Capitalismo e destruição da aura: a tarefa da tradução e sua sobrevivência

May 31, 2017 | Autor: Helano Jader Ribeiro | Categoria: Walter Benjamin, Nachleben, Tradução
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Nesta instância, fato que parece paradoxal para o pensamento de Benjamin: a complementaridade da visão materialista da história através da visão messiânica é a explicação para um pensamento que não é transcendente, mas assume um tempo de agora como modelo messiânico que abarca num resumo a história da humanidade. No mundo messiânico não há um espécie de télos a ser atingido, mas o que ocorre é essa suspensão do continuum da história.
Capitalismo e destruição da aura: a tarefa da tradução e sua sobrevivência

Dr. Helano Jader Ribeiro

RESUMO: A reprodução da obra de arte se relaciona com a sua autenticidade. Para Walter Benjamin, por mais perfeita que fosse a cópia, seria impossível igualar-se à obra de arte original, ou seja, a reprodução não capta totalmente o Jetztzeit [tempo de aqui e agora], proposto por Benjamin, de uma obra de arte. Nesse sentido, é objetivo desse trabalho pensar a tarefa do tradutor elaborada por Benjamin. A tradução, assim, se revela potente em memória, visto que ela assegura a sobrevivência da obra original. Mas o que podemos entender por obra original se essa mesma se modifica no momento em que sua tradução nasce?

Palavras-chave: Walter Benjamin, aura, sobrevivência


Assim como as imagens vivem, a tradução também o faz. Ambas são feitas da matéria de memória, ou tempo e história. Potentemente, assim, tradução e imagem possuem uma vida, ou melhor, sobrevivência, elas estão prestes, constantemente, a se revelarem como sintoma, através de jogos de aparição e desaparição. Esse sintoma se apresenta como uma abertura dessas mesmas imagens e de seu contato com a história, ele é o fragmento, a quebra do tempo linear, que, assim, se esparrama em uma multiplicidade de tempos que olham para o passado e são impelidos para o futuro.
São as sobrevivências na história que carregam essa energia, a potência das ruínas, ou o que insiste em ser no tempo de aqui e agora. A memória apaga o grande salto que separa passado e o presente. O historiador da arte Aby Warburg mostra que o símbolo, de alguma forma, dissolve a tensão entre passado e futuro, destruindo o continuum da história, ou seja, esse símbolo transeunte é o que Warburg chama de Nachleben [sobrevivência]. Ao investigar a recorrência de antigas formas de movimento expressivo nos quadros de Botticelli, de gestos dotados de um pathos que se refere a uma linguagem mímica cuja migração histórica e geográfica é possível acompanhar, Warburg começa a ver a história da arte em termos de uma memória errática de imagens que regressam constantemente como sintomas que vão e retornam.
A reprodução da obra de arte se relaciona com a sua autenticidade. Para Walter Benjamin, por mais perfeita que fosse a cópia, seria impossível igualar-se à obra de arte original, ou seja, uma obra reproduzida não capta totalmente o Jetztzeit [tempo de aqui e agora], proposto por Benjamin, de uma obra de arte. Já a reprodução técnica possui maior autonomia do que a reprodução manual, por isso, para ela, o objeto não necessita ser reproduzido exatamente como foi concebido a priori. Segundo Benjamin, a aura é "uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja." (BENJAMIN 1996: 101) O que quer dizer que os princípios determinantes para o fim da aura estão ligados ao movimento das massas e sua vontade de consumo, de modo que elas, desejosas por possuir os objetos, acabam se aproximando deles, determinando o fim da aura da obra de arte. A aura, dentro deste espaçamento, provoca "um olhar que deixaria à aparição o tempo de se desdobrar como pensamento, ou seja, que deixaria ao espaço o tempo de se retramar de outro modo, de se reconverter em tempo." (DIDI-HUBERMAN 1998: 149)
A libertação graças à reprodução técnica da obra de arte faz com que o valor do ritual seja substituído pelo valor da exposição, ou seja, possibilita a exibição para qualquer pessoa e para as grandes massas, o que antes só era possível àqueles que tinham o acesso à obra de arte. De acordo com Benjamin:
O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica de reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra de arte por uma existência serial. E na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. (BENJAMIN 1996: 168)

A obra de arte aurática, ainda em seu estágio de culto, possui um sentido baseado na unicidade. Primeiramente ela aparecia como magia, depois era seguida pela religião, o que nos faz concluir que essa obra de arte tem um fundo teológico definido. Com o advento da fotografia e, em especial, do cinema, ocorre uma mudança significativa: essa arte reprodutível passa a operar no plano político, visto que, ela consegue atingir um incrível número de pessoas com base na reprodução de um único original. É aí que passa a residir, para Benjamin, o caráter de trabalho político da estética moderna. A aura se revela, sobretudo, a partir de seu poder de memória.
Pensemos na pintura do deformado Papa Inocêncio X, de Francis Bacon, devorando e reinventando a pintura do mesmo Papa, de Diego Velázquez. O que vemos nos olha de volta, mas olha com terror. Através desse movimento se dá o fim de uma origem [Beginn], um gênesis, da qual todas as coisas derivariam. Não se trata de cópia da cópia, mas do despertar do terror através de uma pintura que interroga, interpela e penetra, cheia de sentido, o trabalho de Velázquez.

Imagem 1 - Imagem do quadro O papa Inocêncio X, de Velázquez, em comparação com o quadro de Francis Bacon. Fonte: http://www.phaidon.com/resource/francis-bacon-pope-innocente-x-velazquez-comparison.jpg

A cópia, no momento em que modifica o original, está, também, ao mesmo tempo, doando-lhe generosamente sobrevivência. Ora, falamos aqui do mesmo princípio analisado por Benjamin acerca das traduções. Elas não somente modificam o suposto original, mas lhe asseguram sobrevivência.
João Barrento, estudioso português, tradutor de obras de Walter Benjamin, afirma que, em que pese sua simpatia pelos movimentos comunistas da década de 30, Benjamin soava herege ao remar "contra a maré do dogmatistmo e da estreiteza do seu tempo". (BARRENTO 2013: 60). Também detectando a problemática de se falar em autenticidade no pensamento de Benjamin diz: "As categorias da autenticidade e da unidade, o modo de existência ritualística da obra – que lhe conferiam uma aura e a transformavam, para o destino individual, em objeto de culto – são agora mortalmente atingidos." (BARRENTO 2013: 76)
A Tarefa do Tradutor é um texto escrito em 1923, em Heidelberg, Alemanha, prefaciando sua tradução dos Tableaux Parisiens de Baudelaire, se junta a outros textos em que Walter Benjamin também trabalha sua teoria da linguagem. Nele, Benjamin faz repetidamente referência à obra literária como obra de arte, a tradução, segundo ele, é aquela que irá assegurar a sobrevivência dessas mesmas obras literárias. A tradução, deste modo, se apresenta como um ato violento de transformação, do qual depende a existência do texto de partida. A tarefa do tradutor é essa, manter viva a obra original, dar-lhe sobrevida, por meio do jogo que a tradução realiza em torno dela. A tradução é uma forma, ela serve de suporte para uma teoria da linguagem através de jogos de trans-formação. Ela inopera, então, a ideia de original. "pois na sua pervivência [Fortleben] (que não mereceria tal nome, se não fosse transformação e renovação de tudo aquilo que vive), o original se modifica" (BENJAMIN 2011: 107).
A tradução, nessa lógica, surge do original, ela é manifestação de Mνημοσύνη, da sobrevida [Überleben] do original e enquanto apresentação de vida revela-se em um télos que é expressão desse mesmo original.
Pois a tradução é posterior ao original e assinala, no caso de obras importantes, que jamais encontram à época de sua criação seu tradutor de eleição, o estágio de sua pervivência. A ideia da vida e da pervivência das obras de arte deve ser entendida em sentido inteiramente objetivo, não metafórico. (BENJAMIN 2011: 104)

Assim, some a noção de fidelidade. Segundo texto de Benjamin, A fidelidade só existiria em sua forma de pura lingua, ou momento em que sentido e letra não mais se separam, ou seja, texto de partida e texto de chegada formariam uma língua maior, quase adâmica, pré-babélica, de modo que a noção de original só poderia existir a um texto ideal que comporia esses dois textos. Fala-se aqui de original, ou melhor, origem [Ursprung] que assegura a existência dessa mesma pura língua, não é o começo de tudo, mas um tempo primevo, ponto de inflexão da memória em que tradução e original alcançam sua forma pura.
O Ursprung [origem] é, possivelmente, um dos conceitos mais importantes do trabalho crítico, de Benjamin, uma peça central de seu prefácio epistemológico, abertura do livro Origem do drama trágico alemão. A origem coloca em cena um ritmo outro, uma dança às avessas, a saber, um movimento anacrônico, que se revela em forma de iluminação e ruptura.
A origem pode ser lida como o momento histórico capturado, um atravessamento da linha da história e sua iluminação. O conceito de origem de Benjamin não deve ser interpretado como a restauração de um momento primordial, em seu âmago, de uma história teleológica; ele se opõe não somente ao conceito bíblico de gênesis, mas também ao de progresso e desenvolvimento linear da história. Ou, revelando a relação com a história, em seu "Prefácio epistemológico" Benjamin demonstra seu objetivo filosófico e metodológico:
Mas, apesar de ser uma categoria plenamente histórica, a origem (Ursprung) não tem nada a ver com gênese (Entstehung). "Origem" não designa o processo de devir de algo que nasceu, mas antes aquilo que emerge do processo de devir e desaparecer. A origem insere-se no fluxo do devir como um redemoinho que arrasta no seu movimento o material produzido no processo de gênese. O que é próprio da origem nunca se dá a ver no plano do factual, cru e manifesto. O seu ritmo só se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado, como restauração e reconstituição, e por outro como algo de incompleto e inacabado. [...] A origem, portanto, não se destaca dos dados factuais, mas tem a ver com a sua pré- e pós-história. Na dialéctica inerente à origem encontra a observação filosófica o registo das suas linhas mestras. Nessa dialéctica, em tudo o que é essencial, a unicidade e a repetição surgem condicionando-se mutuamente. (BENJAMIN 2004: 32)

Não podemos deixar de concluir que este é um conceito puramente histórico, a tarefa do tradutor se revela nesse movimento, espaço aurático original de pura memória. O original nunca se fecha em uma identidade, cada aproximação da tradução em relação ao original arrebata-o para a disseminação de novos sentidos, deixando assim rastros [Spuren], na forma de estilhaços, rizomas linguísticos.
A tarefa do tradutor, desta forma, se revela como uma missão messiânica: direcionar a linguagem babélica à linguagem edênica, reunir a tradução ao original num momento de iluminação sagrada. Em nosso plano terrestre cabe somente a eterna tentativa de captura de uma suposta obra original.

OBSERVAÇÃO FINAL
A Monalisa de da Vinci tem sua singularidade assegurada, também, por suas cópias rebeldes. Agora mesmo observo a Gioconda pendurada à venda no BRIC da Redenção. Não poder ter o original em nada me impede de gozar cada pincelada falsa jogada na reprodução feita pelo artista/autor/reprodutor técnico de Porto Alegre. Simultaneamente, a Gioconda presa, frágil, do Louvre, alegra-se em ganhar sobrevida através da irmã latinoamericana, sabemos, no entanto, que ela nunca terá uma identidade fechada. Neste mesmo movimento, a tradução olha de volta para o original e o desfaz, O Ulisses de James Joyce se perpetua através de suas inúmeras traduções, sobretudo aqui nos trópicos, ele se mulatiza.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRENTO, João. Limiares sobre Walter Benjamin. Editora UFSC: Florianópolis, 2013.

BENJAMIN, Walter. "Pequeno ensaio sobre a fotografia". In: Mágia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas Vol 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996.

BENJAMIN, Walter. "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica". In: Mágia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas Vol 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Trad. João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

BENJAMIN, Walter. "A tarefa do Tradutor". In: escritos sobre mito e linguagem. Trad. Susana Kampff Lages. São Paulo: Ed. 34, 2011.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998.

HAIDON (London) (Ed.). The truth behind Francis Bacon's 'screaming' popes. [20--]. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2015.









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