Canto sem palavras: a música do filme São Bernardo (Leon Hirszman, 1972)

May 27, 2017 | Autor: Guilherme Maia | Categoria: Film Studies, Analysis of Film Music, Film Music
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CANTO SEM PALAVRAS: A MÚSICA DE SÃO BERNARDO
http://www.ufrb.edu.br/cinecachoeira/2013/05/canto-sem-palavras/

Por Guilherme Maia
 
A presença do compositor e intérprete Caetano Veloso em trilhas sonoras pode ser medida por uma rápida consulta ao Internet Movie Database: Caetano tem o nome citado em 84 títulos, entre documentários e obras de ficção para cinema e televisão. Na maioria dos casos, as citações se referem ao uso de canções não compostas especificamente para o produto, mas o trabalho autoral de Caetano Veloso, no âmbito de composições para filmes, séries e novelas, também aparece em destaque. Colocamos aqui em foco o trabalho autoral de Caetano Veloso para o cinema e, em relevo, a música original de São Bernardo (Leon Hirszman, 1972), por considerarmos esse filme um espécime raro no reino da música para cinema.
Em uma perspectiva geral, a obra de Caetano Veloso para filmes se alinha com a forte tradição cancionista do nosso cinema, que, como sabemos, sempre teve a canção popular como importante aliada. Os estudos de natureza histórica sobre o cinema e sobre a canção popular no Brasil convergem plenamente na constatação da existência de uma relação quase ontológica entre as imagens em movimento, as palavras cantadas e o público espectador. José Ramos Tinhorão (1972), nos diz que as relações entre o cinema e a música popular, no Brasil, começaram com os primeiros filmes produzidos no Rio de Janeiro, logo no início do século. Tinhorão fala do sucesso dos famosos filmes cantantes, filmes de curta duração nos quais cantores e cantoras, situados atrás da tela, dublavam ao vivo performances filmadas. Jairo Severiano (2008) nos conta que o primeiro longa metragem brasileiro inteiramente falado, cantado e sonorizado com ruídos foi a comédia musical Acabaram-se os otários (Luís de Barros, 1929), que apresentava as canções Bem-te-vi e Sol do sertão, compostas por Paraguassú, além do futuramente célebre choro "Carinhoso", de Pixinguinha, ainda sem letra. Severiano não deixa de mencionar o fato de que Acabaram-se os otários foi um sucesso, tendo sido assistido, só na primeira semana, por 35 mil espectadores. Da mesma forma, O pesquisador Fernando Morais da Costa confirma o sucesso da parceria entre canção popular e cinema na gênese do nosso cinema sonoro:
"Em 23 de novembro de 1931, estreava no Cine Rosário Coisas nossas, sempre reconhecido como o primeiro grande sucesso do cinema sonoro brasileiro. (…) O Estado de São Paulo o anunciaria como 'a consagração definitiva da indústria brasileira de filmes. O maior recorde de bilheteria deste ano, incluindo filmes de todas as procedências e nacionalidades'. Dirigido pelo norte-americano Wallace Downey, Coisas nossas contava com a popularidade do cantor de modinhas Paraguassú". (COSTA, In MACHADO et al., 2006: 44)
É clara também a importância da canção popular nos esforços para a implantação de um cinema industrial no Brasil. Segundo consulta ao livro Cinema Brasileiro 1908 – 1978, escrito por Araken Pereira Jr., os compositores mais citados nas fichas técnicas dos filmes da Cinédia são os que têm atividade centrada na canção popular, os hit makers da época, como Lamartine Babo, Noel Rosa, Assis Valente, Custódio Mesquita, Ary Barroso, João de Barro, Dorival Caymmi, Hervê Cordovil e Antônio Nássara. Fenômeno semelhante pode ser também facilmente observado na chanchadas musicais da Atlântida e nas muitas canções dos filmes da Vera Cruz, da Cinedistri e da Mariestela. Sabemos também, por experiência e memória, que tanto o nosso cinema moderno quanto o contemporâneo são fortemente marcados pela presença massiva de canções.
No conjunto da obra, a produção de Caetano Veloso para cinema não foge à regra, o que pode ser comprovado já em sua primeira experiência na composição de música para cinema, no filme Proezas de satanás na Vila de Leva-e-trás (Paulo Gil Soares, 1967), e pelas suas muitas e belas canções-tema, como "Pecado original", em A dama do lotação (Neville D'Almeida, 1978), "Luz do sol", em Índia, a filha do sol (Fábio Barreto, 1982), "A voz amada", em O Quatrilho (Fábio Barreto, 2012) e, entre muitas outras que poderíamos citar, a canção "Reis e Ratos", seu trabalho mais recente, composta para o filme homônimo dirigido por Mauro Lima, e lançado em 2012.
Canções são seres híbridos, compostos de palavra e melodia e, mesmo reverentes à riqueza melódica das canções compostas por Caetano Veloso, temos que nos render à evidência de que a fortuna simbólica por ele acumulada ao longo da carreira paga elevados tributos à qualidade literária de suas composições. Ao ouvir Caetano, saboreamos belas melodias, decerto, mas grande parte do encanto de suas canções reside no domínio das palavras cantadas. Um brevíssimo, mas emblemático, exemplo do encanto do qual aqui falamos pode ser saboreado em uma das rimas mais sagazes da nossa canção popular: "Pena de pavão de Krishna, maravilha, vixe Maria mãe de Deus".
Na música que compôs pra o filme São Bernardo, entretanto, Caetano Veloso não utilizou uma palavra sequer. Adaptação para as telas do célebre romance de Graciliano Ramos, escrito no contexto da segunda fase do Modernismo brasileiro, quando muitos artistas se voltam para as temáticas sociais com foco nos problemas do Nordeste do país, o filme São Bernardo, dirigido por Leon Hirszman e estrelado por Othon Bastos e Isabel Ribeiro, mostra na tela uma história densa, narrada em primeira pessoa por Paulo Honório, o protagonista, que conta sua vida em retrospectiva. Uma infância difícil, um tempo na prisão, a vida como biscateiro pelo sertão após a liberdade, o início do sucesso como negociante, a compra da fazenda São Bernardo, o assassinato do rival, a prosperidade financeira, o casamento com Madalena, os desentendimentos do casal, o ciúme atormentado do protagonista, o suicídio da esposa, a ruína financeira e a solidão de um homem que vemos ao final atormentado pelas memórias.
Uma vida bruta, em um ambiente hostil, eivada de sofrimento e com final trágico, nos é mostrada pela via de uma montagem audiovisual em adágio, fortemente ancorada em um regime épico, no qual as belas imagens produzidas pela fotografia de Lauro Escorel muitas vezes ilustram o que a voz over enuncia. A música que participa desse jogo é um constante lamento vocal sem palavras que provoca algumas interessantes reflexões.
O material musical utilizado na música do filme é mínimo. De modo predominante, o que se ouve é somente a voz de Caetano Veloso ora em solo, ora a duas ou três vozes, entoando melodias nos modos característicos da música do Nordeste brasileiro – o mixolídio e o dórico. Algumas poucas vezes, o canto é acompanhado por um discreto bordão grave. Ao invés de palavras, a voz nos oferece apenas fonemas com uma entonação anasalada que remete diretamente à sonoridade dos repentistas e cantadores do sertão. Em uma primeira leitura, vemos que a conexão entre o que vemos e ouvimos, no que diz respeito à representação de mundo construída pelo filme, é óbvia e não foge ao padrão dominante, isto é, a música operando na dimensão que Claudia Gorbman (1987), falando sobre as funções da música no cinema clássico, classifica como narrativa referencial, um índice do tempo e do lugar construídos pela narrativa. É interessante, todavia, observar a música deste filme sob outras perspectivas.
Um primeiro aspecto a ser observado é o caráter idiossincrático da música que, mesmo em relação ao cinema contemporâneo, conserva um acentuado frescor de originalidade. É possível afirmar, sem grandes riscos, que a opção do compositor por um canto modal sem palavras e acompanhamento, sempre em andamento lento e permeado por silêncio, com uma textura polifônica bem próxima do estilo medieval, faz de São Bernardo um filme singular no mundo da música para cinema.
Na dimensão da montagem, observa-se que, na maioria das vezes em que a música é utilizada, isso se dá em conjunção com a voz do narrador. Apenas na abertura e em dois momentos da seção final do filme ouvimos a música em primeiro plano, sem a presença da voz over. É possível perceber também uma analogia entre os passos da montagem e os andamentos da músicas, sempre lentos, muitas vezes em tempo rubato, isto é, sem uma pulsação regular. Da mesma forma como acontece com os planos que se sucedem sem pressa, oferecendo ao espectador a oportunidade de saborear em cada um deles a direção de arte e a fotografia. No canto predominam notas longas, movimentos melódicos mínimos e silêncios.
O filme, portanto, faz um uso muito moderado de música em primeiro plano, optando por fazê-la operar sempre em conjunção com a narração. A rigor, desconsiderando a sequência dos créditos iniciais, a decupagem da trilha sonora nos mostra que a música é oferecida à escuta sem a presença da voz do narrador durante pouco mais de três minutos ao longo de quase duas horas de filme. Cabe aqui uma aposta inferencial de que o compositor tenha optado por não acrescentar palavras em um filme tão agudamente dominado pelas falas da narração e dos diálogos, bastante fiéis ao texto original, ademais.
De modo curioso, todavia, é uma música que, mesmo operando na maior parte do tempo como pano de fundo da narração over, chama atenção sobre si e goza de uma importante autonomia em relação ao drama. Não é uma unheard melody, como diz Claudia Gorbman (1987): ao contrário de uma fusão estrutural com a progressão dramática que faz com que a música opere em uma espécie de background perceptivo subserviente aos acontecimentos da encenação, em São Bernardo a música, pelo caráter incisivo da sua presença e por sua operação "descolada" da microtextura da trama, pode ser considerada uma estratégia de distanciamento. Isso não quer dizer que ela seja completamente indiferente ao fluxo de emoções da narrativa. Podemos observar que é ligeiramente mais ágil e alegre logo após o casamento de Paulo Honório e Madalena. A nota aguda solitária em falsete que antecipa em poucos fotogramas a informação de que Madalena está morta também é prova de que o filme, em alguns momentos, recorre à música em uma dimensão sentimental aderida ao fluxo dramático. De um modo dominante, entretanto, percebe-se nela um caráter estático do ponto de vista retórico – o centro estável da música modal e o uso constante de notas longas, sustentadas, em muito contribuem para isso. O que ouvimos, em uma macro escuta, é um longo sintagma de lamento conectado, certamente, com a tristeza e a desesperança que emana da fábula, mas, ao mesmo tempo, com autonomia em relação à progressão dramática. Não há crescendos nem mudanças harmônicas rítmicas ou melódicas subordinadas às filigranas do drama. A música opera em um regime de sentido que se articula mais com a sensação e o sentimento que emergem do filme como um todo do que com o fluxo dos acontecimentos ponto a ponto. Mesmo nos exemplos citados de momentos onde pode ser percebida um interação direta entre a música e a progressão dramática, isso acontece, via de regra, em uma dimensão minimalista.
São Bernardo é um clássico do cinema moderno brasileiro, que clama por ser visto pelas novas gerações. Um drama psicológico em um panorama de tensão social, mostrado para o espectador em regime de direção rigoroso e contido, prenhe de beleza plástica e de reverência ao texto original de Graciliano Ramos, interpretado por atores do quilate de Othon Bastos, Isabel Ribeiro e Vanda Lacerda. Se não por tudo isso, São Bernardo precisa ser apreciado para entendermos que a composição de música para filmes sempre poderá trilhar caminhos criativos e singulares, explorando o infinito campo das possibilidades de beleza e de articulação com o tecido dramático que ela pode oferecer a um filme.
Basta querer e poder ousar.
 
Guilherme Maia é músico e Professor da Facom e do Póscom (UFBA), Mestre em musicologia, Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas.
 
 
BIBLIOGRAFIA
COSTA, Fernando Moraes da. Início do cinema sonoro: a relação com a música popular no Brasil e em outros países. In MACHADO, Rubens; SOARES, Rosana e ARAÚJO, Luciana (orgs.). Estudos de Cinema Socine. São Paulo: Annablume, 2006
GORBMAN, Claudia. Unheard Melodies: Narrative Film Music. London: BFI, 1987.
PEREIRA JR., Araken. Cinema Brasileiro (1908 – 1978). Vol. I e II Casa de Cinema, Santos, 1979.
SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular basileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008.
TINHORÃO, J.R. Música popular: teatro e cinema. Petrópolis: Vozes, 1972.


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