CAPITALISMO SELVAGEM 3: Crônicas da Vida Corporativa e do Trabalho

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THOMAZ WOOD JR.

CAPITALISMO SELVAGEM 3: Crônicas da Vida Corporativa e do Trabalho

1ª edição

São Paulo Edição do Autor 2016

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Copyright © 2016 Thomaz Wood Jr. Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização do autor. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 pelo artigo 184 do Código Penal. Preparação e foto da capa: Thomaz Wood Jr. Revisão: Paula Thompson Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Wood Jr., Thomaz. Capitalismo selvagem 3: crônicas da vida corporativa e do trabalho / Thomaz Wood Jr. - - 1. Ed. - - São Paulo: Ed. do Autor , 2016. 245 p. 939 Kb; PDF ISBN 978-85-914912-2-3 1. Administração de empresas 2. Capitalismo 3. Comportamento organizacional 4. Cultura organizacional 5. Liderança 6. Mudança organizacional 7. Organizações – Administração 8. Trabalho I. Título. 16-03547

CDD 658 Índices para catálogo sistemático:

1. Gestão de organizações

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2. Organizações : Gestão

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Edição do autor Fone 55 11 38 46 06 01 E-mail [email protected] 3

Para Ana e Daniel, que ajudarão a construir um mundo melhor...

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SUMÁRIO Apresentação, 007 Parte 1 – O capitalismo selvagem e a sociedade, 009 O incrível Ponzi, 010 Os mortos-vivos, 013 Voando solo, 016 O self tercerizado, 019 Compra-me ou devoro-te!, 022 Procuram-se cidadãos, 025 Procuram-se trabalhadores, 028 Meritocracia tropical, 031 Ignorância financeira, 034 A culpa não é só das estrelas, 037 Sobre mentiras e estatísticas, 040 O espírito (em crise) do capitalismo, 043 Soluções mágicas, mudanças incertas, 046 Anarquia e controle, 049 O trabalho nas telas, 052 A era da impaciência, 055 Chamem as meninas!, 058 A igreja da diversão tecnológica, 061 A Plutonomia e o Precariado, 064 O pastor e os CEOs, 067 O fim do trabalho?, 070 A polêmica arte da persuasão, 073 Procuram-se líderes, 076 Uma nação de videotas, 079 O futuro do trabalho, 082

Parte 2 – O capitalismo selvagem e as empresas, 085 Os novos quebra-galhos, 086 Afogando-se em números, 089 A vista da cobertura, 092 A fadiga do decisor, 095 O desafio da inovação, 098 Inovar ou imitar, eis a questão, 103 Vivendo perigosamente, 106 Os herméticos, 109 Pasárgada maculada, 112 A vida na gaiola, 115 Imagem apagada, 118 Idiotas, estúpidos e simpatizantes, 121 Colcha de retalhos planetária, 124 A arte de pastorear gatos, 127 A arte do tempo, 130 5

Panóptico corporativo, 133 Tragédias anunciadas, 136 Grande demais para o cárcere, 139 Ritual anacrônico, 142 Talentos ocultos, 145 O inimigo interno, 148 Dormindo com o inimigo, 151 O fim dos gerentes?, 154 No reino dos amazonians, 157

Parte 3 – O capitalismo selvagem e a academia, 160 Festa agridoce, 161 O caminho das pedras, 164 Inferno na torre... de marfim, 167 Slow science, 170 Universidades virtuais, 173 A vida na linha de montagem, 176 A USP (não) é várzea!, 179 O Lobo do Management, 182

Parte 4 – O capitalismo selvagem e a formação profissional, 185 Procuram-se estudantes, 186 Virtudes perdidas, 189 Investimento duvidoso, 192 Tiro no escuro, 195 Acertos e erros, 198 O futuro da educação, 201 Parte 5 – Escapando do capitalismo selvagem, 204 Pensar dói?, 205 Redução do ego, 208 A cri$e do$ e$$e$, 211 De Mozart a Sherman, 214 A cultura do desdém, 217 Correio maldito, 220 Aula de produtividade, 223 The Bang-bang Club, 226 A semana de 15 horas, 229 Lucro verde?, 232 Rituais antiquados, 235 Em busca do tempo perdido, 238 Emancipados e órfãos da CLT, 241

Sobre o autor, 244

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APRESENTAÇÃO

Capitalismo Selvagem 3 segue a concepção e o tom de seus antecessores, lançados em 2014 e em 2015. Capitalismo selvagem é um termo originalmente aplicado a uma fase histórica do desenvolvimento do sistema, na época da Revolução Industrial. Nesse período, as condições de trabalho eram subumanas: as jornadas eram longas, o ambiente, insalubre, e os chefes (ou capatazes) tratavam os trabalhadores como verdadeiros escravos. Desde o século XVIII, muita coisa mudou: o movimento sindicalista cresceu e consolidou-se, a legislação trabalhista avançou e o desenvolvimento do mercado de trabalho impôs limites às empresas. Entretanto, não se pode dizer que o sistema tenha sido domesticado. Primeiro, porque a “selvageria” original ainda persiste em muitas partes do mundo, especialmente nos países de industrialização tardia, e também em diversas regiões dos países em desenvolvimento. Segundo, porque um novo tipo de “selvageria” surgiu, mais sofisticado, porém tão desumanizador quanto o original. Essa nova selvageria manifesta-se pela colonização da vida pessoal por valores empresariais e pelas práticas de controle social e cultural nas empresas. Este livro traz reflexões sobre essa realidade. Seu conteúdo foi gerado pela observação direta, pelo contato com as experiências, muitas vezes traumáticas, de colegas, clientes e alunos. Utilizaram-se, também, generosas doses de reflexões 7

críticas, proporcionadas por pesquisadores e jornalistas que se dedicaram a desvendar o lado B do mundo corporativo contemporâneo. A obra está organizada em cinco partes: a primeira parte apresenta uma leitura mais ampla, tratando da invasão da sociedade pelo capitalismo selvagem; a segunda parte aborda os contornos e as manifestações do capitalismo selvagem nas empresas; a terceira discute a situação da academia, assolada por pressões de produtividade científica; a quarta parte focaliza a questão da formação profissional, especialmente a de gestores; e a quinta parte trata de tentativas de fuga dos cidadãos, se não do sistema, ao menos de suas manifestações mais insanas.

Boa leitura!

São Paulo, maio de 2016.

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PARTE 1: O CAPITALISMO SELVAGEM E A SOCIEDADE

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O incrível Ponzi No início, havia o capital, o trabalho e as máquinas. Então, surgiu Charles Ponzi, prometendo riqueza fácil e rápida, e o mundo dos negócios nunca mais foi o mesmo.

Seu nome completo era Carlo Pietro Giovanni Guglielmo Tebaldo Ponzi. Ele nasceu em Lugo, na Itália, em 1882, e morreu no Rio de Janeiro, então capital federal dos Estados Unidos do Brasil, em 1949. No começo do século XX, o irrequieto italiano abandonou a Universidade La Sapienza, em Roma, e partiu para a América. Em 1907, mudou-se para o Canadá, onde se empregou em um banco, recém-criado para atender aos imigrantes italianos que chegavam a Montreal. O banco atraía depositantes com a promessa de pagamento de juros convidativos sobre os depósitos. Mal gerido, acabou por ir à falência, quando a captação de novos depósitos revelou-se insuficiente para cobrir a operação deficitária. O dono, Luigi Zarossi, fugiu para o México com o dinheiro que conseguiu tomar. Depois da participação em diversas falcatruas, Ponzi passou algum tempo na prisão, onde se aproximou de Charles W. Morse, um especulador de Wall Street, tido como modelo e inspiração para seus golpes posteriores. Seu famoso esquema nasceu pouco depois, quando Ponzi percebeu a possibilidade de obter lucros com a comercialização de cupons postais. Estabelecida a operação, Ponzi pôs-se a divulgá-la, prometendo lucros extraordinários para os investidores. Seus primeiros clientes tiveram suas expectativas atendidas. A notícia espalhou-se, gerando uma explosão nos negócios, que se expandiram vigorosamente com a contratação de agentes de captação. No início da década de 1920, o frenesi em torno do esquema criado por Ponzi era tal que muitos investidores passaram a hipotecar suas propriedades e contrair dívidas para fazer 10

aplicações. O fluxo contínuo mantinha o esquema vivo, pagando os retornos esperados para os investidores que decidiam realizar seus lucros. O estouro do esquema ocorreu pouco depois, com uma série de matérias investigativas realizadas pela imprensa, que expuseram a inviabilidade do modelo de negócios arquitetado pelo atrevido empresário. Ponzi declarou-se culpado e cumpriu pena. Solto alguns anos depois, lançou um empreendimento imobiliário na Flórida, no qual prometia novamente ganhos fabulosos para os investidores. Seus novos negócios envolviam a venda de terrenos pantanosos, inclusive alguns trechos submersos. Seguiu-se novo julgamento e mais um período na prisão. Em 1934, Ponzi foi deportado para a Itália, onde tentou, sem sucesso, criar novos negócios. Terminou a vida debilitado, praticamente cego e miserável, no Rio de Janeiro. Deixou para a posteridade o livro The Rise of Mr. Ponzi: The Autobiography of a Financial Genius. Ponzi termina sua obra em grande estilo: “Meu castelo de cartas entrou em colapso! A bolha estourou! Eu perdi! Perdi tudo! Milhões de dólares. Crédito. Felicidade. E até minha liberdade! Tudo, exceto minha coragem. [...] Vida, esperança e coragem são uma combinação que não conhece derrota. Talvez, contratempos temporários, mas uma derrota final e permanente, jamais!". O autor e a obra parecem ter inspirado muitos seguidores, acima e abaixo da linha do Equador. Ron Chernow, em um artigo publicado na revista The New Yorker, qualificou Ponzi como um personagem charmoso, criativo e extremamente audacioso. Em seus anos de glória, portava-se como um dândi, elegante e bem-vestido, cortejando repórteres e obtendo, em troca, uma cobertura de mídia em geral laudatória. A comunidade italiana de Boston adotou-o com júbilo. Segundo Chernow, as fraudes financeiras constituem o crime preferido de arrivistas e sonhadores inseguros. Obcecados por se sentirem respeitados e importantes, eles desenvolvem a pretensão de partilhar a vida da alta sociedade. 11

Embora tenha sido descrito como um idiota financeiro por um assessor, Ponzi se achava um mago, um visionário. Nunca admitiu que seu sistema estivesse fadado ao fracasso ou teve clareza moral para admitir que fosse um charlatão. Ponzi não foi capaz de sentir remorsos pelo que fez e pelas perdas e sofrimento que causou. Esquemas Ponzi, antes de serem detectados, fazem sucesso entre seus articuladores e entre suas (futuras) vítimas. Investidores comumente o enaltecem, como se contivessem propriedades mágicas, como se o mistério do moto-contínuo houvesse finalmente sido descoberto. Alguns desconfiam do milagre, porém adiam o momento da saída até que, eventualmente, seja tarde demais. Seu inexorável fim costuma deixar as vítimas de bolso vazio e coração partido, desnorteadas pelas ilusões perdidas. Isso até que novas ilusões lhes arrebatem o desejo de enriquecimento rápido e um novo ciclo de esperança, euforia e decepção se instale. A memória coletiva, a história parece insinuar, não opera com registros de longa duração.

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Os mortos-vivos Zumbis tornaram-se figuras onipresentes nas telas e em livros. Mas agucemos o olhar e notaremos que a vida imita a arte: as paradoxais criaturas estão tomando as escolas, as empresas e as cidades.

Havana, um dos últimos bastiões socialistas, é invadida por mortos-vivos. Sara e Juan deixam seu apartamento e deparam-se com uma multidão de zumbis, vagando pelas ruas. Sara vira-se para Juan e afirma, resignada, que não notou nenhuma diferença. A cena é uma das pérolas satíricas de um filme de terror cubano, Juan de los Muertos, dirigido pelo jovem cineasta Alejandro Brugués. Embora o cineasta, por razões óbvias, fuja do confronto direto com o governo local, a obra pode ser lida como uma crítica social ao estado das coisas na ilha caribenha, depois de meio século de socialismo real, ou surreal. Juan de los Muertos segue a onda de filmes e livros que exploram, para fins de parábola, metáfora ou sátira, os mortos-vivos. Nas telas, George A. Romero é comumente apontado como o responsável pela popularidade das criaturas. O diretor nova-iorquino realizou, em 1968, A Noite dos Mortos-vivos, que se tornou objeto de culto entre os aficionados do gênero. Muitos outros seguiram seus passos. A lista de filmes sobre zumbis é extensão e curiosa, abrangendo títulos criativos, tais como A Morte dos Mortos, Uma Virgem entre os Morto- Vivos, Os Alienígenas e os Zumbis, O Zumbi Americano, A Invasão Atômica de Cérebros, O Acordar dos Mortos, O Cérebro Morto, Zumbis Cáusticos, Os Filhos dos Mortos-vivos, Cadáveres São para Sempre, A Dança dos Mortos, A Vida Morta, O Homem do Cemitério, Morte ao Zumbi Bastardo!, Noites Eróticas dos Mortos-Vivos, As Fêmeas Mercenárias na Ilha dos Zumbis, O Massacre dos Zumbis de Harvard, Os Zumbis Vegetarianos, Eu Fui um Zumbi para o FBI, 13

Zumbi Kung Fu, Zumbis na Broadway, Os Zumbis Vampiros Mutantes das Florestas e muito, muito mais. Para a imaginação dos diretores e roteiristas, o céu (ou o inferno) é o limite. O que explica nossa fascinação com tais criaturas? Para alguns, nosso interesse vem do medo da própria morte. Outros veem a popularidade dos zumbis como reflexo de uma época na qual a humanidade se depara com os limites físicos da própria Terra e com a possibilidade real de extinção da vida no planeta. Filmes e livros são espaços vivenciais fechados, nos quais podemos projetar nossos medos e angústias, reais ou imaginários, e vê-los resolvidos pela ação engenhosa de heróis. O zumbi é um cadáver animado, trazido de volta à vida (ou um simulacro de vida) por meio de artifícios de bruxaria ou tecnologia. Sua origem é comumente associada a rituais religiosos haitianos e africanos. No cinema ou na literatura, o zumbi é sempre um personagem paradoxal: um morto-vivo. Não tem cérebro nem paladar apurado. Age como um sonâmbulo, geralmente movido por uma busca voraz por carne humana. Multiplica-se no ritmo das pandemias, poupando somente um pequeno número de seres humanos, necessários para contar a história e manter a narrativa do filme ou livro. O zumbi é, por natureza, um ser antissocial: alimentase da carne de seres vivos e ignora as mais simples regras de civilidade. No entanto (mais um paradoxo), costuma movimentar-se em grandes bandos. Também no caso dos zumbis, a vida imita a arte. Basta aguçar o olhar o mirar o mundo ao redor para constatar que vivemos cercados por hordas que poderiam integrar os bandos de mortos-vivos de Juan de los Muertos ou estrelar qualquer filme de George A. Romero. Cuba é aqui. Não tivemos cinco décadas de socialismo, porém a combinação local de cleptocracia política, autismo social e indigência cultural provocaram efeito similar. Nossos trópicos estão sendo tomados por mortos-vivos. Jovens zumbis posam de estudantes, sentados nas salas de aulas, enquanto os dedos percorrem os 14

teclados de smartphones e a mente flana sem direção por espaços virtuais e mídias sociais. Zumbis operários simulam trabalho nas estatais, nas linhas de montagem e nas centrais de atendimento. Zumbis emergentes vagam pelos shopping centers, os olhos vidrados nas vitrines. O mundo corporativo transformou-se em uma grande fábrica de zumbis. As faculdades de administração formam exércitos de mortos-vivos. Nos bancos escolares, os estudantes têm seus cérebros retirados. Perdem o senso crítico, desenvolvem obsessão pelo status e voracidade pelo dinheiro. Uma vez graduados, tonam-se zumbis trainees, condicionados a praticar os estranhos rituais da vida corporativa e a adorar seus chefes zumbis. Passam, então, a integrar empresas zumbis, sob o comando de executivos zumbis. Nessas estranhas organizações, a vida segue roteiro de filme trash. O pior é que, como a personagem Sara, de Juan de los Muertos, estamos nos tornando cada vez menos capazes de perceber a diferença.

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Voando solo Sociólogo norte-americano revela que cada vez mais pessoas vivem voluntariamente sozinhas. O fenômeno relaciona-se a mudanças na sociedade e na vida profissional.

O inferno são os outros! A conhecida frase de Jean-Paul Sartre agora dá sentido a um fenômeno de massa. Se o inferno são os outros, então nossos contemporâneos parecem estar se movimentando para fugir das catacumbas sulfurosas. Segundo Eric Klinenberg, professor de sociologia da Universidade de Nova Iorque e autor do livro Going Solo: The Extraordinary Rise and Surprising Appeal of Living Alone (Editora Penguin), cada vez mais pessoas optam por viverem sozinhas. O autor carrega nas tintas, embalado por um mercado editorial viciado em títulos de impacto, argumentos surpreendentes e fatos irrefutáveis, mas o livro tem méritos. Segundo Klinenberg, estamos presenciando uma inflexão histórica. Cultivamos, durante milênios, uma repulsa existencial e filosófica à solidão. “O homem que vive isolado, que é incapaz de partilhar os benefícios da associação política, ou não precisa partilhar, porque já é autossuficiente, não faz parte da polis, e deve, portanto, ser ou uma besta ou um deus”, escreveu Aristóteles (apud Klinenberg). As sociedades humanas se estruturaram em torno do desejo fundamental dos indivíduos, de viverem na companhia uns dos outros. O isolamento é frequentemente associado à punição. Uma criança malcomportada é separada de seus pares e colocada sozinha. Um prisioneiro malcomportado é trancafiado na solitária. 16

Entretanto, segundo Klinenberg, tudo isso está mudando. Nas últimas décadas, houve um aumento expressivo do número de homens e mulheres que passaram a viver voluntariamente sozinhos. O fenômeno é consequência do desenvolvimento econômico, que permite maior autonomia; da superação da lógica econômica do casamento, que dá maior liberdade às pessoas para buscarem arranjos alternativos; da urbanização, que adensa as comunidades humanas; e da evolução das tecnologias de informação e de comunicação, que facilitam a interação entre as pessoas. Resultado: estamos casando mais tarde, prolongando o período entre o divórcio e o novo casamento, ou evitando um novo casamento, e escapando o quanto possível da possibilidade de viver com outra pessoa. É o novo solteirismo! Nas grandes cidades norte-americanas, 40 por cento das moradias têm um único ocupante. Em Washington e em Manhattan, casos extremos, são 50 por cento. E o fenômeno não se restringe aos Estados Unidos. Paris apresenta números superiores a 50 por cento e, em Estocolmo, a taxa chega a 60 por cento. China, Índia e Brasil, países em desenvolvimento, caminham no mesmo sentido. Viver sozinho deixou de ser fonte de medo e causa de isolamento social. As vantagens são notáveis: controle sobre a própria vida, liberdade de ação e melhores condições para perseguir atividades voltadas para a autorrealização. No imaginário social, vai surgindo um novo modelo ideal: o neossolteiro, o homem ou mulher que é um profissional bem-sucedido, socialmente atuante e mestre de sua existência. O fenômeno do novo solteirismo relaciona-se a outro fenômeno, maior, de enfraquecimento dos vínculos e das relações, que se manifesta na vida social e na vida profissional. Richard Sennet registrou a tendência no livro A Corrosão do Caráter (Editora Record), no final da década de 1990. De fato, o comprometimento dos indivíduos com instituições e organizações vem se fragilizando há algumas décadas. Hoje, transitamos por inúmeros grupos, empresas e comunidades, porém estabelecemos relacionamentos apenas tênues e temporários. 17

Nas empresas, depois de seguidas ondas de reestruturações, enxugamentos e terceirizações, os empregos “para toda a vida” estão quase extintos. Paradoxalmente, empresários e executivos continuam esperando alto grau de envolvimento e comprometimento de seus funcionários, e frustram-se quando não os conseguem. Com a ajuda de asseclas de recursos humanos, tentam tapar o sol com a peneira, programando palestras motivacionais, abraçando árvores e promovendo interlúdios culturais. Pouco adianta. As novas gerações representam para as empresas considerável desafio: os mais jovens são individualistas, inquietos e despudoradamente ambiciosos. Saltam de galho em galho corporativo sem olhar para trás. Habitam redes fluidas, sejam elas comunidades reais ou virtuais. São impacientes com o presente e ansiosos pelo futuro. Neste admirável mundo novo, perde espaço o que é estável e profundo, ganha espaço o que é efêmero e superficial. Afirmam os profetas do mundo plano que terão vantagens os mais dinâmicos, os mais extrovertidos, aqueles com mais iniciativa e sem medo de errar, aqueles capazes de usar diligentemente seu capital social em prol da própria marca. E os incomodados que se mudem... de planeta?

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O self tercerizado Mais um avanço do mercado sobre o indivíduo: a onda agora é terceirizar atividades e responsabilidades da vida privada para prestadores de serviços.

O tema é tratado há décadas no mundo corporativo. Como é de conhecimento até mesmo das correias transportadoras, terceirizar significa contratar externamente uma atividade da cadeia produtiva, em lugar de realizá-la internamente. O suposto objetivo é melhorar a qualidade e reduzir custos. Pressupõe-se que um processo bem-conduzido permite à empresa que terceiriza concentrar-se em suas atividades essenciais, enquanto adquire serviços e produtos não essenciais de outras empresas, mais eficientes em suas especialidades. Até os anos 1970, as empresas eram fortemente integradas. Para produzir automóveis ou fraldas descartáveis, era preciso controlar as respectivas cadeias produtivas e seus “afluentes”. Com isso, as empresas gerenciavam dezenas de serviços de apoio, pouco relacionados às suas atividades fins: de restaurantes industriais até o transporte de funcionários. A partir do último quartil daquele século, a terceirização avançou sem piedade, gerando ganhos de eficiência. No entanto, nem todos foram vencedores: muitos profissionais foram demitidos ou tornaram-se trabalhadores de segunda classe. Além disso, o processo expôs as empresas a riscos, relacionados ao vazamento de know-how, rupturas no fornecimento e ameaças para a reputação. Significativamente, surgiu o termo primarização, o inverso da terceirização, ou seja, deixar de realizar algumas atividades externamente e voltar a controlá-las diretamente.

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O fenômeno da terceirização é substantivo e relaciona-se a mudanças econômicas amplas. Curiosamente, conforme aconteceu com outras práticas e termos originados na vida corporativa, também a terceirização invadiu a vida privada. Como em outros casos, a nova onda deu-se pela oratória onipresente dos gurus, por meio dos livros de gestão e pela ação da irritante mídia de autoajuda. Arlie Russell Hochschild, uma professora emérita de sociologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, escrevendo no jornal The New York Times, apresenta aos leitores a wantologist Katherine Ziegler, que ostenta um PhD em psicologia, mas trabalha ajudando seus pacientes a descobrir o que querem da vida. A Want-ology®, explica Hochschild, foi criada por Kevin Kreitman, uma engenheira industrial, especializada em qualidade total, produção enxuta, planejamento estratégico e mais uma lista robusta de modas gerenciais. Originalmente, o objetivo da criadora era orientar gestores a tomar decisões técnicas de compras em suas empresas. O salto para os seminários de autoajuda e o surgimento de discípulos, como Ziegler, parece ter sido pequeno. Hochschild observa que a mera existência de wantologists é reveladora de quanto o mercado penetrou nossas vidas privadas. Hoje, é possível contratar animadores de festas, alugar úteros e até pagar visitas a túmulos. Metemo-nos em um ciclo vicioso. A vida moderna nos tornou mais ansiosos, isolados e sem tempo. Para enfrentar esse contexto, trabalhamos mais tempo e mais intensamente para financiar serviços extras. Isso nos deixa ainda menos tempo para passar com nossa família, vizinhos e amigos. Com isso, temos menor chance de recorrer a eles (e eles a nós) para pedir ajuda. Assim, recorremos ao mercado. E o mercado atende sorrindo as nossas novas necessidades. De fato, a facilidade com que acessamos hoje os mais variados serviços nos impede de perceber o quanto foi transformada a noção do que deve ou não deve ser alugado ou comprado. O que nos reserva o futuro? Muitas empresas avançaram tanto na terceirização que se tornaram cascas vazias, a zelar pela marca e pela 20

imagem, e observar a distância as atividades físicas de produção, transporte e distribuição. Seguirão os indivíduos a mesma trilha? Seremos, no futuro, apenas gestores de uma marca pessoal, terceirizando atividades físicas e emocionais para o mercado? Ao observar o comportamento de torcedores de equipes de futebol, temse a impressão que o futuro é aqui, agora. Derek Thompson, escrevendo no website da revista The Atlantic, relativiza os comentários críticos de Hochschild, sugerindo que, à medida que a humanidade segue seu inexorável caminho rumo ao enriquecimento material, a fome deixa de ser uma preocupação. Toma o seu lugar o preenchimento de necessidades psicológicas mais sofisticadas. Daí a emergência de serviços como o prestado pelos wantologists. Será? Ao focalizar nossa atenção nos resultados, explica Hochschild, afastamo-nos dos aspectos mais significativos da existência. Atingimos nossos objetivos, concluímos a compra e conseguimos a entrega pretendida, porém perdemos o prazer, a sabedoria e a conexão com nossos pares, que vêm com a busca e a realização.

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Compra-me ou devoro-te! Mais um dia, mais um shopping center: no Brasil, como em outros países em desenvolvimento, a onda consumista continua em alta, porém sinais de ressaca pontuam o horizonte.

Há algumas semanas, o colega Willian Vieira publicou aqui em Brasiliana o registro etnográfico de suas perambulações pelo novíssimo Shopping JK. Nosso destemido Malinowski mergulhou nas entranhas do novo templo paulistano do consumo, fez contato com seus habitantes e registrou em prosa os exóticos comportamentos e rituais que observou. Sobreviveu à submersão aparentemente sem sequelas. Vieira conta com a admiração deste escriba, cuja taxa de permanência em centros comerciais limita-se a sete minutos por ano, tempo necessário para deixar o carro no estacionamento de um estabelecimento local, cruzar a passos largos os corredores e ganhar a rua, rumo a um consultório odontológico vizinho. Os grandes centros comerciais surgiram há quase 100 anos, nos Estados Unidos. Multiplicaram-se após a Segunda Guerra Mundial, por lá e alhures, acompanhando a expansão dos subúrbios. Desde o princípio, a ideia foi criar um ambiente fechado, destinado a estabelecer certo nível de controle sobre o comportamento das vítimas: os consumidores. Depois de décadas de expansão, nos Estados Unidos, muitos centros comerciais vêm perecendo, vítimas da crise econômica e do comércio eletrônico. No Brasil, os centros comerciais já se contam às centenas, e o número continua crescendo. Enquanto o mundo começa a sentir os efeitos da era do consumismo, os países em desenvolvimento continuam emulando os países desenvolvidos, clonando seus vícios com algumas décadas de atraso. Hoje, significativamente, os 22

maiores centros comerciais do mundo estão em países em desenvolvimento, tais como China, Filipinas, Malásia, Tailândia, Turquia e Indonésia. Alguns urbanistas veem os centros comerciais com desconfiança. Os gigantes são frequentemente acusados de provocar a decadência de centros urbanos e de gerar impactos negativos sobre o trânsito. Por esses e outros motivos, alguns países desenvolvidos estabeleceram restrições à construção de grandes centros comerciais. Sociólogos e antropólogos também costumam torcer o nariz para esses caixotes urbanos, tomados de horror por seus ambientes artificiais e sanitizados. Alguns os classificam como “não lugares”, espaços sem história ou identidade, aos quais multidões afluem sem que os indivíduos estabeleçam contato ou relação entre si, movidos unicamente pelo objetivo de consumir, sejam roupas, filmes, livros, refeições ou “experiências”. True Storie, filme de 1986, dirigido e estrelado por David Byrne, apresenta uma divertida colagem de personagens e histórias passadas na cidade fictícia de Virgil, no Texas. O centro comercial da cidade é o ponto de encontro dos personagens, referência central de suas existências. Poderia estar em qualquer lugar da Terra, ou aqui e agora. Consumo e consumismo têm sido objeto de interesse de cientistas sociais há tempos: sociólogos e antropólogos lhes dedicam prosa e verso. Em geral, incomoda-os que o marketing, e a cultura do consumo, tenha um papel tão central em nossa sociedade. Agastam-se ao constatar que o mundo hoje iguala desenvolvimento a consumo. Irrita-os o mantra que afirma que quanto mais desenvolvida for uma sociedade, mais seus cidadãos consomem. De fato, para a velha e para a nova classe média, sucesso significa acumular bugigangas eletroeletrônicas, panos com marcas e acessórios com grifes, significa comprar uma casa e lotá-la com peças de utilidade incerta e de gosto duvidoso. 23

Reza uma jocosa definição que a cultura do consumo é um amálgama de valores e comportamentos que se sustenta em três pilares: a mídia, o automóvel e o cartão de crédito. A mídia, especialmente a TV, diz às hordas o que comprar e onde encontrar; o automóvel as transporta até as fontes; e o cartão de crédito viabiliza a transação, mesmo que o cidadão não tenha fundos. No entanto, testemunhamos, nas últimas décadas, sinais de uma embriaguez que antecipa uma ressaca de grandes proporções: degradação ambiental, esgotamento de recursos naturais, invasão da esfera privada pelo mundo do trabalho, fragmentação do núcleo familiar, corrosão dos valores etc. A locomotiva do consumo, que nos trouxe até aqui, ameaça sair dos trilhos e vitimar seus frenéticos passageiros. Os pilotos usam alguma criatividade, unida a respeitáveis verbas de propaganda, para reformar e embelezar a máquina. Diz-se que o consumo agora deve ser responsável, verde e consciente. Mais agora é menos, porém mais caro. Mas... serão os passageiros sensíveis ao discurso? Será a reforma suficiente para evitar desastres? Descobriremos nos próximos anos, ou não...

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Procuram-se cidadãos Ligeiras considerações sobre um grande país sul-americano de muitas cidades e escassa cidadania.

Um grande país sul-americano, formidável em recursos explorados e potenciais irrealizados, é lar de mais de 200 milhões de habitantes. Habitante, como se sabe, é quem reside ou vive em determinado lugar. Entretanto, para as sociedades modernas, o que mais interessa são os cidadãos. Cidadão é outra coisa. O cidadão também habita, é certo, mas o cidadão vai além: ele tem direitos, civis e políticos, e tem deveres, para com a comunidade e o Estado. Consta que o conceito de cidadão surgiu nas cidades-Estados da Grécia antiga. Naquele tempo, ser cidadão não era para qualquer um: estrangeiros, escravos e mulheres não podiam fazer parte da seleta casta. E um homem livre podia perder o privilégio e tornar-se escravo: bastava contrair dívidas ou ser derrotado na guerra. A liberdade era, por isso, muito valorizada e possibilitava a participação na vida pública. De fato, envolver-se nos negócios da comunidade era mandatório e implicava deveres. Cumprir tais obrigações fomentava a virtude, gerava respeito e conferia honra aos cidadãos. Séculos e séculos transformaram a ideia de cidadania. Nas sociedades contemporâneas, o conceito varia de país a país, de cultura a cultura. Nalguns recantos, espera-se que os cidadãos paguem impostos, respeitem as leis, conduzam corretamente seus negócios e defendam a nação. Porém, deles não se espera ação política. Noutras plagas, espera-se que os cidadãos sejam atores políticos, atuando em uma das múltiplas esferas públicas. Apesar da diversidade, a essência do conceito foi mantida: espera-se que os cidadãos se comprometam com deveres para 25

fazer jus a seus direitos. Em nações multifacetadas em termos de religiões, etnias e culturas, a cidadania pode ser o elo a sustentar a sociedade. Enquanto isso, na citada nação sul-americana, o cidadão, como a ararajuba e o tamanduá-bandeira, animais pátrios, parece seguir trilha de extinção. Abundam os habitantes, desaparecem os cidadãos. Pois, por lá, o habitante tornou-se um ser de direitos, muitos direitos. Seu principal direito é tirar da sociedade tudo que pode. É um extrativista compulsivo, pouco afeito a preocupações com os outros e com o meio. O habitante da referida nação é essencialmente um reclamante. Ele reclama da corrupção, mas não perde chance de desembolsar vinténs para facilitar sua vida. Ele reclama do trânsito, mas não estaciona o carro. O carro, aliás, é uma extensão natural do corpo do residente. Ele (o carro) define sua personalidade. O habitante lava o carro quando falta água e transita pelo acostamento quando enfrenta congestionamento. Informatizado, o habitante adora o Waze, o aplicativo que troca minutos de espera por atalhos sinuosos e momentos de velocidade e fúria no trânsito, cortando coletivos, avançando em ruas residenciais e ameaçando ciclistas. O habitante é, em suma, um ser assimétrico, sempre acima de seus pares. O habitante do tal país é fruto e coprodutor de um sistema que ampliou a participação formal (o voto) e comercializou e emburreceu o espaço público. Conformou-se a uma mídia que cobre a política como um show de frivolidades, privilegiando celebridades em detrimento de ideias, e escândalos em lugar de realizações. No caminho, a cidadania esvaziou-se e cedeu lugar à simples habitação, e a virtude do dever deu espaço à cobiça do direito. O habitante reclamante ocupou a ribalta. O cidadão constrangido saiu de cena. E os tristes trópicos penhoraram seu futuro. Pequeno Cidadão é uma simpática composição de dois sensíveis artistas do desnorteado país. A dupla busca ouvintes de tenra idade e valores em gestação. A 26

letra é simples e cativante: "Agora pode tomar banho, Agora pode sentar para comer, Agora pode escovar os dentes, Agora pega o livro, pode ler...", e assim segue, com pequenos prazeres e deveres: comer chocolate e fazer a lição, pular no sofá e arrumar o quarto, sujar de lama e amarrar o sapato. O refrão segue a receita, simples e direto: "É sinal de educação, fazer sua obrigação, para ter o seu direito de pequeno cidadão". A singela canção representa a tênue esperança que a nova geração do citado país sul-americano reverta o desalentador quadro criado pelas hordas que a antecederam.

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Procuram-se trabalhadores Muitos profissionais brasileiros precisam enfrentar um fato da vida: não basta ter emprego; é preciso também trabalhar direito!

O livro Produtividade no Brasil foi escrito a partir de pesquisas realizadas pelo McKinsey Global Institute em oito setores da economia. Conclusão: a produtividade do trabalho das empresas brasileiras é um quarto da produtividade do trabalho das empresas norte-americanas (tomadas como referência), ou seja, são necessários quatro brasileiros para gerar o valor que um norte-americano produz. No prefácio da obra, o economista Edmar Bacha observa que o caminho para aumentar a produtividade poderia ser mapeado, que as empresas poderiam evoluir e que, se o Brasil aumentasse, em 10 anos, sua produtividade até três quartos da produtividade norte-americana, a renda por habitante dobraria. Importante: o livro foi lançado em 2000. O que mudou na produtividade do trabalho no Brasil desde então? Muito pouco. Uma década foi perdida. Dados divulgados pela revista The Economist mostram que, enquanto países como Coreia, China e Chile apresentaram forte evolução na última década, o Brasil permaneceu estagnado. Alguns setores e empresas evoluíram. Entretanto, o quadro geral é desanimador. Um conjunto de estudos divulgado pelo IPEA em 2013 registrou conclusão similar: nosso desempenho em produtividade e tecnologia é insuficiente e precisa melhorar para viabilizar o crescimento econômico. Os dados econômicos refletem a realidade que testemunhamos no dia a dia. Os restaurantes brasileiros são generosos no número de garçons, mas o atendimento é lento, os pratos vêm trocados e a conta chega errada. Nas dezenas de pequenas obras que empesteiam nossas cidades, para cada indivíduo trabalhando, vemos sempre outros quatro (ou 10) observando. Visitar as modernas 28

instalações de grandes empresas não revelará quadro distinto. A aparência pode ser de frenesi laboral, marcado por telefonemas urgentes e andares acelerados. Entretanto, um breve diagnóstico revelará uma infinidade de reuniões sem razão, projetos sem objetivo e iniciativas sem “acabativas”. Em suma: caos institucionalizado. Se o ambiente, as leis, a infraestrutura e a cultura de trabalho não cooperam, a gestão nas empresas também não ajuda. Pesquisas indicam que as empresas brasileiras são, em geral, mal-administradas. Sobra simpatia por modismos gerenciais, porém há pouco apreço por práticas consolidadas, aqueles processos e procedimentos básicos que não colocam a empresa na capa das revisas de negócios, mas que realmente importam. Houvesse um índice Gini que medisse a distribuição do trabalho no Brasil, este revelaria resultado tão desastroso quanto o de distribuição de renda, pois aqui poucos trabalham muito, a maioria trabalha pouco, e quase ninguém trabalha direito. Enquanto alguns setores e empresas carregam o piano da economia, gerando valor e divisas, outros setores e empresas apenas apreciam a música, sem ao menos pagar pelo ingresso. Tivesse a minoria produtiva consciência de classe, há muito teria posto a correr, ou trabalhar, as hordas parasitas ao redor. Qualquer executivo estrangeiro sabe que, no momento que cruza a fronteira brasileira, começa a perder tempo: no trânsito infernal, com a infraestrutura insuficiente, com a legislação arcaica, com os impostos incompreensíveis, e com a mão de obra pouco qualificada, frequentemente a sofrer de crônica laborfobia. De fato, a aversão ao trabalho é uma antiga característica tropical. Trabalhar por aqui nunca teve muito cartaz. Já foi coisa de escravo e de quem não tinha algo melhor a fazer. Nas décadas recentes, o Brasil se encheu de empregados, o que foi ótimo, mas não evoluiu na produtividade do trabalho, o que é péssimo. Quem quer

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o emprego, quer o salário, a segurança e o consumo que vêm do salário. Muito justo. Mas não parece querer a labuta justa que vem com o emprego. O trabalho nos trópicos não recebeu herança similar à da ética protestante. Do modelo de colonização e do flagelo da escravidão, herdamos a aversão à labuta. Pressionados, esticamos as jornadas e aceleramos o ritmo, recebendo em troca estresse e patologias, mas não conseguimos melhorar a forma como o trabalho é realizado. Recusamos o trabalho transformador e celebramos a mais conservadora preguiça, preparando-nos para perder mais uma década.

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Meritocracia tropical A maneira como tratamos a questão da mobilidade por mérito reflete busca de sínteses improváveis e coexistências inviáveis.

Depois de algum tempo submerso, o debate da meritocracia voltou à superfície. No mundo corporativo, executivos flertam novamente com o tema, ansiosos por superar práticas anacrônicas e “mudar a cultura”. No governo, alguns gestores apostam nos poderes mágicos da meritocracia para resolver problemas crônicos de gestão, que desvirtuam agendas, bloqueiam iniciativas e atrasam prazos. O conceito é polêmico, antigo e tem raiz política, relacionando-se a forma de governo no qual o poder é exercido por cidadãos selecionados de acordo com seus méritos e competências. Para crescer em tal sistema, o indivíduo deve demonstrar talento e capacidade de realização. Singapura, por exemplo, estabelece explicitamente a meritocracia como pedra fundamental de sua filosofia de governo. Nessa cidade-Estado de cinco milhões de habitantes e renda per capita de mais de 50 mil dólares, “o sistema de meritocracia assegura que os melhores e mais brilhantes, independentemente de raça, religião e origem socioeconômica, sejam encorajados a desenvolver totalmente seu potencial”. Em texto publicado em janeiro de 2014, na RAE-Revista de Administração de Empresas, da FGV-EAESP, a antropóloga Lívia Barbosa, pesquisadora da PUC-RJ e conhecedora do tema, faz uma análise da meritocracia na sociedade brasileira. A autora chama a atenção para as frequentes menções de autoridades governamentais à necessidade de “implantação da meritocracia” como princípio e prática de gestão e, por outro lado, a também frequente presença da frase “abaixo a meritocracia” em cartazes de categorias profissionais em movimentos de protesto. 31

No século XIX, os países europeus e os Estados Unidos superaram o sistema de distribuição de cargos e funções públicas aos vencedores das eleições. No Brasil, copiamos sem muita vontade os precursores: a meritocracia tornou-se um critério apenas eventualmente aplicado, em permanente disputa com o fisiologismo e as cotas políticas. Nas empresas, a fascinação com a meritocracia representa reconhecimento de que os sistemas de contratação, avaliação de desempenho e promoção (largamente disseminados) ainda convivem com práticas arcaicas de apadrinhamento e paternalismo. Implantar a meritocracia significa estabelecer metas ambiciosas para os funcionários, cobrar resultados e recompensar a realização. Espera-se, com a mudança, vencer a acomodação, reconhecer aqueles que de fato trabalham e fomentar um esforço coletivo para aumentar o desempenho. Livra-se dos encostados e ganha-se dinheiro. Bom negócio! Do outro lado do palco, os críticos da meritocracia desfilam seus argumentos. Para os seus detratores, a meritocracia é um discurso alienígena, primo do neoliberalismo e da globalização. Uma vez implantada, fomenta a competição desagregadora entre colegas, promove a quantidade, com prejuízo da qualidade, dá vantagens a poucos, em detrimento da maioria, gera estresse e ainda prejudica o ambiente organizacional. Para esse grupo, a culpa pela baixa produtividade, pela má qualidade dos serviços e pelos prejuízos é sempre externa: a falta de tecnologia, de ferramentas, de investimentos, ou a incompetência dos gestores e do próprio governo. Lívia Barbosa conclui que o debate atual não vem acompanhado por uma demanda coletiva pela meritocracia, seja na esfera pública ou nas empresas privadas. Segundo a antropóloga, uma análise da história brasileira revela que a introdução de critérios relacionados à meritocracia ocorreu em diversos momentos, porém sempre de cima para baixo, sem nunca permear de maneira consistente o

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tecido social. Assim, passou a conviver com valores e práticas existentes, frequentemente de maneira ambígua e paradoxal. O sistema imunológico cultural local parece rejeitar alguns pilares da meritocracia, tais como a competição e a diferenciação por mérito. A autora argumenta que, no Brasil, “queremos os resultados materiais da eficiência, da produtividade, da competitividade, mas não queremos os seus custos pessoais. Queremos a igualdade, mas aceitamos múltiplas lógicas hierárquicas quando elas nos beneficiam”. Assim, continuamos tentando combinar sistemas arcaicos com outros, supostamente modernos, juntando desajeitadamente nepotismo e meritocracia, e buscando sínteses inviáveis.

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Ignorância financeira Pesquisas realizadas em 12 países sugerem que a maioria das pessoas não sabe cuidar de seu dinheiro.

O tema das finanças pessoais chegou aos trópicos na década passada, pela porta da autoajuda. A onda repetiu outras tantas, com livros, vídeos, palestras e, obviamente, gurus. As livrarias de aeroporto encheram-se de títulos apelativos como: Pai Rico, Pai Pobre, Como Gastar sem Culpa e Investir sem Erros, Casais Inteligentes Enriquecem Juntos e Os Segredos da Mente Milionária. Entretanto, além dos clichês da autoajuda, o tema da educação financeira é relevante e tem impacto social. O crescimento econômico dos países emergentes na década de 2000 aumentou o poder de compra de contingentes da população. Empresas e bancos mobilizaram-se, bombardeando os recém-chegados ao mercado, e os já estabelecidos, com produtos e serviços. Para os consumidores e pequenos poupadores, as decisões de compra e investimento tornaram-se mais complexas. Adquirir ou alugar um apartamento? Financiar ou poupar para comprar à vista? Quanto (tentar) guardar para a aposentadoria? Como comparar uma NTNB com um CDB? A maior disponibilidade de recursos e a propensão a consumir, combinadas com a oferta de crédito, criaram um cenário explosivo, apto a produzir dívidas, situações de inadimplência e tragédias pessoais. O aumento da renda pode levar ao aumento da riqueza, do bem-estar e da qualidade de vida. No entanto, se a renda for mal administrada, pode também levar ao caminho da bancarrota. O que pode definir um caminho ou outro é o grau de educação financeira. Não se trata de cultuar a riqueza, mas de tomar decisões financeiras conscientes. 34

Annamaria Lusardi, da Universidade George Washington, e Olivia S. Mitchell, da Universidade da Pensilvânia, publicaram no Journal of Economic Literature, no início de 2014, um artigo sobre a importância da educação financeira. O texto compila investigações realizadas entre 2011 e 2013 em 12 países. Os resultados são preocupantes. As pesquisas foram baseadas em três questões simples, envolvendo conhecimentos sobre juros, inflação e ações: 1. Suponha que você tivesse $ 100 em uma conta poupança e que a taxa de juros fosse 2% ao ano. Após 5 anos, quanto você acredita que teria na conta se deixasse o dinheiro render? A. mais do que $ 102; B. exatamente $ 102; C. menos do que $ 102; D. não sei, recuso responder. 2. Imagine que a taxa de juros na sua conta poupança seja 1% ao ano e a inflação seja 2% ao ano. Depois de um ano, você poderia comprar, com o dinheiro dessa conta poupança: A. mais do que hoje; B. exatamente o mesmo que hoje; C. menos do que hoje; D. não sei, recuso responder. 3. Você acredita que a declaração a seguir é falsa ou verdadeira? Comprar ações de uma única empresa usualmente fornece um retorno mais seguro do que um fundo mútuo de ações. A. verdadeira; B. falsa; C. não sei, recuso responder. As respostas certas são A, C e B, respectivamente. O melhor resultado foi alcançado pelos alemães, mas não é brilhante: apenas 53% acertaram as três questões. Em seguida, vieram os suíços (50%). Os norte-americanos tiveram resultado ainda pior (30%), ficando pouco atrás dos franceses (31%) e à frente dos italianos (25%). No fim do grupo, ficaram os russos e os romenos, empatados com inquietantes 4%. Não há, no artigo, dados sobre o Brasil ou outros países latinoamericanos. Lusardi e Mitchell comentam que os indivíduos tendem a superestimar seu conhecimento sobre finanças, o que aumenta o risco de tomarem decisões equivocadas. E observam diferenças relacionadas à faixa etária, gênero e nível 35

educacional: as mulheres, os mais velhos e aqueles com menor nível de educação formal tiveram piores resultados nos testes. No entanto, as mulheres parecem ser mais conscientes de sua condição, o que as torna mais cautelosas e mais abertas à educação financeira. A literatura mapeada pelas autoras aponta que quanto maior a ignorância financeira, maior o risco de tomar decisões financeiras erradas, pagar juros elevados, contrair dívidas, cair em golpes e fazer maus investimentos. Por outro lado, quanto maior o nível de educação financeira, maior a probabilidade de gerenciar corretamente os recursos, de planejar a aposentadoria e acumular reservas, melhorando a qualidade de vida. É hora de os gurus darem lugar a educadores.

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A culpa não é só das estrelas No debate sobre competitividade, as empresas, supostas vítimas, podem não ser tão inocentes quanto parecem.

A edição 444 de CartaCapital trouxe um belo texto de Carlos Drummond sobre o estado das coisas do parque manufatureiro brasileiro. “A indústria esmagada” revelou um quadro preocupante sobre os infortúnios que atormentam nosso outrora promissor motor do desenvolvimento. A manufatura está encolhendo, empregos estão desaparecendo, a competitividade é baixa e a moral está abalada. Nos últimos anos, com o crescimento da renda, a demanda aumentou, porém foi em grande parte suprida por produtos importados. Os vilões são fortes e muitos: incoerência entre a política macroeconômica e a política industrial, taxas de câmbio desfavoráveis, juros altos e desregulamentação atrapalhada. Resultado: desindustrialização. Quem se lança à tarefa de empreender e conduzir negócios em nosso país sentir-se-á como verdadeiro Sísifo. O personagem da tragédia grega era considerado o mais astucioso dos mortais, porém suas estripulias despertaram a ira dos deuses. Sísifo foi condenado a rolar uma enorme pedra até o cume de uma montanha, apenas para vê-la despencar de volta ao ponto de partida, e ter que recomeçar o trabalho. Não faltam índices e pesquisas para comprovar o que até os botões dos ternos dos empresários sabem: fazer negócios no Brasil não é para principiantes. Nos rankings de competitividade e assemelhados, ficamos sempre em posição vexatória, incompatível com o porte e diversidade de nossa economia. Melhor que a Ucrânia, a Síria e o Iraque, dirão os otimistas crônicos, mas longe de qualquer parâmetro razoável. Bons exemplos não faltam, tanto entre países pequenos, como 37

a Suíça e Singapura, como entre gigantes, como Estados Unidos e Alemanha, mas parece haver uma resistência matuta a adaptar e incorporar boas práticas. Entretanto, tal como Sísifo, no caso da competitividade brasileira, a vítima não é totalmente inocente. Na ponta externa, a competitividade depende dos chamados fatores sistêmicos e estruturais: ambiente macroeconômico, taxa de câmbio, acesso a capital, regulação, porte do mercado, configuração do setor, concorrência e outros mais. São componentes importantes. Porém, na ponta interna, a competitividade é função de diversos fatores que estão ao alcance dos empresários e executivos. E nem sempre são bem cuidados. O setor industrial brasileiro evoluiu de maneira heterogênea desde a abertura de mercado e as mudanças econômicas ocorridas nos anos 1990. Algumas ilhas de excelência emergiram, porém o arquipélago continua cheio de ilhotas anacrônicas. Uma pesquisa realizada há alguns anos por Luiz Arthur Ledur Brito, da FGVEAESP, e por este escriba, avaliou 10 práticas gerenciais de 163 empresas locais de 20 setores de atividades, comparando os resultados com os de outros países. Apenas 3% das empresas industriais apresentavam nível de excelência. Quando se analisa a produtividade da mão de obra, o quadro não é diferente: enquanto países como Coreia, China e Chile apresentaram forte evolução na última década, o Brasil parou no tempo. Se houvesse um índice Gini que medisse a distribuição do trabalho no Brasil, este revelaria resultado tão desastroso quanto o de distribuição de renda, pois aqui poucos trabalham muito, a maioria trabalha pouco, e quase ninguém trabalha direito. O caos instalado nas empresas locais é frequentemente imputado a fatores externos e forças ocultas. Entretanto, parte considerável da confusão é gerada internamente, pela dificuldade de estabelecer focos de ação e estratégicas coerentes, pela falta de modelos de organização e gestão claros, pelo apego irracional a cada nova onda gerencial que promete revolucionar a empresa e termina por gerar ainda 38

mais confusão, e pela presença de numerosos agentes do caos, profissionais e executivos turvos e confusos, que parecem não ter outra função a não ser criar projetos impossíveis e iniciativas inviáveis. A combinação entre fatores externos (relacionados ao ambiente de negócios) e fatores internos (relacionados à gestão), favoráveis e desfavoráveis, criou no Brasil quatro contextos distintos para a competitividade. Algumas empresas enfrentam céu de brigadeiro: elas não sofrem o efeito de fatores externos desfavoráveis e dominam a arte da gestão. São poucas e excelentes. Outras aproveitam, tanto quanto as primeiras, o ambiente externo favorável. Entretanto, descuidam-se da gestão. Seguem à deriva, gerando lucros enquanto a boa sorte durar. Outras, ainda, sentem na pele o efeito nocivo dos males nacionais: juros, câmbio, infraestrutura e outras mazelas. Procuram compensá-los com excelência na gestão. Lutam com galhardia, frequentemente obtendo resultados decepcionantes, incompatíveis com o esforço realizado. Finalmente, há aquelas que, como no grupo anterior, sofrem com o ambiente, mas sem conseguir compensar a desvantagem externa. Sua gestão é ineficaz e ineficiente. Estas estão condenadas a desaparecer, e levar junto com elas empregos e esperanças. No front externo da competitividade, há muito que fazer. O governo e suas instituições precisam desatar os nós que colocam o País em lugares indignos dos rankings internacionais. Porém, há também muito a ser realizado no front interno. Muitas empresas, de todos os portes, setores e tipos, precisam fazer sua lição de casa, modernizando suas práticas gerenciais e aumentando a produtividade do trabalho. Conhecimento gerencial existe. Basta adotá-lo, separando-o dos disparates de autoajuda que povoam as revistas de negócios e as livrarias de aeroporto. A transição pode ser dura, porém fingir trabalhar pode cansar tanto quanto trabalhar, e não gera valor ou benefício social.

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Sobre mentiras e estatísticas A influência do consumo de margarina sobre a taxa de divórcios e outras correlações espúrias.

Benjamin Disraeli, o Conde de Beaconsfield, serviu dois termos como primeiro ministro da Grã-Bretanha, no século XIX. Entre outras pérolas, a ele é atribuída a frase: “Há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras terríveis e estatísticas”. Consta que o chistoso dito teria sido popularizado nos Estados Unidos pelo escritor Mark Twain. Alguns o atribuem ao próprio Twain. O fato é que a popularidade da frase atravessou séculos, a alimentar nossa desconfiança dos números ou, mais precisamente, de seu uso impróprio para respaldar argumentos vazios ou duvidosos. Tyler Vigen é um agitado estudante de direito em Harvard. Não se sabe se é fã de Disraeli ou Twain, mas parece ter se apoiado sobre os ombros dos dois gigantes. Vigen criou um website – Spurious Correlations – com o propósito de se divertir com estatísticas falaciosas e correlações ilegítimas. O próprio criador adverte que não se trata de fomentar a descrença na ciência, mas de separar relações causais de coincidências e simples manipulações. Vigen usa um dos métodos mais disseminados da estatística: o teste de correlação. Analisando dados norte-americanos, descobriu uma correlação quase perfeita entre os gastos com ciência, espaço e tecnologia e o número de suicídios por enforcamento, estrangulamento e sufocação. A Nasa deve estar preocupada! Outra correlação fortíssima foi descoberta entre o consumo de margarina e a taxa de divórcios no Estado do Maine. Será que a substituição por manteiga ajudaria os casais? Ainda no campo da alimentação, foi constatada correlação entre o consumo per capita de queijo do tipo muçarela e o número de doutorados em engenharia civil. 40

Será responsabilidade das pizzas? Já o número de filmes nos quais Nicolas Cage atua apresenta correlação razoável com o número de pessoas que morrem afogadas ao cair na piscina. Será culpa do ator ou da qualidade dos filmes? Qual o truque? É simples: a ocorrência de uma correlação, mesmo que seja forte, sugere, porém não significa, uma relação de causa e efeito entre as variáveis. De fato, pode não existir correlação alguma. Esse simples preceito, exposto de maneira bem-humorada por Vigen, não parece sensibilizar debatedores e argumentadores balizados unicamente por sua própria opinião e pela vontade de convencer incautos suscetíveis a fantasias numéricas. Entretanto, as implicações de estripulias estatísticas podem ser sérias. Correlações espúrias frequentemente mudam percepções sobre questões relevantes, influenciam decisões e podem levar a alterar políticas públicas, afetando diretamente a vida dos cidadãos. A ciência estatística teve origem no século XVII, com as contribuições notáveis dos franceses Blaise Pascal e Pierre de Fermat. Transformou-se em profissão e em um campo científico marcado pelo rigor dos métodos e das análises. No século XX, a estatística avançou nas linhas de montagem e nas agências de propaganda, ganhou adoradores entre engenheiros e economistas. Tornou-se onipresente na academia, na vida cotidiana e na mídia. Parte considerável do progresso científico está sustentada pela estatística, por técnicas que permitem analisar e testar correlações. Sintomaticamente, muitos artigos científicos das ciências humanas, exatas e biomédicas parecem textos matemáticos, inundados por hipóteses, fórmulas e tabelas. Junto com as virtudes, vieram alguns vícios. Estudantes de doutorado logo aprendem a “torturar os números”, para que “confessem” os resultados esperados. Técnicas de “engenharia reversa” são frequentemente utilizadas: primeiro, são estabelecidos os resultados; depois, os meios para chegar a eles. Manipulações grosseiras são denunciadas; outras, mais sutis, podem passar despercebidas.

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Alguns resultados transcendem a academia e são filtrados, reembalados e, vez por outra, distorcidos pelas mídias de massa. O que é uma causa provável, aplicada a uma amostra restrita, pode, pela força de uma manchete, tornar-se verdade absoluta e influenciar opiniões e comportamentos. O uso espúrio que fazemos da estatística provavelmente faria Disraeli e Twain contraírem cinicamente a sobrancelha esquerda, ou a direita, ou ambas. Mas esta é correlação difícil de comprovar.

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O espírito (em crise) do capitalismo Pensamentos imperfeitos sobre a fortuita relação entre o aquecimento global e o resfriamento da ética do trabalho.

A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é obra seminal das ciências sociais. Escrito por Max Weber no início do século XX, o alfarrábio relaciona o surgimento do sistema capitalista aos valores e comportamentos instigados pelo protestantismo. Segundo o demiurgo alemão, enquanto o catolicismo rejeitava a ocupação econômica, o protestantismo favorecia o espírito comercial. Durante o século XX, o tal espírito capitalista levou a uma geração sem precedentes de riqueza. Melhorou a vida de centenas de milhões de seres humanos. Ajudou a vencer guerras quentes e frias. No entanto, no final do século, suas conquistas já eram criticamente pesadas contra os desastres deixados em seus rastros: a desigualdade, o esgotamento dos recursos naturais, o aquecimento global e a ameaça às futuras gerações. A ressaca planetária parece ter enfraquecido o velho espírito capitalista e sua ética do trabalho, que fraqueja justamente quando a labuta dura e bem-orientada é necessária para mudar rotas e reinventar existências. Sintomaticamente, a revista The Economist, um baluarte do liberalismo econômico, publicou, com ironia britânica, quatro princípios para escapar do trabalho. Primeiro, saiba gerenciar o teatro do entusiasmo: reaja sempre com ânimo a novos desafios, mas desapareça na hora do trabalho duro. Segundo, abrace a tecnologia de informação, a melhor amiga do preguiçoso: simule seriedade e atenção, enquanto navega por websites de esportes e mídias sociais. Terceiro, procure empregos nos quais a relação entre esforço e resultado não é clara: o setor público é o paraíso, porém grandes empresas privadas não ficam atrás. Quanto maior o porte, mais fácil é enrolar. 43

Quarto, seja ambicioso: sua preguiça crônica não limitará sua ascensão profissional. Afinal, é mais fácil fugir do trabalho quando se está mais próximo do topo da pirâmide e os dias são ocupados com almoços executivos, visitas a clientes, treinamentos motivacionais e viagens a congressos. Roland Paulsen, autor do livro Empty Labor: Idleness and Workplace Resistance, observa que, embora alguns estudiosos denunciem a intensificação do trabalho e o aumento das patologias ocupacionais, outros argumentam que o culto à preguiça está bem instalado nas empresas. De fato, algumas pesquisas revelam que empregados gastam até três horas por dia de trabalho com atividades privadas. Visitas a lojas virtuais e websites pornográficos acontecem principalmente durante o horário comercial. Além disso, a proporção de profissionais que declaram que nunca trabalham muito é sempre superior à proporção de profissionais que afirmam o contrário. Paulsen cita casos curiosos: um funcionário público alemão que declarou ter passado os últimos 14 anos de sua carreira sem realizar nenhum trabalho real; um inspetor de impostos finlandês que morreu no escritório, fato que foi descoberto apenas dois dias depois de ocorrido; e o cartunista Scott Adams, criador do personagem Dilbert, que afirmou ter trabalhado 16 anos em grandes corporações fingindo “adicionar valor”. Conforme observa o autor, o mundo do trabalho transformou-se em um grande teatro, no qual é mais importante parecer do que realizar, participar de jogos políticos do que conseguir resultados. Quanto mais abstrato o trabalho, maior o faz de conta. Curiosamente, certos executivos interpretam com tanto empenho o papel de gestores ocupados que acabam por acreditar que estão de fato trabalhando muito. No hemisfério norte, onde os povos contam com redes de água e esgoto, frequentam escolas e dispõem de médicos e hospitais, o enfraquecimento da ética 44

do trabalho é visto com curiosidade. No hemisfério sul, onde quase tudo está por fazer e, quando é feito, é mal realizado, custa caro e destina-se à elite, o tema ganha relevância moral. Nos trópicos, o faz de conta e a fuga do trabalho parecem ter-se tornado especialidade e privilégio de um novo tipo de classe ociosa, um grupo multiocupacional e diversificado, que se tem espalhado pelas empresas privadas, pelo serviço público e pelas universidades. Vende-se como hiperativa, mas pouco realiza. É mestre em apropriar-se de feitos alheios. Weber e Veblen poderiam passar bons quartos de hora a ruminar sobre o fenômeno.

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Soluções mágicas, mudanças incertas Estudo veiculado pela revista científica Nature relaciona cultura de negócios e desonestidade.

A revista Nature publicou, em novembro de 2014, on-line, o artigo "Cultura de negócios e desonestidade na indústria bancária", assinado por Alain Cohn, Ernst Fehr e Michel André Maréchal, do departamento de Economia da Universidade de Zurique, na Suíça. Os autores observam que a confiança na honestidade alheia é pedra fundamental para empresas, setores de atividades e até mesmo para países. No entanto, multiplicaram-se, nos últimos anos, casos envolvendo fraudes na indústria financeira. Diversos analistas atribuem a origem de tais escândalos à cultura de negócios do setor. Para comprovar tal hipótese, Cohn, Fehr e Maréchal realizaram um experimento envolvendo funcionários de uma grande instituição financeira internacional, e estudantes e funcionários de outras indústrias, os quais funcionaram como grupo de controle. No experimento, os participantes recebiam uma tarefa e deveriam reportar seus resultados, sendo possível falseá-los para aumentar os ganhos. Os autores verificaram que os funcionários da instituição financeira eram tão honestos quanto os demais. Entretanto, em uma variação do experimento, quando tais funcionários respondiam a perguntas sobre sua ocupação profissional, parte significativa deles passava a agir desonestamente. Os outros participantes não eram afetados por questões equivalentes. O trio concluiu: “Nossos resultados, portanto, sugerem que a cultura de negócios, prevalente na indústria bancária, mina e enfraquece o padrão de honestidade, o que sugere que medidas para reestabelecer uma cultura honesta são importantes”. 46

A ideia de cultura é relativamente recente no mundo corporativo. Os primeiros estudos sobre o tema surgiram há cerca de 30 anos. Cultura organizacional diz respeito aos padrões de comportamento das pessoas em uma organização. Transparece nas atitudes, modos e manias das empresas. Relaciona-se, em um nível mais profundo, com a história da organização e como os valores e as noções de certo e errado são construídas com o passar dos anos. A cultura é importante para uma empresa porque representa uma referência que norteia as decisões. A diversidade entre empresas é notável: uma decisão ou comportamento que é aceitável em uma organização pode ser inaceitável em outra. Nos anos 1990, muitas organizações, fascinadas com o conceito, decidiram “mudar sua cultura”. Entretanto, descobriram que, assim como indivíduos (saudáveis) não trocam de personalidade de um dia para o outro, empresas também não são capazes de trocar de cultura de uma estação para outra. Interferir na cultura organizacional é tarefa longa e incerta, e envolve amiúde mudar estratégias, alterar estruturas e processos, trocar líderes e romper com o passado. O estudo veiculado em Nature trata justamente da questão da mudança cultural. Os autores não se referem a uma organização em particular, mas a um setor inteiro. Sugerem a adoção de medidas para fomentar uma cultura da honestidade. Será tal empreitada possível? Para responder à questão, é preciso, em primeiro lugar, aceitar que o que torna uma norma e um comportamento aceitáveis são valores construídos e validados por um grupo social ao longo do tempo. A desonestidade apontada pelos autores pode não ser um comportamento anômalo no ambiente estudado. Pode ser o reflexo de décadas de interações e realizações, que geram um caldo cultural que aceita, e em certos casos promove, comportamentos desonestos. Em segundo lugar, é preciso encontrar meios para inibir tais comportamentos. Punir exemplarmente os desonestos pode sinalizar mudanças. 47

Entretanto, não altera necessariamente as raízes do comportamento. Muitos comportamentos percebidos de fora como desviantes são aceitos ou minimizados internamente. Por outro lado, chegar ao extremo de extinguir a organização pode gerar um custo considerado intolerável pelos agentes econômicos e sociais. A alternativa é, portanto, iniciar um amplo e longo processo de mudança, fazendo mover simultaneamente várias frentes: governança e transparência, controle e punição, liderança e outras mais. Há, naturalmente, quem prefira opções mais simples e diretas para mudar o estado das coisas, porém, para acreditar em sua efetividade, é preciso crer também em fadas e duendes.

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Anarquia e controle Lições para líderes: filmes de J. C. Chandor mostram a incerta batalha dos homens para manter a ordem em meio ao caos ao redor.

J. C. Chandor é roteirista e diretor de cinema. Em 2011, dirigiu seu primeiro longa metragem, Margin Call, provavelmente a melhor obra sobre a crise de 2008. Em 2013, realizou All is Lost, com Robert Redford no papel de um velejador. Agora, está lançando A Most Violent Year, sobre um imigrante tentando expandir seus negócios na violenta Nova Iorque dos anos 1980. Uma vez é sorte, duas podem ser coincidência, mas três vezes talvez sejam prova de talento real. Margin Call narra um período de 36 horas em um banco de investimentos de Wall Street. O elenco traz nomes conhecidos, como Kevin Spacey, Jeremy Irons, Demi Moore e Stanley Tucci. O centro da trama são as ações e reações dos funcionários do banco durante o colapso. Em foco, o funcionamento dos bastidores do capitalismo financeiro: a ganância, a racionalidade pervertida, a tênue linha divisória entre negócios e fraudes. O filme traz um olhar aguçado sobre uma das principais máquinas que fazem o mundo girar, seus personagens, motivos, aspirações, delírios e medos. All is Lost parece uma guinada temática e estilística na carreira do diretor. Em seu segundo filme, Chandor centra a trama em um velejador solitário. Tudo o que vemos é o personagem vivido por Redford, seu barco e a imensidão do mar, eventualmente pontuada por imensos e distantes cargueiros. Não sabemos de sua história ou dos motivos para se lançar sozinho ao mar. Há pouquíssimas palavras e nenhum diálogo. Sobre uma estrutura simples e com um ator carismático, Chandor constrói uma fábula memorável sobre a eterna batalha do homem contra os meios, e contra ele mesmo. 49

Com A Most Violent Year, Chandor retorna à terra firme e ao não tão firme mundo dos negócios. Com Oscar Isaac e Jessica Chastain nos papéis principais, o filme retrata as desventuras de um empreendedor tentando fazer negócios de maneira idônea em um ambiente dominado por quadrilhas. Abel Morales (Isaac) é um imigrante que se tornou um próspero homem de negócios nos Estados Unidos. A Most Violent Year narra um período na vida de Morales no qual ele precisa levantar recursos para expandir seus negócios, ao mesmo tempo que enfrenta acusações de fraude e evasão fiscal, e sofre ataques de concorrentes. Em foco, o costumeiro dilema do empreendedor: quanto maior o risco e maior a incerteza, maior o prêmio. David Denby, veterano crítico da revista The New Yorker, observou que a forma como Chandor lida com o enredo clássico de ambição, tentação e violência (que já rendeu dezenas de filmes noir, thrillers e filmes de gângsteres) é mais seco, sutil, realista e com mais nuances morais que seus predecessores. A Most Violent Year contém cenas de violência, porém o que sustenta a narrativa são negociações duras e ameaças veladas. Christopher Orr, escrevendo para The Atlantic, notou que Morales é um homem obcecado por manter o controle, dele mesmo e do ambiente ao redor. Os sinais de anarquia estão em toda parte: nos prédios abandonados e pichados, nas janelas quebradas, no metrô decadente e precário. Diante do caos ao redor, de perigos iminentes, de ameaças que a qualquer instante podem provocar desastres, suas armas são a calma, a voz baixa e o olhar penetrante. Orr argumenta que a luta dos homens para manter controle em meio ao caos ao redor tem sido o grande tema dos filmes de Chandor. Os personagens de Margin Call tentam sobreviver, e até tirar vantagens, da tempestade na indústria financeira, criada por eles mesmos. Morales quer mais e aprende rapidamente que nada é mais perigoso do que tentar alterar o estado das coisas. All is Lost, longe dos escritórios, é uma fábula sobre o mesmo tema. 50

Universal, o tema aplica-se diretamente ao mundo dos negócios. Livros de autoajuda e parte considerável da literatura científica sobre gestão vendem a utopia de um mundo controlável, do sucesso que pode ser obtido por trabalho duro, pensamento analítico e comportamento racional. Algumas dessas obras são exercícios de puro ilusionismo. Outras apostam na simplificação da realidade e na premissa de que a racionalidade do management pode salvar o mundo. Falta-lhes contato com o mundo real, o que parece sobrar nos filmes de Chandor. Mais vale um Chandor na tela que três Porters na prateleira.

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O trabalho nas telas Documentários indicados ao Oscar fazem refletir sobre o sentido da labuta.

Entre os cinco documentários indicados ao Oscar de 2015, encontram-se duas obras sobre fotografia: The Salt of the Earth, codirigido por Wim Wenders e Juliano Salgado, e Finding Vivian Maier, codirigido por John Maloof e Charlie Siskel. Além de tratar de fotografia, os dois filmes expõem a tempestuosa relação entre o homem e o trabalho. The Salt of Earth mostra a vida e a fabulosa obra fotográfica do brasileiro Sebastião Salgado. Nascido em Aimorés, em Minas Gerais, em 1944, Salgado graduou-se em economia e exilou-se na Europa durante o período militar. A partir da base parisiense, viajou pelo mundo, trabalhando para organizações internacionais. No início da década de 1970, desistiu de uma boa oferta de trabalho e aventurou-se nas trilhas do fotojornalismo, uma ocupação totalmente nova para ele. Trabalhou para as grandes agências do mundo, inclusive a mitológica Magnum, antes de criar com a esposa e colaboradora sua própria agência. Seguiram-se projetos de grande vulto, que geraram exposições e livros. Estão sempre presentes em sua obra a visão humanista e a preocupação com temas sociais: a pobreza, a injustiça, os conflitos pela terra, as migrações e o trabalho. Seu último projeto, Genesis, resultou de quase uma década de viagens ao redor do mundo, em busca de paisagens intocadas pelo homem e de comunidades que ainda vivem segundo tradições ancestrais. Em entrevistas, Salgado declarou que, antes de Genesis, vivia um momento difícil, de depressão e descrença, motivadas pelo contato com as mais contundentes tragédias humanas do planeta. O projeto representou uma reviravolta positiva na vida e no trabalho do fotógrafo. 52

Finding Vivian Maier (assistido por este escriba) traz duas narrativas paralelas: apresenta a obra da fotógrafa norte-americana e conta as aventuras do codiretor e coprodutor John Maloof para descobrir a pessoa por trás das imagens. Tudo começou quando Maloof arrematou, por acaso, em um leilão, uma caixa cheia de negativos de fotografia. Seguiu-se a descoberta de uma obra ímpar, cujas imagens lembram grandes nomes da fotografia do século XX, como Diane Arbus, Robert Frank, Weegee e Dorothea Lange. Ocorre que Maier nunca mostrou ou divulgou suas fotografias. Sobreviveu como babá, aproveitando seus momentos de folga e suas férias para fotografar. A investigação de Maloof revela um pouco de Maier e deixa outro tanto por conta da imaginação da plateia. Ela era gentil com as crianças, porém eventualmente cruel. Vivia reclusa e era um pouco excêntrica. Tinha uma personalidade reservada e morreu solitária, pouco antes de ter sua obra descoberta por Maloof. O trabalho é fonte de prazer e sofrimento, realização e frustração. Um trabalho que faz sentido, afirmam os especialistas, é aquele que permite a autorrealização e o aprendizado, que conseguimos fazer bem feito e que gera algo socialmente útil, que garante o sustento e favorece as relações com nossos pares. Na vida real, quando encontramos alguns desses requisitos, outros nos escapam, mas continuamos a persegui-los. The Salt of Earth e Finding Vivian Maier retratam duas trajetórias diferentes de busca do sentido do trabalho. Sebastião Salgado projeta em deslumbrantes imagens suas convicções, sua sensibilidade e a técnica de um incansável artesão. Tem na companheira Lélia Wanick Salgado o par ideal, a construir a ponte entre a ideia e o projeto, entre o registro e a audiência. Especular sobre a enigmática Vivian Maier é um risco, mas não deixa de ser sedutor vê-la como profissional de pureza singular, a preservar seu trabalho do mundo ao redor, um mundo que poderia ignorá-lo ou celebrá-lo, ou pior, nele interferir. 53

Sorte nossa que Salgado enfrentou seus fantasmas e continua a nos despertar profundas emoções e reflexões. Sorte nossa que Meier preservou, durante décadas, sua capacidade de captar com sensibilidade e sobriedade o cotidiano, e agora nos ofertou um magnífico presente. Talvez Maier seja desconcertante porque, como sugeriu Rose Lichter-Marck, na revista The New Yorker, ela não se ajusta à ideia que fazemos do que um artista, uma pessoa ou uma mulher deveriam ser. Ela aparentemente não se interessava por dinheiro ou por mostrar suas imagens. Porém, garantiu a si mesma total liberdade para fazer seu trabalho: fotografar.

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A era da impaciência Economista inglês sugere que a revolução da informação gera custos cognitivos que podem comprometer o crescimento econômico.

A vida no século 21 pode não ser como mostram as propagandas de telefones celulares. A onipresença das novas tecnologias de comunicação e informação traz consideráveis impactos sociais. Dois filmes recentes tratam do tema: Disconnect (de 2012, dirigido por Henry Alex Rubin) e Men, Women & Children (de 2014, dirigido por Jason Reitman). As duas obras adoçam seu olhar crítico com uma visão humanista. O grande tema é a vida contemporânea, marcada pelo consumo de bens e estilos, e povoada pelas doenças da sociedade moderna: bullying, identidades roubadas, comunicações mediadas e relações fragilizadas. No centro dos dramas: a internet e as mídias sociais. Se determinados impactos sociais já são notáveis, alguns impactos econômicos ainda estão sendo descobertos. No dia 17 de fevereiro de 2015, Andrew G. Haldane, economista chefe do Banco da Inglaterra, realizou uma palestra para estudantes da University of East Anglia. O tema foi crescimento econômico. O texto, disponibilizado pela universidade, é um raro exemplo de elegância e clareza, com doses bem-administradas de história, economia, sociologia e psicologia. Haldane inicia mostrando que o crescimento econômico é uma condição relativamente recente na história da humanidade: começou há menos de 300 anos. Três fases de inovação marcaram essa breve história do crescimento: a Revolução Industrial, no século 18; a industrialização em massa, no século 19, e a revolução da tecnologia de informação, na segunda metade do século 20. 55

Qual a fonte primária do crescimento econômico? Em uma palavra: paciência. É a paciência que permite poupar, o que, por sua vez, financia os investimentos que resultam no crescimento. Combinada com a inovação tecnológica, a paciência move montanhas. Existem também, lembra Haldane, fatores endógenos: educação e habilidades, cultura e cooperação, infraestrutura e instituições. Todos esses fatores se reforçam mutuamente e funcionam de maneira cumulativa. Pobres os países que não conseguem desenvolvê-los. De onde veio a paciência? Haldane tem uma hipótese: a invenção da impressão por tipos móveis, por Guttenberg, no século 15, que resultou na explosão da produção de livros. Os livros levaram a um salto no nível de alfabetização e, em termos neurológicos, “reformataram” nossas mentes, viabilizando raciocínios mais profundos, amplos e complexos. Nesse caso, a tecnologia ampliou nossa capacidade mental, que, por sua vez, alavancou a tecnologia, criando um ciclo virtuoso. E os avanços tecnológicos contemporâneos, terão o mesmo efeito? Haldane receia que não. Assim como os livros expandiram nossa capacidade cerebral, as tecnologias atuais podem gerar o efeito contrário. Quanto maior o acesso a informações, menor nossa capacidade de atenção, e menor nossa capacidade de análise. E nossa paciência sofre com o processo. Não faltam exemplos: alunos lacrimejam e bocejam depois de 20 minutos de aula; leitores parecem querer textos cada vez mais curtos, fúteis e ilustrados; executivos saltam furiosamente sobre diagnósticos e análises, tomando decisões na velocidade do som; projetos são iniciados e rapidamente esquecidos; reuniões iniciam sem pauta e terminam sem rumo. Hipnotizados por tablets e smartphones, vivemos em uma sociedade assolada pelo transtorno do deficit de atenção e pela impaciência crônica.

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Os efeitos são preocupantes: a impaciência em crianças prejudica a educação e cerceia o potencial. Nos adultos, a impaciência reduz a criatividade, freando a roda que gera o desenvolvimento do capital intelectual e a inovação, e colocando em risco o crescimento econômico futuro. Haldane conclui que os ingredientes do crescimento ainda são misteriosos, mas que a história aponta para uma combinação complexa de fatores tecnológicos e sociológicos. É prudente observar que o autor não está sugerindo uma relação direta entre o crescimento das mídias sociais e a estagnação econômica que vem ocorrendo em muitos países. Sua análise é temporalmente mais ampla, profunda e especulativa. Entretanto, há uma preocupação clara com os custos cognitivos da “revolução” da informação, que se somam aos custos sociais tratados nos dois filmes que abriram este texto. Não é pouco.

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Chamem as meninas! Pesquisa científica sugere que a presença de mulheres em cargos de direção reduz a probabilidade de fraudes.

Se acreditarmos que a arte representa a realidade e que filmes constituem um retrato (ainda que imperfeito) de atitudes e comportamentos, então não há dúvida de que o mundo das fraudes corporativas é um domínio masculino. Exemplos não faltam, com ampla variedade de vigaristas e trapaceiros. Wall Street (de 1987, dirigido por Oliver Stone) traz Michael Douglas como o lendário Gordon Gekko, filósofo da ganância, rei da informação privilegiada e mestre da arte do enriquecimento fácil e ilícito. Others People’s Money (de 1991, dirigido por Norman Jewison) tem Danny DeVito como Lawrence “Larry the Liquidator” Garfield, uma ave de rapina que busca vítimas entre empresas da economia real. Rogue Trader (de 1999, dirigido por James Dearden), baseado em história real, traz Ewan McGregor como Nick Leeson, um investidor jovem e “brilhante”, cujas estripulias maravilharam seus chefes e levaram o mais antigo banco de investimentos britânico à bancarrota. Boiler Room (de 2000, dirigido por Ben Younger), com Giovanni Ribisi, Vin Diesel e Ben Affleck, retrata as façanhas de um grupo de jovens corretores que mentem, chantageiam e roubam para ganhar o primeiro milhão de dólares, enquanto vendem ações sem valor a vítimas desavisadas. Margin Call (de 2011, dirigido por J. C. Chandor), estrelado por Kevin Spacey, Paul Bettany, Jeremy Irons e Zachary Quinto, disseca a lógica perversa por detrás das operações de uma instituição financeira em crise. The Wolf of Wall Street 58

(de 2013, dirigido por Martin Scorsese), com Leonardo DiCaprio, narra as peripécias amorais e fraudulentas de Jordan Belfort, um corretor de valores que atuou com sucesso até ser desmascarado e processado. Todos esses filmes narram histórias de meninos ambiciosos e agressivos, lutando por dinheiro e poder. A maciça presença masculina pode ser bem mais que mera coincidência. Agora, das telas para a vida real. Gillian B. White, escrevendo para o website da revista The Atlantic, em fevereiro, trata da importância do papel do CFO (Chief Financial Officer), ou diretor financeiro, no combate a fraudes. O autor comenta estudo realizado pela empresa de auditoria e consultoria Ernst Young, em 2012, que revelou que 15% dos CFOs reconheceram que cometeriam fraudes para ganhar negócios. E o resultado pode ser apenas a ponta do iceberg. A mesma pesquisa indicou que 39% dos respondentes acreditavam que práticas de suborno e corrupção eram frequentes em seus países. Entre os respondentes brasileiros, o percentual foi 84%. Nenhuma surpresa! A prevenção de fraudes e comportamentos desviantes tem sido amplamente estudada nos campos da contabilidade, das finanças, do direito e da administração geral. A regulação e as práticas de governança corporativa evoluíram significativamente nos últimos anos. Entretanto, a ganância parece ter crescido, e a arte de assenhorear-se fraudulentamente de bens alheios também evoluiu. White comenta estudo realizado por Ya-Wen Yang e Andrea Kelton, da Wake Forest University, e Allison Evans, da University of North Carolina, que explora outra dimensão do combate à fraude: a presença feminina na gestão financeira e na diretoria de empresas. Com base na análise de dados de 1991 a 2011, as autoras concluíram que mulheres são menos propensas do que homens a participar de esquemas de evasão fiscal.

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O estudo faz eco a pesquisas anteriores, que demonstram que a composição, em termos de gênero, dos profissionais da diretoria de uma empresa afeta a forma como o grupo toma decisões. White observa que “mulheres são mais orientadas pelo desejo de crescimento e desenvolvimento, enquanto homens são geralmente mais orientados pela busca do dinheiro e do poder – o que pode levar homens a tomar decisões baseadas estritamente em raciocínios econômicos em lugar de outros fatores, tais como senso de justiça e de decoro”. O trabalho de Yang, Kelton e Evans também sugere que ter uma mulher em um cargo de liderança pode não ser suficiente para garantir comportamentos éticos. Isso ocorre porque minorias podem ser alienadas ou ignoradas em processos fechados de tomada de decisão. É preciso ter uma massa crítica, mais de 30% de mulheres, para influenciar positivamente o comportamento do grupo.

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A igreja da diversão tecnológica As palestras do TED, populares nas redes sociais, misturam ciência e entretenimento.

No filme La Peau Douce, de 1964, dirigido por François Truffaut, o ator francês Jean Desailly interpreta o editor de uma revista literária, especialista em Balzac. Nas asas da Panair, ele se envolve com uma aeromoça vivida por Françoise Dorleac. Pierre é um intelectual celebridade, figura da época, que antecede um fenômeno planetário, hoje catalisado pela internet. Se o prezado leitor é um usuário assíduo das redes sociais, boa chance há de ter sido alvejado umas tantas vezes por links dos vídeos do TED, o moderno templo virtual dos intelectuais celebridades. Os temas são instigantes, o tratamento é ligeiro e a experiência é agradável. E que mal há em ser ilustrado, por uma palestra que dura menos que um quarto de hora, com uma perspectiva fresca acerca de um tema relevante? Por detrás desse fenômeno, está uma entidade criada há pouco mais de 30 anos. O TED (Technology, Entertainment, Design) é uma organização privada sem fins lucrativos, fundada no Vale do Silício, nos Estados Unidos. Seu lema é “ideias que merecem ser disseminadas”. Os vídeos são gravados em seus eventos, que se multiplicaram nos últimos anos na América do Norte, na Europa e na Ásia. As palestras tratam de tecnologia, design, ciência, cultura e tudo mais que parecer novo e for atraente. Ex-chefes de estado, prêmios Nobel, empresários carismáticos e cientistas comunicativos destilam sabedoria diante de suas câmeras. A primeira página de seu portal indica os vídeos mais populares: “Como grandes líderes inspiram a ação”, por Simon Sinek; “A aparência não é tudo. Acredite em 61

mim, eu sou uma modelo”, por Cameron Russell; “Porque amamos, porque traímos”, por Helen Fisher; e “10 coisas que você não sabia sobre o orgasmo”, por Mary Roach. Qualquer semelhança com revistas de autoajuda pode ser mais do que mera coincidência. O modelo tem seu mérito, ao disseminar gratuitamente conteúdos que poderiam ficar restritos a universidades e a centros de pesquisa. Entretanto, o TED tem seus críticos, que o acusam de ter “macdonaldizar” a ciência, de servir de trampolim para alpinistas pseudoacadêmicos e ter se tornado, com o crescimento e a popularidade, uma paródia de si mesmo. Megan Garber, uma jornalista da revista The Atlantic, certa vez argumentou que o TED funciona como instância de validação para o caótico mercado de novas ideias. Entretanto, as palestras e seus vídeos não são expressão direta e transparente das ideias, mas, sim, conteúdos editados, empacotados e associados a um personagem. Um show típico do TED tem narrativa didática, humor cativante e um narrador simpático, intimamente ligado à ideia apresentada. Sugere, assim, que grandes ideias estão sempre relacionadas a gênios criativos. Entretanto, em uma época na qual o trabalho é quase sempre coletivo, a personalização das ideias pode ser anacrônica. As palestras TED, sugere Garber, não traduzem conceitos abstratos e complexos para o público leigo. Elas apenas trocam a narrativa por um personagem. Com isso, a ideia deixa de ser uma ideia e transforma-se em artefato construído para o palco. Megan Hustad, escrevendo para o jornal The New York Times, reconheceu nas palestras TED a cadência adotada pelos missionários evangélicos, com suas promessas vaporosas. Ela não considera adequado afirmar que as conferências e os vídeos funcionam como uma igreja organizada. Entretanto, sugere que compreender as similaridades entre os dois sistemas ajuda a entender como o estilo

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adotado nas palestras, com suas promessas de soluções para os problemas do homem e do mundo, é manipulativo. Uma palestra TED, segundo Hustad, assemelha-se a um sermão. Primeiro, junta-se uma plateia de curiosos e famintos. Então, um problema crucial é focalizado. O simpático palestrante surpreende a audiência com as raízes profundas e as consequências impactantes da questão tratada. Diante das trevas e da agonia, uma esperança é introduzida: o caminho da salvação. Aí, a audiência respira aliviada, pois viu a luz e agora se sente parte da solução. O processo é contagiante e persuasivo, dobrando almas e intelectos. Hustad especula: em algum momento, a lista de 20 vídeos mais vistos do TED talvez se transforme em um credo. E daí rumaremos para a era do politeísmo digital.

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A Plutonomia e o Precariado A estrutura social está ficando cada vez mais parecida com a hierarquia corporativa.

Brazil é uma distopia satírica dirigida por Terry Gilliam, em 1985. O personagem central é Sam Lowry, interpretado por Jonathan Pryce. A sociedade retratada no filme é desigual e consumista, a tecnologia é onipresente, o governo é totalitário, as corporações são poderosas e impessoais, a mãe do protagonista é obcecada por cirurgia plástica e o seu trabalho não tem sentido. Semelhanças com as empresas e a sociedade contemporânea são notáveis. A vida imita a arte. Em um texto sobre os movimentos populares na sociedade do século XXI, Noam Chomsky traça a origem dos termos Plutonomia e Precariado. O primeiro surgiu de um estudo realizado há 10 anos por analistas do Citigroup, segundo o qual o mundo está dividido em dois blocos: a Plutonomia, formada pelos super-ricos, e o resto. O objetivo dos autores era orientar os investidores a selecionarem as melhores ações: aquelas de empresas que produzem para os abastados. A Plutonomia surgiu das condições do capitalismo moderno: governos simpáticos às grandes corporações, estado de direito que garante a liberdade econômica, espaço para “inovações” financeiras, proteção de patentes e mão de obra qualificada e dócil. Os super-ricos concentraram a riqueza dos países desenvolvidos anglo-saxões: Estados Unidos, Inglaterra e Austrália. Entretanto, os criadores do termo acreditavam que formações similares surgiriam em economias emergentes, como Brasil, Rússia, Índia e China.

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A contrapartida da Plutonomia é o Precariado, formado por um contingente que vive em condições de insegurança e incerteza, e tende a crescer e tornar-se componente relevante da estrutura social. O economista Guy Standing é autor do mais conhecido livro sobre o tema: The Precariat: The New Dangerous Class, publicado em 2011. Standing advoga que a transformação global da economia está gerando uma nova estrutura de classes, que substitui a anterior, cuja espinha dorsal era formada pela burguesia e pelo proletariado. A nova estrutura, segundo o autor, é composta por vários grupos. No topo, encontra-se uma plutocracia internacional, a usar seu poder econômico para influenciar e moldar o poder político. Abaixo dela, vicejam elites nacionais, completando com a primeira uma classe hegemônica. Logo abaixo, vem o grupo assalariado, que goza de rendimentos elevados e segurança no emprego. Seus membros ocupam o topo da pirâmide das grandes empresas e nichos privilegiados da máquina do estado. É uma confraria pressionada, perdendo membros para os grupos que vêm logo abaixo, frequentemente devido a processos de terceirização. Parte desse contingente é constituída por consultores e pequenos empresários, que sonham em pertencer à elite. Abaixo destes, situa-se o velho proletariado, mais um grupo em processo de redução, lutando com poucas chances de sucesso pela manutenção de conquistas passadas. O precariado situa-se abaixo do proletariado, constituindo, segundo Standing, uma “classe em construção”. Seu trabalho é caracterizado pela flexibilidade e pela incerteza. Standing observa que o precariado é formado por três subgrupos. O primeiro é composto pelos desterrados do proletariado, com baixo nível de instrução, frustrados e propensos a serem seduzidos pelo populismo de extremadireita. O segundo é formado por imigrantes e minorias, frequentemente nostálgicos e politicamente passivos. O terceiro é constituído por profissionais qualificados, inseguros sobre seu status na sociedade e sujeitos a trabalho eventual. O autor identifica ainda um lumpemprecariado, formado por miseráveis que vivem nas ruas, à margem da sociedade. 65

A tipologia de Standing pode ser vista como um modelo em construção. Entretanto, seus componentes podem ser facilmente observados nas pirâmides empresariais. No topo, os controladores e suas famílias, servidos por grupos seletos e bem-remunerados de executivos. Nos escalões médios, gestores e profissionais especializados, aspirantes naturais à vida nos andares superiores. Abaixo deles, um exército de analistas e operários, lutando para preservar salários, empregos e benefícios. Ao redor, contingentes cada vez maiores de prestadores de serviços: dos mais qualificados assessores aos menos instruídos provedores de serviços básicos. A uni-los: a sujeição às intempéries econômicas e aos humores dos contratantes. A sociedade parece imitar as corporações.

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O pastor e os CEOs David Brooks sugere o caminho para o caráter. Na contramão, presidentes de empresas exibem seu narcisismo patológico.

David Brooks é um conhecido colunista do New York Times. Seus textos unem agudas observações sobre cultura e sociedade com herméticos trabalhos científicos, convenientemente traduzidos. Brooks consegue unir, paradoxalmente, doses civilizadas de conservadorismo e perspectivas contraculturais. Seu último livro – The Road to Character (Random House) – é uma versão em longa-metragem de suas colunas: compensa a modesta profundidade com um estímulo sincero à reflexão. A obra é construída a partir de uma perspectiva crítica sobre nossa sociedade, na qual a competição para ser bem-sucedido, ser aceito e despertar admiração é absoluta, e absorve atenção e recursos. Brooks deplora e confronta o narcisismo hegemônico. O autor advoga o cultivo de virtudes como simpatia, humildade, generosidade e autocrítica. Sua mensagem é singela. Em lugar de lutarmos pela construção do curriculum vitae perfeito, deveríamos dar mais atenção à vida interior e ao desenvolvimento moral. O argumento é ilustrado pela descrição da vida e obra de figuras históricas, as quais, segundo o autor, deveriam nos inspirar. The Road to Character não é obra explicitamente religiosa, porém o autor escreve como um hábil e esclarecido pastor. Tivesse Brooks seguido outro caminho, e buscado ilustrar seu ponto de vista com figuras que refletem e sustentam a sociedade narcísea, não lhe faltariam exemplos. Em um texto publicado pela revista acadêmica Business and Management Review, José Samuel de Miranda Melo Júnior e Carlos César Ronchi, dois pesquisadores do Maranhão, realizam essa tarefa. Os autores tomaram como lente 67

teórica a literatura que estuda o narcisismo nas organizações. Eles analisaram dezenas de entrevistas de CEOs de grandes empresas brasileiras, concedidas a revistas e jornais de grande circulação. O resultado é tragicômico. Melo e Ronchi classificaram trechos significativos das entrevistas em quatro categorias, denominadas: egocentrismo (exibicionismo, imponência, valorização do eu); centralismo grandioso (falta de empatia, indiferença, sentimento de suficiência); liderança ambiciosa (agressividade, propensão a riscos, intolerância à crítica); e perfeição imaginária (ambição por prestígio, idealização das próprias realizações, discurso majestoso). As pérolas fariam enrubescer o mais blasé dos lacanianos. Um dos CEOs, especialmente intenso em egocentrismo, declarou: “Só tenho marcha para frente”; “Alguém vai ter que fazer uma estátua para mim em algum lugar”; “Eu sou um compositor que faz música. As minhas notas, por acaso, são dinheiro”. Um artista! Outro CEO, forte em liderança ambiciosa e em perfeição imaginária, lançou ao mundo: “Eu tive de lidar com operários e foi uma das experiências mais ricas da minha vida. Ali pude entender as pessoas e soube o que querem de um líder: justiça”; “Os nossos números são impressionantes, porque o Brasil é muito grande. A empresa é boa para o País, não só para os seus acionistas”. Um verdadeiro filantropo! Um terceiro CEO, também forte em perfeição imaginária, registrou para a posteridade: “Se uma empresa não aceitar as nossas condições, basta olhar para o lado que há outras, fazendo fila para conseguir um lugar nas nossas prateleiras”; “Vem dando certo há 57 anos, não tem razão para mudar. E não vai mudar”; “Não tem outro grande. O grande sou eu”. Bonaparte, cuida-te! Os autores da pesquisa constataram, nas entrevistas analisadas, percentuais altos nas quatro categorias, com forte destaque para a perfeição imaginária. 68

Parecem ser comportamentos comuns dos executivos buscar obsessivamente a glória, inflar suas realizações e polir com esmero sua própria imagem. No livro The Culture of Narcissism (W.W. Norton), publicado em 1979, o historiador norte-americano Christopher Lasch realizou uma ampla análise das raízes e manifestações do narcisismo patológico na sociedade, sugerindo que as mudanças estariam relacionadas a um novo perfil de líderes. Ernst Kretschmer, um psiquiatra alemão de geração anterior à de Lasch, registrou em uma carta: “Há algo curioso a respeito de psicopatas. Em tempos normais, nós especialistas formulamos opiniões sobre eles. Em tempos de agitação política, eles nos governam”.

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O fim do trabalho? Tendências econômicas e tecnológicas sugerem a acentuação do declínio dos empregos estáveis, de tempo integral.

O trabalho é ideia milenar, nem sempre muito apreciada. A Grécia (antiga) não o tinha em grande conta, considerando-o um inimigo da virtude, a cercear os homens de suas mais nobres aptidões, as quais deveriam ser desenvolvidas na filosofia e na política. As sociedades industrializadas modernas, contrariamente aos gregos, celebram o trabalho como valor central, algo capaz de gerar riqueza e bemestar, beneficiando o indivíduo e a sociedade. Entretanto, algumas tendências em curso sinalizam o declínio dos empregos estáveis, de tempo integral. Esse é o tema da matéria de capa da revista The Atlantic de julho/agosto de 2015, assinada por Derek Thompson. A matéria é ilustrada com imagens que simulam um museu do futuro: na página 50, traz um executivo com pasta e celular (legenda: “trabalhador de tempo integral, circa 2016”); na página 52, traz um operário com capacete e planilha de controle (legenda: “homem de fábrica do início do século XXI, extinto”). A pergunta subjacente ao texto é crua: e se o trabalho desaparecer? A crise econômica do final dos anos 2000 e a presente recessão brasileira nos relembraram do drama do desemprego. Quando cortam quadros ou encerram atividades, as empresas projetam uma sombra sobre as comunidades: a arrecadação diminui, o consumo cai, os serviços básicos são afetados, a coesão cultural é enfraquecida e multiplicam-se patologias sociais e os dramas pessoais. Os últimos séculos foram marcados por reinvenções sucessivas do trabalho: da agricultura para a indústria e desta para os serviços. As transições foram 70

traumáticas, porém cada estado final representou uma evolução em relação ao seu ponto de partida, com mais empregos e mais riqueza. Entretanto, as tendências atuais apontam para a criação de uma massa paralela de destituídos, sem emprego ou competências para subsistir em um mundo intensivo em tecnologia. Thompson identifica três grandes tendências. A primeira tendência é a superação do trabalho pelo capital. Desde os anos 1980, as empresas investiram em reestruturações e em automação industrial, buscando formas eficientes para organizar o trabalho e automatizar seus processos. Resultado: enxugamento dos quadros e uma perda progressiva do poder de barganha do trabalho diante do capital. A segunda tendência é o desaparecimento progressivo do trabalhador. Estatísticas norte-americanas indicam um aumento inexorável do percentual de homens que não estão trabalhando nem procurando por trabalho. A terceira tendência relaciona-se ao avanço das tecnologias de informação (e comunicação). Os impactos de mudanças tecnológicas podem levar anos para se manifestarem. Porém, quando ocorrem, são contundentes. Vendedores, caixas, atendentes e funcionários de escritórios são os primeiros na linha de fogo. O trabalho preenche três funções sociais: é uma forma pela qual a economia produz bens, um meio pelo qual as pessoas garantem seu sustento e uma atividade que provê sentido e propósito para a vida das pessoas. O que ocorrerá se as três tendências acima mencionadas se aprofundarem? A primeira função social parece cada vez menos dependente de trabalhadores. A economia poderá continuar produzindo bens, com menor número de empregos. Porém, sem salário, quem os consumirá? A segunda função social poderá ser substituída, uma vez que há outras atividades que podem prover sentido e propósito para os indivíduos. Mas o que ocorrerá com a terceira função social? Como continuar garantindo o sustento sem uma oferta condizente de empregos? Muitas pessoas detestam sua profissão, seu emprego ou ambos. Porém, perder o ganha-pão pode ser trágico. Nos países desenvolvidos, a infraestrutura 71

madura e as redes de proteção social, aliadas a certa criatividade individual e doses crescentes de empreendedorismo, poderão tornar a vida na informalidade laboral passável, até recompensadora. Nos países em desenvolvimento, a transição poderá ser mais dura e trágica. Entretanto, o pessimismo necessário deve ser temperado com doses homeopáticas de otimismo. Trabalhos estáveis e de tempo integral talvez sejam vistos no futuro como peculiaridade de uma época. Os nostálgicos talvez lamentem seu desaparecimento. Outros talvez celebrem seu declínio, como uma porta aberta para o cultivo das virtudes, como desejavam os antigos gregos.

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A polêmica arte da persuasão Livro analisa obras seminais que ajudaram a moldar a visão crítica sobre a publicidade e o consumo.

A história moderna da publicidade tem origem no século XIX, tendo experimentado grande expansão com a industrialização norte-americana, no início do século XX. A indústria do tabaco foi pioneira da produção e do consumo em massa, ajudando a desenvolver técnicas para seduzir o contingente crescente de trabalhadores urbanos. Na primeira metade do século XX, as propagandas eram veiculadas principalmente em jornais, revistas e nas paredes dos bondes. Na segunda metade do mesmo século, o rádio e a TV ganharam espaço. Nas últimas décadas, as ferramentas de busca e as mídias sociais atingiram primazia. Mudou a forma, permaneceu a essência. Na superfície, alguns excessos foram aparados. As propagandas de cigarro foram praticamente banidas e há crescente restrição à veiculação de publicidade destinada a crianças. O anacronismo mantém-se: um setor criado há mais de 100 anos para dinamizar a industrialização continua operando com o mesmo ideário e a mesma velocidade em um mundo que mostra sinais de esgotamento de recursos. Bom momento para repensar hábitos de consumo e práticas publicitárias. Incômodos Best-sellers, USA, de José Carlos Durand, lançado em 2015 pela Edusp, traz uma profunda análise histórica da evolução do consumo e da publicidade, desde o final do século XIX. Durand, professor de estudos culturais na USP, realizou percurso original: identificou autores e obras de sucesso que examinaram a publicidade e o consumo com lente crítica. 73

Sua lista inclui sete influentes obras: A Teoria da Classe Ociosa (1899), de Thorstein Veblen; A Tragédia do Desperdício (1925), de Stuart Case; Os Persuasores Ocultos (1957), de Vance Packard; A Sociedade Afluente (1958), de John Kenneth Galbraith; O Pacto Rompido (1975), de Robert Bellah; As Contradições Culturais do Capitalismo (1976), de Daniel Bell; e A Cultura do Narcisismo (1983), de Christopher Lasch. Experiente cientista social, Durand foi rigoroso em sua missão. Cada época foi explorada em suas características econômicas, sociais e culturais. Cada autor recebeu uma minibiografia, que contextualiza ideias e livros. A trajetória tem início com os “anos dourados”, período que vai do término da Guerra Civil até o fim do século XIX, marcado pela acumulação de capital e pela concentração econômica. Cruza períodos de depressão e prosperidade. O epílogo traz o leitor aos dilemas e grandes questões dos nossos dias: neoliberalismo, ordem corporativa, religião, consumo e cidadania. A antropóloga Livia Barbosa assina o sintético, porém notável prefácio, observando que: “A publicidade/propaganda é uma das polêmicas instituições culturais da sociedade de consumo, um dos inúmeros rótulos que utilizamos para denominar a sociedade contemporânea em que vivemos. Ele sugere que entre nós o consumo desempenha um papel que vai muito além daquele que tem ou teve nas demais sociedades. Ele nos define”. Segundo alguns de seus detratores, a publicidade/propaganda nos induz a desejar e adquirir bens e serviços de que não necessitamos, ilude-nos pelos símbolos e imagens, leva-nos ao materialismo e à busca insaciável do status, afastanos dos valores humanos e deixa-nos um vazio existencial. As obras exploradas por Durand permitem identificar os contextos socioculturais nos quais brotaram essas e outras concepções críticas.

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De Vance Packard, o autor destaca o papel da publicidade de manter a audiência atenta ao que se situa acima de seu nível de consumo: “Nos últimos anos, [os publicitários] têm estado muito ocupados tratando de descobrir coisas relacionadas com classe social e status, e aplicar suas descobertas para dar forma a seus apelos de venda”. De Christopher Lasch, Durand ressalta um desabafo nostálgico contra o mundo do consumo: “Os obstetras encarregam-se do nascimento; os pediatras são responsáveis pelas enfermidades e curas de uma criança; o professor, por sua inteligência; o supermercado e a indústria de alimentação, por seu alimento; a televisão, por seus mitos”. Incômodos Best-sellers, USA contém múltiplas narrativas, sobre a sedução pela publicidade, sobre a corrupção dos valores, e, mais recentemente, sobre a apropriação do consumo pelo consumidor, como ato de teor político. O poder que os primeiros críticos viam na publicidade surge ao final da leitura contextualizado e relativizado.

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Procuram-se líderes Divagações imperfeitas sobre o nebuloso fenômeno do colapso da liderança.

The Leadership Quarterly é a mais notável, entre várias revistas científicas dedicadas ao tema da liderança. Publica seis edições por ano, 10 ou mais artigos em cada edição. Considerando que cada artigo científico tem em média oito mil palavras, são quase 500 mil palavras por ano. E a revista está em seu 26º ano de publicação! Os temas tratados pelo periódico são variados e frequentemente exóticos: os modelos asiáticos de liderança, as emoções dos líderes, aspectos cognitivos da liderança, a integridade dos líderes, a biologia da liderança e muito mais. Tanta reflexão talvez ajude a entender o fenômeno. No entanto, parece ainda longe de ajudar a produzir melhores líderes. Os manuais de gestão costumam definir liderança como a capacidade ou habilidade de exercer influência social, levando um grupo, organização ou comunidade a realizar determinadas tarefas ou atingir determinadas metas. Na ciência administrativa, os esforços para entender o fenômeno da liderança vêm de longe. Os primeiros estudos focavam os traços pessoais de grandes líderes, tais como visão estratégica, autonomia, energia, criatividade, autoconfiança e sociabilidade. Estudos posteriores avançaram no sentido de compreender a influência do ambiente: líderes bem-sucedidos em determinados contextos podem colher fracassos desconcertantes em outros contextos.

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A partir dos anos 1990, ganharam popularidade os estudos sobre o carisma dos líderes: sua suposta capacidade de inspirar os liderados a atingir níveis mais altos de desempenho. Tomaram também a ribalta os estudos sobre o chamado líder transformacional, aquele capaz de conduzir processos amplos e desafiadores de mudança nas organizações. As décadas seguintes foram menos pirotécnicas e mais reflexivas. Fraudes e falências levaram alguns heróis da glória ao desterro ou ao cárcere. O picadeiro, outrora ocupado por grandes ilusionistas, foi tomado por marionetes, figuras de pequena estatura e falastrões de escasso repertório. As ilusões acerca dos grandes líderes deram lugar a uma quieta desilusão, temperada por doses consideráveis de cinismo e conformismo. Ali e acolá surgiram estudos críticos, a analisar o colapso da liderança. Em um influente artigo publicado há quase 40 anos no Journal of Applied Behavioral Science, Linda Smircich e Gareth Morgan propuseram uma definição alternativa para o fenômeno da liderança, como o processo pelo qual um ou mais indivíduos interpretam e definem a realidade para os demais. Assim, certos indivíduos emergem como líderes porque conseguem interpretar o contexto e explicá-lo de uma forma original e convincente, que viabiliza determinados cursos de ação. Eles articulam o que estava implícito, não dito ou pouco compreendido, usam imagens e narrativas, alteram o foco de atenção e fazem com que os demais compartilhem sua visão, reconhecendo-os como dignos timoneiros. Em contextos estruturados e institucionalizados, como em grandes empresas, os direitos de definição da realidade são reconhecidos e formalizados. Líderes ancoram-se em papéis, processos e práticas. No entanto, se falharem repetidamente em sua missão de interpretar e definir a realidade, podem perder legitimidade, levando o processo de liderança ao colapso.

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Quando o poder de definir a realidade é perdido, grupos de liderados permanecem operando sem direção. Frequentemente, emerge uma disputa entre aspirantes a líderes. Tais situações podem perdurar, gerando o caos. Em nosso mundo hipersimbólico, povoado por falastrões esbaforidos e mídias histriônicas, o grito e a pirotecnia levam nítida vantagem sobre a razão e a sensibilidade. As lutas deixam de ser travadas no mundo da substância e dos fatos e avançam pelo etéreo universo dos discursos desencarnados e dos símbolos de incerto significado. Em tais contextos, líderes decadentes operam titubeantes, em meio a uma densa neblina, a manipular fiapos de sentido e doses primitivas de emoção, cercados por aspirantes belicosos e liderados atônitos. A trupe segue destino incerto, amiúde em alta velocidade. Em tais situações, podem vir a vencer os operadores do mínimo múltiplo comum, aliás, mestres da divisão mais do que da multiplicação.

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Uma nação de videotas Muitos profissionais portam-se no trabalho como se estivessem diante da TV, a aguardar estímulos para sorrir, sofrer e agir.

Executivos costumam reclamar, lamurientos, da passividade e da falta de iniciativa de seus funcionários: diretores reclamam de gerentes, gerentes reclamam de supervisores e supervisores reclamam de analistas. A culpa é frequentemente imputada à tal da cultura organizacional, uma entidade etérea, com poderes mágicos. A questão da cultura organizacional vem alimentando os sonhos e os pesadelos de gestores há três décadas. É frequentemente vista como panaceia capaz de explicar e resolver todos os males empresariais. Perdemos competitividade? Precisamos mudar a cultura! Nossa produtividade está estagnada? É um problema de cultura! Nossos lucros desapareceram e os concorrentes estão avançando? Culpa da cultura! Estudiosos costumam definir cultura organizacional como um conjunto de pressupostos, criados e validados ao longo do tempo, que definem a forma como as pessoas se comportam, como as decisões são tomadas e como as ações são conduzidas. Em uma empresa, a cultura organizacional determina o que é certo e errado e molda a forma de agir e de gerir. Os artefatos – o ambiente físico, os comportamentos e as práticas de gestão – são a parte mais visível da cultura, porém constituem apenas a ponta do iceberg. O que verdadeiramente importa são os tais pressupostos básicos, nem sempre visíveis ou explícitos, que constituem a base do iceberg.

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A perspectiva da cultura leva a perceber que toda organização funciona como uma tribo, habitando uma caverna, com costumes, rituais e comportamentos específicos. O que é normal para uma organização pode parecer excêntrico ou até mesmo absurdo para outra. Nos anos 1980, ganharam notoriedade os estudos realizados por Gert Hofstede, que agrupou países de acordo com traços culturais dominantes. A abordagem caiu no gosto de acadêmicos, consultores e executivos, por ajudar a interpretar e explicar muitos comportamentos nas organizações. O estudo de Hofstede revelou que o Brasil é um país com alta distância hierárquica (que aceita a repartição desigual do poder) e alta aversão ao risco (ansioso e inquieto diante de situações desconhecidas). Ainda nos anos 1980, a Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte, divulgou estudo revelando traços negativos da “gestão à brasileira”: predomínio da visão de curto prazo, desamor pelo planejamento, centralização das decisões, tendência para o autoritarismo e delegação para cima, o impulso de empurrar as decisões mais relevantes e arriscadas para outrem. De lá para cá, muita coisa mudou, porém alguns traços resistiram ao tempo. Em um texto publicado em 2015 no jornal Valor Econômico, Betânia Tanure, que vem estudando a questão da cultura organizacional há décadas, conclama os povos locais a trocar a passividade pelo protagonismo. A consultora refere-se a mais um traço da cultura brasileira: a postura de espectador. Esse traço manifesta-se, segundo ela, de modo independente do nível hierárquico e reflete-se em comportamentos como passividade, baixa iniciativa e a tal da delegação para cima. Tanure atribui esse traço à nossa longa convivência com o autoritarismo, que cerceia a visão crítica e estimula o conformismo. Nos últimos anos, a questão da cultura organizacional voltou à moda. Empresas locais criaram e divulgaram listas de traços culturais desejáveis. Muitas 80

dessas listas são vazias e inócuas, frutos das mentes de redatores criativos. Outras, entretanto, refletem desejos sinceros (quiçá ingênuos) de estimular mudanças. As semelhanças entre as listas podem ser mais do que coincidência. Nove entre 10 listas contêm itens como capacidade de tomar a iniciativa, foco no resultado e protagonismo. Na mira: o combate à postura de espectador. Eduardo Dal Lago, um consultor de cultura organizacional, vem trabalhando há anos em um antídoto para a postura de espectador. Dal Lago observa que muitos executivos interpretam a postura de espectador como falta de segurança para assumir responsabilidades ou como pura preguiça. Alguns optam por aumentar o nível de controle, o que piora o problema, pois estimula ainda mais a postura de espectador. O antídoto não é simples: envolve desligar o pensamento automático, que condiciona nossas atitudes e ações, desenvolver o pensamento crítico e alterar deliberadamente comportamentos, por meio da educação e da delegação. Desligar a TV é apenas o primeiro passo.

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O futuro do trabalho Tendências observadas nas indústrias criativas sugerem o que está por vir em outros setores.

Quando se observam carreiras e profissões, tem-se a sensação de que tudo que era sólido agora se desmancha no ar. O mago (ou vilão) transformador costuma ser a tecnologia, força capaz de abalar indústrias e desestruturar trajetórias. O impacto é especialmente visível nas carreiras das indústrias criativas e da mídia. Nos últimos 20 anos, as indústrias musicais, as editoras de livros, as revistas e os jornais foram impactados pelas novas tecnologias de informação e de comunicação. Mudou a forma de produzir. Mudou a forma de trabalhar. Mudou para melhor ou para pior? Há controvérsias. Os arautos do fim do mundo denunciam a precariedade galopante das novas relações de trabalho. Os profetas do admirável mundo novo advogam que as novas tecnologias turbinam a criatividade, escancarando as portas do mercado para as mentes mais brilhantes. Steve Johnson é um escritor norte-americano dedicado a temas relacionados à ciência, tecnologia e inovação. Situa sua pena no último grupo. Em um longo texto publicado no jornal The New York Times, em agosto de 2015, Johnson escreve sobre a emergência da economia digital e suas consequências sobre a cultura, as indústrias criativas e seus profissionais. Argumenta que o apocalipse anunciado algumas décadas atrás não se materializou. É verdade que muitas empresas e empregos desapareceram. Entretanto, segundo ele, a produção cultural está em alta e os profissionais do campo têm, hoje, mais oportunidades de trabalho do que antes.

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Nas indústrias musicais, a tecnologia barateou a produção e transformou a distribuição. As gravadoras e as lojas de discos deixaram o palco. Empregos foram perdidos, mas não necessariamente os empregos dos artistas. Os músicos deixaram de ganhar dinheiro com discos e voltaram seu foco para as apresentações ao vivo. A queda de renda de uma atividade foi compensada pelo aumento de renda na outra. Além disso, a redução dos custos de produção e de distribuição permitiu aos músicos gravar e disponibilizar suas obras com facilidade e baixo custo. A história da indústria editorial apresenta similaridades com a história das indústrias musicais. A venda de livros impressos continuou a aumentar, mesmo depois da introdução dos e-books. Além disso, os livros impressos continuam sustentando uma fatia substancial do mercado. Novos autores e livros surgem todos os dias. Para os artistas, o novo mundo do trabalho traz oportunidades e desafios. Favorece os profissionais que conseguem adaptar-se a um portfólio amplo de atividades, em lugar de buscar especialização em um único caminho de carreira. De fato, as possibilidades de inserção comercial multiplicaram-se. Músicos podem hoje compor jingles para publicidade, trilhas para cinema, TV, teatro, videogames e para uma infinidade de aplicativos para smartphones e tablets. Podem dar cursos presenciais, em escolas, e cursos virtuais, por meio do YouTube. E podem, ainda, apresentar-se em casas noturnas, em teatros e em salas de concerto. As inúmeras possibilidades abertas pelas novas tecnologias e seus desdobramentos no mercado de trabalho tornaram a carreira musical, como outras carreiras artísticas, mais factíveis. No entanto, sobreviver nesse novo mundo exige novas competências, relacionadas à gestão da própria carreira, como se fosse um negócio. E todo esse mar de oportunidades não significa que pagar as contas ficou mais fácil. De fato, o jogo continua desigual, com uma base numerosa e malremunerada e um topo restrito e milionário.

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A tendência da chamada “carreira portfolio”, na qual o profissional é empreendedor de si mesmo e gerencia diferentes atividades e projetos, não é nova nem é exclusiva das indústrias criativas. Muito antes da internet, músicos e outros artistas dividiam seu tempo entre diferentes atividades. Médicos e consultores há muitos anos administram múltiplas frentes de trabalho. Não há novidade, mas há acentuação e aceleração do fenômeno, para o bem e para o mal. O novo contexto cria novas oportunidades, porém demanda mudanças que comumente se situam além da capacidade dos profissionais. Com isso, gera ansiedade e frustração, criando com frequência dramas pessoais de difícil superação, dramas que tendem a se multiplicar, à medida que outras indústrias e profissões são afetadas.

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PARTE 2: O CAPITALISMO SELVAGEM E AS EMPRESAS

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Os novos quebra-galhos Pressões externas, combinadas com caos interno, estão levando à transformação de uma velha prática social em uma nova função gerencial.

No filme What Just Happened (no Brasil: Fora de Controle), Robert De Niro interpreta Ben, um produtor de cinema de Hollywood. A obra, dirigida pelo veterano Barry Levinson, registra as desventuras do acossado personagem entre egos incontroláveis, personalidades excêntricas e tipos extravagantes. Ben é o centro (vacilante) de forças opostas. Seu filme mais recente está passando por testes cruciais de público, antes do lançamento. A plateia reage friamente e choca-se com o final sangrento. O instável diretor inglês luta para manter a concepção “artística” original. De olho no provável desastre de bilheteria, o estúdio pressiona por mudanças no final do filme. O diretor reage como primadona contrariada, mas simula aceitar os cortes. Dramas paralelos mantêm os nervos de Ben à flor da pele. O processo de separação de seu segundo casamento segue aos trancos e barrancos. Bruce Willis, principal estrela de um novo projeto, reage com selvageria às exigências do papel. O estúdio ameaça cancelar o projeto. A vida profissional de Ben assemelha-se à sua vida pessoal: um mar revolto, a ser enfrentado com doses medidas de fatalismo, obstinação, paciência e autocontrole. Qualquer deslize pode romper o precário equilíbrio e iniciar um aterrorizante movimento ladeira abaixo. Seu único objetivo parece ser sobreviver, mantendo-se à tona. Levinson retrata, com olhar cínico e satírico, as entranhas do cinema norteamericano. Segue extensa linhagem de filmes sobre a icônica indústria. O cinema 86

adora criticar (e celebrar) o próprio cinema. Com frequência, seus diretores debruçam-se com disposição e prazer sobre as próprias entranhas. Curiosamente, outras indústrias têm costumes e modos similares aos da indústria cinematográfica. De fato, a atividade de produtor existe em diversos outros setores: na música, na mídia, na moda, na propaganda e na organização de eventos. O mesmo tipo de atividade permeia funções diversas em outras áreas. Coordenadores de logística, gerentes de produto, gestores de projetos, consultores internos e muitos outros gestores partilham algumas características com os produtores: eles vivem no centro da tormenta, buscando permanentemente soluções para responder a pressões antagônicas. Sua tarefa é fazer as coisas acontecerem, apesar de tudo e apesar de todos. O quebra-galho, como personagem social, existe há tempos, porém habitando as margens da sociedade. Dedicava-se, com discrição, a resolver pequenos inconvenientes, lubrificar burocracias emperradas e prover soluções rápidas, ainda que imperfeitas. As diferenças entre o quebra-galho do século XX e seu descendente contemporâneo são a magnitude e a frequência dos problemas. Com desafios cada vez maiores e mais constantes, o quebra-galho foi promovido. Ele (ou ela) está hoje integrado à vida empresarial, faz parte da média gerência, tem status e goza de reconhecimento. O quebra-galho corporativo do século XXI surge da confluência de dois movimentos: de um lado, a crescente pressão por rapidez, agilidade e flexibilidade, um movimento externo, determinado pelas forças do volúvel mercado; de outro lado, a também crescente pressão por controle, conformidade e previsibilidade, um movimento interno. Como a equação é insolúvel, é saída é ter agentes especiais, capazes de navegar pelas frestas do sistema e fazer com que as coisas aconteçam. Afinal, alguém precisa manter o barco em movimento, apesar de toda a turbulência externa e de toda a confusão interna.

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Tornar-se um quebra-galho não é para qualquer um: é preciso reprimir o ego e manter o autocontrole, mesmo diante de calamidades iminentes. Além disso, é preciso adotar o estilo 24/7 (24 horas por dia, 7 dias por semana). Ele (ou ela) precisa estar permanentemente conectado. Seu melhor amigo é o smartphone. Seu pesadelo recorrente é ficar confinado em um local sem sinal para o celular. Um verdadeiro quebra-galho não relaxa jamais. A dedicação total tem seu preço: o fim da vida privada. Com o passar do tempo, a intensa atividade interfere no metabolismo e causa dependência. Fica cada vez mais difícil viver sem o ritmo marcado pelos desafios e sem a satisfação das pequenas vitórias. O seu trabalho é reconhecido, mas a recompensa não é certa. Os lauréis costumam ser transferidos para os andares superiores da pirâmide corporativa. Muitas organizações têm chamado seus quebra-galhos de intraempreendedores ou de empreendedores internos. Esperam que eles “tomem a iniciativa”, “ajam como donos” e “resolvam os problemas”. O título e o discurso são pomposos. A dura realidade é que as empresas precisam de profissionais capazes de fazer com que elas funcionem, apesar delas mesmas.

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Afogando-se em números Alguns gestores públicos parecem fascinados com certas práticas de empresas privadas. Antes de adotá-las, seria prudente conhecer os efeitos colaterais.

Em um mês, dois casos significativos: um na Indonésia, outro nos Estados Unidos. Em Java, a mãe de um adolescente revelou à mídia local que seu filho, durante um exame nacional, fora forçado por seus próprios professores a passar suas respostas para colegas menos capazes. A atitude da mãe foi motivada pela recusa da escola em aceitar sua denúncia. Como se não bastasse o constrangimento, a honrada genitora teve que enfrentar a ira dos pais dos colegas de seu filho, horrorizados com seu “egoísmo”. A divulgação do caso abriu caminho para denúncias de histórias similares. Os professores, acossados, passaram a culpar a pressão que suas escolas sofrem para conseguir bons resultados nos exames nacionais, os quais condicionam a obtenção de recursos do governo. Enquanto isso, do outro lado do mundo, em Atlanta, um drama parecido se desenrolava. Uma comissão indicou irregularidades em larga escala no sistema escolar da cidade. Durante a realização de exames, professores forneciam as respostas aos estudantes, permitiam que alunos com baixo desempenho escolar copiassem dos colegas mais capazes e até preenchiam eles mesmos as folhas de respostas. A investigação apontou que as irregularidades ocorriam desde 2001. Para espanto dos cidadãos, durante o período das falcatruas, a superintendente das escolas de Atlanta fora premiada pelos resultados excepcionais alcançados pelos estudantes locais. Na raiz do problema, a mesma causa do drama indonésio: a pressão por bons resultados nos exames, que determinam o recebimento de recursos do governo. 89

Há vários pontos comuns entre os dois casos: primeiro, o uso de sistemas unificados de avaliação escolar; segundo, a utilização de indicadores de desempenhos para medir e comparar resultados; e terceiro, a pressão pela melhoria dos resultados, que podem condicionar os recursos alocados para as escolas. Até aí, nada de errado: tudo soa racional e razoável. De fato, decidir de modo transparente, com base em fatos e números, é premissa para realizar uma boa gestão, alocando recursos da melhor maneira possível. Os modernos sistemas de gerenciamento de desempenho popularizaram-se a partir dos anos 1990. Pressionadas pela abertura de mercado e pela desregulamentação econômica, as empresas privadas investiram na modernização de suas práticas. O voo nos céus turbulentos do novo ambiente empresarial exigia painéis mais completos e sofisticados, com indicadores que registrassem o desempenho de toda a organização. Com o passar do tempo, pelas mãos de consultores e gurus, as novas práticas migraram das empresas privadas para as empresas públicas e para os órgãos de governo. Afinal, quem poderia discordar da racionalidade das decisões baseadas em fatos e números? Infelizmente, a vida real nem sempre se ajusta aos idílicos manuais de administração. Os manuais vêm cheios de fórmulas e receitas, transbordam razão e lógica. Já a vida real é povoada por imperfeições, interesses ocultos e manobras escusas; limita a razão e, frequentemente, atenta contra o bom senso. O observador acidental, que deitar sua vista sobre uma moderna corporação privada, nela observará números em harmonia, cientificamente desdobrados e controlados, cada profissional ciente de suas metas e responsabilidades. No entanto, uma visita mais atenta possivelmente lhe revelará uma realidade desconcertante, povoada por executivos que manipulam resultados financeiros para engordar seus bônus, gerentes que escolhem deliberadamente indicadores que lhes favorecem a avaliação de desempenho, e profissionais que distorcem metas e 90

escondem números conforme sua conveniência. Maior a pressão por resultados, maior a tendência para maquiá-los. Curiosamente, gestores públicos vez por outra se fascinam com práticas de empresas privadas, adotando-as sem pudor ou crítica. Deslumbram-se com a fachada e ignoram as entranhas. Tais adoções eventualmente produzem benefícios, mas também podem gerar efeitos colaterais. Não é fácil discordar de princípios tais como transparência na gestão, decisões baseadas em fatos e números, e promoção da meritocracia. No entanto, esperar que a aplicação de certos modelos de gestão a sistemas corrompidos por décadas de turbidez, patrimonialismo e personalismo gere bons resultados, sem considerar o contexto humano e cultural destes sistemas, é ingênuo e irresponsável. Mudanças tecnocráticas, que celebram soluções técnicas, em detrimento dos aspectos sociais e culturais, são capazes de provocar manchetes laudatórias nas revistas de negócios e de promover seus arautos, mas podem também gerar comportamentos de faz de conta e efeitos colaterais ruinosos; que o digam os pais de alunos indonésios e norte-americanos.

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A vista da cobertura Pesquisa revela a visão de presidentes de empresas sobre oportunidades e desafios do cenário econômico além das turbulências imediatas.

Presidentes de empresas compõem uma casta à parte. Eles têm funções vitais similares às de outros mortais, porém algo genético, comportamental, astrológico ou paranormal separou-os de seus semelhantes e colocou-os em um compartimento especial do planeta, um andar superior. Um aspecto da vida no topo é inegavelmente um privilégio: a vista. Pois os habitantes da cobertura estão ao menos um andar acima de seus semelhantes. De sua torre de observação, eles veem tempestades aproximando-se, aproveitadores espreitando, políticos conspirando, corruptos tramando, lobistas interferindo e seus pares observando-os. De fato, a vista da cobertura é parte essencial e estratégica de sua função. Sem a vista ampla, eles não poderiam decidir e agir. Uma pesquisa realizada pela PricewaterhouseCoopers (PwC), uma empresa internacional de auditoria e consultoria, consultou 1.200 líderes empresariais e de governo, inclusive 31 moradores de coberturas: presidentes de empresas das Américas, da Europa, da Ásia, da África e da Oceania. Os resultados revelam um quadro amplo sobre as oportunidades e os desafios do cenário econômico, mirando além das turbulências imediatas. A pesquisa revela que, com a Europa e a América do Norte enfrentando mau tempo econômico, as empresas estão procurando crescimento sustentável em recantos mais amenos do planeta. O capital foge das tempestades. Com isso, o desafio para as grandes empresas é desenvolver diferentes abordagens estratégicas para diferentes contextos econômicos. Afinal, o passo de crescimento dos países desenvolvidos é metade do passo de crescimento dos países emergentes. Para as 92

empresas multinacionais, cresce a importância de suas operações asiáticas e latinoamericanas, com a China liderando o ranking de atratividade. Mas os olhares já transcendem os BRICs (Brasil, Rússia, índia e China) e miram a África, em função de seus recursos naturais e de suas oportunidades de negócios. Quando perguntados sobre fontes de suprimentos para abastecer suas empresas, 11% dos respondentes apontaram o Brasil. O país ficou em quinto lugar, atrás da China (37%), Estados Unidos (22%), Índia (15%) e Alemanha (14%). Porém, os perfis são diferentes: enquanto China e Índia se diferenciam pelo baixo custo, Estados Unidos e Alemanha distinguem-se pela qualidade e pela inovação. O Brasil fica em posição intermediária nos três quesitos: perde em custos dos primeiros e perde em inovação e qualidade dos últimos, o que pode ser visto como uma posição indefinida e vulnerável. Apesar da instabilidade que atinge grandes economias do mundo, o grau de confiança dos gestores ouvidos é alto. Mirando o crescimento, a pesquisa identificou três pontos focais para direcionar as empresas: inovação, talentos e uma agenda comum com o governo. A questão da inovação relaciona-se principalmente à ascensão de uma nova classe média nos países emergentes e à demanda por produtos especialmente projetados para as suas necessidades. Não se trata de bombardear os recém-endinheirados com engenhocas tecnológicas, mas de atender de maneira criativa as necessidades desses (novos) consumidores. A questão da escassez de talento é identificada como grande gargalo para o crescimento das empresas: teme-se não ter quadros com competências suficientes para viabilizar seus planos de expansão. Além disso, em mercados de trabalho aquecidos como o brasileiro, a rotatividade é alta, instabilizando os quadros e dificultando a gestão. Conforme observou um entrevistado, salário não é tudo. É preciso que as empresas ofereçam aos seus funcionários uma relação proveitosa de longo prazo, coisa que poucas sabem fazer.

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A questão do relacionamento com o governo emerge como tema essencial para garantir a competitividade, em áreas tais como educação, saúde e infraestrutura. Naturalmente, a relação com o poder público é delicada, um pântano no qual vicejam lobistas inveterados e corruptos famintos. Ainda que não faltem motivos para aproximação, a relação é difícil e cheia de interesses conflitantes. Anda assim, conforme observou Marcelo Odebrecht, um presidente brasileiro entrevistado, as parcerias público-privadas possibilitam fazer certos investimentos com alocação ótima de riscos e responsabilidades, liberando os recursos do governo para a área social. Os resultados da pesquisa indicam que os habitantes da cobertura estão mirando o horizonte mais amplo e reconhecendo que seu direito à vista depende de sua capacidade de mover suas empresas em direção aos interesses de clientes, governo e sociedade. Não se trata de altruísmo, mas de uma pragmática necessidade de negócios. Tanto melhor que beneficie os moradores dos andares mais baixos e das cercanias.

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A fatiga do decisor Casar ou comprar uma bicicleta? Eis a questão. Estudos científicos revelam como o cansaço mental interfere em nossa capacidade de tomar decisões.

Nos filmes Smoking e No Smoking, de 1993, o respeitado cineasta francês Alain Resnais conta seis histórias. Em determinado momento de cada uma delas, os personagens têm a vida mudada por decisões tomadas. Resnais responde nos filmes a uma pergunta angustiante e onipresente: o que teria acontecido se nós tivéssemos decidido de outra forma? O roteiro, adaptado de uma peça do dramaturgo inglês Alan Ayckbourn, é engenhoso e trata um tema instigante: nossas decisões, mesmo aquelas prosaicas, podem mudar nossa existência e a de outras pessoas. De fato, nossas linhas do destino às vezes parecem saídas do caderno de um calígrafo aluado. Pequenas decisões, para as quais não damos grande importância, acabam gerando enormes efeitos. Ou, como sugere a Teoria do Caos, uma borboleta batendo asas na Amazônia causa um tufão no Texas. Na vida pessoal, nós convivemos permanentemente com a necessidade de tomar decisões: a que filme assistir, que livro ler, onde morar, que caminho tomar... a lista é longa. E a essas decisões acrescentamos outras tantas, tomadas na vida profissional: que projeto aprovar, quando lançar um produto, que preço cobrar, quem contratar, quem demitir... essa lista também é longa. O prezado leitor deve lembrar-se de ocasiões nas quais foi torturado por uma decisão, ou por uma série delas. Por exemplo, a compra de um novo computador. O simples mortal que se aventurar em um site de compras ver-se-á em um labirinto de informações e alternativas. Cansado e humilhado, talvez tenha que ser salvo por um sobrinho nerd. Outro exemplo fatídico: as decisões de 95

investimentos. O feliz herdeiro de um tio-avô distante provavelmente verá a sua alegria financeira transformar-se em profunda angústia quando tiver que enfrentar um gerente de aplicações, com sua conversa cifrada, seus números disparatados e suas taxas ocultas. E mais um exemplo, ainda mais tenebroso que os anteriores: as festas de casamento. Organizar tais eventos, com restrição de recursos e sob intensa pressão familiar, constitui desafio para o qual poucos estão preparados. Fazer lista de convidados, escolher o local e a decoração, definir os pratos e as bebidas: para decidir sobre todos esses detalhes, e outros mais, é preciso paciência inesgotável e bolsos profundos. Paul Nutt, um professor emérito da Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, dedicou sua vida profissional a entender e explicar os processos de tomada de decisão. Seu foco foram as decisões tomadas nas empresas. O pesquisador avaliou centenas de decisões em organizações, tais como a GM, a Toyota e a NASA. Concluiu que, mesmo nesses impérios da racionalidade e da eficiência, metade das decisões tomadas falha. Imaginemos o resto! Em um trabalho científico, publicado em fevereiro de 2011 nos Proceedings of the National Academy of Sciences e divulgado pela mídia internacional, o pesquisador Shai Danziger e colaboradores avaliaram as decisões tomadas por juízes em mais de 1.000 casos de pedidos de liberdade condicional. O estudo revelou que a taxa de concessão era mais alta no início do dia e após as duas interrupções diárias, caindo a quase zero nos períodos imediatamente anteriores às interrupções. Para explicar o resultado duas hipóteses, foram levantados: primeiro, o tempo decorrido desde a última refeição – juízes com mais fome são mais rigorosos; segundo, o número provocado pelas decisões tomadas em série – juízes mais cansados tendem a tomar decisões mais “fáceis”, que mantêm a situação existente, o que, nesse caso, significa a permanência do encarceramento. Tomar decisões constitui um processo estressante, que compreende múltiplos raciocínios, suposições, considerações e comparações. E nem sempre as 96

informações necessárias estão disponíveis e são confiáveis. Um tomador de decisão racional e criterioso pode facilmente se irritar diante da pressão para fazer escolhas em meio a situações ambíguas. Além disso, por mais estruturados que os processos se encontrem, depois de uma bateria de decisões, qualquer executivo ou profissional pagará o preço do estresse, ou, como no caso dos juízes estudados, transferirá o ônus de sua fatiga para terceiros. Quando estamos cansados, temos dificuldades para tomar decisões e tendemos a seguir os caminhos mais fáceis ou o que nos recomendam os supostos especialistas. O que fazer? Para profissionais e executivos, o bom senso recomenda evitar as maratonas analíticas e decisórias, e programar as decisões mais difíceis para o início do dia. Gestores cuidadosos, em casa ou no trabalho, preservam sua capacidade de tomar decisões, para usá-la quando é mais importante. Os calígrafos do destino agradecem.

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O desafio da inovação Desde os anos 1990, a questão da inovação tornou-se central para as empresas e para as nações. No Brasil, o tema vem avançando, mas ainda nos faltam direção e ação.

Em agosto de 1990, a revista científica de estratégia Long Range Planning publicou artigo assinado por P. T. Bolwinjn, da Phillips, e T. Kumpe, da Universidade de Twente, na Holanda. Os autores haviam feito uma análise histórica das empresas multinacionais e demonstrado que a evolução da gestão dessas empresas havia ocorrido em ciclos, condicionados pelo amadurecimento de seus mercados e de seus clientes. Com o tempo, elas haviam evoluído da era da eficiência, com foco em custos, para a era da qualidade, com foco no cliente, e daí para a era da flexibilidade, com foco no atendimento de múltiplos mercados. Os anos 1990, indicaram os autores, seriam a década da inovação. Hoje, passados 21 anos, nós podemos afirmar que Bolwinjn e Kumpe estavam certos. De fato, a partir da década de 1990, a inovação passou a tirar o sono de muitos executivos e entrou definitivamente para a agenda das empresas. O tema passou também a integrar os currículos das escolas de negócio e gerou um lucrativo filão para consultores e autores de livros de gestão. A razão para o culto da inovação é simples: a abertura de mercados, a desregulamentação econômica e o aumento da competição, fenômenos paralelos ocorridos a partir da década de 1980, impeliram as empresas a sair de suas zonas de conforto. Para as mais agressivas, a inovação passou a constituir um passaporte para o crescimento e para a entrada em novos mercados. Para as mais acomodadas, a inovação passou a ser uma arma de defesa contra os novos concorrentes, antes mantidos a distância pela reserva de mercado. 98

Mas o que significa, afinal, inovação? Intuitivamente, relacionamos inovação com gênios criativos e suas ideias maravilhosas. Entretanto, no mundo corporativo, essa ideia romântica não faz sentido. Nas empresas, a inovação é um processo que necessita de recursos, investimentos e, principalmente, talentos. Na indústria farmacêutica, por exemplo, o desenvolvimento de um novo medicamento pode levar mais do que uma década, ocupar dezenas de cientistas e consumir centenas de milhões de dólares. Outro erro comum é associar a inovação apenas com produtos e serviços. Para as empresas, tão importante quanto criar novos produtos e serviços é inovar em seus processos e em seus modelos de negócio. O iPod, da Apple, empresa ícone do momento, não é apenas um aparelho para reprodução de músicas gravadas, mas está inserido em um sistema que compreende uma rede qualificada de fornecedores, uma loja virtual para compra de músicas, uma linha criativa de acessórios e um posicionamento inteligente de mercado. É esse sistema que protege a Apple dos concorrentes e ajuda a empresa a manter-se como uma das mais valiosas do mundo. Outro exemplo clássico de inovação em modelo de negócio é dado pelas empresas aéreas de baixo custo. A Southwest Airlines e a Ryanair reinventaram todos os componentes do negócio de transporte aéreo de passageiros, do sistema de reservas ao regime de uso das aeronaves, do serviço de bordo às rotas oferecidas. Com tal conjunto de inovações, avançaram em um mercado virgem e mudaram definitivamente seu setor. Além de celebrar novos modelos de negócio, a literatura de gestão sobre inovações dá destaque a dois outros temas: as inovações de ruptura e as inovações frugais. Clay Christensen, um professor de Harvard, vendeu muitos livros e influenciou muitos executivos na década passada. Seu livro, O Dilema do Inovador, popularizou o conceito inovação de ruptura, aquela que envolve uma grande mudança, algo que altera o jogo competitivo e cria um novo mercado. Os primeiros 99

computadores pessoais e os primeiros telefones celulares foram inovações de ruptura. O problema é que, para gerar uma inovação de ruptura, é necessário romper com a lógica existente de fazer negócios, criando divisões totalmente novas, com novos recursos, pessoas e processos. Fácil falar, difícil fazer. O segundo tema destacado na literatura de gestão são as inovações frugais. Sua origem está nos países emergentes, como o Brasil, mais especificamente nas demandas de seus extratos de menor renda. Esse segmento de mercado é gigantesco e promissor, porém constitui um planeta distante para empresas que cresceram servindo a classe média. Até recentemente, tais empresas experimentavam enorme dificuldade para entender os novos consumidores e desenvolver produtos e serviços atraentes e baratos para servi-los. Então, entra em campo o que Vijay Govindarajan, da Tuck School of Business, chama de inovação reversa, ou seja, criar soluções robustas, fáceis de usar e baratas, com foco nesses consumidores. Nessa linha, a General Electric criou um aparelho portátil e barato de eletrocardiograma; a Nokia desenvolveu celulares baratos e equipados com lanternas, por causa das crises constantes de falta de luz em alguns mercados; e a indiana Tata Motors criou o Nano, um veículo vendido por pouco mais do que dois mil dólares. O famoso carrinho, é bom registrar, está patinando nas vendas, indicando que o modelo de negócio ainda não está bem azeitado. Outro elemento essencial da inovação é o efeito espetáculo. Em um mundo no qual parecer é mais importante do que ser, fazer um bom show é essencial para promover inovações. Vejamos uma ilustração, registrada em edição passada de CartaCapital. Em janeiro de 2010, um conhecido centro cultural de São Francisco, na Califórnia, tinha como a atração a exposição “Heróis e heróicos”. Significativamente, subiu ao palco de seu auditório, para um evento paralelo, um herói moderno: Steve Jobs, então presidente da Apple. Jobs escolheu o centro cultural para revelar ao mundo o iPad. Não se pode questionar as credenciais de Jobs como inovador, mas ele também é um mestre da dramatização da inovação. Aliás, segue longa tradição. Thomas Alva Edison, o inventor da lâmpada elétrica e 100

de muitos outros produtos, era conhecido como o Mago de Menlo Park e fazia uso estudado da imprensa, criando uma ambiente de suspense antes da apresentação de cada uma de suas novidades. Fez escola. Os atores principais apresentam o espetáculo e manipulam os efeitos especiais, mas a inovação é obra de um enorme contingente de profissionais. Então, a questão essencial que se coloca é: o que torna uma organização inovadora? De fato, são muitos ingredientes. Entretanto, três componentes são essenciais: ter os talentos criativos, ter uma boa estrutura de apoio e fomentar uma cultura favorável à inovação. Um gênio isolado não faz milagres. É preciso ter um quadro bem-formado, aberto a novas ideias. No entanto, um bom quadro, sem estruturas formais de apoio, não vai muito longe. Empresas inovadoras investem em pesquisa e têm áreas pesadas de desenvolvimento de produtos ou de serviços. Finalmente, é preciso fomentar uma cultura organizacional que valorize ideias novas e perspectivas diferentes. Para tornar uma organização inovadora, é preciso combinar com sabedoria esses três componentes. E o Brasil, tem empresas inovadoras? Certamente. Um prêmio concedido em 2010 pela revista Época Negócios, em parceria com a empresa de consultoria A. T. Kearney, identificou as organizações mais inovadoras do País. Mais do que 120 empresas se inscreveram e 20 foram premiadas. Whirlpool, Basf e Embraco subiram ao pódio principal. A primeira investiu no ritmo do lançamento de novos produtos. A segunda apostou na criatividade para tirar a imagem de commodity de suas tintas. A terceira procurou unir inovação e sustentabilidade e já tem 75% de seu faturamento com produtos lançados há menos de três anos. No entanto, apesar dos inegáveis méritos dessas e outras empresas locais, a distância entre a Vila Olímpia e o Vale do Silício continua enorme. Quais são as nossas lacunas? Primeiro, faltam-nos talentos. Pagamos, e continuaremos por muito tempo pagando, o preço de um sistema educacional incompatível com as aspirações e potenciais do País. Segundo, falta-nos planejamento. O País continua 101

sendo o paraíso dos cartórios e da burocracia, e o inferno dos empreendedores. Temos sido distraídos e tímidos na definição de uma estratégia para fomentar setores inovadores na economia. Terceiro, faltam-nos universidades. Nossas instituições de pesquisa produzem pouco e mal, e estão, em geral, pouco alinhadas com as necessidades das empresas. Muitos acadêmicos ainda veem com desconfiança e temor qualquer tipo de aproximação com empresas. Quarto, faltam-nos gestores que mirem horizontes mais amplos. Muitas empresas locais, algumas de grande porte, sequer contam com áreas de pesquisa e desenvolvimento, um primeiro passo necessário, embora insuficiente, para gerar inovações. Quinto, falta-nos uma cultura profissional de inovação. Inovadores questionam o status quo, correm riscos, falham e tentam novamente, levam à frente iniciativas sem garantia de sucesso, criam redes de cooperação sem respeitar convenções ou fronteiras, e fazem acontecer. Em suma, caminhar, nós caminhamos, mas ainda nos faltam direção e ação.

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Inovar ou imitar, eis a questão Empresas e mídia de negócios vêm promovendo o culto da inovação. Porém, pesquisador norte-americano argumenta que deveríamos prestar mais atenção à imitação.

Uma edição recente do New York Times Magazine publicou 32 inovações que vão “mudar o nosso futuro”. A lista contém itens curiosos. Cientistas estão desenvolvendo roupas elétricas, capazes de gerar energia a partir das diferenças de temperatura entre partes do corpo. Muito útil para carregar fones celulares. Resta ver quantos dias precisaremos usar a mesma camiseta para completar a carga. Chaotic Moon Labs, um centro de pesquisa e desenvolvimento, está desenvolvendo um novo carrinho de supermercado, que vem com um tablet integrado e usa o sistema Kinect, da Microsoft. O fiel transportador absorve o perfil do cliente e segue-o pelas alamedas do consumo, indicando os itens a serem comprados, advertindo contra violações de dieta e efetivando automaticamente as compras. Resta saber se ele poderá moderar os impulsos de consumidores compulsivos. A empresa de design Frog pretende desenvolver computadores que poderão projetar múltiplas telas em diferentes superfícies, permitindo o trabalho simultâneo em vários assuntos. Imagine, caro leitor, o escritório do futuro, com 100 ou 200 funcionários projetando suas telas de trabalho no teto, no chão, nas costas do vizinho. Vai ser um espetáculo. Kazutaka Kuhihra e colegas criaram o SpeechJammer, a arma do silêncio. Quando acionada contra um falador, ela grava a voz da pessoa e a reproduz com um atraso de 100 milissegundos. A ação dispara um processo cerebral que emudece 103

o interlocutor. Os inventores esperam que sua criação ajude a promover a paz mundial. Criatividade e inovação são ingredientes básicos do capitalismo. Criar novos produtos, serviços e processos, e transformar as criações em negócios, ajuda a manter a grande máquina jovem e saudável. Individualmente, para as empresas, é uma questão de sobrevivência. Inovar permite sair à frente e ganhar com a vantagem econômica de serem únicas, por algum tempo. Significativamente, nos últimos anos, a inovação ganhou status de fetiche e transformou-se em objeto de culto. Livros disseminam casos de sucesso, cursos ensinam executivos a inovar, eventos celebram o tema e prêmios reconhecem os maiores talentos. Todos querem ser o próximo Steve Jobs. Até mesmo organizações públicas e sociais entraram na onda. Oded Shenkar, um professor da Ohio State University com consistentes credenciais acadêmicas, seguiu caminho contrário. Seu livro Copycats: Melhor que o Original (Editora Saraiva) celebra a cópia, e não o original. O pesquisador mostra como os seguidores conseguem gerar valor copiando os originais. Coerentemente, seu argumento também é copiado. Theodore Levitt, um decano da administração, escreveu há tempos que a imitação está mais presente nas empresas do que a inovação e é o caminho mais direto para o crescimento e para fazer lucros. Shenkar observa que a história empresarial está cheia de exemplos de imitadores que tiveram mais sucesso que os criadores originais. A RC Cola introduziu refrigerantes dietéticos, mas foi logo copiada pelas gigantes Coca-Cola e Pepsi. A Sony introduziu a fotografia digital, mas perdeu espaço para outros fabricantes. O Diners Club emitiu o primeiro cartão de crédito, mas viu seu mercado ser dominado pelos concorrentes. A imitação é a regra, e não a exceção. O pesquisador argumenta que a imitação é uma capacidade estratégica que pode ser desenvolvida e aplicada com sucesso. Imitar significa copiar, replicar ou 104

repetir uma inovação, seja um produto, um serviço, um processo ou um modelo de negócios. Não se trata de pirataria, embora a linha divisória seja tênue. A imitação permite economizar custos em pesquisa, desenvolvimento e marketing. Além disso, reduz o risco do empreendimento, pois há um precedente de que o novo produto ou serviço tem aceitação entre os consumidores. Ainda, imitadores estão menos atados a tecnologias antigas e são menos complacentes e menos inebriados com o sucesso. Empresas eventualmente ignoram os benefícios da imitação. Entretanto, registra Shenkar, a velocidade da imitação está crescendo tanto ou mais do que a velocidade da inovação. Para o autor, a imitação é consistente com a inovação e pode facilitá-la. Copiar não é bom para o ego dos executivos, mas pode ser ótimo para o bolso dos acionistas. O iPod não foi o primeiro reprodutor de músicas. O conceito de tablet foi criado muitos anos antes do lançamento do iPad. Isso não impediu a Apple de dominar o mercado e capturar enorme valor. Não se pode negar a importância da inovação da empresa, mas seus lucros vêm de uma estratégia mais ampla, que orquestra inovação com imitação, combinações inteligentes de tecnologias, uma estratégia eficaz de marca e fabricação na China.

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Vivendo perigosamente Toda atividade empresarial implica correr riscos, mas nem todas as empresas estão preparadas para gerenciá-los em um ambiente competitivo e transparente.

É conhecida a saga corporativa “empresa multinacional desalmada provoca acidente ecológico, tenta ocultar os fatos, enganar governo e ludibriar a opinião pública”. Muda o palco, mudam os atores, mas o roteiro continua o mesmo. Um remake recente teve como vilã a gigante Chevron, repetindo o papel interpretado, em 2010, pela BP, no Golfo do México. Nas telas: óleo vazando, ativistas irados, executivos evasivos e o meio ambiente ameaçado. A Chevron é uma das maiores empresas do setor de energia do mundo. Está presente em mais de 180 países, tem 62 mil funcionários e faturou 205 bilhões de dólares em 2010. Suas atividades incluem cada elo das cadeias produtivas de petróleo e gás. A empresa também investe em fontes alternativas de energia, tais como energia geotérmica, solar e eólica. Sua história confunde-se com a expansão do capitalismo norte-americano. Foi marcada por inúmeras fusões e aquisições, inclusive a compra da Texaco, em 2000, e da Unocal, em 2005. Como no caso de outras grandes empresas, sua história foi também marcada por controvérsias e escândalos. Nos anos 1950, junto com General Motors e a Firestone, a Chevron foi acusada de comprar e desmantelar os sistemas de transporte público urbano de grandes cidades norteamericanas, baseado em bondes elétricos, para facilitar a entradas de frotas de ônibus.

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A empresa foi também acusada de manter um sistema de evasão fiscal, de 1970 a 2000, usando um projeto, na Indonésia, de tentar bloquear o desenvolvimento de carros híbridos e de provocar danos ambientais na Califórnia, em Angola e no Equador (uma herança da Texaco). Como sabem até mesmo os roteiristas de Hollywood, óleo e política misturam-se de maneira nem sempre cândida, com resultados frequentemente cruéis para o meio ambiente e para as comunidades. Além do petróleo, o vazamento na costa do Rio de Janeiro traz à tona um ponto de atenção: o apetite por riscos das empresas. Como rezam os bons manuais de gestão, toda atividade empresarial envolve riscos. O pequeno industrial corre riscos ao comprar uma nova máquina para ampliar sua produção. O banqueiro corre riscos ao ampliar sua oferta de crédito. O executivo da empresa de infraestrutura corre riscos ao escavar o fundo do oceano. Quanto maior o risco, maior o prêmio. Quem não quer correr riscos, não deve se estabelecer. O dilema enfrentado diariamente por empresários e executivos refere-se a que grau de risco deve ser aceito. Qualquer operação pode ser projetada para se tornar (quase) à prova de riscos. Porém, isso tornará seus custos proibitivos e o negócio inviável. Por outro lado, uma operação sem salvaguardas pode ser extremamente lucrativa, porém exporá seus responsáveis a riscos astronômicos. Então, o desafio para as empresas é dominar a tal ponto seus processos e tecnologias que seja possível gerenciar (quase) cientificamente os riscos, minimizando os custos de controle e maximizando os lucros. Na prática, isso equivale a caminhar por uma corda bamba. Qualquer pequeno deslize pode provocar uma queda. Certas empresas, em função de sua história e cultura organizacional, são mais avessas a riscos. Contratam executivos mais conservadores e tomam decisões fundamentadas em análises cuidadosas. Outras empresas são mais propensas ao risco. Atraem executivos mais agressivos, que seguem seus instintos. Quando 107

operam em mercados pouco regulados ou com governos corruptos, tais empresas encontram um ambiente propício para correr riscos. Quando o prêmio é grande e a pena é leve, aumenta o apetite por riscos. Nas duas últimas décadas, o avanço das tecnologias de informação e comunicação, combinado com maior sensibilidade coletiva para questões sociais e ambientais, provocou impactos consideráveis sobre o mundo corporativo e sobre o comportamento de empresários e executivos. Hoje, uma denúncia de trabalho escravo na Ásia pode causar a perda de contratos na Europa; um acidente ambiental na África pode derrubar o preço das ações em Nova Iorque. Imagem e reputação, os chamados ativos simbólicos, subiram na escala de prioridades executivas. Nas grandes empresas, aumentou a preocupação com o impacto social, multiplicaram-se as áreas de responsabilidade social corporativa e cresceu o orçamento de projetos sociais. A partir do bolso, o espírito selvagem dos capitalistas vai sendo domesticado, senão na essência, ao menos na aparência. Efeito colateral: uma redução do apetite por riscos. A saga da Chevron ainda ganhará alguns capítulos. O comportamento dos atores está sendo observado de perto pela plateia e pelos colegas de palco. A epopeia da exploração do pré-sal dará ensejo a muitas sagas. Preparemos o estômago!

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Os herméticos É cada vez mais difícil entender a linguagem esotérica e abstrata de certos profissionais e executivos.

Cavernas diferentes, dialetos diferentes. Três décadas depois que a dupla Thatcher & Reagan puxou a descarga da globalização, previsões e premonições de um mundo de organizações e práticas gerenciais homogêneas não se concretizaram. Embora o rolo compressor do management, apoiado pelas escolas de negócios, pelas empresas de consultoria e pela mídia de negócios, tenha operado sua mágica homogeneizadora, mantém-se considerável diversidade entre as organizações. Um cavernícola que trocar sua gruta empresarial por outra terá provavelmente que passar por um período de longa adaptação aos novos modos e costumes. E ai do cavernícola que não se esmerar no domínio do novo dialeto e da nova prosopopeia. Seu destino mais provável será o isolamento e o desterro. Uma consequência dessa diversidade e dos múltiplos dialetos é a dificuldade, enfrentada por um interlocutor neutro, para compreender os cavernícolas. Dan Pallotta, que mantém um blog no website da revista de negócios Harvard Business Review, declarou que, em aproximadamente metade de suas conversas sobre negócios, não tem a mínima ideia do que seus interlocutores estão falando. Confessa que, quando jovem, sentia-se tolo por não entender o que as outras pessoas diziam, mas que agora suspeita de que a tolice seja de seus interlocutores, por não conseguirem se fazer entender. O autor identifica algumas manifestações curiosas do fenômeno. Uma delas é o “abstracionismo”, a prática de substituir palavras simples e de domínio público por expressões empoladas e complicadas. Por exemplo, uma simples maçaneta pode ser transformada em uma “inovação em acesso residencial” e um 109

investimento duvidoso pode ser magicamente transmutado em uma “aplicação estruturada em derivativos de perfil agressivo”. Outra manifestação é a proliferação de expressões de grande efeito e pouco significado, tais como “pensar fora da caixa”, “quebrar paradigmas”, “provocar inovações de ruptura”, “adotar a estratégia do oceano azul” e “encantar os clientes”. O fenômeno descrito por Pallotta conta mais de três décadas. Desde os anos 1980, o mundo corporativo vem desenvolvendo dialetos peculiares. A origem tem base comum, mas suas manifestações parecem ter se multiplicado. Primeiro, vieram os consultores, apropriando-se inventivamente do vernáculo para embalar velhas ideias com novos significados. Sua criatividade oral foi retratada com exemplar ironia em uma anedota, popular nos anos 1990, na qual é perguntado a um consultor porque, afinal, uma galinha atravessa a rua, ao que o profissional responde: “A desregulamentação da economia estava ameaçando sua posição dominante no negócio. A galinha teve que enfrentar desafios para criar e desenvolver as competências essenciais para o novo mercado competitivo. Nossa consultoria orientou a galinha a repensar sua estratégia. Usando um Modelo Galináceo Integrado (MGI), a consultoria ajudou a galinha a usar seu capital social para alinhar os recursos dentro de um framework de classe mundial. Um programa de sete passos foi realizado para alavancar seu capital intelectual, tanto tácito quanto explícito, e possibilitar um aumento da sinergia para agregar valor à cadeia produtiva. Tudo foi conduzido em direção à criação de uma solução holística e sustentável. Em suma: a consultoria ajudou a galinha a tornar-se uma galinha de sucesso”. Em tempo, a resposta certa seria: para chegar ao outro lado da rua. O mundo girou e os consultores cederam seu lugar aos financistas, ainda mais herméticos e obscuros. Consulte, o prezado leitor, um desses especialistas sobre a prosaica possibilidade de investir seu décimo terceiro salário, arduamente preservado das orgias natalinas, e talvez escute algo como: “Temos uma ótima opção, trata-se de uma operação de CRI relativamente longa (15 anos na série mais curta). Mas a rentabilidade esperada é a da NTN-B 2018 + um spread máximo de 110

0,737%, a ser formado em leilão. Hoje uma NTN-B 2018 paga IPCA + 5,235% – para quem aposta no Brasil e, consequentemente, na convergência da taxa real de juros. E fica mais interessante porque essa rentabilidade é líquida de IR para PF”. Simples, não? Que fazer? Talvez, no futuro, os softwares de tradução, que hoje já são bem sofisticados, evoluam a ponto de permitir a conversão, em tempo real, dos dialetos corporativos para a língua pátria. Mas não nos iludamos. Provavelmente, ainda se passarão muitos anos até que um sistema de inteligência artificial seja capaz de decifrar e consertar problemas oriundos do uso exótico que certos profissionais e executivos fazem de suas habilidades verbais.

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Pasárgada maculada Pesquisa aponta quatro comportamentos viciosos, comuns entre executivos, que minam o comprometimento e a relação saudável com o trabalho.

Os livros de gestão e as revistas de negócios parecem ser editados em uma ilha da fantasia. O tom, criado por escritores, jornalistas e editores, é ufanista. Os textos são comumente laudatórios. Na Pasárgada corporativa, ninfas e efebos aspiram postos executivos, empreendedores audaciosos encontram potes de ouro e empresários experientes revelam risonhos como chegaram ao topo. Nesse mundo encantado, o trabalho duro move as carreiras e o mercado recompensa as empresas virtuosas. A estética da Pasárgada corporativa é peculiar. Sua paisagem destaca arranha-céus envidraçados, pátios repletos de contêineres coloridos, campos geometricamente cultivados, linhas de montagem robotizadas e executivos mirando o horizonte. Da Pasárgada corporativa, foram banidos os jogos de poder, os golpes baixos e os lobbies escusos. De lá, todos os sujos, feios e malvados foram deportados. Vez por outra, entretanto, a mídia da Pasárgada corporativa abre espaço para tratar de desvios e desviantes. Uma edição recente da revista McKinsey Quarterly trouxe artigo de Teresa Amabile, uma professora de Harvard, escrito em parceria com Steven Kramer, um pesquisador independente, sobre o comportamento vicioso de alguns líderes. Segundo os autores, muitos executivos de alto nível rotineiramente minam a criatividade e a produtividade de seus liderados. Amabile e Kramer analisaram mais de 800 diários eletrônicos de profissionais envolvidos com projetos de inovação em sete empresas. A investigação resultou na identificação de quatro comportamentos sabotadores. 112

O primeiro comportamento sabotador é a emissão de sinais de mediocridade. Ocorre quando a alta gestão estabelece uma agenda audaciosa de mudanças, baseadas em inovações em produtos e serviços. No entanto, no dia a dia, os executivos continuam se preocupando com os gastos com as copiadoras e o cafezinho. Amabile e Kramer citam o caso de uma das empresas pesquisadas, na qual a alta gestão fomentou a formação de equipes autônomas multifuncionais, voltadas para o desenvolvimento de produtos inovadores. No entanto, na prática, os executivos cerceavam a liberdade dos grupos e preocupavam-se somente com redução de custos. O segundo comportamento sabotador foi denominado ironicamente de desordem de deficit de atenção estratégica. Toda empresa precisa monitorar continuamente o ambiente para poder definir suas ações. Deve identificar mudanças no comportamento dos consumidores, movimentos dos concorrentes, tendências econômicas e tecnológicas. A realidade, na prática, é bem diferente. Em muitas organizações, o ambiente é monitorado de maneira aleatória, informações irrelevantes são supervalorizadas e fatos relevantes são ignorados. Muitas ações são definidas, mas poucas são implementadas e raras são acompanhadas. As mudanças de direção são constantes e mal comunicadas, gerando sensação de falta de rumo e descrédito. O terceiro comportamento sabotador é o isolamento crônico. Muitos executivos agem como se liderassem exércitos bem-treinados e disciplinados, operando com metas claras e sob padrões bem-definidos. Vivem em uma redoma protegida, à qual só chegam boas notícias. Entretanto, fora da redoma, impera o caos, e a gestão lembra antigas comédias-pastelão. Processos e normas existem apenas para inglês ver. Os gestores intermediários promovem guerras fratricidas e muitas iniciativas importantes perecem sob o fogo amigo. O quarto comportamento sabotador é o desvirtuamento de objetivos ambiciosos. Seguindo a pregação de seus gloriosos gurus, a alta gestão divulga uma 113

visão audaciosa de futuro e informa objetivos agressivos, comumente envoltos com um forte apelo emocional para os funcionários. No entanto, tais declarações frequentemente não passam de artefatos de retórica, com pouco significado para o pessoal da linha de frente. As visões de futuro costumam ser tão extremas que são vistas como inviáveis. Forma-se, então, um vazio, que alimenta o cinismo e a inércia. Esses quatro comportamentos têm efeitos negativos sobre os profissionais e sobre o desempenho das empresas. Eles interferem na relação que cada indivíduo constrói com seu trabalho e com a organização. Algumas empresas vergam sob o peso da inépcia de seus executivos sabotadores. Perdem talentos e clientes. Veem seu desempenho definhar até, finalmente, fecharem as portas. Outras, curiosamente, vencem os anos sem abandonar os vícios. Como explicar? Talvez sejam menos viciosas que suas concorrentes, ou, quem sabe, compensem os vícios com algumas virtudes ou truques baratos. A maior força da Pasárgada corporativa, como se sabe, é fazer seus habitantes acreditarem que realmente vivem em Pasárgada.

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A vida na gaiola Os modernos escritórios empresariais foram supostamente projetados para facilitar a comunicação e fomentar o trabalho coletivo. Na prática, efeitos colaterais frequentemente superam essas vantagens.

O trabalhador do século XIX foi, tipicamente, um agricultor, labutando ao ar livre e sofrendo a ação das intempéries. O trabalhador de parte considerável do século XX foi, tipicamente, um operário, labutando em uma fábrica e sofrendo com o calor, o ruído e o ritmo da linha de montagem. O trabalhador do século XXI é, tipicamente, um ser dos escritórios, labutando de sol a sol com um computador à sua frente e dezenas de colegas ao seu redor. Do final do século passado para as primeiras décadas do presente século, a arquitetura dos escritórios mudou sensivelmente: o crescimento das empresas, combinado com o aumento do preço do metro quadrado nas grandes cidades, levou as organizações a adensarem seus espaços de trabalho. Com isso, as salas deram lugar às baias; as baias deram lugar às células com divisórias; e, agora, as células estão dando lugar às mesas comunitárias. Os modernos escritórios foram projetados para facilitar a comunicação, estimular o trabalho coletivo, fomentar a produtividade e a eficiência. No entanto, não são poucos aqueles que amaldiçoam a vida nas modernas gaiolas corporativas, com o ruído permanente de conversas indesejáveis, as interrupções frequentes de colegas inoportunos, o grasnar de celulares, o martelar ritmado de teclados, o coaxar estridente de cafeteiras e o uivar mecânico de copiadoras. Por trás da arquitetura aberta, há um conceito de gestão. O mundo corporativo tomou como premissa que a inteligência coletiva é superior à 115

inteligência individual, e que trabalhar em grupo é melhor do que trabalhar sozinho. Os gênios solitários que se lixem. A vez agora é dos extrovertidos, dos entusiastas da vida social e do pensamento grupal. Porém, como alerta Susan Cain, em artigo publicado pelo New York Times, é melhor ir devagar com o andor porque o santo é de barro. Com base em diversos estudos científicos, a autora coloca em xeque o pressuposto de que a colaboração e o trabalho em equipe tornam as organizações mais produtivas. Primeiro argumento: algum trabalho em grupo pode ser estimulante e até divertido. Trocar experiências e aprender com a vivência de colegas enriquece a visão que temos da realidade, pode mudar nossa percepção sobre os problemas e até levar a soluções que não imaginaríamos sozinhos. Porém, na prática, trabalhar em grupo significa participar de reuniões sem rumo nem fim e ser obrigado a interagir com colegas que não têm a mínima ideia do assunto tratado ou que agem exclusivamente em interesse próprio. Além disso, muitos indivíduos, quando atuam em grupos, portam-se como espectadores, mimetizam as opiniões de colegas e acomodam-se à pressão dos pares. Segundo argumento: grupos frequentemente focam o próprio umbigo e desenvolvem raciocínios viciosos, ignorando perspectivas externas e reforçando o status quo. Eles costumam chegar a soluções de compromisso, que costuram interesses políticos, mas evitam correr riscos e tomar decisões mais duras, que podem ser necessárias em situações de crise. Terceiro argumento: alguns estudos revelam que o trabalho em escritórios abertos é insalubre, tornando os profissionais mais predispostos a sofrer de pressão alta, estresse e exaustão. Além disso, torna-os mais distraídos, inseguros e hostis, e ainda prejudica a produtividade. Quarto argumento: em geral, as pessoas são mais criativas quando têm privacidade e ficam livres de interrupções. De fato, o isolamento ajuda a mente a se 116

concentrar, induz momentos de transcendência e facilita a criatividade. Significativamente, muitos profissionais inovadores são indivíduos introvertidos e individualistas. Eles se sentem mais confortáveis trabalhando sozinhos, donos de sua própria agenda e ritmo de ação. Que fazer? Voltar ao modelo individualista e à arquitetura de salas separadas é inviável. Susan Cain sugere uma solução de equilíbrio, com ambientes de trabalho que permitam a interação entre os profissionais, porém lhes facilitem momentos de isolamento e reflexão. A autora acerta no diagnóstico, porém é ingênua na solução. Esquece que uma razão (implícita) para a existência de escritórios abertos é o chamado controle social. Ambientes abertos colocam os profissionais em constante situação de atenção. O escritório do século XXI é uma reinvenção do panóptico idealizado por Jeremy Bentham no século XVIII: um centro penitenciário no qual os ocupantes estão permanentemente sob vigilância. Juntam-se à arquitetura os modernos meios de informação e comunicação, garantindo que os habitantes das gaiolas corporativas se comportem com o decoro esperado. Criadores, inovadores e empreendedores que procurem outro endereço.

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Imagem apagada Vítima de choques tecnológicos externos e dificuldades internas para se adaptar aos novos tempos, a icônica Kodak foi ao solo.

Autópsias não são agradáveis, mas podem ao menos ser didáticas. Há não muito tempo, a Eastman Kodak Company entrou com pedido de concordata nos Estados Unidos. Foi vítima de duas gigantescas ondas de mudanças tecnológicas: a fotografia digital e os smartphones, com câmeras embutidas. Na última década, viu seus resultados minguarem sem conseguir encontrar a nova direção dos lucros. A empresa, com sede em Rochester, nos Estados Unidos, foi fundada por George Eastman no final do século XIX. Eastman introduziu o rolo de filme, inovação que ajudaria a definir os rumos da indústria pelos 100 anos seguintes. Ele acreditava que o sucesso viria de um produto barato e simples de usar: “você aperta o botão e nós fazemos o resto”. Além do foco no cliente, a Kodak adotou os princípios que fizeram dela um gigante mundial: produção em massa, custo baixo, distribuição extensiva, propaganda intensiva e investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Desde os primeiros anos, os resultados da empresa vieram da venda de filmes, e não das câmeras. Na organização, as câmeras eram vistas apenas como um meio para vender os filmes. Segundo estudo de caso desenvolvido por Giovanni Gavetti, Rebecca Henderson e Simona Giorgi, da Harvard Business School, isso fez com que o centro de poder da empresa se localizasse em sua gigantesca planta de fabricação de filmes. Seus presidentes quase sempre vinham da manufatura e passavam pela escola de negócios do MIT. Com isso, a empresa forjou uma cultura conservadora, avessa a riscos e arrogante. 118

Em meados da década de 1970, o modelo ainda funcionava como um bom relógio suíço e fazia com que a Kodak controlasse 90% do mercado de filmes e 85% do mercado de câmeras dos Estados Unidos. Foi no ápice que começaram a surgir ameaças. Em 1981, a Sony anunciou o lançamento da Mavica, a primeira câmera digital, provocando um terremoto emocional na Kodak. A resposta da empresa foi diversificar seus negócios, investindo em copiadoras, diagnóstico médico e produtos farmacêuticos. Enquanto focava novos negócios, competidores penetravam no mercado norte-americano com produtos mais baratos, colocando em risco a vaca leiteira da Kodak. Ao mesmo tempo, a empresa investiu em digitalização, porém usando um sistema híbrido, que combinava a antiga tecnologia com a nova. O fotógrafo levava seu rolo de filme para um centro de digitalização, que transpunha as imagens para um CD. As imagens poderiam, então, ser vistas em um computador ou em uma TV conectada a um equipamento especial de reprodução. A história, como se sabe, levou a fotografia para outra direção. Mais uma década, mais mudanças, novos modelos de negócios, investimentos na China, desenvolvimento de tecnologia digital e muito mais. Muitas tentativas, alguns acertos, mas não o suficiente para reverter o movimento ladeira abaixo. Em 2011, as vendas foram de aproximadamente seis bilhões de dólares, porém somando prejuízos substantivos. A força de trabalho, que atingira um pico de 145 mil funcionários na década de 1980, caíra abaixo de 20 mil funcionários. O preço da ação despencou. Em matéria recente, a revista britânica The Economist comparou a trajetória da Kodak com a trajetória da Fujifilm, sua rival japonesa. Ambas se esbaldaram durante os anos de quase monopólio em seus mercados domésticos e ambas sofreram os impactos das novas tecnologias. Entretanto, a Fujifilm vale hoje mais do que 12 bilhões de dólares e a Kodak vale 220 milhões de dólares.

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O que explica a diferença? Enquanto os japoneses realizaram um processo eficaz de diversificação, os norte-americanos perderam tempo e dinheiro com tentativas malsucedidas. Analistas também apontam a cultura de complacência e isolamento da Kodak, que teria impedido a percepção de ameaças e de oportunidades, e a adoção de ações mais firmes de mudança. Tudo isso, naturalmente, é fácil de notar depois do velório. Executivos e empreendedores, de grandes e pequenas empresas, frequentemente observam as grandes ondas de mudança se aproximando, venham elas das novas tecnologias ou venham elas do planeta Ásia. Mais difícil é prever quando cada onda chegará, que impacto trará e definir o que fazer a respeito. Algumas empresas duram mais do que 100 anos, superando mudanças tecnológicas, recessões, guerras e trocas de comando. Porém, elas constituem um seleto grupo de exceções. A maior parte sucumbe aos primeiros anos de existência. George Eastman foi um empresário inovador e empreendedor. No final da vida, sofreu com dores de coluna e depressão. Morreu de maneira dramática, em 1932, com um tiro no coração. Deixou uma breve nota: “Aos meus amigos: meu trabalho está feito. Por que esperar?”. Dá o que pensar...

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Idiotas, estúpidos e simpatizantes O mundo dos negócios está cheio de babacas em altos postos. Portanto, é preciso ser estúpido para ter sucesso... Ou não?

A sacada foi de Tom McNichol, em texto veiculado no website da revista The Atlantic. Escreveu o autor: “Steve Jobs foi um visionário, um inovador brilhante que remodelou indústrias inteiras pela força de sua vontade, um gênio na capacidade de dar aos consumidores o que eles queriam, mas não sabiam que queriam. Ele foi também um babaca de primeira classe”. Isso mesmo, leitor, o cultuado criador da Apple, super-herói dos negócios, fênix empreendedora, mago dos produtos eletrônicos, foi, certamente, brilhante e carismático. Porém, revela a biografia escrita por Walter Isaacson, foi também petulante, rude e hipercontrolador. Na empresa, humilhava seus funcionários e assumia o crédito pelo trabalho dos outros. Não era muito melhor na vida pessoal: estacionava seu carro em lugares reservados para deficientes e evitou reconhecer a paternidade de sua filha. Em suma, era uma contradição ambulante. A leitura da biografia de Jobs, best-seller em vários rincões do planeta, talvez estimule alguns babacas, que se acham gênios, a exteriorizar sua estupidez. Quiçá, como sugere McNichol, a nova safra de livros de negócios nos brinde com títulos tais como: Os Sete Hábitos dos Babacas Altamente Eficazes, O Babaca-minuto ou Quem foi o Babaca que Mexeu no Meu Queijo? Aos quais poderíamos acrescentar: O Monge e o Executivo Babaca, A Inteligência Emocional do Babaca e Babaquice para Dummies. No entanto, apesar dos casos de Jobs e de outros gênios que se comportam frequentemente como babacas, não se pode afirmar que haja causalidade entre uma característica e outra. Robert Sutton, um professor de gestão da Universidade de 121

Stanford, nos Estados Unidos, e autor de um livro sobre o tema – The No Asshole Rule: Building a Civilized Workplace and Surviving One that Isn't –, acredita que a presença de idiotas na empresa envenena o ambiente e induz a saída de bons funcionários. Sutton define idiotas como indivíduos que propositalmente fazem seus colegas se sentirem mal sobre si mesmos, hostilizando especialmente os mais fracos. Então, se idiotas, estúpidos e congêneres são ruins para o ambiente organizacional e para os negócios, como explicar o caso Jobs? E como explicar dezenas de outros casos? De fato, é difícil encontrar uma organização que não tenha pelo menos um babaca na diretoria, eventualmente no posto de primeiro executivo. Certo nível de babaquice é natural e aceito. Somos frequentemente tolerantes em relação às excentricidades e excessos de amigos e colegas. E eles com as nossas. Nas empresas, o nível de tolerância à babaquice aumenta com a distância relativa entre o babaca e o tolerante (primeiro axioma). Presidentes são modestos babacas com seus diretores, mas podem ser tornar tremendos babacas com gerentes juniores. Além disso, quanto menor o nível na pirâmide, maior o nível exigido de tolerância (segundo axioma). Na base, encontra-se o hipertolerante estagiário, que atura a babaquice de todos acima dele e só consegue ser babaca com seu irmão mais jovem, ou com seu cachorro. Mas seu dia de glória chegará. Devemos aceitar que nem todos os estúpidos são estúpidos em tempo integral. Os babacas mais experientes aprendem a dosar sua babaquice para obter o melhor efeito. Alternam momentos de fúria intimidadora com outros de relativa ternura, para cativar os corações mais sensíveis e sossegar os estômagos mais frágeis. Quando no topo, costumam contar com ajudantes de ordem, que limpam os destroços que deixam no caminho. Além disso, a estupidez pode ter ao menos uma vantagem: ajudar a fazer o paquiderme corporativo andar, enfrentando grupos de poder e desafiando o status quo. 122

Pergunta-chave: qual será o efeito da canonização de Jobs e da popularidade de sua biografia? McNichol não acredita que a nova bíblia dos negócios afete o comportamento de gestores de nível médio, de temperamento equilibrado. O mais provável é que torne patrões que já são estúpidos ainda mais estúpidos, piorando o clima em suas empresas. O autor toca um ponto importante. Livros de negócios, especialmente os mais populares, não são comprados para serem lidos. Eles servem principalmente para adornar estantes e garantir ao comprador algumas “tiradas” para conversas de corredor. O conteúdo é quase sempre óbvio e o sucesso vem do eco que provoca nas estepes desoladas das mentes dos executivos: “Puxa, é exatamente o que eu penso!”. Neste sentido, a premonição de McNichol deve ser considerada com seriedade. A eventual leitura, dinâmica e seletiva, da biografia de Jobs pode captar apenas os vícios do personagem, ajudando a justificar e promover os vícios similares do babaca leitor. Tolerantes do mundo, preparai-vos!

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Colcha de retalhos planetária Estudos de cultura organizacional vêm revelando sistemas corporativos cada vez mais fragmentados. No horizonte: grandes desafios para gestores e líderes.

Geert Hofstede é um influente pesquisador do campo da cultura organizacional. Foi um pioneiro dos estudos interculturais. Na década de 1960, trabalhou na IBM, empresa na qual ajudou a introduzir pesquisas de opinião dos funcionários. No início dos anos 1970, afastou-se da organização e mergulhou na análise de mais de 100 mil questionários que havia coletado. No final da mesma década, iniciou a veiculação de seus estudos em livros e revistas científicas. Sua obra tornou-se referência no campo de estudos organizacionais e transformou-o em um dos mais citados cientistas sociais contemporâneos. A análise original de Hofstede apontou a existência de quatro dimensões da cultura nacional, que influenciam as atitudes e os comportamentos no trabalho. Tais dimensões ajudam a explicar distinções entre estilos de gestão de subsidiárias de uma mesma empresa atuando em diferentes países. As quatro dimensões identificadas pelo pesquisador foram: distância do poder, coletivismo versus individualismo, feminilidade versus masculinidade e aversão à incerteza. Nos anos 1990, um grupo de pesquisadores norte-americanos retomou e ampliou o modelo de Hofstede, dando origem ao Projeto Globe. Objetivo: examinar as inter-relações entre cultura social, cultura organizacional e liderança organizacional. Participaram do projeto 200 cientistas sociais de 61 países, gerando dois livros e inúmeros artigos científicos e teses.

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Tais estudos revelam uma colcha de retalhos planetária. Nossas atitudes e comportamentos no trabalho variam substancialmente entre países, entre regiões e até mesmo dentro de uma mesma organização. Até os anos 1980, as empresas operavam em mercados regulamentados e relativamente fechados. O efeito da diversidade era moderado por tais condições. Entretanto, as estripulias globalizantes desmontaram fronteiras e levaram as empresas transnacionais e operarem de maneira mais integrada. Tribos antes isoladas, com usos e costumes peculiares, foram obrigadas a conviver e produzir juntas. Além disso, muitas empresas passaram por sucessivos processos de reestruturação, por fusões e aquisições, tornando-se entidades híbridas, nas quais convivem diferentes sistemas de valores e práticas. As consequências são notáveis: surgimento de grupos de interesse e facções, aumento do nível interno de conflito e dificuldade para definir objetivos comuns. O novo contexto provocou o aumento do tempo e da energia despendidos para lidar com desentendimentos e crises internas, com consequências negativas sobre a produtividade, sobre a competitividade e sobre a capacidade de gerar resultados. E o fenômeno não é exclusivo do mundo corporativo. David Brooks comentou em sua coluna no New York Times que a ideia de que a humanidade passaria por um processo de convergência de valores, que velhos sentimentos nacionalistas perderiam força e que caminharíamos para um futuro comum está perdendo força. O colunista afirma que seu próprio país, os Estados Unidos, marcado por uma história comum e forte identidade, está se tornando cada vez mais polarizado e mais difícil de governar. Infelizmente, não é caso isolado; não faltam crises e guerras para ilustrar a tese. As tecnologias de informação e de comunicação, que poderiam facilitar o diálogo e promover o entendimento, estão, paradoxalmente, alimentando a segregação e o paroquialismo. A fragmentação social manifesta-se de várias formas:

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entre grupos étnicos e religiosos, entre classes sociais, entre gerações, entre profissões, entre grupos de interesse... a lista é longa. Pesquisas mundiais sobre valores e atitudes indicam níveis crescentes de desconfiança entre nações e uma queda generalizada no nível de confiança social e política. A crise atual na União Europeia, além de seu fundamento econômico, é também uma crise de base cultural, fruto da tentativa de aglutinar países com diferentes sistemas de valores. Durante algumas décadas, foi possível encontrar terreno comum, criar instituições e avançar com o projeto unionista. Nos últimos anos, entretanto, as contradições afloraram, colocando em xeque o modelo. A grande questão é: como enfrentar a crescente fragmentação? Entre nações, o desafio está sendo endereçado, com algumas tentativas e poucos acertos, por meio de iniciativas para renovar ou criar novas instituições multilaterais. Nas organizações, empresários e executivos parecem travar uma luta às cegas. Muitos buscam receitas simples e soluções mágicas, aprofundando o problema, em lugar de resolvê-lo. A fragmentação chegou para ficar. Resta superar a perplexidade, aceitála e aprender a lidar com ela.

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A arte de pastorear gatos O planejamento estratégico sempre foi objeto de zelo e sigilo, tema privilegiado do topo das corporações. Agora, para garantir maior eficácia, algumas empresas apostam na participação e na transparência.

No mundo maravilhoso da gestão empresarial, certos conceitos concorrem ao prêmio de mais falado e menos praticado: planejamento estratégico é um deles. Há 20 anos, a prática foi considerada moribunda, vítima das turbulências globalizantes. Sobreviveu como artefato corporativo, com alguma pompa e pouca utilidade. Em muitas empresas, o planejamento estratégico não é mais do que o prosaico orçamento, ostentando um nome mais sofisticado. Mas o mundo empresarial gira e novos conceitos surgem. Na década de 2000, ganhou popularidade entre especialistas o termo “estratégias emergentes”, um rótulo para as múltiplas ações e decisões que ocorrem em todos os níveis da organização. Mais do que grandes planos, que raramente viam a luz do dia, é a soma das pequenas ações e decisões que realmente importa e determina o curso das coisas. Agora, acompanhando o modismo das mídias sociais, surge o termo “estratégia social”. Matéria publicada na revista McKinsey Quarterly trata do curioso fenômeno. O ponto de partida é que a definição da estratégia da empresa frequentemente sofre com o distanciamento entre planejadores e os executores. Do alto de suas torres, isolados da vida real, diretores de empresa frequentemente perdem a sensibilidade para questões da linha de frente. Com isso, as estratégias por eles definidas contêm lacunas e não são abraçadas pelos executores no meio e na base da pirâmide. Naturalmente, isso pode comprometer o desempenho da empresa. Diante do desafio, a resposta apontada pelos autores Arne Gast e Michele 127

Zanini é trazer para o processo as perspectivas e informações da linha de frente, por meio do uso de tecnologias sociais. Tal condição garante, segundo os autores, aumento da transparência e da participação, e um processo de escrutínio e exame de ideias. O artigo traz exemplos de empresas que estão empregando tal modelo. A HLC Technologies, uma provedora de serviços de desenvolvimento de software, cresceu rapidamente. A nova condição levou ao redesenho do processo estratégico. Os diretores da empresa perceberam que não conseguiam mais dar conta do conhecimento detalhado que cada unidade de negócios demandava. A resposta foi um processo com ampla participação dos funcionários e um sistema de aperfeiçoamento por pares. O tradicional workshop de estratégia foi substituído por uma plataforma on-line que permite a participação de milhares de colaboradores. A transparência ajudou a melhorar a qualidade das sugestões. O produto foi um trabalho mais prático, com maior chance de ser aplicado. Um processo similar ocorreu na conhecida 3M. Em 2009, a empresa decidiu aperfeiçoar seu processo de construção da visão do futuro, etapa inicial do planejamento estratégico. Originalmente, o processo era baseado em uma análise de megatendências, conduzida por especialistas. O novo modelo envolveu todo o pessoal de vendas, marketing e pesquisa & desenvolvimento, por meio de uma plataforma eletrônica. Com isso, participaram do processo 1.200 profissionais de mais de 40 países, gerando mais de 700 ideias, que foram consolidadas em nove novos mercados a serem explorados pela empresa. Muitas empresas enfrentam dificuldades com o alinhamento estratégico e com a execução estratégica. Gerenciar grandes organizações é como pastorear gatos. Por mais que se esforce para fixar uma direção e comunicá-la, os bichanos raramente resignam-se aos comportamentos previstos. O resultado frequente é uma “soma zero” que faz com que os movimentos da organização sejam restritos pela inércia. O fenômeno pode ser observado em grandes empresas privadas, 128

inclusive renomadas multinacionais, em organizações públicas, nas quais os gatos são particularmente manhosos e estridentes, e em organizações sociais, nas quais todos os gatos parecem ter opiniões definitivas sobre todos os assuntos. O aumento do nível de transparência e do nível de participação traz, supostamente, vantagens importantes: enriquece o processo, faz com que os profissionais entendam melhor seu papel e aumenta o grau de comprometimento com a execução. Entretanto, não é processo simples nem tranquilo. E pode despertar atitudes resistentes dos mestres planejadores, ciosos da liturgia do poder.

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Para executivos no topo da pirâmide, adotar tal modelo de condução

estratégica significa utilizar a autoridade pessoal para distribuir poder. Conforme sugerem Gast e Zanini, trata-se de uma mudança relevante de papel, de super tomadores de decisão para arquitetos sociais. O que, obviamente, implica em confiar na maturidade e na preparação dos funcionários, especialmente da média gerência.

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A arte do tempo Pesquisador da Universidade de Minnesota procura entender fenômenos empresariais a partir da linguagem da música.

Conta-se que, ao final de uma conferência do partido comunista, durante a era soviética, foi realizada uma homenagem a Josef Stalin. Então, todos se levantaram e aplaudiram com entusiasmo, por três minutos... quatro minutos... cinco minutos... o tempo foi passando e aplaudir foi se tornando cada vez mais doloroso, mas nenhum dos presentes se arriscava a ser o primeiro a parar. A polícia secreta estava atenta. Os aplausos passaram dos 10 minutos e ninguém manifestava a intenção de parar. Entre os presentes, estava o diretor de uma fábrica. Aos 11 minutos, ele parou de aplaudir, sentou-se e foi seguido pelos demais. Na mesma noite, foi preso sob um pretexto. Seu interrogador disse-lhe para nunca ser o primeiro a parar de aplaudir. A historinha faz parte do livro When: The Art and Science of Perfect Timing, de Stuart Albert. Albert é professor da Carlson School of Management, da Universidade de Minnesota. O livro é fruto de duas décadas de pesquisa e reflexão do autor. O pitoresco fato ilustra um dilema comum: qual é o momento certo para agir? Uma empresa criativa e empreendedora, ao lançar um novo produto, pode estar se adiantando ao seu tempo e não encontrar o mercado pronto para absorver a inovação proposta. Porém, se decidir aguardar, poderá testemunhar com desgosto um concorrente capturar a vantagem de ser o primeiro a chegar aos clientes. Executivos veem-se, diariamente, diante de decisões relacionadas ao tempo. Qual o momento certo para expandir nossos negócios? Quando devemos iniciar o 130

processo de internacionalização da empresa? Devemos contratar mão de obra agora ou aguardar o aumento da demanda? Se agirmos agora, estaremos nos precipitando? Se não agirmos, nossos concorrentes passarão à nossa frente? O frenesi competitivo dos últimos anos levou as empresas a buscar a rapidez em suas ações. Quem sai na frente tem a vantagem do pioneirismo: fortalece sua imagem, chega antes aos clientes, ocupa o mercado, consegue trabalhar com maiores margens de lucro e inibe a ação de concorrentes. Entretanto, a rapidez cobra seu preço. Os pioneiros podem errar nas escolhas tecnológicas, enfrentar mercados ainda imaturos e instáveis, sofrer para convencer os potenciais clientes a adotar a novidade e penar para operar novos canais de distribuição. As revistas e livros de negócios estão cheios de narrativas laudatórias de empresas criativas, porém, para cada história de sucesso, há várias histórias de fracasso, de organizações que erraram o passo da inovação. Por que temos tanta dificuldade para lidar com questões relacionadas ao tempo? Os suspeitos usuais são a complexidade e a incerteza ambiental. Entretanto, Albert acredita que o problema principal é que a forma como nós descrevemos o mundo ao redor não inclui as sequências, intervalos, sobreposições e outras características temporais de tudo o que acontece: de cada plano e de cada ação. Ao raciocinar de maneira estática, empobrecemos nossa percepção sobre a realidade e, assim, corremos o risco de tomar decisões inconsistentes. O que fazer? O pesquisador sugere que, para conduzir melhores análises, e assim poder tomar melhores decisões, é necessário incorporar a variável tempo: encontrar padrões temporais e analisá-los. Albert advoga que devemos olhar para os fenômenos a serem analisados, sejam eles decisões corporativas ou crises políticas, como se olha para a partitura musical de uma sinfonia. Uma partitura musical contém duas dimensões: a dimensão vertical apresenta os diversos instrumentos e a dimensão horizontal apresenta o que cada instrumento tocará.

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Os eventos desdobram-se de modo similar nas empresas. Muitas ações ocorrem simultaneamente (a dimensão vertical), e cada indivíduo ou grupo segue uma sequência própria (a dimensão horizontal), com seu ritmo e suas pausas. O conjunto poderá produzir um resultado harmônico e prazeroso, ou apenas gerar dissonância e ruído. Algumas empresas são verdadeiras orquestras sinfônicas, com seus naipes perfeitamente sincronizados, produzindo música de alta qualidade. Outras se assemelham a bandas de jazz, permitindo aos seus músicos criar e improvisar, a partir de padrões predefinidos. Algumas outras, entretanto, perdem o ritmo, atravessam constantemente a melodia e alienam sua audiência. Dominar a arte do ritmo e do tempo não é tarefa simples. Leonard Bernstein, Herbert von Karajan, Duke Ellington e Benny Goodman não se formaram em pouco tempo. Porém, observando a ação desses mestres, e adotando as lentes propostas por Albert, talvez possamos desenvolver nossa sensibilidade, somar arte e ciência, e compreender melhor a inexorável experiência do tempo, nas empresas e fora delas.

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Panóptico corporativo Empresas estão adotando arranjos com espaços abertos em seus escritórios: alguns efeitos colaterais podem ser infaustos.

Eles vêm aos milhares. Nas primeiras horas da manhã, é possível vê-los caminhando em caravanas, deixando as estações metroviárias ou descendo dos coletivos. Alguns, mais jovens, tentam a sorte no trânsito com suas bicicletas. Os mais graduados chegam de carro e desaparecem nos subterrâneos das torres de vidro. O destino é um só: os escritórios das grandes corporações, onipresentes em nossa paisagem econômica. Até o século XIX, trabalhar era cuidar das coisas da terra. A revolução industrial, iniciada na Inglaterra, tirou homens, mulheres e crianças do campo e trouxe-os para os galpões insalubres das fábricas. O século XX testemunhou outra grande migração laboral, dessa vez das fábricas para os escritórios. Passamos 10, 12 horas por dia em escritórios. Eles se tornaram nossas cavernas do dia, a nos proteger das intempéries e a nos impor patologias. Além de abrigar e obrigar o trabalho, os escritórios são também sinalizadores de status: a localização, os móveis e a decoração dos postos de trabalho revelam quem é centro e quem é periferia na organização. Para as empresas, o porte e a forma dos escritórios respondem a uma questão básica: como colocar o maior número possível de pessoas no menor espaço possível, mantendo o melhor nível de controle sem, no entanto, prejudicar a produtividade? Comprimir centenas de funcionários em pequenos espaços pode ser tentador, mas pode gerar impacto negativo sobre a qualidade do trabalho realizado. É preciso buscar o equilíbrio. 133

No livro Cubeb: A Secret History of the Workplace, o jovem autor Nikil Saval explora as origens e a história dos cubículos, ou baias, nas quais grande parte de nós hoje trabalha. O autor observa que o design de um escritório pode exprimir relações de hierarquia, controle e autoridade. Lembra que a origem dos cubículos data da década de 1960, obra do designer Robert Prost, que buscava um arranjo flexível, que favorecesse a autonomia e liberdade de ação. A intenção era boa, porém as empresas viram no modelo uma solução econômica para empacotar seus funcionários menos graduados em pequenos espaços. Saval explica que, por diversos motivos, incluindo as tirinhas satíricas de Scott Adams, as baias passaram a ser associadas com tudo de ruim que pode ocorrer no trabalho: impessoalidade, falta de sentido, frustração e as mais diversas doenças ocupacionais. Agora, uma nova mudança está em curso. Há alguns anos, grandes empresas descartaram suas baias em prol de um novo (ou não tão novo) modelo: os escritórios abertos. Maria Konnikova, em texto veiculado no início de janeiro de 2014 no website da revista The New Yorker, apresenta interessante compilação de estudos científicos sobre a vida e o trabalho nos escritórios abertos. Em um levantamento baseado em mais de 100 estudos realizados sobre o trabalho em escritórios, o psicólogo Matthew Davis concluiu que, embora os arranjos abertos promovam entre os funcionários senso de propósito e sensação de pertencer a uma organização moderna, o modelo reduz a capacidade de concentração, inibe a criatividade e reduz a satisfação no trabalho. Uma pesquisa realizada por psicólogos da Universidade de Calgary em uma empresa canadense concluiu que a mudança para um arranjo aberto fez com que os profissionais se sentissem mais distantes uns dos outros, insatisfeitos e ressentidos, provocando uma queda na produtividade.

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Além do desempenho e da produtividade, a saúde dos indivíduos também é afetada. Um estudo realizado na Dinamarca, por Jan Pejtersen e colaboradores, revelou que quanto maior o número de pessoas trabalhando em um único ambiente, maior o número de funcionários que tiram licença por motivos de saúde. Konnikova observa que barreiras físicas provêm sensação de privacidade, o que favorece o desempenho. Espaços abertos retiram a capacidade de os indivíduos controlarem seu próprio ambiente, gerando insegurança e prejudicando o desempenho. Nem mesmo os profissionais mais jovens, frequentemente entusiastas dos escritórios abertos, acostumados a distrações e a trabalhar em regime multitarefa, são capazes de evitar as consequências adversas do arranjo aberto. A busca das empresas pelo panóptico ideal para controlar corpos e mentes ainda não chegou ao capítulo final.

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Tragédias anunciadas Ex-profissional da indústria do petróleo explica por que as grandes empresas não aprendem com os desastres socioambientais.

A lista de catástrofes protagonizadas por grandes corporações é longa. Os eventos mais trágicos ceifaram vidas e deixaram marcas cruéis em comunidades. Em 1984, um vazamento de gás de uma planta da Union Carbide na cidade de Bhopal, na Índia, expos mais de 500 mil pessoas a gases tóxicos. Estima-se que oito mil tenham morrido nas semanas seguintes e mais oito mil desde então. Entre as causas, foram apontadas gestão negligente, manutenção deficiente, segurança ineficiente e até a possibilidade de sabotagem. Em 1989, o petroleiro Exxon Valdez encalhou em uma baía no Alasca, provocando o vazamento de milhares de toneladas de óleo cru, uma das maiores tragédias ambientais registradas na América do Norte. Durante o acidente, o capitão estava dormindo, depois de uma noite de bebedeira, os oficiais no comando estavam despreparados e um equipamento que poderia ter evitado o acidente estava quebrado. Em 2010, a plataforma Deepwater Horizon, operada pela gigante petrolífera BP, explodiu no Golfo do México, nos Estados Unidos, provocando mortes e espalhando uma enorme mancha de óleo por diversos estados norte-americanos. Além de afetar o ambiente, provocou prejuízo para as indústrias da pesca e do turismo. Investigações apontaram medidas de redução de custos e falta de segurança como responsáveis pelo acidente, sugerindo o aperfeiçoamento das práticas da indústria e melhorias no sistema de regulação.

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Em 2013, um prédio de oito andares em Bangladesh desabou, matando mais de mil trabalhadores. O prédio era utilizado por tecelagens subcontratadas por empresas ocidentais. Os responsáveis haviam se recusado a interromper o trabalho, mesmo depois que rachaduras surgiram nas paredes do edifício. O proprietário do prédio foi processado e diversas empresas ocidentais sofreram escrutínio público por manter em suas cadeias produtivas fornecedores de baixo custo, operando em condições aviltantes de trabalho. O Brasil também teve seu quinhão de tragédias socioambientais. Em 1984, a explosão de dutos da Petrobrás, que corriam sob a favela de Vila Socó, em Cubatão, provocou mortes e destruição. Em 1987, um aparelho utilizado em radioterapias, contendo césio-137, foi encontrado e desmontado por catadores de ferro-velho em Goiânia, deixando um rastro de mortes e contaminação. Em 2003, uma barragem da Indústria Cataguases de Papel rompeu, liberando licor negro no rio, deixando milhares de pessoas sem água. Pontos comuns: ignorância, descaso, despreparo na prevenção e na reação. No livro The Evolution of a Corporate Idealist: When Girl Meets Oil (Editora Bibliomotion), Christine Bader conta suas aventuras e desventuras como profissional de responsabilidade corporativa na BP. A autora representa um crescente exército de profissionais que atuam dentro das grandes corporações, frequentemente em litígio com seus pares, e ainda vistos com desconfiança por ativistas fora das empresas. Em um artigo veiculado no website da revista The Atlantic, Christine trata da questão: por que as empresas não aprendem com seus erros passados? A pergunta é relevante porque ajuda a entender as tragédias. Primeiro, as pessoas mentem. A empresa pode se comprometer com as mais rigorosas medidas de segurança, mas há sempre gestores que escondem acidentes e trabalhadores que burlam os sistemas. Segundo, as pessoas não falam umas com as outras. A maioria das empresas ainda opera como um conjunto de minifeudos, dificultando ações 137

transversais voltadas para melhorar as condições socioambientais. Terceiro, segurança e responsabilidade social custam dinheiro. Despesas com prevenção são difíceis de justificar, enquanto cortes de custos são facilmente aprovados. Quarto, poucas pessoas dão testemunho, e, se os executivos não perceberem o impacto de suas decisões, não se mobilizarão por causas socioambientais. Quinto, responsabilidade corporativa ainda é um conceito vago, confundido com filantropia, o que dificulta ações relacionadas ao impacto dos negócios na sociedade. Sexto, os consumidores não querem pagar mais e, a menos que eles reconheçam o custo envolvido com uma atuação socialmente responsável, haverá pouca chance de as empresas se movimentarem nessa direção. Conclusão: aguardemos a próxima tragédia.

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Grande demais para o cárcere A admissão de culpa de um renomado banco suíço pode ser um avanço no combate à delinquência financeira... ou não.

Ter uma conta na Suíça sempre foi sinal de prestígio, coisa para multimilionários reservados. Afinal, Zurique não é Nassau. Agora, entretanto, o paraíso dos argentários discretos parece ameaçado. Em maio de 2014, o Credit Suisse, centenário banco helvético, admitiu ter agido à margem da lei, preparando e apresentando documentos falsos de seus clientes para o IRS, a receita federal dos Estados Unidos. A admissão de culpa foi o ápice de uma novela que se arrastou por anos. Eric Holder, procurador-geral norte-americano, declarou que “esse caso demonstra que nenhuma instituição financeira, não importa o porte ou a amplitude global, está acima da lei”. Belas palavras. Em 2013, Holder havia informado a uma comissão do senado norteamericano que processar criminalmente grandes instituições financeiras pode gerar impactos negativos na economia, o que inibe decisões mais duras. A declaração não agradou, levando a crer na impunidade dos bancos. Allie Jones, escrevendo para o website The Wire, lamentou o fato de os procuradores norte-americanos não terem conseguido processar criminalmente nenhuma instituição ou alto executivo envolvido na crise de 2008. James Kwak, no website da revista The Atlantic, observou acertadamente que há duas formas de punir instituições financeiras: a primeira é revogar a licença de operação e a segunda é processar os indivíduos responsáveis pelos crimes cometidos. No caso do Credit Suisse, nenhum dos caminhos foi adotado. Em seu 139

lugar, foi estabelecida uma salgada multa de quase três bilhões de dólares, suficiente para incomodar, mas não para balançar o banco. No dia seguinte ao desfecho do processo, suas ações subiram. A razão para evitar o colapso de instituições financeiras é o alto grau de interconexão do sistema, o que pode, teoricamente, fazer com que o fechamento de um grande banco leve a uma crise de proporções desastrosas. Em um momento no qual a economia mundial se recupera lentamente, ninguém quer ser responsável por deflagrar outra onda de pânico. O argumento é polêmico e talvez não se aplique ao caso. O Credit Suisse tem capacidade para pagar a multa e um fechamento conduzido de maneira planejada, segundo Kwak, prejudicaria apenas acionistas e empregados. John Gapper, do Financial Times, observou que, se uma condenação implica apenas o pagamento de uma multa, então não serve para nada. Gapper acredita que Brady Dougan, CEO do Credit Suisse, deveria pedir demissão. O colunista observa que Dougan realizou por muitos anos um trabalho notável no banco e não merece ser processado pessoalmente. No entanto, a organização que comanda admitiu ter cometido crimes. Não foi a ação isolada de algumas “maçãs podres” que originou as fraudes, mas uma conduta sistemática, uma maneira de conduzir os negócios. Portanto, a melhor saída seria a renúncia do executivo chefe. O desenvolvimento econômico ocorrido nas últimas décadas e a concentração da renda fizeram com que aumentasse o número de milionários no planeta. O senso de preservação do patrimônio, traço marcante dessa espécie, estimulou a oferta de serviços especializados de investimentos, gestão do patrimônio e, obviamente, redução da carga fiscal. Minimizar a carga fiscal é direito de todo contribuinte, desde que as ações sejam conduzidas dentro da lei. O caso do banco suíço traz à tona as estratégias “criativas”, empregadas por celebridades, esportistas e outros ricaços, para fugir dos impostos. As táticas 140

utilizadas envolvem diversos expedientes, dos mais toscos aos mais sofisticados: abrir empresas em paraísos fiscais, usar parentes e amigos como fachada, buscar buracos nas leis, mudar de país ou simplesmente sonegar impostos. A multa aplicada ao Credit Suisse pode ser vista como um alerta para bancos e clientes envolvidos em práticas ilícitas. Porém, como lembrou um articulista da BBC, pode também ser vista como uma vitória do status quo. Afinal, o banco suíço não precisou revelar o nome dos sonegadores, nenhum alto dirigente teve que pedir demissão e a licença para operação no mercado norte-americano foi preservada. Segundo a revista The Economist, banqueiros classificaram a multa como mera “inflação regulatória”. Portanto, nada para se preocupar.

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Ritual anacrônico A avaliação individual de desempenho é uma, entre várias, cerimônias vazias da vida corporativa.

A vida corporativa é repleta de rituais: reuniões de diretoria, processos de planejamento estratégico, congressos anuais de vendas, encontros com o mercado etc. A lista é longa. Esses rituais têm função substantiva e papel simbólico: servem a uma função prática, garantindo que o bonde siga no trilho, porém também dão legitimidade aos líderes, provêm credibilidade às práticas gerenciais e garantem a sustentação da cultura organizacional. Alguns desses rituais cumprem sua missão; outros, no entanto, apenas consomem tempo, desperdiçam recursos e aborrecem as pessoas. Esse é o caso dos encontros de avaliação de desempenho. Utilizados por nove entre 10 empresas, sob o patrocínio das áreas de recursos humanos, eles constituem um dos rituais mais disseminados e menos levados a sério entre todas as cerimônias vazias da vida corporativa. Os encontros de avaliação de desempenho são aguardados com ansiedade e apreensão. Os funcionários desejam uma avaliação positiva, que faça vista grossa aos seus defeitos e valorize seus feitos. A empresa espera uma avaliação objetiva, capaz de classificar seus funcionários de acordo com os resultados gerados e orientá-los a melhorar. Os gestores de recursos humanos supervisionam a contenda, ansiosos por cumprir a agenda programada. No meio do fogo cruzado, encontram-se os chamados líderes, frequentemente despreparados, inseguros, ríspidos ou simplesmente incompetentes. O resultado é comumente um faz de conta, no qual atuam atores constrangidos, fazendo o máximo esforço para que tudo termine rapidamente, com um improvável final feliz. 142

No livro Get Rid of the Performance Review!, Samuel A. Culbert (com Lawrence Rout) critica abertamente o popular ritual. Culbert é professor da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e tornou-se um pregador contra a avaliação de desempenho, que considera uma das mais danosas práticas corporativas. Sua obra segue outras de conteúdo similar, tais como Abolishing Performance Appraisals, de Tom Coens e Mary Jenkins, e Catalytic Coaching, de Garold L. Markle. A avaliação de desempenho parece sofrer de uma doença de base, relacionada ao desencontro de expectativas: enquanto o chefe quer discutir oportunidade de melhoria e está pensando em oportunidades perdidas e competências limitadas, o funcionário pensa na melhor forma de avançar sua carreira e ganhar um pouco mais. O resultado costuma ser frustrante para os dois lados. Outro ponto de atenção refere-se ao fato de que as avaliações de desempenho são frequentemente realizadas sob uma aura de objetividade. Entretanto, sabe-se que o desempenho de muitas funções e trabalhos é de difícil quantificação. Além disso, as avaliações são muito sensíveis ao julgamento de quem as realiza e costumam ser influenciadas por preferências pessoais e por questões políticas. Outro problema relaciona-se ao uso de listas de atributos para avaliar os funcionários. Tais listas, comumente geradas por especialistas, refletem o que supostamente é necessário realizar para garantir um desempenho adequado. No entanto, o figurino pode não ser adequado para todos os funcionários e todas as funções. Com isso, torna-se mais importante agradar o chefe do que realmente apresentar um bom desempenho. A avaliação de desempenho deveria contribuir para o alinhamento de esforços e a motivação dos funcionários. No entanto, o resultado pode ser o oposto. Estimulam-se o cinismo, comportamentos defensivos e conversa fiada. 143

Há alternativas? Os críticos sugerem substituir a prática anacrônica por uma relação contínua entre chefes e funcionários, pautada pela avaliação permanente do trabalho e de seus resultados. As gerações mais novas, habituadas à interação nas redes sociais, seriam mais abertas a tal conduta. Resta entender por que as empresas adotam e mantêm práticas desse tipo. A resposta está no que os estudiosos chamam de conduta isomórfica ou comportamentos de manada: adota-se uma prática porque, aparentemente, todos a estão adotando. Resistir pode parecer antiquado e passar a imagem de incompetente. Resta, por isso, conviver com rituais anacrônicos, desperdiçando recursos e fingindo que está tudo bem. Enquanto isso, os problemas reais continuam sob o tapete.

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Talentos ocultos Muitas empresas reclamam da falta de bons profissionais, mas podem estar privilegiando os falastrões em detrimento dos produtivos.

Faltam talentos nas empresas! A suposta verdade é repetida com frequência nas salas e corredores de organizações de diferentes portes e distintas áreas de atuação. Consulte um executivo e ele desfilará uma longa lista de queixumes contra seus liderados: falta visão estratégica, autonomia, iniciativa, capacidade de planejamento, conhecimentos técnicos e competências para gerenciar pessoas. Pergunte aos tais liderados e eles provavelmente repetirão a mesma lamúria sobre suas equipes. Siga a linha lógica e provavelmente chegará à conclusão de que o grande mal das empresas, os grandes culpados pela gestão caótica, pela estagnação da produtividade e pela baixa competitividade, são os estagiários. A má qualidade da gestão das organizações locais é notória. Dos órgãos públicos às empresas privadas, das estatais às organizações sociais, pouca coisa se salva: os serviços são lentos e caros, os produtos são defasados e mal-acabados, os processos de trabalho são confusos, os funcionários se estressam e os clientes se revoltam. A má qualidade dos quadros de gestão também é óbvia: meio século de cursos de administração e uma década de expansão MBAs não parece ter gerado efeito positivo. Para cobrir as lacunas, as grandes empresas investem furiosamente em programas de trainees, procurando atrair a nata das melhores universidades para suas fileiras. Entretanto, o tiro frequentemente sai pela culatra. Os jovens recrutas são espertos e ambiciosos, mas nem sempre estão dispostos a realizar trabalho duro ou

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são capazes de enfrentar chefes despreparados, colegas invejosos e a caótica burocracia interna. No entanto, a suposta escassez de talentos pode não ser verdade tão absoluta quanto sugere o discurso dominante. Em texto publicado no jornal inglês Financial Times, Andrew Hill levanta uma hipótese instigante. O colunista lembra o caso de Eric Roberts, que ingressou em um banco inglês com 17 anos de idade e seguiu uma carreira apagada, na primeira metade do século XX. Um documento divulgado revela o espanto de seu chefe, ao saber que seu funcionário havia sido requisitado pelo governo a apoiar o esforço de guerra. O tal chefe registrou que não via qualquer qualidade em seu subordinado que fosse digna de nota. Entretanto, Roberts já trabalhava para o serviço secreto britânico e era considerado um espião genial, tendo sido capaz de monitorar e neutralizar centenas de simpatizantes nazistas que operavam no Reino Unido. O caso é pitoresco, porém não é incomum. Pululam histórias de funcionários apagados, taxados de “baixo potencial”, que deixam grandes empresas para se tornarem empreendedores bem-sucedidos. E não é difícil de entender por que isso ocorre. As grandes estruturas burocráticas, rígidas e hierarquizadas, que dominaram a paisagem corporativa durante o século XX, e continuam presentes na administração pública ou algumas grandes empresas, reduzem os profissionais a pequenas engrenagens de uma grande máquina. O próprio sistema inibe a iniciativa e a criatividade. Tais estruturas foram substituídas por arranjos mais fluidos e flexíveis. Entretanto, o novo ambiente de trabalho é frequentemente dominado por falastrões, reis do PowerPoint e animadores de reuniões. Profissionais quietos e discretos, capazes de realizar trabalhos substantivos, são condenados à periferia das decisões, sem receber a devida atenção ou reconhecimento por sua labuta.

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Conforme observa Hill, muitas organizações têm dificuldade para identificar o potencial e a capacidade de seus funcionários. Assim, a visibilidade frequentemente triunfa sobre a produtividade. Uma forma de reverter a perversa equação é reduzir a quantidade de reuniões, removendo o palco que favorece os magos da gestão da impressão, e criar mecanismos para monitorar o trabalho que está sendo conduzido. O trabalho real nas empresas acontece frequentemente sem conexão com a estrutura formal, usando as redes de relacionamento e confiança entre funcionários. Hill observa que realizadores e influenciadores raramente ocupam posições de destaque na estrutura formal. É preciso, portanto, estar atento às redes informais para identificar e valorizar quem realmente trabalha e gera resultados.

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O inimigo interno A história de dois ícones da fotografia mostra a fragilidade das empresas diante de crises e mudanças ambientais.

Todos os dias, umas tantas empresas são criadas. Outras tantas somem, e com elas desaparecem sonhos, planos e empregos. Entre as infantes, a mortalidade é assombrosa. As que vencem as dores do crescimento e a barreira da puberdade enfrentam os monstros gêmeos da burocracia kafkiana e da indigência gerencial. O fato é que poucas empresas superam uma década de existência e raras tornam-se organizações centenárias. A longevidade é usualmente atribuída a quatro fatores: primeiro, um foco permanente na atração e no desenvolvimento de bons gestores; segundo, uma boa dose de conservadorismo na gestão financeira; terceiro, a capacidade de construir relações saudáveis com funcionários, clientes, fornecedores e outros grupos de interesse; e quarto, a capacidade de se adaptar às mudanças ambientais. Duas histórias empresariais, revistadas em 2015, trazem alertas e lições para interessados no tema. A primeira refere-se à Kodak, gigante norte-americano que dominou a indústria da fotografia por décadas. A segunda refere-se à Leica, empresa alemã, símbolo de imagens de qualidade. A Kodak foi fundada em 1888, sofreu com o avanço da digitalização e foi à bancarrota em 2012. Ressurgiu das cinzas um ano depois, como uma versão pálida do passado glorioso. A Leica foi criada em 1849, sobreviveu às rupturas tecnológicas e segue cultivando corações e mentes. Quentin Hardy, do jornal The New York Times, revelou um retrato da vida após a morte na Kodak. No seu ápice, a empresa chegou a ter 145 mil funcionários 148

em todo o mundo. Hoje, tem oito mil. Em 1990, a empresa faturou 19 bilhões de dólares. Hoje, fatura menos de 10% desse valor. Dos 200 prédios que a empresa ocupava na cidade de Rochester, 80 foram demolidos e 59 foram vendidos. O que restou parece um museu da Revolução Industrial. O impacto na comunidade foi dramático: desemprego, queda na renda e aumento da criminalidade. Entretanto, ainda há vida e esperanças nas ruínas. A Kodak deixou de ser uma empresa de produção de massa para atender a alguns nichos de mercado: no cinema, na imprensa e na indústria de embalagens. O dinheiro vem do passado. E o futuro também. A aposta da empresa é usar sua ampla base de patentes e cérebros para desenvolver novos produtos. Entretanto, segundo a descrição de Hardy, o ambiente reflete decadência e a conversa saudosista resvala frequentemente para lamentações em torno de oportunidades perdidas. A Kodak foi, em seu tempo, uma típica empresa de tecnologia. Atraiu talentos e inovou, mudou comportamentos e ajudou a criar uma indústria. Vergou sob o peso de sua própria arrogância e da dificuldade para se adaptar a um novo mundo. Não foi a primeira nem será a última a ser derrotada por si mesma. Se a história da Kodak é amarga e tem desfecho incerto, a história da Leica acena com um final (por enquanto) feliz. A empresa, cujos produtos povoam os sonhos de fotógrafos profissionais e amadores, enfrentou o fim do filme de celuloide e encontrou um nicho lucrativo, fabricando máquinas digitais de alta qualidade e design tradicional. Ellen E. Jervell, em texto veiculado pelo The Wall Street Journal, conta a luta da centenária organização para vencer o desafio da digitalização. A empresa continua vendendo máquinas fotográficas que se parecem com aquelas de seus anos de ouro, celebradas por luminares da fotografia tais como Henri CartierBresson, Robert Capa e Robert Frank. A diferença é o recheio, que agora é digital.

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Unir tradição, qualidade e inovação parece valer a pena. Na tradicional loja B&H, de Nova Iorque, é possível comprar os modelos mais simples por 699 dólares. Entretanto, para ter acesso a uma “verdadeira” Leica, o entusiasta desembolsará de 6.500 dólares a 15 mil dólares. Haja entusiasmo! A empresa sofreu com a digitalização e quase foi à falência. Jervell conta que a Leica foi salva por Andreas Kaufmann, um ex-professor , fundador do Partido Verde alemão, que apostou parte da herança familiar na empresa. Sua direção e seus investimentos resultaram em produtos digitais tecnicamente e comercialmente bem-sucedidos. Não é pouco em um mundo poluído por centenas de milhões de smartphones. As próximas décadas mostrarão se jovens gigantes como Microsoft, Google, Amazon e Facebook terão aprendido as lições de antecessoras como a Kodak e a Leica.

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Dormindo com o inimigo O ambíguo jogo de competição e cooperação entre empresas exige doses maciças de diplomacia.

A mídia de negócios reportou em 2015 o processo sucessório no gigante coreano Samsung. Lee Jae-yong sucederá seu pai, Lee Kun-hee, que liderou a empresa por quase três décadas. O conglomerado foi fundado em 1938, tem quase 500 mil funcionários e faturou mais de 300 bilhões de dólares em 2014. É um símbolo do sucesso corporativo coreano. O semanário britânico The Economist identificou três grandes desafios para o herdeiro, os quais, significativamente, envolvem a busca de situações de equilíbrio: focar hardware ou software, conservar a cultura coreana da empresa ou tornar-se uma empresa verdadeiramente global, e competir ou cooperar. O último item constitui desafio comum a muitas empresas. A mídia popular de negócios frequentemente celebra a capacidade competitiva. Entretanto, a realidade é mais intricada. No livro Co-opetition (editora Currency Doubleday), publicado em 1997, Adam M. Brandenburger e Barry J. Nalebuff chamavam a atenção para as redes de cooperação que caracterizam o jogo corporativo, a envolver fornecedores, clientes, organizações com atividades complementares e competidores. Saber cooperar, dentro da lei, é tão importante quanto saber competir. Os setores baseados em tecnologia, assim como a indústria automobilística e muitas outras, caracterizam-se por uma complexa rede de relações entre empresas rivais. Diversas montadoras partilham motores, câmbios e dividem custos em novos projetos, porém concorrem diretamente no mercado. Conforme registra a 151

matéria publicada em The Economist, a Samsung é o maior rival da Apple na venda de smartphones, porém tem a empresa norte-americana como principal cliente de semicondutores. A empresa coreana é parceira da Google, utilizando o sistema operacional Android em seus aparelhos. Porém, continua desenvolvendo um sistema próprio. Gerenciar relações desse tipo não é trivial. Se tais situações de namoro e noivado são difíceis de administrar, ainda mais desafiadores são os casamentos de conveniência, que se multiplicam durante as ondas de fusões e aquisições. Em tais situações, um rival adquire outro, ou se junta a outro, unindo quadros que frequentemente se desdenham ou detestam. Estudos sobre fusões e aquisições revelam que tais movimentos comumente destroem valor; ou seja, a empresa resultante apresenta menor valor de mercado do que a soma das empresas participantes da transação, antes de esta ser efetivada. As razões para casamentos corporativos de conveniência são várias e contundentes: ganhar escala, diluir custos, obter acesso a novos mercados, juntar forças em tecnologia e viabilizar projetos de expansão. Em setores nos quais a competição é ferrenha, o casamento de conveniência torna-se com frequência opção única para a sobrevivência: a alternativa é aguardar a morte lenta. Dormir (e acordar) com o inimigo nunca foi fácil. Os meses seguintes de um casamento de conveniência são traumáticos. A organização resultante costuma parecer obra do doutor Victor Frankenstein, com partes combinadas de uma e outra empresa. O resultado assemelha-se à obra do famoso médico – a coisa: aparentemente grande e poderosa, porém com ares de morto-vivo, com vontade instável e andar trôpego. Por dentro, a criatura vive em permanente convulsão. O pensamento é turvado por diferentes visões estratégicas, incapaz de estabelecer uma direção clara. O coração bate em ritmo incerto. Os outros órgãos vitais, oriundos de diferentes

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criaturas, parecem não se entender. Braços e pernas esboçam movimentos pouco articulados. No romance clássico de Mary Shelley, a criatura atormentada exige que o criador lhe crie uma fêmea, com a qual possa viver em paz nas selvas sulamericanas. O plano, entretanto, não se concretiza e a história termina em tragédia, com a morte do criador e a promessa da criatura de seguir até o extremo norte do planeta e lá extinguir a própria existência. Nem todo casamento forçado termina de maneira tão dramática, porém alguns chegam bem perto. Os namoros e noivados, assim como os casamentos de conveniência, exigem competências específicas. É preciso entender e respeitar a cultura organizacional e o modo alheio de fazer as coisas, e aplicar maciças doses de diplomacia, com tolerância, paciência e resiliência. Tais relações não precisam ser eternas, mas podese mitigar a guerra conjugal enquanto durarem.

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O fim dos gerentes? Após ceifar empregos na base, chegou a hora de a tecnologia ameaçar o meio da pirâmide corporativa.

Uma das mais fascinantes criações corporativas é o gerente. O personagem descende do feitor e do capataz. Ganhou responsabilidades e autoridade com a longa marcha da industrialização, no século XX. Adquiriu respeito e status com a emergência do setor de serviços. Para explorar e, ao mesmo tempo, impulsionar sua popularidade, surgiram livros, revistas especializadas e cursos. Hoje, o filé mignon das escolas de negócios são os cursos de formação gerencial. Um programa de uma semana em uma instituição de bom nome, n’algum lago suíço, floresta francesa ou recanto da Nova Inglaterra, pode custar 10 mil dólares. O gerente é o profissional que planeja, organiza, coordena e controla as atividades de uma organização, de modo que ela atinja seu objetivo. O objetivo de uma empresa costuma ser o lucro, valor que resulta da diferença entre as vendas e o custos, descontados as taxas, os impostos e diversos pagamentos que não podem ser oficialmente declarados. O gerente lá está para fazer com que se extraia o máximo valor, com o menor recurso. Dessa forma, ele garante a sustentabilidade dos negócios, a perenidade dos empregos (que sobram), a satisfação dos clientes e as férias dos donos, em Orlando ou Aspen, dependendo do porte da empresa. Ao ser promovido a gerente, um profissional deve deixar de trabalhar. Sua missão é fazer com que os outros trabalhem. Para conferir honradez à posição, deve adotar a alcunha de líder. Noutros tempos, o título de líder era reservado a estadistas, generais e grandes nomes dos movimentos sociais. Não mais. Desde a década de 1990, qualquer gerente com modestas competências e limitadas capacidades passou a ser também um líder. A valorização ajudou a classe dos 154

gerentes a crescer, tornando sua existência, quase sempre cara e frequentemente redundante, um fato natural na vida corporativa. Nos últimos anos, entretanto, uma séria ameaça começa a rondar a resiliente classe dos gerentes: a tecnologia. O filme é conhecido. No século XIX, o avanço tecnológico ajudou a transformar sociedades agrárias no mundo urbano e industrial que conhecemos. A mudança foi brutal e traumática, porém criou as bases para um longo ciclo de desenvolvimento. Na segunda metade do século XX, novamente o avanço tecnológico esvaziou fábricas e forçou a migração do trabalho para o setor de serviços. Foi duro e doloroso, obrigando a esforços de reeducação e adaptação. Agora, a tecnologia pode vitimar a classe gerencial. Leva algum tempo até que novas tecnologias se combinem com novos modelos de negócios, resultando em impactos reais. O processo é longo, com muitas tentativas e erros. No entanto, nos últimos anos, a evolução das tecnologias de comunicação e de informação, o desenvolvimento de aplicativos, o barateamento de custos e a criatividade de empreendedores geraram frutos: surgiram empresas intensivas em conhecimento e tecnologia, nem sempre exigentes em capital e extremamente econômicas em trabalho gerencial. As fábricas automatizadas do final do século XX substituíram trabalhadores por robôs. Agora, é a vez de as empresas de serviços substituírem gerentes e outros profissionais por softwares. Os efeitos ainda são alvo de especulação. Por um lado, um movimento que libera os seres humanos de tarefas repetitivas e maçantes é um sonho de qualquer utopista. Por outro lado, o desemprego e o agravamento da desigualdade são efeitos palpáveis e hoje incontestáveis. Em um editorial da revista científica Administrative Science Quarterly, veiculada em junho de 2015, Gerald F. Davis observa que, a partir dos anos 1980, mudanças na economia alteraram o perfil de ocupação dos egressos de MBAs: o templo formador de gerentes. Em lugar de buscar trabalho, ou receber ofertas, de grandes 155

empresas industriais, eles passaram a ser absorvidos por empresas de consultoria e por instituições financeiras. Ao mesmo tempo, observa o autor, a tecnologia de informação passou a substituir parte das atividades dos gerentes por algoritmos. Hoje, nos Estados Unidos, sete milhões de profissionais são classificados como gerentes, porém seu trabalho não envolve necessariamente a supervisão de outros profissionais. A gestão de pessoas por outras pessoas pode estar se tornando anacrônica. Chocante: as mudanças podem fazer com que os gerentes voltem a trabalhar.

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No reino dos amazonians A dura cultura de trabalho da Amazon talvez sinalize o futuro para outras organizações.

Cada época tem suas empresas ícones. General Motors, IBM, General Electric e Microsoft tiveram seus momentos de ribalta. Hoje, as candidatas são Google, Facebook, Apple e Amazon. Elas são admiradas e copiadas, porém vivem sob o escrutínio de órgãos reguladores e do público. Seus líderes são vistos ora como gênios visionários, ora como megalomaníacos obcecados com o sucesso. O jornal norte-americano The New York Times dedicou em agosto de 2015 uma longa matéria crítica à Amazon. O texto, assinado por Jodi Kantor e David Streitfeld, foi fruto de mais de 100 entrevistas com funcionários e ex-funcionários. A repercussão foi significativa e gerou rápida resposta de Jeff Bezos. O fundador e principal executivo da empresa manifestou sua estranheza, declarando que a Amazon do texto não é a empresa que ele conhece. Claro! Bezos nasceu em 1954, estudou engenharia elétrica e ciência da computação em Princeton, e trabalhou em Wall Street. A Amazon foi criada em 1994, cresceu vertiginosamente e conta hoje com mais de 180 mil funcionários. Em 2015, tornouse a empresa de varejo maios valiosa dos Estados Unidos. Ao longo de sua existência, a Amazon notabilizou-se pelo pioneirismo, pela inovação e pelo foco no cliente. Ganhou legiões de admiradores. No entanto, nem tudo são flores. O texto de Kantor e Streitfeld penetrou as entranhas do gigante e revelou um quadro doentio. Os autores colecionaram histórias dramáticas. Em um armazém da Pensilvânia, empregados sob monitoramento de sistemas eletrônicos eram 157

induzidos a manter a mais alta produtividade, trabalhando sob um calor escaldante, enquanto ambulâncias aguardavam do lado de fora aqueles que desmaiavam. Após uma denuncia que chegou à mídia, a empresa finalmente instalou equipamentos de ar-condicionado. Recrutas – futuros amazonians – são orientados a esquecer os maus hábitos de trabalho, adquiridos em outras empresas, e a abraçar de corpo e alma os 14 princípios de liderança de Bezos. Funcionários são encorajados a criticar abertamente as ideias dos colegas, diretamente ou escrevendo ao chefe da vítima. Os mais fortes permanecem e são promovidos. Aqueles que não atendem os padrões e metas da empresa são expelidos. A morte de um parente próximo, doença ou outro problema pessoal grave não são aceitos como desculpa para um desempenho abaixo do esperado. Um dos entrevistados sintetizou: “Em relação ao equilíbrio entre vida e trabalho, na Amazon o trabalho vem em primeiro lugar, a vida, em segundo e o equilíbrio, em terceiro”. Preocupadas com a atração e retenção de pessoal qualificado, muitas organizações implementam práticas que visam flexibilizar e melhorar as condições de trabalho. Não parece ser o caso da Amazon. Bezos comporta-se como um missionário contra as forças que solapam a produtividade: a burocracia, os gastos descontrolados e a falta de rigor. Em lugar da harmonia, a Amazon estimula o conflito. O resultado, segundo alguns entrevistados, é um sistema brutal de competição interna. O nível de expectativa e exigência parece estar sempre um degrau acima da capacidade de realização. A sensação é de que o trabalho nunca termina ou de que o que foi realizado nunca é bom o suficiente. Na base dos valores da empresa, parece estar a velha meritocracia norteamericana, temperada por uma delirante visão pseudodarwinista aplicada a sistemas humanos. Resultado: uma organização na qual as pessoas competem, desafiam-se umas às outras, e os melhores vencem. Bezos parece ter levado algumas práticas já presentes em outras organizações ao extremo. Criou, como sugerem Kantor e 158

Streitfeld, um experimento destinado a determinar o quanto é possível pressionar funcionários para fazer com que eles ajudem a empresa a atingir suas ambições cada vez maiores. A Amazon chama a atenção pela radicalização de certas práticas e pelos excepcionais resultados obtidos. Não é caso único. Muitas outras empresas fomentam valores e práticas similares, nem sempre com sucesso. Talvez sinalizem uma tendência, envolvendo organizações muito eficientes, inovadoras, empreendedoras e com alta capacidade de realização. Elas são extremamente demandantes em relação aos seus funcionários, contando com um núcleo duro de profissionais, capaz de sobreviver e prosperar em ambientes insalubres. Esse núcleo é complementado por uma massa fluida de funcionários, em constante renovação. Ame-as ou deixe-as!

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PARTE 3 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A ACADEMIA

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Festa agridoce Uma das mais respeitadas instituições educacionais do País celebra um feito extraordinário. Porém, há mais por fazer do que a comemorar.

Festa da roça do Butantã: a Universidade de São Paulo celebrou, em 2011, o marco de 100 mil dissertações e teses defendidas. O número impressiona. Segundo dados divulgados pelo jornal O Estado de S. Paulo, a maior universidade da América Latina conta com 22 mil estudantes de pós-graduação, 53% deles mestrandos e 47% deles doutorandos. O ícone paulista forma 25% dos doutores do Brasil e responde por igual percentual da pesquisa realizada no País. É um dos carroschefes para o aumento do número de mestres e doutores no Brasil, objetivo fetiche dos burocratas da educação, sediados no planalto central. Entretanto, nem tudo é festa. Quando se trata de avaliar a USP perante as melhores instituições internacionais, sua posição é incompatível com sua fama local. Existem, dentro da instituição, conhecidas ilhas de excelência, porém o quadro geral é preocupante. No moderno mundo da produção científica, quantidade não se traduz diretamente em qualidade. Formar muitos mestres e doutores, e publicar muitos artigos, pode agradar à Capes (a Coordenadoria de Apoio à Formação de Pessoal de Nível Superior, órgão federal que regula e avalia nossos programas de pós-graduação), mas não garante um lugar ao sol na praia cada vez mais internacionalizada da geração de conhecimento. Vozes ilustres da própria universidade reconhecem o inquietante estado das coisas. Percebe-se que muitos trabalhos científicos são realizados apenas para atender a burocracia, e que é preciso melhorar a qualidade e, principalmente, o impacto da pesquisa realizada. Afinal, uma instituição de ensino superior não pode 161

ser um sistema fechado, trabalhando em torno de si mesma. Ela deve ajudar a sociedade a identificar e solucionar suas questões mais prementes e relevantes. O problema do baixo impacto da pesquisa não é exclusivo da USP, tampouco novidade. N’algum momento do passado, pressionadas a melhorar seus índices de formação e de produção científica, muitas universidades parecem ter emulado os princípios e técnicas de produção em massa. Enquanto o governo federal e os órgãos de educação apontavam a necessidade de formar mais mestres e doutores, grupos internos se organizavam para aumentar seu espaço na concorrida arena política universitária. Da conjugação de interesses veio a implantação gradativa de um modelo do tipo fast-food, de produção rápida e consumo rápido. Infelizmente, um sistema que funciona bem para automóveis, geladeiras e lanches rápidos pode mostrar-se pouco efetivo na área da educação e da geração de conhecimento. Hoje, no campo da administração de empresas (ciência aplicada na qual este escriba atua), a pós-graduação parece funcionar tal qual uma linha de montagem. Há indícios de que outros campos operem da mesma forma. Nas instituições locais, os doutores iniciam seus pupilos na arte da produção científica. Eles os pressionam a produzir em série, a levar suas criações a congressos de magra audiência e veiculálas em revistas de parca relevância. O processo tem início com a atração de noviços. Esses jovens compõem uma fauna variada. Há, entre eles, moços e moças com real aptidão para a pesquisa. Juntam-se a estes os alpinistas acadêmicos, a perseguir um título que lhes confira mais valor no mercado. Há também os fugitivos do mundo corporativo, em busca de empregos públicos que lhes garantam bom sustento e pouco trabalho. Muitos desses candidatos trazem as deficiências usuais do nosso sistema educacional: faltam-lhes raciocínio lógico e analítico e, frequentemente, domínio adequado da língua pátria. Para o sistema, tudo que entrar deve sair. Então, muitos noviços seguirão claudicantes pela linha de montagem, até que uma banca examine, com repugnância 162

reprimida e tolerância exacerbada, o produto de sua labuta. Muitas dissertações e teses deixam a linha de montagem com lacunas teóricas e restrições metodológicas. Poucas servem para desenvolvimento teórico ou aplicação prática. Seu destino é mofar nos depósitos das universidades locais: as bibliotecas. Para que serve tal sistema, que ilude e frustra os noviços, e ainda trai a sociedade que o sustenta? Primeiro, para manter o emprego dos mestres e doutores. Segundo, para legitimar as instituições de ensino diante aos reguladores brasilienses. Terceiro, para perpetuar o próprio sistema, concedendo títulos (de duvidoso valor) a futuros mestres e doutores. Quarto, para dar uma chance aos noviços de aprender alguma coisa que deviam ter aprendido antes: ler, escrever e pensar em linha reta. E, finalmente, na quinta prioridade, para gerar conhecimento útil para o País. Infelizmente, mesmo à custa de sangue, suor e lágrimas, e do uso de fundos públicos, são poucos os profissionais que chegam ao final dessa lista.

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O caminho das pedras Para enfrentar a dura prova de publicar nos principais periódicos científicos internacionais, muitos pesquisadores brasileiros estão recorrendo a assessorias cada vez mais sofisticadas.

Foi uma criança prodígio. Dissecava drosófilas aos seis anos de idade e resolvia equações aos oito. A família exibia seus dotes para os vizinhos, e o avô vaticinava: vai ser cientista. Destino marcado, carreira definida. Um quarto de década depois, realizou a profecia do avô. Graduou-se com pompa e doutorou-se com circunstância. Conquistou um posto em um templo do saber e colocou seu cérebro a serviço da ciência. Agora, só falta aprender a escrever. Surpreendente? Nem tanto. Hoje, não basta descobrir a cura do câncer ou a fórmula para a estabilização da economia mundial. É preciso definir o nível de análise, utilizar o referencial teórico adequado e empregar a metodologia correta. Louis Pasteur, Adam Smith e Sigmund Freud teriam seus trabalhos rejeitados nas principais revistas científicas de nosso tempo. Os avaliadores denunciariam a falta de rigor estatístico, as amostras insuficientes e o conteúdo opiniático dos trabalhos. Nos últimos anos, aumentou consideravelmente a pressão sobre os pesquisadores brasileiros para que elevem seus índices de publicação. Gostemos ou não, a ciência está hoje organizada como uma grande linha de produção, na qual os operários ganham por metro de artigo publicado. Ocorre que a língua oficial da ciência é o inglês e os principais periódicos do mundo são anglófonos, realidade que costuma irritar os anglófobos. Então, precisamos aprender a escrever (e pensar) na língua do Bardo. 164

Em um número publicado em abril de 2011, a revista Pesquisa Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) traz matéria sobre o tema. O jornalista Fabrício Marques retrata o desafio enfrentando pelos cientistas e sua consequência: a proliferação de serviços especializados em redação científica. De fato, serviços de tradução e edição existem há bastante tempo. No exterior, algumas revistas científicas contam com apoio de editores profissionais, para aperfeiçoar os textos publicados. Editoras como a Nature Publishing Group, que publica a revista Nature, e a holandesa Elsevier oferecem serviços de edição e treinamento para quem quiser pagar por eles. Entretanto, a onda atual vai além: envolve orientação para definir o objetivo do artigo, os argumentos centrais e o encadeamento lógico de ideias. Inclui também dicas sobre como valorizar o próprio artigo e como se apresentar aos editores: um verdadeiro trabalho de marketing pessoal. As principais universidades públicas paulistas, responsáveis por parte considerável da produção científica brasileira, entraram na onda, criando áreas internas de apoio aos pesquisadores e contratando serviços de assessoria. Para os brasileiros, uma das principais dificuldades pode ter origem em nossa estrutura de pensamento. No artigo clássico "Cultural thought patterns in intercultural education", de 1966, o linguista Robert B. Kaplan descreve como indivíduos de diferentes culturas estruturam seus textos. O trabalho foi baseado em sua experiência com estudantes internacionais. O autor constatou que, enquanto estudantes anglo-saxoes aplicavam um estilo objetivo, indo direto ao ponto, os asiáticos aproximavam-se em círculos e os russos seguiam uma trajetória titubeante, com ideias malrelacionadas. Não há registro de estudantes brasileiros na amostra de Kaplan, mas eles poderiam ser incluídos em um grupo de comportamento similar ao dos russos. Kaplan foi criticado por simplificar a realidade e por fazer generalizações impróprias. Ainda assim, suas conclusões continuam sendo uma explicação convincente para a dificuldade que muitos de nós, latinos, enfrentamos para 165

organizar as ideias e produzir textos no estilo econômico e direto que se tornou dominante na ciência. Se acreditarmos em Kaplan, então a tarefa das novas assessorias de preparação de artigos científicos merece todo o respeito: vencer certos estados de confusão mental é, de fato, uma tarefa hercúlea. Ou, talvez, os cientistas possam fazer como as empresas de software ou alguns escritórios norte-americanos de contabilidade, que terceirizam seus serviços na Índia. Exagero? Hoje, sim; amanhã, quem sabe? O fato é que muitos cientistas brasileiros, como seus colegas de outras partes do mundo, estão usando cada vez mais apoio especializado para escrever seus trabalhos e poder encaminhá-los para o duro funil das melhores revistas científicas do planeta. Usar os recursos disponíveis para aprender o jogo da ciência global é legítimo. Entretanto, a embalagem sozinha não garante o sucesso. É preciso ter uma ideia original, usar a metodologia correta, gerar resultados relevantes e trazer uma contribuição científica significativa. Afinal, nada substitui o conteúdo.

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Inferno na torre... de marfim As “modernas” linhas de montagem universitárias, que produzem doutores e pesquisas científicas, são caras, frequentemente improdutivas e estão se tornando insalubres.

Certas profissões e ocupações povoam os sonhos dos jovens, sugerindo autorrealização ou simbolizando status. Porém, após conhecerem o apogeu, parecem seguir para um inevitável declínio. A engenharia, a advocacia e a medicina já tiveram dias melhores, mas seguem a trilha da proletarização, perdendo o prestígio e a aura. A economia e a administração também mostram sinais de decadência, depois de momentos fugazes de glória. Fenômeno similar parece atingir a ocupação de professor-pesquisador, praticada por uma pequena elite, incrustada nos andares mais elevados das torres de marfim do ensino superior. Comecemos pelo sonho. Depois, o feijão. O professor-pesquisador, profissional que atua em programas de pósgraduação, é um ser privilegiado. Não é nem será um milionário, mas conta com salário digno e emprego vitalício. Tem liberdade para trabalhar no que lhe interessa e conta com acesso facilitado aos recursos de fundos de pesquisa. Viaja regularmente pelo mundo, para discutir suas descobertas científicas em cidades fascinantes e resorts bucólicos. Dedica-se à nobre função do magistério, mas apenas oito meses por ano. Leciona poucas horas por semana para pequenas classes povoadas por corações interessados e mentes brilhantes. Seu horário de trabalho é flexível e seus objetivos e metas são determinados por ele mesmo. Vive em um campus arborizado e tranquilo, longe da poluição e da agitação. Seus encontros sociais envolvem conversas inteligentes sobre temas relevantes. Desobrigado de olhar para o tedioso presente, concentra-se em desvendar o passado e olhar para o 167

futuro. De tempos em tempos, para ampliar seus horizontes, tem direito a um período sabático, durante o qual, com apoio de uma agência governamental, leva sua família para a Europa ou os Estados Unidos. É reconhecido por seus pares e pela sociedade, que o tem na mais alta conta, por sua sapiência e dedicação desinteressada ao bem comum. Afinal, ajuda a edificar os pilares do nosso progresso tecnológico e a formar nossa futura elite intelectual. Essa imagem idílica pode ser observada em Harvard, Oxford e Cambridge ou, mais provável, nas películas de Hollywood que romanceiam a vida nessas universidades. No entanto, a realidade parece caminhar em outra direção. Em renomadas instituições de ensino locais o mato cresce, o ar-condicionado não funciona, as mentes brilhantes deram lugar a criaturas conformistas e opacas, e a vida acadêmica assemelha-se cada vez mais ao trabalho em uma linha de montagem fordista, com capatazes, metas e uma irritante burocracia. Consequência: cresce o descontentamento com condições de trabalho e com as pressões por produtividade na torre de marfim. Parte da revolta deve-se à reação usual a mudanças. No entanto, há também uma preocupação legítima com um sistema caro, pouco produtivo e que apresenta efeitos colaterais preocupantes, como a multiplicação de mestres e doutores ineptos e a proliferação de artigos científicos que nunca serão lidos. Uma pesquisa publicada por Otacilio Antunes Santana, do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Pernambuco, explora outra dimensão preocupante da mesma questão: o efeito das condições de trabalho sobre a saúde dos docentes de pós-graduação. Seu ponto de partida foi a constatação de aumento de pedidos de licenças médicas, principalmente aquelas relacionadas a sintomas ou consequências de doenças cardiovasculares. Santana analisou dados de 540 professores, de seis faixas etárias, entre 36 e 65 anos de idade. Suas conclusões fazem eco a um debate emergente na academia 168

brasileira, acerca da pressão por produção científica e pela formação de mestres e doutores. A pesquisa comprovou que quanto maiores o número de publicações científicas e o número de orientandos, maior o número de intervenções cardíacas, doenças coronárias e acidentes vasculares cerebrais. Em suma: trabalhar, nessas condições, faz mal! O quadro é agravado, segundo Santana, pela falta de dieta equilibrada, de atividades físicas e de acompanhamento médico regular dos docentes. Nas mais diversas latitudes e longitudes, o modelo tradicional de universidade está sendo criticado. Acelerar a linha de montagem e produzir mais mestres, doutores e artigos científicos é uma resposta simples para o desafio que se coloca, mas parece estar matando os operários e prejudicando a qualidade da produção. Pode ser mais um marco da passagem da era da elite bem-pensante para a era da pesquisa burocrática, conduzida por operários do conhecimento, uma etapa que talvez ainda resulte em ciência, mas, por enquanto, apenas mascara um sistema caro, improdutivo e insalubre.

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Slow science Na França, pesquisadores abraçam um movimento contra a “mcdonaldização” da ciência. Enquanto isso, nos trópicos, a slow bureaucracy tenta implantar a fast science.

O frenesi da globalização e seus descontentes. Consta que tudo começou com o cozinheiro Carlo Petrini. Na década 1980, esse italiano participou de uma campanha contra a abertura de uma loja McDonald’s em Roma. Nasceu pouco depois o movimento slow food, voltado para a preservação da cozinha regional e tradicional, contra a mesmice e a pressa do onipresente fast-food. O sucesso cruzou fronteiras e atraiu seguidores em mais de 150 países. Na esteira, vieram o slow living, o slow travel e o slow cities. Como guarda-chuva, cunhou-se o termo slow movement. Um filósofo norueguês – Guttorm Fløistad – conferiu ao movimento poesia e princípios: “A única coisa que podemos tomar como certeza é que tudo muda. A taxa de mudança aumenta. Se você quer acompanhar, melhor se apressar. Esta é a mensagem dos dias atuais. Porém, é útil lembrar a todos que nossas necessidades básicas não mudam. A necessidade de ser considerado e querido! A necessidade de pertencer. A necessidade de estar próximo e de ser cuidado, e de um pouco de amor! E isso é conseguido apenas pela desaceleração das relações humanas. Para ganharmos controle das mudanças, devemos recuperar a lentidão, a reflexão e a capacidade de estarmos juntos. Então encontraremos a verdadeira renovação”. Agora, da terra do resistente Asterix, nos chega uma nova onda do slow movement: a slow science. Seus arautos condenam a cultura da pressa e do imediatismo que invadiu, nos últimos anos, as universidades e outras instituições de pesquisa. A fast science, segundo os rebeldes franceses, busca a quantidade acima da qualidade. Aprisionados pela lógica do “produtivismo” acadêmico, os pesquisadores tornam170

se operários de uma linha insana de montagem. E quem não se mostrar agitado e sobrecarregado, imerso em inúmeros projetos e atividades, será prontamente cunhado de improdutivo, apático ou preguiçoso. Os cientistas signatários da slow science entendem que o mundo da ciência sofre de uma doença grave, vítima de uma ideologia da competição selvagem e da produtividade a todo preço. A praga cruza os campos científicos e as fronteiras nacionais. O resultado é o distanciamento crescente dos valores fundamentais da ciência: o rigor, a honestidade, a humildade diante do conhecimento a busca paciente da verdade. A “mcdonaldização” da ciência produz cada vez mais artigos científicos, atingindo volumes muito além da capacidade de leitura e assimilação dos mais dedicados especialistas. Muitos trabalhos são publicados, engrossam as estatísticas oficiais e os currículos de seus autores, porém poucos são lidos e raros são, de fato, utilizados na construção da ciência. Os defensores da slow science acreditam que é possível resistir à fast science. Sonham com a possibilidade de reservar ao menos metade de seu tempo para a atividade de pesquisa; de livrarem-se, vez por outra, das demandantes atividades de ensino e das tenebrosas atividades administrativas; de privilegiar a qualidade em detrimento da quantidade de publicações; e de preservar algum tempo para os amigos, a familiar, o lazer e o ócio. A eventual chegada da onda da slow science aos trópicos deve se observada com atenção. Por aqui, cruzará com a tentativa de fomentar a fast science. Entre nós, o objetivo de aumentar a produção de conhecimento levou à criação de uma slow bureaucracy, que avalia e controla o aparato científico. A implantação gradativa da lógica fast, com seus indicadores e suas métricas, pretende definir rumos, estabelecer metas, ativar as competências criativas da comunidade científica local e contribuir para a construção do futuro da augusta nação. Boas intenções! 171

Entretanto, os efeitos colaterais são consideráveis. A lógica fast está condicionando os cientistas operários a comportamentos peculiares. Sob as ordens de seus capatazes acadêmicos, ou por iniciativa própria, eles estão reciclando conteúdos para aumentar suas publicações; incluindo, em seus trabalhos, como autores, colegas que pouco ou nada contribuíram; e assinando, sem inibição, artigos de seus alunos, aos quais eles pouco acrescentaram. Tudo em prol da melhoria de seus indicadores de produção. Enquanto as antigas gerações vão se adaptando, aos trancos e barrancos, ao modo fast, as novas gerações de pesquisadores já são formadas sob os princípios da nova doutrina. Aqui, como ao norte, vão adotando o lema da fast science: publish or perish (publique ou desapareça). E, se o objetivo é publicar, vale tudo, ou quase tudo. Para onde vão os cientistas e a ciência? O destino não é conhecido, mas eles estão indo cada vez mais rápido.

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Universidades virtuais A educação presencial não anda lá bem das pernas. Serão os modelos virtuais capazes de responder aos enormes desafios atuais ou apenas reproduzirão e ampliarão os vícios existentes?

George Bernard Shaw fuzilou: “Desde pequeno tive que interromper minha educação para ir à escola”. Albert Einstein não ficou atrás: “É um milagre que a curiosidade sobreviva à educação formal”. Nossa sociedade celebra a educação, mas não perde oportunidade para criticar as escolas. E não faltam motivos. O Brasil tem um sistema peculiar. Nossa antiga classe média frequenta colégios privados e universidades públicas, nas quais entra sem objetivos, frequenta sem inibições e sai sem aspirações. Durante quatro ou cinco anos, convive com mestres de imponentes insígnias e pouco apreço à educação. Nossa nova classe média frequenta colégios públicos e universidades privadas, nas quais entra com algumas ambições, frequenta como pode e sai por sorte. Durante quatro ou cinco anos, convive com mestres que são verdadeiros operários do ensino, com muitas contas a pagar e pouco tempo para se dedicar. Agora, dizem os sabidos e novidadeiros, a grande novidade é a universidade virtual. Mais uma vez, profetizam, as novas tecnologias operarão o milagre de transformar água em vinho, pedra em pão. Será? A Coursera é um start-up norte-americano criado pelos professores de ciência da computação Daphne Koller e Andrew Ng, da Universidade de Stanford, matriz maior de empresas do Vale do Silício. A empresa foi criada com a missão de oferecer, gratuitamente, por meio da internet, a qualquer indivíduo, a melhor 173

educação do mundo, leia-se, aquela oferecida pelas melhores universidades. Por enquanto, a empresa sobrevive graças a investidores. O fato relevante foi o anúncio recente de que mais uma seleta lista de universidades concordou em fornecer conteúdo para a Coursera disponibilizar na internet. As parceiras da empresa agora incluem as universidades de Princeton, Duke, Stanford, Pennsylvania, Michigan, Toronto e Edinburgh, entre outras. Uma delas já declarou que reconhecerá créditos realizados na Coursera e outras duas informaram que colocarão mais 3,7 milhões de dólares na empresa, elevando os investimentos a 22 milhões de dólares. No próximo período letivo, a Coursera pretende oferecer mais de 100 cursos on-line, visando atingir 100 mil alunos. Não é pouco! A educação superior tornou-se uma grande questão e, ao mesmo tempo, um grande negócio, atraindo empreendedores e investidores. A Coursera não está sozinha. Seus concorrentes incluem o projeto edX, da Universidade de Harvard e do MIT, a Udacity e a Minerva. No Brasil, há iniciativas similares, tais como o Veduca, da iniciativa privada, e a Univesp, do governo do Estado de São Paulo. Pensada como negócio, a educação superior é extremamente ineficiente: é cara, atende apenas uma pequena parcela da população e desperdiça recursos, à medida que cada professor (um recurso escasso e caro) cria seu próprio conteúdo e o repete semestre a semestre para pequenas plateias, nem sempre muito interessadas. Segundo Koller, da Coursera, as aulas tradicionais surgiram há centenas de anos, quando havia apenas uma cópia do livro, a do professor. Portanto, a única maneira de transmitir o conteúdo era o professor sentar na frente da classe e ler o livro. Hoje, com uso das tecnologias de informação e comunicação, há maneiras mais eficientes de transmitir conteúdo, sugeriu a empreendedora em entrevista para a revista The Atlantic.

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Naturalmente, as investidas da lógica de mercado sobre a educação superior causam arrepios. Entretanto, iniciativas como as da Coursera não devem ser temidas. Aulas ao vivo, para grandes plateias, como ocorre com frequência nos ciclos básicos dos cursos superiores, estão se tornando anacrônicas. Alguns professores tentam agir como animadores de auditório, usando anedotas e recursos performáticos para manter a atenção das hordas de apedeutas. A vítima é o aprendizado. Um sistema de estudo dirigido, com apoio de recursos on-line e que respeite o ritmo do aprendiz pode, eventualmente, ajudar. Afinal, o valor de frequentar uma instituição de ensino superior não está nas aulas básicas, mas no contato com professores e colegas, na criação de redes de relacionamento e, principalmente, no trabalho conjunto e na realização de projetos de interesse comum. Iniciativas como as da Coursera e de seus pares estão ainda em sua infância. Os conteúdos são fragmentados e muitos registros foram feitos simplesmente colocando-se uma câmera no fundo de uma sala de aula. A estética é pobre e o material divulgado não é atraente. Uma grande promessa pode transformar-se em grande decepção. Não terá sido a primeira vez. Não será a última. Talvez, o que precisamos é de mais Jean Piaget e menos Bill Gates, mais Paulo Freire e menos Steve Jobs.

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A vida na linha de montagem Tese de doutoramento examina com lupa crítica os bastidores da academia tropical na área de Administração.

O campo científico da Administração cresceu vigorosamente nas duas últimas décadas. Temos hoje, no Brasil, 78 programas de pós-graduação, formando mestres e doutores. Esses programas contam com cerca de 1.200 professores e produzem por ano quase 1.400 dissertações de mestrado e mais de 200 teses de doutorado. Anualmente, mais de quatro mil trabalhos são apresentados em duas dúzias de eventos acadêmicos, geralmente em aprazíveis cidades litorâneas e bucólicas estâncias nas montanhas. O campo conta cerca de 80 periódicos científicos, os quais, somados, publicam aproximadamente dois mil artigos por ano. Informação relevante: parte considerável do sistema é bancada por recursos públicos. Dado que a administração é uma ciência aplicada, supõe-se que o dinheiro investido seja utilizado de maneira honesta e eficiente para ajudar o País a superar sua vexatória incompetência gerencial. Acontece que a qualidade e o impacto social do que é produzido são decepcionantes. Reflexões sobre o desenvolvimento da área revelam fraquezas metodológicas, baixa capacidade de construção de teorias e afastamento da realidade brasileira. Em uma tese de doutorado defendida em junho na FGV-EAESP, sob a orientação do colega Rafael Alcadipani, Paulo Marcelo Ferraresi Pegino analisou com lupa crítica nosso estranho modo de produzir ciência. O pesquisador avaliou a produção de 168 pesquisadores, bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), supostamente a nata da área de administração. Os resultados são preocupantes. 176

Primeiro, sobra quantidade e falta qualidade. No período analisado por Pegino, cada pesquisador publicou em média um artigo por trimestre. O mais produtivo deles atingiu a impressionante marca de dois artigos por mês, merecendo entrar para o livro dos recordes. Por outro lado, os pesquisadores levam em média 10 anos para publicar um artigo em periódico de alta qualidade. Segundo, emergiu da pesquisa de campo uma prática heterodoxa de divisão do trabalho: os mais jovens (mestrandos e doutorandos) pesquisam e escrevem, e os mais velhos (professores doutores) assinam. No período analisado, dois terços da produção científica dos pesquisadores foi gerada por orientandos. Os orientadores aparecem como primeiros autores apenas em 16% dos trabalhos. Em suma, os textos científicos são produto de uma linha de montagem orientada para a produção em massa de artigos de baixo impacto e qualidade duvidosa. As entrevistas realizadas por Pegino com pesquisadores e doutorandos revelam o funcionamento da máquina. As diretrizes de produção vêm de Brasília e são desdobradas em cada unidade industrial. Nas fábricas, os capatazes põem seus servos a trabalhar. Trechos das entrevistas revelam a dura realidade: a pressão permanente por produção e a reação de professores e estudantes. O mercado é muito competitivo e pouco seletivo: mais importa a quantidade que a qualidade. Os mais velhos respondem como podem ao sistema, frequentemente empregando artifícios criativos para atender as metas de produção. Os mais jovens submetemse. Quem não produz é condenado ao desterro. Alguns pesquisadores esmeram-se na adaptação, tirando o máximo rendimento de suas fábricas e de seus servos. Outros, sabe-se bem, refugiam-se na nostalgia de tempos passados e empregam sofisticada retórica para defender sua zona de conforto. Aqui e acolá, surgem casos exóticos: alunos que parecem fazer trabalho de ghost-writer e doutorandos que orientam mestrandos. A tentativa de transformar a lerda e improdutiva academia tropical em máquina do conhecimento parece ter gerado uma linha de montagem cara e 177

anacrônica, comandada (segundo palavras dos entrevistados de Pegino) por pseudopesquisadores, orientadores fantasmas, picaretas, primas-donas e cafetões acadêmicos. Um dos pesquisadores ouvidos criticou a fixação dos colegas com o acúmulo quantitativo de publicações e a dificuldade para publicar artigos em periódicos de alta qualidade: "[é] igual o carnaval de Salvador: o cara está muito mais preocupado em quantas ele pegou [...] do que com a qualidade da mulherada que ele pegou, entendeu? [...] só que é o seguinte, meu amigo, pra pegar baranga é um minuto de conversa, pra pegar gata tem que conversar, tem que levar". Bonito, não? Sem comentários!

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A USP (não) é várzea! A mais importante instituição de ensino e pesquisa do País teve um ano difícil. Em 2015, precisa trabalhar firme para recuperar sua boa reputação

Toda nação têm, ou deveria ter, instituições de referência. Por sua conduta e realizações, elas conquistam o reconhecimento franco e o respeito sincero dos cidadãos. Elas são importantes porque sinalizam valores e norteiam comportamentos, fomentando virtudes que alicerçam o progresso social. Para muitos brasileiros, a Petrobras foi uma instituição de referência. Desde sua criação, no início dos anos 1950, a empresa ficou gravada no inconsciente coletivo como símbolo de realização industrial e da capacidade para desenvolver tecnologia avançada. Durante décadas, foi exemplo de excelência técnica e de gestão baseada na meritocracia. Com o pré-sal, a empresa passou a ser vista como passaporte para uma sociedade mais rica e socialmente mais justa. Entretanto, a interferência política e os escândalos resultantes minaram a empresa e o símbolo. Resta agora apurar responsabilidades e recuperar a reputação abalada. Para muitos paulistas, a USP foi uma instituição de referência: um polo gerador de conhecimento e centro de formação de profissionais e cientistas. Criada em 1934, a USP teve papel notável na formação da elite dirigente do País. Nutriu processos políticos e culturais. Sofreu durante o período militar e cresceu após a redemocratização. Hoje, a instituição tem mais de 90 mil alunos e um corpo docente de cerca de seis mil professores. É a universidade que mais forma mestres e doutores no País. Nos rankings internacionais, ocupa lugar de destaque, especialmente entre as instituições ibero-americanas. Seu orçamento anual supera quatro bilhões de reais. 179

Entretanto, 2014 foi mais um ano trágico para a instituição. Sucessivos escândalos e más notícias macularam sua reputação. A crise veio na esteira de uma expansão acelerada, investimentos polêmicos e crescimento da folha de pagamentos, que em 2014 superou seu orçamento total. A própria universidade divulgou seus salários. O quadro revelado é espantoso. Na base, muitos salários são modestos. Entretanto, dezenas de professores aposentados e até analistas administrativos recebem valores de fazer inveja a diretores de empresas, na ativa. Somaram-se às más notícias greves e paralisações, eventos traumáticos de violência e um rumoroso caso envolvendo estupros na faculdade de medicina. Além do show de horrores na mídia, o boca a boca de estudantes da própria instituição contribui para conspurcar a imagem de seriedade construída durante décadas, dando conta de instalações decadentes, docentes negligentes, funcionários relapsos e sindicalistas anacrônicos. As consequências começam a ser sentidas. Em uma escola paulistana, os alunos preparam-se para o vestibular. À medida que os exames se aproximam, as escolhas são feitas. Adriana quer fazer arquitetura. Visitou a USP, não gostou do que viu e desistiu da Fuvest. André decidiu estudar direito, mas optou por uma faculdade com proposta mais moderna e arejada que a vetusta escola do Largo do São Francisco. Julio vai prestar administração, mas não quer saber das greves e confusões da USP. Clarice resume a percepção da turma: a USP é várzea! Todos concordam. Na vida escolar, a expressão “é várzea” é comumente atirada contra professores relapsos, conteúdos defasados e matérias mal dadas. Vê-la aplicada, de maneira espontânea e ingênua, contra a principal instituição de ensino e pesquisa do País é triste e desconcertante. E pode não ser justo, porque, embora a instituição esteja passando por problemas graves, continua contando com um corpo invejável de professores, alunos brilhantes e centros de excelência em pesquisa. Entretanto, a

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percepção contamina a interpretação que, reforçada por seguidas más notícias, é tomada por verdade. Para qualquer organização, a reputação é um ativo fundamental. Sua construção é lenta e exige enorme esforço, mas sua destruição pode ser rápida e irreversível. Reformar um gigante descontrolado, propenso a teorias conspiratórias, refém de grupos com interesses conflitantes, perdido em disputas retóricas, de governança impossível e coalizões instáveis, é tarefa hercúlea. Os povos dos trópicos aguardam ansiosos pelo início dos 12 trabalhos e agradecem antecipadamente os esforços.

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O Lobo do Management Pesquisadores da Holanda criticam a introdução de práticas empresariais nas universidades.

Na edição de abril da revista científica Minerva, os pesquisadores Willem Halffman e Hans Radder publicaram texto contundente e provocativo. Sob o título “O Manifesto Acadêmico: Da Universidade Ocupada para a Universidade Pública”, os autores analisam criticamente a modernização do ensino superior holandês, frequentemente citado como exemplo de superação do anacrônico modelo torre de marfim. O tom é desinibido e panfletário, e conclama acadêmicos para uma ação transformadora. Segundo Halffman e Radder, as universidades holandesas foram invadidas e ocupadas. O ocupador, no caso, não é força fardada ou milícia religiosa. Afinal, trata-se dos Países Baixos Os autores referem-se a um verdadeiro lobo mau: o Lobo do Management. Segundo eles, o management é um regime obcecado com medições, controles, competição, eficiência e a ideia tortuosa de salvação econômica. Para expulsar o ocupador e devolver as universidades aos cidadãos, os autores propõem que os próprios acadêmicos assumam o controle de seu destino e construam uma nova universidade pública, alinhada com o bem comum e com uma proposta de geração de conhecimento socialmente engajado. Halffman e Radder advogam que o Lobo do Management invadiu a academia com um “exército mercenário de administradores profissionais, armados com planilhas, indicadores de desempenho e procedimentos de auditoria”. Seu inimigo são os acadêmicos, esses seres egocêntricos e autocentrados, pouco confiáveis, que precisam ser monitorados e controlados. As universidades foram conquistadas e colonizadas. Projetos de alta visibilidade e indicadores manipulados mostram para o 182

público externo o sucesso do novo modelo. Entretanto, há uma sensação de revolta no ar: no “chão de fábrica”, o clima é tóxico e a moral é baixa. O Lobo do Management cultua índices e rankings. Inventaria artigos publicados e comemora com champanhe cada posição galgada nas listas internacionais. A posição nas planilhas determina a sorte de pesquisadores e de departamentos. Vence a quantidade; pouco importa o conteúdo. Na batalha dos números, acadêmicos criam fábricas de artigos, assinam trabalhos uns dos outros, citam-se mutuamente e correm o mundo promovendo seus textos. O que vale é a performance. Enquanto isso, no mercado acadêmico, multiplicam-se os eventos e as revistas científicas. Sobram escritores e faltam leitores. Halffman e Radder argumentam que o fetiche dos indicadores está transformando a ciência, destruindo tudo que não é mensurável. Sob o ocupador, a massa de acadêmicos comporta-se como um rebanho de ovelhas, mantido sob vigilância e controle. O novo mantra é a busca da eficiência. Em lugar de recursos, as universidades ganham gestores. Resultado: nos orçamentos, recursos migram de laboratórios para serviços de relações públicas, da pesquisa para a contratação de consultores de marketing. A nova universidade aparece em anúncios de página inteira nos jornais, mantém websites atraentes e garante presença constante nas mídias sociais. Seus professores e pesquisadores devem tornar-se celebridades nos jornais, na TV e, claro, nas palestras TED. Com as práticas empresariais, o Lobo do Management impõe nova cultura. O culto da excelência, que flagelou empresas nas décadas de 1980 e 1990, chega décadas depois à universidade. É preciso ser “de topo”: publicar artigos em um seleto grupo de periódicos, ter os coautores certos, conseguir proeminência nos círculos mais prestigiosos, ser um hábil captador de recursos e gerenciar uma dócil equipe de pesquisadores juniores. Para manterem-se na ribalta, os tais 183

pesquisadores “de topo” terceirizam o ensino para doutorandos e coagem orientandos a conceder-lhes coautorias. A história holandesa repete-se em diferentes latitudes e longitudes. Muitas universidades públicas tropicais são antediluvianas. Elas continuam a seguir o anacrônico modelo torre de marfim e lutam para preservar pequenos privilégios. São perdulárias, ineficientes e ineficazes. São autocentradas e ignoram o mundo ao redor. Porém, começam a sentir os efeitos do “choque de gestão” descrito por Halffman e Radder. E, assim, somam às suas antigas patologias – autismo e imobilismo – as mais novas – produtivismo, exibicionismo e comportamentos para inglês ver. Algumas ovelhas exauridas e irritadas ganem aqui e acolá. Porém faltalhes direção e união.

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PARTE 4 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A FORMAÇÃO PROFISSIONAL

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Procuram-se estudantes Além do mico-leão-dourado, do guigó-da-caatinga, do lobo-guará e do macaco-prego-galego, outro mamífero tropical parece caminhar para a extinção.

Diz-se que uma espécie encontra-se ameaçada quando a população decresce a ponto de situá-la em condição de extinção. Tal processo é fruto da exploração econômica e do desenvolvimento material, e atinge aves e mamíferos em todo o planeta. Nos trópicos, esse pode ser o caso dos estudantes. Curiosamente, enquanto a população de alunos aumenta, a de estudantes parece diminuir. Paradoxo? Parece, mas talvez não seja. Aluno é aquele que atende regularmente um curso, de qualquer nível, duração ou especialidade, com a suposta finalidade de adquirir um conhecimento ou ter direito a um título. Já o estudante é um ser autônomo, que busca uma nova competência e pretende exercê-la, para o seu benefício e da sociedade. O aluno recebe. O estudante busca. Quando o sistema funciona, todos os alunos tendem a tornar-se estudantes. Quando o sistema falha, eles se divorciam. É o que parece ocorrer entre nós: enquanto o número de alunos no ensino fundamental, médio e superior cresce, assombram-nos sinais do desaparecimento de estudantes entre as massas discentes. Alguns grupos de estudantes sobrevivem, aqui e acolá, preservados em escolas movidas por nobres ideais e boas práticas, verdadeiros santuários ecológicos. Sabe-se da existência de tais grupos nos mais diversos recantos do Planeta: na Coreia do Sul, na Finlândia e até mesmo no Piauí. Entretanto, no mais das vezes, o que se vê são alunos, a agir como espectadores passivos de um 186

processo no qual deveriam atuar como protagonistas, como agentes do aprendizado e do próprio destino. Alunos entram e saem da sala de aula em bandos malemolentes, sentam-se nas carteiras escolares como no sofá de suas casas, diante da TV, a aguardar que o show tenha início. Após 20 minutos, se tanto, vêm o tédio e o sono. Incapazes de se concentrarem, eles espreguiçam e bocejam. Então, recorrem ao iPhone, à internet e às mídias sociais. Mergulhados nos fragmentos comunicativos do pinico digital, lambuzam-se de interrogações, exclamações e interjeições. Ali o mundo gira e o tempo voa. Saem de cena deduções matemáticas, descobertas científicas, fatos históricos e o que mais o plantonista da lousa estiver recitando. Ocupam seu lugar o resultado do futebol, o programa de quinta-feira e a praia do fim de semana. As razões para o aumento do número de alunos são conhecidas: a expansão do ensino fundamental, médio e superior, ocorrida aos trancos e barrancos, nas últimas décadas. A qualidade caminhando trôpega, na sombra da quantidade. Já o processo de extinção dos estudantes suscita muitas especulações e poucas certezas. Colegas professores, frustrados e desanimados, apontam para o espírito da época: para eles, o desaparecimento dos estudantes seria o fruto amargo de uma sociedade doente, que festeja o consumismo e o prazer raso e imediato, que despreza o conhecimento e celebra a ignorância, e que prefere a imagem à substância. Especialistas de índole crítica advogam que os estudantes estão em extinção porque a própria escola se tornou anacrônica, tentando ainda domesticar um público do século XXI com métodos e conteúdos do século XIX. Múltiplos grupos de interesse, em ação na educação e cercanias, garantem a fossilização, resistindo a mudanças, por ideologia de outra era ou pura preguiça. Aqui e acolá, disfarçam o conservadorismo com aulas-shows, tablets e pedagogia pop. Mudam para que tudo fique como está.

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Outros observadores apontam um fenômeno que pode ser causa-raiz do processo de extinção dos estudantes: trata-se da dificuldade que os jovens de hoje enfrentam para amadurecerem e desenvolverem-se intelectualmente. A permissividade criou uma geração mimada, infantilizada e egocêntrica, incapaz de sair da própria pele e de transcender o próprio umbigo. São crianças eternas, a tomarem o mundo ao redor como extensão delas próprias, que não conseguem perceber o outro, mergulhar em outros sistemas de pensamento e articular novas ideias. Repetem clichês. Tomam como argumentos o que copiam e colam de entradas da Wikipédia e do que mais encontram nas primeiras linhas do Google. E criticam seus mestres, incapazes de diverti-los e de fazê-los se sentirem bem com eles próprios. Aprender cansa. Pensar dói.

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Virtudes perdidas Ao longo de sua história, as escolas de negócios abdicaram de seus altos propósitos originais, de formar profissionais voltados para atender os interesses da sociedade, e abraçaram sem pudor o comercialismo.

Vivemos em uma sociedade de grandes organizações. Elas podem ser empresas privadas, estatais ou configurações híbridas. Qualquer que seja o tipo, nós dependemos delas para nascer, estudar, trabalhar, comer, beber, envelhecer e morrer. No centro de nosso sistema social, existe um poder invisível: o poder exercido pelos exércitos anônimos de executivos e gestores. Exceto por algumas estrelas fugazes, eles não chamam muito a atenção. No entanto, a forma como pensam, tomam decisões e agem pode afetar, de maneira sutil ou dramática, o destino de cada um de nós. No livro From Higher Aims to Hired Hands: The Social Transformation of American Business Schools and the Unfulfilled Promise of Management as a Profession (Princenton University Press), o professor e pesquisador de Harvard Rakesh Khurana analisa a história centenária das instituições que formam esses exércitos. Seu argumento é que, com o passar do tempo, as escolas de negócios abandonaram seu propósito original, de consolidar uma nova profissão, formando gestores, e perderam o rumo, deixando-se pautar exclusivamente pelas forças de mercado. Profissões, explica Khurana, ocupam um lugar de destaque na hierarquia do mundo do trabalho. Elas carregam valores culturais e respondem a demandas sociais. Um médico, por exemplo, é mais do que um trabalhador da saúde. Sua profissão deve refletir valores humanos e éticos, e sua prática deve responder às necessidades da sociedade na qual está inserido. Além de responderem às demandas sociais, as profissões também interferem e ajudam a criar a ordem social. As 189

profissões mais emblemáticas tornam-se referências de valores e seus profissionais tornam-se modelos de conduta: médicos, bombeiros e professores carregam símbolos positivos; políticos têm constituído sua antítese. Em suas primeiras décadas, as escolas de negócios, especialmente aquelas surgidas no seio das universidades, assumiram a missão de formar administradores, como as escolas de medicina formavam médicos: profissionais íntegros e éticos, capazes de preservar os mais altos valores e responder às demandas sociais. Entretanto, a partir da década de 1970, mudanças nos ambientes econômico e educacional desvirtuaram essa missão. A primeira mudança foi uma orientação para pesquisa científica que, apesar das boas intenções, afastou as escolas da prática empresarial e as transformou em torres de marfim, voltadas para o próprio umbigo. A segunda mudança envolveu a crescente prevalência de certas perspectivas econômicas e financeiras, transformando o administrador em um operador da “mão invisível”, um instrumento a serviço da obtenção de resultados de curto prazo. A terceira mudança relacionou-se ao crescente processo de comercialização do ensino da administração. De fato, o ensino da gestão deixou de ser uma atividade educacional para se transformar em uma indústria, capaz de movimentar vastos recursos e gerar invejáveis margens de lucro. Com isso, as próprias escolas passaram a ser geridas como empresas, sempre buscando polir sua imagem, atender seus clientes, racionalizar o uso de suas instalações e maximizar seus resultados. O Brasil seguiu, com algum atraso e adicionando peculiaridades, o processo norte-americano. Hoje, a educação em gestão é um negócio global, complexo e em ainda em transformação. Até a década de 2000, a indústria foi dominada pelos MBAs norteamericanos, vistos por jovens ambiciosos de todo o mundo como passaporte para o sucesso. Sua fama foi alavancada pela proliferação dos rankings, muitos deles enfatizando explicitamente o retorno sobre o investimento, ou seja, quanto o salário aumenta depois de uma passagem por um MBA. 190

Nos últimos anos, o modelo MBA perdeu fôlego e ganhou concorrentes. Surgiram os Masters in Management, para profissionais em início de carreira, e ganharam popularidade os Executive MBAs, mais curtos que os MBAs e destinados a profissionais mais experientes. Os próprios MBAs, antes essencialmente generalistas, passaram a ser oferecidos como programas especializados em finanças, marketing e grande variedade de cores e sabores. Ao norte, como ao sul do Equador, as mudanças distorceram as boas intenções originais, de fazer da administração uma profissão reconhecida e socialmente relevante. A crítica de Khurana foca exclusivamente a administração e as escolas de negócios. Entretanto, os processos apontados pelo autor ocorreram em outras profissões. Se persistirem as tendências, talvez o próprio conceito de profissional seja uma ideia com os dias contados, a ser sepultada por coveiros nostálgicos no cemitério da força de trabalho.

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Investimento duvidoso Análises recentes sugerem que investir tempo e dinheiro na realização de certos cursos superiores pode ser divertido, porém um mau negócio.

A educação formal é uma conquista da civilização. Cultiva a mente e a alma. E ainda alimenta os motores da mobilidade social, permitindo atender nossas necessidades básicas e também as supérfluas. Quanto maior o tempo dentro da escola, maior o salário fora dela. Não é à toa que o ensino superior explodiu no Brasil, incluindo a pós-graduação. E a explosão motivou a cobiça de empresários e financistas, de olhos e bolsos sempre abertos a boas oportunidades de negócios. Entretanto, não é preciso ser um gênio estatístico para notar que a linha reta ascendente que correlaciona horas-aula e dígitos no holerite representa uma nuvem, que é povoada em suas bordas por sucessos excepcionais e fracassos retumbantes. Investir quatro ou cinco anos na realização de um curso superior pode ampliar o ciclo social, alimentar a vida cultural e estimular as conexões mentais. Entretanto, em muitos casos, pode não gerar retorno sobre o dinheiro investido em mensalidades, livros e outras despesas. Ao norte do Rio Grande, onde os habitantes cultuam números e estatísticas, análises recentes exploraram as bordas da citada nuvem. A base de dados veio da PayScale Human Capital, uma organização que opera uma plataforma virtual para coletar e analisar salários. O banco de dados da empresa compreende egressos de mais de 900 instituições de ensino superior norte-americanas. Derek Thompson, em textos veiculados no website da revista The Atlantic, utilizou os dados para indicar quais eram as melhores universidades e os melhores cursos para quem quer ganhar dinheiro; e, na ponta oposta, quais eram as piores universidades e os piores cursos, aqueles incapazes de gerar renda que cubra o que foi investido. 192

No primeiro grupo, foram identificados os suspeitos usuais – MIT, Stanford, Princeton e Harvard – e algumas surpresas – como o Harvey Mudd College, da California. Quanto aos cursos, nenhuma surpresa: ciências da computação, ciências da computação e ciências da computação. Conclusão: aspirantes a milionários podem buscar o calor da Califórnia ou o frio de Boston, desde que nutram paixão por bits e bytes. Se a perspectiva não for sedutora, uma graduação em administração, engenharia ou economia em das boas escolas ianques pode também retornar magnificamente o investimento realizado. No segundo grupo, Thompson listou obscuras universidades do Alabama e outros recantos remotos da pátria de Obama. Entre os cursos, concluiu que os de artes, pedagogia e língua inglesa são os que provavelmente deixarão seus egressos à míngua. Podem ser ótimos para expandir o espírito, mas são péssimos para preencher o bolso. Para os humanistas preocupados, a saída para evitar uma existência de penúria, a dilapidar a herança familiar ou viver de benesses estatais, é fazer o curso em uma escola de ilibada reputação, como a Columbia, citada pelo autor. Ainda assim, o cidadão que fizer a graduação em artes verá seu colega economista amealhar o dobro da renda e seu colega formado em informática ganhar três vezes mais. Naturalmente, é temerário colocar um preço no benefício da educação. No entanto, se o jovem cidadão tem família e precisa ganhar a vida, então é recomendável buscar formação que o ajude a pagar as contas. Então, afinal, vale a pena (financeiramente) fazer faculdade? Nem sempre. Uma escolha errada pode condenar o futuro profissional ao subemprego e a frustrações. Ao norte do Rio Grande, os números ajudam na tomada de decisões. Cá nos trópicos, carecem as estatísticas, mas não faltam suspeitas. Sobram-nos cursos anacrônicos, afastados das demandas da sociedade ou das organizações. Sobram-nos também programas criados e geridos exclusivamente para atrair massas de incautos. 193

Transparência nas informações, como aquelas oferecidas por PayScale, e o avanço do ensino aberto a distância tendem a aumentar a pressão sobre as instituições de ensino superior. Aquelas que não souberem responder à altura sentirão a busca por vagas minguar e a qualidade do corpo discente decair. As instituições que forem capazes de oferecer um futuro melhor pelo tempo e recursos investidos por seus alunos terão mais chance de ser bem-sucedidas. Bom para elas, para os seus egressos e para a sociedade.

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Tiro no escuro Para muitos jovens, prestes a realizarem exames vestibulares, a escolha da futura profissão é uma verdadeira loteria.

O conto “Profession”, publicado em 1957 por Isaac Asimov, retrata a Terra em um futuro distante e distópico. As crianças são educadas por um sistema central, que liga diretamente seus cérebros a um computador. As futuras profissões são definidas com base em um algoritmo. Não cabe aos indivíduos escolher seu ofício. “Profession” é uma entre muitas obras de ficção científica a tratar da questão da escolha ou direcionamento profissional. O tema também ocupa lugar de destaque entre as preocupações de jovens, pais, psicólogos, educadores e gestores da educação. No Brasil, temos uma associação de orientadores profissionais e uma revista científica dedicada ao tema. Em nosso país, todos os anos, no segundo semestre, centenas de milhares de jovens preparam-se para a maratona de exames vestibulares. Segundo o INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), o Brasil ultrapassou em 2012 a marca de sete milhões de alunos no ensino superior. Eles estão matriculados em 32 mil cursos, oferecidos por mais de duas mil instituições de ensino. Nosso sistema superior de educação cresceu aceleradamente desde o final da década de 1990 e quase duplicou de porte nos últimos 10 anos. No entanto, o crescimento e o gigantismo não foram ainda suficientes para atender a demanda por formação de alta qualidade. Nos cursos mais procurados e nas instituições de maior renome, a relação candidato x vaga frequentemente

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supera a dezena e, vez por outra, aproxima-se da centena. O funil de acesso coloca legiões de pais e filhos à beira de um ataque de nervos. Nos últimos anos, a realização do curso superior tornou-se aspiração de novos contingentes de jovens, antes alijados da universidade por barreiras econômicas. Em paralelo, visando atender o novo “mercado”, nasceram e prosperaram instituições privadas de ensino superior, com um olho na educação e outro no bolso, não necessariamente nessa ordem. Na esquina ideológica oposta, o sistema público, caro e anacrônico, salta de crise em crise, a vergar sob o peso de querelas políticas, governança excêntrica e interesses corporativistas. Enquanto isso, o mundo gira e o mercado de trabalho é convulsionado por estripulias econômicas, profissões que emergem e outras que submergem, e carreiras que rompem as fronteiras tradicionais. No meio da confusão, nossos jovens enfrentam o descabido desafio de, aos 17 anos de idade, definirem o próprio futuro. Os manuais de autoajuda vocacional costumam ser pródigos em sugestões tão sensatas quanto inexequíveis: conheça a si próprio, conheça as profissões, conheça os profissionais, trabalhe e experimente. Alguns jovens têm vocação clara, mas são raros. Outros pensam tê-las, porém titubeiam diante dos primeiros choques de realidade. A maioria lança-se semiconsciente ao mar, torcendo para que uma corrente amiga a leve a um porto seguro. A escolha profissional é caso típico de tomada de decisão na ausência de informações. Quem sou eu? Quais são meus potenciais? O que quero da vida? São perguntas básicas, porém difíceis de responder aos 17 anos de idade. A outra ponta não é mais simples. Como estará o mercado de trabalho daqui a quatro ou cinco anos? Quais serão as melhores profissões do futuro? O que me trará satisfação? O que me garantirá uma vida confortável?

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E, como se não bastassem as dificuldades naturais, as paixões e as ansiedades envolvidas, as decisões são tomadas em um teatro de consumo, no qual escolas secundárias competem pelas maiores taxas de sucesso no vestibular, cursinhos vendem seus serviços e as novas instituições de ensino tentam atrair recrutas para suas “propostas diferenciadas”. Não é de estranhar que muitos jovens iniciem cursos superiores, pouco depois parem e tentem outros caminhos. E há também aqueles que teimeam na escolha original e, ainda que frustrados, terminem o curso e sigam a padecer pela vida profissional afora. O custo da escolha mal feita é alto para os jovens, para seus pais e para a sociedade. Há quem diga que mais sábios são nossos pares do hemisfério norte, que oferecem aos seus universitários a oportunidade de inícios com conteúdos mais genéricos, adiando dessa maneira as decisões profissionais para momentos de maior maturidade e lucidez.

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Acertos e erros Diretores das melhores escolas de administração do mundo revelam o que os programas de formação de gestores têm de melhor... e de pior.

Em 2014, o jornal inglês Financial Times realizou uma pesquisa com 72 diretores das principais escolas de administração do mundo. A opinião do seleto grupo importa, porque suas instituições formam anualmente milhares de futuros líderes, profissionais cujas decisões influenciarão as vidas de milhões de empregados, clientes e acionistas, e poderão gerar impactos sobre comunidades e países. Foram ouvidos 62 homens e 10 mulheres, quase todos na faixa de 50 a 60 anos de idade. Há predominância de instituições norte-americanas, porém com presença significativa de escolas europeias e o despontar de algumas instituições asiáticas. O mapa do Financial Times não registrou escolas africanas ou latinoamericanas. Duas questões nortearam a pesquisa: o que a educação em gestão tem de melhor e o que tem de pior. Todos responderam a primeira pergunta. Alguns escaparam da segunda pergunta. Certas respostas são pueris, outras revelam visão crítica. Emergem alguns consensos. Os diretores consideram seus cursos como motores para a transformação da sociedade e construção de um mundo mais próspero e justo. Os cursos incentivam a criatividade, fomentam comportamentos éticos e estimulam a noção de responsabilidade social. Os diretores também creem que o management é uma caixa valiosa de ferramentas que provê soluções para problemas reais das empresas, das organizações e da sociedade. 198

O grupo aponta também o efeito positivo dos cursos sobre os estudantes, considerando-os como uma experiência transformadora, capaz de transmutar sapos em príncipes. Os programas proporcionam uma visão complexa do mundo e das empresas, desenvolvem o raciocínio analítico e a capacidade de tomar decisões. Além disso, tornam os estudantes mais conscientes de seu potencial e de suas possibilidades. Com isso, abrem-se novas possibilidades profissionais. Alguns diretores ainda assinalaram que o melhor dos programas vem da interação de professores e estudantes em torno de uma agenda contemporânea, que os desafia a encontrar soluções para questões prementes. Tais questões referem-se a temas relacionados à competição à geração de valor para as empresas. No entanto, consideram cada vez mais temas de alcance social, relacionados ao impacto econômico, ambiental e social dos negócios sobre a sociedade. A maioria dos respondentes não se furtou a responder a questão sobre o lado escuro dos programas de formação em gestão. Aqui, o discurso politicamente correto deu lugar para a reflexão crítica. Afinal, não foram poucos os casos de exestudantes envolvidos com escândalos financeiros. E até George Bush fez MBA! Alguns diretores de escolas reconhecem que os programas frequentemente oferecem fórmulas simplistas para resolver problemas complexos. Além disso, estimulam os estudantes a ver a busca dos lucros como um fim em si próprio, sem atentar para os impactos de suas ações sobre funcionários, clientes e a sociedade. Outro aspecto mencionado foi a promoção de uma visão utilitarista, fundada em leituras apressadas de princípios de racionalidade econômica, que levam os futuros profissionais a buscar ganhos de curto prazo nas empresas, sem considerar as consequências em longo prazo. Segundo os entrevistados, muitos professores parecem mais interessados em suas carreiras de pesquisadores de temas herméticos do que em ajudar a buscar soluções para problemas reais. Muitas instituições ainda se comportam como torres 199

de marfim, distantes e desdenhosas da vida corporativa. Orientam sua pesquisa para assuntos exóticos, ao gosto dos editores de prestigiosas revistas científicas, porém sem considerar a possibilidade de usar o conhecimento gerado para transformação da realidade. Os diretores também criticaram o comportamento de alguns professores que se tornam empresários de si mesmos, escrevendo livros de autoajuda, para se promoverem como gurus e consultores. Um entrevistado referiu-se explicitamente à grande quantidade de lixo sendo promovida como inovação. Finalmente, um número significativo de entrevistados registrou que o modelo dominante de formação de gestores – os programas de MBA – constitui uma criação norte-americana, notavelmente bem sucedida, porém criada para um mundo que não existe mais. Segundo eles, é preciso coragem e criatividade para inventar novos modelos, adequados aos novos tempos.

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O futuro da educação Estudantes e mestres preparem-se! Vem aí a Air School e o Uber MBA. Uber, o serviço de transporte urbano que tira o sono dos taxistas, e Airbnb, o serviço de hospedagem que causa pesadelos entre donos de hotéis, alimentam a febre atual de novidades movidas à tecnologia. Não se sabe se desaparecerão em um ano ou se tornarão novos Facebooks. Por enquanto, hipnotizam a mídia de negócios e atraem a atenção de usuários e investidores. Uber e Airbnb constituem materializações do conceito de empresa virtual, surgido nos anos 1990. Por traz do conceito, uma ideia simples: o acesso amplo às tecnologias de informação e comunicação possibilita a criação de modelos lucrativos de negócios que não dependem de fábricas, escritórios ou quadros inchados de empregados. Os componentes dos novos sistemas são facilmente identificados: proposta de valor funcional e contemporânea; comunicação simples, porém sofisticada; foco no uso, em lugar da propriedade; uso intensivo de tecnologia; e aproveitamento de recursos existentes e pouco utilizados (assentos vazios em carros particulares, para o Uber; lares desocupados, para a Airbnb). As duas empresas operam como agentes de intermediação, direcionando sua comunicação para provedores e para usuários de recursos. Uber apela para o status: “seu motorista particular”; e para o empreendedorismo e a liberdade: “trabalhe quando puder” e “ganhe dinheiro sem ir ao escritório e enfrentar um chefe chato”. Airbnb esforça-se para criar uma atmosfera intimista e funcional: “alugue seu espaço extra sem nenhum esforço”, “abra um mundo de possibilidades” e “sinta-se em casa”.

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O que ocorreria se a criatividade nerd, que desenvolveu esses dois modelos de negócios, mirasse a educação universitária? Uma amostra do resultado pode ser avaliada nas iniciativas de ensino a distância que se multiplicaram nos últimos anos, algumas delas em parcerias com renomadas universidades. Quem tiver a paciência para assistir aulas virtuais, primeiro, ficará assustando com a má qualidade do que é veiculado (será isso mesmo que se ensina nas universidades?) e, segundo, comprovará que aulas virtuais são ainda mais aborrecidas do que aulas presenciais. Em meio às montanhas de joio, talvez encontre algum trigo. Mas o que seria uma Air School ou um Uber MBA? Uma reinvenção completa do modelo de geração e de transmissão de conhecimento, hoje tão criticado? Estudantes agendando módulos em diferentes universidades, por um aplicativo? Motoristas professores explicando marketing e finanças durante o trajeto? Em artigo publicado há alguns anos na revista científica Academy of Management Learning & Education, Paul N. Figa, Richard A. Bettis e Robert S. Sullivan realizaram um curioso exercício de futurologia, focando especificamente as escolas e o ensino da administração. Os pesquisadores consideraram os grandes motores da mudança: globalização, rupturas provocadas por novas tecnologias, mudanças demográficas e desregulamentação. Tomaram como referência os impactos desses vetores sobre três setores: a saúde, os serviços financeiros e o transporte aéreo de passageiros. Então, perguntaram: e se impactos similares aos que atingiram esses setores ocorressem na educação? A leitura do texto leva a identificar seis grandes mudanças. A primeira mudança relaciona-se ao movimento de fusões e aquisições, com o surgimento de grandes grupos educacionais. A segunda diz respeito à entrada de novas instituições no setor de educação, com propostas baseadas em massificação, padronização e baixo custo. A terceira indica a internacionalização das instituições de ensino, com atração de alunos e professores estrangeiros, e a abertura de campi no exterior. A 202

quarta sugere a superação do modelo artesanal de geração de conhecimento, pulverizado em múltiplas instituições, e a criação de polos especializados que abasteceriam todo o sistema de ensino. A quinta diz respeito ao declínio e eventual desaparecimento de instituições subsidiadas que apresentam alto custo e geram baixo impacto na formação de quadros e na geração de conhecimento. A sexta relaciona-se ao aumento da utilização de modelos mistos, combinando atividades presenciais e atividades remotas. Algumas dessas mudanças já estão acontecendo. Podemos observar seus efeitos e defeitos. Outras soam como sacrilégio ou delírio, mas podem estar a caminho. Quem viver, verá... ou lamentará!

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PARTE 5 – ESCAPANDO DO CAPITALISMO SELVAGEM

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Pensar dói? O ensaísta Neal Gabler une-se a um seleto grupo de nostálgicos polemistas, que valorizam as ideias e se colocam contra a corrente, fazendo críticas à internet, às mídias sociais e ao culto da informação.

Em texto publicado no New York Times, Neal Gabler, da Universidade do Sul da Califórnia, argumenta que vivemos em uma sociedade na qual ter informações tornou-se mais importante do que pensar: uma era pós-ideias. Gabler é o autor, entre outras obras, de Vida, o Filme (editora Companhia das Letras), na qual afirma que, durante décadas de bombardeio pelos meios de comunicação, a distinção entre ficção e realidade foi sendo abolida. O livro tem o significativo subtítulo Como o Entretenimento Conquistou a Realidade. No texto atual, Gabler troca o foco do entretenimento para a informação. Seu ponto de partida é uma constatação desconcertante: vivemos em uma sociedade vazia de grandes ideias, leia-se, conceitos e teorias influentes, capazes de mudar nossa maneira de ver o mundo. De fato, é paradoxal verificar que nossa era, com seus gigantescos aparatos de pesquisa e desenvolvimento, o acesso facilitado a informações, os recursos maciços investidos em inovação, e centenas de publicações científicas, não seja capaz de gerar ideias revolucionárias, como aquelas desenvolvidas noutros tempos por Einstein, Freud e Marx. Não somos menos inteligentes do que nossos ancestrais. A razão para a esqualidez de nossas ideias, segundo o autor, é que vivemos em um mundo no qual ideias que não podem ser rapidamente transformadas em negócios e lucros são relegadas às margens. Tal condição é acompanhada pelo declínio dos ideais iluministas – o primado da razão, da ciência e da lógica – e a ascensão da superstição, da fé e da ortodoxia. Nossos avanços tecnológicos são notáveis, porém 205

estamos retrocedendo, trocando modos avançados de pensamento por modos primitivos. Gabler critica o afastamento das universidades do mundo real, operando como grandes burocracias e valorizando o trabalho hiperespecializado em detrimento da ousadia. Critica também o culto da mídia por pseudoespecialistas, que defendem ideias pretensamente impactantes, porém inócuas. No entanto, o autor aponta que a principal causa da debilidade das nossas ideias é o excesso de informações. Antes, nós coletávamos informações para construir conhecimento. Procurávamos compreender o mundo. Hoje, graças à internet, temos acesso facilitado a qualquer informação, de qualquer fonte, em qualquer parte do planeta. Colocamos a informação acima do conhecimento. Temos acesso a tantas informações que não temos tempo para processá-las. Assim, somos induzidos a fazer delas um uso meramente instrumental: nós as usamos para nos mantermos à tona, para preencher nossas reuniões profissionais e nossas relações pessoais. Estamos substituindo as antigas conversas, com seu encadeamento de ideias e sua construção de sentidos, por simples trocas de informações. Saber, ou possuir informação, tornou-se mais importante do que conhecer; mais importante porque tem mais valor, porque nos mantém à tona, conectados em nossas infinitas redes de pseudorrelações. As novas gerações estão adotando maciçamente as mídias sociais, fazendo delas sua forma primária de comunicação. Para Glaber, tais mídias fomentam hábitos mentais que são opostos àqueles necessários para gerar ideias. Elas substituem raciocínios lógicos e argumentos por fragmentos de comunicação e opiniões descompromissadas. O mesmo fenômeno atinge as gerações mais velhas. Nas empresas, muitos executivos passam parte considerável de seu tempo captando fragmentos de notícias sobre mercados, concorrentes e clientes. Seu comportamento é o mesmo 206

no mundo virtual e no mundo real: eles navegam pela internet como navegam por reuniões de negócios. Vivem a colher informações e distribuí-las, sem vontade ou tempo para analisá-las. Tornam-se máquinas de captação e reprodução. À noite, em casa, repetem o comportamento nas mídias sociais. Seguem a vida dos amigos e dos amigos dos amigos; comunicam-se por uma orgia de imagens e frases curtas, signos cheios de significado e vazios de sentido. O futuro aponta para a disponibilidade cada vez maior de informações. A consequência para a sociedade, segundo Gabler, é a desvalorização das ideias, dos pensadores e da ciência. A considerar a velocidade com que livros e outros textos estão sendo digitalizados e disponibilizados na internet, estamos no limiar de ter todas as informações existentes no mundo ao nosso dispor. O problema é que, quando chegarmos lá, não haverá mais ninguém para pensar a respeito delas. Pode-se acusar o ensaísta de nostalgia infundada ou ludismo. Porém, ele não está só. Felizmente, há sempre um grupo de livres-pensadores a se colocar contra o conformismo massacrante das modas tecnológicas e comportamentais, nesta e em outras eras.

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Redução do ego O imperativo de melhoria da qualidade de vida no trabalho demanda a institucionalização de uma nova técnica psicocirúrgica: a egoplastia.

Id, ego e superego são, na teoria freudiana, as três partes que constituem o modelo estrutural da psique. O id é o conjunto de instintos e contém as paixões. O ego é a parte organizada do modelo e contém a razão. O superego é responsável pelo papel crítico e contém a moral. Para Freud (editado pela Wikipedia, a salvação do escriba apressado), o ego atua de acordo com o princípio da realidade, procurando satisfazer a demanda do id de maneira realista e considerando o longo prazo. Seu papel é de mediador entre o id e a realidade. O ego compreende as estruturas da personalidade que incluem as funções relacionadas à percepção, à cognição e à execução. O ego modifica-se pela interação com o mundo exterior. Ele compreende funções tais como o julgamento, a tolerância, o autocontrole, o planejamento e a memória; ajuda-nos a construir o sentido do mundo ao redor, a organizar nossos pensamentos e a tomar decisões. Embora a consciência se localize no ego, nem todas as suas funções são conscientes. De fato, a vida do ego não é simples. Ele serve a três senhores: a realidade, o id e o superego. Assim, é pressionado pelo id, cerceado pelo superego e repelido pela realidade. O ego precisa fazer o melhor para atender a todos, porém é atormentado pelo risco de descontentar dois de seus senhores. Diz-se que tem uma queda pelo id, preferindo agradar suas paixões, mas o superego não lhe dá tréguas e o pune com sentimentos de culpa e inferioridade.

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O pai da psicanálise ocupou-se do homem, de seus desejos e de seus conflitos. Ele e seus conterrâneos não viveram em uma sociedade de massa como a nossa, moldada por grandes corporações. Sua época conheceu muitas pragas, mas não as que nos assolam hoje, como o consumismo e o hedonismo. Passado um século de muitas mudanças, suas ideias continuam vivas e úteis. A tríade freudiana parece ter curiosa aplicação em nossa sociedade de grandes organizações. Disfunções do ego parecem ter se tornado uma patologia corriqueira no mundo corporativo. Elas afetam executivos individualmente, e são ampliadas quando estes se aglomeram nas hordas conhecidas como empresas. Alguns deles têm o ego tão inflado que tornam rarefeito o ar ao seu redor. Quando em sua proximidade, transpira-se abundantemente, mas sofre-se para respirar. Suas frases iniciam-se sempre com “eu, por exemplo...”. O outro existe como instrumento, ferramenta para suas realizações. Executivos de ego inflado têm dificuldade para ouvir seus funcionários e seus pares. Preferem sempre sua própria voz, ou seu próprio discurso, na voz do outro. Eles (e elas) são impacientes e pouco propensos à reflexão; fogem dos detalhes, refugiando-se nas grandes visões e nas grandes abstrações. Vivem para sustentar seu ego, todo o tempo a frisar suas grandes realizações (nem sempre tão grandes) e seus grandes feitos (nem sempre seus). Organizações nas quais impera o ego inflado isolam-se em suas torres de marfim, ignorando clientes, fornecedores e outros grupos de interesse. Seus cavernícolas guiam-se por suas próprias sombras, projetadas em planilhas e slides coloridos. Muitas delas tiveram trajetórias de sucesso. Cresceram e consolidaram-se com produtos de sucesso e serviços de boa qualidade. Com o tempo, foram se burocratizando e isolando do mundo, dando mais valor para símbolos de status e jogos de poder do que para atender as demandas de seus clientes e as necessidades de seus funcionários.

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Haverá solução para as patologias do ego? A gastroplastia ou cirurgia bariátrica, mais conhecida como cirurgia para redução do estômago, é um procedimento médico indicado em alguns casos de obesidade mórbida. Tal condição ocorre quando o indivíduo tem um índice de massa corpórea superior a 40 kg/m2, ou pouco menos que isso, porém com o agravamento do quadro de saúde provocado por doenças relacionadas à obesidade, tais como diabetes, hipertensão e apneia de sono. O procedimento pode empregar diferentes técnicas. Qualquer que seja o caso, o paciente necessita de cuidadosa preparação antes do procedimento cirúrgico e de cuidadoso acompanhamento após o procedimento. Seria a medicina, e a psicanálise, capaz de desenvolver solução similar para os males do ego?

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A cri$e do$ e$$e$ Um colap$o $em precedente$ ameaça a impren$a e a$ letra$. Em pauta, a falta de uma con$oante e$$encial.

A mídia internacional anda ocupada com a primavera árabe. Na mídia nativa é $empre verão: dieta$, cara$ e glúteo$. Não é de e$tranhar que um tema de envergadura ímpar tenha pa$$ado de$percebido. Poi$, prezado$ leitore$ e prezada$ leitora$, cabe revelar que o mundo (da mídia e da$ letra$, pelo meno$) e$tá diante de uma catá$trofe iminente: a falta de e$$e$. I$$o me$mo! Aquela $inuo$a letra que $ucede o “r” e antecede o “t”, muito útil na expre$$ão de $ub$tantivo$ plurai$ e frequentemente acompanhada de um par idêntico. Claro, a cri$e poderia $er pior. $empre pode. A$ con$oante$, nó$ a$ temo$ em grande número. Uma a meno$, aqui e ali, não provoca grande dano. Improvi$amo$ e encontramo$ uma $aída honro$a. Ne$te texto, por exemplo, $ub$tituímo$ o e$$e, com con$trangida ironia, pelo cifrão. Mundo e$tranho: faltam e$$e$, $obram cifrõe$. De$culpamo-no$ pelo incômodo. Dada$ a$ circun$tância$, con$ideramo$ e$ta a $aída mai$ digna. Ma$ e $e começarem a faltar vogai$? Ela$ $ão mai$ e$ca$$a$ e, por e$se critério da ciência econômica, mai$ valio$a$. O que $eria do$ croni$ta$ $em poder u$ar um único “a” e do$ en$aí$ta$ $em poder lançar mão de um único “o”? $eria o cao$, uma tragédia para o mundo da língua e$crita. Como em todo momento de cri$e, não faltam teoria$ con$piratória$. Um colega neomarxi$ta jura que a cri$e é fruto da luta de cla$$e$, que a burgue$ia internacional tem mantido e$toque$ e$tratégico$ de e$$e$ em paraí$o$ fi$cai$, pronto$ para inundar o mercado a$$im que o$ preço$ $ubirem. Um filólogo amador, amargo e no$tálgico, confidenciou-me que o de$aparecimento não lhe cau$a e$panto. De fato, a própria população bra$ileira tem culpa no cartório, poi$ 211

u$a cada vez meno$ o e$$e. É “10 real” aqui, “o$ cara” ali... e a$$im vai. Uma amiga convertida à$ boa$ cau$a$, depoi$ de 10 ano$ trabalhando no $i$tema financeiro, perguntou-me, o dedo em ri$te: “Você acha me$mo que a eliminação do trema foi apena$ uma deci$ão linguí$tica? Ingênuo... I$$o tudo é decidido em Wall $treet, com ano$ de antecedência!”. O$ $audo$i$ta$, como era de e$perar, lembraram-se do tempo em que toda$ a$ letra$ do alfabeto, até me$mo o íp$ilon, eram produzida$ no Bra$il, com mercado protegido e apoio do governo. É verdade que a$ letra$ eram cara$ e o acabamento não era grande coi$a, ma$ a$ palavra$ eram legívei$ e, afinal, quem qui$e$$e coi$a melhor que muda$$e para o primeiro mundo. Agora, com a globalização, tudo é feito na China. O gigante emergente produz tonelada$ de fonte Arial e Time$ New Roman, em grande e$cala e com cu$to$ baixí$$imo$. Não há como competir. O que ninguém e$perava era e$ta cri$e de aba$tecimento. O de$arranjo político e econômico do$ E$tado$ Unido$. A cri$e do euro, com centro $í$mico na Grécia. A e$tagnação japone$a. O vexame do ex-diretor do Fundo Monetário Internacional. Foi demai$ para o mercado. O de$balanceamento pegou o$ agente$ econômico$ de $urpre$a. Enquanto $eu$ olho$ e$peculativo$ acompanhavam o euro e o ouro, o e$$e caminhava para o abi$mo. A cri$e do e$$e repetiu a$ terrívei$ onda$ de cri$e$ anteriore$: o con$umo caiu enquanto a produção continuava a pleno vapor, o$ e$toque$ $ubiram, o mercado ficou abarrotado e o$ preço$ de$pencaram. O$ chine$e$ $e $eguraram, ma$ $eu$ $ubcontratado$ filipino$ e norte-coreano$ quebraram em ma$$a, deixando um ra$tro de de$emprego e mi$éria. Relato$ de Manila dão conta de $uicídio$ coletivo$, fato extremo naquele paí$. Trabalhadore$ de Pyongyang en$aiaram um prote$to, prontamente reprimido pelo querido líder Kim Jong-Il.

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Por aqui, a cri$e pegou o$ e$criba$ de $urpre$a. Fo$$e letra de menor u$o, como um “y” ou um “w”, a dificuldade $eria menor. A troca de $obrenome de Wood para Hood, tal qual o do arqueiro de $herwood, não apre$entaria grande dificuldade. $ub$tituir o e$$e é outra coi$a. Intuitivamente, apelamo$ para o primo “z”, ma$ $ub$tituir Bra$il por Brazil tornará o autor alvo da horda u$ual de puri$ta$ e di$cordante$ nato$, a acu$á-lo de vendido, preten$io$o e muito mai$. Melhor deixar o cifrão me$mo, que já não cau$a e$panto e parece ser o novo e$peranto. Haverá $olução no horizonte? Uma conhecida revi$ta ingle$a, $empre po$itiva com a mi$éria alheia, regi$trou em editorial que a globalização teria permitido a milhõe$ de indiano$ e chine$e$ o ace$$o ao e$$e, e que e$ta cri$e, como toda$ a$ anteriore$, $eria $uperada pela engenho$idade humana. E$te e$criba go$taria de partilhar o otimi$mo do$ colega$ britânico$; go$taria de crer que a$ turbulência$ e de$balanceamento$ $erão re$olvido$, que o$ político$ e o$ economi$ta$ $aberão o que fazer e que o futuro no$ re$erva um $orri$o autêntico. Entretanto, $em alarme ou pânico, devemo$ no$ preparar. E$tá lançado o movimento: ocupemo$ o alfabeto!

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De Mozart a Sherman Uma linha imaginária liga as trajetórias profissionais do genial músico classicista e da renomada fotógrafa contemporânea. Em pauta: lições para artistas e empreendedores em tempos de fetiche do mercado.

Wolfgang Amadeus Mozart nasceu em 1757, em Salzburg. Foi um compositor prolífico e é considerado um dos maiores gênios da música de todos os tempos. Cindy Sherman nasceu em Nova Jersey, em 1954. Vive e trabalha em Nova Iorque. É uma das mais renomadas e reconhecidas fotógrafas contemporâneas. Comparar artistas tão diferentes, de épocas tão distintas, é temerário. Além disso, diante de Mozart, qualquer artista empalidece. Feita a ressalva, lança-se o argumento: há uma instigante relação entre as trajetórias profissionais de Mozart e Sherman, ainda que separados por dois séculos e dois continentes. Em 1781, Mozart deixou os serviços do Arcebispo de Salzburg para tentar a sorte como músico autônomo, em Viena. Nos 10 anos seguintes, tentou a sorte como empreendedor de si mesmo, algo novo para a época. Escapou dos gostos e caprichos de seus antigos protetores, porém teve que se curvar ao tal do mercado. Quando iniciava uma composição, perguntava-se: como compor para esse novo público dos concertos? Quando se preparava para apresentar uma obra, indagavase: o que fazer para agradar o público? Mozart morreu aos 35 anos de idade. Estava endividado. Sentia-se derrotado e marcado pela sensação de fracasso. Pagou preço alto por seu pioneirismo e por sua audácia. Passados 200 anos, artistas dos mais variados campos continuam enfrentando o mesmo dilema: como equilibrar a liberdade de criação com o 214

atendimento das necessidades básicas de sobrevivência? E esse dilema não afeta apenas artistas. Muitos profissionais liberais lutam para balancear a liberdade de ação com as contas domésticas. Muitos executivos sonham com o dia em que escaparão de suas gaiolas corporativas. Alguns deles consumam a fuga, porém logo percebem que o doce sabor da liberdade vem acompanhado pelo gosto amargo de uma nova submissão: troca-se um chefe incapaz e neurótico por uma dezena de clientes caprichosos e tirânicos. Para os velhos e novos sonhadores, a trajetória profissional de Cindy Sherman pode ser inspiradora. Sherman iniciou seus estudos de artes pela pintura, mas logo a trocou pela fotografia. Teve a sorte de estudar e viver em um ambiente de experimentação: sua curiosidade e sua criatividade foram estimuladas por professores e colegas que exploravam novas formas de expressão artística. O reconhecimento veio com as primeiras obras e prolongou-se ao longo da carreira. Em 1995, Sherman ganhou uma bolsa de 500 mil dólares, da Fundação MacArthur, conhecida como prêmio dos gênios. Em 2011, uma de suas fotos foi vendida na casa de leilões Christie's por 3,9 milhões de dólares, tornando-se, na época, a mais cara fotografia vendida em um leilão de arte. A fama e o sucesso comercial não alteraram seu modelo comercial. Desde o início de sua carreira, a fotógrafa mantém-se fiel a duas galerias que a representam, uma norte-americana e uma europeia. Nenhuma a pressiona por produção. A fotógrafa trabalha em séries temáticas. Para criar suas obras, labuta solitária em seu estúdio, alternando os papéis de criadora, diretora, iluminadora, estilista, maquiadora, modelo e fotógrafa. Uma de suas séries mais famosas – Untitled Film Stills, desenvolvida de 1977 a 1980 – contém 69 imagens de mulheres, sempre representadas pela própria artista. Nem todos os trabalhos de Sherman tiveram tanto impacto e sucesso comercial quanto Untitled Film Stills, porém revelam uma artista em constante 215

movimento, sempre capaz de avançar sobre seus próprios limites e provocar sua audiência. Até 11 de junho de 2012, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) apresentou uma ampla exposição do trabalho da artista, com mais de 170 obras, produzidas desde meados da década de 1970 até o presente. A exposição foi mais um reconhecimento da importância de Sherman para a fotografia e para as artes. O website do MoMA disponibilizou uma visita virtual à exposição. Sherman, de certa forma, realizou o sonho de Mozart. Como o músico, a fotógrafa encontrou cedo (embora não tão cedo quanto Mozart) seu meio de expressão e sua voz. Lançou-se como artista autônoma e empreendedora de sua própria obra. Trabalha sozinha. Controla seus temas e seu ritmo de atividade. Domina seus meios de produção e seus canais de acesso ao mercado. Sua matériaprima é sua humanidade: suas inquietações diante do mundo e suas representações Seu combustível é sua curiosidade sobre os meios para representar suas ideias. O mercado é uma entidade real, capaz de recompensar regiamente seu trabalho, mas não lhe atormenta a alma ou condiciona seus caminhos. Sua privilegiada situação é ainda um sonho para poucos, mas representa uma possibilidade, uma luz no final do túnel.

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A cultura do desdém O caso recente do ex-diretor do Goldman Sachs, que denunciou os maus modos de sua antiga casa, traz novamente à tona os genes selvagens do DNA corporativo.

Em edição de 14 de março, o New York Times publicou texto de Greg Smith, com o título “Porque eu estou deixando o Goldman Sachs”. As revelações tocaram em um ponto sensível, o desdém de executivos do centenário banco de investimentos por seus clientes, em um momento sensível, marcado pelo desdém do público pelas instituições financeiras. Smith abre sua carta aberta em tom confessional: “Hoje é meu último dia no Goldman Sachs. Após quase 12 anos na firma [...] eu acredito ter trabalhado aqui tempo suficiente para entender a trajetória de sua cultura, de sua gente e de sua identidade. E eu posso dizer honestamente que o ambiente está agora tão tóxico como eu nunca vi”. E segue: “Para colocar o problema em termos simples, os interesses do cliente continuam sendo deixados de lado na forma como a empresa opera e pensa na maneira como ganhar dinheiro”. Smith argumenta que a cultura sempre foi componente central da empresa. Seus valores fundamentais eram trabalho em equipe, integridade, humildade e uma busca do melhor para o cliente. Porém, nos últimos anos, a liderança alterou o DNA da empresa, para pior. Hoje, vaticina, se você conseguir ganhar dinheiro suficiente, terá pavimentado o caminho para o sucesso. Como chegar lá? É simples: empurre produtos que sejam opacos e podres para os clientes, e lucrativos para o banco.

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O ex-diretor afirma que ouviu diversos colegas chamarem seus clientes de “muppets”, em referência, pouco elogiosa, aos personagens da série de TV. Smith teme pelo futuro da organização, ao constatar que uma geração de novos funcionários, muitos deles brilhantes, está sendo socializada na nova cultura, autocentrada e viciosa. De fato, grandes corporações não têm dificuldade em recrutar os melhores aprendizes e socializá-los em suas práticas. Não deve ser motivo de surpresa que moços e moças de boas famílias e boas maneiras estejam dispostos a trocar ideais e dignidade por status social e bônus anuais. As reações ao texto de Smith foram variadas. A legião de vítimas de escândalos corporativos aliou-se aos gatos escaldados da crise financeira para apoiar o ex-executivo. No canto oposto, postaram-se as viúvas de Milton Friedman. Nathan Vardi, da revista Forbes (que assina o nome seguido do slogan “seguindo a trilha do dinheiro”), sugere que o caso reflete apenas a crise de meia-idade de um executivo frustrado com sua carreira. Halah Touryalai, da mesma revista, afirma que as revelações de Smith não deveriam causar surpresa e que a culpa é dos clientes. Isso mesmo, a culpa é das vítimas, por sua própria ingenuidade e conduta irresponsável. Embora acintosa, a afirmação não é descabida. Muitas “vítimas” são apostadores gananciosos, que jogam suas fichas em produtos de alto risco. Porém, Touryalai ignora a enorme assimetria de informação que existe entre profissionais do mercado financeiro e parte considerável de seus clientes. Mais divertidas foram as sátiras que seguiram o texto de Smith. Em uma delas, o vilão da série Guerra nas Estrelas, Darth Vader, explica: “Por que estou deixando o império”. Em um vídeo veiculado pelo website Funny or Die, diretores do Goldman Sachs discutem, em uma reunião regada a whiskey e cocaína, como superar a crise gerada por Smith, quando são surpreendidos pela entrada de quatro bonecos representantes da “Liga Anti-difamação dos Muppets”, para registrar uma queixa formal pelo uso preconceituoso e ofensivo da palavra “muppet”. 218

Somente os inocentes crônicos acreditam que bancos tenham outro objetivo que não seja ganhar dinheiro para seus controladores e executivos. A indignação de Smith pode soar tão crível quanto a eventual indignação de um deputado brasileiro, que renunciasse ao mandato popular por ter constatado o declínio dos outrora altos padrões éticos da Câmara. Por detrás da denúncia de Smith, existe uma cultura do desdém, que permeia muitas relações no mundo corporativo. Acionistas desdenham diretores, que desdenham gerentes, que desdenham seus funcionários, que desdenham estagiários. Executivos desdenham seus clientes e fornecedores, e a recíproca pode ser verdadeira. Nos últimos anos, uma retórica corporativamente correta tentou fomentar o respeito ao cliente e alinhar interesses entre executivos, acionistas, comunidades, fornecedores e outros grupos que podem interferir no desempenho e na lucratividade das empresas. Obviamente, a distância entre a foto e o fato é ainda enorme. Textos como os de Smith são incomuns. Alguns executivos adorariam ter a chance de listar desaforos contra seu ex-patrão em um veículo de grande alcance. Porém, têm carreiras a preservar, bocas para alimentar e sonhos de consumo para realizar. A censura mais eficaz é a autocensura.

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Correio maldito Uma grande empresa de tecnologia anunciou uma meta de “e-mail zero”. Serão iniciativas desse naipe capazes de contrapor os comportamentos de conectividade insana e distração crônica nas organizações?

O livro 84, Charing Cross Road, da norte-americana Helene Hanff, publicado em 1970 e posteriormente adaptado para o teatro e para o cinema, conta a história da amizade entre a autora e Frank Doel, que trabalhava em uma loja de livros antigos, em Londres. Hanff chega a Doel por meio de um anúncio de livros raros em um suplemento literário. Com o tempo, a amizade se estabelece e a correspondência floresce, tratando de filosofia, receitas culinárias e política. Hanff e Doel nunca se encontraram. O livro tornou-se uma curiosidade arqueológica, com o registro de uma prática quase extinta. A comunicação por fone celular, Skype, correio eletrônico e mídias sociais soterrou os prazeres da troca de epístolas: a elaboração cuidadosa e lenta, o suspense da espera, o prazer de receber a carta aguardada e de sua leitura. Em seu lugar, temos hoje o frenesi das mensagens instantâneas. Nas corporações, o fenômeno ganha dimensão de pandemia. A irritação começa com o junk mail. Todos os dias, recebemos kilobytes de lixo eletrônico. Este escriba não é exceção. Viúvas de ex-ministros africanos do petróleo deixaram de me oferecer 20 milhões de dólares para ajudá-las a recuperar a fortuna da família, mas a assessoria de imprensa do governador Agnelo Queiroz não desiste de me informar os enfadonhos passos do dignatário. A Cybersul me oferece softwares de gestão multiempresas e multilínguas, que fazem tudo e servem para qualquer empresa, e a Carci me envia imagens promocionais de elevadores de assento sanitário, seguros e de fácil instalação. Um 220

vendedor tenta me empurrar vídeos de treinamento com títulos criativos: “O enterro das desculpas”, “Se o barco afundar, você vai junto!” e “Não faça parte do time que promete e não cumpre”. Irmãos Cohen, cuidem-se! Consultores que passaram as férias em Boston convidam-me a conhecer as novas práticas de coaching, mentoring, feedback e bobagens similares. Um guru de gestão envia-me pílulas de sabedoria e ofertas de palestras-shows. Segundo o próprio: "O ser humano usa apenas 7% de sua capacidade de pensar”. Deve ser verdade, porque se usasse 8% não haveria público para suas apresentações. O drama da avalanche de e-mails despertou o interesse da academia. Megan Garber, escrevendo para a revista Atlantic, reporta uma pesquisa conduzida pela Universidade da Califórnia, em Irvine, e as forças armadas norte-americanas. Objetivo: medir o estresse causado pelo uso do e-mail. Os cientistas dividiram suas “cobaias” em dois grupos: o primeiro ficou sem utilizar o e-mail por cinco dias e o segundo prosseguiu com sua rotina de uso. Para medir o impacto, os participantes tiveram sua condição cardíaca monitorada. Resultado: os usuários de e-mail mantiveram-se em estado de “alto alerta”, com reflexos negativos sobre sua condição cardíaca. Os não usuários, por sua vez, apresentaram perfis naturais de batimento cardíaco. Eles se sentiram mais produtivos e mais focados em suas tarefas, e sofreram menos estresse causado por interrupções. O estresse, como se sabe, relaciona-se a doenças cardíacas e autoimunes, obesidade e depressão. Algumas empresas começam a discutir o efeito nocivo das mensagens eletrônicas sobre os indivíduos e sobre a produtividade. Thierry Breton, CEO da empresa francesa de tecnologia Atos, declarou, no final de 2011, ao ABC News que apenas 10% das 200 mensagens que seus funcionários recebem em média por dia têm alguma utilidade. Breton, que foi ministro das finanças da França, compara a poluição de informações à poluição ambiental. Ambas têm consequências nefastas sobre nossa qualidade de vida. A Atos está implementando uma política de “e-mail zero”. Seu objetivo é fazer com que seus 74 mil funcionários erradiquem o uso 221

interno de mensagens eletrônicas. Em seu lugar, a empresa pretende utilizar sistemas de mensagens instantâneas e mídias sociais. O e-mail tornou-se uma praga, mas talvez seja apenas o bode expiatório de uma cultura de trabalho que privilegia a conectividade e a capacidade de reação instantânea, em detrimento da reflexão, do equilíbrio e da capacidade analítica. Suprimir o e-mail poderá alterar atitudes e comportamentos? Ou talvez signifique apenas a troca de um vício por outro? Ou, o que seria pior, a adição de outras distrações, ainda mais indutoras de estresse? Muitos profissionais já transitam desgovernados entre e-mails, mensagens instantâneas e telefone celular. Situam-se sempre em uma realidade paralela, distante e etérea. Parecem nunca estar disponíveis para tratar do aqui e agora. Distanciam-se de seus interlocutores diretos e deles próprios. Compraram um tíquete só de ida para o mundo virtual. Boa viagem!

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Aula de produtividade Uma ONG havaiana salva baleias, educa turistas e ainda dá lições de organização do trabalho.

Procurar lições de produtividade em uma organização não governamental (ONG) pode parecer exótico. Elas costumam nascer do idealismo de seus fundadores, nutridos por ojeriza das coisas do mercado e da administração. Infelizmente, muitas perecem jovens, vencidas por problemas básicos de gestão. Outras sobrevivem, porém não conseguem realizar seu potencial. Pacific Whale Foudation (PWF) é uma ONG fundada em 1980, com sede em Maui, no Havaí. Sua missão é conduzir pesquisas e educar o público, com o objetivo de preservar baleias, golfinhos, tartarugas e recifes de corais. A organização conta com 150 funcionários e integra a bem-estruturada indústria turística da paradisíaca ilha. Uma de suas atividades é a realização de passeios para observação da vida marinha. Um de seus passeios mais populares leva turistas, ativistas e simpatizantes a Molokini, uma formação rochosa, parte da cratera de um vulcão extinto, situada a cerca de quatro quilômetros da costa sul de Maui. O local é um aquário a céu aberto, de água azul-turquesa, visibilidade perfeita e variedade impressionante de peixes: um paraíso para mergulhadores. O passeio dura cerca de cinco horas, com direito a uma segunda parada, próxima a uma praia, para observar tartarugas. Em cada saída, a equipe da PWF recebe cerca de 100 interessados em sua loja ao lado do píer, às sete da manhã. Uma funcionária dá boas-vindas, fornece instruções e usa sua simpatia para vencer o sono do grupo. 223

O embarque é rápido e tranquilo. A ida a Molokini é ocupada por um café da manhã, instruções para mergulhadores noviços e pequenas palestras sobre a vida marinha, dosadas para informar sem chatear. Pés de pato, snorkels e camisetas térmicas (para os friorentos) são distribuídos com presteza. Chegando a Molokini, a equipe acompanha com atenção os convidados, em caiaques de apoio. Famílias japonesas, gêmeas texanas, bebês australianos, avós italianos: todos ao mar. A experiência é relaxante, hipnótica. Difícil é sair da água. No trajeto seguinte é servido um almoço, com direito a Mai Tai, que não é o ponto alto do fantástico passeio. A segunda parada segue a mesma cuidadosa coreografia da primeira, mas dessa vez com um guia: um mergulhador da equipe, que conduz interessados por uma turnê subaquática. O retorno ao píer marca um momento de descanso, com direito a frutas, cookies havaianos e pequenas palestras no convés. Na proa, uma pesquisadora forma uma roda com crianças para uma aula lúdica sobre tartarugas: a atenção é total. O passeio encerra-se pontualmente ao meio-dia, com o desembarque dos 100 passageiros, alegremente cansados. Além das lições ecológicas, a PWF oferece, involuntariamente, uma verdadeira aula sobre produtividade. Afinal, o cruzeiro é realizado por uma equipe com somente seis pessoas. Isso mesmo: seis funcionários da PWF recebem os 100 turistas, manejam o barco, preparam as refeições, coordenam toda a logística dos mergulhos e fazem as palestras. E tudo sem pressa nem correria, com atenção e simpatia. Mágica? Não há. O resultado é apenas uma combinação bem-gerenciada de fatores. Os serviços de bordo são simples, porém não decepcionam. Todas as atividades são planejadas e executadas com esmero profissional. A jovem equipe, com idade entre 25 e 35 anos, tem formação superior e demonstra amor pelo que faz. Todos são polivalentes: a responsável pela âncora acompanha os 224

mergulhadores inexperientes em um caiaque e dá aula para as crianças; o capitão comanda o barco e faz palestras sobre os vulcões e ilhas do Havaí. Nos picos de atividades, todos atuam, agindo com flexibilidade e senso de equipe. Trabalhar por uma causa na qual acreditam certamente ajuda. A realização dos cruzeiros, além cumprir papel educativo, é fonte de receita para a PWF. Operar com uma equipe enxuta é essencial para viabilizar a operação. Sem planejamento, seria inviável atender tão bem grupos tão numerosos. A organização minuciosa do trabalho permite à equipe trabalhar com foco, sem excesso ou estresse, e ainda garante tempo livre para conversas amigáveis com os passageiros. Podem ser lições surpreendentes, principalmente para quem ainda pensa que a alta produtividade é meta inalcançável ou objetivo demoníaco de capitalistas sem alma.

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The Bang Bang Club Filme conta a história real de quatro fotógrafos que cobriram o fim do Apartheid e ilustra o sentido mais profundo do trabalho.

A distribuição de filmes tem suas peculiaridades. Grandes produções, movidas a estrelas, pirotecnias e verbas de marketing, têm mercado certo. Disputam o restante das salas produções de nicho, filmes europeus e obras de origem diversa que eventualmente caem no gosto dos distribuidores. The Bang Bang Club, produzido em 2009, parece não ter se encaixado em nenhuma categoria. Se o filme foi exibido em algum cinema local, talvez tenha sido por cortesia de algum organizador de festival. A película foi baseada em livro homônimo, escrito pelos fotógrafos Greg Marinovich e João Silva, que formavam o clube do título, com Kevin Carter e Ken Oosterbroek. A história se passa no final do regime de Apartheid, na África do Sul, nos anos 1990. Nelson Mandela havia sido libertado de um longo período nas prisões da ilha Robben e de Pollsmoor. Os guetos negros estavam em convulsão, com lutas frequentes entre partidários do Congresso Nacional Africano, de Mandela, e seus rivais do Partido da Liberdade Inkatha. Os quatro fotógrafos capturaram a violenta transição do país em direção ao regime democrático. Eles arriscaram a vida na linha de frente. Oosterbroek foi mortalmente atingido por fogo amigo em abril de 1994, enquanto cobria um conflito em Thokosa, perto de Johannesburg. Tinha 31 anos. Carter, o mais sensível e turbulento dos quatro, cometeu suicídio em julho de 1994, ligando o escapamento à cabine de seu carro. Tinha 33 anos.

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As imagens dos fotógrafos do Bang Bang Club provocaram polêmica, pela violência crua que revelaram. Eles foram cultuados e criticados. O filme transita entre temas pesados: os conflitos étnicos da África do Sul e os dilemas éticos dos fotógrafos diante da sordidez humana. O roteiro é centrado na história dos dois fotógrafos que ganharam o prêmio Pulitzer: Marinovich e Carter. O filme tem o ritmo marcado por sucessivas cenas de ação, reconstituindo as incursões dos fotógrafos nos conflagrados guetos negros sul-africanos. A única cena de evasão dura menos de um minuto e ocorre no meio do filme, quando os fotógrafos e suas companheiras relaxam em um lago encravado nas pedras, ao som de Pale Blue Eyes, cantada por Lou Reed, do Velvet Underground. O filme começa com uma entrevista radiofônica de Carter, realizada em abril de 1994, após o fotógrafo ter ganhado o prêmio Pulitzer, por uma foto feita no Sudão. A entrevistadora pergunta: "Kevin, o que você acredita que faz uma grande fotografia?". Segue-se um longo silêncio. A resposta vem apenas no final do filme: Carter responde, testando as palavras: "Eu não sei, realmente... você tira a foto e vê o que você obteve... Mas talvez o que torne uma foto excepcional é que ela também questiona, sabe? Não é apenas espetáculo. É mais que isso [...] você sai a campo e vê coisas ruins, horríveis, e você quer fazer algo a respeito. Então, o que você faz é tirar a foto que mostra isso. Mas nem todo mundo vai gostar do que vai ver. É preciso entender que eles podem querer matar o mensageiro". Uma grande fotografia pode conter uma narrativa completa, concentrando signos, significados e imagens que se materializam diante do fotógrafo, são capturados em uma fração de segundo e depois reinterpretados por quem a vê. O fotógrafo é o agente capaz de compreender o contexto, postar-se diante da configuração exata de luz, sombra, objetos e pessoas, e definir o momento exato no qual a intensa e complexa bricolagem toma forma. O processo pode ser ao mesmo tempo intencional, intuitivo e aleatório. Frequentemente, para o próprio fotógrafo, o resultado parece mágico, uma epifania. 227

Os fotógrafos do Bang Bang Club ilustram o que pode ser o trabalho em seu sentido mais profundo de realização, um trabalho que cria algo marcante e provoca impacto social; que é recompensador, gera intenso prazer e sentimento de realização; que provê experiências humanas recompensadoras; que estrutura o dia a dia, de modo flexível, sem transformar a rotina em repetição mecânica; que sustenta e garante a autonomia do indivíduo; que é moralmente aceitável e vai além, questionando o status quo e possibilitando novas interpretações e visões da realidade. Não é pouco e parece ser cada vez mais raro.

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A semana de 15 horas As predições otimistas de Keynes sobre o futuro do trabalho colidiram com nosso apreço patológico pelo dinheiro e pelo consumo.

Em 1931, pouco mais de uma década após o final da Primeira Guerra Mundial e sob o impacto da Grande Depressão, o economista britânico John Maynard Keynes publicou o ensaio Economic Possibilities for Our Grandchildren. Diante do momento econômico adverso, o autor demonstrava corajoso otimismo sobre o futuro: imaginava que em 100 anos o padrão de vida aumentaria dramaticamente e as pessoas não trabalhariam mais do que 15 horas por semana, podendo dedicar o restante do tempo às atividades mais nobres da existência. No mesmo ano, o cineasta francês René Clair lançou À Nour la Liberté, um manifesto contra a opressão do trabalho industrial, cuja história se passa em uma fábrica de gramofones. A película tem final feliz. A fábrica é automatizada e os operários passam o tempo fazendo piqueniques, dançando e cantando. As imagens do francês fazem eco às ideias do britânico. Mais de 80 anos após o texto de Keynes e o filme de Clair, é fácil constatar que a tecnologia não nos libertou do trabalho. Ao contrário, ela parece ter permitido ao trabalho invadir todas as dimensões da nossa vida, a nos tornar a ele cada vez mais conectados e subjugados. O que deu errado? Entre os países desenvolvidos, os Estados Unidos têm mantido a duração da semana de trabalho e as férias curtas. Os europeus trabalham menos que os estadunidenses, porém, em um mundo de competição relativamente aberta, sofrem pressões para labutar mais. Enquanto isso, na periferia, a miséria e a desigualdade, apesar do progresso em alguns países, especialmente a China, sinalizam a distância 229

da utopia keynesiana. No Brasil, a desigualdade ainda alarmante e a estagnação da produtividade bloqueiam a evolução rumo a um modelo mais justo e avançado de sociedade. Em 2008, os italianos Lorenzo Pecchi e Gustavo Piga reuniram eminentes pensadores para discutir o “erro de Keynes”. A conclusão que emana da leitura da coletânea Revisiting Keynes é que o economista britânico acertou suas previsões sobre crescimento, porém não deu a devida atenção às questões da distribuição e da desigualdade. Keynes também superestimou nossa vontade de parar de trabalhar (para usufruir os prazeres da vida) e subestimou as recompensas proporcionadas pelo trabalho (especialmente o consumo). As explicações para o “comportamento irracional” do finado Homo economicus são variadas. Primeiro, é preciso considerar que, apesar de todas as pragas lançadas diariamente contra empresas e empregos, a verdade é que muitas pessoas gostam de trabalhar. A labuta pode ser repetitiva e cansativa, entretanto ajuda a estruturar o dia e permite a convivência com colegas. Segundo, entre trabalhar mais para consumir mais, e cortar as horas de trabalho e reduzir o consumo, optamos pela primeira condição. Isso ocorre porque tendemos a nos comparar com nossos pares. Quando vemos nosso vizinho comprando um carro novo, almejamos alcançá-lo, ou suplantá-lo. Portanto: mais consumo, mais trabalho e, também, mais dívidas, exigindo ainda mais trabalho no futuro. Em um texto publicado no jornal radical Strike!, o antropólogo e ativista David Graeber, da London School of Economics, adota uma rota alternativa para explicar o “erro de Keynes”. O autor argumenta que a tecnologia tem sido usada para nos fazer trabalhar cada vez mais, criando ocupações que são, de fato, inúteis. Segundo Graeber, tais empregos relacionam-se aos serviços financeiros, ao direito

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corporativo, às relações públicas e à gestão de recursos humanos. É o que Graeber denomina de bullshit jobs. O movimento é paradoxal: enquanto as empresas reduzem sistematicamente o número de funções relacionadas a fabricar, movimentar, manter e consertar coisas (tudo que realmente agrega valor), o número de bullshit jobs parece aumentar. Segundo Graeber, tais profissionais de fato trabalham 15 horas por semana, mas passam o resto do tempo organizando ou frequentando seminários motivacionais e atualizando seus perfis no Facebook. Em público, eles defendem o que fazem. Em particular, reconhecem a inutilidade de suas ocupações. O que ocorreria se esses empregos desaparecem? Seria a humanidade abalada? Ou venceríamos o apreço patológico pelo dinheiro e pelo consumo e aceleraríamos o passo rumo à utopia de Keynes?

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Lucro verde? Empresa testa a contramão do consumismo, unindo durabilidade dos produtos e receita.

Propaganda, afirmam os livros-texto, é um tipo de comunicação destinada a persuadir uma determinada audiência em direção a uma ação. Em sua forma corporativa mais corriqueira, é usada por empresas para promover o consumo de seus produtos ou serviços. Mudanças nas tecnologias de informação e comunicação alteraram, ao longo do tempo, os meios de veiculação das propagandas. Entretanto, sua essência não mudou: trata-se de juntar conhecimentos de marketing, psicologia, antropologia e outros tantos campos visando desenvolver e disseminar, com graça e criatividade, mensagens destinadas a induzir o consumo de serviços e produtos. O que seria uma mudança de curso? Há alguns anos, o fabricante californiano de roupas para aventuras Patagonia publicou no jornal The New York Times um anúncio mostrando um de seus produtos sob o título: “Não compre esta jaqueta”. A ideia é singela: tudo que produzimos tem impacto ambiental; a fabricação do produto em questão consome água suficiente para atender a necessidade diária de 45 adultos e gera mais de 20 vezes seu peso em dióxido de carbono. Os mais críticos talvez tenham visto a peça publicitária como um golpe: um simulacro de comportamento ambientalmente correto para promover e estimular a venda de um produto. Saki Knafo, escrevendo para o portal da revista The Atlantic, informa que a mesma empresa patrocinou uma viagem de dois empregados em uma velha caminhonete, adaptada com uma minioficina no lugar da caçamba. A missão da dupla era oferecer serviços gratuitos de reparo para clientes que tivessem roupas velhas da empresa. 232

Mais um golpe? Parte de uma estratégia maior para iludir o consumidor? Talvez não seja tão simples. O fato é que se trata de um fabricante de nicho, que produz peças duráveis, para um público sensível à mensagem de responsabilidade ambiental. Além disso, a empresa vende para seus clientes a mesma imagem que vende para seus empregados, atraindo para seus quadros profissionais que também acreditam em sustentabilidade e responsabilidade ambiental. O resultado é um paradoxo: uma organização que, como tantas, visa o lucro e depende de vendas, porém tem em sua cultura organizacional traços críticos contra o consumo desnecessário, cultivando, por isso, uma visão de longo prazo, para os negócios e para o meio ambiente. Já é alguma coisa, em um mundo que opera com ciclos cada vez mais rápidos, trocando de roupa a cada estação, de telefone a cada geração e de carro a cada inovação. Como observa Knafo, a aplicação desse tipo de estratégia é restrita a poucas empresas. A Patagonia, apesar de faturar 600 milhões de dólares e ter dois mil empregados, é uma anomalia no mundo dos negócios, operando em um setor que se sustenta na indução de mudanças aceleradas no consumo. De fato, é difícil imaginar um fabricante de automóveis tentando convencer seus clientes: “Para que trocar seu carro após 50 mil quilômetros? Está novo! Faça uma boa manutenção e ele vai rodar tranquilamente outros 50 mil quilômetros”. Ou um caixa de supermercado que, orientada pelo patrão, interpela amistosamente seus consumidores: “Querida, você precisa mesmo de todos estes doces e embutidos? Esqueça a propaganda! Uma alimentação mais frugal vai te deixar muito mais saudável e feliz”. Ou um fabricante de celulares, advertindo seus ansiosos clientes: “Nem pensem em comprar o modelo 6 Plus! Se você atualizar o sistema operacional, o seu aparelho atual vai ficar igualzinho ao novo”. Ou um shopping center que, por adotar uma política de consumo responsável, passa a submeter os clientes com 233

mais de três pacotes a uma revista pessoal: “Você precisa mesmo de tudo isso? Não viu que essas peças foram produzidas por trabalho escravo?”. Ou, ainda, um fabricante de bebidas, chocando a clientela: “Chega de cerveja, companheiro! A barriga só vai crescer, a glicemia, piorar e a loira definitivamente não vai olhar para você!”. Todos esses são cenários distantes e improváveis. Nos próximos anos, continuaremos assistindo aos efeitos do descompasso entre nosso sofrido planeta e a máquina produtiva, incentivada por doidivanas promotores do consumo. As iniciativas verdes continuarão parecendo românticas, exóticas ou hipócritas até que, eventualmente, transmutem-se em lugar-comum, tornando-se simplesmente o jeito certo de fazer as coisas.

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Rituais antiquados O momento é oportuno para as empresas livrarem-se de práticas anacrônicas.

A avaliação de desempenho é um dos rituais mais comuns e irritantes do mundo corporativo. Ninguém mais parece levá-la a sério, entretanto a prática se mantém nas empresas, ano após ano. Parece obra de forças ocultas ou entidade secreta, vivendo nas sombras do Olimpo corporativo. Agora, parece haver luz no fim do túnel. Em coluna publicada no jornal inglês Financial Times, Lucy Kellaway noticia com alegria que uma “explosão de bom senso” livrou milhares de funcionários da avaliação anual de desempenho. Em pauta, a decisão das gigantes de consultoria Accenture e Deloitte de eliminar a prática. Essas empresas parecem ter reconhecido o óbvio: o enorme tempo investido no processo não parece trazer benefícios expressivos. É significativo tratar-se de empresas de consultoria, que vivem justamente da venda de boas e novas práticas de gestão, algumas delas nem boas nem novas. A esperança é que a onda contamine outras organizações e que essas enviem para arquivo morto o notório e inócuo ritual. Na realidade, muitas organizações já o fizeram, discretamente. Noutras, permanece apenas o faz de conta, que ninguém mais leva a sério. Se considerarmos, como sugere Kellaway, o custo de mobilizar milhares de pessoas (em grandes empresas) para coordenar, executar, compilar, analisar e tomar

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decisões, então a aposentadoria vai gerar considerável economia. Isso sem contar o fim dos efeitos colaterais: irritação, cinismo e sensação de injustiça. Naturalmente, os consultores foram hábeis e evitaram dar um tiro no próprio pé. Em lugar de desqualificar a prática que estão abandonando, optaram por declarar que estão dando um passo à frente, adotando sistemas “instantâneos” de avaliação, mais sintonizados com os novos tempos. Kellaway dá uma sugestão mais simples: parar definitivamente com as avaliações de desempenho. Indica a colunista: “Contrate apenas gerentes que conseguem gerenciar, e que são bons em dizer às pessoas como elas estão se saindo, não uma vez por semana, mas o tempo todo. Se eles não conseguirem fazer isso, então não deveriam ser gerentes. Se eles conseguem, então não precisam de um sistema de avaliação como muleta”. Acontece que a avaliação de desempenho é uma de várias práticas corporativas de contribuição duvidosa que as empresas implantam e mantêm sem nunca aferir se de fato ajudam ou atrapalham. Em muitas grandes organizações, a média gerência parece ter substituído o trabalho real por uma maratona de reuniões de planejamento, comitês de avaliação e preenchimento de relatórios cuja existência poucos conseguem justificar. O ciclo é conhecido. A empresa cresce, precisa estruturar-se e melhorar o nível de controle. O caos é uma ameaça constante. Surgem um burocrata bemintencionado, uma consultoria voluntariosa e um diretor ávido por patrocinar um projeto de grande efeito. Adota-se a prática, treinam-se os algozes e as vítimas, e a coisa é lançada com pompa e circunstância. Nos primeiros anos, um rolo compressor constrange corações e mentes à adoção. Resistir não é opção. No entanto, com o passar do tempo, a disciplina é relaxada, a prática se esvazia e é substituída pelo faz de conta. Sem ter quem a derrube, mantém-se por inércia, roubando tempo e energia. 236

O grande problema ocorre quando a empresa segue acumulando práticas sobre práticas. O efeito é a ocupação crescente do tempo de trabalho, com atividades que agregam pouco valor. Resultado: estresse, frustração e baixa eficiência. E os indivíduos acostumam-se com o estado das coisas, moldam suas atitudes e comportamentos ao status quo e tornam-se engrenagens da máquina que parece existir apenas para preencher o tempo livre com atividades inócuas. Toda empresa precisa de boas práticas gerenciais e rituais. Eles conferem ordem e significado ao trabalho; devem ajudar na difícil tarefa de (tentar) domar o caos do ambiente e das mudanças. No entanto, é preciso saber escolher, com parcimônia, o que adotar, e também saber descartar. Momentos de recessão e crise são especialmente oportunos para “limpar a casa”. Em lugar de cortar funcionários, os executivos poderiam tentar “demitir” algumas práticas e rituais. Talvez fiquem alegremente surpresos com os resultados.

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Em busca do tempo perdido A ciência administrativa deve aproximar-se da prática empresarial e buscar maior impacto social.

Além de ser uma profissão, a administração de empresas tenta ser uma ciência. Como campo científico, sua história é recente. Nos anos 1950, nos Estados Unidos, a pátria mãe do management, o curso de administração estava se tornando um dos mais populares. A economia crescia vigorosamente e a demanda por gestores era premente. Entretanto, o sistema educacional não parecia estar à altura da tarefa. Os currículos escolares eram restritos e simplórios. Havia uma percepção de que o corpo discente era fraco e de que o corpo docente era formado principalmente por práticos, que passavam sua limitada experiência para os alunos. Diante do contexto, as Fundações Carnegie e Ford comissionaram dois estudos de ampla envergadura. O segundo deles ganhou notoriedade, por expor a fragilidade do ensino da administração e lançar propostas contundentes para uma revisão. Suas principais sugestões foram: mais pesquisa e menos consultoria, menos casos e mais teoria, e mais conteúdos sobre ética e ciências humanas. A divulgação dos estudos foi seguida por mudanças substantivas nas escolas de administração. Os resultados foram notáveis: os currículos foram reformados e a atividade de pesquisa foi fomentada, dando impulso a um robusto desenvolvimento acadêmico. A produção científica resultante alimentou a criação de manuais e livros-textos para as principais áreas da administração, os quais passaram a ser utilizados no ensino. Entretanto, por excesso do medicamento ou tendências desviantes do paciente, um danoso efeito colateral aflorou: a academia norte-americana, que se 238

tornou referência mundial, transformou-se em uma torre de marfim, autocentrada e hermética, obcecada com seu próprio umbigo e cada vez mais isolada do mundo real. As primeiras crises de consciência surgiram nos anos 1990, intensificando-se nas décadas seguintes. Vozes dos dois lados do Atlântico começaram a se manifestar contra a obsessão com o rigor na pesquisa administrativa em detrimento da relevância para a prática gerencial. Enquanto isso, os trópicos seguiam com atraso a virada científica norteamericana. Nossa primeira escola de administração foi criada na década de 1950, mas os cursos de pós-graduação somente se consolidaram décadas depois. Temos hoje cerca de 80 programas de pós-graduação, com aproximadamente 1.200 professores. Cerca de dois mil artigos são publicados por ano nas revistas científicas locais. No entanto, avaliações por notáveis do próprio campo revelam que a maior parte do que se produz no País é pueril, sem rigor nem relevância. Pior, aspiramos a fazer parte de um modelo ainda dominante, porém cada vez mais criticado: a torre de marfim norte-americana. Enquanto isso, algumas comunidades científicas internacionais, com destaque para aquela do Reino Unido, começam a implantar políticas e diretrizes para reorientar a pesquisa científica para a prática. O objetivo é que a pesquisa gere impacto social, ou seja, trate de temas relevantes e resulte em benefícios para as organizações, para as comunidades e para o país. Tal orientação não significa colocar pesquisadores a serviço das empresas, prática temerária, que frequentemente resulta em escândalos. Significa adotar uma orientação crítica para a realidade das organizações, uma reaproximação com a prática e uma preocupação cada vez maior com a disseminação do conhecimento gerado por meio de dissertações, teses e artigos científicos. Implica a participação

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em fóruns multilaterais e a coordenação de processos conjuntos para geração de conhecimento. A administração de empresas é o curso mais popular do País e o Brasil é um dos países mais mal-administrados do mundo: a competitividade é baixa, a produtividade está estagnada, os serviços são precários e recursos são desperdiçados. O que explica tal paradoxo? Inépcia do corpo docente? Apedeutismo crônico do corpo discente? Será o sistema imunológico dos executivos, avessos ao conhecimento? Ou será tudo culpa do grande leviatã, o Estado, sempre pronto a dificultar a vida dos que desejam empreender? Um pouco de cada coisa, talvez. Mas certamente ganharíamos se a academia local deixasse de lado seus pequenos interesses e orientasse esforços para interpretar, discutir e contribuir para a solução de questões locais. Problemas e oportunidades não nos faltam.

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Emancipados e órfãos da CLT Pesquisa científica identifica as diferentes tribos que surgiram da flexibilização dos contratos de trabalho.

Uma das mais contundentes consequências da onda de reestruturações das cadeias produtivas, iniciadas na década de 1990, foi a flexibilização dos contratos de trabalho. Até então, as relações entre as empresas e os seus empregados eram regidas por contratos padrões e sustentadas por um pressuposto implícito de continuidade e perenidade. Naturalmente, em países em desenvolvimento como o Brasil, tal condição contemplava apenas uma parte dos trabalhadores. Aos demais, restavam a informalidade e a precariedade. As mudanças iniciadas há três décadas foram dominadas pelos enxugamentos (poeticamente chamados de reengenharia), por sucessivas ondas de terceirização e pela redução do emprego formal nas grandes empresas. Hoje, coexistem no mercado diferentes tipos de contrato de trabalho. Em um artigo publicado pela Revista de Administração da USP, Marcia Carvalho de Azevedo, da Universidade Federal de São Paulo, e Maria José Tonelli e André Luis Silva, ambos da FGV-EAESP, mostram como profissionais que já tiveram vínculos regulados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) se posicionam perante a nova realidade de contratos flexíveis. Os pesquisadores entrevistaram dezenas de trabalhadores qualificados, identificando após análise nove perfis, que foram denominados: PJ, paraquedista, indiferente, pragmático, independente, autônomo, empresário, ressentido e CLT. Com tal tipologia, os autores criaram um retrato revelador sobre como a nova realidade de trabalho é vivenciada pelos profissionais. 241

Os PJs (pessoas jurídicas) são os profissionais que se adequaram sem traumas ao novo contexto e gostam de trabalhar como se fossem eles próprios uma empresa. Eles e elas apreciam a autonomia e a liberdade que a condição de PJ permite, veem criticamente as restrições impostas pelo formato tradicional e valorizam a possibilidade de gerenciar sua rotina e passar mais tempo com a família. Os paraquedistas são aqueles que, segundo os pesquisadores, “caíram de paraquedas” nos novos contratos flexíveis. Eles e elas não tiveram opção a não ser aderir ao novo formato. Não veem vantagem ou desvantagem, nem sentem nostalgia em relação ao formato antigo, apenas seguem a onda como algo inexorável. Os indiferentes assemelham-se aos paraquedistas. O foco dos indiferentes são o trabalho e a remuneração. A forma de contrato pouco importa. Eles e elas simplesmente não pensam no assunto. Os pragmáticos partilham algumas características com os indiferentes. Os pragmáticos escolhem seus contratos de acordo com as vantagens percebidas. Como os indiferentes, os pragmáticos têm foco na remuneração. Eles e elas não valorizam os benefícios da CLT e dos contratos formais, e acreditam que podem obter maiores vantagens com contratos flexíveis. Os independentes veem as relações de trabalho como trocas comerciais. Eles e elas consideram as organizações entidades autocentradas e egoístas, fundadas unicamente na busca de lucros. Sua relação de trabalho com as empresas é meramente profissional, sem vínculos emocionais. O sentimento de independência leva a desconsiderar e até mesmo a desprezar as regras e rituais do mundo corporativo. Os autônomos levam sua liberdade ao limite, valorizando seu trabalho e evitando sempre que possível a condição de subordinação a uma empresa. Eles e 242

elas apreciam a possibilidade de poder escolher o que fazem, como fazem, quando fazem e com quem fazem. Os empresários são profissionais ambiciosos, que acreditam que a legislação trabalhista fomenta a acomodação. Eles e elas creem firmemente na meritocracia e pensam que os contratos formais inibem o crescimento econômico dos profissionais. Os ressentidos e os CLTs contrapõem-se às tribos anteriores. Os ressentidos lamentam a assimetria em sua relação com as empresas e as veem como as grandes beneficiárias da flexibilização dos contratos de trabalho. Os CLTs criticam a precarização do trabalho e experimentam intensa nostalgia em relação aos contratos formais. Ressentidos e CLTs, se tivessem a chance, optariam pela volta ao contrato formal. Os autores do estudo frisam, no final do texto, a multiplicidade de impressões que recolheram. Enquanto muitos entrevistados revelaram-se realizados com os formatos flexíveis, outros os avaliaram de maneira muito negativa. Alguns órfãos em meio a vários emancipados.

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SOBRE O AUTOR

Thomaz Wood Jr. é professor titular da FGV-EAESP e sócio da Matrix Consultoria e Desenvolvimento Empresarial. Sua prática de consultoria inclui a coordenação de projetos de transformação organizacional e de estratégia empresarial. Publicou mais de 50 artigos acadêmicos e 25 livros na área de gestão, incluindo: Organizações Espetaculares, Gurus, Curandeiros e Modismos Empresariais e Mudança Organizacional. O autor colabora, desde 1996, com a revista CartaCapital, na qual os textos deste livro foram originalmente publicados.

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ISBN 978-85-914912-2-3

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