Cantigas trovadorescas (edição digital): Critérios de transcrição e de edição de textos [2004]

July 3, 2017 | Autor: J. Montero Santalha | Categoria: Poesia trovadoresca galego-portuguesa
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Critérios de transcrição e de edição de textos Sumário: A-. Critérios gerais de transcrição: 1) Sistema fonológico e sistema gráfico: fonemas e grafemas a) Sistema vocálico b) Sistema consonântico 2) Alguns problemas particulares: a) A interpretação das grafias medievais ĩo, ĩa, ĩe e equivalentes b) As formas amávamos, amáramos, amássemos c) O possessivo mià, miàs d) O pronome mi seguido de vogal e) A copulativa e f) Uma forma fantasma: pardom g) As formas irmana, louçana, etc. 3) Os nomes dos trovadores: a) Critérios gerais b) Alguns casos particulares c) Individuação de alguns trovadores B) Critérios para a apresentação editorial das cantigas: 1) Numeração das estrofes 2) Numeração dos versos 3) Os encontros vocálicos 4) Métrica e versos 5) O refrão 6) Palavras rimantes repetidas

Apresento aqui, em duas secções diferentes (A e B), por um lado o aspecto linguístico da edição dos textos trovadorescos (isto é, os critérios filológicos de transcrição), e por outro o aspecto literário (isto é, a apresentação externa das cantigas). Advertência: Como acontece com outros materiais que aqui saem à luz, trata-se de uma versão resumida e simplificada, adaptada para uma mais singela apresentação em linha, da exposição incluída na minha tese de doutoramento, por agora inédita (As rimas da poesia trovadoresca galego-portuguesa: catálogo e análise, A Corunha: Universidade da Corunha, Faculdade de Filologia, 2000, 3 volumes, 1796 pp.; encontra-se acessível para consulta pública na Faculdade de Filologia da Universidade da Corunha; informação sintética sobre o seu conteúdo pode ver-se no meu artigo«Sobre o catálogo das rimas trovadorescas», publicado na revista Agália, núms. 67-68 (2º semestre de 2001), pp. 225-237; em Internet acha-se um breve resumo na base de dados de teses de doutoramento («Teseo») do Ministério espanhol de Educação e Ciência.

A-. Critérios gerais de transcrição A seguir indico, de modo resumido, os critérios de transcrição que aplico a todos os textos trovadorescos (e em geral a todos os textos literários em português medieval), sejam cantigas completas, fragmentos de cantigas (onde devem incluir-se também os títulos identificativos de cada uma, os quais, na realidade, são os íncipit, isto é, o verso inicial da respectiva composição), epígrafes ou rubricas explicativas, ou mesmo palavras isoladas. Como norma de alcance geral, a minha transcrição está sempre guiada pelo seguinte princípio fundamental: respeito escrupuloso à língua medieval (naqueles aspectos propriamente linguísticos: fonética, morfologia, sintaxe e léxico), mas regularização da ortografia. Em definitivo trata-se de que a representação gráfica reproduza para o leitor de hoje, e de forma sistemática e inequívoca –sempre que isso resulte possível, que é o que habitualmente 1

acontece–, o sistema fonológico do português literário medieval, hoje suficientemente estabelecido. Para isso deve tomar como ponto de referência o sistema ortográfico actualmente vigente, de jeito que o leitor actual, destinatário das edições, possa perceber sem dificuldade a continuidade histórica entre a língua medieval e a sua própria língua, por cima das leves variações diacrónicas, do mesmo modo que percebe a continuidade linguística por cima das variedades sincrónicas (isto é, dialectais, ou melhor, diatópicas) do presente, e dessa maneira possa reconhecer os textos literários medievais como pertencentes ao seu próprio sistema linguístico, do mesmo modo que identifica como tais as produções linguísticas de outros falantes do idioma que possuem normas ou formas de expressão distintas da sua. Apresentarei em primeiro lugar uma perspectiva resumida do sistema fonológico da língua trovadoresca e do sistema grafemático que emprego para representá-lo. Logo tratarei alguns problemas particulares: a interpretação das grafias medievais ĩo, ĩa, ĩe e equivalentes, alguns fenómenos morfo-sintácticos, a forma fantasma pardom e os supostos arcaísmos do tipo irmana ou louçana. Finalmente exporei quais são os critérios que adopto a respeito dos nomes dos trovadores. (Sobre este tema da transcrição desenvolvi mais em pormenor alguns pontos em «As miniaturas das legendas das Cantigas de Santa Maria (códices T e F)», em: RODRÍGUEZ, José Luís (dir.) (2000): Estudos dedicados a Ricardo Carvalho Calero: Reunidos e editados por José Luís Rodríguez, Santiago de Compostela: Parlamento de Galicia / Universidade de Santigo de Compostela, 2 volumes, volume 2º, pp. 507-552). 1) Sistema fonológico e sistema gráfico: fonemas e grafemas Eis de forma esquemática os fonemas da língua portuguesa da época trovadoresca, e os grafemas ou signos gráficos com que represento cada um deles. a) Sistema vocálico O sistema vocálico amostra a sua plena potencialidade em posição silabicamente tónica: nesta posição aparecem 7 fonemas vocálicos. Pelo contrário, em posição átona (e também em algumas circunstâncias especiais da posição tónica) neutralizavam-se algumas das oposições entre fonemas, de modo que resultava um número mais reduzido de (arqui)fonemas (5 nalguns casos, noutros 3, e noutros somente 2). Podemos, pois, distinguir quatro subsistemas vocálicos dentro do sistema fonológico do vocalismo: de 7 fonemas, de 5, de 3, e de 2. Fonemas. Em posição tónica o sistema vocálico português da época trovadoresca apresentava 7 fonemas (como ainda hoje o do português da Galiza e do Brasil, e até da língua falada em grande parte de Portugal). Podemos distribuí-los em três grupos, correspondentes às três localizações articulatórias fundamentais (central, anterior e posterior): – Vogal central aberta /a/: representada graficamente por a: ave, canto. Levará acento agudo (portanto á) nas circunstâncias que correspondem na língua actual às determinadas pela normativa ortográfica portuguesa vigente: está, estám, estás, sábado, já. – Série anterior (ou palatal): três fonemas vocálicos: – Vogal anterior semi-aberta /ɛ/: representada graficamente por e: bela, donzela, mel. Levará acento agudo (é) nas circunstâncias estabelecidas pela normativa ortográfica: é, pé, crérigo. – Vogal anterior semi-fechada /e/: representada por e (que nos casos em que corresponda levará acento circunflexo: ê): cedo, colherom, orelha, cortês, bêstia. – Vogal anterior fechada /i/: representada por i (que levará acento agudo quando estabelecido: í): caminho, vi, vida, físico, saída. – Série posterior (ou velar): três fonemas vocálicos: – Vogal posterior semi-aberta /ɔ/: representada por o (com acento agudo nas circunstâncias estabelecidas: ó): chora, porta, apóstolos, nós. – Vogal posterior semi-fechada /o/: representada por o (que nos casos pertinentes levará acento circunflexo: ô): amores, esposa, valor, fôssemos, fôssedes. – Vogal posterior fechada /u/: representada por u (que levará acento agudo em certos casos: ú): ajuda, lume, tu, saúde. 2

Arquifonemas (neutralizações). Estes 7 fonemas vocálicos ficavam normalmente reduzidos a um número inferior (5, 3 ou 2) de (arqui)fonemas por diversas causas de natureza fonológica: Cinco. Ocorriam 5, por redução das semi-abertas /ε/ e /ɔ/ às correspondentes semifechadas /e/ e /o/ (ou, formulando o facto em termos mais científicos, por neutralização da oposição entre ambas as categorias em cada uma das duas séries), nas seguintes circunstâncias: 1) em sílaba tónica, quando se achavam travadas pelo arquifonema nasal /N/ (por exemplo: vento, tempo; ponte, sõa, dões) e quando formavam sílaba com a semivogal da mesma série (portanto, em ei e em ou, mas não em éu, êu, nem em ói, ôi); e 2) em sílaba átona não final. Três. Em sílaba átona final de vocábulo ocorriam de modo regular só 3 (arqui)fonemas vocálicos, um para cada localização articulatória: central /a/, anterior /e/, e posterior /o/; por exemplo, usa, uses, uso. Somente de maneira excepcional, como vestígios do passado, ou sob influxo de assimilação vocálica, ou em vocábulos latinos ou estrangeiros, apareciam /i/ e /u/ em sílaba átona final (por exemplo, fígi, fústi, púgi; cruu, cuu, muu). Na poesia trovadoresca, as vogais átonas em posição final absoluta costumam elidir-se quando seguidas, no verso, de palavras iniciadas por fonema vocálico. Represento esta elisão vocálica por meio do apóstrofo, como é habitual: assim, punh’ eu 1228.3 (= punho + eu), quant’ eu 1228.14 (= quanto + eu). Dois. Em posição assilábica os fonemas vocálicos ficavam reduzidos a dous, anterior /j/ e posterior /w/, representados graficamente por i e u respectivamente, e chamados habitualmente semiconsoantes se ocupam a margem pré-nuclear da sílaba (por exemplo, água, égua, guardar, unguento; quando, quatro), e semivogais se ocupam a margem pós-nuclear (p.e., baixo, peito, coiro, mui; caudelar, judéu, perdeu, partiu, mouro). Resultam assim os ditongos (encontros vocálicos monossilábicos). Oralidade vocálica geral. Todas as vogais são fonologicamente orais, embora possam aparecer mais ou menos nasalizadas fonicamente por contacto com uma consoante nasal (explosiva ou implosiva), mas tal nasalização carece de relevância fonológica. Esta é, de resto, a interpretação que penso deve dar-se à situação actual em todo o domínio da língua portuguesa, contrariamente à ideia (mais divulgada entre gramáticos e filólogos) de que existem vogais nasais em português –ideia provocada mais que nada pelo uso ortográfico do til sobre as letras vogais–. As supostas «vogais nasais» não são senão uma sucessão, no discurso, de duas unidades fonológicas: [vogal + o arquifonema consonântico nasal implosivo /N/]. Vejam-se os argumentos de Mattoso Câmara e de Morais Barbosa em favor desta interpretação fonológica: J[oaquim]. MATTOSO CÂMARA JR., Para o estudo da fonêmica portuguesa, Rio de Janeiro 1977, pp. 67-72 (“10. As vogais ditas nasais”), 82 (“Não há oposição entre vogal oral e vogal nasal, porque as vogais consideradas nasais se resolvem em vogal seguida de arquifonema consonântico nasal”), 109-111 (“é preferível interpretar a [vogal] nasal como um grupo de vogal oral mais elemento consonântico nasal [...]. O principal argumento em favor desta doutrina é a circunstância de que a nasalidade determina uma sílaba travada, como se fosse uma consoante pós-vocálica”: pág. 110); Joaquim MATTOSO CÂMARA JR., Estrutura da língua portuguesa, Petrópolis 1976, pp. 36-37, 48-50; Jorge MORAIS BARBOSA, Études de phonologie portugaise, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa 1965, 246 pp., pp. 91-104. b) Sistema consonântico O sistema consonântico amostra a sua plena potencialidade em posição silabicamente explosiva (isto é, em início de sílaba): nessa posição aparecem 23 fonemas consonânticos. Pelo contrário, em posição silabicamente implosiva neutralizam-se algumas das oposições que vigoram entre fonemas em posição silabicamente explosiva, de modo que resulta um número reduzido de arquifonemas (6 normalmente).

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Fonemas (posição explosiva). Os fonemas consonânticos em posição silabicamente explosiva (quer em posição inicial de vocábulo quer em posição medial) eram os seguintes: – Bilabiais: – Oclusivo sonoro /b/: representado graficamente por b. Exemplos: 1) em posição inicial: barco, bem, boi, braço; 2) em posição medial: saber, obra. – Oclusivo surdo /p/: representado por p. Exemplos: 1) em posição inicial: pedir, pode, prado; 2) em posição medial: capa, sempre. – Nasal /m/: representado por m. Exemplos: 1) em posição inicial: mar, mil, morrer; 2) em posição medial: amado, armas. – Labiodentais: – Fricativo sonoro /v/: representado por v. Exemplos: 1) em posição inicial: vai, vem, vida; 2) em posição medial: haver, livro. – Fricativo surdo /f/: representado por f. Exemplos: 1) em posição inicial: fazer, filho, fraco; 2) em posição medial: afám, sofrer. – Linguodentais: – Oclusivo sonoro /d/: representado por d. Exemplos: 1) em posição inicial: dar, dia, dragom; 2) em posição medial: cada, arde, padre. – Oclusivo surdo /t/: representado por t. Exemplos: 1) em posição inicial: terra, tua, trabalhar; 2) em posição medial: mata, carta, estrela. – Dento-alveolares: – Africado sonoro /dz/: representado por z. Exemplos: 1) em posição inicial de vocábulo ocorre só excepcionalmente: por exemplo, zarelho (2273.28, de resto com a variante textual azarelho); 2) em posição medial: fazer, dizia, azur, onze. – Africado surdo /ts/: representado por c ante e ou ante i, e por ç ante a, o, u. Exemplos: 1) em posição inicial: cedo, cima; çapata, çopo, Çuz; 2) em posição medial: parece, merecia, cabeça, oraçom, beiçudo. – Alveolares: – Fricativo sonoro /z/: representado por s. Ocorre somente em posição intervocálica, em interior de vocábulo. Exemplos: casa, fremosura, groriosa, peso. – Fricativo surdo /s/: representado por ss entre vogais e por s simples nas demais posições (isto é, em posição inicial de vocábulo e iniciando sílaba após consoante). Exemplos: essa, houvesse, passo, promessa; santa, manso. – Lateral /l/: representado por l. Exemplos: 1) em posição inicial: lado, lei, lume; 2) em posição medial: fala, ali. – Vibrante simples /|/: representado por r. Ocorre somente em posição intervocálica, em interior de vocábulo. Exemplos: agora, caro, more. – Vibrante múltipla /r/: representado por rr em posição intervocálica (em interior de palavra) (e por r nas demais posições: isto é, em posição inicial de vocábulo e iniciando sílaba após consoante; mas aqui na realidade trata-se de um arquifonema). Exemplos: carro, morre;(rei, honra). – Nasal /n/: representado por n. Exemplos: 1) em posição inicial: nada, novo; 2) em posição medial: ano, asno. – Dento-palatais: – Africado surdo /tS/: representado pelo dígrafo ch. Exemplos: 1) em posição inicial: chaga, chover; 2) em posição medial: achar. – Palatais: – Fricativo sonoro /Z/: representado mediante dous grafemas: 1) por g ante e, i em alguns vocábulos; e 2) por j ante a, o, u em todos os casos, e ante e, i em alguns vocábulos. Exemplos. 1) em posição inicial: gente; já, jornal, juntar; jeito; 2) em posição medial: ligeiro, aginha; seja, ajuda; hoje. 4

– Fricativo surdo /S/: representado por x. Exemplos: 1) em posição inicial: xara, Xerez; 2) em posição medial: Exarafe, enxeco, baixo. – Lateral /¥/: representado pelo dígrafo lh. Exemplos: 1) em posição inicial propriamente não ocorre, pois o caso do pronome átono lhe, lhes (com as variantes lhi, lhis) não pertence na realidade à posição inicial, visto não usar-se nunca em início de grupo fónico, por causa da sua atonicidade; 2) em posição medial: colher, espelho, olho, senlheiro. – Nasal /ɲ/: representado pelo dígrafo nh. Ocorre somente em interior de vocábulo em posição intervocálica. Exemplos: sanha, vinha, venha, unha. – Velares: – Oclusivo sonoro /g/: representado por g ante a, o, u ou consoante, e pelo dígrafo gu ante e ou i. Exemplos: 1) em posição inicial: galo, grave; guerra, guisa; 2) em posição medial: logo, agudo. – Oclusivo surdo /k/: representado por c ante a, o, u ou consoante, e pelo dígrafo qu ante e ou i. Exemplos: 1) em posição inicial: casa, corre, cura, Claraval, creer; 2) em posição medial: escano, esclareceu; que, quero, aqué, quinhentos, aqui. – Nasal /ŋ/: representado por til colocado sobre a vogal precedente (ã, ẽ, ĩ, õ, ũ). Ocorre somente em interior de vocábulo em posição intervocálica. Exemplos: mão, bẽes, avĩir, dões, ũa. Como se vê, dou por assente que fonologicamente se tratava, na época medieval, de um fonema consonântico que iniciava sílaba; portanto, formava sílaba com a vogal seguinte, e não com aquela sobre a qual vai colocado o til, de modo que o sistema ortográfico resulta algo enganoso neste caso (para a situação fonológica medieval, mais que para a actual). Assim, o substantivo mão (hoje monossílabo: /’mawN/ na pronúncia luso-brasileira, e /’maN/ e /’maw/ e mesmo /’ma/ no português da Galiza) era bissílabo na época medieval, como mostra a métrica, e seria silabicamente /’ma-ŋO/. Do ponto de vista fonológico, carece de importância que a vogal que precede o fonema /ŋ/ pudesse aparecer acompanhada de nasalização, pois esta “contaminação nasal por contiguidade” não é diferente à que se dá ante outras consoantes nasais. Arquifonemas (neutralizações). Em posição silabicamente implosiva (ou pós-nuclear), quer em interior quer em fim de vocábulo, estes 23 fonemas ficavam normalmente reduzidos aos seguintes 6 arquifonemas, resultado da neutralização das oposições entre diversos grupos de fonemas: /DZ/: representado por z. Exemplos: 1) em posição medial: azcũa, fazfeiro, mezcra, mezquita; 2) em fim de palavra: paz, praz, fez, vez, fiz, joiz, noz, voz, cruz, luz. Em interior de vocábulo é pouco frequente. /L/: representado por l. Exemplos: 1) em posição medial: alguém, alma, alto, beldade, Ultramar; 2) em fim de palavra: mal, Miguel, mil, sol. /N/: representado por m em fim de vocábulo e ante b ou p, e por n ante qualquer outra consoante. Exemplos: 1) em interior de vocábulo ante b ou p: ambos, cambiar, tempo; 2) em interior de vocábulo ante consoante distinta de b e p: envolver, inferno, ando, entre, donzela, dança, honra, manso, ángeo, enxeco, ancho, senlheiro, vingar, manco; 3) em fim de palavra: pam, bem, fim, som, um. /R/: representado por r. Exemplos: 1) em posição medial: amardes, colhermos, ordem, fugirdes; 2) em fim de palavra: mar, colher, fugir, amor. /S/: representado por s. Exemplos: 1) em posição medial: esbulhar, escarmento, asno, esperar, este; 2) em fim de palavra: amas, comes, mais, filhos. /S/: representado por x: 1) fix, quix. Em fonética sintáctica estes arquifonemas implosivos, quando seguidos imediatamente no discurso por vocábulo começado por vogal, sem pausa intermédia, funcionavam como em posição intervocálica. A consequência deste facto era que, no nível fonológico, a língua falada não oferecia nenhum sinal externo que delatasse o ponto de demarcação entre os vocábulos. Em posição pré-nuclear intrassilábica (quer dizer: após consoante inicial de sílaba) ocorriam somente os arquifonemas consonânticos /L/ e /R/, o primeiro apenas em cultismos ou estrangeirismos e, mesmo aí, com tendência a ficar neutralizado em /R/: Claraval, esclareceu, Englaterra (com as variantes Engraterra, Ingraterra); aprende, escrito, estrela, frade, livro, traz. 5

2) Alguns problemas particulares a) A interpretação das grafias medievais ĩo, ĩa, ĩe e equivalentes Um problema particular na transcrição dos textos (que afecta ademais, em geral, o estado fónico da nossa língua na época trovadoresca, desde os inícios do século XIII) é o do valor das grafias medievais ĩo, ĩa, ĩe (por exemplo, em vĩo, espĩa, dĩeiro, e em outras variantes gráficas que podemos reduzir a essas formas: por exemplo, vỹo, etc.). O problema que aqui surge pode formular-se assim: nestas grafias, o til representa já a consoante nasal palatal /ɲ/ que hoje temos em vinho, espinha, dinheiro e que o nosso sistema ortográfico representa por nh, ou é simplesmente signo da chamada “nasalização vocálica” que resultou da queda do -N- intervocálico latino? A meu ver, não há dúvida de que na época trovadoresca (portanto, pelo menos desde os começos do século XIII), a pronúncia comum nesses casos era já com nasal palatal /ɲ/ e não com mera “nasalidade vocálica”. Duas são as razões que levam a esta conclusão: uma de carácter externo (as grafias dos mss.) e outra de carácter interno (as rimas). As diversas grafias medievais. Embora o sistema ortográfico medieval não tivesse alcançado, em geral, uma tal sistematicidade que nos permita deduzir conclusões firmes para o terreno fonético –e o caso que nos ocupa não é senão uma boa amostra de um fenómeno comum–, os manuscritos fazem-nos suspeitar que a nasal era em todos esses casos a palatal /ɲ/, pois oferecem ao respeito um comportamento incoerente, que se pode resumir em três factos: 1) Por uma parte, uma mesma palavra acha-se num mesmo manuscrito (e até dentro de uma mesma cantiga) umas vezes com til e outras com nasal palatal /ɲ/ (representada nos mss. das CSM e no Cancioneiro da Ajuda, normalmente, à espanhola, por -nn- ou –o que vem a dar no mesmo– por til + n, donde resultou a moderna letra espanhola ñ). Perante este facto, poderíamos admitir uma das duas conclusões seguintes: ou 1) que as grafias com -nn- eram resultado de uma modernização realizada mais tarde pelos copistas, enquanto as grafias com til representavam a versão originária; ou 2) que ambas as pronúncias, com “nasalidade vocálica” e com nasal palatal /ɲ/, conviviam ao mesmo tempo, pois estava em curso a palatização da nasalidade mas não chegara ainda a consumar-se o processo. Embora estas duas possibilidades resultam verosímeis, parece difícil que possam aplicar-se à língua literária dos textos trovadorescos; os outros factos que a seguir veremos, creio excluem que tenham aplicação nesse âmbito. 2) Por outra parte, a forma que num manuscrito das CSM aparece com til, aparece noutro, na passagem correspondente, com nasal palatal; e isto acontece de um modo assistemático, que não nos permite portanto deduzir que se trate de comportamentos característicos de cada um dos manuscritos, nem, menos ainda, das diferentes épocas em que cada um deles foi copiado. 3) E finalmente, possuem especial valor as ocorrências desses vocábulos em posição de rima (inha, inhas, inho, inhos): num mesmo manuscrito achamos dentro de uma mesma série de rimas de uma determinada cantiga umas palavras escritas de um modo e outras de outro. Ora, vista a absoluta regularidade da consonância nas rimas das CSM, tal discrepância gráfica não pode interpretar-se como rima assoante nem mesmo como a chamada –mas inexistente, a meu ver– “rima de vogal nasal com vogal oral”. As rimas. A razão decisiva que nos deve levar a assumir que a pronúncia era com nasal palatal /ɲ/ e não com simples “nasalidade vocálica” está em que, nesse tipo de casos, aparecem em rima vocábulos em que se deu a queda de -N- intervocálico latino (onde portanto a nasal palatal /ɲ/ surgiu numa segunda fase histórica) com outros que pela sua etimologia nunca puderam ter senão nasal palatal /ɲ/ (isto é, pertencentes a uma primeira fase de /ɲ/), como são: 1) vinha e o seu plural vinhas (do lat. VĪNĔAM, pl. VĪNĔAS, com -N- mais iode em latim vulgar [vínya], que deu regularmente a nasal palatal /ɲ/);

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2) provavelmente sanguinha adj. ‘de cor de sangue’, pois deve de proceder do lat. SAN(antes que de uma variante SANGUĪNUS, mal documentada); e 3) quiçá também arminho, se é que, como parece mais provável, provém de uma designação latina (mus) arménius, literalmente ‘(rato) de Arménia’. GUĪNĔUS

À vista destas rimas, se quisermos apesar de tudo afirmar que, nestes casos, as restantes palavras rimantes não possuíam ainda a nasal palatal /ɲ/, teríamos que admitir que se tratava de rima assoante. Porém, esta conclusão –para além de não explicar as grafias incoerentes dos mss., às quais antes fiz referência– não condiz com o comportamento geral das CSM a este respeito: todas as rimas parecem ser consoantes. b) As formas amávamos, amáramos, amássemos Atribuo tonicidade proparoxítona (esdrúxula) a todas as formas de P4 e P5 dos imperfeitos, do mais-que-perfeito e do potencial: amávamos, amávades, amáramos, amárades, amássemos, amássedes, amaríamos, amaríades; temêssemos, temêssedes. A absoluta ausência de formas paroxítonas entre as numerosas rimas amos, ades, êmos, êdes da poesia trovadoresca é indício de que a língua literária já preferia as formas esdrúxulas que em diante prevaleceriam, embora na fala popular de certas áreas se conservasse a pronúncia paroxítona etimológica, que chegou ainda aos nossos dias. c) O possessivo mià, miàs O adjectivo possessivo feminino de 1ª pessoa de singular, quando anteposto ao substantivo (na língua actual minha, minhas: “a minha casa”, “as minhas amigas”) é na língua da época trovadoresca forma monossilábica e tonicamente proclítica. Represento-o graficamente com acento grave sobre a vogal à (o qual, pela sua excepcionalidade, pretende delatar o carácter átono –e monossilábico– do vocábulo): mià (< lat. MEAM) ‘minha’, em plural miàs (< lat. MEAS) ‘minhas’. Exemplos: 1) mià ‘minha’: “daquel dia em que m’ eu parti / da mià senhor” (3.15-16), “dar-lh’-ei com mià lança” (2009.93), “esta mià capela” (2053.46), “que mià alma cobrou já saúde” (2065.192), “toda mià fazenda ora saberedes” (2065.196), “– Senhor, / mià molher, que muit’ amava, perdi polo teu amor” (2084.57), “ca, mià promessa, / nom é revoltosa” (2195.100), “haviam gram pesar / de mià door e filhavam-s’ a chorar” (2209.38-39), “que me fezo mais verde mià coor / que dum cambrai” (2279.21-22). 2) miàs ‘minhas’: “de miàs lágrimas duas enchi tod’ este pichel” (2155.62). Dos exemplos aduzidos pode ver-se que estas formas –como acontece com os demais possessivos– já ocorrem alguma que outra vez precedidas do artigo definido, mas nos textos trovadorescos é ainda normal que apareçam sem ele. d) O pronome mi seguido de vogal Merece uma advertência a representação gráfica da forma mi (< lat. MIHI) ‘me’, pronome pessoal de complemento indirecto (alguma vez também directo) de 1ª pessoa de singular: mi é na língua trovadoresca vocábulo átono, e funciona como proclítico, com a particularidade de que, se a palavra seguinte começa por vogal, mi sistematicamente faz sinalefa com ela. Exemplos: “o prior e os frades, de que mi_agora quitei” (2103.43); “seede-mi_ora bõ’ ajudador” (2279.16); “muito mi_avorrece” (2331.22). Ocorrências desta mesma natureza são as combinações de mi com as formas do pronome pessoal de terceira pessoa o, a, os, as (também, mais raramente, com o artigo: “mostrade-mi_as Escrituras”: 2053.66; “u mi_o moço prenderom”: 2115.313): mi_o [monossilábico] (< lat. MIHI ILLUM) combinação de dous pronomes pessoais ‘mo’: “dar-m’ este filh’ e logo mi_o tolher” (2021.36); “tu soa és a que mi_o podes dar” (2021.45); “oíde-mi_o, se ouçades prazer” (2052.8); “um crérigo que o achou / escrito e mi_o foi trager” (2168.19-20), “mandei o livro dela aduzer, / e poserom-mi_o, e logo jouv’ em paz” (2209.2930); “quant’ end’ aprendi a quem mi_o há contado” (2267.13). mi_a [monossilábico] (< lat. MIHI ILLAM) combinação de pronomes pessoais ‘ma’: “a vaca [...] que de lob’ e de ladrom / mi_a guardes” (2031.31-33), “dá-mi_a viva e sãa” (2084.59). mi_os [monossilábico] (< lat. MIHI ILLOS) combinação de pronomes pessoais ‘mos’: “se podér achar agulha ou fios ou quem mi_os venda” (2273.27). mi_as [monossilábico] (< lat. MIHI ILLAS) combinação de pronomes pess. ‘mas’. 7

e) A copulativa e A conjunção copulativa é sempre e. A grafia et que ocorre algumas vezes nos mss. (por exemplo, 2235.8, 11, 18, 20) responde a mera inércia gráfica latinizante. f) Uma forma fantasma: pardom Alguns editores de textos trovadorescos apresentam uma forma pardom (que, naturalmente, pode estar também transcrita como pardon ou pardõ), que seria variante (talvez sob influência francesa) da mais comum perdom, nas duas funções que pode desempenhar esta forma: substantivo ou terceira pessoa de singular do presente de subjuntivo do verbo perdõar (o qual possuiria assim uma variante pardõar). Porém, a análise dos manuscritos trovadorescos desvela que essa forma pard-, em todas as suas ocorrências, é da exclusiva responsabilidade do copista a do cancioneiro B. (Na catalogação das cantigas ofereço sempre a indicação de qual dos amanuenses de B copiou cada cantiga). Vários factos de índole palegráfica e comparativa provam que está aí a origem da forma, a qual portanto não corresponde à língua realmente usada pelos trovadores. Em conclusão: pardom é uma forma fantasma, inexistente na língua trovadoresca, embora apareça muitas vezes no ms. B. g) As formas irmana, louçana, etc. Alguns editores e estudiosos do nosso trovadorismo têm proposto aceitar formas manuscritas como avelanedo, fontana, irmana, louçana, manhana, com /n/ alveolar, como realmente existentes na língua da época trovadoresca ao lado de, por exemplo, as formas normais e habituais irmãa e louçãa. Mas há poucas probabilidades, segundo creio, de que tais formas, mesmo no caso de que existissem na época trovadoresca, fossem admitidas na língua literária. Antes de mais, que apareçam escritas com -n- nos manuscritos da nossa poesia trovadoresca não pode ser prova de que fossem pronunciadas com /n/ alveolar: nos manuscritos trovadorescos (e, em geral, nos manuscritos medievais da época trovadoresca e mesmo posterior) é grande o número de casos em que é empregada a letra -n- entre vogais quando o correcto no sistema ortográfico de então seria uma vogal com til: grafias como bona etc. aparecem um pouco por todas as partes ao lado das correctas bõa etc. De resto, para aqueles textos que procedem, em última instância, de ambiente de língua castelhana (como serão as cantigas dos trovadores que desenvolveram a sua actividade poética nas cortes de Afonso X e de Sancho IV), esse facto tem uma explicação óbvia: pelo menos nesses casos os amanuenses que as copiaram no cancioneiro primitivo que serviu da base aos códices coloccianos, embora fossem portugueses, copiariam um manuscrito (um cancioneiro de autor ou algo assim) que fora confeccionado na área castelhana, e é natural que respeitassem geralmente o que viam escrito no original que estavam a copiar. Os estudiosos tem vacilado entre explicar essas formas como castelhanismos ou como arcaísmos. Mas, como castelhanismos só poderia aceitar-se se o entendemos unicamente no aspecto gráfico, como fica comentado, e mais se tivermos em conta que alguma dessas formas (como irmana ou louçana) nem sequer é castelhana. A explicação que quer ver em tais formas arcaismos que se teriam conservado especialmente em alguns refrães tradicionais, carece de grande verosimilitude: não parece provável que um refrão tradicional, precisamente por manter-se vivo na tradição popular, não acompanhasse a evolução geral da língua, mormente tratando-se de vocábulos habituais da fala de todos os dias como irmãa. 3) Os nomes dos trovadores Existem discrepâncias entre editores e estudiosos do nosso trovadorismo em quanto à forma que se dá aos nomes de alguns trovadores. São vários os problemas aí envolvidos, e diversas as causas que os originam. Não é aqui necessário discuti-los; bastará com indicar os critérios gerais adoptados nesse ponto, e formular algumas indicações pontuais sobre determinados nomes. (Tanto os diversos problemas como os motivos que os suscitam têm sido analisados pelo professor José Luís Rodríguez num magnífico estudo, cujos critérios ao respeito comparto e si8

go em geral: José-Luís RODRÍGUEZ, «Os nomes dos trovadores: algumhas anotaçons para umha fixaçom possível», em: [VÁRIOS], Actas del I Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval (Santiago de Compostela, 2 al 6 de Diciembre de 1985), Edición a cargo de Vicente Beltrán, PPU (Promociones y Publicaciones Universitarias), Barcelona 1988, 602 pp., pp. 523-538). a) Critérios gerais A divergência talvez fundamental tem a ver com a possível modernização dos nomes: alguns actualizam as grafias medievais, adaptando-as à correspondente forma actual: quer simplificando as vogais duplas (e assim, Meendinho passa a Mendinho¸ e Vaasco a Vasco), quer mudando em -s o -z final dos patronímicos (por exemplo, Perez passa a Peres, ou mesmo a Pires), quer realizando outro tipo de transformações (por exemplo, modificando Joam para João). Sobretudo quando são historiadores e não filólogos os que escrevem, a actualização é praxe bastante geral. Não pretendo negar a legitimidade de tal praxe, mas num trabalho de índole filológica, como quer ser o presente, parece mais rigoroso manter a forma linguística que os nomes dos trovadores tinham quando eles viviam –forma linguística que pode, como na língua comum, não coincidir totalmente com a forma gráfica empregada em casos concretos–. Os critérios fundamentais que adopto são os seguintes: – Unifico o nome de cada trovador numa forma única. – Mantenho as vogais duplas etimológicas quando a métrica e os mss. indicam que ainda se conservavam ambas (Vaasco). – Conservo a nasalidade quando, embora os mss. se apresentem oscilantes, as rimas sugerem que era ainda a pronúncia predominante (Ambrõa). – Mantenho sistematicamente o -z final dos patronímicos (Núnez), apesar de que nos mss. se pode interpretar alguma vez como -s. Já se sabe que o caso de Eanes (com as suas variantes: Anes, Oanes...) é diferente: aqui não havia originariamente -z, porque procede do genitivo latino IOHANNIS. De resto, as normas de transcrição gráfica são as mesmas que aplico à língua geral: eliminação de -h- intervocálico (Joám em vez de Joham) e de y (Briteiros, Faiám), uso sistemático de -m final (Martim), e de acentos gráficos (Fernám, Fernández, Joám, Rodríguez). b) Alguns casos particulares Patronímicos em -z. Uso acento circunflexo em certos patronímicos medievais com e ou o tónicos, como Gômez, Lôpez, Pêrez, Vêaz, porque dou por certo que a pronúncia medieval nesses casos era com vogal tónica fechada. Creio existirem razões para essa certeza, apesar de a pronúncia luso-brasileira actual apresentar tónica aberta em Lopes, etc. (No entanto, mantenho, embora com dúvida, Gotérrez, com é aberto: cfr. cast. Gutiérrez. Também Meéndiz, mas aqui por motivos de índole fonológica: qualquer que seja a realização fonética da vogal tónica nesse caso, a tendência geral do fonetismo do idioma é a neutralizar a diferença do grau de abertura em sílabas travadas pelo arquifonema consonântico nasal /N/). 1) Qualquer que seja a etimologia do sufixo patronímico -iz, -ez, -z, devemos supor, pelo menos nalguns casos, um -i nessa sílaba final; ora, o -i da sílaba final tendia a produzir normalmente o fechamento da vogal tónica, por metafonia. Assim se devem explicar formas como Pírez, Pires, Antúnez, Antunes, já documentadas em época medieval. 2) No actual português da Galiza prevalece a pronúncia com vogal tónica fechada (Gômez, Lôpez, Pêrez), que conserva seguramente a situação primitiva. 3) Nalguns casos, como Gômez ou Lôpez, não podíamos esperar outra cousa que ô fechado, pois essa vogal tónica procede de um u pré-romance (GUMA, LUPUS). Este facto prova que a pronúncia actual de Lopes com ó aberto é secundária, devida talvez a um influxo analógico das formas verbais de segunda pessoa com variação metafónica (por exemplo, corro / corres, como / comes); para que este influxo analógico chegasse a agir, terá sido condição determinante a redução do primitivo -z final a -s, que tornou o patronímico similar às formas verbais de segunda pessoa ou aos plurais dos nomes; e compreende-se que na Galiza não se tenha generalizado o passo de ô tónico fechado a ó aberto, pois é sabido que no português da maior parte da Galiza manteve-se até hoje a diferença fonológica de -z (pronunciado agora /θ/, na época medieval /dz/) frente a -s /s/.

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Afonso X o Sábio. Uso o nome do rei Sábio não na forma castelhana Alfonso mas na portuguesa Afonso (isto é, sem -l-), pois esta é a forma que apresenta sempre no texto das CSM em todos os códices (prescindindo das variantes meramente gráficas, sem valor fónico: Affonso, Afonsso, etc.); em total são 20 as ocorrências (algumas repetidas nos índices de E e T): 200A.1; 2018.80; 2142.6; 2209.1; 2235.1,6; 2243.13; 2257.6,25; 2292.41; 2328.31; 2345.11; 2358.8; 2361.16; 2367.1; 2371.10; 2386.1,10; 2398.13; 401.1 [ms. U]. Também os outros personagens que levam este mesmo antropónimo aparecem normalmente nas CSM sob a forma portuguesa Afonso, mesmo quando se trata de personagens históricos de língua espanhola, como o rei castelhano Afonso VIII, ou um andaluz e o seu neto, ambos chamados Afonso, protagonistas da cantiga 2393. A forma castelhana Alfonso aparece somente no ms. E, em total quatro vezes (mas nunca aplicada ao rei Sábio); dessas 4 ocorrências, em dois casos contamos com outro ms., que oferece a forma Afonso, de modo que não parece arriscado deduzir que também nas duas restantes passagens, para as quais E é manuscrito único, a forma correcta deve ser igualmente Afonso. Igualmente clara é a situação ao respeito nos mss. da poesia profana. Afonso Gômez, jograr de Sárria. Creio não haver razão para manter a dúvida, a respeito do nome de batismo deste trovador, entre Afonso e Álvaro. A abreviatura Aº usada no ms. é a comum nos textos medievais para Afonso, nome este que de resto era, na altura, mais frequente que Álvaro, cuja abreviatura era normalmente Aluº. Afonso Soárez Saraça. Deve interpretar-se como Saraça a lição Samça que oferecem os mss., resultado de terem os amanuenses lido erradamente como m o grupo ra, confusão que se documenta outras vezes nos cancioneiros. O apelido Saraça, ainda hoje existente de resto, está bem documentado na época medieval, incluindo a mesma pessoa do trovador; a forma correcta, segundo essa documentação, deve de ser Saraça, com -r- simples, e não Sarraça, como aparece frequentemente em fontes posteriores (por exemplo, nalguns manuscritos dos Livros de Linhagens). Airas Moniz d’ Asma. Deve considerar-se errada a leitura Asme, que se vem dando tradicionalmente ao sobrenome deste trovador, que se deve ler Asma. Por duas razões: 1) Porque no manuscrito trovadoresco aparece Asma e não Asme; e 2) Porque o suposto topónimo Asme não existe nem existiu nunca, enquanto Asma é topónimo antigo e ainda hoje bem vivo. 1) A leitura Asme é a interpretação do nome escrito por Colocci no cancioneiro B (Aýras Moniz Dasma na margem superior da página), único testemunho que conservamos do nome do trovador (pois no cancioneiro V não se nos transmitiram as suas composições, e no índice C elaborado por Colocci a partir do cancioneiro B não aparece este nome, seguramente por descuido de Colocci). Embora não seja sempre fácil distinguir na caligrafia colocciana entre -a e -e finais, no caso presente parece tratar-se efectivamente de -a, portanto Asma. 2) Asma é topónimo galego bem conhecido, documentado abundamentemente já na Idade Média, pois designava toda a comarca arredor da actual vila de Chantada, na parte meridional da actual província de Lugo. O topónimo Asma pervive hoje no nome de várias freguesias e no do rio. Pelo contrário, não parece ter existido nunca um topónimo Asme, pois o que se vinha citando como tal nos arredores do Porto parece ser na realidade Asmes, nome com que se conhecia até o começo do século XX a povoação de Ermesinde, do concelho de Valongo, no distrito do Porto. Este Asmes aparece documentado como Ázomes em época medieval, com o que se afasta ainda mais do suposto Asme. Fernám Figueira de Lemos. O apelido poderia ser tanto Figueira como Figueiro, pois a rubrica de Colocci oferece ambas as formas, duvidando de qual das duas era a correcta (Fernã figeýra V[el] figueiro de lemos). Com efeito, ambos os apelidos aparecem documentados na época medieval pela zona de Lemos. Pelo contrário, creio que se pode excluir decididamente para aquela altura a interpretação Figueiró, que por vezes se oferece, porque se procedesse do feminino lat. FICARIOLA, na zona de Lemos só poderia dar Figueiroa; e supondo que pudesse proceder do masc. FICARIOLUM, teríamos que esperar para aquela época Figueiroo com duplo -oo-.

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Dom Fernám Páez de Tamalhancos. A pesar de que os mss. trovadorescos flutuam entre Tamalancos e Talamancos, adopto a forma Tamalhancos, por ser a documentada na Idade Média. Desde então terá pervivido até os nossos dias, em que essa é a forma comum do topónimo. Dom Josep[e]. Os mss. trovadorescos apresentam sempre formas sem -e final, assim na única cantiga do trovador (núm. 1332 [= Tav 30,35], «– Vós, Dom Josep[e], venho_eu preguntar» (Be 1315, V [920], uma tenção em que o trovador Estevam da Guarda interpela o judeu Dom Josepe) como nas duas ocorrências deste antropónimo nas CSM (2414.12; 2420.19, aqui Joseph). Por razões de índole fonológica essa forma deveria ser interpretada quer como José, forma bissilábica, quer como Josepe, trissilábica (cfr. ital. Giuseppe). Mas a métrica exige uma forma trissilábica Josepe. Com efeito, Josepe é a forma que devemos ler nas três passagens em que tal antropónimo ocorre na poesia profana. Apesar de que ambos os mss. apresentam nos três versos em que aparece o nome (vv. 1, 15, 36) a forma Josep, já Lapa, ao editar a cantiga, advertia: “Mantemos a forma tal qual se acha nos textos, mas deveremos ler Josepe, com 3 sílabas” (Lapa, CantEsc 2ª ed. (1970), cantiga núm. 126, pág. 203). Ademais de a forma Josep ser, como já fica advertido, contrária à estrutura fonológica do idioma, neste caso contradiria a medida silábica da composição (especialmente no v. 15: “Dom Josep[e], tenho por sem-razom”, que tem que ser decassílabo agudo; nos outros dois versos é também Josep[e] a leitura aconselhável, mas não se apresenta tão segura). De resto, não parece justificado mantermos (como vimos faz Rodrigues Lapa) a forma gráfica Josep, que introduz uma desnecessária incoerência entre fonetismo e sistema ortográfico, e dessarte pode induzir a error leitores desprecavidos. No que diz respeito às CSM, o mesmo argumento métrico aplica-se a 2414.12 (“a Josep[e], com que foi esposada”, verso decassílabo grave); na outra passagem em que ocorre o vocábulo (2420.19: “E bẽeita u fuste com Josep’ esposada”, verso paroxítono de 13 sílabas) o contexto fónico, que em teoria permitiria tanto a elisão da vogal final (“com Josep’ esposada”) como a aférese (“com Josepe ‘sposada”) ou mesmo o hiato (“com José esposada”), torna ambígua ou indiferente a interpretação da palavra como bissilábica ou trissilábica, embora esta segunda, portanto com elisão ou aférese, pareça mais acorde com a lição manuscrita. Dom Lopo Lias. Carece de fundamento a leitura Liáns (ou a equivalente Liãs), proposta por Pellegrini e aceitada por vários autores depois, em vez de Lias. Lias (com tonicidade na sílaba inicial: /’li-as/) é apelido bem documentado na época medieval na Galiza, e ainda hoje vivo. O nome da actual freguesia galega Liáns, com o qual Pellegrini sugeria identificar o apelido do trovador, deve de proceder de LINALES ‘terrenos dedicados ao cultivo do linho’ (como o próximo topónimo Feáns procede de FENALES ‘campos de feno’), e na época trovadoresca tinha que ser Liães, não ainda Liáns. De resto, Lias aparece na documentação medieval como variante do antropónimo Elias, com aférese de e- inicial que vemos noutros casos: nas próprias cantigas trovadorescas achamos (Sam) Leuter ‘(Santo) Eleutério’, e na língua popular temos ainda hoje formas como limento ‘elemento’, liminar ‘eliminar’. O apelido Lias é um patronímico, e não importa que não possua o sufixo patronímico característico -z, pois desde tempos medievais aparecem também em função de apelidos patronímicos os mesmos nomes de batismo (originariamente precedidos da preposição de, indicando paternidade): nos próprios textos trovadorescos temos, por exemplo, “Martim Marcos” (1667.1) ou “Mari Mateu” (1593.1, 6R). Martim Codax. É duvidoso como deva interpretar-se fonicamente o sobrenome Codax: não parece admissível para a época uma pronúncia /’kodaks/ ou /’kɔdaks/, como se vem fazendo, pois nem a tonicidade na sílaba inicial nem o grupo /ks/ final seriam normais no sistema fonológico da língua naquela altura. Talvez devamos interpretá-lo como Codaz (portanto, palavra oxítona), como aparece de facto numa rubrica do cancioneiro V. Martim Moxa. Adopto a forma Moxa, que, como é sabido, as rimas confirmam: aparece (em 1471.7) em rima com roxa adj. f. Talvez a variante Moya dos mss. deva interpretar-se, na realidade, como erro dos copistas (explicável porque nalguns tipos de escrita medieval era fácil confundir x com y, confusão de que podem citar-se exemplos). 11

Na época medieval documenta-se repetidamente nos meados do século XIV um Martim Moxe, arcediano da catedral de Ourense, que nos sentiríamos tentados a identificar com o trovador. Não faltam indícios nesse sentido na sua obra poética. E, em qualquer caso, se a sua tenção «– Vós que soedes em corte morar» (V [472] = [B 1427], V [1036]), cantiga 879 [= Tav 88,18 (= 94,20)], foi, como parece mais provável, com o conde Dom Pedro, a sua cronologia deve de andar, como também a de Joám de Gaia (que o cita na cantiga 1471, em rima, como vimos), perto dos meados do século xiv. De qualquer modo, nesses documentos aparece claro o apelido Moxe, com -e final, de modo que uma identificação com Moxa não parece fácil de explicar; talvez esse Moxe deva ler-se realmente Moxé, e poderia tratar-se então de um judeu (mas também a obra de Martim Moxa poderia mostrar alguns indícios de o seu autor ser judeu...). Meendinho. Adopto a forma Meendinho, com dois -ee-. Ademais de ser a forma etimológica, é a única que aparece nos manuscritos. Meendinho não é uma alcunha (como é Golparro, por exemplo), mas um nome normal e corrente na época (Meendo) em forma diminutiva. O antropónimo masculino Meendo, como é sabido, procede de Hermenegildus, através de uma forma aferética Menegildus, que se variou de diversos modos: por assimilação consonântica em Menegindus, e por metátese em Melegindus. Daí saíram regularmente a forma portuguesa Meendo (e daqui o patronímico Meéndiz, Meéndez, Méndez, Mendes) e as castelhanas Menendo e Melendo (donde os patronímicos espanhois Menéndez, Meléndez, Meléndrez). [Vid. Ramón MENÉNDEZ PIDAL, «Menéndez, Méndez, Mendes», em: Nueva Revista de Filología Hispánica (México) 3 (1949), pp. 363-371. Reproduzido logo na sua colectânea de estudos: Ramón MENÉNDEZ PIDAL, Estudios de lingüística (Las leyes fonéticas, Menendus, El diccionario ideal, y otros), Editorial Espasa-Calpe (Colección «Austral», núm. 1312), Madrid 1961, 148 pp., pp. 33-57]. Nos mss. o nome do nosso trovador ocorre três vezes, as três de mão de Colocci. Aparece em B e V antes da cantiga, em função de rubrica atributiva, e em C –que, segundo o que parece mais seguro, é um índice dos autores de B elaborado por Colocci para o seu uso pessoal, e portanto sem pretensões de grande escrupulosidade– em correspondência ao número 852. Assim: Bz 852.0 Meendinho = C 852 Meendinho = Vz [438].0 Meendinho.

Como se pode ver, nas três vezes apresenta a mesma forma: Meendinho. Pero de Berdia. O nome do trovador aparece em total 6 vezes nos mss.: 4 vezes Berdia, e 2 Bardia. Esta segunda forma talvez seja simplesmente um erro (ar por er). Assumo como mais provável que esse topónimo é a freguesia de (Santa Marinha de) Berdia (com tonicidade na sílaba di: /ber’dia/), freguesia rural pertencente ao concelho de Santiago de Compostela e situada a poucos quilómetros para norte da cidade, na beira esquerda do rio Tambre. Um Berdia documenta-se na época medieval num testamento de um cónego de Santiago, como apelido ao parecer toponímico de um “Johannis de Berdia” (ano 1283); tudo parece indicar que se refere ao nome da freguesia de que vimos falando. Não parece que Berdia possa ter relação com verde, por causa do B- inicial. (A grafia Verdia que alguma vez se usa não terá, pois, maior fundamento histórico). A ermida de Santa Marta a que o trovador se refere repetidamente nas suas cantigas (1120.19; 1121.8; 1123.11) deve de ser a capela dessa advocação que se acha saindo de Santiago em direcção a Pontevedra: hoje ficou englobada dentro da cidade, e até foi constituída recentemente em paróquia urbana, mas antes era uma ermida rural, situada num pequeno outeiro, e lugar de romaria para as gentes dos arredores de Santiago. Pero Dornelas. Dado que não parece documentar-se em época medieval um apelido ou um topónimo Ornelas, será preferível adoptar como apelido deste trovador não d’Ornelas, como se vem fazendo, mas Dornelas, topónimo e nome de família bem conhecidos. Veja-se o que escrevia Leite de Vasconcelos: “Ornelas provém de Dornelas, que foi mal interpretado como d’ Ornelas. [...] Dornelas, nome de várias povoações, é deminutivo de Dornas, nome de outras” (José LEITE DE VASCONCELOS, Antroponímia portuguesa, Lisboa 1928, p. 170). Pero Moogo. À vista da grande quantidade de ocorrências do apelido Moogo nas colecções documentais dos séculos XIII-XIV, aplicado a diversos indivíduos (entre os quais vários Pedro Moogo), e da ausência de Meogo, parece pouco provável que o apelido deste trovador seja Meogo como se vem interpretando comummente. 12

De resto, para a leitura Moogo oferecem suficientes indícios os mesmos mss. trovadorescos. c) Individuação de alguns trovadores Assumo que são pessoas diferentes: - Afonso Fernández Cebolhilha e Afonso Fernández Cubel - Estevam Faiám e Dom Estevam Pêrez Froiám - Fernám do Lago e Fernand’ Esquio. E que são a mesma pessoa: - Pero Garcia d’ Ambrõa e Pero d’ Ambrõa - Roi Fernández e Roi Fernández de Santiago.

B) Critérios para a apresentação editorial das cantigas Formulo agora os principais critérios que me guiaram na apresentação editorial das cantigas. Os distintos aspectos visados nesta tarefa ecdótica vão apresentados aqui segundo a ordem em que aparecem na edição do texto das cantigas. (Ademais de na tese de doutoramento dantes citada, expus anteriormente estes critérios de apresentação editorial das cantigas trovadorescas no meu trabalho «A cantiga “Dissérom-m’ hoj’, ai amiga, que nom” (Bc 838, V [424]), de Paai Gômez Charinho (+ ca. 1295), e a expressom jogar bem / mal (a alguém)», em: Agália (A Corunha), núm. 29 (Primavera 1992), pp. 61102. [Publicado também em separata, com paginação independente (pp. 1-42) e índice (pág. 43)]). 1) Numeração das estrofes Numero as estrofes, como costuma fazer-se habitualmente: por meio de números romanos (I, II, III...), que assinalam o início da estrofe. Vão colocados na margem esquerda do texto, no começo da linha correspondente ao primeiro verso da estrofe respectiva (antes do número – arábigo– correspondente a este, se é o caso de que apareça nessa ocasião). 2) Numeração dos versos Prefiro assinalar explicitamente a numeração dos versos com mais abundância do que é usual em editores de textos poéticos: em vez da habitual numeração de cinco em cinco (5, 10, 15, 20...), adopto numerar os versos alternadamente (1, 3, 5, 7..., ou então 2, 4, 6, 8..., segundo os casos). Nada se perde com esta numeração explícita, e a experiência ensina que com isso o leitor pode ganhar em comodidade, e a exposição em claridade. 3) Os encontros vocálicos A experiência comum diz que na leitura da poesia trovadoresca o carácter monossilábico ou polissilábico dos encontros vocálicos costuma constituir uma dificuldade. A este propósito pareceu-me que podia resultar útil para alguns leitores alvitrar um sistema de edição que deixe claro –se não em todos os casos, pelo menos nos mais problemáticos– se os encontros vocálicos, quer intravocabulares quer intervocabulares, constituem uma única sílaba (ditongo ou sinalefa) ou mais de uma sílaba (hiato). Encontros vocálicos intravocabulares. Nesta edição digital, por motivos práticos não se adopta sinal especial para indicar a natureza do encontro. No entanto, como se emprega o acento gráfico naquelas mesmas circunstâncias em que o usa o sistema ortográfico português actual (por exemplo, sa-í-da), a maioria dos casos resultam claros. Encontros vocálicos intervocabulares. Se há sinalefa silábica entre as vogais final de uma palavra e inicial da seguinte, indica-se no mesmo texto mediante uma raia que na base da linha une as duas palavras em foco; por exemplo, mi_há, no-no_hei. Se, pelo contrário, não aparece nenhuma raia entre dous vocábulos contíguos nessas condições quer dizer que entre eles há hia13

to vocálico: é o que acontece na imensa maioria dos casos, pois, contrariamente ao que acontece na língua moderna, a nossa língua medieval mostra uma clara preferência pelo hiato (ou, se não, pela elisão) frente à sinalefa. 4) Métrica e versos A distribuição espacial dos versos no conjunto da cantiga intenta dar uma imagem visual da medida relativa de cada um deles: os versos de igual medida silábica começam à mesma altura da linha, e os de diferente medida, em altura diferente; e o ponto de início corresponde aproximadamente às diferenças de medida. Portanto, evito sistematicamente dar mais margem ao refrão, contrariamente ao que é habitual fazer: o lugar de início dos versos do refrão corresponderá à sua medida silábica; que se trata do refrão ficará claro pelo facto de aparecer em itálico, como mais abaixo explico. Dois problemas que afectam a conformação dos versos (e portanto também a estrutura estrófica) são: 1) se na nossa poesia trovadoresca existe o que se chama comummente «rima interna»; e 2) se existem versos carentes de rima. Por «rima interna» entende-se aqui aquela rima que aparece no interior do verso de maneira mais ou menos regular e sistemática dentro de uma composição, não só de modo ocasional ou esporádico. A situação depende, em ambos os casos, do isossilabismo dos versos, e resume-se em que, se damos sistematicamente a preferência ao isossilabismo, aparecem, por uma parte, casos de «rima interna», e, por outra, versos carentes de rima. A este respeito é possível adoptar um dos dous seguintes critérios antitéticos: pode-se, por um lado, dar preferência efectivamente ao isossilabismo (mesmo admitindo nalguns casos um isossilabismo não matematicamente exacto mas só aproximado) ainda que isto obrigue a aceitar por razões métricas a existência quer de versos sem rima quer de versos com rima interna sistemática; ou pode-se, por outro lado, dar preferência à rima por cima do isossilabismo, ainda que isto obrigue a renunciar à igualdade métrica de uma composição, quer constituindo versos mais longos ali onde não exista rima quer fazendo versos mais curtos onde apareça «rima interna». Para dizê-lo em poucas palavras: trata-se de escolher ou isossilabismo por cima da rima, ou, ao contrário, rima por cima do isossilabismo.Vista esta situação, e já que estamos na necessidade de optar aceitando uma norma directriz prática, a rima parece, em princípio pelo menos, o critério mais seguro, por cima da medida silábica. Foi esse mesmo o critério assumido também para a poesia trovadoresca provençal por István Frank, que o formulou concisamente no seguinte princípio –perfeitamente aplicável ao nosso caso, segundo creio–: “Não existe, quanto a nós, nem rima sem verso nem verso sem rima” (István FRANK, Répertoire métrique de la poésie des troubadours: Tome premier: Introduction et répertoire, Paris: Librairie Honoré Champion Éditeur, 1966, p. XXX da «Introduction»: “nous pensons que le seul moyen utilisable dans un classement méthodique est de considérer comme vers chaque suite de syllabes terminée par une rime. Il n’existe, pour nous, ni rime sans vers ni vers sans rime. [...] Inversement, nous sommes obligé de contracter deux vers, apparament indépendants, si le premier ne comporte pas de rime”). O critério que aqui adopto como dominante é, pois, o de dar preferência à rima em todos os casos possíveis, renunciando à igualdade métrica quando para isso for necessário. Assumo, pois, como soluções aos dois problemas metodológicos antes enunciados sobre a conformação dos versos as seguintes: 1) Excluirei a «rima interna» sistemática (neste âmbito só falarei de «rima interna» quando se tratar de fenómenos ocasionais de coincidência de rima, não regulares mas esporádicos). 2) Evitarei os versos carentes de rima, sempre que a estrutura estrófica o permita. 5) O refrão O texto dos versos que constituem o refrão apresenta-se em itálico, e igualmente os números que a tais versos se referem. Em texto que não pertence ao refrão evito o uso da letra cursiva. Portanto, contrariamente ao método seguido por alguns editores da nossa poesia trovadoresca, não indico as letras correspondentes a abreviaturas usadas nos manuscritos, porque penso que devem considerar-se factos de natureza meramente paleográfica que não afectam o texto linguístico-literário em si mesmo. De modo semelhante, contrariamente ao hábito mais divulgado, evito transcrever em itálico os títulos (ou íncipit) das composições. Em vez disso, seguindo uma praxe habitual na meto14

dologia das citações de títulos não autónomos mas integrados num conjunto, emprego para esse fim as aspas « ». Ademais de permitir identificar as cantigas com refrão inicial, e de resultar mais coerente com as normas da metodologia geral, este sistema das aspas evita algumas ambiguidades; por exemplo, demarca claramente o princípio e o fim do título quando se citam numa série seguida os íncipit de várias cantigas. Como já adverti ao tratar da métrica, o ponto de início dos versos do refrão é o correspondente à sua medida silábica, como nos restantes versos. Uma advertência especial exige a edição do refrão nas Cantigas de Santa Maria. Nas cantigas narrativas das CSM não será necessário reproduzir o refrão entre as estrofes, o qual por vezes interrompe mesmo a estrutura sintáctica das frases (caso de encavalgamento sintáctico interestrófico, relativamente frequente nas CSM). Bastará com trascrevê-lo completo no início e no fim da composição. Entre as estrofes será suficiente remeter abreviadamente para a primeira vez em que aparece (no começo da cantiga); no entanto, na numeração dos versos parece-me mais conveniente reservar sempre aos versos do refrão os correspondentes números também em cada estrofe interior, para desse jeito acomodar a numeração à estrutura interna da composição, e, ao mesmo tempo, manter identidade de critério com a poesia profana (na qual, de regra, não seria legítimo deixar de repetir o refrão cada vez). Pelo contrário, nas cantigas de louvor das CSM não há razão para não repetir íntegro o refrão cada vez que ocorre, como se faz habitualmente nas restantes cantigas de refrão da poesia trovadoresca profana. 6) Palavras rimantes repetidas Assinalo em negrito as palavras rimantes repetidas de maneira sistemática (isto é: nos artifícios poéticos do «dobre» e da «palavra-rima»), a fim de que assim se perceba melhor a regularidade do artifício, procurado conscientemente pelo trovador.

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