Caos e nada no Gênesis bíblico

July 25, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Ontologia, Cosmologia, Cosmogènese, Mitos de criação
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CAOS E NADA NO GÊNESIS BÍBLICO por Waldísio Araújo Temos uma tendência cultural muito forte a confundir os termos “caos” e “nada” e mesmo a tratá-los como sinônimos, em grande medida devido a uma leitura ambígua do livro bíblico do Gênesis, no qual cremos tradicionalmente registrar-se uma criação universal a partir do puro nada. Com efeito, já nos dois primeiros versículos, Deus aparece a criar céu e terra aparentemente “do nada”, sendo a terra “informe e vazia”, imersa em águas abissais sobre as quais o espírito de Deus pairava. Somente a partir do terceiro versículo se passa à narração dos seis dias de criação, e voltase a relatar a formação do céu, o que indica que os Jardim das delícias, de uma janela pintada por Bosch, dois primeiros versículos eram apenas uma cerca de 1485. O universo bíblico foi organizado pelo isolamento e proteção da terra frente a um caos apresentação geral do tema do primeiro capítulo – “aquático” exterior. que se desdobra no surgimento da luz (versículos 3-5), do céu (6-8), dos mares e dos vegetais (913), dos astros (14-19), dos animais aquáticos e aéreos (20-23), dos animais terrestres e do homem (24-31). O que jamais se narra, contudo, é a criação daquelas águas sobre as quais o espirito de Deus pairava e nas quais a própria terra, como um instável lamaçal, mergulhava de forma confusa, informe, inóspita, caótica. A criação cósmica consiste justamente em tornar habitável e habitado este pântano, drenando-o, isolando-o e protegendoo das águas primordiais. Para tanto cria-se do nada uma grande cúpula (o céu) que o isola e, em seguida, juntam-se em certas regiões (os mares) as Reconstituição do cosmos judaico segundo o primeiro águas que estavam em contato direto com a capítulo do Gênesis, por Waldísio Araújo. Não se substância terrestre, tornando-a doravante seca e menciona a natureza das “águas exteriores” a esse cosmos, mas seu caráter caótico sugere que o termo é estável, permitindo o surgimento e manutenção da apenas evocativo de uma indeterminação irredutível a vida. Todo o resto do trabalho foi simplesmente o conceitos e nomes. de povoar esse “sistema” (ver imagem ao lado) com os seres astrais, vegetais, animais e humanos, definitivos habitantes desse universo ordenado e protegido por seu criador. Portanto, o que precede e envolve a criação bíblica não é o “nada”, embora tampouco pareça ser um algo bem definido pelo termo “águas” – que provavelmente apenas busca simplificar numa palavra a ideia de uma indeterminação fundamental e evocar o caráter abissal, confuso, ignoto, turbulento e

invasivo desse “algo” contra cuja eterna ameaça o próprio Deus trabalhou. Acresce que a divindade exerce total controle sobre sua criação, a ponto de poder a qualquer momento decidir-se por romper as muralhas celestes de contenção e, com isso, ameaçar a própria vida criada, como no Dilúvio, esse espantoso retorno das águas primordiais monitorado por Deus: (…) naquele mesmo dia se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas do céu se abriram, e houve chuva sobre a terra quarenta dias e quarenta noites. (Gênesis, 7:11-12. Trad. Almeida, segundo o site Bíblia Online)

É verdade que o Gênesis admite alguma criação ex-nihilo (“do nada”), como expresso nos imperativos divinos iniciados por “Faça-se…“, que não insinuam uma plasmação da matéria-prima para fazer-se a luz, o céu, os astros e os seres vivos (com exceção do homem, criado pela manipulação do barro): dizer-se que se criou do nada um céu para que se separassem as águas superiores das inferiores não implica postular um “nada” preexistente ao universo (no tempo) ou exterior a ele (no espaço), até porque parece fraca a imagem de um deus que se ocupasse em proteger de nada a sua criação. De qualquer modo, as criações bíblicas ex-nihilo dão-se sempre sobre um fundo caótico cuja onipresença se busca ativamente conjurar. Se esse caos é uma mistura confusa de seres ou se é simplesmente o absolutamente Indeterminado e, portanto, o Incognoscível, não o sabemos. O importante, aqui, é que isso nos permite sempre imaginar o espírito de Deus a mirar-se na superfície de águas provavelmente tão incriadas e imperecíveis quanto ele. Essa permanência eterna e externa do caos, tão visível nos primeiros tempos das mitologias e cosmologias do Oriente Próximo e do mundo greco-romano, tem sido, contudo, banida, ocultada e mesmo negada pelas religiões, filosofias e ciências desde quase o final da Antiguidade clássica. A insistência em confundir-se como sinônimas as noções de caos e de nada é apenas uma das formas históricas desse ocultamento. Veremos oportunamente o quanto este é perigoso e estagnante para a civilização. Waldísio Araújo [email protected]

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