CAPÍTULO 1 - CONCEPÇOES SOCIAIS DA PAISAGEM.pdf

May 31, 2017 | Autor: W. Carboni Viana | Categoria: Arqueologia, Geografia Humana, Paisagem
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QUEIROZ, Luiz Antonio Pacheco; VIANA, Willian Carboni; COSTA, Maria Clara Rocha da. Concepções Sociais da Paisagem. In: VIANA, Willian Carboni (Org.); GARBASI, Francesco (Org.). Ensaios da Paisagem: Olhares e Valores desde a PréHistória. 1 edição. Rio de Janeiro: Editora Campos, 2015, V. 1. 15-24.

CAPÍTULO 1 - CONCEPÇÕES SOCIAIS DE PAISAGEM

(...) foi-se a velha Paris (de uma cidade a história depressa muda mais que um coração infiel); Paris muda! Mas nada em minha nostalgia mudou! Novos palácios, andaimes, lajeados, velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria. E essas lembranças pesam mais do que rochedos (...). BAUDELAIRE, 1985, p.327-328.

Escrevemos aqui para dizer que se existem paisagens, que podem ser as mesmas para muitos indivíduos, então elas podem ser objeto do conhecimento na arqueologia. Sua construção tem contornos materiais perceptíveis e de grande significância para a produção de estudos que apreendem a cultura material em suas abordagens. A tarefa nada fácil de pensar sobre concepções da paisagem é relativa à complexa diversidade de influências filosóficas nas ciências humanas. Pretendemos realizar uma reflexão em torno do termo, para apontar caminhos de estudos focados na relação das pessoas com o mundo material. Para tanto é importante enfatizar brevemente que a categoria em questão chegou a pouco tempo o status que tem hoje. O recurso aos elementos das concepções relativas ao espaço deixou de ser exclusividade da Geografia no início do século XX (MACIEL; MARINHO, 2012). De forma crescente a paisagem tornou-se significante enquanto aspecto considerável de visões do meio natural e cultural. Na sua trajetória passou ao status de objeto central de análise de diversas disciplinas. Carrega ainda a herança da égide do período moderno, pois foi por um longo tempo configurado a partir da noção de espaço capitalista oriunda da revolução industrial (CRIADO BOADO, 1993, p. 12). A definição de paisagem se modificou ao longo de vertentes que marcaram disciplinas voltadas ao estudo do meio ambiente e seres vivos. Em grande medida isso 1

aconteceu com as novas formas de entender o espaço construído, imaginado, para além do espaço apenas possuído, controlado por relações econômicas. A sucessão ou convivência das correntes teóricas influenciaram a arqueologia não somente no âmbito da descrição de regiões enfocadas em determinados estudos, mas também na caracterização do ponto de vista das pessoas estudadas, admitidas como criadoras da paisagem. Podemos pontuar uma mudança relativamente expressiva na conceituação da paisagem desde o princípio do pensamento naturalista até a gama de concepções que se tem atualmente. Contudo variadas perspectivas parecem convergir para a compreensão das relações entre a (s) sociedade (s) e os ambientes que as rodeiam. Como matéria de investigação de estudos da cultura material, em abordagens da arqueologia, por exemplo, as concepções em torno da paisagem tiveram o predomínio de modelos que a admitiam enquanto forma final, ausente de interações com os seres humanos, principais agentes de sua construção. Os modos de pensar que prevaleceram ao longo do século XX focados no produto final ainda persistem com esse direcionamento. O outro lado da moeda é a ampliação das perspectivas sociais que ocorreu com os olhares que influenciaram abordagens da participação ativa tanto dos indivíduos quanto do meio ambiente na construção da paisagem. Há algum tempo a paisagem deixou de ser entendida como “pintura” e passou a ser o foco do estudo de várias áreas do conhecimento. Tem sido exposta às mais diversas correntes teóricas e metodológicas, de onde surgem maneiras de atribuir conceitos, sejam por arqueólogos, geógrafos, arquitetos, poetas. A arqueologia e a geografia humana, nas últimas décadas do século XX, agregaram a teoria social nas definições do espaço, a partir daí concebido como feição socialmente produzida. Lições provenientes da antropologia também contribuíram para a mudança substancial das admissões de que os organismos naturais, as coisas do meio ambiente, são dotados de participação ativa nas relações espaciais com os seres humanos. Essas intricadas renovações, cujo cerne está no rompimento da oposição entre sujeito e objeto, são subjacentes aos caminhos interdisciplinares que dotam a visão ampla da relação dos seres humanos com o espaço social, de forma a associar desde as escolhas culturais aos contornos e às modificações do ambiente natural na concepção da paisagem. 2

Cabe ressaltar conceitos de paisagem recebem a influência dos fenômenos histórico-culturais que atendem necessidades de cada área científica de maneira específica. Como exemplo tem-se as abordagens atuais da Arqueologia que a compreende como uma construção a partir de intervenções humanas. Conforme enfatizamos acima, tem se destacado em estudos cujo objeto é o mundo material a admissão das relações das pessoas com as coisas. Essa noção é própria da consideração de que os elementos ambientais são objetos dos sentidos externos que captam a formação específica dos contornos de lugares materializados pela visão, audição, olfato e tato. Assim essas sensações corporais tornam-se imprescindíveis para perspectivas paisagísticas cuja substancial construção é inerente à bagagem cultural dos indivíduos que a tornam palpável, reconhecível (INGOLD, 1993, p. 154-157). Esses sentidos chamam atenção para as maneiras diferentes de percepção da paisagem, por meio de distintas relações sensoriais com o seu intrínseco espaço e aspectos simbólicos que se somam ao seu conteúdo. A concepção é dependente da perspectiva do observador, é uma construção mental de quem se apropria das parcelas que a compõem. Dizer que os principais aspectos que influenciam a concepção da paisagem são subjacentes ao pensamento do (s) indivíduo (s) que lhe (s) atribui significados não resume a questão. Por exemplo, se tomarmos o aspecto temporal para iniciarmos uma abordagem que contextualiza a percepção de um grupo de pessoas teríamos limites demarcados em um intervalo de tempo. Mas as formas de apreensão provenientes de relações de poder que levam à conformação de espaços, não deveriam se somar na sua discriminação? E as contradições e outros interesses que mostrariam pensamentos únicos ou divergentes dentro do próprio grupo? Como interpretar o significado da paisagem se existe mutabilidade de tantas de suas características ao longo do tempo. Para Christopher Tilley (1994, p. 8-9) indicar noções relativas a uma abordagem humanística é apenas um ponto de partida que deve ser considerado como necessário para documentar percepções da paisagem. Essa maneira de admitir tais estudos é hoje bastante disseminada e agarra-se na desconstrução de pensamentos ditos científicos. Entendemos que para melhor compreender a visualização da paisagem devemos partir dos processos de transmissão dos saberes, através da aprendizagem, apreciação e valorização que ocorrem através da mobilização dos sentidos. Sua origem parte do conhecimento dos seres humanos e esses indivíduos também são complementares aos 3

lugares criados mentalmente (INGOLD, 1993, p. 156 e 161-164). A paisagem como porção da superfície da Terra é entrelaçada com os aspectos experimentáveis, relacionados a momentos vividos, atribuídos à identidade de um determinado local, pujantes para mostrar mudança recorrente nesse espaço. As diversas paisagens existentes na superfície terrestre são formadas por elementos físicos, químicos, biológicos integrados, por vezes indissociáveis, repletos de significados e dispostos em categorias espaciais relacionadas ao território. Esse último, espaço delimitado para fins de posse, abrange uma parte essencial dos sentidos vinculados às ações das pessoas, mas não se define enquanto paisagem. Melhor ainda, nele estão porções da identidade relativas à formação dessa última. E outros elementos interagem como conteúdo associado à ideia de que os processos de formação da identidade são perspicazes para visualizar a formação de espaços sociais. Estudar a paisagem implica reconhecer a existência de diferentes percepções, uma vez que sua leitura é vinculada aos processos vividos por cada grupo ou pessoa. As leituras passam por diferentes olhares, com formas distintas de visualização, que por sua vez é condicionada pela capacidade dos indivíduos de interpretar os símbolos existentes, associada à sua relação com outras pessoas e coisas que envolvem sua existência. Um aspecto relevante para essa discussão é a observação do avançado estado de modificação dos mais diferentes biomas pela ação antrópica, responsável por originar o elemento de transformação da paisagem de caráter mais constante e frequentemente vitorioso diante dos desafios do meio físico. Influência da economia globalizada, anseios de fixação no território, construção de empreendimentos, apropriação dos recursos naturais para a indústria, dentre outros exemplos da manipulação humana dos recursos naturais são exemplos de fatores que condicionaram intensas transformações da paisagem nos últimos séculos interessantes para o conhecimento de espaços sociais criados e amparados pelos pensamentos recorrentes nos diferentes períodos. Charles Baudelaire (1821-1867) em alguns poemas da série “Quadros Parisienses’” de “As Flores do Mal”, passeia por diversos ambientes criados pela sociedade. Por exemplo, nos poemas de Paisagem ou O cisne existem elementos que compõem uma paisagem em mudança ao retratar o processo de modernização na cidade de Paris marcada por ruínas, construções, pela chegada das fábricas, chaminés e torres, dentre outros elementos.

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Esse tipo de percepção é notório em abordagens econômicas e políticas, um dos meios de caracterização da paisagem que por muito tempo mostrara-se hegemônico. Mas interessa-nos o foco dos estudos mais recentes, de conteúdo muito significante, detido nas percepções das pessoas, no seguimento da contextualização dos lugares relacionados à experiência dos indivíduos (KNAP; ASHMORE, 1999, p. 1-5). A grande contribuição de temas relativos ao estudo da materialização de ambientes construídos em sua intermediação com o que foi formado pelo meio ambiente é oriunda da perspectiva de visões da existência da paisagem com base na condição humana. Com o abandono das abordagens funcionalistas, também economicistas, surgiram caminhos de pesquisar as características sociais e culturais da materialização do espaço próprios da aceitação de que as representações humanas do ambiente sociocultural são baseadas na formação social das pessoas, então inerentes ao tempo e lugar de sua existência. Vamos visualizar um exemplo útil disso. No período pré-histórico pode-se constatar que a reocupação do mesmo espaço por diversas populações ao longo dos anos, está intimamente relacionada ao processo de construção de monumentos para demarcar a posse da localidade por cada povo. Esse processo de constante reocupação se consolida como palimpsesto, na Arqueologia. Na Pré-história europeia consegue-se perceber que a concepção de paisagem esteve fortemente ligada ao conceito que cada população tinha sobre si e sobre o mundo. É uma noção relacionada à construção da realidade a partir dos conhecimentos existentes naquele período, que podem ser relativos a outros tempos. Lugares eram, são e serão possuídos, no sentido de apropriação, pelas maneiras em que as pessoas dali concebem suas características. Nesse sentido podemos entender que a paisagem também pode ser utilizada como forma de controle sobre a locomoção humana no território. Um exemplo dessa visão são os Castros europeus. Os Castros consistem em grandes estruturas fortificadas, construídas no topo dos morros, onde populações préhistóricas europeias viviam. A localização dessas estruturas em lugares tão altos e impróprios para populações com grande mobilidade, foi motivada como um instrumento de controle sobre o território, pois assim as pessoas conseguiam visualizar quem chegava e saia pelos rios ou pelos vales. Derivam da condição do contexto as características de construção mental dos lugares, sejam eles apreendidos no seu estado permanente ou manipulados pelas mãos 5

dos seres humanos. Essas mudanças são apropriadas na forma de concepção da paisagem enquanto matéria do entendimento do meio ambiente em que os indivíduos atuam. E está atrelada à formação dos lugares enquanto espaços construídos culturalmente. Nesse sentido, conforme mostra Milton Santos em uma de suas obras clássicas (2006, p. 66-71) as características de tempo e espaço devem ser avaliadas, pois existe flexibilidade na formação da paisagem relativa ao período em que ela é concebida. É importante reconhecer que não é apenas do ambiente edificado que surgem as concepções que estamos tratando. Alguns critérios são imprescindíveis para caracterizar os conjuntos de formas do meio ambiente apreendido. E o primordial, a visão do (s) sujeito (s) que delimita seus espaços característicos, é genuinamente demarcado no período e lugar em que vive(m). Tal como no espaço urbano, o conteúdo do ambiente natural recortado é decidido pelos observadores. Tais características marcadas pelo conhecimento humano são então próprias do processo histórico, condicionadas pelas categorizações espaciais que o conjunto de indivíduos produz ao longo de sua vida. As maneiras de criar são vitais e relativas às escolhas culturais do momento em que são realizadas. E como ocorrem essas decisões? A resposta é inerente à percepção da diversidade de significados presentes na sociedade. As pessoas fazem mentalmente seus lugares existirem através da experiência cotidiana, nas deambulações do trabalho, lazer, ritualização e outros eventos comunitários. O mesmo sentido é real para aqueles que produzem seus estudos. O objeto e a teoria são pensados, apropriados e a formação do diálogo é possível com a notória opção dos pesquisadores em rumar por certo caminho. Tratamos de um tema essencial da existência humana, a maneira como as pessoas criam seus ambientes. Essa característica da natureza humana é pontuada por Felipe Criado Boado como uma das principais implicações em estudos da Arqueologia da Paisagem (1993 p, 11) livre de ditames impostos por implicações que impedem avaliar o lado humano das percepções de algo fundamental, a maneira como as pessoas materializam seus ambientes de vivência. O alargamento das possibilidades de interpretar a paisagem é um dos grandes ganhos dentro da arqueologia, de alta significância para a produção do conhecimento de povos de diferentes períodos da história.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUDELAIRE, C. O cisne. In: As Flores do Mal. 5ª ed. Tradução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 327 - 328. CAVALCANTI, A.; VIADANA, A. G. Organização do espaço e análise da paisagem. Rio Claro, SP: UNESP, 2007. 107 p. CRIADO BOADO, F. Límites y possibilidades de la Arqueología del Paisaje. In: SPAL, Revista de Préhistoria y Arqueología de la Universidad de Sevilla, n. 2, Secretariado de Publicações de la Universidad de Sevilla, p. 9-55, 1993. INGOLD, T. The temporality of the landscape. In: World Archaeology, v. 25, n. 2, Conceptions of time and ancient society, oct. 1993, p. 152-174. KNAP, B.; ASHMORE, W. Archaeological landscape: constructed, conceptualized, and ideational. In: ASHMORE, W.; KNAP, B. (Ed.) Archaeologies of Landscape: contemporary perspectives. Massachusetts/Oxford: Blackwell Publishers, 2003, p. 1-32. MACIEL, A. B. C.; MARINHO, F. D. P. Análise do conceito de paisagem na ciência Geografia: reflexões para os professores do ensino básico. In: Revista Geonorte, edição especial, v. 1, n. 4, p.13-22, 2012. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. edição, 2ª reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. TILLEY, C. A Phenomenology of Landscape: places, paths and monuments. Berg: Oxford, 1994. SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo: Nobel, 1985. SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Editora Hucitec, 1994. SANTOS, Milton. Metamorfose do espaço habitado. São Paulo: EDUSP, 2008. [HUCITEC, 1988].

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