julgamos importante nos referir a elas: Como a história do Brasil tem feito parte dos currículos escolares nesse período? Que conteúdos têm sido abordados? Quais temas são silenciados? E principalmente qual a apropriação dos mesmos pelos estudantes? Tematizando essas questões compreende-se que serão mobilizados e discutidos alguns dos percursos do processo de ensino e aprendizagem de História do Brasil como parte do componente curricular desta disciplina. Por um lado, a ideia é investigar em documentos de dimensão nacional e local como os Parâmetros Curriculares Nacionais, a BNCC, a Proposta Curricular do Estado de Santa Catarina e a Proposta do Município de Florianópolis como exemplos de textos que, ao prescreverem orientações e temáticas ajudam a formalizar a história a ser ensinada. Por outro, tem-se a intenção de também acompanhar como essas orientações são apresentadas em alguns manuais didáticos criados para o ensino de história. E por fim, num terceiro eixo, tem-se a intenção de perceber os modos pelos quais professores e estudantes vivenciam a experiência de ensinar e aprender história e como tal experiência forma seu pensamento histórico. Cabe ressaltar que tal proposta está sendo construída a partir das reflexões relacionadas a história das disciplinares escolares (CHERVEL, 1990), as quais propõem que os saberes escolares sejam analisados a partir de questões como a análise de fontes normativas como propostas curriculares, de manuais didáticos, de documentos não oficiais como cadernos, provas e outros documentos da cultura escolar, além dos próprios contextos de instituição e consolidação das disciplinas. Fonseca (2011) informa que a inserção da história como disciplina escolar nos currículos das escolas brasileiras aconteceu em meio a um complexo quadro relacionado a estruturação do sistema educacional pós-independência. De um lado, a preocupação primordial era a formação de membros das elites dirigentes do país, e por outro, havia a intenção destas elites em inserir o país dentro do ideário liberal que defendia a educação como forma de prover ao estado cidadãos produtivos e obedientes às leis (p. 45). Nessa equação de interesses tão complexos quanto diversos a questão da construção da identidade nacional aparece como elemento articulador de um projeto amplo que teve na educação um

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de seus pilares mais fortes. E como destaca a autora, “produzia-se e ensinava-se (...) uma História eminentemente política, nacionalista e que exaltava a colonização portuguesa, a ação missionária da Igreja Católica e a monarquia” (FONSECA, 2011. p. 47) Nesse contexto as diretrizes para o ensino de história no Brasil começam a ser melhor definidas a partir de 1838 com a instituição do programa curricular do Colégio Pedro II que passa a servir de modelo para as demais escolas (FONSECA, 2011. p. 49). Tal currículo foi assumidamente influenciado no modelo francês, assim como também os manuais didáticos eram traduções dos compêndios franceses, e assim a história ensinada no Brasil foi a História da Europa Ocidental, que por sua vez foi apresentada como a História da Civilização, como conclui Elza Nadai (1993). No que diz respeito a história pátria deve-se destacar que a mesma era ensinada subordinada a história ocidental e aparecia nos anos finais do ginásio consistindo-se basicamente do estudo das biografias de homens ilustres (NADAI, 1993) que por sua vez, servia ao propósito de buscar a formação da identidade nacional identificando-a com o mundo cristão, branco e europeu. (BITTENCOURT, 2007). A proclamação da República não altera muito esse cenário e assim, a história nacional que, continuava a ter papel secundário era ensinada buscando reforçar a ideia de uma identidade patriótica e de um passado homogêneo, sem conflitos para os brasileiros (BITTENCOURT, 2007. NADAI, 1993). A ênfase sobre a identidade nacional e sua relação com a história ensinada nas escolas adentra o século XX e neste momento temos um processo de consolidação da história como disciplina escolar. Em sua proposta de periodização do ensino de história do Brasil, Maria Auxiliadora Schmidt traça o segundo percurso para o processo de disciplinarização da história: 1838-1931 (construção do código disciplinar da história); 1931-1971 (consolidação do código disciplinar da história), 1971-1984 (crise do código disciplinar) e de 1984 em diante (reconstrução do código disciplina de História no Brasil). Os estudos já citados aqui, demonstram que as reformas de ensino nos anos 30 e 40 colocaram o ensino de história como um dos protagonistas no projeto de formação da unidade nacional. E com essas reformas, sistematicamente passaram a ser organizados programas curriculares que definiam conteúdos, procedimentos didáticos, indicação de livros e manuais, etc (FONSECA, 2011). A reforma Francisco Campos de 1931, por exemplo, colocou o ensino de história como instrumento central de um processo de educação política onde os estudantes eram formados para o exercício da cidadania dentro do projeto político do Estado Novo (FONSECA, 2011; SCHMIDT, 2012). Por sua vez, a reforma Capanema de 1942, redefiniu a História do Brasil como disciplina autônoma e estabeleceu a formação moral e patriótica como seu objetivo. Alguns anos depois, em meio ao período da ditadura militar, a proposta de utilização da história como momento de “educação moral e cívica” ganha ainda mais tonicidade. Contudo o momento é de crise para a disciplina haja visto o crescimento dos chamados Estudos Sociais que se tornam obrigatório como

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disciplina a partir da lei 5.692/71. Nesse contexto e segundo a mesma lei, o ensino de História ficava restrito ao segundo grau e com uma carga horaria máxima de duas horas semanais. O projeto político era diferente de tempos anteriores e as ações também divergiam, contudo o ensino de história nesse período permanece sendo fortemente relacionado “a nacionalidade construída a partir do conhecimento do legado das gerações do passado” (SCHMIDT, 2012. P. 84). Não é intenção nesse momento abrir a discussão nas especificidades do histórico apresentado, certamente que elas seriam necessárias para não se ter a ideia de uma hegemonia nos processos de ensino. Mas é importante dizer que o que se buscou aqui foi pontuar minimamente o processo de instituição e consolidação da história como disciplina escolar e como a história nacional foi abordada. Tal modelo de história e ensino de história foi (e é) duramente criticado por inúmeros pesquisadores que demonstram que tal abordagem acabou por construir um modelo de educação histórica que privilegia narrativas únicas, personificadas e sem maiores problematizações no sentido único de estabelecer com tal discurso ordenamentos de pensamento e comportamento das pessoas. Ainda considerando o histórico sobre a história do ensino de história no Brasil deve-se dizer que o período posterior a ditadura militar é visto como de reconstrução da história como disciplina escolar. Nesse contexto alguns acontecimentos foram pontuais para que tal renovação acontecesse: o final do regime militar e o movimento de crítica aos Estudos Sociais para uma “volta ao ensino de História” para as salas de aula da Educação Básica (SCHMIDT, 2012) Esta articulação contou com a participação de muitos educadores e da Associação Nacional de Professores de História – ANPUH e significou uma importante página para o ensino de História no Brasil. Este “embate pelo ensino de História” proporcionou além da organização para a definição de propostas curriculares, também a luta pela consolidação do ensino de história como área de pesquisa [A organização de eventos como o Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História ocorrido pela primeira vez em 1988 e do Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de Ensino, realizado pela primeira vez em 1993 demonstram a articulação de um movimento para consolidação desta área. Eles também apontam para o fato de que novas dimensões são lançadas para o ensino de história no Brasil na medida em que seus profissionais passam a ser desafiados a refletir sobre suas práticas]. O cenário de crescimento de pesquisas que tematizam o ensino de história significa ainda a existência de mudanças nos objetivos das aulas, nas metodologias, nos materiais selecionadas, enfim, nas práticas docentes! Uma das questões propostas em nossa investigação é perceber como a partir desse momento de reconstrução da história como disciplina escolar e mais especificamente a partir do final da década de 90 foram prescritos caminhos para o ensino de história e como esses percurso têm sido efetivamente vivenciados em salas de aula da educação básica. A partir desse momento de reconstrução teriam acontecido reformulações no debate sobre a história nacional? Como os livros didáticos repercutem esta proposição de reformulação? Com tal perspectiva as

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experiências docentes e discentes trazem novas questões para o ensino de história do Brasil? Como a interlocução entre as prescrições e a experiência escolar contribuem para a formulação curricular nos últimos tempos? Como estudantes da educação básica tem aprendido história e como esse processo tem repercutido no processo de construção de seu pensamento histórico? Como espaço de diálogo e construção conjunta de saberes o presente texto indica as perguntas de uma pesquisa em desenvolvimento na expectativa de receber questionamentos e através deles tecer as reflexões necessárias ao processo de investigação. Nesse sentido, o grupo composto de pesquisa agradece a leitura de nossas “inquietações” e aguarda as contribuições.

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A MÚSICA E O PROFESSOR PESQUISADOR Rodrigo Otávio dos Santos Uma das fontes mais interessantes que pode ser utilizada pelo pesquisador histórico é a música. Extremamente conectada com o mundo à sua volta, as canções podem ser extremamente úteis para percebermos determinado período histórico. Quando pensamos na música, não conseguimos dissociá-la das suas condições de produção. Pensemos em uma peça de Mozart ou Beethoven. Estes dois artistas representam muito bem o período do século XVIII, e suas composições encontram eco até as canções dos artistas pop do século XXI. Quando escutamos uma sinfonia de um deles, imediatamente somos transportados para o período. O que, naturalmente, não passa de mera especulação promovida pelo imaginário cultural. Mesmo assim, estes dois homens modificaram a forma como as pessoas ouviam - e ouvem - música. Mas estudar historicamente a música pode ser menos fácil do que parece. Isso porque é necessário algum conhecimento de música, deve-se ser versado na linguagem musical, o que compreende saber ler partitura, conhecer ritmos, notas e silêncios. por conta disso, a maior parte dos historiadores acaba optando por estudar canções ou apenas as letras das canções. Note que o termo canção referese à música acompanhada de uma letra cantada e normalmente está associada ao cancioneiro popular. Neste ponto de vista, talvez o primeiro historiador a estudar meticulosamente a canção brasileira foi José Ramos Tinhorão, que catalogou diversas canções, artistas e movimentos musicais. O problema, porém, é que Tinhorão tem uma verve polêmica, e faz seu trabalho mais preocupado em analisar as obras com um viés de crítico musical do que como historiador. Napolitano (2011) chega a dizer que Tinhorão tece muitas considerações de cunho ideológico, e por vezes desvinculados do material artístico. Além disso, o escritor coloca muitas canções e artistas (e até mesmo as fases de alguns artistas) como se fossem a mesma coisa, ou seja: samba, ou bossa-nova, e esquece que estes movimentos tinham muitas diferenças internas, tensões entre seus participantes e também entre a sociedade. De qualquer forma, caminho trilhado por ele pode ser seguido por outros pesquisadores. A ideia aqui é que se utilize das letras das canções para compreender o contexto histórico, e usa-las como fontes para tentar enxergar melhor o passado. Neste caso, há duas formas de se estudar: uma delas é a análise da letra em relação às demais letras do artista ou em relação às letras das pessoas do mesmo movimento. Além disso, pode-se analisar as letras a partir de sua métrica, ou sua simbologia ou ainda suas metáforas. Neste caso, normalmente este é um estudo dos pesquisadores da área de Letras. Na área de História, podemos

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analisar movimentos musicais, como a bossa-nova nos anos 1960 no Brasil, o rock contracultural norte-americano da década de 1970 ou mesmo o movimento do rock nacional no Brasil na década de 1980. A influência de uma banda como os Beatles, que, em conjunto com uma série de bandas, artistas e pensadores, acabaram por mudar todo o comportamento jovem da geração entre 1960/1970. A banda de Liverpool era o expoente máximo do movimento que acabou por transformar a relação entre jovens e seus pais, entre professores e alunos. E também foi a banda que ajudou a proporcionar as mudanças ocorridas a partir de 1968, onde o expoente máximo foi o festival de Woodstock, não por acaso, um festival de música. Merheb (2012) lembra que o festival de Woodstock é um evento interessante para se pesquisar pois apesar de ser atualmente visto como um bastião da contracultura, e um festival onde as pessoas em uníssono bradavam contra o dinheiro e o capitalismo, em sua gênese era um produto para gerar capital. Seus produtores, Artie Kornfeld, Michael Lang, John Roberts e Joel Rosenman visavam fizer um festival de música para arrecadar dinheiro. Não que o ideal hippie de paz e amor não estivesse ali presente, mas o dinheiro foi a primeira mola propulsora. O movimento cultural do rock talvez tenha tido seu ápice naqueles dias entre 15 e 18 de agosto de 1969, já que trinta e duas grandes estrelas do estilo musical se apresentaram para uma multidão de aproximadamente 400 mil pessoas. É inegável o impacto cultural que este evento teve na sociedade ocidental. Ainda que tenha sido feito um ano antes, ele praticamente inaugura os anos 1970, a cultura hippie e dissemina como poucos a contracultura. Assim, o pesquisador pode procurar elementos da sociedade contemporânea quando estuda um evento deste porte. Para não ficarmos apenas no rock, basta avaliarmos o impacto da bossa-nova no Brasil, ou do tropicalismo. Nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Mutantes e Tom Zé modificaram a cultura brasileira nos anos da ditadura. Eles insurgiam-se contra o sistema, criavam letras de canções que desafiavam os censores, viviam à margem do sistema ao mesmo tempo que eram bem-sucedidos em suas vendagens. Vários deles foram exilados, tendo que amargar alguns anos vivendo longe do país que tentavam melhorar. Investigar o regime militar por meio das canções de protesto é altamente válido e gera frutos mais do que interessantes, como o trabalho de Napolitano (2001 p.37), que afirma que a sigla MPB se tornou “sinônimo de música comprometida com a realidade brasileira, crítica ao regime militar e de alta qualidade estética”. O autor deixa clara a influência da política na música e vice-versa. Não fosse o regime militar, certamente a MPB seria muito, muito diferente. Por outro lado, não fosse a MPB e sua coragem, provavelmente o regime militar não seria da forma como foi. O contraponto da MPB, porém, não era exatamente o rock, já que este era ainda pouco difundido no Brasil na década de 1960/70 (apesar do esforço da Jovem Guarda). Araújo (2013) diz que os verdadeiros contrapositores do regime não seriam os músicos da MPB, haja vista que estes falavam para as elites, ou seja, uma minoria intelectualizada que vivia no país. Para o autor, quem realmente se opunha ao sistema e atingia as massas era a música “brega”, ou “cafona”. Nomes

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como Odair José, Nelson Ned e Waldick Soriano seriam tão ou mais influentes que Veloso e Buarque. Isto porque canções como O Divórcio de Luiz Ayrão falavam abertamente contra o regime e eram muito mais populares do que as canções da MPB. Além disso, os músicos da música cafona não tinham o dinheiro ou a influência dos seus colegas da MPB. Araújo (2013 p. 187) diz que Em um país marcado pela desigualdade social, carência na educação e falta de oportunidades iguais para todos, a carreira musical, como também a do futebol, torna-se um dos poucos meios de ascensão social para uma legião de jovens oriundos dos baixos estratos da população. E isto se reflete no discurso e no compromisso comercial dos artistas “cafonas”. (...) Já o discurso dos cantores da MPB é diferente. Filhos da classe média, a maioria de formação universitária, eles procuram enfatizar que estão na música por idealismo e vocação artística, não por sucesso ou riqueza. Com isso, percebe-se a forma como podemos estudar os movimentos musicais dentro ou fora do nosso país. Como expressão de um país, de um momento ou de uma comunidade, a música tem o poder de sintetizar algumas características muito caras aos historiadores, e, portanto, tornam-se movimentos interessantíssimos de serem estudados. Mas podemos – também com as canções – estudarmos suas letras, a forma como as palavras do letrista/cantor refletem e refratam o cotidiano de quando foram produzidas. E também pode servir para compreender certas reapropriações de canções compostas para um momento histórico sendo resgatado em outro. Vejamos o caso do rock brasileiro na década de 1980, durante a transição do governo ditatorial para o democrático. No período de 1980, por exemplo, Antônio Delfim Netto assumiu a pasta da Fazenda, e Fishlow (1988) lembra que o ministro prometeu uma reedição do milagre econômico, com uma abordagem centrada na oferta que tornaria desnecessária a contenção da demanda. Isso indicava aos demais ministros que eles poderiam gastar, porém, em setembro de 1979 foram introduzidos rígidos controles que provocaram um declínio acentuado das taxas de juros nominais. Fazendo com que uma parcela da sociedade não acreditasse no milagre. A banda baiana Camisa de Vênus criticou a postura do governo com as frases irônicas como Eu acredito na escada pro sucesso / Eu acredito na ordem e no progresso (...) Eu acredito no milagre que não vem / Eu acredito nos homens de bem na canção O Adventista, lançada no primeiro álbum da banda, em 1983 mas possivelmente composta por volta de 1980. Outra canção muito interessante é a de Léo Jaime, talvez uma das canções mais audaciosas do período. Solange é uma versão da canção So lonely da banda inglesa The Police, Jaime faz duras críticas à censora oficial da ditadura militar, Dona Solange Hernandes. Algumas das frases da canção são: Eu tinha tanto pra dizer / Metade eu tive que esquecer / E quando eu tento escrever / Seu nome vem me interromper. Outra canção muito combativa contra a censura (em um momento em que já podia ser gravada uma canção como esta) foi Proteção, da banda brasiliense Plebe Rude. Neste caso, o que estava acontecendo no país era a tentativa de votar as “Diretas Já”. Com a

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aproximação da votação, o governo Figueiredo teve receio que os líderes das Diretas coagissem os legisladores por meio de maciças manifestações. Com esse pretexto, impôs Estado de Emergência na cidade de Brasília. Em resposta, os dirigentes da campanha pró-diretas convocaram o público para se dirigir ao Congresso e ficar buzinando com seus carros em volta do edifício. Neste momento aparece a figura do General Newton Cruz, que tentou conter o “buzinaço” no dia da votação colocando a cavalaria nas ruas. Como as pessoas não paravam de buzinar, o general, na frente das câmeras, passou a chicotear os carros de cima de seu cavalo. Skidmore (1988) diz que Cruz foi uma “dádiva” para a oposição, já que a mídia flagrava um militar extremista que era, ao mesmo tempo, impotente e ridículo. Seabra (apud CARVALHO, 2011) informa que a canção Proteção da banda Plebe Rude foi feita neste exato momento. Na letra, a banda diz: A PM na rua, a guarda nacional / nosso medo suas armas, a coisa não tá mal / a instituição está aí para a nossa proteção / Para a sua proteção / Tanques lá fora, exército de plantão / apontados aqui pro interior / e tudo isso para sua proteção / pro governo poder se impor / (...) / Tropas de choque, PM's armados / mantêm o povo no seu lugar / Mas logo é preso, ideologias marcadas / se alguém quiser se rebelar / (...) / Armas polidas, os canos se esquentam / esperando a sua função / exército brabo e o governo lamenta / que o povo aprendeu a dizer não / Até quando o Brasil vai poder suportar? / Código penal não deixa o povo rebelar / Autarquia baseada em armas não dá. Como o pesquisador pode perceber, o uso das letras das músicas pode e deve ser estudada pelos historiadores porque elas revelam uma faceta importantíssima do período estudado, que é o binômio produção/consumo. A partir dele, toda a Indústria Cultural se forja e, se há pessoas consumindo, com certeza o fazem porque encontram eco na sociedade e percebem uma “verdade”. É só percebemos a veracidade da canção A Novidade, da banda carioca Paralamas do Sucesso em parceria com Gilberto Gil, em um caso de junção de duas escolas (MPB e rock) e de duas gerações (anos 70 e anos 80). A letra é uma verdadeira crônica da disparidade social existente no Brasil e diz em seus versos A novidade veio dar a praia / Na qualidade rara de sereia / (...) / A novidade era o máximo / Um paradoxo estendido na areia / Alguns a desejar seus beijos de deusa / Outros a desejar seu rabo pra ceia / O mundo tão desigual / Tudo é tão desigual / De um lado esse carnaval / De outro a fome total / (...)/ A novidade era a guerra / Entre o feliz poeta e o esfomeado / Estraçalhando uma sereia bonita / Despedaçando o sonho pra cada lado / Ô Mundo tão desigual... Para além disso, temos canções que além de representar uma época ou uma geração, mostram uma cena específica, um momento singular da História, como no final de 1980 e também no começo de 1981 quando o país foi sacudido por uma série de incidentes violentos. Escorel (1993) lembra dos incidentes envolvendo as bancas de jornal, onde os jornaleiros recebiam bilhetes ordenando que parassem de vender publicações esquerdistas. Alguns se recusaram e tiveram suas bancas destruídas por explosões durante a noite, fato que levou Renato Russo a escrever as frases não boto bomba em banca de jornal nem em colégio de

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criança / isso eu não faço não, presente na canção Faroeste Caboclo, do disco Que país é este? da Legião Urbana. Com o prejuízo causado pela explosão e consequente perda completa do estoque, várias destas bancas desapareceram. Ou ainda a famosíssima canção de Aldir Blanc e João Bosco que ficou famosa na voz de Elis Regina e que bradava a volta dos exilados políticos, que pregava a anistia ampla, geral e irrestrita. A canção dizia Meu Brasil! / Que sonha com a volta do irmão do Henfil / Com tanta gente que partiu / Num rabo de foguete / Chora / A nossa Pátria mãe gentil / Choram Marias e Clarisses / No solo do Brasil. Lembrando que o irmão do Henfil é o sociólogo Betinho que, segundo Moraes (1997), estava exilado do país e morando no Uruguai. O uso de personagens históricas em canções também é de certa forma comum, como no caso da canção Al Capone, que em suas frases conta a forma como o gângster de mesmo nome, talvez o mais importante – pelo menos o mais folclórico – criminoso dos EUA na época da Lei Seca foi pego pela polícia. A canção diz Hei, Al Capone, vê se te emenda / Já sabem do teu furo, nego / No imposto de renda / Hei, Al Capone, vê se te orienta / Assim desta maneira, nego / Chicago não aguenta. Além disso, valendo-se de um humor debochado, Seixas e Paulo Coelho também mostram os destinos de Julio César e Lampião, com as frases Hei, Julio César, vê se não vai ao senado / Já sabem do teu plano para controlar o Estado / Hei, Lampião, dá no pé, desapareça / Pois eles vão à feira exibir tua cabeça. Ou também a canção da banda paulista Ira!, intitulada Rubro Zorro, anunciada como um “faroeste do terceiro mundo”. A música lembra muito as trilhas sonoras de westerns norte-americanos ou italianos, tal qual os filmes de Sérgio Leoni ou John Ford. A letra gira em torno da história do também folclórico Bandido da Luz Vermelha, caso policial famoso que acabou por virar filme dirigido por Rogério Sganzerla. O interessante é que o investigador histórico perceba a canção – e sua letra – e a compare com outros documentos históricos. Além disso, é muito interessante comparar uma música com outra do mesmo período, para articular as informações e também a canção com canções de períodos prévios e seguintes, dando um escopo ainda maior na elaboração de sua argumentação histórica. A forma como esta música chegava às pessoas é outra questão muito importante a se ponderar. Ela chegava por meio de CDs? Discos de vinil? Apenas pelo rádio? A fruição da obra depende também do meio pelo qual ela era encontrada pelos ouvintes. Napolitano (2002) diz que mapear as “escutas”, ou seja, a forma de ouvir a canção é de extrema valia para se compreender o período histórico.

Referências bibliográficas ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não. Rio de Janeiro: Record, 2013.

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FISHLOW, Albert. Uma história de dois presidentes: a economia política da gestão da crise. in: STEPAN, Alfred (org).Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra: 1988. MERHEB, Rodrigo. O som da revolução. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2012. MORAES, Dênis de. O Rebelde do Traço: a vida de Henfil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997 NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira - Utopia e massificação 1950/80. São Paulo: Contexto, 2001. NAPOLITANO, Marcos. História & Música. História cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002 NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes Históricas . São Paulo: contexto, 2011. ROCK BRASÍLIA: ERA DE OURO. Direção: Vladimir Carvalho. Produção: Ligocki-z entretenimento e Vertovisão. Brasil: Downtown Filmes, 2011. SKIDMORE, Thomas. A lenta via brasileira para a democratização:19741985. in: STEPAN, Alfred (org).Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra: 1988. ULYSSES CIDADÃO - Direção: Eduardo Escorel. Brasil: 1993.

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MARX, POIS O BRASIL PRECISA DE PROFESSORES DE HISTÓRIA “ANTENADOS” Rogério Vial Olhando para a situação atual da educação no país, sem deixar de olhar mais carinhosamente para o Paraná, percebemos que a educação passou de um direito de todo o cidadão para um produto de mercado. Para os acadêmicos que estão dentro das Universidades e enfrentam um futuro nada promissor como professores de História, devemos alertar que o desânimo e a perspectiva sombria, não deve arrefecer a vontade de fazer que cada um tem. Pelo contrário, deve fortalecer cada vez mais a determinação e assim forjar uma consciência como classe laboral que luta pelo que entende ser importante. A própria História do Brasil nos aponte inúmeros exemplos de que nos momentos mais difíceis é que se constrói e se forja a consciência de qual papel exercemos na sociedade. Um alemão chamado Karl Marx, ainda no século XIX, no Manifesto Comunista de 1848 e, depois, em diversas passagens de O Capital, de 1867, apontava que os momentos de crise eram, ao contrário do que diziam seus antecessores, não eram algo aleatório ao sistema econômico, mas sim inerentes ao capitalismo. Como um sopro de vida ao sistema e assim faziam parte da própria essência do sistema, pois era uma forma que o capitalismo encontrava para se “reciclar” e se fortalecer. Claro que fazer uma mera comparação entre crises econômicas do capitalismo, com os momentos de dificuldades que a educação pública no país passa é, até de certa forma, um ato anacrônico. No entanto, podemos utilizar essa comparação para entender momentos onde as perspectivas são totalmente contrárias ao desenvolvimento da educação pública, mas, certamente e com a perspicácia da classe envolvida e dos estudantes, devemos acreditar que existe algo de bom para se “re”construir. Já outras passagens do pensador alemão, tão perseguido no presente, também indicam que a educação deve ser compreendida além de um simples “nicho de mercado”, para fazer parte de um projeto muito maior que dará a possibilidade dos cidadãos encontrarem a plenitude dentro da sociedade. Nas Teses contra Feuerbach, mais especificamente na terceira tese ele entende que são os homens que transformam as circunstâncias e, por isso, é necessário primeiro mudar os homens e sua consciência para só depois mudar as circunstâncias. Dessa forma compreendemos que a transformação do homem ocorre pela educação, pela possibilidade de que o indivíduo consiga encontrar em si, ou dentro de si, a revolução que permita transformar o mundo ao seu redor.

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Infelizmente, no Brasil, Marx ficou meio esquecido, pois o sistema atual é extremamente excludente e discriminatório, dando as classes dominantes a real possibilidade de manutenção do staus quo sobre o restante da população, a qual acaba por ter que se contentar com as migalhas oferecidas que na grande maioria vai prepará-los para ser mão de obra dominada. O nosso papel neste momento ultrapassa o limite do comodismo. Na verdade nos obriga a pensar mais longe. Isso vai em direção à estabelecer um ideal para a educação. Uma educação moderna e voltada a atender as reais necessidades de mundo. Contemplar e interpretar o mundo são duas coisas importantes, principalmente a segunda. No entanto devemos ir além dessa interpretação filosófica, e transformá-lo acaba por significar muito mais. Para os professores de História, que se vêem podados com as reformas na educação propostas pelo atual governo, cabe também a própria transformação como professores. Entrar na sala de aula passa a ter uma importância ainda maior do que já teve, pois a tecnologia presente no dia a dia nos obriga a galgar grandes percursos a fim de conseguir atrair a atenção e possibilitar a construção cognitiva de conhecimento. Sempre abordo temas relativos à disciplina de História do Paraná, a qual ministro na Unespar de União da Vitória. No entanto, buscando livros didáticos que são a base para professores do ensino fundamental e médio do Estado do Paraná, não encontro uma só página voltada a este item específico. Basicamente a história do Paraná, como território, como povo, como mercado, como mundo do trabalho, está diluída no contexto nacional unificador. E isso ocorre com várias outras regiões territoriais do país. Eixos como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia, recebem recortes mais específicos, enquanto os livros didáticos utilizados no Paraná, praticamente não expõem nada sobre essa temática. A situação fica ainda mais complicada quando ao conversar com professores que atuam nas escolas, identificamos uma grande dificuldade em preparar aulas voltadas a história do Paraná. Dentre as maiores dificuldades pode-se encontrar a falta de materiais para uso diário. Poderíamos dizer que o próprio professor deveria prepará-los, mas como? Com a redução da hora-atividade fica praticamente impossível fugir do livro didático. Pois uma hora aula de cinqüenta minutos, deve ser preparada em quinze, sem contar outras coisas inerentes a função de professor. As dificuldades são enormes, mas não podem ser o limite do exercício de construção do conhecimento em sala de aula. Assim, surgem algumas questões que precisam de respostas. Proponho que os meus leitores apontem iniciativas que possibilitem suprir essa carência. No entanto não posso deixar escapar a finalidade deste Simpósio, que conforme o próprio nome sugere, é “eletrônico”. Portanto, vou apontar duas possibilidades que vão ao encontro do que estamos procurando. A primeira, e a qual me parece

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ser muito necessária, é a construção de algum tipo de material gráfico (cartilha, livro, etc.) que der subsídios aos professores do ensino fundamental e médio, na produção de conhecimento. Isso poderia sem realizado através de iniciativas que integrassem acadêmicos e pesquisadores que abordem a temática. Isso poderia ser utilizado numa construção didática que favoreça o uso dentro da sala de aula, sem que o professor regente necessite adaptar o material para a idade ou para a turma em que ministra suas aulas. Até porque é injusto argumentar que não existe muitos trabalhos sobre história do Paraná. Encontramos grandes produções bibliográficas para diferentes momentos dentro da história paranaense. Podemos encontrar pesquisas que abordam deste a ocupação indígena, até produções de História do Tempo Presente. No entanto, são produções à nível de mestrado e doutorado, as quais não são didaticamente aplicadas ao nível fundamental e médio. Assim, poderíamos contemplar a produção específica de materiais de alcance didático à esses níveis de escolaridade. Lucilia de Almeida Neves Delgado e Marieta de Moraes Ferreira, no artigo intitulado História do tempo presente e ensino de História, debatem as dificuldades encontradas para se delimitar esse tipo de pesquisa e como trabalhálo dentro da sala de aula. É importante ressaltar que o momento, apesar de desafiador, também nos remete cautela, pois a simples abordagem de temas do tempo presente, com o momento político nacional, cria uma fina linha divisória que expõe o professor a pressões externas ao contexto escolar que faz regredir aos assuntos “mais antigos”. Isso também força o professor a buscar se preparar conscientemente ao abordar assuntos do tempo presente. No entanto, devemos, sem medo, pensar nisso como algo desafiador e agregador, e não como algo que pode causar repressão. No entanto a produção gráfica desse tipo de material encontra outra dificuldade, o custo de produção. Distribuir livros, sem apoio governamental, é praticamente impossível. Agencias financiadoras são escassas e muitas vezes se prioriza outros modelos de publicações. Uma alternativa para essa dificuldade é a divulgação eletrônica desse material. A criação de um sitio eletrônico o qual serviria de biblioteca virtual ao professor seria, e deve ser, a solução mais econômica. Inicialmente, a maior dificuldade seria a produção e a centralização desse material, que também necessita de financiamento. Mas isso é um desafio a mais. Outro material que deve ser produzido e explorado em sala de aula, são as produções visuais. O custo é maior do que a produção gráfica, no entanto o uso em sala de aula cativa mais o aluno e possibilita uma “visão da história” em que o aluno pode se reconhecer pelas imagens. Nas experiências que tive como professor no ensino fundamental e médio, em que trabalhei com a reprodução de imagens e vídeos sobre qualquer momento da história, criou nos alunos uma compreensão historiográfica melhor. A produção deste tipo de material facilitaria ao professor a abordagem do assunto.

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Um momento que me recordo bem, o qual surtiu efeito muito positivo, foi quando em determinado momento trabalhei a ocupação das margens do Rio Iguaçu, e levei para a sala de aula um determinado vídeo produzido sobre como era realizada a navegação pelo rio. Muitos alunos se encontraram dentro da produção e apontavam os locais do rio como locais de vida comum entre eles. Nas atividades posteriores, ficou perceptível a consciência destes com a construção da história da região. Porém, voltamos novamente a um ponto importante: o financiamento da produção deste tipo de material. Parece difícil, e é, mas como já mencionado acima, é mais um desafio. Por fim, deixo algumas questões que gostaria que servissem de base para nosso debate. Quais outros modelos e alternativas para que o ensino de história seja atrativo na sala de aula. Como produzir materiais que contemplem didaticamente as temáticas historiográficas sem que isso esteja estreitamente ligado a algum tipo de financiamento pelo Estado? Podemos crer que, apesar do mercantilismo envolto a educação no país, existem rumos que se pode trilhar em direção a um ideal de educação que seja libertador e socialmente justo? Se existe, quais seriam? Também solicito que contribuam com outras abordagens que podemos entender como importantes para a sala de aula.

Referências: DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente e ensino de História. História Hoje, volume 2, n° 4, 2013. Disponível em https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/issue/view/RHHJ%2C%20v.%202%2C%20n.%204 Acesso 23/02/2017. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. 3ª edição, São Paulo, Global, 1988. MARX, Karl. O Capital. Vol. 2. 3ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988. MARX, Karl. Teses contra Feurbach. In: MARX. Os pensadores. São Paulo: Abril, 1978.

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CONFLITOS: DISPUTAS ENTRE NARRATIVAS E SENTIDOS NA RELAÇÃO ENTRE CULTURA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA EM UMA PESQUISA COLABORATIVA NO IFPR (CAMPUS CURITIBA) Thiago Augusto Divardim de Oliveira No campo de discussão da educação histórica como parte da didática da história, já existe uma tradição de pesquisas que proporcionaram encaminhamentos metodológicos reconhecidos como a aula-oficina (BARCA, 2004). Pouco tempo depois, as necessidades da práxis levaram a professora pesquisadora Lindamir Zeglin Fernandes ao desenvolvimento da proposta da Unidade Temática Investigativa (FERNANDES, 2004. Ver também: http://www.diaadiaeducacao. pr.gov.br/portals/pde/arquivos/158-4.pdf). Mais recentemente tem sido possível perceber publicações que utilizam o conceito “burdening history” (história pesada) (BORRIES, 2011), como é possível perceber no trecho a seguir: Ademais, para Borries, a aprendizagem histórica inclui o processo de conflito e o de mudança, como modo de atuação em relação à consciência histórica e, envolver-se com a história pesada é um trabalho mental e uma atividade intelectual da consciência história. Este envolvimento não apresenta matiz positivo e se torna incompleto em determinadas situações, como quando se toma a história pesada como sinônimo de histórias conflituosas e de vendetas; como história dos conquistadores (do cinismo do poder); como a história dos perdedores ou “underground history”. Ainda, para o autor, este envolvimento é muito complexo, pois as pessoas necessitam de experiências de relacionar-se com o outro e continuarem juntos e isto envolve, além da indubitável e necessária análise de eventos históricos e suas interpretações, um processo de tomar distância do nosso próprio passado e do outro, sem esquecer, cada um, de sua própria história, com o objetivo precípuo de buscar condições e chances para um futuro comum, a despeito de histórias que sejam conflituosas. (SCHMIDT, 2015 p. 15 – 16) O conceito de Burdening History apresenta-se de maneira interessante para as pesquisas e os encaminhamentos da didática da história em situações de sala de aula, no entanto, as discussões a respeito desse conceito ainda são iniciais, como apontou Schmidt (2015). Sem o objetivo de criar mais uma possibilidade

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metodológica, mas instigados pelas discussões teóricas, pelas pesquisas da área e pela experiência da sala de aula, pretendemos discutir algumas possibilidades de relação entre uma pesquisa empírica realizada em 2014 no Instituto Federal do Paraná (Campus Curitiba) e discussões do campo da teoria da história que poderão dar alguma contribuição para o que temos pensado como educação histórica ou didática da história na perspectiva da práxis. O objetivo foi discutir a partir de enunciações ocorridas em uma aula de História elementos que se relacionam ao paradigma narrativo da práxis histórica (RÜSEN, 2001), deslocando e analisando enunciações dos alunos como expressão da consciência histórica, portanto uma relação temporal presente – passado – presente – futuro, e que evidenciam aspectos políticos, culturais e éticos nas formas de atribuição de sentido a experiência humana no tempo. Além dos aspectos das enunciações individuais pretende-se apontar elementos da relação entre a enunciação da consciência histórica e os elementos da cultura histórica possíveis de serem percebidos no presente.

Metodologia No ano de 2014 realizamos uma investigação com a metodologia da pesquisa colaborativa na instituição em que trabalho (Instituto Federal do Paraná – Campus Curitiba) com um colega da disciplina de História. A proposta foi possível porque essa instituição oferece as condições materiais e intelectuais necessárias para explorar profundamente a proposta de investigação colaborativa e autonomia aos professores em relação ao trabalho em sala de aula. De acordo com Ibiapina (2008), algumas recomendações básicas necessariamente precisam ser seguidas. A síntese dessas recomendações podem ser pensadas da seguinte forma: 1. O planejamento e elaboração de projetos que possibilitem o aprendizado da própria investigação colaborativa; 2. Levantamento inicial da disponibilidade e interesse dos prováveis envolvidos. Esse momento deve envolver a negociação de tempo disponível para encontros relacionados a outras etapas básicas; 3. Permitir que outros possíveis interessados possam participar ao longo do processo; 4. Criar condições para o aprendizado dos envolvidos. 5. Criar um cronograma de trabalho que leve em consideração o processo de retroalimentação com base nas reflexões e ações. 6. Esperar que o processo funcione respeitando o princípio epistemológico de que não existem erros pois todo o processo é que possibilita a produção de conhecimentos (IBIAPINA, 2008 p. 15-16 adaptado). A proposta de campo empírico no IFPR – Campus Curitiba foi pautada em uma relação orgânica entre a proposta da pesquisa colaborativa, e pressupostos epistemológicos que faziam parte da pesquisa de doutorado a que o presente

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trabalho está relacionado. Além disso, os possíveis resultados dessa pesquisa podem ter relevância para outros institutos federais. Isso não significa pretensão de alcançar resultados iguais ou semelhantes em outras possíveis pesquisas, mas a relevância justifica-se pelas condições de trabalho e regimento que são únicas na rede de IF’s. Por exemplo, todos os IF’s possuem 50% de cotas para estudantes de escolas públicas (em 2014 a seleção abriu 80% de cotas sociais) respeitando a leitura étnica do senso mais recente; os professores da rede possuem o mesmo plano de carreira e condições de trabalho que permite e incentiva o trabalho intelectual e o domínio da própria ciência; é prevista a autonomia de trabalho dos professores como intelectuais uma vez que os Institutos Federais são de acordo com a lei nº 11.892, de 29 de Dezembro de 2008, que instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, criando os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, como instituições equiparadas as Instituições Federais de Ensino Superior. Dessa forma o que vale para um IF no que diz respeito a regimento interno vale para outros campi da mesma instituição. Além disso, de acordo com Ibiapina (2008) na pesquisa colaborativa se amenizam dicotomias entre pesquisador e docente, entre teoria e prática, entre pesquisa e ação. O que não significa que as diferenças precisem ser amenizadas, pois os envolvidos podem ter concepções diferentes sobre assuntos que estejam envolvidos na intervenção colaborativa, mas precisam estar abertos ao dialogo e dispostos a negociar. Nesse caso, mais uma vez o IFPR – Campus Curitiba apresentou-se como campo empírico potencial, pois todos os professores que dividem comigo a disciplina de História fizeram pós-graduação na área da educação, no entanto, as áreas de pesquisa foram diferentes, o que resulta em concepções diferenciadas sobre o que se pretende com as relações ensino e aprendizagem em história. Ademais, as experiências de cada professor de acordo com suas trajetórias também são diferentes. Gostaria ainda de destacar um aspecto importante da pesquisa colaborativa: A pesquisa colaborativa é prática que se volta para a resolução dos problemas sociais, especialmente aqueles vivenciados na escola, contribuindo para a disseminação de atitudes que motivam a coprodução de conhecimentos voltados para a mudança da cultura escolar e para o desenvolvimento profissional dos professores. (IBIAPINA, 2008 p. 23) Nesse sentido, uma investigação colaborativa se realizada no IFPR – Campus Curitiba poderá colaborar para a identificação de práticas sociais passíveis de melhoria no que se relaciona não só aos próprios professores (âmbito ao qual estamos diretamente envolvido), mas também aos alunos, gerando a possibilidade da apreensão heurística de preconceitos, compreensões políticas difusas, ou qualquer tipo de ação que cause sofrimento ou exploração e que uma intervenção relacionada ao ensino e aprendizagem histórica possa auxiliar na supressão do sofrimento em direção à emancipação humana.

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Depois dessa apresentação da concepção metodológica é importante dizer que todas as aulas observadas foram gravadas e a maior parte delas transcritas. Além da gravação e transcrição, a observação colaborativa permitia a realização de anotações no caderno de campo do pesquisador. Os elementos das aulas eram discutidos em reuniões colaborativas entre os professores pesquisadores envolvidos no projeto. Essas observações e discussões resultaram em dois bimestres de pesquisa colaborativa realizada em uma turma de terceiro ano do curso técnico em informática integrado ao ensino médio no ano de 2014. As discussões desse artigo estão relacionadas a alguns trechos de respostas de alunos e alunas, em relação ao período final da disciplina de História no ano letivo de 2014. O professor havia trabalhado com um livro de literatura ambientado na ditadura civil-militar brasileira como parte das aulas e das avaliações do quarto bimestre. A discussão seguinte foi realizada com base nas respostas fornecidas pelos discentes a um questionários relacionado a pesquisa em questão.

Conflitos da cultura histórica O subtítulo indica uma categoria relacionada a uma possível e verificável existência de oscilações e diferenças entre aquilo que os alunos ouviam em casa (da família) ou mesmo através da mídia em geral e o que escutavam nas escolas a respeito do tema da ditadura. Existem expressões semelhantes em pesquisas de cunho quantitativo, por exemplo, quando se analisam dados relacionados à pesquisa “Os jovens e a História na América Latina”. A análise particular de cada país não destoa sobremaneira da média geral, mas podemos encontrar algumas particularidades, como o apoio mais intenso entre os alunos brasileiros à utilização de vias militares, que obtiveram índice superior às alternativas cultural e histórica; ainda assim, prevaleceram os meios pacíficos com base no diálogo internacional. (CEERI & MOLAR, 2010 p. 165) O caso brasileiro demonstra menor rejeição frente às opções militaristas, o que não significa apoiá-las, mas, talvez, maior superação das marcas das ditaduras militares que assolaram por décadas a América Latina. (CERRI & MOLAR, 2010 p. 170) O conhecimento desses dados influenciavam indagações para pesquisas qualitativas posteriores, nesse sentido foi possível perceber que muitas vezes compreensões a respeito desse tema estavam relacionados à uma cultura histórica familiar (alcançando expressões nos meios de comunicação). Mesmo assim, depois dos estudos realizados ao longo do bimestre os alunos e alunas realizavam

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escolhas a partir de um ponto de vista que lhes permitiam algumas afirmações ou a geração de um sentido histórico a respeito do tema. Quando os alunos foram perguntados sobre como narrariam naquele momento o período estudado, foi possível perceber conflitos da cultura histórica, por exemplo, entre a narrativa familiar e a escolar. Ainda assim, as narrativas permitem perceber a escolha de um ponto de vista que é resultado de um processo de pensamento do indivíduo que propõe uma resposta.

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Pergunta 3 - No 4º bimestre o professor de História solicitou a leitura da obra “K. RELATO DE UMA BUSCA” de Bernardo Kucinski, ambientada no período em que o Brasil foi governado por um regime militar. Depois da leitura do livro, das aulas do professor e das discussões, e, ainda, com base em conhecimentos obtidos dentro ou fora da escola, como você contaria, agora, a história do regime militar? Para mim é difícil retratar esse fato da História Brasileira, pois há uma grande diversidade de argumentos pró e contra o regime entre os meus familiares, professores, colegas, etc. No entanto, com base no que aprendi com essas pessoas, explicaria a época como uma fase de repressão, corrupção e desigualdade, mascarada por um “milagre econômico”, uma falsa sensação de paz e segurança, bem como enganoso progresso na infraestrutura. 3- A partir dos conhecimentos adquiridos da leitura do livro e das discussões em sala, pode-se entender que a ditadura se divide em duas partes, a boa e a ruim; boa para aqueles que trouxe algum benefício, as vezes econômico, e ruim principalmente a questão das torturas,opressões, indução ao que deveria ser o certo porém não é, ou seja, pela violência gerada. Tendo referência as pessoas que sofreram com a ditadura é óbvio que ela em si não foi boa e para os que não se prejudicaram nem nada ela pode ter sido indiferente como outras forma de governo. Contudo, não tendo vivido este período e por ter percebido que muito sofreram injustamente eu não gostaria de viver um governo deste. (...) Pós discussões, ainda acredito em uma ditadura que omite fatos, opressora e com ideias de extrema direita que o ambiente acadêmico ensina juntamente com frias estatísticas e gráficos que não apresentam nada mais além de números sem expressões humanitárias. Mas o livro expressa outro lado. Os livros devem ser utilizados como uma ferramenta para exprimir lados, histórias e relatos que as instituições acadêmicas omitem por falta de tempo, vontade e interesse. Além de incentivar uma leitura crítica e mais dinâmica ao longo dos estudos. O regime militar é um período ainda nebuloso na história brasileira. Foi um período de muitas torturas, onde pessoas eram sequestradas e muitas vezes acabavam mortas quando tinham ideias contrárias às ideias ditadas pelos militares. Muitas pessoas acham que o período foi importante para a o Brasil, pois existiram avanços econômicos e políticos. Porém, na minha visão deixou um prejuízo emocional muito grande que não vale a pena ser vivido novamente. Período de opressões, com população alerta a uma revolta e ameaça comunista, onde a classe média ficou muito confortável. Contudo, os opositores da ditadura sofriam severas torturas que podiam acabar até mesmo com morte. Dominação militar, o jeito com que eram tratadas as pessoas, a divergência ideológica que levava a exílios, torturas, e prisões. A ditadura militar foi um período de evolução econômica, mas que implantou um barramento cultural e ideológico. Pessoas de caráter político que não concordavam com ideais militares

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eram feitas acreditar que estavam erradas. No resumo, a ditadura teve seu lado bom e ruim, porém não creio que seria um tipo de governo a ser estabelecido novamente. O regime militar acordou a população que desde cedo já tinha uma chamada para fazer a diferença emudecer pessoas frias e individualistas. Considero o momento mais importante para a construção da política brasileira, a crítica e a opinião se tornariam rivais dos militares e alvo de desejo dos militantes dos corações dos que deram as suas vidas para a construção de um país mais justo. Espero que não seja necessária novamente a morte de centenas de pessoas para que a população abra seus olhos e lute por direitos já prescritos. Acredito que o livro foi um facilitador no aprendizado da ditadura pois mostra o sofrimento dos familiares de presos políticos mais claramente, auxiliando no processo de aprofundamento do tema. Entretanto, como respondido previamente, buscaria manter um equilíbrio entre a visão da família e a visão institucional da ditadura, caso eu fosse contar a história do período para alguém. Foi um período histórico no qual o Brasil foi governado por militares, mas com o aval das instituições civis. Em que, como em outros regimes totalitários, o governo (estado) exercia um forte poder de controle e repressão. Mas à la brasileira, porque não foram tantos mortos (APESAR DE CADA VIDA SER IMPORTANTE). E que é gerador de discussões, porque não se têm comprovações ou não se sabe o que aconteceu com as pessoas. Que de fato foi uma época muito difícil, trouxe muito sofrimento e medo. Porém também desenvolveu um pouco o país. Mesmo assim, acredito que não foi interessante para o país, independente do fim, uma vez que para esta existir muitos direitos humanos foram desconsiderados. A ditadura teve grandes influências, para aqueles que tiveram contato direto, ou desaparecimentos, torturas, mas no caso da minha família foi um período como outros, como eles viviam em cidades pequenas quase não havia casos de pessoas que sofriam com a ditadura.

*As respostas foram transcritas na mesma ordem que foram devolvidas ao pesquisador após serem respondidas pelos discentes

Há uma característica comum relacionada à oposição (que é majoritariamente simples e dualista – lado bom e lado ruim; quem sofreu e quem não sofreu; o que escutava antes e o que aprendi na escola) como apresentam algumas narrativas na tabela. Outro elemento a ser observado é que existe uma maneira (talvez tradicional ou até canônica) de se ensinar determinados conteúdos que podem até estar fixados como conhecimento geral sobre a história na cultura histórica ampla, mas não significa que as pessoas concordem com essa forma de narrativa. Com isso, quero dizer que a utilização de palavras como (repressão, tortura, morte, perseguição, ou a apresentação de números relacionados às mortes e desaparecimentos) não proporciona o processo de aprendizagem, que uma fonte histórica relacionada a esses elementos mais comuns podem possibilitar. É o caso das enunciações de alunos e alunas que passam a ter contato com a experiência de um outro sujeito, de um passado de condições diferentes em relação ao seu presente, e que, ao estabelecer essa relação através do pensamento que vai além da fonte, acaba por preencher a nova experiência interpretada com sentidos de

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orientação. Esse aprendizado, geralmente, aparece sob a forma de questões como “eu não gostaria de viver”, ou um “não mais”, ou até um “ainda não” (RÜSEN, 2012 p. 99-112). Mesmo assim, é interessante destacar a existência de algumas ideias bastante sofisticadas, como o caso dos direitos humanos ou do valor das vidas individuais, assim como a utilização de termos atualizados com relação ao contexto atual da historiografia (tal como a utilização do conceito Civil-militar) para se referir ao período. Ou ainda, levar em consideração a dimensão do sofrimento humano no contexto, não apenas das pessoas que morreram ou foram torturadas, mas também de seus familiares. Nesse caso a utilização do livro foi um objeto muito interessante e que vale a pena levar em consideração. Isso também se relaciona à categoria da multiperspectividade. Apesar de não haver e nem era essa a intenção, como já disse anteriormente, uma narrativa suprassumo da cientificidade, a soma de elementos enunciados pelos discentes compõem uma complexidade do passado estudado e das possíveis relações temporais que surgem a partir daí. E, por fim, o posicionamento que é resultante de uma escolha (geração de sentido a partir do aprendizado histórico no presente). Como visualização pessoal através das narrativas das disputas entre a estratégia retórica da orientação histórica e o discurso político da memória coletiva.

Considerações No âmbito das discussões da “burdening history” (como historia pesada ou difícil) há considerações sobre temas do passado que, no caso da Alemanha geram sentimentos de culpa ou de vergonha, quando tratados no presente, mas que precisam ser pensados e levados em consideração no processo formativo da consciência histórica. Assim como essas discussões não proporcionam indicativos fechados para o trabalho metodológico, também não gostaríamos de pensar essa discussão como uma proposta encerrada. Ao contrário, podem ser essas algumas reflexões que possam contribuir com o debate mais amplo sobre as relações de ensino e aprendizagem em história. A interferência da “trama pública” (RÜSEN, 2014 p. 107-108) nas aulas de história. Questões relacionadas à política, cultura, economia que concorrem na esfera pública fazem parte das aulas de história gerando disputas por legitimidade entre estratos da cultura histórica. Nesse sentido, por exemplo, as disputas entre a cultura histórica familiar muitas vezes concorre com o conhecimento compartilhado nas escolas. É preciso levar em consideração esses diferentes componentes em uma aula se quisermos que o diálogo seja mais convidativo a participação efetiva dos discentes

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Mesmo assim seria possível fazer uma consideração sobre o que tentamos buscar de novo nessa discussão. Muito provavelmente seja algo que ocorre no dia a dia das salas de aula em aulas de história pelo Brasil, mas tentamos sistematizar para contribuir com o debate. A questão é que muitas vezes, pelo menos no Brasil, seja pela cobrança dos exames de vestibulares, do ENEM (Exame Nacional do ensino Médio), ou de coordenações pedagógicas e secretarias de educação, somos confrontados como professores com uma necessidade de ensinar os conteúdos da História. Como se dar aula de História significasse dar conta dos conteúdos do programa. Ao mesmo tempo em que detectamos uma série de formas de pensamento, de orientações existenciais, de expressões de consciências históricas ou mesmo características gerais da cultura histórica no presente que se apresentam como carências de orientação, muitas vezes na forma de preconceitos. Nossa proposta tem sido a de que os professores de História poderiam, na lógica do que estamos chamando de educação histórica ou didática da história na perspectiva da práxis, realizar um processo semelhante a matriz do pensamento histórico apresentada por Rüsen (2015). Ou seja, o trabalho com a história poderia começar mais nas demandas e carências de orientação existencial oriundas da práxis da vida do que em conteúdos, ou pior ainda – competências, previamente estabelecidos e reforçados por exames de seleção e agências multilaterais. A aprendizagem histórica, nesse sentido, pode ser pensada como processo e resultado, em uma díade que envolve o sujeito e a sociedade, e que o ponto de chegada depois de um tema discutido na escola pode se tornar novamente um ponto de partida. Assim, a formação histórica poderá ser pensada na escola como expansões na quantidade das informações que podem ser trabalhadas, acompanhada da qualidade do pensamento, processo e resultado de uma aprendizagem que não se expressaria apenas em respostas formais da educação escolar, mas na formação do sujeito na relação com os demais na sociedade. Essas reflexões são uma tentativa de perceber elementos importantes na relação de ensinar e aprender história. Não pretendem dar indicações sobre como devemos realizar essa tarefa, mas auxiliar no processo de compreensão dessas relações. Se tiver conseguido com isso alguns resultados será interessante. Se o leitor se sentir provocado a colaborar com as discussões, por adesão ou contraponto, o processo terá continuidade, e assim, a continuidade da construção coletiva da busca por melhorias nas relações de ensinar e aprender história.

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