CAPITALISMO POLÍTICO E MERCANTILIZAÇÃO DO ESTADO: UMA ABORDAGEM ACERCA DA CRISE DE SEGURANÇA E JUSTIÇA BRASILEIRA

June 29, 2017 | Autor: Gustavo Batista | Categoria: Criminology, Criminal Law, Criminal Justice, Social Sciences
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CAPITALISMO POLÍTICO E MERCANTILIZAÇÃO DO ESTADO: UMA ABORDAGEM ACERCA DA
CRISE DE SEGURANÇA E JUSTIÇA BRASILEIRA[1]


RESUMO: A atuação de poder que gera lucro é uma mercadoria política. Pode
ela ter origem na atuação corrompida dos funcionários públicos e/ou do
aparelho de Estado ou na atuação extorsiva de determinados indivíduos e/ou
grupos sociais, bem como, ainda, na própria assimetria social que contamina
as instituições públicas legitimamente constituídas. Desta maneira, pode
até compreender situações consideradas legítimas, desde que estejam
voltadas para o financiamento do poder político que irá exercê-las, como,
por exemplo, a fabricação e a venda de armamentos para as polícias. Também
pode se expandir e manter ligações perigosas com um mercado informal e
criminoso, gerando trocas que representam danos para a cidadania e o
desenvolvimento de uma política ética e representativa. O capitalismo
político é um modelo descrito, inicialmente, por Weber que no serve de
tipologia ideal para a análise que se segue, abordando a crise de segurança
e justiça por que passa a sociedade brasileira. Corrompe as práticas
estatais e dissemina violência e extorsão na base de suas trocas.
Palavras - Chaves: Mercantilização Penal; Crise de Segurança e Justiça;
Ambivalência Política do Estado; Diferenciação Punitiva e duplicidade de
ordem social.





I - CONCEITO DE MERCADORIAS POLÍTICAS

No seio de um "capitalismo político", o aparecimento de "mercadorias
políticas" destinadas à demanda de apropriação, conservação e coordenação
de poder é um fenômeno característico para este tipo ideal de modelo
econômico, voltado à produção de riquezas a partir da atuação do Estado.
São mercadorias, portanto, que têm haver com o uso e a disposição de poder
social e político, por vezes, confundindo-se com a própria prestação dos
serviços públicos. Isto se deve ao fato de que a maior parcela do poder
social foi confiada ao Estado Moderno, em especial, pelas características
de centralização e hierarquização do poder político, conformadoras do
pressuposto racionalista de monopólio estatal da violência. Assim, é também
o Estado um "bazar" de mercadorias políticas colocadas à disposição de um
público consumidor bastante extenso. Desta forma, é importante perceber
que:


Emprego a noção de "político" no seu sentido abrangente,
de relações de força e poder, e não no sentido de
dominação legítima ou de "sociedade política" (Estado).
Recursos políticos tanto podem ser recursos de poder
acumulados na esfera pública ou estatal, quanto recursos
de força e poder que se utilizam de uma determinada
"ordem política". Custos e recursos políticos, bem como
bens e resultados políticos, não são aqui
necessariamente os acumulados na esfera legítima do
Estado, nem os que se revestem de "sentido coletivo":
podem ser acumulados e trocados por indivíduos, grupos e
organizações, redes e mercados, seja como meios para
outros fins, seja pelo seu "valor próprio". Não precisam
ter "sentido social ou coletivo" nem aspirações
universalistas (MISSE, 2006: 207)


Tudo o que se refere ao uso ou à coordenação de poder social e é
colocado numa esfera passível de negociação e de instrumentalização
político-econômica dos participantes de uma comunidade é uma mercadoria
política. Desta forma, um assassinato encomendado a um grupo de extermínio,
bem como a corrupção policial favorecedora dos bicheiros, ou das operações
que envolvem o tráfico de drogas, tratam-se de mercadorias políticas
(MISSE, 2006: 208-209). Na realidade, as formas patriarcais e
patrimonialistas em que se formaram a cultura e o Estado brasileiros,
descritas conforme as interpretações do Brasil realizadas por Holanda
(1995) e Faoro (1979), favoreceram à perpetuação e à hegemonização do
modelo de capitalismo político brasileiro, sobre outras formas do próprio
regime capitalista.





II - EXERCÍCIO DE PODER QUE GERA EXTORSÃO E MERCADORIA

No caso brasileiro, aumentando-se a repressão, aumentam-se as
possibilidades de extorsão política e policial e com estas as
possibilidades de corrupção do aparelho burocrático do Estado responsável
pelo exercício de poder legal. Todavia, ainda assim, gostaríamos de
enfatizar que há um padrão cultural e histórico que permitiu tanto a
acumulação das experiências sociais, quanto o aprimoramento desta forma de
mercado político no Brasil, tornando-o persistente, incisivo e desviante do
funcionamento normal de nosso aparelho burocrático.


Por aqui, não foi a eventual emergência de um determinado fenômeno
social que nos fez adotar um modelo repressivo e de dirigismo populacional
como o estipulado pela Lei Negra de Waltham inglesa (THOMPSON, 1997) (lei
repressiva que estimulou a transição de uma ocupação agrária para uma
sociedade urbana e industrial), mas um "estado de perpétua emergência" que
desprezou tais padrões de eventualidade social e política e persistiu como
uma regra geral aplicável no território brasileiro, legitimando uma ordem
repressiva, abusiva, desordenada e imprevisível. A autarquia familiarista e
personalista de indivíduos que sempre alimentou o imaginário brasileiro,
produto da ética ibérica, tornou-nos propensos à tomada de decisões
isoladas e à elaboração de estratégias de fuga ao monopólio estatal do uso
da força, estimulando formas horizontais violentas de reação ao crime e de
resolução de conflitos sociais e humanos. Por sua vez, o Estado brasileiro,
em sua perpétua emergência de controle social e de centralização política,
sempre se valeu de legislações autoritárias e repressivas no campo penal.
Isto se deveu, tanto ao fato desta autonomia individual desejar um
exercício direto do poder, quanto à constante busca de evitar, ou de omitir
este exercício do poder por parte dos agentes de estado. Desprezados no
exercício do próprio poder, legitimado a partir da atuação burocrática do
Estado, os agentes públicos brasileiros serviam-se de complexas legislações
autoritárias para afirmarem sua força frente à autonomização local, ou se
associaram a estas formas autônomas para exercer poder sobre as categorias
mais desfavorecidas da sociedade. Destarte, desenvolveu-se uma forma de
socialização atípica em que passou-se a observar o Estado, não como um
parceiro da comunidade, mas como uma entidade oposta aos seus interesses,
ou agressora dos direitos individuais. Entretanto, este desamparo do Estado
é tão somente ficto, reclamada sua atuação exatamente por parte das classes
sociais que dependem minimamente desta (ou daquele). Geralmente, reclamada
no sentido de intervenção penal contra os indivíduos sociais mais
desfavorecidos, protegendo-se a desamparada classe de proprietários.
Portanto:


Tudo se passa como se a mediação entre Sociedade e
Estado, que é constituída pelas diferentes unidades
coletivas de solidariedade de interesses, não
existissem. Indivíduos que "trabalham" para o Estado-
Patrão, indivíduos que "demandam" ao Estado-Provedor,
indivíduos que "privatizam" funções do Estado-Rico,
indivíduos que "fogem" do Estado-Perseguidor. O Estado é
representado e percebido como "forte", e os indivíduos
como "órfãos". Órfãos de diferentes classes, com
diferentes recursos de "se livrar" do Estado, ou de
"exigir" do Estado (MISSE, 2006: 205-206)


Esta ordem plural estabeleceu uma concorrência, ou, por vezes, uma
complementaridade entre o poder estatal e o poder informal (social)
autárquico e incitou o aparecimento de estratégias de mercado para
neutralizar ou conformar tal concorrência, de acordo com os recursos de
extorsão e corrupção disponíveis. A mercantilização da política tornou-se,
assim, um elemento indispensável para compreensão do funcionamento social e
do Estado brasileiro. E, o sistema penal, foi, em nosso caso, um grande
alimentador desta mercantilização.






III - IMPREVISIBILIDADE E AMBIVALÊNCIA DO CONTROLE SOCIAL BRASILEIRO:
CONSEQUÊNCIAS DA MERCANTILIZAÇÃO ATUANTE SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS






Por sua vez, o mercado, estando livre de regras morais[2],
estabeleceu uma possibilidade ad infinitum de produção de mercadorias
políticas e de negociações das mesmas, aproximando os blocos de interesses
presentes nesta ordem plural e representativos de interesses diversos:
estado e autonomias individuais. O problema é que, nem sempre, as
autonomias individuais são desejosas da atuação jurídica do Estado (WEBER ,
1971b: 46-47). Logicamente, é importante a atuação do Estado quando, numa
economia internacionalizada e preenchida por diversos atores de mercado, o
emprego da moeda e a sujeição a normas jurídicas previsíveis tornam-se
indispensáveis para a segurança e a continuidade das trocas. Todavia, o
direito não consegue impor limites ao mercado, ele atua somente caso a caso
(WEBER, 1971b: 47), quando convocado pelos próprios interesses particulares
em jogo nas negociações que são postas em marcha no espaço de atuação do
mercado. É inevitável a tendência monopolizante e de aplicação universal
das regras jurídicas do Estado, acompanhando um elastecimento do espaço de
mercado (WEBER, 1971b: 49), que busca uma desterritorialização para fugir
ao exercício de poder que implique dificuldades para circulação de
mercadorias. Por outro lado, isto somente acontece quando interessa ao
próprio mercado, especialmente quando ele se desenvolve de acordo com os
padrões culturais e morais de um determinado povo. Enfim, o Estado ainda é
um importante elemento de análise para qualquer mercado, pois oferece
segurança às trocas e às mercantilizações pela força de coação das regras
jurídicas que é reclamada,, especialmente, por parte do mercado formal,
tornando-o um recurso ainda imprescindível de organização político-
territorial e fiscal que assegura a regularização do próprio mercado.


Todavia, são inevitáveis a existência de disfunções e de
particularismos jurídicos quando este mercado se desenvolve fora dos
limites das leis e da moral, ou seja, quando os interesses econômicos e a
produção de bens e riquezas recaem sobre atividades e instrumentos não
legitimamente assegurados e informalmente ofertados e consumidos. Desta
maneira, o direito não consegue subordinar este tipo de mercado e nem a ele
interessa sua juridicidade, sendo produzidas normas informais para suas
operações de troca (contrabando e descaminho; tráfico de mercadorias
ilícitas e jogos de azar proibidos, são exemplos deste outro mercado
parelelo). Nesse mercado informal e/ou ilícito, as pretensões se invertem:
ao invés da atuação do Estado, o que lhes presta segurança operacional é
exatamente a sua omissão. Daí novas regras se formam, sem a legitimidade
procedimental, a qual elas obtêm quando são diretamente produzidas pelo
Estado, mas com a eficiência e a possibilidade de influenciar o aparelho
burocrático estatal e obter uma cogência tão eficiente e equivalente quanto
àquela obtida pelas regras jurídicas válidas junto ao mercado formal.
Logicamente, para tanto, contam com a participação e o apoio de agentes
estatais que negociam sua atuação favorável ao mercado informal, ou,
principalmente, sua omissão: mercantilizando o exercício da autoridade
estatal (mercadorias políticas).


Estas forças de mercado informal atuam, muitas vezes, com categorias
pré-modernas de estruturação e de institucionalização, onde nem sempre a
moeda é o valor de troca e os contratos não observam quaisquer limites
jurídicos, ou necessidades de declaração escrita ou mesmo fiscal. Tendo em
vista que a juridicidade estatal se opõe exatamente a este modelo de
autonomização, presente em formas pré-modernas de práticas mercantis,
surgiu aí o conflito e o discurso oculto da necessidade de destruição
destas formas ilícitas e tradicionais de mercado pela força racionalizadora
do Estado em favor da prevalência exclusiva do modelo formal e desenvolvido
de mercado, reconhecido a partir da legitimidade a ele concedida pela
sujeição às normas jurídicas emanadas do Estado e da atuação de seu
aparelho burocrático (WEBER, 1971b: 49). Este é mais um conflito que se
estabelece: o conflito entre dois modelos de mercados, com interesses e
pretensões distintas. Vale salientar que, a partir deste conflito, se
originam mercadorias políticas, desta vez, com o foco na negociação acerca
do uso da força destruidora do Estado sobre os denominados mercados
informais, concorrentes desleais e desestabilizadores das ordens econômica,
estatal democrática e fiscal vigentes, especialmente em virtude das
práticas políticas e violentas sociais, informalmente reproduzidas, das
operações de lavagem de dinheiro (BRAGA, 2010: 85-98) e da mercantilização
ilimitada das relações humanas produzidas a partir de sua atuação ilícita
em busca de riquezas. Obviamente, o mercado informal vale-se de recursos de
neutralização da concorrência do poder e das regras jurídicas estatais,
consagrando, através das suas práticas operacionais e das operações de
lavagem de dinheiro, uma possibilidade de adequação e aproximação de suas
riquezas às riquezas produzidas no interior do mercado formal, daí as
operações do mercado ilícito corresponderem a uma estratégia de inovação
voltada para a legitimação do capital por ele produzido e de seu titular.
No final, tanto o mercado ilícito, quanto o mercado formal e regrado
terminam operando sobre as mesmas regras de acumulação de capital,
distanciando-se apenas no tocante às estratégias utilizadas para
legitimação das riquezas que são produzidas em seus respectivos espaços de
atuação.


Sob este prisma, a repressão tornou-se um meio de conformação e uma
mercadoria política utilizada pelas forças de mercado que operam de acordo
com as regras jurídicas do Estado, ou em desconformidade com elas. E, neste
jogo, o aparelho burocrático do estado brasileiro, acabou se construindo de
forma completamente inconstante, ora negociando sua omissão, para favorecer
as forças presentes no mercado informal, ora negociando sua atuação
repressiva e o controle social, para favorecer as forças integrantes do
mercado formal, bem como seus interesses em abolir a concorrência desleal
do mercado informal. O resultado desta atuação ambivalente para atender
interesses contrapostos (embora num único sentido de acumulação de
riquezas) foi uma completa imprevisibilidade das práticas a serem esperadas
por parte da atuação estatal. E, sendo o poder do leviatã brasileiro
imprevisível, maiores são os riscos de atuações autárquicas isoladas, bem
como violentas, buscadas pelos cidadãos particulares no interesse de
conservar a segurança de sua parcela de mercado: seja ela formal ou
informal, dependendo do ponto de vista que dar suporte ao interesse
político negociado (SOARES, 2006: 273-278).


Diante desta ambivalência de forças político-mercantis e da produção
de regras sociais cogentes a partir da atuação de cada uma delas, chegou-
se, até mesmo, a afirmar a existência de um pluralismo jurídico[3], tendo
em vista no Brasil haver "a coexistência de diversos modos de juridicidade
na sociedade" (BARBATO Jr, 2006: 07). Porém, residiu exatamente nesta
"ambivalência" a formação de uma ordem social negociada, caracterizada pela
ótica do valor de mercado e apta à produção de diversas mercadorias
políticas, que vão de um modelo de Estado ausente e omisso, até um modelo
controlador e autoritário, sem que haja qualquer uniformidade e
continuidade das ações estatais, pendendo em favor de um, ou outro lado, de
acordo com a própria lógica de mercado sobre quem prestar mais riquezas em
troca da atuação favorável do aparelho burocrático do Estado.


Nesta ambivalência do poder político e social brasileiro, estavam
reconhecidas as primeiras grandes regras para a existência de um mercado
político desenvolvido junto a um aparelho burocrático de Estado: a
existência de reciprocidade dos interesses e de concorrência entre dois
espaços de mercado. Estabelecido o princípio da reciprocidade e da
concorrência, libertos da sujeição moral, ficou aberto o espaço de
negociação com os agentes estatais em um mercado político bem mais liberal
e ilimitado que o espaço legítimo de atuação do modelo formal de mercado,
modernamente estabelecido e preponderante nos países centrais do
capitalismo contemporâneo. Tais núcleos estatais onde preponderam as forças
produtivas do mercado formal, ao menos teoricamente, observam sérios
limites ético-morais com relação à produção de mercadorias e de riquezas
(COMTE-SPONVILLE, 2005: 113-130)[4], bem como, uma maior racionalidade na
constituição e na atuação do aparelho burocrático. Por lá, a transição para
um modelo moderno de mercado fortaleceu o Estado, conferindo-lhe uma
atuação de sentido único (ou quase isto, respeitadas as eventualidades),
favorecedora do mercado formal vitorioso, porém, por aqui, esta transição
ainda não se completou e o Estado brasileiro possui uma atuação em sentido
duplo, ou seja, não tomou partido exclusivo de um ou de outro mercado para
o direcionamento de suas políticas públicas.


De qualquer forma, isto não significou que o triunfo do capitalismo
centrado num mercado formal seja definitivo, até mesmo para o funcionamento
burocrático e racional dos países centrais, uma vez que, num modelo
mercadológico cada vez mais globalizado, tornou-se inevitável uma ampla
circulação de riquezas produzidas a partir de espaços informais de mercado
e provenientes dos países periféricos, ameaçando a própria ordem racional
de mercado e de Estado presente nos países do capitalismo central. Assim, o
mercado planetário vem representando:


Uma rápida queda das defesas imunológicas que uma
sociedade civilizada outrora opunha à criminalidade
transfronteiriça organizada. Darei apenas um exemplo: o
redator econômico da revista Facts, de Zurique, testou
as convicções morais, a ética profissional de dez dos
mais respeitados escritórios de advocacia da cidade
(...) Instalado no quarto 309 de um palácio à beira do
lago de Zurique, o Hotel Éden-au-lac, o jornalista faz-
se passar por um certo Alexei Scholomicki, empresário
tcheco, representante da empresa Trading and Consulting
de Praga. Começa, então, a fazer contato sucessivamente
com os dez escritórios, sempre pedindo um encontro
urgente, para o mesmo dia. E conta a seguinte história a
seus interlocutores: trata-se da venda de ósmio
(material altamente tóxico) por uma empresa de
Tcheliabinsk (Rússia) para uma empresa tcheca de
Ostrava, sem que as autoridades russas tomem
conhecimento, pois a comercialização de ósmio é proibida
na Rússia. Nove dos dez escritórios imediatamente
recebem o falso traficante tcheco. Ninguém se dá o
trabalho de verificar realmente os seus documentos. O
traficante tampouco dispõe de um certificado de origem
do ósmio; os advogados devem deduzir, portanto, que se
trata de material roubado (...) Não seja por isso! Os
eminentes advogados de Zurique estão dispostos a tudo
(ZIEGLER, 2003: 47-48)


Na verdade, os processos de mercantilização de direitos e de
obrigações não são fenômenos exclusivos de países marginais. São reflexos
da própria evolução do capitalismo, embora sejam, nos países marginais,
muito mais visíveis e mais violentas as estratégias que servem para esta
mercantilização política. Por aqui, boa parte da corrupção do aparelho
burocrático do Estado é ainda feita diretamente, sem intermediações, ou
quaisquer ocultamentos, o que aumenta as possibilidades de desfechos
arbitrários e violentos destas práticas. O que não significa que o espaço
de mercantilização, especialmente no Brasil, tenha deixado de avançar sobre
as instituições estatais, promovendo elementos de judicialização e de
estratégias de ocultamento muito semelhantes às características observadas
nos países centrais. Assim, em virtude de nossa patente desigualdade
social, os espaços de mercantilização das atuações burocráticas operam em
dupla contingência, uma realçadora de estratégias locais de negociação
direta com o poder repressivo do Estado e outra incorporadora dos modelos
racionalizadores do ocultamento das riquezas proveniente de mercados
ilícitos, presente e amplamente difundido nos países centrais, mas que
também se processa por aqui. A forma como o diálogo com as instituições do
Estado é produzido numa e noutra estratégia de conservação das operações
envolvendo mercados informais é bastante diferente, implicando um
tratamento jurídico e político diferenciado e nos exigindo uma análise mais
aprofundada.






IV. DIFERENCIAÇÃO E DUPLICIDADE DA ORDENAÇÃO PENAL BRASILEIRA


Ao ser adotada uma metodologia de mercado para as negociações
estabelecidas entre a ordem estatal e o poder social informal, ficou
claramente ausente, no caso brasileiro, uma consciência de classe que
permitiria uma demanda política coletiva. Esta consciência de classe foi
inibida pela força das autarquias patriarcais de natureza familiar e
doméstica, que superavam a idéia de uma vontade coletiva. Daí os entraves
descritos no primeiro capítulo quanto à busca da construção de uma nova
ordem pública, atendente das principais reinvindicações da classe social
politicamente hegemônica. Esta superação do modelo patriarcal e estamental
por parte do capitalismo era, inclusive, comemorada pelos intelectuais
marxistas que viam, nessa superação política das formas tradicionais e
familiares de poder, uma etapa social evolutiva necessária para o posterior
advento do socialismo. Assim,o advento do capitalismo moderno:


arruinava a ordem tradicional e as relações que a
sustentavam. Esta ordem pré-capitalista era considerada
muito mais nefasta, porque obstruía o avanço econômico e
a evolução política. Destruí-la significava soltar as
amarras de um tipo de dominação mais perverso e lançar
as bases para construção de uma sociedade futura mais
igualitária, livre e justa, da qual o modelo capitalista
de organização seria um preâmbulo. Este é o âmago do
argumento dos marxistas: as formas tradicionais de poder
são mais opressivas do que as modernas, capitalistas,
porque, sendo personalizadas, enroscam-se no coração dos
trabalhadores e se enraízam em suas consciências, além
de dispersá-los geográfica e economicamente, congelando
o processo histórico (SOARES, 2006: 274)


Esta ausência das demandas articuladas politicamente por uma classe
oprimida, mas organizada para a resistência a opressão é produto da
estrutura de dominação tradicional que aqui se fortaleceu e congelou nosso
processo histórico, sendo também causa e fonte do próprio genocídio e do
silenciamento das massas populares indesejadas, que tiveram curso na
América Latina e no Brasil desde o período colonial. Nesse sentido, pior
que o genocídio foi o etnocídio que, encobrindo a cultura do outro –
sujeito latino americano (DUSSEL, 1992), fez que toda as nossas relações
sociais e políticas fossem espelhadas de acordo com um modelo europeu
predominante, impedindo a formação de um sujeito coletivo capaz de realizar
uma negociação política estratégica junto à classe dominante. Tal
conformação cultural foi um obstáculo aos comportamentos rebeldes e
revolucionários (classificados, em nosso continente, como atos de
selvagens), direcionando boa parcela dos esforços dos oprimidos em uma
busca de identificação com o modelo culto e-aristocrático dominante. Em
sentido oposto, fez com que o dominante aristocrático buscasse sempre
demarcar sua posição social, revelando facil e doutrinariamente quem é quem
na hierarquia social. Isto também foi produto de uma matriz ibérica de
pensamento, ocasionando um fenômeno de tratamento dicotômico e plural entre
os vários indivíduos sociais que já foi anteriormente designado por
critéiro de diferenciação punitiva, expressamente presente nas regras
jurídicas estabelecidas nesses Estados. O resultado do uso deste critério,
no sistema penal português e brasileiro, foi a constituição de um critério
punitivo extremamente ambíguo. Nesse sentido:


Em oposição às tradições do igualitarismo comunal, as
penas agora se submetem a uma diferenciação que tem por
critério a condição social e econômica do acusado e da
vítima. Além da influência do direito romano, a matriz
da diferenciação penal resultava das características
hierarquizantes e estamentais da sociedade visigótica
(BATISTA, 2000: 115)


De certa forma, mesmo desaparecendo expressamente da legislação penal
positivada, quando de sua superação por codificações penais de matriz
liberal, este critério de diferenciação punitiva permaneceu sendo posto em
marcha pela atuação burocrática e seletiva do Estado e pela forma como as
leis penais passaram a ser construídas[5]. , ocultando sua presença. Na
verdade, este critério de diferenciação punitiva povoa nosso imaginário
social: nosso senso comum e nossa cultura popular e jurídica.


Vale salientar que nunca esteve na pauta das negociações do mercado
político brasileiro a conquista dos direitos inerentes a uma condição de
pertencimento a uma classe social que mereceria o reconhecimento e o
respeito de seus direitos por parte das demais. Ao invés disto, houve o
aprimoramento cultural e a acumulação de experiências sociais em torno de
um sujeito conformista, cujo os valores ditados pela cabeça da hierarquia
social eram rapidamente assimilados e aceitos como verdades e como
fundamento para a diferenciação de tratamento entre as pessoas.
Logicamente, este sujeito conformista não se rebela, mas busca legitimar
sua ação através de estratégias inovadoras de assimilação, numa perspectiva
muito bem descrita por Merton (2002: 210-240), quando em seu estudo acerca
de estrutura social e de anomia, descreveu vários tipos de adaptação
individual aos quadros econômicos e culturais postos em paralelo,
demonstrando a possibilidade de conservação das metas culturais fora do
cumprimento das normas institucionais e legítimas para alcançá-las. A
metodologia de inovação não revela um inconformismo em relação às metas
culturais, mas uma avaliação negativa no sentido de alcançá-las por
intermédio do cumprimento fiel das normas institucionais e legítimas
estabelecidas para tanto (ou seja, uma avaliação negativa dos meios
legítimos de se alcançarem os fins), criando-se, aí, o espaço para serem
estabelecidas medidas e regras alternativas dispostas no sentido de
atendimento dos fins culturais, consensualmente condivididos por todos. É
em vista disso que:


(...) os de baixo autorizam-se, eventualmente, a fazer a
leitura perversa e complementar: se a igualdade nada
mais é que um dispositivo oportunista, instrumento de
manipulação, o jogo sem limites do mercado pode ser
substituído pelo enfrentamento das armas, dando-se curso
a outro individualismo selvagem, que se combina a uma
hierarquia reduzida à ossatura sem disfarce da força.
Essa leitura, na prática, faz-se, hoje, em muitas
periferias e favelas brasileiras, ecoando a
interpretação complementar dos segmentos corruptos das
elites, que se apropriam das estruturas institucionais e
de suas ambigüidades para realizar seus apetites
predatórios (SOARES, 2006: 596)


O desenvolvimento da criminalidade brasileira não é produto de uma
revolta e/ou da busca de alternativas políticas ao modelo de Estado
constitucionalmente adotado, ou de uma demanda no sentido da alternância
entre as classes sociais detentoras do poder político. A criminalidade
brasileira é uma instância de inovação, ou seja, vislumbra alcançar e
satisfazer os desejos culturais de consumo, comuns à sociedade como um
todo, por parte de pessoas que fazem operar, informalmente, meios
ilegítimos no sentido da produção destes bens consumíveis. Nesse sentido, é
a própria criminalidade no Brasil muito mais uma estratégia de mercado, de
que, propriamente um instrumento de classe, ou de uma ideologia para se
opor ao status quo dominante[6]. Aqui, as autarquias individuais
criminógenas procuram sempre negociar com o poder estatal sua assimilação
pela institucionalidade estatal e junto ao poder social dominante e não
instituir uma nova relação de mandonismo político[7], sob um novo modelo
social e de Estado. Com relação ao tráfico de drogas este comportamento de
inovação ficou bastante claro quando, diante da contínua prisão dos
operadores de varejo das drogas, percebemos que:


Reforçou-se, assim, a concepção "estratégica" de que
cada "dono" ficará apenas algum tempo com o controle da
área. Ele deverá acumular o mais rapidamente possível um
capital que, paralelamente, ele transferirá para
atividades econômicas legais[8]. Frotas de táxi, imóveis
residenciais, motéis, comércio são algumas das
principais opções feitas pelos traficantes que, presos
ou foragidos, perderam ou abandonaram o controle do
comércio local de drogas. O mercado informal ilegal ou
criminal aparece aqui, como uma forma de "acumulação
primitiva", uma estratégia aquisitiva de curto prazo
para "donos" e "gerentes" de origem familiar pobre ou
de baixa renda (MISSE, 2006: 192).


Obviamente, não quero com isso negar a subjetividade operacional de
nosso sistema de repressão e suas articulações em prol da criminalização da
miséria e das categoriais de indivíduos subalternas, definindo a autonomia,
a inovação e a escolha da vida criminal como elementos causais exclusivos
de um curso de "violência e repressão policial" e de constituição de uma
"vida bandida". Porém, o uso das estratégias de inovação são um outro
problema que ocorre, simultaneamente e de maneira dependente, do rótulo da
exclusão social. Aliás, é esta exclusão que alimenta a inovação em busca da
fuga de situação de pobreza que, porém, é negociada a partir dos interesses
de consumo presentes no imaginário das autarquias familiaristas que atuam
criminalmente a partir da base de nossa estrutura social, o que faz
perpetuar a própria tendência de exclusão social na falta da constituição
de um espírito de classe coletivo. Este espírito de classe é substituído
por um espírito juvenil e guerreiro que mantém viva a utilização e
recrutamento das pessoas jovens para realizar as atividades de base de tais
articulações criminosas (SOARES, 2006: 596-597). Trata-se de um círculo
vicioso e contínuo em que inovação corresponde a assimilação cultural e
acumulação social de experiências e violências, mas não a ruptura de
processos de exclusão, gerando outros processos de retrocessão, exclusão e
contínua acumulação da violência. Daí a razão pela qual Marx observava nos
modelos pré-capitalistas (pré-industriais), em especial na forma
aventureira e mercantil que foi aquela que mais se difundiu no Brasil, a
presença de elementos que impediam a conformação de uma identidade de
classe e a natural superação do modelo capitalista pela forma socialista de
sociedade (SOARES, 2006: 274). O capitalismo subdesenvolvido (mercantil e
aventureiro) é um capitalismo de guerreiros, personagens aventureiros, e
não dos racionais princípios da avareza e do comedimento presentes na ética
calvinista e da interdependência entre os fatores de capital e trabalho,
marcos para o capitalismo industrial.


O que não significa, conforme salientou muito bem Wallerstein (2001),
que os modelos capitalistas mais evoluídos representem uma verdadeira
emancipação das percepções de opressão social entre as classes,
estabelecendo instrumentos racionais de luta de classes que ensejem a
superação do próprio modelo capitalista por via da institucionalidade
presente no aparelho burocrático de Estado. Esta visão revolucionária e
desenvolvimentista das próprias estapas do capitalismo em correspondência à
contínua racionalização do aparelho burocrático do Estado cai por terra
quando observamos possibilidades de quebra entre tais etapas e de recuos
evidentes para situações de produção econômica e de relações sociais
consideradas como integrantes de um capitalismo subdesenvolvido. O que
ocorreu com a União Soviética? Não teria sido exatamente um retrocesso,
comprovando-se a capacidade do mercado em minar as estratégias de superação
do modelo social baseadas na institucionalidade racional de um modelo
burocrático de Estado? Logo, se podemos conceber como verdadeira a hipótese
de que, sob um modelo de capitalismo aventureiro, tornou-se mais difícil a
elaboração de uma consciência de classe, também podemos alegar que o fato
da implementação de uma forma organizada do capitalismo e/ou do aparelho
burocrático do Estado não significou, ainda, uma completa superação do
modelo social vigente e da ética de aventuras, bem como uma organização e
conscientização política da classe oprimida que permitisse comportamentos
de rebelião e de resistência à opressão, tais como os desejados pelos
marxistas ortodoxos em seu modelo científico de análise. Podem haver
adiamentos, pausas, recuos e, inclusive, acordos e consensos que impedem a
transformação do modelo econômico rumo a um estágio considerado mais
desenvolvido de produção econômica: o socialismo. Todavia, é lógico que um
modelo patriarcal de sociedade, em que se baseia uma visão patrimonialista
do Estado, permitiu uma acumulação de experiências sociais e de estratégias
de sobrevivência das tradicionais relações de dominação entre as classes e
as categorias de indivíduos que adiam, até a presente data, a conformação
de uma percepção coletiva da sociedade e do lugar a ser ocupado por cada um
dentro desta. Este é um problema significativo da realidade social
brasileira, capturado tão bem nas interpretações do Brasil feitas por
Holanda (1995) e Faoro (1979), que foram objetos de análise no primeiro
capítulo deste trabalho.


Não há também como deixar de reconhecer que tudo isto é, ainda,
produto da duplicidade normativa (pluralismo jurídico) que permeia o
cotidiano brasileiro, permitindo a coexistência de regras que acabam
regulando ou, até mesmo, perturbando as relações entre indivíduos e entre
eles e o Estado, em virtude das fraquezas e vícios presentes no
funcionamento burocrático do Estado brasileiro. A regra aplicável ao caso é
ela própria uma mercadoria a ser valorosamente negociada pelas forças
sociais envolvidas, estando ausente uma instância de mediação mais
eficiente do que aquela fundada no valor de mercado da regra a ser
reciprocamente estipulado. Esta reciprocidade advém do próprio uso de
poder, estatal ou social, pois se encontram em um movimento pendular: o
acréscimo do poder de um lado, leva a uma reação de poder do outro,
ensejando novas medidas e preços para negociação das regras a serem
utilizadas na classificação e resolução dos conflitos. Na verdade, estes
movimentos pendulares buscam corrigir as assimetrias de poder, resgatando
os espaços de negociação política e de normatividade dos poderes envolvidos
na disputa. Quando esta necessidade de correção da assimetria entre os
poderes é mais contínua, estaremos diante de um uso maior da violência, de
parte a parte, o que é prejudicial para toda sociedade. Eis a principal
razão pelas quais os fenômenos de mercantilização nos países marginais
ensejam tanta violência: a forte assimetria do poder de negociação das
regras. Quando tais poderes encontram-se em maior correlação simétrica,
como ocorre nos países centrais, a própria institucionalidade do mercado e
o funcionamento regular do aparelho burocrático do Estado são suficientes
para apaziguar os conflitos, sendo desnecessário o recurso à violência. Por
outro lado, é assim, de maneira pendular e ambivalente, que funcionam as
relações de poder: todo o acréscimo de poder em favor de uma das partes
envolvidas num conflito, corresponde a um esvaziamento de força junto a
outra parte que, em sua demanda por poder, termina fazendo movimentar
rapidamente e a qualquer custo (grife-se, aqui, inclusive pelo uso da
violência) o pêndulo a fim de que retorne às suas mãos uma parte ou a
totalidade do poder que foi perdido (SOARES, 2000: 265-266). E,
inicialmente, como os canais de negociação ficam rompidos, a violência
transforma-se numa mercadoria a ser administrada até a reconquista deste
espaço político de troca e força por meio de vias alternativas ou da
alteração dos sujeitos responsáveis pela negociação. Assim, numa análise
correspondente ao que descrevemos acima, no tocante ao tráfico de drogas no
Rio de Janeiro:


A economia das "ligações perigosas" entre mercados
informais e bens econômicos ilegais ou criminalizados e
mercadorias políticas se alimenta, assim,
paradoxalmente, das próprias políticas de criminalização
que demarcam esses mercados (....) Entre uma invasão
policial e outra, na rotina não invadida do cotidiano, a
economia das "ligações perigosas" se reorganiza no
atacado, as mercadorias políticas aumentam de preço, o
"movimento" se reestrutura em outro lugar, ou mesmo com
outros donos, ou ainda nas penitenciárias, e o saldo
perverso das "ligações perigosas" e das "invasões"
continua a ser o aumento de homicídios nas estatísticas
policiais, produzindo crescente "medo da violência",
mais reação moral e demandas de mais "excesso de poder".
(MISSE, 2006: 206)


Esta disputa entre poderes, o poder formal do Estado e o poder social
informal proveniente dos mercados ilícitos, reproduz, de certa maneira, o
regime de um pluralismo jurídico bastante interessante que ao invés de
estar baseado em regras de conexão legítimas e pré-estabelecidas,
determinando que matérias e que fatos sejam regulados e por quem o seriam,
fundamenta-se, completamente, nas estratégias de negociação costumeiras e
no resultado final do movimento pendular posto em marcha, sendo plausível o
uso de uma, ou de outra regra, conforme a prevalência de um ou outro poder
em disputa sobre um determinado território.


Por outro lado, pode-se afirmar que não é um poder paralelo[9],
porque não vislumbra a constituição de uma ordem social e política
alternativa e de existência paralela à ordem oficial do Estado, mas de
espaços e de regras alternativas para lidar com atividades mercantis
ilícitas, que até podem envolver a própria ordem social e política
estatuída. Desta forma, o poder social informal brasileiro busca conservar
os canais e as estratégias de negociação; nunca ocupar o espaço social e as
obrigações estipuladas para a ordem estatal, mas tornar este espaço
regulado a partir da atuação do aparelho burocrático do Estado acessível
aos interesses e objetivos das autarquias individuais criminógenas,
conforme o uso das estratégias de mercantilização das atividades inerentes
ao exercício do poder político legítimo. Eis o motivo pelo que discordamos
das teses que defendem a existência de um poder paralelo (BARBATO Jr, 2007:
40-47). Nesse sentido:


Não me parece apropriado falar em Estado paralelo,
porque o poder criminoso está longe de configurar
qualquer institucionalidade que mesmo remotamente se
assemelhasse a um Estado. Mesmo da idéia de "poder
paralelo" não soa pertinente, pois o poder do crime
deixou de ser paralelo há muito tempo, se é que o foi,
algum dia: penetrou nas instituiões públicas, infiltrou-
se nas polícias e constituiu a rede invisível que se
costuma denominar "crime organizado" (SOARES, 2006: 593)


Portanto, não se trata de um poder paralelo, mas de um poder em
branco ou seja, de uma organização voltada para manutenção dos canais
abertos de negociação junto ao Estado, embora, para tanto, deixe sempre em
aberto a possibilidade de existência e de continuidade das atribuições da
burocracia estatal, sem querer confrontá-la diretamente. É um poder em
branco, porque o preenchimento de sua força e o cumprimento de seus
interesses estão dependentes do resultado da negociação com o poder formal
do Estado e de sua reciprocidade omissiva, ou seja, do resultado do
movimento pendular de atuação política. O maior interesse é obter, junto ao
Estado, o reconhecimento da legitimidade das riquezas produzidas nos
mercados informais e não a abolição do próprio Estado, ou a formalização e
a regulação legal destas atividades informais produzidas no interior de um
espaço de mercado.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Diante de tudo o que foi dito, o Estado brasileiro acaba sendo
instrumentalizado em favor desta percepção de legitimidade e de proteção
das riquezas patrimoniais, sejam elas provenientes de um mercado atuante em
espaços lícitos, ou em espaços ilícitos. A atividade criminal, neste
âmbito, não se trata de um movimento contra o Estado, mas contra um
determinado funcionamento do aparelho burocrático do Estado que não
favoreça a livre circulação de riquezas produzidas sob a ótica de um
mercado político e sua legitimação em favor de um titular. A violência
decorrente desta disputa é muito mais produto da assimetria de poder nas
relações sociais de que do legítimo interesse em romper e em eliminar tais
ligações perigosas entre o Estado e as forças do mercado. Idealmente, se
esta assimetria do poder se desse em favor do Estado, legitimamente
constituído, existiriam maiores chances de pacificação social e de
neutralização da violência horizontal presente no meio das comunidades
humanas, em prol do exercício de uma dominação legal com pretensões
monopolísticas dos conflitos sociais e o respeito aos direitos humanos. O
problema é que esta assimetria, presente nas relações de poder, somente é
favorecedora de uma ordem burocrática extorsiva e corruptível, estimulando
o excesso e a concentração de poder, o arbítrio, o uso da violência e as
reações criminógenas horizontalizadas, como ocorrem no estudo de caso
brasileiro. O Estado torna-se, em definitivo, o instrumento maior de
produção de riquezas e de extorsão social. Invertem-se, por completo, as
expectativas de construção de uma cidadania a partir dos direitos
preservados no espaço público pela atuação das agências estatais. Daí um
constante apelo para formas sociais solidárias e alternativas a fim de
lidar com esta exclusão do interesse público dos verdadeiros fins de um
Estado submetido ao modelo de capitalismo político. Também os riscos de uma
horizontalização libertária e de perpetuação da barbárie.


REFERÊNCIAS


BARBATO Jr, R. Direito Informal e Criminalidade: os códigos do Cárcere e do
Tráfico. Campinas – SP: Millenium, 2007;





COMTE-SPONVILLE, A . O Capitalismo é moral? Trad. Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2005;


FAORO, R. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro.
V.2. 5ª ed. Porto Alegre: Globo, 1979;


HOLANDA, S.B de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1995;


MISSE, M. Crime e Violência no Brasil Contemporâneo: estudos de sociologia
do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006;


SOARES, L. E. Legalidade Libertária. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2006;


THOMPSON, E.P. Senhores & Caçadores: a origme da Lei Negra. 2ª ed. Trad.
Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1997;


WALLERSTEIN, I. Capitalismo Histórico & civilização capitalista. Trad.
Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001;


WEBER, M. Économie et Société/1: Les Categories de la sociologie. Trad.
Julien Freund; Pierre Kamnitzer; Pierre Bertrand; Éric de Dampierre; Jean
Maillard e Jacques Chavy. Paris: Librairie Plon, 1971a;


WEBER, M. Économie et Société/2: L'Organisation et les puissances de la
société dans leur rapport avec l`économie. Trad. Julien Freund; Pierre
Kamnitzer; Pierre Bertrand; Éric de Dampierre; Jean Maillard e Jacques
Chavy. Paris: Librairie Plon, 1971b;


ZIEGLER, J. Senhores do Crime: as Máfias contra a Democracia. Trad. Clóvis
Marques. Rio de Janeiro: Record, 2003;


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[1] AUTOR: Prof. Dr. Gustavo Barbosa de Mesquita Batista, professor de
Direito Penal do Departamento de Direito Público do Centro de Ciências
Jurídicas da UFPB, extensionista do Núcleo de Cidadania e Direitos
Humanos da UFPB e professor do Programa de Pós-Graduação do PPGDH - NCDH
da UFPB.
[2] Nesse sentido, é importante a leitura do do texto de Comte-Sponville
intitulado: O Capitalismo é Moral? (2005)
[3] Numa perspectiva bastante crítica com relação a utilização desta
terminologia após a redemocratização constitucional obsevada no Brasil,
vale a leitura do texto de Luciano Oliveira intitulado: Pluralismo
Jurídico e Direito Alternativo no Brasil: notas para um balanço (2004: 75-
109). Entretanto, salientamos que no presente trabalho, reconhecemos
ordens cogentes e binárias presentes no contexto brasileiro, embora não
atribuamos as mesmas características positivas e emancipatórias às ordens
concorrentes à ordem estatal que eram estabelecidas pelos grupos do
direito alternativo da década de 80. Gostaríamos, aí sim, que a própria
legalidade, conservando os valores constitucionais consagrados em 1988, é
que fosse libertária, como tão bem explanada essa necessidade de uma
ordem estabilizadora apta a produzir emancipação por Soares (2006).
[4] Para Comte-Sponville o capitalismo simplesmente não é moral, ou
imoral, sendo tão somente amoral, como de resto qualquer modelo econômico
(2005: 71-87). O problema é que ele reconhece os esforços de angelismos
jurídico, político e moral presentes nas estruturas capitalistas, que
buscam eticizar a busca dos lucros, através da justificativa de geração
de empregos, respeito aos clientes, circulação e repartição das riquezas
e responsabilidade solidária (2005: 106-130).
[5] Além de tantos outros tipos penais positivados no Brasil que
mereceriam a presente análise, escolhemos, aqui, para exemplificar a
persistência oculta do critério de diferenciação punitiva, um tipo penal
em que este fenômeno repressivo dirigido a uma categoria de pessoas ou
indivíduos tornou-se imediatamente palpável em razão da elaboração
descritiva da conduta penalmente proibida. Trata-se da figura típica
prevista no Capítulo VI, entre o Título dos Crimes Contra o Patrimônio,
do atual código penal, ainda vigente, em seu art. 176: Tomar refeição em
restaurante, alojar-se em hotel, ou utilizar-se de meio de transporte,
sem dispor de recuros para efetuar o pagamento. Este tipo penal mal
conseguiu esconder sua escolha punitiva, que é daqueles que não dispõem
de recursos para efetuar o pagamento (pessoas pobres), o dolo enquanto
elemento anímico representativo do tipo penal deve levar em consideração
o fato de não possuir recursos para efetuar o pagamento do restaurante,
hotel, ou transporte e não, a simples intenção, a priori, de não efetuar
o pagamento do serviço que pretendia que lhe fosse prestado, causando
prejuízo a outrem. Alguém poderia dizer que, na verdade, o art. 176, pelo
pequeno volume de pena aplicada, seria tão somente uma configuração
privilegiada em relação ao tipo geral de estelionato, previsto no art.
171, caput e parágrafos do mesmo código penal. Talvez, esta fosse a
interpretação mais garantista a ser dada para um tipo penal, favorecendo
pessoas que não dispusessem de recursos para oferecerem a contraprestação
de determinados serviços. Todavia, ficou claro o fato de que, quem provar
que dispunha de recursos no momento da ação, ou omissão, apenas não
efetuando o pagamento enquanto contraprestação do serviço, excluirá o
dolo e, não sendo o tipo previsto também na forma culposa, redundará na
atipicidade do fato. Neste caso, o direito penal liberal recriou
claramente um modelo de diferenciação punitiva, embora ocultado pela
construção típica de matriz liberal que, em tese, é aplicada sobre todos
os indivíduos integrantes de uma comunidade.
[6] O que não impede, a identificação de uma classe de pessoas como
criminalmente perigosa e uma auto-concepção justa e socialmente adequada
do banditismo, reclamada por parte de alguns criminosos, declarando-se,
verdadeiramente, justiceiros e comprometidos com a produção de padrões
mínimos de "seguridade social" para si mesmo, seus familiares e sua
comunidade. Entretanto, a idéia marxista ortodoxa da luta de classes cai
por terra, quando observado que não há qualquer compromisso, por parte
destes delinqüentes, com relação à emancipação coletiva de sua classe
social, o reconhecimento material e histórico dos direitos dela e a
mudança da sociedade no sentido do socialismo, ou seja, não há uma
estrutura de rebelião informando as condutas deste banditismo social.
Formam-se, tão somente, novos consumidores aptos a se agruparem em
parcelas informais do mercado e desfrutarem dos bens de consumo, natural
e/ou culuralmente impostos, gozando, inclusive, de uma certa proteção
social (MISSE, 2006: 229-238). Isto aparenta destoar da concepção
difundida por Thompson quanto à existência de uma luta de classes sem uma
clara identificação de classe social, tão somente pela oposição opressor-
oprimido, o que demonstraria a articulação de diversas estratégias de
sobrevivência por parte dos oprimidos, que comprovam sua consciência
acerca da opressão e da necessidade de reagir ou inovar, criando formas
de socialização próprias, ou, inclusive, buscando na própria lei estatal
uma interpretação que lhes seja favorável (THOMPSON, 1997: 356-361).
Todavia, como estratégia de sobrevivência das classes subalternas, não
vemos discordância com tais definições prestadas pelo historiador inglês,
que também fugia das interpretações presentes no marxismo ortodoxo. Por
fim, Thompson faz uma declaração surpreendente com a qual concordamos
plenamente: (...) as pessoas não são tão estúpidas quanto supõem alguns
filósofos estruturalistas (...) A maioria dos homens tem um forte senso
de justiça, pelo menos em relação aos seus próprios interesses (1997: 353-
354). Logo, embora esta contraposição oprimido-opressor não aparente ser,
inicialmente, de caráter ideológico, isto não impedirá o exercício de uma
consciência crítica de justiça que confira a uma prática criminal a
classificação de uma estratégia de sobrevivência válida por parte de
membros das classes desfavorecidas, o que já é em si mesmo uma
representação de plano ideológico, independente de sua atuação criminal
observar o compromisso desta justiça, buscada particularmente, com
mudanças da sociedade.
[7] Isto não importou no desaparecimento de uma constante instabilidade
nas relações que são mantidas entre estas autarquias personalistas no
plano local, daí a violência e a alta mortalidade de jovens nos bairros
periféricos dos centros urbanos brasileiros. São estes jovens que
valorizam as atividades guerreiras como principais valores masculinos e
acabam sendo recrutados ao aceitarem: a arma como o passaporte para a
visibilidade social e o reconhecimento, antes de usá-la em benefício de
estratégias econômicas (SOARES, 2006: 596-597). Para Luiz Eduardo Soares,
não se trata tão somente de uma avaliação racional de mercado, talvez
feita pelas lideranças e pela alta cúpula dos grupos criminosos em
atuação no Brasil, mas da constituição de uma verdadeira cultura
guerreira entre os seus recrutados menores – seus soldados (todos jovens,
que matam e morrem), independente de sentido, razão ou bandeira política
(2006: 597). Esta guerra é generalizada e, por mais contraditório que
pareça, não se dirige própria e exclusivamente contra o Estado, mas
também contra grupos rivais e novas formas de dominação territorial e
local. Não há uma ideologia político-econômica que lhe justifica, mas
unicamente o espírito guerreiro também presente nas epopéias dos
medievais cavaleiros andantes europeus. Nossos cavaleiros de aventuras
pós-modernos usam motos, ao invés de cavalos, e fuzis, ao invés de lanças
e de espadas.
[8] Através de operações de Lavagem de Dinheiro, nesse sentido vide o
texto de Braga (2010)
[9] Este poder paralelo era melhor definido na disputa entre o poder
central do Estado brasileiro e os poderes locais de natureza
familiarista, em especial, no período da República Velha, onde foi forte
o poder local dos coronéis. Alguns desejavam, inclusive, uma completa
independência em relação ao centro político nacional, como o fato
ocorrido na Paraíba por intermédio da formação de uma República
Independente no município de Princesa Isabel, sob a presidência do
coronel Zé Pereira, que resistiu por três meses às tropas federais,
arregimentando sua própria milícia (MELLO, 2008: 176-183). Guardada as
diversas proporções e ausente o conteúdo messiânico (pelo menos por parte
de seu líder), este fato repetiu uma situação de busca de independência,
secessão e autonomização que estavam presentes no momento da declaração
da República, em especial, no movimento que importou a constituição da
comunidade de Canudos, aí de caráter messiânico. Estes comportamentos de
rebelião buscavam a constituição de uma organização política independente
do centro político da República brasileira recém-fundada. Estes foram, de
fato, movimentos de disputa direta com a soberania e o poder do Estado,
que criavam enclaves para o funcionamento político normal das
instituições públicas e sua busca de centralização das decisões políticas
(SOARES, 2006: 593)
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