Capítulo 1 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DOS ESTADOS UNIDOS

July 22, 2017 | Autor: G. Antoniazzi Ron... | Categoria: Military History, Military Science, Strategy (Military Science), International Relations, International Relations Theory, International Studies, International Security, War Studies, Political Science, International Political Economy, Economics of Innovation, United States In The World, Military and Politics, United States History, Institutions (Political Science), United States Foreign Policy, United States, Defense and National Security, Relações Internacionais, Estados Unidos, Segurança Internacional, Defense and Strategic Studies, Estudos de Defesa, Defesa Estratégica, Segurança Estratégica, Segurança Externa, Segurança Interna, Segurança Pública, Gestão Estratégica Internacional, Sistema Interestatal, Guerras e Conflitos, Poder, Ciência Política, Sociologia, Antropologia., Politica Exterior de los Estados Unidos, International Studies, International Security, War Studies, Political Science, International Political Economy, Economics of Innovation, United States In The World, Military and Politics, United States History, Institutions (Political Science), United States Foreign Policy, United States, Defense and National Security, Relações Internacionais, Estados Unidos, Segurança Internacional, Defense and Strategic Studies, Estudos de Defesa, Defesa Estratégica, Segurança Estratégica, Segurança Externa, Segurança Interna, Segurança Pública, Gestão Estratégica Internacional, Sistema Interestatal, Guerras e Conflitos, Poder, Ciência Política, Sociologia, Antropologia., Politica Exterior de los Estados Unidos
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Descrição do Produto

RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS 2012/2

José Miguel Quedi Martins (Org.)

Relações internacionais contemporâneas 2012/2: estudos de caso em política externa e de segurança

Primeira edição

Porto Alegre, 08 de maio de 2013.

Série Cadernos ISAPE

Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) Rua 24 de outubro, 850/310 Bairro Moinhos de Vento CEP: 90510-000 Porto Alegre, RS, Brasil Fone: (51) 30846175 Capa: Rômulo Barizon Pitt Editoração: Bruno Gomes Guimarães Revisão técnica: Bruno Magno, Pedro Vinícius Pereira Brites, Athos Munhoz Moreira da Silva e Walmir Françoes Júnior Impresso pela Liro Editora Livre

© 2013 Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia

Martins, José Miguel Quedi, 1964 Relações internacionais contemporâneas 2012/2: estudos de caso em política externa e de segurança / organizado por José Miguel Quedi Martins. — Porto Alegre, Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE), 2013. vi 198p. ; 21cm ISBN 978-85-65135-06-1 (impresso) ISBN 978-85-65135-07-8 (ebook) 1. Relações internacionais 2. Política externa 3. Segurança (militar) CDD 327

Sumário Agradecimentos

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Apresentação José Miguel Quedi Martins

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Introdução Marco Cepik

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Capítulo 1 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DOS ESTADOS UNIDOS 7 André França, Bruna Jaeger, Francine Ferraro, Giordano Bruno Antoniazzi Ronconi, Guilherme Simionato, Henrique Acosta & Lucas Santos Capítulo 2 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA 31 Giovana Esther Zucatto, João Arthur da Silva Reis, João Gabriel Burmann da Costa, Marília Bernardes Closs, Mirko Levis Gonçalves Pose, Osvaldo Alves Pereira Filho & Renata Schmitt Noronha Capítulo 3 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA RÚSSIA 48 Ana Paula de Mattos Calich, Jéssica da Silva Höring, Klei Medeiros, Leonardo Albarello Weber, Wagner Augusto Silveira & Willian Moraes Roberto Capítulo 4 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA ÍNDIA 72 Angela Gallina Brandalise, Helena Marcon Terres, Júlia Simões Tocchetto, Livi Gerbase, Luiza Costa Lima Corrêa, Matheus Machado Hoscheidt & Pedro Felipe da Silva Alt Capítulo 5 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO JAPÃO 93 Eric Feddersen, Lucas da Rocha Rodrigues, Victor Merola & Vinícius Lanzarini

Capítulo 6 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA ALEMANHA 109 Laís Helena Andreis Trizotto, Mariele Laís Christ, Patrícia Assoni Grechi & Luísa Saraiva Bento Capítulo 7 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA FRANÇA 126 Andressa Cristina Gerlach Borba, Luciana Costa Brandão, Maximilian Dante Barone Bullerjahn, Marina Soares Scomazzon, Natasha Pergher Silva & Valentina Assis Arnt Andreazza Rossi Capítulo 8 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO REINO UNIDO 142 Glaúcia de Siqueira Noronha, Jéssica Delabari de Lima, Marina Lua Vieira dos Santos & Matheus Schneider Gebhardt Capítulo 9 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA TURQUIA 157 Aércio Artur Mateus, Anaís Brum Medeiros, Bernardo Rolim Soares, Gustavo Hack de Moura, Maud Trutta, Pedro Perfeito da Silva & Pedro Hercz Merlo Capítulo 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS: RECOMPOSIÇÃO HEGEMÔNICA E INSERÇÃO INTERNACIONAL DO BRASIL 174 José Miguel Quedi Martins

Agradecimentos Agradecemos à União Federal à qual dirigimos todo o nosso esforço de pesquisa, pois, sem ela, a existência deste trabalho não teria nenhum significado. Reconhecemos, também, a importância dos seus órgãos de fomento, que através de suas políticas de financiamento, viabilizaram a execução desta pesquisa. Especificamente às seguintes instituições: à UFRGS, por intermédio da Pró-reitoria de Pesquisa (PROPESQ), pelas bolsas de iniciação científica; à Pró-reitoria de Extensão (PROREXT), pelas bolsas de extensão que viabilizaram as atividades de extensão, a orientação dos grupos de trabalho e a gestação dos textos do livro. Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa do programa de incentivo à iniciação científica Jovens Talentos para a Ciência. Além dessas, agradecemos à Faculdade de Ciências Econômicas, ao Departamento de Economia e Relações Internacionais; ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais e, especialmente, ao CEGOV, pela parceria e estímulo constante. Naturalmente, agradecemos ao Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia, pelo envolvimento ativo na formulação, produção, editoração e publicação dessa obra. Agradecemos, ainda, aos Professores Paulo Visentini, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais; Marco Cepik, Diretor do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo; André Reis, Coordenador do Curso de Graduação de Relações Internacionais, pelo incentivo à produção e autonomia intelectual discente. Os colaboradores Bruno Magno, Helena Terres, Walmir Françoes, Athos Munhoz, João Gabriel Burmann, Luiza Corrêa, João Arthur Reis, Giovana Zucatto, Laís Trizotto, Gustavo Hack, Pedro Brites, Natasha Pergher, Osvaldo Alves e Pedro Perfeito pelo apoio fundamental na finalização do livro. Agradecemos também a Bruno Guimarães, responsável pela editoração, e a Rômulo Pitt, que desenvolveu a arte da capa. Por fim, prestamos gratidão aos estimados familiares e amigos que foram privados da companhia dos alunos e envolvidos para que esse projeto fosse realizado. Os Autores Porto Alegre, abril de 2013. 1

Apresentação Preliminarmente, cabe reconhecer que este Caderno é tão somente o que promete: uma compilação dos relatórios finais da disciplina de Relações Internacionais Contemporâneas do curso de graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em suma, dos trabalhos feitos em sala de aula. Quaisquer que sejam suas limitações, acredita-se que sejam perfeitamente compreensíveis. Os trabalhos servem para testemunhar o esforço empreendido na formação do internacionalista na UFRGS. Como Professor que ministrou a disciplina e que organizou a publicação, assumo a responsabilidade por todos eventuais equívocos ou omissões contidos nas análises. Também gostaria de reconhecer que o mérito da realização das pesquisas, das formulações e do esforço de análise cabem exclusivamente aos seus autores — os estudantes da turma de Relações Internacionais Contemporâneas do semestre 2012/2. A todos, agradeço por seu empenho na disciplina e, além disso, por sua dedicação para viabilizar este livro, o que lhes custou horas de sono, lazer e convívio com aqueles que lhes são caros. A Universidade procura, através de seus cursos de graduação em Relações Internacionais, do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI) e das atividades de pesquisa e consultoria do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo (CEGOV), promover a formação integral do profissional e do cidadão. Como tal, projeta-se uma multiplicidade de valores: o autossacrifício como condição para o exercício da verdadeira solidariedade; a autonomia intelectual como fundamento da cidadania e a importância da iniciativa; o empreendedorismo, imprescindíveis para a atuação profissional no setor público e privado. Em suma, a Universidade procura preparar o indivíduo para a sua inserção na transição tecnológica e na sociedade do século XXI. Em nosso país infelizmente disseminou-se uma cultura de minoridade política. Trata-se do Estado — e, por extensão, de todos os ramos do serviço público, entre os quais a Universidade — como uma fonte permanente e inesgotável de recursos. A cidadania parece ter perdido a noção de que aos direitos correspondem responsabilidades, e que é através do exercício do dever, da prestação dos serviços para o bem comum, que se atinge a maioridade política. O adolescente chega ao 2

estado adulto, o homem se converte em cidadão e adquire o seu sentimento de pertencimento à comunidade política: o Brasil. Nesse sentido, o lançamento do livro “Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2” sugere um novo momento nas relações entre docentes e discentes: mais do que reivindicar, trata-se de realizar, fazer acontecer. É enaltecedor ver que os alunos assumem sua parcela de responsabilidade em sua própria formação e, de forma solidária, auxiliam a incrementar a proposta pedagógica criando, através dessa linha de publicações, uma conexão entre a sala de aula e o mercado de trabalho. Com isso, o Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) encorpora-se a própria proposta didático-pedagógica, chegando à sala de aula, estimulando a produção intelectual no âmbito da graduação e disseminando desde cedo a cultura da solidariedade, do empreendedorismo e da autonomia intelectual. Em suma, incentivando os futuros internacionalistas a tomar parte na construção de nosso país. A iniciativa desta publicação demonstra o esforço do corpo discente em contribuir para a afirmação do perfil da profissão de internacionalista. Trata-se de efetuar a análise das Relações Internacionais para os setores público e privado, contribuindo nos diferentes níveis de governo para formação de parcerias internacionais e estimulando, no setor privado, a internacionalização de empresas e o comércio exterior. Sobretudo, permitir que cada um dê sua contribuição para a inserção internacional do Brasil. Por isso, saúdo o ISAPE e os autores dos trabalhos aqui expostos, em particular a turma 8 do curso de Relações Internacionais da UFRGS. Esperamos que os textos sirvam como testemunho, para os próprios graduandos, acerca dos valores que adquiriram em sua formação: a primazia do filtro do interesse nacional, a afirmação da soberania do Brasil ao qual deve submeter-se todo esforço de análise; a importância do processo de integração da América do Sul e a relevância da cooperação inter-regional, materializada no eixo sul-sul. Mais importante que o mérito da análise, cumpre ao internacionalista guardar seus valores, saber quem é e a quais interesses serve. José Miguel Quedi Martins

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Introdução Este volume reúne os trabalhos de conclusão elaborados no segundo semestre de 2012 pelos alunos da disciplina de Relações Internacionais Contemporâneas, no curso de graduação em Relações Internacionais da UFRGS. A disciplina foi ministrada pelo professor José Miguel Quedi Martins, meu amigo de longa data, quem também estimulou seus alunos a compilarem seus trabalhos aqui. Os textos aqui reunidos, despretensiosa porém responsavelmente, dão testemunho do esforço empreendido por discentes e docentes na formação do profissional de Relações Internacional na UFRGS. Mas, afinal, o que são Relações Internacionais? Pode-se dizer que essa disciplina tem como um de seus principais objetivos o estudo do comportamento das unidades soberanas, os Estados, que compõem o Sistema Internacional. E o que é Sistema Internacional? É possível conceituá-lo como a matriz em que se dão as relações entre os Estados. Importa entender que o Sistema Internacional se caracteriza tanto por seu número de polos (polaridade ou equilíbrio), quanto pelos padrões de comportamento que estes mantém entre si (polarização). Ambos (polaridade e polarização) constituem o cerne da política Internacional que, como nos ensina Kenneth Waltz, é a política das grandes potências. Mas, e o que são grandes potências? Bem, cada grande potência corresponde a um polo no sistema internacional. Uma dimensão central da estrutura do Sistema Internacional é dada pelo número de polos, ou seja, de grandes potências. Podemos dizer que, se o Sistema Internacional é dominado por uma única potência (nesse caso uma superpotência), ele é unipolar; se a hegemonia do sistema é disputada por duas grandes potências, ele é bipolar; e caso a direção do sistema fique a cargo de três ou mais potências, ele é multipolar. Qual dessas formas de equilíbrio é a mais estável? Qual é a vigente hoje? Os teóricos dividem-se a esse respeito. Suas conclusões refletem, ao menos em parte, suas inclinações individuais ou preferências nacionais. Para William Wohlforth, por exemplo, preferível é o sistema unipolar que, no entender do autor, é a forma de equilíbrio atualmente vigente e os indicadores econômicos internacionais indicariam indisputável preponderância dos Estados Unidos. Kenneth Waltz, por sua vez, acredita que a bipolaridade é a forma de equilíbrio mais estável, posto que mais simples. Ele reconhece, contudo, os traços pronunciados 4

de unipolaridade do sistema e considera que, atualmente, ele se inclina para a multipolaridade. Já para Henry Kissinger, a multipolaridade é apontada como a forma mais desejável e estável de equilíbrio. Ele a associa ao chamado Concerto Europeu, que assegurou o século de paz entre 1818 e 1914. O autor também aponta a proeminência dos Estados Unidos e da China, mas reconhece as capacidades da Rússia, a importância da Europa e dos novos polos de poder emergentes. Quem tem razão? Esse tem sido o principal dilema, prático e teórico, no estudo das Relações Internacionais no último quarto de século. Desde o final da Guerra Fria, o Sistema Internacional tem assistido a formas híbridas e sobrepostas de equilíbrio. Assim, dizia-se, com alguma propriedade, que o mundo era unipolar do ponto de vista militar, bipolar do ponto de vista econômico e multipolar do ponto de vista político-cultural. Contudo, hoje, com a ascensão econômica da China, o surgimento da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e o declínio europeu simultâneo à ascensão dos BRICS, novas realidades exigem que os futuros profissionais da área tenham capacidade de produzir respostas originais, ou pelo, sejam capazes de fazerem perguntas abrangentes e relevantes. Afinal, a ausência de resposta para a pergunta sobre “quantos polos existem no sistema internacional contemporâneo?” implica reconhecer que o sistema não está em equilíbrio. Se nenhuma forma de polaridade é claramente dominante, então estamos diante de uma crise hegemônica, em que a ascensão e o declínio de potências dificultam caracterizar a hierarquia internacional. Grosso modo, estamos diante de duas possibilidades, ou a recomposição hegemônica, mediante concertação entre as grandes potências e uma liderança com novo conteúdo ético, ou algum tipo de confrontação militar que cumpra o papel de guerra central, definindo a hierarquia do sistema. Desde o surgimento do sistema internacional de estados após os Tratado de Vestfália (1648), entretanto, todas as recomposições da liderança hegemônica foram realizadas mediante a guerra, não de forma pacífica. Como regra, a guerra central tem sido a forma de redefinir o equilíbrio, quando o declínio e a ascensão incerta de potências multiplicam o número de polos para além de uma governança possível. Por outro lado, os humanos e suas criaturas, os Estados, têm sido capazes de criar soluções e engendrar fórmulas que não aquelas consagradas ou conhecidas em várias áreas. Permanece incerto, pois, como se dará a definição do equilíbrio internacional: se por uma 5

recomposição hegemônica lenta e pactuada, ou se através da guerra central — ainda que, dada a capacidade destruidoras dos arsenais termonucleares, esta guerra central possa ser travada de forma indireta, através das guerras locais aparentemente desconectadas entre si. A dificuldade envolvendo o número de polos do Sistema Internacional refletiu-se nas escolhas dos estudos de caso, que também foi constrangida pelas limitações do calendário acadêmico. Nesse caso, a ausência mais sentida é a do Brasil que, contudo, esteve no cerne de todas as preocupações. Desde a agenda de temas estudados pelos autores (estudo da infraestrutura, comércio exterior, transição tecnológica) até as preocupações envolvendo as formulações de cenários, todas foram presididas pelo crivo do interesse nacional brasileiro. Parabéns aos autores e ao professor coordenador pela iniciativa. Marco Cepik

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Capítulo 1 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DOS ESTADOS UNIDOS André França Bruna Jaeger Francine Ferraro Giordano Bruno Antoniazzi Ronconi Guilherme Simionato Henrique Acosta Lucas Santos Introdução Este capítulo procura estudar e definir tendências da política externa e de segurança dos Estados Unidos, polo líder do Sistema Internacional. Parte-se da hipótese de que o país se alterna, historicamente, entre dois conteúdos éticos: a Doutrina Monroe e o Destino Manifesto. Dessa dualidade surgem cenários possíveis para os próximos anos, cada qual em conformidade com um dos tipos ideais sugeridos ou uma combinação dos dois tipos: (a) comando estadunidense de um mundo multipolar nucleado regionalmente, exercido através do exemplo e do conhecimento; (b) liderança através da força, do unilateralismo e da disseminação do caos; e (c) concomitância de práticas ora semelhantes à Doutrina Monroe, ora compatíveis com o Destino Manifesto, alternando-se entre buckpassing e burden-sharing e configurando um cenário intermediário entre (a) e (b). A análise das características gerais do país permite compreender quais seus desafios atuais e futuros, de modo que ela se torna fundamental para entender o atual momento em que os EUA se encontram e as suas potencialidades futuras. O vasto território norteamericano (3º no mundo) corporifica um Estado Região capaz de se voltar tanto para o Oceano Atlântico quanto para o Pacífico. Mesmo com os seus mais de 12 mil quilômetros de fronteiras, os EUA não se ressentem de ameaças terrestres, beneficiando-se do poder parador da água de dois oceanos (MEARSHEIMER, 2007). Além disso, os EUA 7

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foram capazes de tirar proveito também de suas capacidades produtivas e de construir a maior marinha do mundo — a única que, indubitavelmente, pode ser considerada de águas azuis. Os EUA possuem o maior PIB do mundo — aproximadamente US$ 14,5 trilhões (2011). O setor de serviços responde por 79,6% do PIB, a indústria por 19,2% e a agricultura 1,2%. Contudo, devido a crise de 2007, o comportamento da economia tem sido objeto de debate. Em termos absolutos, o PIB se mantém muito alto, mas tem apresentado uma tendência declinante, com taxas de crescimento cada vez menores. Em 2009 o PIB apresentou crescimento de 3,1%, caindo para 2,4% em 2010 e, finalmente, de apenas 1,8% em 2011 (U.S. BUREAU OF ECONOMIC ANALYSIS, online). 1. DUALIDADE: EXPLICANDO A TIPOLOGIA É possível estabelecer dois tipos ideais que formam o dualismo das relações internacionais dos EUA — decorrentes da Doutrina Monroe e do Destino Manifesto. O primeiro tipo ideal representa os valores do autogoverno, de promoção da cidadania e de exercício da liderança pelo exemplo. Os princípios básicos do direito dos povos ao autogoverno e à autodeterminação foram expressos ainda em 1823, pelo presidente James Monroe. O segundo tipo ideal tem características de dominação civilizatória, derivada da crença de que o povo dos EUA é excepcional, está destinado a guiar o mundo. Sua formulação se encontra em artigo do jornalista John O'Sullivan e, por isto, daremos a este tipo ideal o nome de Destino Manifesto — o título de seu artigo (MANTOVANI, 2006). Ambos os tipos ideais perpassam a história dos EUA e incorporamse em sua ação de política externa até os dias de hoje. São tipos ideais porque na realidade misturam-se, intercambiam-se e mimetizam-se. Contudo, na medida em que encarnam polaridades opostas da alma estadunidense, servem como instrumento para se aferir em que direção vai a política externa e de segurança dos EUA. 2. BREVE HISTÓRICO O texto escrito pelo federalista Alexander Hamilton no final do século XVIII já demonstra a importância que a Marinha viria a ter para o 8

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país, com sua capacidade de projetar poder em qualquer lugar do planeta e de carregar e transportar elevadas tonelagens de suprimentos. Hamilton enfatiza a importância de uma Marinha forte para afastar as potências europeias da região do Caribe. Em 1823, o presidente James Monroe, ao lançar a Doutrina Monroe, explicitou a ideia da regionalização sob a égide dos Estados Unidos e afirmou o repúdio a uma nova colonização europeia. Desta forma, almejou-se a formação de uma esfera de influência sobre as Américas, o que veio a impactar os processos de independência ocorridos por volta deste período. Por sua vez, a conquista do oeste norte-americano se deu em conformidade com a ideia de Destino Manifesto, segundo a qual Deus havia fixado aquele imenso território para o povo estadunidense. Em 1848, minas de ouro foram descobertas na Califórnia e Karl Marx (1850) escreveu que este fato representaria o deslocamento do centro de gravidade mundial da Inglaterra para a América do Norte, o que de fato veio a acontecer. É nesse período que os EUA se estabeleceram como um Estado Região que abarcava todo um continente e, sem rivais terrestres ameaçadores, viram-se beneficiados pelo poder parador da água dos oceanos — que teriam de ser transpostos por qualquer potência capaz de atacá-los. Na Guerra Hispano-Americana, em 1898, coloca-se em prática a ideia de defesa da região, concebida pela Doutrina Monroe. Mais do que isso, a conflagração representou a chegada efetiva dos estadunidenses ao Pacífico, graças à conquista das Filipinas e de outras pequenas ilhas. Com a política de portas abertas em relação à China, os EUA marcam de vez sua presença no Oriente e, ao manifestar desejo de aumentar sua influência na região, expandem a Doutrina Monroe para além das Américas.(CUMMINGS, 2009; SENISE, 2008) Percebe-se na Carta do Atlântico, de 1941, vários princípios do nosso tipo ideal de Doutrina Monroe, com ideias de autogoverno e de não-conquista de outros países (novos colonialismos). Por isso, entendese a Carta como a globalização da Doutrina Monroe. Mais adiante, no período da Guerra Fria, a Doutrina Nixon expressa várias características da Doutrina Monroe, como a negação do Império Americano, ao viabilizar o século do Pacífico em cooperação com os novos países industrializados (NICs), como — e principalmente — a 9

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China.(MANTOVANI, 2006) A ascensão neoliberal, na década de 1970, cujo ícone é Ronald Reagan, e a neoconservadora da década de 2000, simbolizada por George Bush, têm em comum o retorno ao Destino Manifesto. Desta vez, porém, em uma forma específica dele, a partir da interpretação das ideias de John Boyd. Ele foi um defensor da guerra moral que se baseia em atordoar o adversário ininterruptamente, disseminando o caos sempre que possível e, a partir disso, gerenciar esse caos, de acordo com o interesse dos EUA. (OSINGA, 2005) Como exemplos dessas práticas estão o financiamento de guerrilhas no Afeganistão na década de 1970 e as Guerras do Golfo. O resultado final da efetivação das ideias de Boyd seria a condição de guerra permanente.

3. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS A desigualdade de renda nos EUA — que cresce desde a década de 1970, mas que apenas virou tema de debate político após a crise de 2007 — tem produzido como efeito o surgimento de movimentos políticos de uma classe média que se vê diminuir em número e que busca uma forma de reverter essa tendência. A partir deste problema comum, nasceram dois movimentos com alinhamentos políticos tão incompatíveis quanto o Tea Party e o movimento Occupy. Cabe ressaltar aqui que ambos questionam de alguma forma o papel político da União, deslegitimando a ação do governo federal. O Tea Party o faz através da luta por um Estado mínimo, com baixíssima cobrança de impostos; o Movimento Occupy, pelo ideal de gestão local através da democracia direta. Estes movimentos são a materialização da divergência do conteúdo ético no seio da classe social-símbolo dos EUA. De um lado, a parte da população que crê que o Estado mínimo e a Livre Iniciativa são, mais do que uma resposta para a crise, os verdadeiros valores da América; de outro, a parte que acredita nos programas governamentais de transferência de renda e no Estado de Bem-Estar Social, mesmo que mínimo, como meios de promover a justiça social que já caracterizou sua

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nação . O que se seguiu a derrota de Mitt Romney à presidência, em uma eleição cuja vitória era dada como certa pelos Republicanos, foi o questionamento sobre os rumos que a oposição terá nos próximos quatro anos de governo: manterá e reforçará seu alinhamento com as alas mais à direita do partido ou rumará ao centro? O que se pode perceber pelos formadores de opinião de caráter mais conservador2 é a convicção de que a atual linha do partido deve se manter, o que acabará por dificultar a aprovação de medidas por parte do Executivo no Congresso. Ao mesmo tempo, comprovou-se a impossibilidade demográfica dos Republicanos voltarem a eleger presidente contando apenas com os votos de protestantes brancos da zona rural3. Surge aí um desafio para um partido que até agora vinha abraçando causas muitas vezes racistas e xenofóbicas: conquistar as minorias, em especial os latinos. A própria consciência do partido quanto a esta realidade indica que seu alinhamento com as forças do Tea Party deve se dar enquanto durarem os problemas econômicos dos EUA (visto que apoiam as mesmas medidas econômicas frente a crise) e que, quando o debate envolver temas de caráter nacional, devem surgir atritos entre os dois. Na esteira das eleições americanas, outro assunto que ganhou atenção da mídia foram as petições feitas no canal online oficial da Casa Branca pela secessão de diversos estados da União. Apesar da baixa adesão — as assinaturas representam cerca de 0,46% dos habitantes dos oito Estados que atingiram o mínimo de 25 mil assinaturas4 — o que merece nossa atenção é o fato das petições apontarem um suposto nãocumprimento do papel concernente à União. Este movimento soma-se ao empreendido pelo Tea Party e o Occupy no questionamento do papel da Federação. Ao mesmo tempo, os Estados “secessionistas” possuem 1

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Para uma interpretação conservadora deste fenômeno, consulte Brooks, Americas New Culture War. Ver Pearce, The Future Rise of the Grand Old Party, Huffington Post; Antle, After Romney's loss, Republicans need a rethink but not reinvention, The Guardian. Para declarações de Republicanos moderados sobre a necessidade de abraçar as mudanças demográficas no Estados Unidos, ver as notícias veiculadas em The Raw Story e The New York Times. Cálculo feito pelos autores com base no número de assinaturas no canal online petitions.whitehouse.gov e nos dados do censo de 2010 disponibilizados pelo portal do U.S. Census Bureau.

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histórico de problemas sociais com negros, hispânicos e mulheres — sugerindo que talvez a divisão do conteúdo ético americano possa ser não apenas geograficamente localizável mas, eventualmente, também etnicamente identificável. Ao contrário do Brasil — em que a unidade da Federação é cláusula pétrea da Constituição — nos EUA há a possibilidade legal para que a secessão permaneça como opção política legal. Em 1868, no caso Texas versus White, a Suprema Corte julgou ilegal a secessão unilateral; mas claramente deixou aberta a possibilidade desta ocorrer pelo consenso entre os Estados ou pela revolução5. Os atuais movimentos de crítica à União refletem não somente as divergências de conteúdo ético quanto ao papel do Estado na economia, mas em última instância refletem a encruzilhada quanto à política externa e de segurança dos Estados Unidos. Mais do que o questionamento ao papel da União (expresso pelos movimentos de crítica como o Occupy, o Tea Party, os incipientes movimentos secessionistas e uma certa desconfiança do estadunidense médio com relação a seu governo), está em jogo a governabilidade do poder Executivo e sua capacidade de comandar a política externa e de segurança. Longe de se afirmar que a secessão americana se avizinha, busca-se jogar luz sobre o que parece ser um desgaste no tecido social americano. Em um cenário hipotético de médio prazo, em que a economia americana não se recupera e uma Administração decide pelo enfrentamento direto com China ou Rússia, estaria a unidade americana assegurada? Mesmo que os Estados Unidos saíssem vitoriosos de um enfrentamento nuclear, quantas bombas seriam necessárias para que um sério debate sobre a conveniência de se manter na União surgisse nos estados que hoje já sinalizam insatisfação? É legítimo supor que uma guerra total, muito provavelmente termonuclear, possa catalisar estes movimentos e promover a fragmentação dos Estados Unidos. Em um período de fortes mudanças na correlação de poderes no Sistema Internacional, questionamentos como estes — apesar de ousados — são válidos na busca de antecipar-se à mudanças significativas na ordem política e social americana que acarretem desdobramentos graves e desfavoráveis para o Brasil e o Ocidente. 5

Para o texto completo do julgamento da Suprema Corte americana, acesse supreme.justia.com/cases/federal/us/74/700/case.html

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4. ECONOMIA O principal objetivo da análise da situação econômica dos EUA é responder se há um declínio relativo na maior economia do mundo. Levase em conta o contexto pós-crise de 2007 em que o país tende à estagnação econômica, ao aumento da interdependência e a crescente pobreza interna. A crise que se iniciou em 2007 representa uma ruptura no padrão de crescimento do PIB dos EUA. Apesar de verificar-se certa recuperação, ela se apresenta lenta e insuficiente, para evitar o declínio econômico, agravado pelo ao aumento crescente da inflação. A partir da Teoria dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação de Giovanni Arrighi, pode-se dizer que os EUA têm uma economia baseada no setor financeiro, o que confere ao país sensibilidade à instabilidade suscitada pelas crises financeiras globais recorrentes. Como pode ser visto a partir da crise econômica atual, o setor produtivo estadunidense é muito mais prejudicado, pela diminuição do crédito e do investimento na indústria, somando-se à declinante taxa de lucro do país, a qual, nos países emergentes, aumenta juntamente ao investimento.(ARRIGHI, 1996; 2001) A balança comercial dos EUA se mantém há muitos anos negativa e o valor absoluto de suas exportações é baixo para uma economia da sua dimensão. Os EUA importam muitos bens de baixo valor agregado da Ásia — principalmente da China — o que contribui para o comércio intra industrial, enquanto exportam bens de alto valor agregado — majoritariamente para os países do NAFTA. Quanto ao investimento estrangeiro direto (IED), apesar de ser o país que mais faz e o que mais recebe, os EUA mantêm um saldo negativo e que tende a se agravar, visto que sua economia mostra-se cada vez menos atrativa, ao contrário dos países emergentes. Além disso, mais da metade do IED que faz e que recebe é da União Europeia, o que representa uma expressiva interdependência com uma economia ora em decadência. Por outro lado, o fluxo de IED com os países emergentes é baixo, o que vai contra a tendência global. Ainda, o IED que os EUA recebem tem baixo impacto no PIB e no emprego, o que se verifica como mais um indicador de declínio econômico. Atualmente, os imigrantes representam em torno de 14% da população total dos EUA e crescem mais do que a população nativa. 13

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Devido às piores condições de emprego e educação, representam um alto gasto para o país e uma parcela significativa do saldo negativo em Transações Correntes Unilaterais. Além disso, crescem a concentração de renda, a desigualdade e a taxa de pobreza nos EUA, o que torna muito difícil manter o nível de desenvolvimento do país, de forma a ser necessário que aumentem os gastos sociais para a recuperação econômica como um todo. Os EUA possuem a maior dívida pública do mundo, de US$ 16,4 trilhões em 2012, sendo US$ 5,3 trilhões de dívida externa. A China possui um pouco mais de US$ 1 trilhão em títulos da dívida dos EUA e aproximadamente seis vezes mais em reservas de dólares, o que garante alto grau de interdependência entre os dois países. A situação da dívida se sustenta devido ao fato de que os EUA tem a prerrogativa de controlar a taxa de juros dos seus próprios dividendos e também em razão do temor da desvalorização do dólar, o que mantém a China comprando títulos da dívida dos EUA. Entretanto, visto que os chineses compram cada vez menos (devido à possibilidade de calote), há um grande risco de aprofundamento da crise econômica atual, caso os EUA não recuperem sua economia mais rapidamente e não haja reformas no sistema monetário internacional.

5. INFRAESTRUTURA Detentores da melhor infraestrutura do mundo6, os Estados Unidos dominam os investimentos no setor quando comparados aos outros países. Contribuem para isso o governo dos Estados Unidos ser o maior investidor mundial em infraestrutura e o país hospedar o maior número de empresas da área. Os Estados Unidos também possuem uma das maiores redes de transportes — hidrovias, ferrovias e rodovias — do mundo. A rede hidroviária norte-americana é altamente desenvolvida, conectando o país de norte a sul através da bacia do Mississipi e contando com mais de mil terminais aquaviários (OLIVEIRA, 2012). Além de hidrovias e ferrovias, importam as infovias, as estradas eletrônicas do século XXI. Os EUA possuem uma notável rede de fibra 6

Dados de 2012 retirados de http://www.bentley.com/en-US/.

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óptica que atravessa grande parte do seu território e abrange a maioria dos grandes centros urbanos. Além dos benefícios, como velocidade de sinal e maior quantidade de informação transmitida, a utilização de cabos de fibra ótica em vez de cabos convencionais propicia resistência a pulsos eletromagnéticos — tanto os provenientes de ataques que utilizam diretamente esses meios, quanto os que acompanham explosões nucleares7. Essa fantástica rede permite que os Estados Unidos mantenham sua infraestrutura digital e seus sistemas de comunicação, o que aumenta a sua capacidade de reação após ataques estratégicos de grande proporção8. No que tange ao setor energético, o país é o maior consumidor de petróleo do mundo e apenas o terceiro maior produtor. Dados de 20119 indicam que os Estados Unidos apresentam um déficit de aproximadamente 9 milhões de barris diários. Esse saldo negativo poderá ser alterado, no entanto, por volta de 2020, segundo o relatório World Outlook 2012 da U.S. Energy Information Administration (EIA, online). Desse modo, os Estados Unidos se tornariam autossuficientes em hidrocarbonetos e reduziriam a sua dependência externa. Atingir esta meta depende da manter o desenvolvimento extraordinário da exploração de hidrocarbonetos não-convencionais como o shale gas e o tight oil (respectivamente, gás e petróleo extraídos de formações rochosas pouco porosas). Nos últimos anos, o governo norte-americano tem incentivado novas fontes de energia, como os biocombustíveis — especialmente o etanol produzido a partir de milho — e as energias eólica e solar. Durante o governo Obama, o consumo de energias renováveis10 passou de 7% a 10% do consumo nacional (EIA, online). Neste sentido, pode-se dizer que o projeto mais ambicioso é o do elevador espacial, uma construção que atravessa a órbita terrestre e absorve a energia do sol. A ideia, que data de 1965, partiu do britânico 7

Mais em Highland Communication Services. Benefits of Fiber Optics. Disponível em: Acesso em: 13 Jan. 2013. 8 Mais em EMANUELSON, Jerry. Nuclear Electromagnetic Pulse. Disponível em: Acesso em: 13 Jan. 2013. 9 Dados retirados de http://www.eia.gov/. 10 A fonte consultada (EIA) considera como energias renováveis a hidroeletricidade, a energia geotérmica, a energia solar/fotovoltaica e a energia eólica.

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Arthur Clarke, o qual a defendeu em um de seus livros de ficção. A NASA, o MIT e dezenas de outros centros de alta tecnologia, dentro e fora dos EUA, a trouxeram para a realidade. O custo estimado do projeto varia entre US$ 8 e 20 bilhões e seu aspecto crítico é o domínio da tecnologia de nanotubos de carbono e de propulsão a laser. Estejamos a anos ou décadas do elevador espacial, se os EUA não abandonarem a iniciativa, o pioneirismo será americano. Mais, ela poderá revigorar de modo inusitado sua economia. Nesta hipótese, os EUA poderão tornar-se senhores (e fornecedores mundiais) de uma fonte virtualmente inesgotável de energia.

6. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA Antes de abordar a posição dos EUA na transição tecnológica, devese ter em mente alguns conceitos e ideias importantes. Primeiro, deve-se entender que o gerenciamento do conhecimento é vital para o país liderar ou estar no topo da competição pelas inovações. É por meio deste ciclo de inovações, caracterizado por forte competição entre os atores, que se procura engendrar a melhor capacidade inovativa, que tem de se mostrar eficiente tanto em termos qualitativos como quantitativos (para futura produção). Segundo, após a inovação, ocorre a difusão do produto por vários meios (roubo, doação, barganha) e assim nesse meio termo o progresso técnico desacelera. Todavia, é necessário perceber que estes ciclos são dinâmicos: enquanto ocorre a difusão, o ciclo de inovações continua acontecendo, incorporando cada vez mais conhecimento e procurando inovar cada vez mais. Assim, percebe-se alguns pontos importantes: primeiro, o que importa é dominar e acelerar o ciclo de inovações por meio do gerenciamento do conhecimento; segundo, é necessária uma base organizacional que incorpore cada vez mais conhecimento; terceiro, as forças de mercado por si só não conseguem direcionar o limite do conhecimento, pois não existe uma demanda concreta — é necessária a presença estatal11.

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É pela competição interestatal (militar) que se procura inovar, criando armamentos superiores tática e estrategicamente. Cabe também salientar que, em termos schumpeterianos, a inovação é o motor que impulsiona o capitalismo. Dessa forma, não

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No caso dos EUA, após a Segunda Guerra, surgiu um sentimento, entre os militares, de que estar tecnologicamente superior aos outros seria determinante para ganhar guerras. Assim, ocorreu um esforço militar em institucionalizar o ciclo de inovações juntando todas as forças da sociedade, criando assim um complexo militar-industrial-acadêmico (MEDEIROS, 2004). Por essa lógica, com seus laboratórios bancados pelo governo, as universidades se transformam no centro vital da pesquisa acadêmica; o Legislativo aprova valores bilionários para serem investidos em P&D — graças à doutrina de superioridade tecnológica —; e as inovações oriundas deste processo são difundidas para firmas emergentes que trabalharam em cooperação (e.g.: IBM, Intel). As atuais restrições orçamentárias devem ser devidamente matizadas. A imprensa alardeia os valores nominais dos cortes. Contudo, dificilmente se destaca que a economia em custeio permitirá a recuperação da capacidade de investimento estadunidense. E, raramente, alude-se que os EUA, sozinhos, respondem por quase um terço do investimento mundial em P&D — um montante nominal de quase meio trilhão de dólares. A vantagem estadunidense é ainda mais confortável se comparada a alguns de seus competidores. A Rússia participa com 24,9 bilhões de dólares e a Índia, com US$ 38 bilhões para os 427,2 bilhões de dólares dos EUA. Dentre estes competidores, a China é a única que apresenta um crescimento de P&D superior ao percentual do PIB; ainda assim, com um valor nominal de apenas US$ 174,9 bilhões. Constata-se que o investimento dos EUA em P&D permanece 144 % maior que o chinês, segundo colocado no ranking mundial. (GRUEBER e STUDT, 2011: online). A Agência de Projetos Avançados de Pesquisa de Defesa (DARPA) é uma das maiores instituições que representa a gestão integrada entre defesa, produção e disseminação de conhecimento. O objetivo da DARPA é sustentar projetos que produzam inovações voltadas para a segurança nacional12. A Agência está associada à liderança tecnológica são os custos econômicos que irão direcionar as inovações, mas sim os custos estratégicos de um país caso ele se atrase tecnologicamente. 12 O melhor exemplo, oriundo da ARPA (que depois se transformou na DARPA), é a ARPANET. Esse projeto tinha como objetivo criar uma rede de comunicações que mantivesse o comando e controle em caso de um ataque nuclear. Para isso seria necessária uma rede de computadores descentralizados e não-hierárquicos em todo o país (bases militares e universidades). A internet surgiu a partir deste projeto.

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dos EUA. Em grande medida, a ela se deve o quase monopólio em produção de superprocessadores. Em média, os EUA produzem oito dos dez superprocessadores mais rápidos do mundo (os demais pertencem a China e Japão). Os superprocessadores importam, pois permitem a prototipação virtual, proporcionando simulações que reduzem os custos de desenvolvimento e de manter a liderança na inovação. De fato, os projetos da DARPA — robótica em gravidade zero, nanotecnologia — apontam os rumos da fronteira do conhecimento, ou seja, como se dará o próximo salto tecnológico13. Destaca-se o já mencionado elevador espacial, o qual abre novas possibilidades no campo energético, mas também com relação ao próprio comando do espaço. Projetos relacionados à fusão nuclear controlada em reator também demandam grande investimento em P&D e, como o elevador espacial, prenunciam a libertação da humanidade das formas de energia não renovável. Na esfera de motores, a tecnologia hipersônica, revelada em projetos como o X-51, contém o germe de uma nova fronteira tecnológica, expressa na produção de aeronaves que se deslocam a mais de cinco vezes a velocidade do som (Mach 5). O veículo orbital X-37B ilustra a conexão desta forma de propulsão com o domínio do espaço. Importa é que os hipersônicos irão promover a interação entre os domínios do ar e do espaço: percorrendo o globo em minutos, derrubando os preços dos fretes, promovendo a efetiva globalização. Atualmente os projetos ainda estão voltados para sua interface militar. Entre os mais avançados está o Force Application and Launch From Continental US (FALCON), cuja meta é produzir um veículo hipersônico com capacidade de ataque global a partir do território dos EUA. A ideia é reduzir a dependência de bases no exterior, o que na esfera da política externa permitirá aos EUA associar simultaneamente universalismo e isolacionismo, podendo ter uma atitude mais flexível frente às regiões. Em suma, a propulsão hipersônica prenuncia para o século XXI transformações análogas às cumpridas pelo computador e a rede no século XX.

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Observando a história capitalista, entende-se que os grandes saltos tecnológicos estão relacionados com a fonte energética com a qual se supre as capacidades produtivas. Com a escassez próxima dos hidrocarbonetos, entende-se a energia verde como o futuro do crescimento econômico e do desenvolvimento de um país no sistema internacional.

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7. SEGURANÇA E DEFESA As prioridades de defesa dos EUA para o século XXI estão definidas no Strategic Guidance de 2012 (DOD, 2012c). No documento reconhecese que os EUA vivem um ponto de inflexão na sua estratégia de defesa: após uma década de guerra, deve-se moldar forças menores e mais enxutas, porém mais flexíveis, ágeis e tecnologicamente avançadas. No entanto, isso não é uma novidade; o que esse documento tem de inovador é a ideia de rebalanceamento da Ásia. Atenta-se para as crescentes capacidades antiaéreas e antinavio da China (A2/AD)14, que podem bloquear o fluxo internacional de comércio e, assim, limitar a liberdade de ação dos EUA no Sistema Internacional. Nesse sentido, o documento enfatiza a importância crescente da Índia como parceiro estratégico dos EUA na região sul da Ásia, além de fazer algumas sugestões para lidar com o A2/AD: a) desenvolvimento de um novo bombardeiro stealth15; b) manutenção das capacidades submarinas estadunidenses; c) aprimoramento das capacidades espaciais; d) adoção do Joint Operational Access Concept (JOAC). A JOAC seria, basicamente, a resposta estratégica estadunidense ao A2/AD (DOD: 2012a). Ela é baseada em uma sinergia de domíniocruzado, ou seja, a integração profunda de todos os domínios — exército, força aérea, marinha, cibernética e espaço — a fim de que sejam complementares. Taticamente, para passar por defesas A2/AD, deve-se desenvolver várias linhas de ataque, cada uma independente da outra — inclusive em comunicação e controle. Os ataques seriam em profundidade, diretamente nas capacidades-chave da defesa adversária. Para isso, seriam necessárias diversas bases avançadas, a fim de suprir essas linhas independentes e deixar obscura a origem da ofensiva. Naturalmente, o aspecto crítico da JOAC é a penetração em profundidade no território chinês; por isso a diretriz deve ser tomada como uma formulação de transição, depende da efetivação de tecnologias tais como as armas de energia direta e a propulsão hipersônica para tornar-se taticamente sustentável. Por este percurso dedutivo, constata-se que documento nos informa 14 15

A2/AD — Capacidades de Anti-Acesso e de Negação de Área. Tecnologia que permite diminuir a assinatura eletrônica das aeronaves: dificulta o reconhecimento pelos radares inimigos.

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que nos próximos anos a tecnologia hipersônica se tornará realidade — ao menos para fins militares. Afinal, as atuais aeronaves disponíveis, como o F-22 e, em breve, o F-35 — apesar de serem furtivas (stealth), não asseguram mais a penetração em profundidade em território inimigo, ao menos impunemente. Isto se deve à disseminação de radares de microondas que conseguem identificar e alvejar as aeronaves 5ª geração a despeito de sua furtividade16. Além disso, o preço dessas aeronaves é muito superior às de 4ª geração, o que dificulta sua produção em larga escala e, portanto, a capacidade de custear perdas. Nem por isso os EUA estão indefesos, importa lembrar que mantêm uma confortável liderança em aeronaves de 4ª geração possuindo um total que excede a soma de seus potenciais adversários. Contudo, elas estão sendo retiradas de serviço em um ritmo imprudente, o que pode vir a alterar este panorama nos anos vindouros. Isto está implicitamente reconhecido no Strategic Guidance de 2012 e nas avaliações sobre os custos de desenvolvimento do F-35 (DOD, 2012b: 6). O balanço sobre os limites da furtividade demonstra que os EUA vêm investindo erroneamente nos últimos anos — bastou o desenvolvimento de uma nova geração de radares para contrarrestá-la. Além do caso das aeronaves, suprarreferido17, temos o caso do destróier stealth BGG-1000, que demandou muitos recursos na década passada, até que, enfim, percebeu-se que seria mais proveitoso investir nos modelos já em uso (Classe Arleigh Burke). O comissionamento do RIM-161 (SM-3) — anti-ICBM18 — nos navios desta classe demonstra que ela ainda tem um decisivo papel a cumprir no serviço ativo. Rússia e China estão empenhados, justamente, em produzir belonaves com as características dos destróieres estadunidenses. O mesmo se deu com a Classe Seawolf: foram construídos três exemplares ao custo unitário de US$ 2,8 bilhões — pela primeira vez um submarino revelou-se mais caro que um porta-aviões — para se descobrir que a atualização Classe Los Angeles em serviço, ainda possuía 16

Mais em MILLS, Chris. F-35 Joint Strike Fighter vs Russia's New Airborne CounterStealth Radars. Air Power Australia NOTAM, 2009. Disponível em 17 Mais em GOON, Peter. Is the JSF Affordable? An Australian’s Perspective. Air Power Australia NOTAM, 2010. Disponível em 18 Sigla em inglês para Míssil Balístico Intercontinental.

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capacidades muito superiores às de seus competidores. A solução intermediária, encontrada entre o governo e os fabricantes — entre voltar a produzir a Los Angeles ou partir-se para a Seawolf — resultou na criação da a Classe Virginia A intenção era que fosse mais barata que a Seawolf, que o custo unitário ficasse na casa dos US$ 1,8 bilhão mas, até agora, não se conseguiu baixar de US$ 2,0 bilhões. O problema maior foi a decisão de cancelar encomendas da Los Angeles, como os cascos em serviço estão no limite da vida útil, poderá haver uma crise em 2028-29. Quaisquer que sejam seus problemas, a Marinha dos EUA ainda não possui, ou terá, rival no mundo em um horizonte predizível de eventos. Continua apta a seu papel: o de sustentáculo da projeção global do poderio estadunidense. Seja por intermédio de seus porta-aviões, pelos submarinos Los Angeles, pelo destroyers e cruzadores ou pelos submarinos estratégicos Ohio. Na esfera da estratégia também se percebe uma ruptura da gestão Obama com sua predecessora. Os EUA assinaram com a Rússia o New Start, em abril de 2010, reduzindo a quantidade de armas estratégicas para preservar as vulnerabilidades recíprocas. Ocorre que a Rússia simplesmente não podia mais sustentar suas forças estratégicas em franca deterioração. Tratou-se de um claro sinal de que o novo governo não desejava obter a primazia nuclear. Contudo, como ficou evidente nas negociações envolvendo a ratificação do New Start no congresso, Obama não conseguiu encarrar a Defesa Antimíssil (DAM). Ainda assim, restringiu o comissionamento de mísseis antibalísticos aos vasos de superfície e declarou que os europeus também devem pagar a conta. O assunto veio à tona na Cúpula de Lisboa da OTAN (2010), quando se decidiu que, caso a Europa deseje uma defesa antimíssil baseada em terra, ela terá de ser financiada pelos próprios europeus. Fica nítido que, para os democratas, a DAM permanece apenas como mais um recurso de poder dos EUA, sem mais se perseguir a primazia nuclear. (PICCOLI, 2012).

8. SITUAÇÃO E CONJUNTURA Em 2008, o democrata Barack Obama foi eleito e, com ele, a política externa e de segurança dos Estados Unidos retomou ideias mais compatíveis com o conteúdo ético da Doutrina Monroe. O novo presidente adotou uma abordagem que preza pelo multilateralismo e 21

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parece favorável a investimentos em economia verde, como comprovam os investimentos do país em biocombustíveis e em pesquisas relacionadas ao elevador espacial, por exemplo. No entanto, muitas de suas ações são dificultadas por um Congresso de maioria republicana e pela crise econômica global. Esta última provocou o crescimento ou mesmo a criação de organizações de oposição como o Tea Party, o Occupy e os movimentos separatistas. Em 2012, com a reeleição de Obama, abriu-se uma nova situação. Até o momento, o Presidente tem dado continuidade a algumas de suas políticas. No Afeganistão e na Síria, percebe-se que o governo estadunidense promove buckpassing, reduzindo seus gastos de custeio no Oriente Médio e conferindo responsabilidade à Turquia; em consequência disso, cresce a integração regional entre turcos, afegãos e paquistaneses. Quanto ao Irã, os Estados Unidos adotaram uma política de sanções e não manifestam desejo de auxiliar Israel na hipótese configura-se uma confrontação militar não tenha sido provocada pelos iranianos (Resolution 65/2013 US Senate Committee on Foreign Relations). No que diz respeito à Rússia e à Europa, destaca-se a entrega do projeto do escudo antimísseis para mãos europeias, como forma de reduzir custos e tensões com os russos. As ações norte-americanas com relação à Península Coreana, no começo do ano de 2013, demonstraram, contudo, uma queda de braço entre a alta cúpula do Poder Executivo e o Comando do Pacífico (PACOM). Os primeiros buscavam aliviar as tensões e promover o diálogo, posição exemplificada pelo tom conciliador do secretário de Estado John Kerry em sua visita ao Leste Asiático. O PACOM, por sua vez, atuou na contramão, tendo, inclusive, enviado bombardeiros B-2 para sobrevoar a Península Coreana. Desse modo, a disputa quanto à PES dos Estados Unidos não se dá apenas pela via eleitoral, mas também em manobras que podem desautorizar a política externa do governo Obama. Em relação à Ásia, percebe-se uma preocupação em buscar parceiros internacionais a fim de criar bases terrestres avançadas. A JOAC preza pela diversificação das bases, pode-se perceber isso na prática com o desembarque dos fuzileiros navais americanos na Austrália no final de 201219, bem como nos diversos treinamentos conjuntos com Índia, 19

São planejados que até 2017 estejam 2500 Marines no norte da Austrália, em Darwin. Mais em http://www.defense.gov/news/newsarticle.aspx?id=66098.

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Malásia, Filipinas, Indonésia e Tailândia. Nesse sentido, para os EUA, importa especificamente a Índia, que recebe tecnologia de radares dos EUA e Japão. A política estadunidense para o país se confunde entre burden-sharing e buckpassing, atualmente pendendo mais para o último, de modo que o país é considerado como vital para os interesses estadunidenses na região. As políticas de desengajamento dos EUA levam em conta a realidade fiscal do país. O país esteve próximo do Abismo Fiscal, um mecanismo automático acionado quando o déficit atinge marca de US$ 2,1 trilhões, o resultado é a retirada de US$600 bilhões no orçamento dos EUA. O déficit foi gerado pelos altos gastos militares e pela baixa arrecadação, principalmente entre a população de alta renda. As negociações para evitar o Abismo Fiscal demonstraram grandes impasses políticos. O acordo realizado na virada de 2012 para 2013 incluiu um aumento de impostos para as famílias que ganham mais de US$450 mil ao ano e indivíduos que ganham mais de US$ 400 mil ao ano. Permaneceu em aberto, contudo, a definição sobre a elevação do teto para a dívida pública estadunidense, o que poderá gerar novo impasse já no ano de 2013.

9. CENÁRIOS A partir do estudo desenvolvido, pode-se delinear pelo menos três possíveis cenários para os próximos anos de política externa e de segurança dos EUA. Cada um deles sintetiza aspectos passíveis de serem combinados entre si e mais compatíveis com um ou outro tipo ideal da dualidade proposta. O melhor cenário consiste no avanço da construção de uma economia baseada no conhecimento e de um novo pacto social mundial, em que a governança seja nucleada em regiões. O condicionante principal é a extensão das práticas de buckpassing pelos estadunidenses, reduzindo seus gastos de custeio e permitindo maior aceleração da recuperação econômica. Por consequência, o país readquiriria grande capacidade de produção de conhecimento em larga escala, direcionando-a para investimentos em economia verde e avançando no projeto do elevador espacial. A liderança estadunidense seria praticada, mais do que tudo, pela força do exemplo, como sugere a Doutrina Monroe. 23

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O cenário intermediário consiste, em linhas gerais, na manutenção de uma situação semelhante à atual. O governo estadunidense colocaria em prática, concomitantemente, práticas de buckpassing e de burdensharing, a depender do contexto e da localidade específica. Como resultado, os processos de regionalização ao redor do globo seriam estimulados, ainda que indiretamente e de maneira mais vagarosa do que no melhor cenário. O país manteria uma lenta recuperação econômica, bem como os impasses já verificados entre Executivo e Legislativo. O pior cenário para os próximos anos consistiria nos seguintes fatores: a eleição de um candidato nos moldes do que foi visto na última eleição (Mitt Romney); o retorno das tensões com a Rússia; a volta de uma economia baseada nos hidrocarbonetos e o unilateralismo. Em outros termos, seria o retorno do Destino Manifesto ao poder. Nesse contexto, em um primeiro momento, os EUA buscariam incansavelmente a primazia nuclear, direcionando o foco para o Escudo Antimísseis (DAM) europeu baseado em terra, na Polônia e na República Tcheca, iniciando uma corrida armamentista com a Rússia. Com o desenvolvimento do hipersônico, os EUA poderiam dispensar qualquer tipo de parcerias regionais, visto que o unilateralismo por si só já bastaria. Portanto, haveria um retorno a Boyd e ao gerenciamento do caos, cujo resultado líquido seria a guerra permanente.

Considerações Finais O declínio relativo na economia dos EUA se dá no contexto póscrise de 2007, em que o país se recupera lentamente, enquanto outras economias mostram um expressivo crescimento econômico. Adiciona-se a isso a forte interdependência da economia estadunidense com a decadente União Europeia em termos de IED; o deficit cambial e fiscal que caracterizam a crise hegemônica desde o Vietnã ao Iraque. Por outro lado, há que se notar a grande interdependência com a China, o volume de títulos torna os dois países menos propensos à confrontação. O aumento do comércio bilateral, mesmo em um contexto de crise, aponta o caminho mais provável para a recuperação estadunidense: intensificar sua inserção nos mercados mais dinâmicos da Ásia. 24

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Importa notar que a pesquisa convalidou a percepção de Giovanni Arrighi, para quem os EUA teriam ingressado na fase de expansão financeira ainda na década de 70. Cabe lembrar que, para o autor, o que caracteriza esta fase não é apenas um crescimento maior da economia simbólica em relação à economia real, mas também a expansão do setor bancário às custas do setor industrial. Neste sentido, a recuperação da competitividade das empresas americanas na década de 80, constatada por Alfred Chandler, não teria sido suficiente para conter a tendência da expansão financeira, uma vez que a Ásia permaneceu sendo polo dinâmico da economia mundial. China e Índia substituíram os Tigres Asiáticos, mas a região permaneceu como líder no desenvolvimento do PIB industrial e das demais capacidades produtivas. Contudo, é prematuro considerar que o êxito da Ásia se dará às expensas dos EUA. Talvez pretender que os EUA recuperem o papel da indústria na composição do PIB seja uma utopia reacionária — apenas possível mediante um nível de empobrecimento em umbrais muito superiores aos atuais. Aliás, como explica o próprio Arrighi, muitas das indústrias na China e Índia são de procedência americana. Ao menos em certa medida, a crise estadunidense é fruto do virtuosismo de seu modelo de transnacionalização. Seu aprofundamento parece ser a chave para saída da crise: convertendo os EUA em exportador de Tecnologia Verde. Esta inserção beneficia o setor de serviços, o carro chefe da economia. Naturalmente, exige um sistema de seguridade a assistência social, que terá de ser custeado com impostos. Se, por um lado, não parecem existir problemas intransponíveis para os EUA, por outro lado, seria prematuro ignorar os desafios do presente. Em grande medida, a transposição das atuais dificuldades está relacionada à transição tenológica. Na sociedade do conhecimento e da informação, deter um terço do P&D mundial parece ser garantia suficiente que os Estados Unidos não irão se converter numa nova Inglaterra. Por outro lado, verifica-se um declínio relativo20: na década de 80, os EUA respondiam por metade do P&D mundial. Embora os EUA contem com um grande e diversificado complexo acadêmico-militarindustrial, pode-se observar que o governo reduz sua demanda de produtos com alta tecnologia e as empresas aportam menos recursos em P&D. Se prolongada, esta situação poderá acelerar a decadência relativa, 20

Se diz relativa, porque no caso, trata-se de comparar os EUA com si próprios.

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ameaçando a liderança tecnológica dos EUA. Em qualquer hipótese, a presente situação exige a recuperação econômica do país e reformas profundas. O dilema atual, definido, no âmbito deste texto, nos termos da oposição entre o buckpassing e o burden-sharing, atesta a manutenção da dualidade típica da PES estadunidense, mas não autoriza qualquer tipo de conclusão acerca de seu perfil cabal no século XXI. Para além das disputas dos grupos de pressão internos, existem condicionantes externos que impedem os EUA de decidir livremente entre “passar o balde” e “dividir o fardo”. O mais provável é que, em algum grau, ambas se combinem. No momento atual, enquanto a crise econômica persiste, a tecnologia do hipersônico não é lançada e, por conseguinte, a JOAC não se torna totalmente operacional, os EUA tendem a buscar parcerias e dividir o fardo (burden-sharing) da segurança global com potências regionais, vide Índia. Outra opção é o clássico buckpassing, como nos casos de Afeganistão e Síria. Importa lembrar que ambas as políticas fortalecem pivôs regionais e, consequentemente, aceleram processos de integração regional. Os Estados Unidos ainda são a maior potência do Sistema Internacional e nenhum outro país ou região é capaz de lhe fazer frente. Se, por um lado, esta condição impõe aos EUA o ônus de introjetar os principais problemas do sistema internacional, por outro, demonstra que são capazes de influenciar decisivamente seus rumos. De fato, observa-se uma persistente crise da hegemonia americana que não pode se manter nos termos vigentes anteriores a década de 70, mas também não se observa um desafiante à hegemonia global americana. As relações com a China, a despeito de seus graves pontos de estrangulamento, não são aquelas características de potências rivais — como as EUA-URSS durante a Guerra Fria — mas as de economias profundamente interdependentes. É impossível determinar o quanto o crescimento produtivo chinês é tributário de capitais e tecnologias americanos, dada à ausência de um sistema de estatísticas de IED organizado na China e a prática, comum na Ásia, de triangulação de investimentos e subcontratação. Ademais, as deficiências estruturais da China não são muito diferentes das que comprometeram, no passado, o 26

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Japão como candidato a hegemon21. Desse modo, não é difícil predizer que os EUA irão se recuperar da Guerra do Iraque como fizeram frente ao Vietnã. O declínio relativo dos EUA, contudo, parece pronunciado suficiente para que se afaste do horizonte a perspectiva seja de um Império Universal, seja de um Estado Mundial. Isso, entretanto, já era uma tendência observável antes da crise mundial de 2007. Como observou ainda em 2005 o ex-assessor de Segurança Nacional da presidência, Brzezinski: “Mesmo que o fosse desejável, a humanidade não está sequer remotamente preparada para o governo mundial, e o povo americano certamente não o quer”22. A observação de Brzezinski lamentavelmente tem sido negligenciada por alguns formuladores de política e estadistas nos Estados Unidos. E, esta incompreensão, materializada na manutenção da DAM, mantém em aberto o espectro da guerra mundial. Do exposto, pode-se concluir que se os Estados Unidos não podem manter sua hegemonia como era, mas tem capacidade suficiente para incidir decisivamente sobre qualquer processo de reconstrução hegemônica. O mais provável é que, qualquer seja o rearranjo, os EUA permaneçam como potência dirigente — a menos que ela seja operada através da guerra quando, então, seu desdobramento é imprevisível, talvez este seja único obstáculo intransponível para um novo século americano.

Referências ANTLE, James. After Romney's loss, Republicans need a rethink but not reinvention. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2012/nov/07/after-romneyloss-republicans-need-rethink. Acessado em: 07/11/2012. ARRIGHI, G.; BERVELY, J.S. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.

21 22

Para mais informações, consulte o capítulo sobre China deste livro. No original: “Even if it were desirable, mankind is not remotely ready for world government, and the American people certainly do not want it”. BRZEZINSKI, 2005 online.

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Capítulo 2 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA Giovana Esther Zucatto João Arthur da Silva Reis João Gabriel Burmann da Costa Marília Bernardes Closs Mirko Levis Gonçalves Pose Osvaldo Alves Pereira Filho Renata Schmitt Noronha Introdução Este artigo analisa a política externa e de segurança da República Popular da China, tendo como objetivo central demonstrar como o comportamento do país, em nível interno e regional, afeta seu posicionamento no Sistema Internacional. Dessa forma, o foco do trabalho é na estrutura interna do país e nas suas relações regionais. A China possui a maior população do mundo, distribuída no quarto maior território nacional, detém a posição de segunda maior economia do mundo e o segundo maior gasto em defesa. Seu PIB, de mais de US$ 8 trilhões, é um dos que mais cresce no mundo, tendo alcançado a taxa de 9,3% ao ano em 2011 (CIA, 2013). Essa análise preliminar de suas capacidades permite classificar o país como um dos polos do Sistema Internacional Adota-se, neste trabalho, a hipótese de que a China se debate entre duas tendências diferentes. Uma é mais voltada à multilateralidade e às reformas internas, identificada aqui como Mandarinato Meritocrático. A outra é associada ao reacionarismo e manutenção das instituições do passado e, no plano externo, ao unilateralismo. Intitula-se essa categoria de Milenarismo Igualitarista. Essas duas orientações derivam de uma dualidade intrínseca à identidade coletiva do país. Ambas coexistem nas ações e na estrutura chinesa, sendo que, em determinados momentos, uma adquire preponderância sobre a outra. 31

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Tendo sido explicitado e delimitado o desenho da pesquisa, cabe demonstrar como esta se estrutura. Primeiramente, será feita uma análise da estrutura do país, buscando identificar determinantes da política externa e de segurança nas capacidades e na configuração interna do país. É nesta seção que será também definida a dualidade da China. Em seguida, serão delimitadas a situação e a conjuntura do país, explicitando os condicionantes regionais da atuação chinesa e seu posicionamento no Sistema. A partir da estrutura, situação e conjuntura, serão estabelecidos três cenários nos quais são projetados os desdobramentos da dualidade. Na conclusão preliminar, serão apontados os indicadores que permitirão um acompanhamento dos cenários projetados.

1. ESTRUTURA 1.1. Esclarecimentos sobre a Dualidade Chinesa A trajetória chinesa é pautada pela seguinte dualidade: (i) o Mandarinato Meritocrático; e (ii) o Milenarismo Igualitarista. Ambas categorias coexistem e possuem implicações para a política interna e externa chinesa, podendo ser observadas ao longo da história. É importante mencionar que esses devem ser considerados como categorias abstratas. A primeira face da dualidade propõe a organização da sociedade em hierarquias baseadas no mérito, e tem seu nome derivado dos exames imperiais chineses, nos quais eram selecionados os mandarins, a burocracia governamental da época. No campo externo, essa ideia está relacionada com o conceito de “autoridade humana”, tal como proposto por Yan Xuetong (2011). De acordo com o autor, esta se pautaria pela liderança através da moralidade política e da subsequente adesão dos demais. É reconhecido algum nível de hierarquia entre os Estados, demandando que os mais fortes assumam responsabilidades maiores que os mais fracos e, ao mesmo tempo, aceitando regulações discriminatórias. Assim, a liderança e as normas estabelecidas pelo líder são aceitas de forma espontânea pelos demais Estados (YAN, 2011). Atualmente, essa face se expressa através de políticas multilaterais e de reformas econômicas e políticas internas que democratizam o governo chinês e aumentam a participação política. 32

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Já o milenarismo igualitarista, a segunda face da dualidade, acarreta a existência de um líder superior, que crê ser incumbido por alguma determinação divina de liderar os demais. A origem disso remonta ao “mandato dos céus” na civilização tributária chinesa e à Rebelião Taiping, tendo encontrado sua expressão moderna em alguns aspectos do maoismo. O igualitarismo dessa face, apesar de parecer nobre, se levado ao extremo, pode conduzir à perda da ideia de indivíduo e, consequentemente, à supressão das liberdades e direitos individuais. Esse lado da dualidade representa o excepcionalismo chinês e tem como objetivo reeditar a civilização tributária chinesa, ao mesmo tempo que mantém a estrutura interna herdada do período maoista. Por esse motivo, atualmente tal perspectiva justifica o reacionarismo nas instituições internas e o unilateralismo nas relações internacionais.

1.2. História A China é originalmente uma civilização tributária, o que significa dizer que mantinha relações hierárquicas com sua periferia, que lhe prestava tributo como sinal de submissão. As dinastias alternavam-se em ciclos: uma dinastia perdia o “mandato dos céus” devido ao mau governo, derrotas militares ou corrupção generalizada. Seguia-se um momento de divisão interna e guerra civil até que uma nova dinastia reestabelecesse a ordem, recebendo um novo “mandato dos céus” (ROBERTS, 2012:1214). Verifica-se nessa ideia uma expressão do milenarismo. Por outro lado, os exames públicos de admissão à burocracia estatal, uma espécie de concurso público da época, era a materialização original do mandarinato meritocrático. Esse sistema se manteve isolado do resto do mundo até a Dinastia Qing entrar em declínio no século XIX. Isso ocorreu em virtude da abertura forçada para o exterior, causada por uma série de tratados desiguais impostos pelas potências europeias. Uma série de rebeliões causadas pelo declínio do sistema imperial assolou a China, destacandose a Rebelião Taiping, movimento de caráter messiânico. A revolta durou mais de 10 anos e se expandiu para quase metade do território chinês, distribuiu terras equitativamente e deu papel de igualdade para as mulheres (SPENCE, 1996). É o milenarismo igualitarista em sua máxima expressão. A revolução foi derrotada, mas seu legado perdurou. Como 33

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reação a isso, os funcionários mais progressistas do Império buscaram restaurar o poder da dinastia através da modernização, no processo conhecido como Reforma dos Cem Dias. Ou seja, industrializar o país era a maneira de reafirmar a ordem imperial como condutora do processo de modernização, garantindo à China um lugar no novo sistema internacional que lhe era imposto. É o mandarinato meritocrático em sua expressão mais clara. As reformas foram interrompidas pelos setores mais conservadores do governo. A Revolução Republicana de 1911 derrubou o Imperador, mas não conseguiu unificar o país, divido entre esferas de influência estrangeiras e senhores locais. Surge, nesse período, o Guomindang, partido nacionalista que congregava alas de diferentes orientações políticas. Em 1924, com a ajuda da União Soviética, foi fundada a Academia Militar de Whampoa, que treinava e doutrinava os quadros do Guomindang, criando um Exército com o intuito de unificar o país. A despeito das diferenças ideológicas entre eles, todos os oficiais eram subordinados a um projeto nacional. Com a criação do Partido Comunista Chinês (PCCh), alguns anos depois, egressos da Academia vieram a integrá-lo (SPENCE, 1996: 331). Paralelamente ocorria o processo de modernização japonesa, iniciado pela Restauração Meiji, que incidiu diretamente sobre a trajetória chinesa. Na década de 1930, o Japão ocupou parte do território chinês e instaurou o regime fantoche de Manchukuo (1933). A partir de 1937, teve início a guerra total entre China e Japão, com a conflagração da Segunda Guerra Sino-Japonesa. Pode-se dizer que este é marco inicial da II Guerra Mundial para a China. O quadro em que a China encontrava-se àquela altura era o seguinte: na esfera interna, o país enfrentava uma guerra civil que opunha o Partido Comunista Chinês (PCCh) e o Guomindang; na esfera regional, a guerra com o Japão que estava inserida em contexto geopolítico mais amplo de uma guerra global que envolvia a URSS, Estados Unidos e Grã-Bretanha. A guerra se encerrou em 1945, com a rendição do Japão, e teve como consequências imediatas para a China a ascensão do PCCh ao poder e a criação de um bloco sino-soviético. Isto se deve a 2 fatores. O primeiro diz respeito ao uso do anticomunismo como a ideologia de legitimação do domínio japonês, o que acabou fortalecendo o PCCh enquanto defensor do nacionalismo. O segundo fator diz respeito aos 34

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Estados Unidos, basicamente por terem apostado na vitória do Guomindang tanto na guerra civil, quanto na resistência ao Japão. Essa estratégia se demonstrou equivocada, já que, em 1949, o PCCh triunfou sob a liderança de Mao Zedong. Dessa forma, a China migrou para a esfera soviética de influência. A vitória da Revolução se confunde com movimento de Libertação Nacional, ideal perseguido desde a Rebelião Taiping. Entretanto, o braço armado comunista, nascido na Academia de Whampoa, precedeu a própria revolução. Esse fato garantiu um caráter autônomo do Exército em relação ao Partido nas décadas subsequentes. Isto explica porque, de maneira diferente de outros países de governo comunista, o Exército não é um subordinado dócil do Partido e, ainda hoje, atua como árbitro nas disputas entre as diferentes facções do PCCh. Apesar da definição dos conflitos na esfera local (guerra civil) e regional (guerra sino-japonesa), persistiram as disputas no nível global. A guerra da Coreia (1950-1953), na qual a China entrou em confronto com os Estados Unidos, foi expressão disto. Como consequência dessa conflagração para a China, manteve-se o bloco sino-soviético e o país foi temporariamente excluído do Sistema Internacional, devido à chantagem nuclear imposta pelos EUA ao governo de Pequim1 (KISSINGER, 2011). Após um período de consolidação do regime, seguiu-se o “Período Soviético”, fase que durou até 1958, caracterizado por rápida industrialização e modernização nos moldes socialistas (ROBERTS, 2012: 364-365). No fim da década de 1950, a radicalização do governo chinês, expressa no Grande Salto Adiante2, levou ao afastamento da URSS. Mao se retirou do poder, mas retornou com mais força em meados da década de 1960, através da Revolução Cultural. As instituições políticas foram destruídas, devido à estratégia de jogar os partidários mais fanáticos de Mao contra seus opositores no Partido. O resultado foi a 1

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A chantagem nuclear consistia na ameaça de uso direto de armas nucleares contra a China. Isto ocorreu durante a Guerra da Coreia, bem como durante a Guerra FrancoVietnamita, durante as duas primeiras crises do Estreito de Taiwan. Mesmo a URSS cogitou fazer o uso dessas armas contra os chineses durante o confronto de fronteiras sino-soviético de 1969 (YAO, 2009: 69). O Grande Salto Adiante (1958-1960) foi uma campanha lançada por Mao Zedong que visava ao aumento da produção agrícola e industrial em tempo recorde. O deslocamento forçado de pessoas e a inflexibilidade das metas causaram a morte de mais de 20 milhões de pessoas, em sua maioria por fome.

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imersão do país em um caos que perdurou até meados da década de 1970. Este período foi a expressão da faceta mais radical do Milenarismo Igualitarista. Após o arrefecimento da Revolução Cultural, a China se aproximou dos Estados Unidos para balancear a União Soviética, que passara a ser percebida como ameaça por Pequim. O realinhamento estratégico marcou o retorno chinês ao Sistema Internacional. A Doutrina Nixon3, que permitiu a aproximação entre os dois países e entre China e Japão, de certa maneira inaugurando uma nova fase de regionalização nas Relações Internacionais (KISSINGER, 2011). Após a morte de Mao Zedong, em 1976, ascendeu ao poder Deng Xiaoping, que empreendeu uma série de reformas, com a campanha das “quatro modernizações”: na agricultura, indústria, tecnologia e forças armadas. Em linhas gerais, foi um processo de abertura econômica controlada. Essas mudanças retomaram o legado do Mandarinato Meritocrático, tal qual as “Reformas dos Cem Dias”. Ao enfrentar a oposição da ala mais conservadora, Deng se utilizou de sua proximidade com os militares para garantir a continuidade de suas políticas. A abertura econômica trouxe à tona contradições na ordem econômica e social, que culminaram nos Protestos na Praça da Paz Celestial. O movimento cresceu em escala, e passou a ser percebido como uma ameaça ao regime. O Exército interviu e as manifestações foram reprimidas ao custo de centenas de vidas. A reação internacional só não foi mais assertiva devido ao posicionamento do Japão, que se opôs às sanções baseadas em noções abstratas de direitos humanos. A década seguinte, sob o governo de Jiang Zemin, viu crescimento econômico do país, somado ao aprofundamento das desigualdades sociais (NETO, 2005; NONNENBERG, 2010), especialmente entre cidade e campo. Seu sucessor, Hu Jintao, deu seguimento às reformas econômicas e sociais, buscando fortalecer as instituições do país de modo a conciliar a manutenção do Partido no poder com o crescimento econômico. Foi durante seu governo que a China se tornou a segunda maior economia do mundo e empreendeu um processo de modernização militar. Em 2012, Xi 3

Corolário da política externa norte-americana durante o governo de Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos entre 1969 e 1974. Pregava uma aproximação estratégia e pragmática com a China, de modo a criar um contrapeso estratégico à União Soviética.

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Jinping se tornou o novo Secretário-Geral do Partido e Presidente do país.

1.3. Instituições Políticas O processo decisório chinês dá-se, em última instância, internamente ao Partido Comunista. O Congresso Nacional do Partido, que se reúne a cada cinco anos, é o responsável pela indicação do Secretário-Geral do Partido e do seu vice, os quais exercem as funções de Presidente e de Primeiro-Ministro, respectivamente. O Congresso Nacional também elege os 350 membros do Comitê Central do PCCh, que constitui o corpo executivo do Partido e que elege a composição do Politburo, do seu Comitê Permanente e da Comissão Militar Central. O Comitê Permanente do Politburo é o órgão superior na hierarquia do PCCh e seus 7 membros encabeçam o processo decisório nacional, sendo as decisões do Politburo e do Comitê Permanente consensuais. Importa, também, o Congresso Nacional do Povo, órgão unicameral legislativo chinês, que tem 70% de deputados filiados ao PCCh em sua composição. Cabe apontar, ainda, a influência dos membros mais antigos — os “anciãos do Partido” — dos herdeiros dos heróis da revolução e dos militares — os quais ocupam 20% das cadeiras do Comitê Central — no processo decisório do PCCh. O PCCh possui, majoritariamente, duas grandes facções: o Grupo de Xangai e a Liga da Juventude Comunista. A primeira possui um viés mais elitista, preocupando-se em manter um modelo de crescimento econômico baseado nas exportações, o que privilegia as províncias mais desenvolvidas do litoral chinês. Esse grupo se considera herdeiro do legado maoista e é a facção mais conservadora no que se refere à manutenção das instituições e privilégios instituídos para membros do Partido. A segunda, por sua vez, é entusiasta da melhor distribuição interna de renda, através da centralização política e da diminuição das desigualdades entre cidade e campo. Tem um caráter mais vanguardista e reformista, representando o ideário de Deng Xiaoping (VISENTINI, 2012). Grosso modo, pode-se associar o Grupo de Xangai às características do Milenarismo Igualitarista, e a Liga da Juventude Comunista ao Mandarinato Meritocrático. Em novembro de 2012, no 18º Congresso Nacional do PCCh, foram eleitos os membros dos órgãos-chave do Partido. Como Secretário-Geral, foi nomeado Xi Jinping, integrante do Grupo de Xangai. O restante do 37

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Comitê Central, majoritariamente, foi composto por membros desta ala. As exceções são Li Keqiang, que ocupará o cargo de Premiê, e Liu Yunshan, ambos da facção de Hu. Já o Politburo ficou claramente bipolarizado, com cerca de metade dos integrantes de cada facção. Xi não é da facção mais radical e conservadora do Grupo de Xangai. Seu discurso no Fórum de Boao para a Ásia, em abril de 2013, demonstra uma apropriação de determinadas plataformas e propostas da ala da Liga da Juventude Comunista, como a defesa de uma política externa de concertação e a continuidade das reformas internas (CHINA, 2013). Dessa maneira, pode-se afirmar que a concertação externa na China reflete a própria concertação interna, entre as diferentes facções do Partido.

1.4. Economia Impulsionada por inúmeras reformas econômicas, a China é hoje a segunda maior economia do mundo. Baseada no IED e voltada à exportação, a economia chinesa cresceu a uma taxa média de 10% do PIB ao ano nas últimas três décadas (IPEA, 2011). As exportações chinesas possuem como destino, majoritariamente, países com maior poder econômico, visto que grande parte de sua pauta é composta por produtos de maior valor agregado: usualmente, o país importa bens intermediários, principalmente do Japão e da Coreia do Sul, e exporta o bens finais. Esse aspecto regional do comércio é muito importante, imprescindível para a integração do Leste Asiático (ACCIOLY, ALVES, LEAO, 2009). Além disso, a China não consegue suprir a crescente demanda energética nacional. Por isso, vem construindo uma nova forma de relação com países “periféricos” ricos em recursos energéticos, e “tem adotado uma ênfase [...] na valorização da soberania nacional, bem como na aproximação das respectivas agendas políticas nos organismos multilaterais, [...] assumindo déficits econômicos” (PAUTASSO & OLIVEIRA, 2008: 384). Isso se evidencia no tipo de IED proveniente da China e nos seus receptores: majoritariamente, países abundantes em recursos naturais, onde constrói a própria infraestrutura para exploração destes. As reformas econômicas, iniciadas no século passado, garantiram 38

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um prolongado saldo positivo na balança comercial chinesa, fazendo com que o país acumulasse enorme quantidade de divisas internacionais: atualmente, é o maior detentor de reservas do mundo. As divisas possibilitaram lastrear uma moeda internacional e controlar a taxa de câmbio, sendo possível notar uma relativa valorização do yuan frente ao dólar nos últimos anos. Nos últimos anos, nota-se certa desaceleração no crescimento econômico chinês, acarretada pelo esgotamento do modelo exportador empreendido até então. Considerando esse fato, o governo decidiu implementar uma série de medidas de incentivo ao consumo interno. Claramente, o governo de Hu Jintao adotou uma postura de reformulação do modelo econômico chinês, reafirmadas no 18º Congresso Nacional do Partido. Mesmo com a ascensão de Xi Jinping ao poder — que pertence à facção do Partido Comunista defensora do modelo exportador — várias declarações foram feitas afirmando o seguimento dessas políticas (XI, 2013). Resta acompanhar o prosseguimento, ou não, de tais políticas.

1.5. Infraestrutura As questões de infraestrutura e segurança energética são tidas como prioritárias para a política externa da China. O país é o maior consumidor de energia do mundo e precisa garantir seu abastecimento caso pretenda manter as elevadas taxas de crescimento. Atualmente, o carvão e o petróleo correspondem a quase 90% de sua matriz energética. Nos investimentos externos em infraestrutura, destaca-se o projeto da Nova Rota da Seda, que visa ligar o país, saindo da província de Xinjiang, ao extremo oeste da Europa. A intenção de se projetar internacionalmente pela Ásia Central baseia-se num amplo leque de objetivos: o desenvolvimento econômico de Xinjiang, estabilidade política interna; segurança energética; e a criação de um corredor alternativo para a Europa (SWANSTRÖM, NORLING e LI, 2007). É importante notar aqui a correspondência entre os projetos externos e internos. A China ainda carece de infraestrutura interna, já que a maior concentração econômica e populacional, assim como de ferrovias, rodovias, portos e aeroportos, fica na região leste, enquanto as províncias mais promissoras em termos energéticos ficam no oeste. Para fomentar a integração territorial do país, o governo chinês tem promovido um boom 39

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na construção de dutos, rodovias e aeroportos, que se conectarão com a infraestrutura externa, podendo vir a garantir estabilidade interna para o país e desviar o abastecimento de petróleo do Estreito de Malaca. O escopo da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) também é utilizado para promover a integração econômica e energética entre os países-membros. Evidencia-se, assim, os esforços chineses em diminuir a preponderância dos EUA nas regiões que lhes são estratégicas, apresentando-se como um parceiro mais propício, ao passo que garante os recursos para a sua escalada rumo ao posto de potência mundial, ao lado dos EUA (PAUTASSO & OLIVEIRA, 2008).

2.6. Segurança e Defesa A doutrina de defesa chinesa de 2010 estabelece como prioridade para o país a aquisição e o desenvolvimento de capacidades militares que o possibilite operar guerras locais em ambiente de informatização (IISS, 2012: 211). Esse aspecto da doutrina deixa claro a preocupação chinesa com a estabilidade do Leste Asiático, com a integridade de seu território e soberania sobre suas águas territoriais nos Mares do Leste e do Sul (GLOBAL SECURITY, 2010: online). Os gastos militares chineses vem em ascensão desde 1989. Hoje, o país detém o 2º maior orçamento de defesa do mundo, de US$ 129 bilhões em 2011. Isso se deve em grande parte aos esforços do país em desenvolver internamente tecnologias fundamentais nos conflitos atuais: satélites de Inteligência Eletrônica e Inteligência de Sinais (ELINT/SIGINT); Radares de Abertura Sintética (SAR), numa tentativa de competir pelo comando do espaço; caças de 4ª e 5ª geração (J-10, J11B e J-20 e J-31); aeronaves de AEW&C (Alerta e Controle Aéreo Antecipado), como o KJ-2000; entre outros (CEPIK, 2011). A China detém em seu arsenal cerca de 240 ogivas nucleares e sua doutrina nuclear é a de “não uso em primeiro ataque”. Esse aspecto da doutrina encontra respaldo na composição do seu arsenal, visto que a China possui uma grande quantidade de mísseis convencionais em seus sistemas terrestres, marítimos e aéreos, para não precisar fazer uso das armas nucleares. Com 2,285 milhões de homens, o efetivo militar ativo da China é o maior do mundo. De 2000 a 2009, esse número significou um aumento de 40

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US$ 20 bilhões em gastos com pessoal. Para diminuir esses custos, tem se diminuído o efetivo ativo e aumentado a 1ª Milícia (para 10 milhões de membros), que pode combater em conflitos, e 2ª Milícia (com 100 milhões), responsável pela manutenção da infraestrutura do país em caso de guerra nuclear. Tais aumentos permitem à China uma maior facilidade para mobilizar as reservas dentro de uma burocracia militar, sem fazer uso de poderes políticos regionais ou nacional. Importa também notar os indícios de A2/AD (anti-acess/area denial) que aparecem na doutrina chinesa com o conceito de “maça assassina”. A ideia é simples: em um ambiente de confronto com uma potência de maiores capacidades militares, a China não buscaria igualar essas capacidades, mas sim, responder assimetricamente a essa ameaça, a partir da construção de capacidades que afetem o acesso e a livre-circulação do inimigo no teatro de operações. Essa doutrina se materializa através de diversos sistemas, como mísseis anti navio (DF-21), bombardeiros e caças de interdição, submarinos e navios de minagem, e armas anti satélite. A saturação destes tornariam proibitivos os custos de uma invasão ao território chinês. O perfil das forças e das capacidades chinesas indica um elemento de duplicidade: se por um lado, a aquisição de capacidades A2/AD indica o aprimoramento das capacidades defensivas, por outro, o investimento na modernização de modo mais geral permite ao país atuar em diferentes teatros de operações na região.

2.7. Transição Tecnológica A China, apesar de não ter “saído na frente” na disputa pela primazia do domínio de tecnologias estratégicas da Era Digital, tem se saído bem em seu intento de diminuir o gap que a separa das Grandes Potências (SAUNDERS, 2011: 48). O país aproveita-se dos menores custos de desenvolvimento de tecnologias já dominadas por outros países, beneficiando-se da distância que ainda possui da fronteira tecnológica de certas indústrias para realizar sua transição tecnológica. Dessa maneira, é de grande importância as políticas empreendidas por Hu Jintao, baseado em sua vertente guia de “sociedade harmônica” e “desenvolvimento científico”, no sentido de diminuir a dependência de tecnologias externas e consolidar a China como um polo tecnológico e de 41

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produção científica de alto nível. No que tange ao desenvolvimento científico, a China têm investido maciçamente em P&D — cerca de US$ 154 bilhões em 2009. Da mesma maneira, foram vertiginosos os aumentos em número de publicações científicas e registros de patentes, contabilizando, em 2010, 118.108 artigos (MCTI, 2013) e 293.066 pedidos, respectivamente. Já na questão das tecnologias de ponta, o país possui 4 dos mais rápidos supercomputadores do mundo. Em 2011, entrou em operação o primeiro supercomputador de fabricação 100% chinesa — incluindo o superprocessador ShenWei SW 1600 —, o Sunway Bluelight. Tal fato marcou um grande salto tecnológico para a inovação nacional em termos de desenvolvimento e utilização de computadores de alta performance (CHINA DAILY, 2012). Com relação a minerais estratégicos, importa notar que a China é hoje a maior produtora e consumidora mundial de alumínio. Porém, o país ainda apresenta déficits desse material, necessitando importá-lo. O grande “trunfo” chinês, em termos de recursos minerais, no entanto, está no monopólio de 95% da produção de terras raras do planeta, além do controle de boa parte das outras fases da cadeia de produção e utilização desses minerais — não sendo majoritária apenas na última delas, a transformação. Terras raras importam porque são utilizadas em muitos equipamentos eletrônicos atuais — o que inclui a indústria de defesa. O reflexo disso aparece nos cortes nas taxas de exportação — o governo chinês controla a cadeia interna de terras raras, visto que as empresas são grandes estatais e os fluxos são rigidamente fiscalizados -, e no direcionamento para o desenvolvimento de um mercado interno mais forte.

2. SITUAÇÃO E CONJUNTURA A China passa por um momento de ambiguidade situacional. Embora os primeiros meses do governo de Xi Jinping tenham sido marcados pela reafirmação dos canais de diálogo e cooperação multilaterais, construídos desde o final da década passada, a (re)emergência de novos focos de tensão tornam o ambiente regional mais propenso à instabilidade. Basicamente, a evolução das relações regionais esteve pautada por 42

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duas esferas distintas. Na esfera econômica, houve grandes avanços derivados do aumento da interdependência econômica de todo o Leste e Sudeste Asiático, representados pela Cúpula Trilateral com Japão e Coreia do Sul e culminando com o lançamento do projeto da Comunidade do Leste Asiático em 2009. Ainda nessa esfera, mais recentemente, podese destacar o anúncio das negociações acerca da criação de uma área de livre comércio entre os países da ASEAN com China, Índia, Coreia do Sul, Japão, Austrália e Nova Zelândia, excluindo os Estados Unidos (SPENGLER, 2012). Porém, na esfera securitária, o ano de 2012 foi marcado por uma série de disputas territoriais que levaram ao aumento de tensões no Mar do Leste e Mar do Sul da China. O anúncio de “compra” das ilhas Diaoyu/Senkaku pelo governo japonês foi recebido com protestos de massa na China e as relações com o Japão ficaram abaladas. Já no Mar do Sul da China, região de enorme importância por ser corredor de passagem de petróleo e bens de exportação, as tensões se elevaram com o Vietnã e as Filipinas, que disputam a posse de uma série de ilhas com a China. Mais recentemente, a crise coreana4 evidenciou a fragilidade da estabilidade regional. A despeito das aparentes tendências conservadoras do governo formado no 18º Congresso Nacional do PCCh, o discurso do presidente Xi Jinping no Fórum de Boao para a Ásia reafirmou a disposição chinesa em participar de maneira construtiva do estabelecimento de uma ordem regional pautada na cooperação e concertação (XI, 2013). Esses acontecimentos mais recentes têm como plano de fundo uma situação geopolítica mais geral na qual a China se insere. Nesse sentido, importa o retorno do foco estratégico dos Estados Unidos para o Pacífico, o que torna incertas as relações entre as duas potências. Soma-se ainda a atuação de outros atores regionais, como a Índia e a Rússia. A Índia teme um possível cercamento por parte da China, o que leva a uma estratégia de balanceamento e à modernização de sua Marinha de águas azuis. No que concerne às relações com a Rússia, o panorama é de uma aproximação cautelosa, apesar de essa ser uma tendência da Rússia com 4

A crise coreana teve início após o terceiro teste nuclear norte-coreano, em fevereiro de 2013 que desencadeou um escalonamento das tensões na península. Cabe destacar a suspensão do armistício entre as duas Coreias e o anúncio de Estado de Guerra da parte da Coreia do Norte.

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todos os principais países da região. No Mar do Sul da China, a China tem disputas territoriais com uma série de países da ASEAN, devido à posição estratégica que a posse das ilhas em litígio tem para a manutenção da segurança das linhas marítimas de suprimento5. Neste contexto, importa sobremaneira o Vietnã, que tem se aproximado de outras potências visando a um balanceamento da China. Para tanto, firmou acordos de cooperação militar com Rússia, Japão e Coreia do Sul, tratados de comércio com os Estados Unidos e de exploração conjunta de petróleo em alto-mar com a Índia.

3. CENÁRIOS A análise da política externa e de segurança da China permite a elaboração de três cenários distintos. Estes refletem os desdobramentos que podem advir dos dilemas representados pela dualidade chinesa e suas implicações para a inserção do país no Sistema Internacional. No melhor cenário, a China daria continuidade ao processo de concertação e cooperação regional. Uma maior interdependência econômica poderia conduzir ao uso das próprias moedas locais para as transações intrabloco. Ocorreria ainda a definição das questões securitárias. Uma solução para o problema das Coreias, ou no Mar do Sul da China e do Leste, passaria necessariamente por uma mediação em nível regional. A hipótese de guerra seria mais remota. No caso intermediário, ocorreria um processo de relativa manutenção do status quo. Isso significa o incremento dos laços econômicos e comerciais, acompanhada de uma vagarosa concertação nas disputas territoriais, mas sem definição. Ou seja, as disputas permaneceriam latentes, originando crises pontuais. Essa ideia se reforça com recentes anúncios ocorridos na Cúpula do ASEAN +3. Seria mantida a indefinição na questão das ilhas do Mar do Sul da China, uma vez que os custos de um confronto seriam muito altos para China, Vietnã ou Índia. O terceiro e pior cenário seria o da eclosão de uma guerra local, ou de uma guerra regional de média intensidade, que poderia ser lutada em mais de uma frente. O estopim para o início da guerra seria 5

Também conhecidas pelo acrônimo SEALOCs: Sea Lines of Communication.

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provavelmente uma disputa territorial. Para a compreensão deste cenário, vale lembrar a existência de vários focos de tensão, como a península coreana, o Mar do Sul da China, o Mar do Leste e a fronteira com a Índia.

Conclusão Como conclusão, cabe apontar tendências a serem observadas para um acompanhamento dos cenários projetados. Se as relações entre a China e o resto dos países da região retornarem aos termos que deram início à Cúpula Trilateral é crível que os impulsos integracionistas retomem força, tal como proposto no primeiro cenário. A depender da atuação chinesa, ao menos pelo que indicou o discurso de Xi Jinping no Fórum de Boao, a tendência do governo chinês parece ser essa. Em contrapartida, as recentes mudanças no cenário político da Coreia do Sul e do Japão dificultam a viabilidade disso. Ou seja, por mais que a China busque nuclear esse processo de maior cooperação na região, a (re)emergência de tensões em algum grau independem da sua atuação. Em outros termos, ainda não existe um sistema de governança regional que torne previsíveis ou controláveis as consequências de litígios pontuais. Esse panorama de ausência de governança é corroborado pela percepção de ameaça que permeia as relações regionais. Países como Índia, Japão, Vietnã, Coreia do Sul e mesmo a Rússia não veem a ascensão chinesa sem inquietação. Por essa razão, políticas de balanceamento são uma estratégia recorrente. O retorno do pivô estratégico dos Estados Unidos para o Pacífico redimensiona a geopolítica regional e fomenta o surgimento de projetos concorrentes de integração na região. Cabe observar que a presença dos Estados Unidos é um fato, e que independentemente do perfil de polarização regional que venha a prevalecer, será necessário algum nível de concertação com os EUA. Dessa forma, é fundamental observar se o comportamento do novo governo Obama com relação à China será pautado pela busca pela cooperação ou pelo balanceamento. Para o curto e médio prazo, o cenário intermediário parece ser o mais provável. Isso porque, por um lado, a China tem buscado evitar uma escalada nas tensões regionais - como pode ser observado na sua atuação diante da crise coreana — e, por outro, não parece haver um novo 45

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impulso integracionista que revolucione as relações na região. Essa afirmação, contudo, não exclui a possibilidade de concretização dos outros dois cenários no médio e longo prazo. A China pode ser considerada hoje uma grande potência, pelo tamanho de sua população, economia e poderio militar. Se o país conseguir manter seu crescimento econômico elevado e continuar investindo no setor de tecnologia, tende a manter essa posição. Nesse sentido, importa o monopólio de terras raras que o país detém. Porém, para manter o nível de crescimento, serão necessárias mudanças no modelo econômico, que trarão modificações como o incentivo ao consumo interno. Para isso faz-se necessário observar como o governo de Xi Jinping irá se posicionar no cenário regional e global.

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Capítulo 3 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA RÚSSIA Ana Paula de Mattos Calich Jéssica da Silva Höring Klei Medeiros Leonardo Albarello Weber Wagner Augusto Silveira Willian Moraes Roberto Introdução O presente trabalho visa a analisar a Política Externa de Segurança (PES) da Rússia. Parte-se da hipótese de que a Rússia debate-se entre duas tendências, consideradas tipos puros na denominação de Max Weber: Europa e Ásia. No que tange ao tipo puro Europa, a Rússia comporta-se como um Estado-nação, mais um dentre o cenário europeu; enquanto no tipo puro Ásia, Moscou constrói-se como um Estado tributário frente aos outros países, com uma maior capacidade de manobra. Pela Europa, há uma interdependência complexa, com a Rússia exportando bens primários e importando bens de capital, enquanto a Ásia é tratada como esfera de influência, com maior exploração pela Rússia, mas também para onde pode exportar bens de maior valor agregado. Aplica-se, na Europa, a teoria da dependência associada, onde seria necessário capital externo europeu para o desenvolvimento do país, devido à falta de uma burguesia nacional própria que lidere esse processo. Na Ásia, em contrário, tenta-se uma integração econômica para fortalecimento das economias nacionais, principalmente através da formação de cadeias produtivas entre tais países. Por fim, nota-se que a Europa é sempre o foco de atração primária para a Rússia, enquanto a Ásia serve de espaço para diversificação de parceiros. Para traçar as tendências e indicadores desses dois tipos puros pelos quais a Rússia manobra sua PES, se fará uma análise estrutural da 48

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formação russa, explorando sua história e suas instituições políticas, bem como sua economia, infraestrutura, além das questões de segurança e defesa e de sua posição na atual transição tecnológica. Após, se observará a situação russa atual, através de um marco por nós definido, construindo então cenários conclusivos como possíveis tendências que apontem para qual direção caminha a Rússia. A Rússia ocupa um lugar de destaque no Sistema Internacional (SI) atual por diversas de suas características. É o país com o segundo maior arsenal termonuclear do mundo e o segundo maior comando do espaço, além de ser o maior produtor mundial de hidrocarbonetos. É o maior produtor e possui a maior reserva de gás natural do mundo, além de ser o segundo maior produtor de petróleo do globo, atrás apenas da Arábia Saudita. Com um PIB de 2,509 trilhões de dólares, é a sétima maior economia do mundo, com um PIB per capita de 17.700 mil dólares — ocupando a 71ª posição no ranking mundial. Da composição do PIB, 58% provêm do setor de serviços, 37,6% do setor industrial, e apenas 4,4% do setor agrário. É o país com a maior extensão territorial, possuindo 17.098.252 km² de território. Entretanto, apesar de ser populoso, com 142.517.670 milhões de habitantes — a 9ª maior população do mundo —, é pouco povoado — apenas 8,3 hab/km², o 217º país nesse ranking global —, havendo grandes vazios demográficos pelo país (EUA, 2013a).

1. ESTRUTURA 1.1. História e Instituições Políticas Algumas características são recorrentes na história russa. Dentre elas está: (i) a centralização de poder, que devido à sua geografia e ao seu território imenso, mostrou-se imperativa em diversos momentos; (ii) a ideia de cerco, atrelada à ideia de que seu território está cercado por diversos polos de poder, correndo risco de invasão constante; e (iii) a busca por autonomia e por consolidar-se como uma grande potência. O território russo fez parte do Império Mongol ao longo do século XIII. A expansão deste império, com o intuito de proteger a Antiga Rota da Seda, ocorreu até o século XIV, quando se fragmenta em quatro grandes canatos. É interessante notar que cada um desses quatro canatos pode ser associado aos blocos de poder atuais na região: Rússia, China, 49

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Ásia Central e Oriente Médio. No período imperial russo, destacam-se dois czares. O primeiro deles foi Pedro, o Grande, no século XVIII, que ficou conhecido pela modernização do Estado russo, baseada no modelo europeu. Ele foi o responsável pela criação de um exército nacional — não formado por mercenários; construiu, assim, a ideia de inclusão do indivíduo como parte do Estado. Pedro também deslocou a capital para São Petersburgo, lugar de projeção para a Europa, além de ter conquistado o território adjacente ao Mar Báltico da Suécia, outra potência da época. Com a conquista, além de projeção na Europa, a Rússia eleva-se ao status de grande potência. O segundo líder relevante foi Catarina, a Grande, que conquistou a região da Criméia, obtendo acesso ao Mar Negro. Não dominou, contudo, os estreitos de Bósforo e Dardanelos, que dariam passagem ao Mar Mediterrâneo. Os dois czares, então, se enquadram no viés europeísta da dualidade, e destacam-se pela conquista de territórios estratégicos à Rússia até hoje. Em 1917, logo após a Revolução Socialista, Lênin implanta a Política das Nacionalidades. Esta previa que os povos deveriam escolher entre a independência completa do Estado russo e a consequente separação do resto da Rússia, ou se tornar parte de um Estado socialista unitário que garantiria todos os direitos civis e culturais ao trabalhador (SUNY, 1998), tendo em vista que uma das principais bandeiras do socialismo russo era o fim do Estado absolutista do czarismo. Lênin acreditava que o separatismo seria reduzido pela tolerância russa, o que não ocorreu de fato, havendo, logo em seguida, as independências da Polônia, Finlândia e Ucrânia. Fez-se necessário então, tomar as rédeas novamente e passar a uma recentralização do poder visando à manutenção da unidade do Estado. Assim, essa política pode ser considerada paradoxal, uma vez que o objetivo do governo era acabar com os moldes czaristas de administração, mas é constatada a necessidade da Rússia de centralização estatal para manter seu território integrado. Importa falar na história russa o ano de 1936, quando da assinatura da Convenção Internacional de Montreux. Essa convenção assegurou a soberania turca sobre os estratégicos estreitos de Bósforo e Dardanelos1, 1

A importância estratégica dos estreitos à época era inegável. Os britânicos e franceses, por exemplo, não desejavam navios soviéticos passando por ali porque poderiam cortar

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valorizados pelos russos porque garantem a passagem do Mar Negro ao Mar Egeu e, consequentemente, ao Mediterrâneo. Após a II Guerra Mundial, Stalin começou a pressionar os Aliados para ter acesso aos estreitos e pediu a revisão da Convenção em 1947, sob a alegação de que havia exercido papel fundamental na luta contra o Eixo, sobretudo na frente oriental. Entretanto, Truman nega a demanda soviética e trás a Turquia para o lado ocidental, inclusive inserindo-a na OTAN em 1952. Assim sendo, é possível associar o início da Guerra Fria com a disputa pelos estreitos no Mediterrâneo2. Durante o processo de desmantelamento da União Soviética (URSS), Iéltsin colaborou para o seu fim ao exigir a independência unilateral da Rússia desta. Nota-se tal ação como mais uma recorrência do tipo puro Europa em virtude da vontade de Iéltsin de tornar a Rússia um Estadonação aos moldes dos europeus. Em seguida, tal presidente promove reformas liberalizantes, privatizando grandes estatais e cedendo terras aos oligarcas locais, que ganham grande poder. Em consonância com tal processo, a Nova Constituição de 1993 garantiu um maior poder às regiões3. Em termos de política externa, Iéltsin adotou uma postura de bandwagoning automático com os EUA na esperança de que receberia uma retribuição por isso. Todos esses fatores somados geraram um Estado fraco e inoperante, além de uma enorme concentração de renda, gerando uma crise política e econômica interna que atinge o ápice em 1998. Dentro dessa conjuntura de crise interna e mudança, começaram a surgir diversos partidos que se opunham às políticas da Era Iéltsin. Dentre eles, destacam-se dois partidos: o Pátria Toda a Rússia e o Unidade,4 que se aglutinaram formando o Rússia Unida em 2001, o qual 2

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rotas para Egito, Índia e Extremo Oriente. Vale ressaltar que atualmente, o Mar Negro perdeu a importância relativa para o Mar Báltico, e isso explica, em parte, a recente aproximação entre Turquia e Rússia. A própria construção do gasoduto South Stream, que passa pelo Mar Negro em águas territoriais turcas, não tem recebido tanta oposição por parte de Istambul. Uma das consequências dessa medida constitucional foi que os entes federados russos criavam leis próprias, que muitas vezes eram concorrentes às leis nacionais (estima-se que, à época, 1/3 das leis das regiões eram contraditórias com as leis centrais) (COLIN, 2007). O Partido Unidade foi criado em 1999 pelo próprio Iéltsin para lhe servir de sustentação no Parlamento. Com o tempo e com os fracassos de Iéltsin, tornou-se também oposição, fundindo-se com o Pátria Toda Rússia para formar o Rússia Unida em 2001.

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apoiou a candidatura independente de Vladimir Putin à presidência — e de todos os presidentes eleitos desde então -, sendo maioria no Parlamento desde 2007. Caracteriza-se como um partido sem uma plataforma ideológica própria, pois agrupa diversas tendências políticas — atualmente representadas pelas lideranças de Putin, de um lado, e Medvedev, de outro —, como se fosse um sistema partidário dentro de um só partido5. Em termos de política interna, Putin enfraquece a maioria das oligarquias locais e promove a recentralização do poder em Moscou. Exemplo disso foi seu decreto presidencial determinando que os governadores fossem nomeados pelo presidente e confirmados pelos parlamentos regionais. Na prática, esse decreto apontava a prevalência de sua indicação, visto que seu partido, o Rússia Unida, era maioria também nesses parlamentos6. No âmbito da política externa, o presidente retoma a ideia de Rússia como Grande Potência. Dentro desse contexto, a busca pela primazia nuclear por parte de George W. Bush acabou aproximando Rússia e China, que juntas criaram a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) em 2001, demonstrando o viés mais autônomo da nova política externa russa7. Medvedev, seu sucessor, retomou algumas reformas liberais similares às de Iéltsin e agia de uma forma “esquizofrênica”: ao mesmo tempo em que buscava se aproximar da OTAN, em uma política europeísta, atacava a Geórgia em 2008, a contragosto dos EUA e da China. O conflito no Cáucaso demonstrou que a Rússia possui a última palavra em termos de infraestrutura energética no âmbito regional. Através de mísseis balísticos de curto alcance baseados na Ossétia do Sul, 5

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Em 2008, três clubes políticos foram oficialmente formados dentro do partido: o SocialConservador, o Liberal-Conservador e o Estado-Patriótico. Seu objetivo é funcionar como uma válvula de segurança para conter a dissidência interna do partido (EILEEN KUNKLER, 2012). Isso corrobora a ideia de que há sim dentro do Rússia Unida correntes diferentes e muitas vezes opostas. Após sua eleição em 2012, Putin determinou a retomada das eleições diretas para Governadores. Entende-se que essa foi uma medida necessária à época, devido à instabilidade herdada de Iéltsin, e que se torna desnecessária hoje. Vale ressaltar a importância de Primakov, primeiro-ministro russo ao final da Era Iéltsin, como antecessor à política externa de Putin. Ele procurava fortalecer a imagem da Rússia no exterior e melhorar seu status no SI — exemplos: II Guerra da Chechênia; o “não” ao reconhecimento de Kosovo, etc. —, caracterizando um retorno ao bandwagoning seletivo.

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seria possível destruir gasodutos e oleodutos do Cáucaso em direção ao Mar Negro, mantendo uma margem crível de negabilidade da Rússia. A Guerra da Geórgia foi um choque na unipolaridade norte-americana. Os EUA silenciaram durante o conflito e a Rússia agiu de forma independente, dando o recado de que a expansão da OTAN para o Leste deveria ter um limite. Embora Putin e Medvedev pertençam ao mesmo partido, a postura de Medvedev em seu governo não representou uma continuidade da política externa de Putin. Medvedev tentou aproximar a Rússia do Ocidente, embora sem sucesso. Seu fracasso na tarefa o debilitou no plano doméstico, assim como o fez à corrente mais liberal do Rússia Unida. Desse modo, possibilitou-se a emergência da figura de Putin como opção à Presidência, representando a ala mais centrista. Com essa análise, percebemos a presença da dualidade entre Europa e Ásia durante toda a história russa. Em sua política externa recente, é possível percebê-la, sobretudo, nas políticas dos governos de Iéltsin e Medvedev em contraposição às de Putin. Nesse sentido, as instituições russas acompanharam e refletiram esse processo. Constata-se ainda a recorrência de características condicionantes da política externa de segurança: a centralização de poder e o medo constante devido à ideia de cerco, além do objetivo russo de manter-se como grande potência.

1.2. Economia A economia russa, após uma profunda deterioração na Era Iéltsin, recuperou-se no início do século XXI, acompanhando o boom dos preços do petróleo e do gás. Esses produtos permanecem como a base de suas exportações, sendo cerca de dois terços destas (RUSSIA, 2012a). Atualmente, o PIB da Rússia figura como o sétimo maior do mundo, mas continua oscilando de acordo com a variação nos preços dos hidrocarbonetos. Seguindo esse perfil, os principais destinos das exportações russas são países europeus, com destaque para a Holanda (12,2%), a Itália (5,6%), a Alemanha (4,6%) e a Polônia (4,2%). A China é a grande exceção, ocupando a 2ª posição, com 6,4% (EUA, 2013a). Quanto às importações, a Rússia compra principalmente maquinário, equipamentos e meios de transporte, totalizando 45% de sua pauta de importações (RUSSIA, 2012b); os principais parceiros são Alemanha 53

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(10%), Ucrânia (6,6%) e Itália (4,3%). Neste quesito, também a China destaca-se, ultrapassando a Alemanha nos últimos anos e atualmente respondendo por 15,5% das importações russas (EUA, 2013a). Quanto ao Investimento Externo Direto (IED), segundo a ONU (2013), a Rússia, que era receptora líquida de investimentos desde 2002, passa a ter a partir de 2009 um saldo negativo de investimentos. Contudo, em 2011, a Rússia era a 13ª maior receptora de IED do mundo, ficando atrás apenas da China dentre os países emergentes (EUA, 2013b). Os principais países que investem na Rússia são a Suíça, com 48,2% do IED total em 2011, o Chipre, 10,6%, Holanda, 8,8%, Reino Unido, 6,9% e Alemanha 5,4%. Percebe-se a presença de paraísos fiscais como os principais investidores da Rússia, o que possivelmente representa a volta de investimentos realizados pelos próprios russos de maior poder financeiro, de forma ilegal (RUSSIA, 2012c). Moscou, por sua vez, tem como principais destinos de seu IED o Chipre, recebendo 34,6% do seu total em 2010, seguido pela Holanda, com 13,1% e Luxemburgo, com 5,7%. Como antes, percebe-se a existência de uma triangulação, ou seja, a utilização de um intermediário para a realização do IED russo em outros países. Como dito antes, é provável que parte desse dinheiro investido pela Rússia volte ao país, no que é chamado de round tripping (ALVES, 2011). Cabe, por fim, fazer uma breve análise a partir dos investimentos russos entre a Europa e Ásia. Nota-se que em 2010 a Rússia investia cerca de 219 milhões de dólares na Europa, medido em estoque, e apenas 5 milhões de dólares na Ásia. A quantidade de investimento na região da Comunidade de Estados Independentes (CEI) também é baixa, cerca de 15,9 milhões de dólares. Da mesma forma, a região que mais investiu na Rússia no mesmo período foi a Europa, com um montante de 342,73 milhões de dólares. A Ásia investiu apenas 6 milhões de dólares na Rússia e a CEI 2 milhões de dólares (KUZNETSOV, 2011). Diante disso, é válido notar que tanto a Rússia investe bastante na Europa quanto a Europa investe na Rússia, enquanto a Ásia tem participação baixa nesse aspecto. Conforme demonstrado anteriormente com as exportações, os grandes parceiros comerciais russos também estão na Europa, com exceção da China. Conclui-se, então, que Moscou possui uma economia fortemente dependente da exportação de recursos energéticos e que há uma relação 54

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econômica de interdependência complexa entre a Europa e a Rússia, com a primeira importando matérias-primas russas — energia — e exportando a ela bens de capital. Entretanto, é possível que esse quadro altere-se. Caso Moscou passasse a buscar uma reorientação nas relações econômicas com a Ásia, principalmente através da União Eurasiática, poderia exportar bens de maior valor agregado, rompendo com a interdependência complexa europeia e fomentando a construção de uma economia nacional completa e com setores de manufaturas em grande escala. Neste terceiro mandato de Putin, deve-se ficar atento se os investimentos russos passarão a fluir a essa região. Caso ocorra, demonstrar-se-á que o setor privado acompanha os passos da política externa do governo. Se não, seguirá sendo uma tentativa de Putin sem repercussão prática. Deve-se atentar também para o papel ocupado pela China na economia russa. A aproximação com esse país pode ser fundamental na determinação do foco de política externa da Rússia. Em recente visita do presidente chinês Xi Jinping ao país, firmaram-se acordos em diversos setores da economia, principalmente no setor energético e bancário (ARIS 2013, online). A principal petrolífera russa passará a fornecer cerca de um milhão de barris por dia à China. Até 2018 a China deve se tornar o primeiro destino das exportações russas de hidrocarbonetos.

1.3. Infraestrutura A análise da infraestrutura energética e logística russas tem especial importância para a compreensão de sua relação com a Europa e a Ásia, a integração nacional do território e a manutenção da Rússia como uma das maiores economias do mundo. A Europa é o principal destino de suas exportações energéticas. A principal rota dos recursos até os países receptores é através da Ucrânia, por onde passa 80% do gás da Rússia8. Desse modo, a instabilidade da política ucraniana é crítica e motiva a busca por rotas alternativas à União Europeia, destacando-se os gasodutos Nord Stream e South Stream (PICCOLLI, 2012). O projeto South Stream teve sua construção iniciada em dezembro 8

Além desse montante de gás, também se localiza na Ucrânia o oleoduto Druzhba que transporta 30% do petróleo russo à Europa.

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de 2012, e rivaliza com o projeto turco-alemão Nabucco, cujo objetivo é trazer o gás azerbaijano à Europa, para amenizar a dependência energética que a UE tem da Rússia. Entretanto, as fontes do Azerbaijão têm capacidade duvidosa e põem em questão o custo-benefício do projeto. O Turcomenistão é visado como o principal fornecedor complementar ao Azerbaijão. Entretanto, para conectar o sistema ao território turcomeno seria necessário atravessar o Mar Cáspio ou usar o sistema existente entre Irã e Turcomenistão. A primeira ideia é improvável, pois as águas do Mar Cáspio são disputadas pelos países que ali têm fronteira, incluindo a Rússia; a segunda possibilidade requereria a aproximação com o Irã (gerando desgaste com os Estados Unidos) ou a defesa da mudança no governo iraniano. Importa destacar que, recentemente, a empresa alemã RWE vendeu suas ações no projeto Nabucco para uma empresa austríaca. Paralelamente, as obras do South Stream já foram iniciadas. Em conjunto, os fatos podem significar o alinhamento de ideias entre a Alemanha, antes o maior defensor do Nabucco, e a Rússia, que sai beneficiada da disputa. Além disso, cabe ressaltar que o gasoduto gêmeo Nord Stream vem a corroborar a hipótese de cooperação russo-alemã, uma vez que o projeto conecta diretamente os dois países. Quanto aos projetos existentes na parte asiática do país, as discussões em torno das versões competidoras da Nova Rota da Seda têm central importância para o rumo da Ásia e da posição da Rússia no século XXI. O país tem o plano de fazer a Rota passar integralmente por seu território, tornando-se a artéria do continente — conectando a costa do Pacífico à Europa — e deixando a China à margem do trajeto. Para tanto, é necessário o desenvolvimento dos distritos da Sibéria e do Extremo Oriente, que fortaleceriam a posição da Rússia na região Ásia-Pacífico, inserindo-a no redimensionamento político-econômico pelo qual o globo passa nesse início de século. Apesar de seu potencial em hidrocarbonetos, minérios e água, o leste do país é muito pobre, encontrando uma série de obstáculos ao seu desenvolvimento, como a corrupção do funcionalismo público, que desfavorece novos investimentos. Além disso, o país como um todo, desde o fim da Era soviética, apresentou um declínio demográfico acentuado causado pela deterioração das condições socioeconômicas da população. Diante destes problemas e da insuficiência de capital, à 56

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primeira vista investimentos chineses seriam bem-vindos para a industrialização e desenvolvimento da infraestrutura regional. No entanto, o problema no leste é mais complexo, visto que a região já é historicamente pouco povoada e contrasta-se com o gigante demográfico chinês, ameaçador aos olhos russos devido à migração chinesa já existente na fronteira. Apesar de todos os desafios do leste, o maior deles é o posto pelo derretimento do permafrost — solo permanentemente congelado —, cujas previsões matemáticas apontam até 2050 em uma redução de 13% a 29% deste (SMITH, 2011). Uma vez que dois terços do território russo estão sobre o permafrost, os riscos subjacentes às mudanças climáticas dizem respeito ao comprometimento de toda a rede de infraestrutura do território russo, e, como decorrência disso, o fim da conexão LesteOeste9. Analisar o derretimento do permafrost, por sua vez, não significa afirmar que até o final do século XXI o território russo afundará. A construção civil demonstra avanços importantes na área de construção sobre este tipo de solo, mas com um custo muito elevado, como se vê na ferrovia chinesa Qinghai-Tibet. Uma vez que a Rússia não detém capital suficiente para financiar o desenvolvimento da Sibéria e enfrentar o desafio do permafrost, será necessário o investimento estrangeiro, sendo a escolha do parceiro fundamental para o futuro do país. Se por um lado as mudanças climáticas trazem um desafio, há um reverso através dos ganhos econômicos e regionais que a Rússia possivelmente adquiriria com o degelo do Oceano Ártico. O potencial deste em reservas de gás natural pode significar à Rússia o domínio de três quartos de toda a produção mundial (YENIKEYEFF & KRYSIEK, 2007). Ainda mais relevante vem a ser a abertura da Rota do Mar do Norte durante alguns meses do ano e a possibilidade de conexão hidroviária entre o interior do país e o Oceano Ártico graças à abertura dos rios siberianos à navegação (ANTRIM, 2010). Em especial, destacase a oportunidade única em toda a história russa de, através do Oceano Ártico, alcançar os mares quentes, evento que significaria o aumento em importância da Região do Báltico em relação ao Mar Negro. A principal decorrência das mudanças climáticas e das 9

Isto é, com o derretimento, “o terreno cede, as estradas vergam e os alicerces racham. Os oleodutos e trilhos de trem [tornam-se] torcidos e ondulados, quando deveriam ser retos” (SMITH, 2011: 138).

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comunicações pelo Ártico seria o surgimento do que Laurence Smith (2011) denomina NORCs — Países do Anel Setentrional10—, grupo composto por Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Islândia, Rússia, Canadá e EUA. Atualmente esses países já respondem por um PIB de US$ 20,7 trilhões, o que perfaz 29,5% do PIB mundial em números de 2012 (EUA, 2013a)11. Para efeitos de comparação deve ter-se presente que a UE responde por 22,43% (US$ 15,7 trilhões) e os BRICS por 19% (US$ 13,32 trilhões) do PIB mundial, segundo dados de 2011.

1.4. Segurança e Defesa O documento que rege a atual política securitária da Federação Russa é sua Doutrina Militar de 2010, adotada durante a presidência de Dmitri Medvedev. Diferentemente dos documentos securitários anteriores, este apresenta um caráter mais brando em relação aos Estados Unidos, embora os perigos militares à Rússia ainda estejam ligados ao bloco ocidental, com destaque às ameaças globalizantes da OTAN, em clara referência à expansão do bloco para países como Geórgia e Ucrânia (HAAS, 2011). No que diz respeito à Doutrina Nuclear, a política securitária russa continua voltada para a manutenção de suas capacidades estratégicas e de um poder de dissuasão nuclear elevado. O que mais se destaca é o fim do princípio de não realização do primeiro ataque nuclear, ou seja, a Rússia agora se permite utilizar as armas nucleares em resposta a possíveis ataques de armas de destruição em massa ou mesmo a ataques com armas convencionais (RÚSSIA, 2010)12. Destaca-se a existência de um escudo antimíssil a serviço do bloco ocidental, o qual põe em risco a capacidade de dissuasão nuclear russa e sua própria existência enquanto Grande Potência. O escudo antimíssil, ou 10

Do original em inglês: Northern Rim Countries. PIB dos NORCs: Noruega: US$ 278,1 bilhões; Suécia: US$ 395,8 bilhões; Finlândia: US$ 198,1 bilhões; Dinamarca: US$ 208,5 bilhões; Islândia: US$ 12,95 bilhões; Rússia: US$ 2.509 bilhões; Canadá: US$ 1.446 bilhões; EUA: US$ 15.660 bilhões (EUA, 2013a). 12 A possibilidade de uso de armas nucleares como ataque preventivo, algo rumorizado antes do lançamento da Doutrina em 2010, é silenciada na própria, muito embora em conjunto à aprovação da Doutrina Militar em 2010 também tenham sido aprovados os “Principles of State Nuclear Deterrence Policy to 2020” que, em razão de serem mantidos em segredo, podem conter a cláusula de ataque preventivo (HAAS, 2011). 11

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National Missile Defense (NMD), é uma continuidade da Strategic Defense Initiative (SDI), proposta pela administração Reagan em 1983. Seu desenvolvimento significou o rompimento do equilíbrio de vulnerabilidades mantido até então pela doutrina MAD (do inglês, Destruição Mútua Assegurada), e pelo Tratado ABM de 1972, com o objetivo claro de, através da primazia nuclear, tornar a vitória na guerra termonuclear possível (PICCOLLI, 2012). Apesar de a SDI ter sido renomeada como NMD em 1999, é somente na administração Bush, após os atentados de 11/09, que ela começa a ser de fato desenvolvida, sob a justificativa de contenção do Eixo do Mal (Irã, Iraque e Coreia do Norte), os quais supostamente estariam fortalecendo suas capacidades missilísticas a favor do terrorismo internacional. Ainda em 2001, o governo iniciou o desenvolvimento do projeto para a Europa, que seria baseado na instalação de 10 bases terrestres com mísseis interceptadores na Polônia e um radar na República Tcheca, com o suposto objetivo de conter os mísseis iranianos, embora a capacidade de alcance destes seja relativamente curta em relação à Europa (PICCOLLI, 2012). Enquanto a política de Bush era direcionada à primazia nuclear, a administração Obama modificou linhas centrais do projeto. Em 2009, adotou o EPAA (European Phased Adpative Approach), o qual estabelece que seria a Europa, e não mais os Estados Unidos, quem arcaria com os custos do escudo. Além disso, durante a Cúpula de Lisboa em 2010, o projeto passou a ser desenvolvido no âmbito da OTAN (BBC, 2010). O projeto de Obama se baseia no emprego de sistemas Aegis embarcados em cruzadores Ticonderoga e destróieres Arleigh Burke, e interceptadores RIM-161 como principal vetor terrestre (BBC, 2012; PICCOLLI, 2012; THE ECONOMIST, 2012). Até o final de 2012, a maior parte dos cascos ainda não tinha o sistema RIM-161 capaz de interceptar os mísseis, e a própria utilização de navios deixa entender que o sistema não será operacional a toda hora. O escudo antimíssil “passou a andar em passo de tartaruga” (PICCOLLI, 2012: 31) e, a princípio, as mudanças adotadas deixam uma lacuna para que a Rússia desenvolva suas capacidades e possa superar o bloqueio missilístico13. 13

A crise econômica torna duvidosa a capacidade e a intenção da Europa em financiar o projeto, sem mencionar o fato que, para a Rússia, as negociações com a Europa são muito mais fáceis e não carregam consigo todo o peso em se negociar com os Estados Unidos (PICCOLLI, 2012).

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Frente ao escudo antimíssil europeu, a Rússia respondeu de diversas formas, algumas mais consistentes e sustentáveis e outras de certa maneira tomadas por um sentimento de urgência. Primeiramente, houve um aumento nos gastos de defesa, indo de cerca de pouco mais de 20 bilhões de dólares em 1999 para mais de 60 bilhões hoje em dia14. Entretanto, a principal resposta russa seria a criação de uma nova classe de submarinos, Borei, e de mísseis balísticos intercontinentais lançados de submarinos, os Bulava (versão para submarinos da classe Topol-M). Essa seria uma boa e sustentável estratégia à Rússia, visto que com tais mísseis Moscou poderia manter sua capacidade de segundo ataque através de submarinos lançadores de mísseis das próprias águas russas. Outras medidas tomadas, envoltas em um sentimento de urgência e com certa precariedade de cálculo, envolvem a criação de mísseis balísticos intercontinentais de combustível líquido — uma tecnologia instável, cara e de difícil manuseio —, que viria a substituir os mísseis SS-18 (Satan). Estes, no longo prazo, poderiam pesar no orçamento militar russo, visto que seriam de valor mais elevado que os mísseis Bulava (PICCOLLI, 2012). Aqui vale destacar que as forças estratégicas russas estão concentradas em mísseis balísticos intercontinentais terrestres (ICBMs), estando quase metade das ogivas estratégicas totais — 1087 — neles localizados. Cerca de 70% dessas forças terrestres são mais antigas, sendo grande parte constituída pelos SS-18 — os quais juntos somam metade das ogivas estratégicas localizadas em ICBMs, visto que cada um carrega 10 ogivas. Os 28% restantes das forças estratégicas terrestres já foram modernizados, substituídos pelos mísseis Topol-M (uma ogiva), e Yars (seis ogivas). Em submarinos, a Rússia possui 528 ogivas estratégicas, dentro de 6 submarinos Delta IV e 3 submarinos Delta III, os quais são antigos e estão sendo substituídos pelos Borei — cuja 3ª unidade está entrando em uso. São os Borei que receberiam os ICBMs marinhos — SSBMs —, capazes de perpassar o escudo de forma mais barata que possíveis novos ICBMs terrestres de combustível líquido. Por fim, cerca de 820 ogivas estratégicas estão em bombardeiros, 59 Tu-95 e 13 Tu-160 (KRISTENSEN & NORRIS, 2012). Porém, esses teriam suas

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Nota-se que em 2011 a Rússia era o 5º país em gastos militares em números absolutos, e em 2012, com um aumento no orçamento, alcançou a 3ª posição no ranking mundial.

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capacidades anuladas pelo escudo antimíssil15. Sob a mesma visão de modernizar suas capacidades estratégicas e de garantir o controle do espaço, a Rússia construiu seu sistema de satélites de cobertura mundial, o GLONASS, que é composto de 24 satélites e operante desde 2011. O GLONASS possui como principal função militar a orientação e guiagem das armas estratégicas. Em 2011, com a criação das Forças de Defesa Aeroespaciais, colocaram-se sob o mesmo ramo das Forças Armadas o controle do espaço e as forças estratégicas russas, demonstrando a simbiose necessária entre essas duas áreas para a defesa da Rússia. No que diz respeito às capacidades convencionais, desde 2008 são empreendidas reformas militares com intuito de modernizar as Forças Armadas russas. Essas reformas deram-se pela redução do tamanho do exército, visto que as unidades foram todas substituídas por brigadas sempre prontas para o combate. As capacidades terrestres também decaíram, principalmente os tanques16. Quanto às capacidades navais russas, destaca-se a presença de um navio aeródromo (NAe 063), o Almirante Kuznetsov, já de idade avançada. No que tange às capacidades aéreas, a Rússia possui o segundo maior número de caças de quartageração, como o Su-35, bem como o segundo maior número de helicópteros de combate, atrás apenas dos EUA em ambas as categorias. Destaca-se o processo de desenvolvimento dos caças russos de quinta geração: o Sukhoi T-50 PAK FA, munido de tecnologia stealth (IISS, 2012). Apesar de Moscou somar esforços para modernizar suas forças convencionais em direção à guerra moderna, parece bastante claro que apresenta uma ambiguidade: busca manter e modernizar, 15

Nota-se a importância das armas estratégicas para a Rússia tanto por uma questão de sobrevivência do Estado frente à ameaça do escudo europeu quanto para a manutenção do status de Grande Potência, visto que são nessas capacidades que Moscou se baseia, agora que suas capacidades convencionais estão enfraquecidas frente a outros países. A mudança na doutrina militar russa que derrubou o princípio de evitar o primeiro ataque nuclear demonstra o mesmo. 16 Na época da URSS os tanques de combate passavam de 50.000 unidades e agora contabilizam pouco mais de 3.000. Isso está em consonância com a vontade de reforma para guerra moderna, visto que esse grande número de capacidades convencionais era algo do tempo soviético, quando a URSS estava preparada para travar longas guerras em grandes extensões territoriais, exposta à intensa e contínua fricção.

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simultaneamente, suas capacidades estratégicas. Esse aspecto implica em uma divisão do orçamento de defesa, fazendo com que mais recursos venham a ser gastos em todos os planos de defesa. Isto impede a possibilidade de investimentos em outras áreas necessárias ao crescimento da Rússia, além de impossibilitar a conclusão de todos os projetos ligados à segurança.

1.5. Rússia na transição tecnológica A análise de alguns indicadores permite concluir que em termos de transição tecnológica, a Rússia encontra-se atrasada em relação a outras grandes potências, especialmente à China e aos EUA. Segundo o Battelle Memorial Institute (2010), a Rússia é o 10º país com maiores gastos reais absolutos em Pesquisa & Desenvolvimento. Em número de pedidos de patente, o país fica apenas na 7ª posição mundial (WIPO, 2010). Em termos de recursos minerais estratégicos, os russos possuem destaque. Seu território abriga a segunda maior reserva de Terras Raras do mundo, as quais, entretanto, são pouco exploradas e comercializadas atualmente. Mesmo assim, possuem grande potencial de serem utilizadas nas próximas décadas. Quanto aos metais importantes no processo de transição tecnológica destaca-se, primeiramente, o silício, usado na fabricação de semicondutores e metalurgia e com produção russa atual de 610 mil toneladas. Já o alumínio é de ainda maior importância, não só por ser essencial para as indústrias aeronáutica e de defesa, mas especialmente por ser a Rússia detentora da Rusal, maior empresa do mundo na produção desse metal, com 4,7 milhões de toneladas produzidas ao ano. Esta é também responsável por 9% da produção mundial e já busca matéria-prima nos cinco continentes para suprir sua demanda. Quanto aos processadores, a Rússia fabrica o Elbrus, que hoje funciona na velocidade de 300 MHz, enquanto o último processador da IBM funciona à 5,5 GHz, o que mostra a defasagem russa em relação ao desenvolvimento de alta tecnologia. Este fato nos leva a questionar se a Rússia estaria seguindo os mesmo passos da URSS, uma vez que o colapso desta pode ser atribuído ao não-desenvolvimento de tecnologia de ponta. A Rússia também possuí um supercomputador, o Lomonosov, 62

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que, todavia, é montado nos EUA17. Ainda como iniciativa de Medvedev está a construção do Centro de Inovação de Skolkovo, uma espécie de “Vale do Silício russo”, que aglutinará investimentos de grandes empresas europeias (como a EADS, a Siemens e a SAP AG). Recentemente ressalta-se a iniciativa de Putin de criar a Fundação Russa para Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa da Indústria (apelidada de “DARPA russa”, em referência à organização similar de pesquisa militar dos EUA). Tal iniciativa representa uma tentativa de envolver os parceiros europeus de Skolkovo para cooperação militar e criação de um clima de maior confiança com a Europa, além de ser fruto da percepção de que a Rússia carece de um modelo de negócios e serviços no setor de defesa, o qual é atualmente muito centralizado e pouco competitivo (PICCOLLI, 2012). Assim, através de uma análise do momento em que a Rússia encontra-se em termos de transição tecnológica, nota-se que o atraso russo é inegável e que isso pode prejudicar seu futuro de inserção no cenário internacional. Porém, podemos perceber Skolkovo e a “DARPA russa” como tentativas para superar essa defasagem tecnológica, notando também que seu potencial de terras raras é ainda subutilizado.

2. SITUAÇÃO O delimitador de situação é o novo governo de Vladimir Putin, iniciado em 2012. Primeiramente, é necessário compreender por que não ocorreu um segundo mandato de Dmitri Medvedev, fato que se explica através da Cúpula de Lisboa (2010) entre OTAN e Rússia. Nela, Medvedev propôs que fosse desenvolvido um sistema antimíssil conjunto (EuroDAM), o que surpreendeu a OTAN. Apesar de promessas de cooperação durante a Cúpula, meses depois a OTAN negou categoricamente a possibilidade desta ideia ser realizada. Assim, o projeto de política externa de Medvedev de aproximação com a Europa fracassou, juntamente com sua popularidade no país. Essa perda de popularidade culminou com a retirada de sua candidatura à reeleição. 17

Destaca-se que, em 2009, Medvedev lançou um programa para construir um supercomputador inteiramente russo, com previsão de início da montagem em 2013, mesmo não havendo ainda notícias da viabilidade do projeto.

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Com isso, Putin concorreu novamente, retornando à presidência em 2012. Também se faz necessário abordar os recentes desenvolvimentos no Oriente Médio, particularmente na Síria e no Irã, após o início da Primavera Árabe. A Rússia deu relativo apoio à Síria durante certo tempo, pelo fato da base naval russa de Tartus estar localizada em seu território, sendo esta a única base que a Rússia ainda mantém fora da região da exURSS. Soma-se a isso a possibilidade de uma eventual queda do atual regime na Síria, com um consequente avanço dos interesses anglofranceses na região: um governo favorável à Inglaterra e à França poderia fornecer petróleo à Europa diretamente pelo Mediterrâneo, prejudicando as exportações russas de energia. Entretanto, no horizonte predizível de eventos, Moscou não protegeria a Síria, uma vez que não é de seu interesse nacional entrar em guerra por este país.

3. CENÁRIOS Convencionou-se que o melhor cenário para Rússia seria o da GeRússia, que consistiria de uma aproximação da Rússia com a Alemanha, possibilitando um sistema de multipolaridade mais equilibrada. Com um alto grau de aproximação, este cenário possibilitaria a criação de um novo polo, equivalente a uma nova superpotência. Com um nível menor de interação, a parceria inter-regional serviria para atender às dificuldades de curto e médio prazo dos dois países. A parceria com a Alemanha teria o papel de suprir a Rússia de capital e tecnologia. Os investimentos alemães são cruciais no setor energético, como é exemplificado pela participação alemã em 31% do Nord Stream. Esses investimentos importam também para a transição tecnológica e para a manutenção da infraestrutura de transportes. Este último aspecto se torna particularmente relevante dados os problemas decorrentes do degelo do permafrost. A parte alemã pode beneficiar-se da interdependência complexa com a Rússia, adquirindo também maior peso nas decisões acerca da Europa Leste, Oriente Médio e Ásia Central. Além disso, para a Alemanha importa a disseminação de serviços bancários e de telecomunicações. Os aspectos críticos relacionados à possibilidade de configuração do GeRússia parecem estar relacionados às dificuldades nas relações bilaterais. Alemanha e Rússia possuem discursos diferentes: o da 64

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Alemanha, universalista, baseado na defesa dos direitos humanos; e o da Rússia, de tom defensivo reativo utilitário (PICCOLLI, 2012: 52), mais próximo ao realismo. Apesar de suas dificuldades, o GeRússia permanece válido: os problemas alemães no âmbito da UE — Entente Frugale e crise econômica — a impelem em direção a parcerias inter-regionais. No longo prazo, o principal benefício do GeRússia para a Rússia é a possibilidade de que a estabilidade na Europa Leste, Cáucaso e Oriente Médio permita a realocação de suas forças militares, hoje voltadas para a porção ocidental do território russo, para então dar maior atenção às vulnerabilidades da região siberiana. Mesmo em caso de configuração de tal cenário, de parceria interregional relativamente fluída, entende-se que ele dificilmente se constituiria em uma união político-econômica. De qualquer modo, mesmo uma aproximação limitada entre Rússia e Alemanha converge em direção à multipolaridade no SI. Conforme George Friedman (2011: 156): Mesmo que a relação [entre Alemanha e Rússia] possa ser informal no início, ela irá solidificar-se em algo mais substancial ao longo do tempo, simplesmente porque as partes se encaixam bem demais para que ocorra de outro modo. Esta seria uma redefinição histórica das relações EUA-Europa, uma mudança fundamental não só na balança de poder regional, mas também na global, com resultados que são altamente imprevisíveis18.

Nesta modelagem, considerou-se que o pior cenário para a Rússia seria o do predomínio dos NORCs e o estabelecimento de uma unipolaridade. Este cenário representaria o fracasso de qualquer projeto nacional russo. Os danos decorrentes do derretimento do permafrost seriam alarmantes para a Rússia. A condição de unipolaridade se deveria à conjugação da força centrípeta da economia dos NORCs enquanto bloco, associada ao efeito multiplicador de uma hegemonia, na qual os 18

No original: “However informal the relationship might be at the beginning, it will solidify into something more substantial over time, because the parts simply fit together too neatly for it to be otherwise. This would be a historic redefinition of U.S.-European relations, a fundamental shift not only in the regional but also in the global balance of power, with outcomes that are highly unpredictable”.

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EUA não possuiriam competidores. A parceria com a Alemanha não se realizaria ou, frente às novas dificuldades, tornar-se-ia insuficiente. A região siberiana, isolada do resto do país pelo colapso da infraestrutura de transportes, seria o principal problema de segurança. O bloqueio da conexão desta região com o resto da Rússia, somado à pressão demográfica chinesa, levariam o país a crer que está diante do risco de perder parte significativa de seu território19. Neste contexto, a OCX tornase nula como mecanismo de segurança, e os EUA, através dos NORCs, convertem-se na única alternativa de segurança, com a Rússia sendo incorporada na hegemonia norte-americana. Assim, o país passaria a atuar como um gendarme do capital estadunidense em sua periferia, enquanto abasteceria os EUA com energia. Por fim, convencionou-se como cenário intermediário a hipótese da manutenção da indefinição sobre o tipo de equilíbrio dominante no SI — se unipolar, bipolar ou multipolar. Neste caso, a OCX se converteria em uma aliança militar formal, sobretudo em virtude de dois fatores. Primeiro, fazer frente à primazia nuclear estadunidense — reforçado pelo fracasso russo no desenvolvimento do míssil Bulava, da qual depende a capacidade de segundo ataque do país — e ao escudo antimíssil na Europa Leste e no Japão. Depois, devido à percepção de ameaça iminente aos interesses da Rússia na Síria20, Geórgia e Irã, por parte de paísesmembros da OTAN.

Conclusão A Rússia é a mais longeva das Grandes Potências. Desde sua ascensão em 1721, após a Grande Guerra do Norte, a Rússia atravessou

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A Sibéria, enquanto região, responde por 58% do território russo. O que poderia vir a acontecer, caso o regime sírio caísse, seria a Rússia responder em outro lugar mais tarde, conforme já fez em outras ocasiões, como a Guerra da Geórgia após ingerências na região dos Bálcãs — Bósnia e Kosovo. O local de possível resposta poderia ser o Irã, que flerta para entrar tanto na OCX quanto na OTSC. É pouco provável que a OCX faça do Irã um membro, mas a Rússia pode considerar a entrada dele em sua aliança militar. Caso isso ocorresse e se o Irã viesse a fazer parte dessa aliança, a Rússia poderia legitimamente desdobrar tropas no território iraniano, o que lhe daria acesso ao Mar Índico e ao Golfo Pérsico.

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quatro “guerras mundiais” — além da Guerra Fria — três mudanças de regime político e diversas alterações na polaridade do Sistema Internacional, mantendo intacta sua condição. Além disso, suas capacidades falam por si mesmo: detém a segunda posição mundial em arsenal termonuclear, Força Terrestre, Força Aérea, e Comando do Espaço (apenas depois dos EUA); além de ser o maior produtor mundial de hidrocarbonetos e deter a maior reserva de gás natural e de petróleo do mundo. Por certo, a Rússia enfrenta graves problemas resultantes da transição da era soviética e da mudança climática. Entretanto, cabe lembrar que o país já atravessou vicissitudes antes: foi arrasado pelas forças de Napoleão (1812) e Adolf Hitler (1941-45) e dilacerado pela guerra civil (1918-21), conseguindo recuperar-se vigorosamente. Contudo, pareceu recuperar-se mais rápido depois da guerra civil e da invasão alemã do que da transição da era soviética. Em 1925, a Rússia já era a maior Força Aérea e o maior Exército da Europa, no pós Segunda Guerra ostentou por 25 anos os maiores índices de crescimento mundiais. Esse não parece ser o caso atual. Permanece incerta a inserção russa na transição tecnológica. Em matéria de defesa, seus principais projetos ainda datam da era soviética, ainda que tenha que se reconhecer que foram efetivados graças a sua inserção na economia mundial. Os projetistas russos de processadores são disputados avidamente pelo Vale do Silício. A Rússia está comprometida no esforço de produzir supercomputadores — ainda que com êxito limitado —, e seus softwares tem reconhecimento mundial. Todavia, a Rússia tem demonstrado extrema dificuldade em empreender a produção de superprocessadores. Isto tem comprometido a prototipação virtual, com impacto considerável sobre a capacidade de produção civil, a gestão do comando do espaço (três satélites GLONASS perdidos) e a guiagem de armas (parece ser o caso do Bulava). Mesmo seu último litígio com os EUA, envolvendo a elaboração de “listas negras” de personalidades e empresas, tem como plano de fundo a produção de supercomputadores e, portanto, a inserção favorável da Rússia na transição tecnológica. Caso se 21

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Para efeitos deste trabalho, consideram-se como guerra mundial aquelas em que se criam ou se desconstituem polos do Sistema Internacional. O texto refere-se: a Guerra dos Sete Anos (1756-1763); as Guerras da Revolução Francesa (1792-1815); Primeira Guerra Mundial (1914-1918); e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

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considere o que o computador e a rede desempenham para a economia hoje, na era digital (graças ao papel que desempenham os serviços bancários e de telecomunicações), o mesmo papel que no fordismo tiveram a siderurgia do aço e refino do petróleo, as dificuldades da Rússia em matéria de tecnologia poderiam explicar, ao menos parcialmente, a lentidão de sua recuperação. Naturalmente, o maior óbice com o qual a Rússia ainda se depara é a guerra permanente e o terrorismo islâmico, que podem estar associados à queda da taxa de natalidade: o país ainda não teve um baby boom, que normalmente se sucede às grandes guerras ou crises. A despeito da vitória de Barack Obama nos EUA, as pressões sistêmicas — dentre as quais se destaca o escudo antimísseis (DAM) — tem impelido a Rússia em direção à China. A primeira viagem ao exterior do recém-empossado presidente chinês, Xi Jinping, foi para a Rússia. Nesta visita, os dois países retomaram a cooperação militar encerrada desde 2008 (Guerra da Geórgia). Espera-se que em 2018, a China se torne o principal destino das exportações de hidrocarbonetos da Rússia22. Em qualquer caso, como destaca Waltz, as alianças não constituem, por si mesmas, polaridades. A aproximação entre Rússia e China não parece ameaçar o processo de triangulação com os EUA. Pelo contrário, parece refletir a reação desses países ao risco da primazia nuclear. Nem por isso, entretanto, prenuncia-se a confrontação: o empenho dos três países na recente crise coreana assim o atesta. Fica em aberto saber qual será o comportamento da Rússia frente às ações de países ocidentais feitas à revelia dos EUA, ou mediante seu consentimento relutante. Este parece ser o caso da Líbia e, agora, da Síria. Importa destacar que a Rússia tem fortalecido suas posições militares no Mar Negro e no Mediterrâneo Leste — dispondo-se, inclusive, a reconstruir a frota do Mediterrâneo (desfeita com o colapso da URSS). Além disto, estudos futuros deverão monitorar a inserção da Rússia na transição tecnológica — deve-se acompanhar o processo de desenvolvimento de supercomputadores e superprocessadores —, além do status específico dos programas missilísticos e aeroespaciais russos. 22

Em recentes conversas, Rússia e China demonstraram interesse em ampliar o fluxo de petróleo através do oleoduto Sibéria Oriental-Oceano Pacífico, próximo da fronteira chinesa (RIA NOVOSTI 2013, online). Isso é um possível indicador que corrobora a configuração do cenário intermediário.

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Aqui, o destaque é a tecnologia hipersônica, que pode confrontar o mundo com um impacto tão grande quanto aquele suscitado pelo computador e a rede.

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Capítulo 4 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA ÍNDIA Angela Gallina Brandalise Helena Marcon Terres Júlia Simões Tocchetto Livi Gerbase Luiza Costa Lima Corrêa Matheus Machado Hoscheidt Pedro Felipe da Silva Alt Introdução O presente trabalho pretende analisar os principais aspectos da Política Externa de Segurança (PES) da Índia, respondendo ao problema de pesquisa — como se estrutura a PES da Índia — a partir da interrelação entre as variáveis História, Economia, Infraestrutura, Instituições Políticas, Segurança e Defesa e Transição Tecnológica. Com isso em mente, utilizamos o recurso da tipificação de uma dualidade como ferramenta classificatória e compreensiva. Como hipóteses preliminares, apontamos que 1) os polos da dualidade indiana são o Universalismo Comunitário e o Chauvinismo Territorial. Enquanto o primeiro tipo ideal está baseado na liderança pelo exemplo, no sincretismo e na atuação como potência amigável; o Chauvinismo Territorial está baseado na idealização de uma Civilização Hindu folclórica, discurso que possibilita a atuação como potência territorial expansionista. E, também, 2) cremos que, nos últimos anos há, na Índia, uma tendência de atuação de acordo com os atributos do Universalismo Comunitário. Neste estudo, portanto, pretendemos esboçar: 1) a dualidade que rege a ação indiana na sua PES; 2) possíveis variáveis explicativas dos padrões de oscilação do comportamento indiano no espectro da dualidade; e, por fim, 3) as tendências atuais de aproximação com os polos da dualidade. A dualidade entre o Universalismo Comunitário e o Chauvinismo Territorial se reflete na formação da identidade indiana e a dicotomia está 72

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presente na construção social do indivíduo indiano. Assim, não podemos afirmar que existe uma divisão entre um grupo social chauvinista e outro universalista. Pode-se entender, contudo, a partir da conjuntura, qual posição predominantemente se manifesta. É possível, ainda, relacionar a dualidade com as diferentes plataformas políticas dos principais partidos indianos. Os dados gerais apresentados abaixo evidenciam importantes aspectos sobre o país e procuram contribuir para avaliação da Política Externa de Segurança (PES) indiana no cenário atual. A Índia localiza-se no sul da Ásia, é banhada pelo Oceano Índico e faz fronteira com seis países: Paquistão, China, Nepal, Butão, Bangladesh e Myanmar. A população total é de 1,2 bilhões de habitantes, a segunda maior do mundo, sendo que apenas 30% desta vive na zona urbana. O território do país é o 7º maior, com 3,3 bilhões de km². Seu exército é o 3º maior do mundo, com um efetivo de 1,155 milhões. O PIB nominal indiano, de USD 1,8 trilhão em 2011, é o 10º maior, estando seu valor per capita de USD 1.514, em 139º lugar no ranking mundial. Os serviços correspondem a mais de metade do PIB (56,4%), a indústria representa 26,4% e a agricultura, 17,2%. O índice Gini1 de desigualdade de renda é de 36,8. Seu IDH é baixo, valorando 0,547. A principal e majoritária religião na Índia é o Hinduísmo (80%); seguida pelo islamismo (13%) e pelas minorias cristã e sikh. A Índia é um país em processo de modernização, que busca manter o crescimento econômico e diminuir seus custos sociais por meio do avanço no desenvolvimento humano. A natureza e a rapidez das transformações que ocorrem na Índia são os desafios de uma potência emergente. Pode-se dizer, portanto, que a Índia concentra, em um espaço limitado e em tempo relativamente curto, as questões essenciais para um mundo no qual novos países despontam como polos mundiais e o centro de poder está se deslocando. Observar a engenharia não-física interna do país para gerenciar essa realidade, portanto, importa para o Sul econômico e mesmo para os países desenvolvidos, visto que a maioria da população mundial habita países da semiperiferia ou periferia. A Índia é, por fim, esse “microcosmos” que replica as condições mundiais e testa as soluções para as grandes querelas da humanidade (KAMDAR, 2008). 1

O índice varia de 0, quando não há desigualdade, a 100, quando a desigualdade de renda é extrema.

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A atuação regional da Índia, por sua vez, também possui implicações mundiais, dada sua importância no Oceano Índico. Tal oceano, de acordo com Kaplan (2011), será o grande centro das transformações do Século XXI, devido à sua nuclearização, às suas sociedades voláteis e à sua importância comercial e energética.

1. HISTÓRIA A Índia, como civilização tributária baseada no vale do Indo, teve seu apogeu sob domínio Mogul e seu auge com o Imperador Akbar que proporcionara unificação e prosperidade a partir de uma política de sincretismo. Com o ocaso do Império Mogul e a fragilização do governo central, o subcontinente tornou-se permeável à Companhia das Índias Orientais, companhia marítima de comércio britânica que colonizou a região a partir da costa. O Raj britânico manteve-se sob regime de colonização direta de 1858 a 1947. A preocupação do Império britânico com o controle direto e essencialmente estatal da colônia indiana deu-se a partir à Revolta dos Cipaios, que pode ser considerada a primeira guerra de independência2. Durante a Segunda Guerra Mundial, floresceram sentimento nacionalista e movimentos anticoloniais, os quais evidenciaram deslealdade à Inglaterra. Um indicador do descontentamento indiano com a coroa britânica é a formação de um grupo de dissidentes liderados por Bose, que se autodenominou “Exército Nacional Indiano”. Tal grupo lutou ao lado dos japoneses contra os britânicos na Birmânia3, território de extrema importância para os Estados Unidos, já que era a única rota de acesso à China. Apesar da vitória Aliada na Segunda Guerra, a Inglaterra 2

3

Os Cipaios eram funcionários da coroa os quais se rebelaram contra a exploração britânica. Pode-se identificar a atuação da classe dominante local em tal movimento, uma vez que buscavam retomar maior controle político na região. Podemos, assim, reconhecê-la como uma Primeira Guerra de Independência, e possível princípio de um movimento nacionalista indiano. E lutavam também contra os próprios indianos os quais serviam o exército organizado pela metrópole para lutar ao lado aliado na Segunda Guerra. As batalhas de Impal e Kohima representaram uma vitória aliada, com destaque para a atuação indiana. Tais batalhas proporcionaram orgulho à colônia tanto em função do desempenho indiano que lutava ao lado aliado quanto pelo “Exército Nacional Indiano”.

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viu-se sem condições de manter seu governo na colônia eficaz. Dá-se início às negociações relativas à independência, nas quais a Inglaterra eleva a posição da Liga Muçulmana pelo apoio recebido na guerra. Isso concedeu à Liga um status sem precedentes, o que possibilitou a fragmentação do antigo Raj em dois Estados independentes. Nasce, assim, com a Índia, seu principal rival — o Paquistão. Durante o processo de independência, crescem sentimentos religiosos extremistas, que permeiam as interações atuais dos dois países e dificultam a cooperação regional. As guerras indo-paquistanesas do Século XX mostram que guerras convencionais não foram capazes de definir a correlação de forças na região, principalmente acerca da questão da Caxemira4. Outro importante condicionamento histórico para a concepção indiana de força foi a Guerra Sino-indiana de 1962, a qual resultou no entendimento distorcido de que a China precisa ser vencida para que a Índia se estabeleça como uma Grande Potência5. Um primeiro sinal da integração regional, essencial para o fortalecimento da Índia, verifica-se no acordo Simla, de 1971, firmado com o Paquistão, como um início de conversas entre agentes locais para resolverem suas questões. Tais iniciativas preconizam a criação da SAARC em 1985 (Associação Sul-Asiática para Cooperação Regional).

2. ECONOMIA A economia da Índia tem como caráter distintivo seu elevado crescimento, evidente na primeira década deste século, com média de 7,13% de 2000 a 2011 — ainda que já apresentasse taxas razoáveis desde a década de 1980. A Índia é o segundo país que mais cresceu entre as dez maiores economias do mundo — perdendo apenas para a China. Importa salientar que o crescimento ocorreu, principalmente, pelo aumento da 4

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A guerra irregular-complexa que incide sobre a região não pode ser combatida com a força, uma vez que o motor de tal tipo de guerra é o ódio, o qual se mantém após o conflito e ainda incita movimentos separatistas (Clausewitz, 2003, p.30). Além disso, resultou na percepção de que a derrota se deu em função da impossibilidade de mobilização da força aérea indiana, o que explica o padrão atual de gastos militares. Cabe salientar a utilização atual da compra militar como diplomacia dos meios de pagamento.

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formação bruta de capital fixo e não por um grande superávit de exportações, uma vez que a Índia tem tido déficit comercial desde a década de 1990. Assim, seu crescimento é pouco abalado por crises e recessões globais. Evidência disso é o alto crescimento verificado em 20096, 5,9% (IMF, 2013; SCHATZMANN, 2010). A taxa de investimento interno também é destacada, tendo sido de 29,5% do PIB em 2011, a 19ª economia que mais investe (CIA, 2013). O investimento é extremamente importante para consolidar as taxas de crescimento indianas e criar uma base concreta para sua indústria e produção. A partir da análise dos principais parceiros comerciais da Índia, importa citar as intensas relações comerciais com a China (com a qual tem déficit comercial no valor de 20% do total de seu déficit de mercadorias, pois é a principal fonte de suas importações) e com o Oriente Médio, principalmente os Emirados Árabes Unidos, de onde advém seu abastecimento de petróleo (EXIM INDIA, 2013).7 Não existe nenhum acordo de livre-comércio entre eles; têm ocorrido, todavia, negociações para criar o maior bloco comercial do mundo, o RCEP (Regional Comprehensive Economic Partnership), com 16 membros, entre eles os gigantes industriais China, Japão e Coreia do Sul, outros países da ASEAN, a Austrália e a Nova Zelândia (THE ECONOMIC TIMES, 2013). A participação das exportações, em relação ao total exportado, para o Oriente Médio e Norte da África cresceu de 2000 a 2011 (nove pontos percentuais) e decresceu para a Europa e, principalmente, para a América do Norte (de 22% a 11%), demonstrando uma mudança nos padrões de amizade e inimizade (DEA, 2012). A partir da década de 2000, o PIB nominal deu um salto, devido à maior onda de liberalização interna (maior privatização de empresas estatais) e externa (redução acentuada das taxas de importação). A economia só reagiu bem à abertura (lenta e gradual), pois já havia consolidado boa parte de sua produção durante o período protecionista e de intervencionismo estatal que vigorou desde a independência. A saída e entrada de IED aumentaram significativamente, principalmente depois de 2006 (SCHATZMANN, 2010). Os fluxos de IED têm como principais 6 7

Ano em que muitas economias tiveram baixíssimos crescimentos ou mesmo recessões. As relações econômicas com a China são assimétricas. As importações oriundas do país são de manufaturados, enquanto as exportações para este são de, principalmente, algodão e minerais. (THE ECONOMIST, 2013).

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origens países que fazem triangulação do investimento, seguidos pelo Japão com 8% e o Reino Unido, a Alemanha e a França somando 11%8 (DIPP, 2012). Metade do investimento indiano no exterior é concentrada na Europa, praticamente 1/3 na Ásia e aproximadamente 12% na África (PRADHAN, 2011). Seus investimentos são principalmente em fusões e aquisições de grandes empresas em países desenvolvidos (os principais acordos foram de metalurgias, telecomunicações, automotivo, geração de energia, entre outros) (IPEA, 2012). Há que se destacar, além do panorama da economia, um fenômeno sociológico inter-relacionado tanto com o processo de industrialização inicial indiano, quanto com o seu sucesso. A construção das capacidades industriais da Índia deveu-se, em certa medida, à subcontratação e à transnacionalização de capitais de países desenvolvidos. Esse sistema implicava que a coordenação da “distribuição” de setores e direcionamento do produto das empresas indianas estava centralizado no país de origem da empresa que subcontratava, ou seja, no país exportador de capital. Cabia à elite industrial indiana, nesse sistema, viabilizar internamente condições burocráticas e materiais para a instalação das empresas. Decisões centrais de gerenciamento da empresa e de distribuição do mercado internacional eram, contudo, tomadas pela empresa estrangeira. Pela característica do sistema de expansão transacional de redes produtivas, o transbordamento do know-how e a dinamização da economia nos países subcontratados gerou ambiente favorável para o florescimento de empresas independentes do capital e gerenciamento estrangeiro. Tais empresas sustentam novas elites que se articulam como um novo grupo de pressão político, o qual apresenta nova agenda para a política doméstica e externa. A nova agenda pode deverá ser absorvida pela plataforma de partidos já estabelecidos ou engendrará o surgimento de novas frentes na disputa pelo poder. O caso das parcerias com o Japão elucida o fenômeno. Tanto Índia quanto China se beneficiavam da associação com empresas japonesas, que se expandiram transnacionalmente distribuindo as suas múltiplas

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Esses fluxos são importantes, pois a entrada de IED tem sido para a infraestrutura e construção civil, mas também se direcionarem para a indústria manufatureira e serviços. (DIPP, 2012).

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camadas de produção9. Essas empresas, que antes participavam da mesma rede de produção na Índia e na China, mas eram “geridas” no Japão, passaram a agir autonomamente e, muitas vezes, buscar novos mercados em regiões que se sobrepõem geograficamente. Esse parece ser um dos fatores que contribui para o acirramento da disputa pela influência no Sudeste Asiático.

3. INFRAESTRUTURA O setor energético é, sem dúvida, o mais preocupante para o desenvolvimento da infraestrutura e da economia indiana. O melhor exemplo é a sequência de blecautes que dificultam o desenvolvimento de uma base industrial sólida. A importância da energia hidráulica muitas vezes condiciona o fornecimento energético interno a períodos de abundância ou escassez de chuvas. Independente da causa do problema, entretanto, a ampliação das fontes energéticas é objeto de projetos governamentais e empresariais (THE NEW YORK TIMES, 2013). A construção conjunta de infraestrutura energética tem se mostrado um bom indicador do padrão de alianças na região. Assim, em 23 de maio de 2012, representantes dos governos turcomeno, afegão, paquistanês e indiano assinaram acordo para realização do gasoduto TAPI (Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia), com mais de 1.600 quilômetros de extensão e orçado em R$7,6 bilhões (THE HINDU, 2013). O projeto recebeu forte apoio americano, especialmente por ser a principal alternativa ao IPI (Irã-Paquistão-Índia), outro projeto de gasoduto com proporção similar ao TAPI. O apoio americano vai ao encontro da política de isolamento de Teerã e da estratégia de alienar a tarefa de estabilizar o Afeganistão. As negociações para dar prosseguimento ao IPI não parecem avançar, apesar de pressão iraniana para dar continuidade ao projeto (THE EXPRESS TRIBUNE, 2013). Independente da escolha ou não pelo IPI, a construção do TAPI já 9

Cabe apontar aqui, que pela extensão das linhas de subcontratação, nem sempre se pode identificar nos dados oficiais acerca da economia a participação japonesa na industrialização indiana. A característica do sistema permite que o capital ou associação do Japão com empresas indianas, por exemplo, apareça como investimento advindo de Cingapura ou Malásia.

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demonstra um maior grau de confiança e disposição cooperativa entre a Índia, seu vizinho paquistanês e os EUA.

4. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS A República da Índia possui um regime parlamentarista bicameral onde a Câmara Baixa, eleita diretamente, tem muito mais poderes do que a Alta. O Presidente, ao contrário do Primeiro-Ministro e de seu gabinete, é meramente formal e eleito de forma indireta, embora seja legalmente o Comandante em Chefe e assine tratados mesmo antes de serem ratificados pelo Parlamento. O Comando da Autoridade Nuclear é majoritariamente civil e subordinado ao premiê, e o Gabinete pode solicitar um Estado de Emergência, quando o Primeiro-Ministro governa por decreto. A dualidade indiana reflete-se muito bem na política, opondo os dois maiores partidos: Congresso Nacional Indiano (CNI) e Bharatiya Janata Party (BJP), representando o Universalismo Comunitário e o Chauvinismo Territorialista, respectivamente. No entanto, principalmente através da lógica do “partido antissistema” e do uso massivo da mídia por parte do BJP — além de Bollywood —, muitas vezes há um intercâmbio pontual de características entre os dois lados da política10. O CNI prioriza o consenso e foi criado como um movimento de libertação nacional, sendo confundido com a própria independência da Índia, além de ter governado por maior parte de sua história. O BJP, por sua vez, foi o único partido, excetuando-se o CNI, a conseguir consolidar uma maioria parlamentar e completar o governo (1999-2004). Este possui um discurso reacionário e defensor da hindutva11. A peculiaridade do sistema eleitoral indiano é a importância dos partidos regionais. Oriundos da reforma constitucional de 1956 — o 10

Por exemplo, quando o CNI iniciou gradualmente a abertura econômica no início dos anos 1990, ou, atualmente, ao aumentar a compra de artefatos militares. Cabe definir aqui a estratégia denominada triangulação, utilizada pela situação que, para manter-se no poder, incorpora em seus discursos a plataforma da oposição. 11 Hindutva é a corrente de pensamento (principalmente de revisionismo historiográfico) que apresenta a Índia como uma nação fundamentalmente hindu, com um passado civilizacional de glória, prosperidade e isolamento. Essa interpretação contamina o sentimento anticolonialista com nacionalismo exacerbado terminando por suscitar xenofobia, principalmente em relação aos muçulmanos (METCALF, 2006: 301).

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chamado “Federalismo Linguístico”, que dividiu a Índia em províncias e territórios de próprias culturas ou idiomas —, os partidos regionais têm agendas muito específicas e, ao obter cadeiras no Parlamento, têm voz nacional (LIJPHART, 1996). Estes partidos têm de ser cooptados pelas alianças nacionais para maioria parlamentar, emperrando um projeto nacional devido aos seus vetos de minoria. O apoio da elite indiana é majoritariamente do CNI, principalmente pela manutenção de um “estamento burocrático”12 e de práticas clientelistas. Tais práticas perpetuam a corrupção endêmica que assola o partido. O histórico político indiano nos permite observar que mudanças no partido central se dão após campanhas que, de alguma forma, se fixaram fortemente na questão moral. Atualmente, três escândalos são utilizados massivamente pelo BJP como plataforma para as eleições de 2014: o Coalgate, o 3G Telecom e, mais recentemente, os crimes sexuais ocorridos nos últimos meses. No entanto, pesquisas apontam tendência de queda ou estagnação de CNI e BJP, acompanhadas de ascensão de partidos regionais (GUHA, 2012). O Primeiro-Ministro é Manmohan Singh e o Presidente é Pranab Mukherjee, ambos do CNI.

5. SEGURANÇA E DEFESA O Livro Branco (INDIA, 2004) enfatiza os esforços internos militares ainda necessários para a Índia em caso de confrontos. Apoiados no histórico de guerras com Paquistão e China, a doutrina presente no documento a necessidade de uma mudança estrutural nas Forças Armadas a partir: 1) da melhoria da mobilização indiana, que demorou 27 dias para se realizar na Operação Parakram; 2) da importância de melhor vigiar suas fronteiras, que são vastas e porosas; 3) da percepção das forças aéreas como de grande importância para a definição de uma guerra, legado principal das guerras de 1962 e Kargil. A partir desses pontos principais, é possível perceber que os grandes potenciais de conflito estão definidos em China e Paquistão, ambos países nuclearizados. Em relação à doutrina nuclear, sua posição é de “somente retaliação” (No First Use). O Paquistão, por outro lado, afirma que responderia nuclearmente a um 12

Oriundo de uma lógica patrimonialista agrária, o estamento se caracteriza por conseguir fazer seguir dentro da burocracia estatal as antigas lógicas de poder (FAORO, 2001).

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ataque convencional indiano, com o propósito de dissuadir as capacidades extremamente superiores das Forças Armadas indianas (FEDERATION OF AMERICAN SCIENTISTS — FAS, 2012). Com relação às capacidades nucleares, o relatório de 2012 da FAS indica de 30 a 35 ogivas indianas, 30 a 55 paquistanesas e 145 chinesas. É possível identificar a Dualidade nas estratégias indianas recentes a partir das ações governamentais da última década. De um lado, o Chauvinismo Territorial pode ser mais bem exemplificado através da Doutrina Cold Start, uma doutrina que mistura mito com realidade, pois nunca fora confirmada nem pelo BJP (suposto arquiteto da doutrina) nem pelo CNI. De acordo com essa doutrina, a Índia responderia a um ataque terrorista com inserções rápidas (de apenas 48 horas) e sistemáticas ao território paquistanês, com uma mobilização de 72 horas. Essa doutrina não propõe maneira de resolução do conflito Índia-Paquistão, mas sim retaliação à Guerra Irregular Complexa paquistanesa. Em relação ao Universalismo Comunitário, este propõe a melhora das relações bilaterais com China e Paquistão, conquistada e sustentada em longo prazo. Para isso, teria de existir um esforço consciente por parte do Estado visando o projeto de desenvolvimento para a região de fronteira que integre as populações locais ao arcabouço nacional através da presença estatal com: infraestrutura de uso dual (militar e civil) nas áreas de risco, projetos de infraestrutura em geral, incentivos à produção militar interna e programas que fomentem o crescimento econômico. Estas ações criariam uma força dissuasória que ponderariam tanto o uso de poder duro — presença militar, construção de capacidades — quanto poder brando — melhora dos índices de desenvolvimento humano, promoção do nacionalismo. Iremos, agora, comparar a doutrina e a dualidade com uma rápida exposição dos gastos militares e do inventário indiano. A Índia afirmou-se nas últimas décadas como um dos líderes do Terceiro Mundo em capacidades militares, podendo atualmente ser comparada a potências militares tradicionais, como Grã-Bretanha e França. Como principais triunfos do inventário tem-se a frota aérea, o porta-aviões (INSS Virat, de 28.700 toneladas), o maior exército voluntário do mundo e a iminente tríade de sistema de entrega nuclear com o lançamento do INS Airhant, de produção própria. Em relação aos seus principais rivais em potencial, suas capacidades são muito inferiores à da China e muito superiores às do Paquistão. Os principais investimentos indianos recentes vêm ocorrendo 81

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na Força Aérea, a partir da fabricação conjunta do avião de quarta geração Sukhoi Su-S30MKI com a Rússia, e em compras multivetoriais, visando estreitamento das relações com diversos países. Essa tentativa de barganha dos meios de pagamento (VISENTINI, 2011) também se reflete em outros setores militares: radares israelenses, treinamentos militares com a China e o com IBAS, tanques e aviões russos, aviões estadunidenses e europeus, entre outros. Esses esforços multilaterais são importantes para a manutenção da Índia como potência regional e para a consolidação da doutrina militar direcionada ao Universalismo Comunitário. Existem, contudo, entraves internos à consolidação de uma política externa de segurança que tenda ao Universalismo Comunitário. O mais importante é a falta de investimento em P&D militar e produção nacional de inventário (e na manutenção do inventário existente) cujo resultado é ainda incerto (o avião Tejas e o tanque Arjun são os melhores exemplos). Essas debilidades das Forças Armadas podem fazer as decisões estratégicas penderem para o lado dos ataques rápidos, como os propostos pela Doutrina Cold Start. Os líderes políticos, no entanto, já perceberam a necessidade de aumentar a produção interna e estão propondo esforços de modernização (INDIAN DEPARTMENT OF DEFENCE, 2011).

6. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA A Índia é internacionalmente reconhecida como país inovador líder na produção de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC). No quesito posse de recursos naturais, embora a Índia possua a 5ª maior reserva mundial de terras raras, isso pouco representa na condição extremamente concentrada de distribuição desse composto pelo mundo (a China possui 98% de todas as reservas). A atual política chinesa de restrição das exportações, no entanto, ao subir o preço internacional das terras raras, viabilizou a exploração de algumas reservas na Índia. Além de terras raras, a Índia possui poucas ou inviáveis reservas dos outros minérios e compostos estratégicos. Apesar de tardiamente ter reconhecido a importância da questão, o governo indiano, no último plano quinquenal, criou um grupo de estudos acerca do tema. O grupo destacou os minerais estratégicos dos quais a Índia é dependente de importações e apontou possíveis relações bilaterais que devem ser fortalecidas para que o 82

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fornecimento dos minérios seja assegurado. Destacam-se, nesse contexto, a importância das relações com os países vizinhos e com a África13. A Índia se destaca na produção de alumínio. Atualmente é a quinta produtora mundial de óxido de alumínio e pretende expandir sua produção para chegar ao terceiro lugar em 2015 (SATCHITANANDA, 2012). Nas análises dos índices utilizados para mensurar as capacidades de produção de alta tecnologia e do capital humano indiano, o país se destacou quando comparado com países da região e do Sul econômico (excetuando-se a China), mas tem desempenho baixo quando equiparada com países que tradicionalmente detém esses conhecimentos (EUA, Japão, UE). Onde está, então, a posição internacional de vantagem tecnológica indiana que o senso comum atesta? O vale do silício indiano existe. A cidade de Bangalore está entre as dez cidades do mundo mais atrativas para empreendimentos e concentra as empresas que lideram o setor de tecnologia da informação e comunicação na Índia e no mundo, tendo um PIB que cresce 10,3% ao ano (THE ECONOMIC TIMES, 2012). Os indianos, portanto, inovam, mas em um setor específico, descolado do resto da economia do país e, mais importante, dentro de empresas estrangeiras. O aumento da subcontratação, no entanto, é tão grande que certos autores (NIRMALAYA KUMAR, 2012) afirmam que, cedo ou tarde, as grandes empresas como a IBM terão diretores indianos, e essa capacitação interna às empresas se tornará um ativo baseado em conhecimento a serviço do país. Em suma, a Índia pode estar pronta para a transição tecnológica, mas só usufruirá dela plenamente se conseguir que a dinâmica desses setores-ilha de alta tecnologia transborde para toda a economia e se transformem em capacidades a serviço do Estado e do povo indiano.

7. SITUAÇÃO E CONJUNTURA O marco de Situação aqui utilizado são as eleições para a Câmara Baixa de 2009. Nessas eleições, o Partido do Congresso confirmou a reeleição e o apoio popular a seu projeto para Índia. O BJP manteve-se 13

Fosforite e Carvão Metalúrgico (Bangladesh e Nepal) e Cobalto (Congo, Zaire, África do Sul) (GOVERNMENT OF INDIA, 2012

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como principal oposição dentro da câmara. Ocorreu, portanto, a conquista, pelo Partido do Congresso, de maioria confortável e marginalização relativa do BJP. Em relação ao cenário externo, cabe fazer uma breve análise das relações bilaterais e multilaterais indianas que permitem a identificação de tendências na PES. Para tal, estruturamos nossa apreciação a partir da classificação das Ordens Securitárias de Beukel (2008). A Primeira Ordem Securitária compreende as relações Estados Unidos-Índia. Os EUA ainda enxergam a Índia como principal candidato ao “buckpassing” na região, seja tanto para permanecer como contrabalanceadora do controle chinês na Ásia (CLINTON, 2011: 56-63), quanto desempenhar possível papel estabilizador no Sul da Ásia e na Ásia Central.14 Contudo, a Índia mantém seu discurso de não-alinhamento aproximando-se, por exemplo, do Irã em projetos energéticos e de infraestrutura. Na Segunda Ordem Securitária, as relações analisadas são Índia-Paquistão e Índia-China, relações que definem, em grande parte, a estabilidade na Ásia. No que toca o Paquistão, as relações, embora tenham melhorado significativamente, avançam em aspectos não controversos, visto que os dois países dependem, de certa forma, da existência do inimigo externo para a manutenção da integração nacional. Pode-se conjecturar que, num contexto de avanço na integração regional (SAARC), os problemas dos dois países seriam relegados a segundo plano, na medida em que um projeto de desenvolvimento conjunto se viabilizasse. No que toca as relações sino-indianas há a possibilidade de hostilidade ou do estabelecimento de uma rivalidade amigável. Tanto o projeto indiano quanto o chinês de estabelecimento como Grande Potência, quando interpretados pelos países pela perspectiva essencialmente territorialista, esbarram na soberania um do outro, e alimentam as hostilidades dessa relação bilateral. Já sob a óptica que percebe a posição de Grandes Potências emergentes como importante ao equilíbrio internacional, o papel de estabilização da região se desvela essencial e a colaboração torna-se necessária e, conforme os esforços dos dois países para a criação de confiança mútua, possível. Recentes episódios15 indicam maior comprometimento da Índia com 14

Além disso, a partir do apoio ao projeto TAPI, evidencia-se a tentativa norte-americana de passar à Índia a função de estabilizar o Afeganistão com sua retirada do país. 15 Em quatro de dezembro de 2012, o Vietnã denuncia a ação de navios pesqueiros chineses nas ilhas disputadas no Mar do Sul da China, Segundo a acusação, os navios

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o Sudeste Asiático. A natureza dos episódios desvela uma estratégia territorialista de expansão para essa região, que se direciona, ao que tudo indica, à confrontação com a China. Tais atitudes podem suscitar um escalonamento da tensão entre os países e deflagrar grave conflito. A posição da Índia é arriscada, na medida em que ela disputa uma região que já é de grande controvérsia entre os países do Sudeste Asiático. Essa parece, no entanto, ser a forma indiana de sustentar a política de “Olhar para o Leste”16. O reforço dessa política pode ser relacionado com o surgimento da nova burguesia indiana, a qual detém, atualmente, posição de comando de suas empresas e direciona, de certa forma, o país para a busca de mercados no Sudeste Asiático. A Índia, ao manter tal política, também desempenha o papel de contrabalança regional almejado pelos EUA. Não há garantia, no entanto, de que a execução dessa função indique um comprometimento incondicional estadunidense com os interesses da Índia na região. Um conflito direto com a China não parece ser um cenário interessante aos EUA e, caso as pretensões indianas extrapolem o limite tênue entre a contrabalança e a confrontação, a Índia corre o risco de se encontrar desamparada. Os setores de direita (centro nacionalista hindutva), no entanto, parecem estar dispostos a arriscar a estabilidade na região, caso isso mantenha os EUA do lado indiano, mesmo que em médio prazo. A possibilidade do alinhamento indo-estadunidense torna-se mais crível no cenário atual devido a um fenômeno que pode ser caracterizado como a erosão dos princípios da Conferência de Bandung. A vocação indiana para o não-alinhamento, para a associação com os países do sul e perseguição de uma via nacional-socialista de desenvolvimento, arrefeceu na medida em que esse país se consolidava como uma Grande Potência.17 teriam cortado cabos de embarcações vietnamitas que faziam pesquisas sísmicas na região. A Índia afirmou, após o ocorrido, estar comprometida militarmente com a proteção do direito de extração de petróleo nas ilhas detido pela estatal indiana e por uma empresa vietnamita. O chefe da marinha indiana, almirante D.K.Joshi, declarou que a força indiana tem a obrigação de defender os interesses soberanos da Índia caso estejam ameaçados e que está disposto e preparado para intervir na região 16 Enunciada pelo primeiro ministro Narashimha Rao (1991) a política de Look East representa um esforço indiano para o cultivo de relações econômicas e estratégicas com o Sudeste Asiático a fim de beneficiar-se com o crescimento da região e, além disso, contrabalançar a influencia da China. 17 Enquanto o país cresce economicamente e começa a agir como uma potência os novos desafios que surgem no horizonte não necessariamente mantém o clima de solidariedade

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As questões relacionadas ao passado colonialista e à necessidade de construção da unidade nacional parecem ter sido resolvidas mais ou menos satisfatoriamente pelos “ex- não-alinhados”. Dentro desse novo momento de desenvolvimento indiano é que se estabelecem dilemas para a formulação da PES, dentre os quais podemos salientar. (i) o fim do sistema de subcontratação japonês18; (ii) a força centrípeta do mercado estadunidense, que, pela sua robustez e disponibilidade de créditos para importação, facilita a busca por parte das novas empresas nacionais indianas de um destino à sua produção, o que condiciona a PES à posição favorável a maior alinhamento com os EUA; (iii) o novo mercado africano, uma nova fronteira de competição entre Índia e China, que, diferentemente do Sudeste Asiático ou Ásia Central, não pertenceu historicamente à esfera de influência de nenhum dos dois países. Tais fatores constrangem as forças políticas internas a procurarem novas formas de interação no cenário internacional. O BJP sustenta a agenda de liberalização e relacionamento mais estreito com as potências tradicionais e o Partido do Congresso, se quiser continuar sendo o partido que viabiliza uma política nacional integrada e um plano de desenvolvimento de longo prazo, terá que lidar com atitudes que acomodem o país na sua nova posição. Há possibilidade de uma transição mais atenuada da política externa indiana, que se processa de forma mais lenta, porém não rompe com os laços tradicionais e importantes com os países da periferia e semi-periferia. A opinião pública, no entanto, parece não estar plenamente ciente da necessidade do estabelecimento indiano como “potência amigável” e pressiona os formuladores a soluções mais drásticas. Por esse motivo, parece viável que o Partido do Congresso seja condescendente com atitudes territorialistas. Mesmo percebendo o risco do enfrentamento, talvez a experiência seja necessária para que se dissolva a ideia de solução através da força (que seria rápida e efetiva, hipoteticamente) para problemas que essencialmente tratam de política e da construção intrincada de uma PES condizente com a atual posição indiana. Essa estratégia de aceitação da perspectiva Chauvinista é uma e cooperação que existia quando os países emergentes ainda processavam suas revoluções nacionais. 18 Como já abordado, mantinha as empresas subcontratadas num esquema garantido de oferta e demanda que se desfez e pôs em competição fornecedores dos mesmos serviços e produtos.

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solução contingencial para a manutenção de governabilidade e estabilidade interna. Contingencial, pois ainda percebe-se — através da iniciativa do Partido do Congresso de criar um programa de redistribuição de renda unificado e eficaz, por exemplo — que a perspectiva do Universalismo Comunitário permanece vigente. Por não ser um projeto estatal plenamente articulado e autoconsciente, no entanto, o Universalismo Comunitário avança sob constantes percalços. Os crimes sexuais recorrentes19, os quais provocam a mobilização nacional e, mais recentemente, internacional, são uma amostra dessas dificuldades. Os acontecimentos chamam a atenção do país e da opinião pública internacional a se questionarem acerca das incongruências da modernização indiana, que, apesar de sustentar índices altos de crescimento econômico e uma melhora relativamente significativa nos índices de desenvolvimento, ainda mantém regras de conduta antiquadas e julgamentos morais que atentam à dignidade humana. O desempenho da burocracia e lideranças indianas, no entanto, não tem se mostrado satisfatório para solucionar essas importantes questões internas20. A resolução dessas questões é pre-requisito para o desempenho legítimo da liderança através do exemplo, tanto na região, quanto no âmbito internacional. 8. CENÁRIOS A análise dos elementos estruturais, situacionais e conjunturais nos permite especular acerca de três cenários possíveis para o futuro da PES indiana. O exercício de formulação de cenários, e especificamente do melhor e o pior cenário, serve para que enxerguemos com mais clareza quais variáveis identificadas na PES influenciam positivamente ou negativamente a condição do país como Grande Potência. Seguem, portanto, as três construções hipotéticas. (1) No melhor cenário, 19

Uma das notícias diz respeito ao estupro ocorrido em Déli, dia 16 de dezembro, no qual uma moça de 23 anos foi violentada por 6 homens e, devido a complicações causadas pela violência, faleceu dias depois. 20 Os nacionalistas hinduístas tentam relacionar a violência sexual com a “ocidentalização” do país e sugerem que o casamento seja permitido a partir de 15 ou 16 anos da mulher, ao invés dos 18 anos hoje estabelecidos. Já a aliança do partido do congresso (UPA) mobilizou uma comissão legislativa para revisar leis criminais que dispõe sobre crimes sexuais.

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estabelecer-se-ia uma pentarquia de relação multilateral com Estados Unidos, China, Rússia e Turquia. Tal panorama é mais provável com o Partido do Congresso no poder e com esforços internos indianos para a melhoria das condições institucionais e sociais. Algo que tornaria tal cenário crível seria o avanço da Área de Livre Comércio do Sul da Ásia, a qual viabilizaria à Índia maior acesso aos mercados desses países, diminuiria a tensão com a China pelos mercados do Sudeste Asiático e facilitaria relações comerciais com a ECO (sendo o Paquistão elo das duas zonas econômicas). Por esse percurso, haveria fortalecimento da posição indiana também no Oriente Médio. (2) No cenário intermediário, analisando primeiramente o aspecto doméstico, o crescimento da terceira e da quarta frente se efetivaria, mas como uma é a exacerbação à esquerda e outra à direita do Partido do congresso, o peso de suas votações se neutralizaria e as decisões da Aliança Unida continuarão sendo implementadas. Em relação ao aspecto externo, no entanto, haverá, por parte do sistema político, maiores constrangimentos à formulação de uma PES que assegure a continuidade de um projeto de desenvolvimento nacional. A PES indiana, portanto, continuaria a alternar atitudes que reforçam o multilateralismo e a regionalização com ações unilaterais que comprometem a estabilidade regional e internacional. (3) O pior cenário, por fim, seria decorrente do direcionamento da PES indiana ao contrabalanceamento da China de acordo com os propósitos estadunidenses, o que poderia provocar inimizades na região e promover uma resposta chinesa agressiva. Esse cenário é extremamente arriscado para a Índia uma vez que o confronto Sino-indiano pode não implicar definição de uma posição dos EUA pró-Índia. Em uma contingência extrema, o pior cenário poderia evoluir para uma guerra em duas frentes: guerra irregular complexa com Paquistão e guerra convencional com a China. Os cenários podem acontecer com os dois partidos no poder, porém o alinhamento com os Estados Unidos com o BJP na situação (ou mesmo com um partido que responda aos anseios territorialistas da nova elite indiana, como a Quarta Frente) configuraria um contexto mais propenso à guerra. Conclusões Após todas as apreciações feitas, acreditamos que a Índia pode ser considerada uma Grande Potência. Possui capacidade militar comparável 88

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com o primeiro mundo, posição geoestratégica relevante, a segunda maior população do mundo e crescimento econômico robusto. Ademais, sustenta a legitimidade como líder do terceiro mundo e exemplo para a semiperiferia. Por ter alcançado tal posição, a Índia é impelida interna e externamente a tomar atitudes condizentes com esse novo estágio. Ela é hoje um ator computado no cálculo de política internacional e seus atos de política externa interferem no equilíbrio do SI como nunca antes. Apesar de sua proeminência, a Índia ainda se vê arcando com os custos da modernização (urbanização, industrialização) e da ocidentalização (valores seculares, instituições políticas estáveis). A PES indiana se tornará coerente na medida em que as prioridades do desenvolvimento social e do comprometimento com o equilíbrio forem incorporadas ao projeto de nação e articuladas com seu desempenho externo. Referências ARRIGHI, Giovanni. “A Ilusão do Desenvolvimento”. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. CAPOCCIA, Giovanni. “Anti-System Parties: a Conceptual Reassessement.” Journal of Theoretical Politics 14(9), p. 9-35, 2002. CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY. The World Fact Book: India. Disponível em: . Acesso em 27 de fevereiro de 2013. CLINTON, Hillary. America’s Pacific Century. Foreign Policy, nº 189, novembro 2011, p 56. (ISSN: 0015-7228) DEPARTMENT OF ECONOMIC AFFAIRS (DEA). India: the Incredible Investment Destination. Nova Deli: Department of Economig Affairs, 2012. Disponível em: . Acesso em 27 de fevereiro de 2013. EXPORT-IMPORT BANK OF INDIA (EXIM INDIA). Catalysing India’s Trade and Investment. Disponível em: Acesso em 27 de fevereiro de 2013. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 2001. 89

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Capítulo 5 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO JAPÃO Eric Feddersen Lucas da Rocha Rodrigues Victor Merola Vinícius Lanzarini Introdução Este capítulo tem como objetivo central analisar a Política Externa e de Segurança do Japão. Para tanto, busca-se verificar os principais indicadores que pautam a inserção internacional do país no Sistema Internacional. Basicamente, pretende-se analisar como as dinâmicas internas e as dinâmicas regionais influenciam na trajetória histórica do país, especialmente, no Leste Asiático. O Japão destaca-se por ter a terceira maior economia no mundo, possuindo um PIB de US$ 5.850.000 milhões em 2011 — composto em 71,6% por serviços, 27,3% pela indústria e 1,2% pela agricultura — e PIB per capita de US$ 0,034 milhões (estando em 37º no ranking mundial). Possui 62,5% da população em áreas urbanas (conforme dados de 2010; logo, 37,5% estão no meio rural), a 10ª maior população absoluta (127.368.088 pessoas, segundo estimativa de julho de 2012), um IDH de 0,901 (13º na lista) e um índice GINI de 37,6% (sendo o 75º país no ano de 2008). Apesar disso, seu déficit público só não é maior que o dos Estados Unidos, sendo de 205,5% do PIB. Por ser uma ilha, o país possui pouco território (377,9 km², o 62º colocado). Possui um contingente ativo nas Forças de Autodefesa de 247.746, tendo o 29º maior efetivo do mundo. A partir da identificação dos princípios norteadores da Política Externa de Segurança (PES), serão estabelecidos três cenários que visam sumarizar os dilemas que o Japão enfrentará nos próximos anos. Por fim, conclui-se que o Japão enfrenta uma dualidade que opõe polarizados perfis de inserção internacional: um ligado a uma visão regionalista (que 93

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visa o fortalecimento dos laços econômicos e políticos com os vizinhos); e outro de viés globalista-liberal (que prioriza o reforço da aliança com os Estados Unidos). Nesse contexto, os principais indicadores que permitem que se avalie qual dos perfis prevalecerá são a inserção econômica internacional do país, a definição do debate político interno e o equacionamento das carências energéticas.

1. DESENVOLVIMENTO 1.1. O problema da dualidade A análise da Política Externa e de Segurança do Japão indica que, basicamente, a inserção internacional do país é pautada por uma dualidade. Essa dualidade consiste na oposição entre a opção regionalista e a opção globalista. A primeira traduz os planos de inserção internacional baseados na integração regional da Ásia; ou seja, visa à ascensão coletiva. Para tanto, o Japão não competiria comercialmente com a China pela liderança em exportações, optando por um sistema associado de gestão de marcas e patentes — através da transferência de tecnologia nipônica aos seus vizinhos. Já, o globalismo é o ímpeto de inserir-se como potência a nível global e manter sua posição de plataforma exportadora, aproximando-se dos Estados Unidos. Neste último caso, seus vizinhos passariam a ser competidores. A origem dessa dualidade está na Restauração Meiji, de 1868, e na Rebelião de Satsuma, de 1877. O legado social dos samurais, baseado na honra e tradição, ainda manteve-se muito presente após a Restauração. Em termos políticos, ele gerava uma ética colonialista e retrógrada. Com o fim dos Samurais, seu legado se une ao Exército, que o perpetua através da autonomia militar. Assim, dois planos de inserção internacional passam a se chocar: um baseado na Democracia Taisho, que lançava bases para a inserção pacífica com seus vizinhos, e outro, baseado no legado de Satsuma, que pretendia a ascensão pela conquista. Essa polarização histórica, pode-se dizer, encontra respaldo nos dilemas atuais, contrapondo o regionalismo, herdeiro da integração de Taisho, e o globalismo, herdeiro da competição de Satsuma.

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1.2. Histórico Desde cedo, o Japão focou-se no papel das potências estrangeiras, pois conhecia as consequências dos interesses de tais nações (PANIKKAR, 1965: 214). O Japão do século XIX já se dividia entre o progresso e aproximação com o Ocidente, e o isolacionismo e conflito com o estrangeiro, posição essa representada pela classe de samurais. A Restauração Meiji demarcou o fim do isolacionismo, mas não dos ideais feudais e da ética colonialista, pois as bases sociais do Estado não se transformaram por completo. Esta transformação somente prosseguiria com a vitória contra os samurais na Rebelião de Satsuma, abrindo caminho para a Democracia Taisho. Contudo, o exército absorveu os valores dos samurais de Satsuma, e se constituiu como instituição de grande força política no Japão (WOLFEREN, 1989). Por resultado, a Restauração não estabeleceu uma vitória de um projeto sobre o outro, nem definiu a postura do Japão na Ásia, que passará a oscilar entre a competição e a cooperação regional. Desde o final do século XIX, o Japão buscou ordenar o sistema regional asiático. Esse processo estava intimamente ligado à modernização econômico-industrial que era empreendida pelo país àquela altura. A guerra russo-japonesa (1904-5) estava claramente associada à busca por liderança regional. Já nesse período, fica clara a importância da questão de escassez de recursos para estratégia regional do país, já que essas disputas com China e Rússia tinham como plano de fundo a busca por controle dos recursos da região da Manchúria e culminariam tanto na ascendência e posterior colonização da Coreia, quanto na ocupação da China em 1931. Esses desdobramentos no âmbito regional corroboram a ideia de que o Japão, a partir desse período, consolida-se como EstadoRegião. E que, nesse contexto, os desenvolvimentos regionais estão intrinsecamente ligados à evolução dos processos internos do país. Na década de 1910 e 1920, grosso modo, o Japão passou por um realinhamento da sua esfera política. Huntington (1997) define esse modelo como “ocidentalização” da política. Esse período, conhecido como democracia Taisho, marcou a busca pela ampliação de direitos, de criação de instituições similares às do ocidente. Entretanto, esse projeto foi fortemente antagonizado pelo exército japonês. A principal razão era o revanchismo em relação ao fracasso da intervenção na Sibéria (1918-25) e o corte de gastos militares previstos nesse período. Essa disputa acabou 95

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por culminar na militarização da política externa japonesa, que resultou na segunda Guerra Sino-japonesa (1937) e leva o país a entrar na II Guerra Mundial. Após a rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial, Shigeru Yoshida foi nomeado Primeiro-ministro. O seu governo caracterizou-se por uma administração pragmática, que acabou viabilizando a manutenção da soberania no pós-guerra. Essa manutenção foi conquistada, essencialmente, ao evitar um processo de desindustrialização que era defendido pelo Comandante Supremo das Forças Aliadas que ocupavam o Japão, o General estadunidense Douglas por MacArthur. A aliança securitária com os Estados Unidos levou o país a direcionar sua atenção à reestruturação da sua economia e à reconstrução do país (WOLFEREN, 1989: 41). Para tanto, o Japão tornase uma plataforma exportadora associada aos EUA, que compete regionalmente. Pode-se dizer que essas são as bases do modelo globalista-liberal que é defendido atualmente. Porém, foi nesta época, a partir de 1950, que começaram a se criar as condições para o que vai ser o principal motor do regionalismo japonês a partir da década de 70: a subcontratação transfronteiriça e a transferência de capital regionalmente. O Plano Colombo, equivalente ao Plano Marshall na Ásia, iniciou uma transferência de patentes e licenças dos EUA para empresas japonesas, além do estímulo a exportação japonesas ao seu mercado (ARRIGHI, 1996: 76). O alto valor agregado das exportações intensivas em tecnologia passaram a financiar o surgimento do Japão como novo fenômeno econômico. A estrutura política, denominada como “Triângulo de Ferro” (partidos, corporações e burocracia) criava a governança necessária para administrar o crescimento econômico incentivado pelo parceiro americano (UEHARA, 2003: 31). No final da década de 60, já se dava a regionalização do milagre japonês e a transferência de indústrias de menor valor agregado. A década de 1970 representou uma inflexão no relacionamento japonês com seus vizinhos, especialmente, a China. A atuação estadunidense na região, que delimitava o centro gravitacional regional, alterou-se significativamente. Nesse período, paulatinamente, os EUA foram afastando-se de uma posição assertiva no Leste Asiático. Isso permitiu que China e Japão iniciassem um processo de reaproximação, emblematizado pelo Comunicado Conjunto de 1972 e pelo Tratado de 96

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Paz de 1978. A década de 1980 sugeria o Japão como o principal desafiante à hegemonia estadunidense (ARRIGHI, 1996). Entretanto, a crise de 1987 foi um baque na ascensão japonesa. Os acordos de Plaza criam um grande fluxo de investimentos japoneses para os EUA com a compra de dólares, criando uma bolha de investimentos, de forma a contaminar o mercado imobiliário em ambos os países, e fazendo subir astronomicamente o preço dos terrenos japoneses. A solução à vista seria investir na China, apesar de acentuar o crescimento do competidor (VISENTINI, 2012: 190). No final da Guerra Fria, o Japão, por um lado, buscou reforçar os laços regionais econômicos e políticos e, de outro, renovar sua parceria estratégica com os Estados Unidos. Cabe destacar que essa parceria era a fiadora da manutenção das linhas de comunicação e de suprimento do país. Na Guerra do Golfo (1991), quando da instauração do mandato das Nações Unidas, o Japão buscou fornecer apoio aos Estados Unidos. Todavia, isso gerou um grande debate interno e limitou-se à esfera financeira. Em linhas gerais, pode-se afirmar que esse debate remete ao dilema regionalista versus globalista que permeia a história japonesa. A década de 1990 representou o início do desgaste do sistema de governança que geriu o país desde a década de 1950, o Triângulo de Ferro. A formação de gabinete anti-PLD (1993) exemplifica essa fase de reacomodação das forças internas e do nascimento do embrião do PDJ (Partido Democrático do Japão), partido que viria a ser central para a inflexão política ocorrida na década seguinte. Porém, foi com a ascensão de Junichiro Koizumi que o Triângulo de Ferro foi definitivamente enterrado. A agenda neoconservadora, o programa neoliberal, de alinhamento automático com os Estados Unidos e a adesão à Guerra ao Terror levaram o país a se afastar dos vizinhos, a piorar seus índices socioeconômicos e comprometer a sua soberania, processos que permitiram ao PDJ chegar ao poder. O governo de Yukio Hatoyama (2009) chegou ao governo com uma plataforma de revisão da parceria com os Estados Unidos, de revitalização dos laços regionais e distribuição equilibrada de renda. Nesse sentido, uma divisão do capital seria feita regionalmente, onde o Japão seria responsável pela produção de P&D (pesquisa e desenvolvimento) e administração de marcas e patentes, enquanto seus 97

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vizinhos ganhariam pela produção e montagem dos produtos de alta tecnologia em larga escala. Esse panorama levaram aos acordos de 2009 com China e Coreia do Sul, e o aumento da institucionalização das relações no Leste Asiático. Entretanto, com a queda de Hatoyama (2010) e o incidente de Fukushima (2011) a capacidade de governança do PDJ, bem como seu projeto regionalista, acabaram sendo enfraquecidos. Esse processo teve dois efeitos significativos: por um lado, gerou relativa desaceleração no processo de aumento da cooperação regional, marcado pelo acirramento das tensões com a China, sobre a posse das ilhas Senkaku/Diaoyu; e, por outro, internamente propiciou o retorno do PLD ao poder. Com a chegada de Shinzo Abe ao governo, no final de 2012, as dúvidas acerca do futuro das relações sino-japonesas ganharam nova dimensão, já que, apesar da filiação partidária, Abe não pertence à ala mais radical do PLD.

1.3. Economia Os aspectos econômicos vêm a reforçar as evidências quanto ao dilema japonês entre o Globalismo e o Regionalismo. Se por um lado o Japão tem sua balança comercial fortemente atrelada à China, por outro pesa o histórico da parceria nipo-americana com décadas e bilhões investidos nos Estados Unidos. Apesar de sustentar o posto de terceira maior economia do planeta, o Japão possui o segundo maior deficit público — que atingiu a marca de 205,5% do PIB em 2011 (CIA, 2012). Muito disso se deve à questão energética que assola o país, assim como aos gastos crescentes com a previdência por conta da população envelhecida. Os principais parceiros comerciais do Japão são a China e os Estados Unidos, com grande destaque para a China que no ano de 2011 foi o destino de 25% (somando Hong Kong) do total das exportações nipônicas e origem de 22% das importações, contra 15% e 9%, respectivamente, dos Estados Unidos (JETRO, 2012). A alta dependência japonesa de recursos naturais oriundos do exterior, que correspondem a 49% das suas importações (Ibidem), aliada à extrema importância que o gigantesco mercado interno chinês representa para os produtos japoneses são indícios de uma relação de forte interdependência entre os dois países asiáticos. 98

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Já se levarmos em consideração o Investimento Externo Direto (IED), verificamos que o Japão faz altos investimentos nas principais potências mundiais e possui um saldo bastante positivo na relação de fluxos de investimentos, fato que lhe confere grande influência econômica em nível global. O Japão possui um estoque de IED com saldo na casa de US$200 bilhões em relação aos Estados Unidos e na casa de US$82 bilhões em relação à China, sendo os Estados Unidos o principal destino do IED japonês, com montante próximo a US$275,5 bilhões em estoque acumulado até 2011 (Ibidem). Tal fato sugere uma sólida estabilidade dos laços entre japoneses e estadunidenses.

1.4. Infraestrutura Em relação à infraestrutura japonesa, cabe realizar as seguintes perguntas: Que impactos a dependência de recursos naturais estrangeiros causa no país? Como a administração da infraestrutura pode ter reflexos nas políticas Globalistas ou Regionalistas? Como resultado desta administração, para que viés estará voltada a transição tecnológica japonesa? Anteriormente ao desastre nuclear de Fukushima, uma parcela de mais de 80% da matriz energética era composta de queima de combustíveis fósseis. Entretanto, os recursos escassos exigiam a importação destes, grande parte vinda de países do Oriente Médio. Os altos custos para a realização destas compras levam o Japão a procurar por parceiros mais próximos, notavelmente a Rússia. O governo japonês tem se mostrado interessado na construção do oleoduto russo ESPO, que vai da Sibéria Oriental até o Oceano Pacífico, bem como nas obras da GAZPROM que desenvolve planos de construção de um gasoduto de Sakhalin até o porto de Vladivostok. Todavia, a questão das Kurilas é um grande obstáculo para essa aproximação entre os dois países. A energia nuclear é para o Japão uma alternativa para a diminuição dos custos energéticos, e, antes de Fukushima, havia planos para sua expansão para até metade da composição da matriz energética. Todavia, o incidente resultou em pressão da opinião pública acerca do investimento na matriz nuclear. O fato de o Japão estar na vanguarda do processo de transição tecnológica tem feito o país em investir em Pesquisa e Desenvolvimento (P &D) na busca por avanços na aquisição de 99

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capacidades energéticas de próxima geração. A busca por materiais supercondutores, fontes de energia renováveis, estão no centro da procura por autonomia energética e por diminuição da dependência externa de suprimento energético. A logística interna do país encontra-se em ótima situação, com rodovias expressas eficientes e trens-bala em suas ferrovias. A logística externa conta com aeroportos e portos em excelentes condições e posicionamento para projeções externas. Outros grandes planos de integração regional incluem a construção de túneis submarinos com ligação aos projetos da Rota da Seda russos e chineses. Pelo caráter insular do Japão, suas rotas marítimas (SLOCs, no acrônimo em inglês) possuem uma importância vital para as linhas de logística externas. A comunicação pelo Pacífico e Índico garante o fornecimento de recursos naturais, a realização do comércio marítimo e as linhas de suprimentos em caso de guerras no Leste. Sobre a segurança das SLOCs, os estreitos servem como ponto de estrangulamento, principalmente o de Malacca.

1.5. Instituições Políticas O Triângulo de Ferro, que durou praticamente cinquenta anos, dava ao país um sistema de governança equilibrado, e que permitia uma gestão amparada no partido, burocracia e empresariado. A Dieta Japonesa que é composta pela Câmara dos Representantes (baixa) e a Câmara dos Conciliadores (alta) serviu como um referendador das decisões tomadas no âmbito do Triângulo de Ferro. Ainda que as duas sejam importantes, a que ganha destaque é a primeira — o partido que obtiver a maioria das 300 vagas em disputa (em um total de 480) ganha o direito de indicar o primeiro-ministro, o qual tem liberdade total para a constituição de seu Gabinete. Para que leis sejam instituídas, devem ser aprovadas por maioria nas duas câmaras. Um desafio que se percebe desde 2007 é que o partido vencedor das eleições gerais (Câmara Baixa) não costuma atingir escore similar na Câmara Alta, ficando, assim, sem obter a maioria nas duas casas da Dieta, o que compromete a governabilidade. A dificuldade de consolidar uma oposição ao PLD, deriva da destituição do Triângulo de Ferro e da transição política por que passa o país internamente. A oposição, hoje é constituída pelo PDJ, nascido do 100

Política externa e de segurança do Japão

Gabinete anti-PLD, que passa gradualmente a definir uma postura política própria, mas ainda não tem popularidade considerável. A outra força que emerge no cenário político japonês é o Partido da Restauração Nacional, cujos principais líderes são Shintaro Ichihara e Toru Hashimoto. Esse partido representa em linhas gerais, um reavivamento dos princípios defendidos pela via militarista no período da II GM.

1.6. Segurança e Defesa A constituição pacifista implementada após a Segunda Guerra rege as diretrizes das Forças de Autodefesa do Japão — segmentadas em Terrestre, Marinha e Aérea. Por meio desta, ficou definido que o orçamento destinado aos gastos militares ficaria limitado a 1% do PIB do país, com o objetivo de compor uma modesta força de defesa que não se constituísse em ameaça aos países vizinhos. No entanto, esse dispositivo se mostrou ineficaz devido ao elevado PIB japonês — 1% deste representou cerca de US$54 bilhões, 5º maior orçamento mundial em 2011 (SIPRI, 2012). A Doutrina determina ainda uma política exclusivamente defensiva, bem como um forte posicionamento contrário aos armamentos nucleares e ressalta a importância da cooperação com os Estados Unidos. Em 2010, foi publicada uma revisão do Guia do Programa Nacional de Defesa (GPND), documento chave que revela uma forte tendência de reforma da doutrina e normalização das forças armadas japonesas no médio prazo. O GPND traz ainda o conceito de forças de defesa dinâmicas com maior capacidade para uma resposta rápida, explicitando a preocupação japonesa com a questão das ilhas mais afastadas da costa, que são motivo de litígios com a China e com a Coréia do Sul (IISS, 2012: p. 220). Por tratar-se de um país insular, as forças de autodefesa marítima e a força aérea a serviço da marinha são de fundamental importância para a política externa e de segurança do Japão. Analisando o inventário japonês, fica evidente uma configuração voltada para complementar as forças armadas dos Estados Unidos buscando um contrabalanceamento em relação à marinha chinesa, que adota a estratégia de negação de área (A2/AD — baseada na utilização de minas e submarinos táticos), que representa uma grande vantagem chinesa (IISS, 2012: p. 235-236). 101

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As Forças de Autodefesa do Japão possuem um contingente total de aproximadamente 248 mil ativos e em torno de 56 mil reservistas. O inventário militar da marinha é composto por: 18 submarinos táticos, 2 porta-aviões, 6 cruzadores, 25 destróieres, 15 fragatas e 33 vasos antiminas. A força aérea possui um total de 551 helicópteros e 525 aviões — os principais destaques são os helicópteros SH-60J (antissubmarino) com 86 unidades e MH-53E (caça minas) com 7 unidades a serviço da marinha. Já as forças terrestres possuem 980 blindados e 760 tanques (IISS, 2012: p. 251-254). A configuração de forças apresentadas combinada com uma forte tendência à modernização das forças militares nipônicas caracteriza um viés claramente globalista das Forças de Autodefesa do Japão que funcionam, na prática, como uma extensão das forças armadas estadunidenses, defendendo seus interesses na região. Além de sabotar qualquer projeto de integração asiático, esse posicionamento militar entra em contradição com a doutrina pacifista japonesa, de modo que sua reforma parece iminente e inevitável. Apesar de esse perfil militar estar consolidado, no curto prazo, isso poderia ser alterado. Caso o Japão revisasse as limitações internas em direção à aquisição de forças militares autônomas, evitando manter-se apenas como um apêndice das forças militares estadunidenses na região, isso fortaleceria o projeto de integração regional. Portanto, não há uma oposição entre autonomização da SDJF e o processo de aprofundamento das relações regionais.

1.7. Transição Tecnológica A indústria japonesa conta com um maquinário excepcionalmente avançado e com a utilização de tecnologia de ponta. O Japão é líder absoluto em robótica, tendo metade dos robôs industriais do mundo. Tendo tais condições em vista, suas exportações possuem um alto valor agregado. Ademais, o caráter especial do país o torna um dos principais produtores e exportadores de semicondutores. O Japão possui a segunda maior siderurgia do mundo, com destaque para as empresas Nippon Steel e JFE. O aço é utilizado principalmente na indústria de maquinário, naval e automobilística — esta última se destaca, como é observado no poder econômico das gigantes Toyota, Mitsubishi, Honda e Nissan. Para a produção de bens de alta tecnologia, 102

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porém, o país é dependente da China para o fornecimento de terras-raras. Diversos indicadores demonstram o avanço da transição tecnológica japonesa. O país investe fortemente em pesquisa e desenvolvimento, tendo gasto na última década entre 15 e 17 trilhões de ienes (em torno de 3,5% do PIB). Dois dos 20 supercomputadores mais potentes do mundo possuem processadores japoneses e foram montados em solo local. O país está muito bem inserido em uma vasta rede de conexão de fibra ótica, que permite que metade dos internautas navegue com banda-larga proveniente desta, acesso cinco vezes maior que a média da OCDE. Nesse sentido, uma parceria sólida com a China torna-se central sob vários aspectos. Primeiro, porque a importação de materiais terras-raras seria altamente benéfica para o país. Além disso, as regiões do Leste e Sudeste Asiático possibilitariam um extenso mercado consumidor para as exportações japonesas de alto valor agregado. Além disso, permitiria ao país, em caso de uma conflagração, unir o fornecimento em larga escala de aço para a produção de armamentos pesados, com constantes inovações tecnológicas derivadas do alto nível de P&D. O uso dos supercomputadores também traria vantagens ao Japão no advento de uma guerra cibernética.

1.8. Situação e Conjuntura A partir do choque entre um barco chinês e um japonês no entorno das ilhas Senkaku/Diaoyu, modifica-se a situação do país. A postura negativa de Seiji Maehara, então Ministro de Infraestrutura (2010), sobre um conflito pela posse das ilhas provocou um boicote aos produtos japoneses e grandes prejuízos financeiros, pois a China e o Japão estão entre os principais parceiros comerciais entre si. A presença crescente de patrulheiros chineses na região faz com que os japoneses recorram ao tratado de segurança mútuo assinado com os Estados Unidos, em 1960, para a defesa do seu território. Isso permite uma maior interação com os norte-americanos, desde a possível entrada na Aliança Transpacífica (TPP), até a possível aquisição de aeronaves como o Osprey MV-22. O afastamento gradual dos países asiáticos tornaria plausível a reutilização dos reatores de energia nuclear — que estão parcialmente desligados desde o incidente de Fukushima, em 2011 — demonstrando o caráter de isolamento e globalismo da dualidade. 103

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Por outro lado, a atual situação energética do país o empele à integração regional. Com o desativamento da planta energética nuclear, o governo viu-se obrigado a buscar novas fontes de energia em países da Ásia Central. A decorrência de maior relevância para a integração regional é a possibilidade de transferência das indústrias japonesas para a região, de forma análoga ao que já fora feito na transferência tecnológica para os Tigres Asiáticos nos anos 70, além da busca por terras-raras. Assim, os conflitos acerca das ilhas ficam, em parte, subjacentes à política energética dos países da região: Kurilas, com os russos (culminando no Tratado de Paz, que não foi assinado desde a Segunda Guerra Mundial e com aberto desejo de resolver o impasse pelos países), e Dokdo/Takeshima, com os sul-coreanos (através do bom relacionamento entre os seus representantes diplomáticos). A situação com a China também se reflete na política interna do Japão. O incidente de Fukushima, somando-se às tensões com os vizinhos e a dificuldade em recompor uma economia de grande déficit público e que caminha a passos lentos, fez com que a popularidade de Naoto Kan e Yoshihiko Noda — dois dos primeiros-ministros do PDJ que assumiram o país após meio século ininterrupto de governo pelo PLD — decaísse. Isso culminou na volta de Shinzo Abe (PLD) ao poder. Entretanto, desde sua posse é possível notar algumas mudanças na política externa e de segurança do país. Em dezembro de 2012, uma disposição a solucionar o problema com os russos, oposição à Aliança Transpacífica e cobranças aos chineses por estarem ultrapassando os limites de seu território de forma desautorizada.

2. CENÁRIOS A análise da Política Externa e de Segurança do Japão (PES) permite a projeção de três possíveis cenários para a inserção internacional do país. No melhor cenário a tendência de cooperação e concertação regional prevalece. Em um cenário intermediário persiste a competição, porém apenas no nível econômico. O terceiro cenário consiste em uma possível escalada da competição que resultaria em guerra. A melhor projeção se centra no cenário de melhores relações com a região, dentro das possibilidades atuais. O mandato de Shinzo Abe mantém-se em bases estáveis, garantindo estabilidade política ao Japão. 104

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Embora a plataforma do PLD seja pautada por um globalismo liberal, o atual governo tem mantido as iniciativas de cooperação defendidas pelo governo anterior do PDJ. Isto pode ser dar por vários motivos, a começar com a herança de três anos consecutivos de governos regionalistas, do PDJ. Contudo, o fator mais proeminente é o gargalo energético, agravado pelo incidente de Fukushima que resultou no desativamento das usinas nucleares japonesas, causando um grande baque à capacidade industrial do país. Neste sentido, a cooperação e a integração econômica regional aparecem como alternativas para a manutenção da indústria japonesa, criando cadeias de off-shoring e integração produtiva. Além disso, tornase viável a integração energética e infraestrutural que pode ser central para amenizar a vulnerabilidade energética do país. No médio longo prazo, este cenário permitiria o Japão alterar seu perfil industrial: migrando dos modelos fordista/toyotista, baseado no uso intensivo de hidrocarbonetos, para o modelo voltado para a produção de informação, tecnologia e conhecimento, baseado no uso de energias renováveis. No cenário intermediário, a competição econômica regional persistiria, porém não transbordaria para outras esferas. Este cenário somente é crível se a dependência energética japonesa de fornecedores externos não aumentar. Com isto, o Japão retoma o modelo globalista liberal, baseado na plataforma de exportação, defendido pela ala mais conservadora o PLD e da extrema-direita. Dessa forma, caso se intensifique a competição com a Coreia do Sul e China, em termos empíricos isto representaria uma adesão à Parceria Trans-Pacífica (TPP). Entretanto, mesmo neste cenário, seria pouco provável um rompimento completo com a China e demais vizinhos no Leste asiático. No cenário mais extremo, o partido de extrema-direita, Partido da Restauração do Japão de Shintaro Ishihara, assume o governo do país e abre caminho para um globalismo de veia militarista. A competição seria o traço marcante da PES japonesa, o que poderia tornar qualquer incidente passível de escalada. Neste contexto, empiricamente, este cenário seria representado pela eclosão de uma guerra local, que comprometeria as linhas de comunicação e suprimentos (SLOCs).

Considerações Finais Projetar o futuro da PES do Japão indica que as possibilidades 105

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limites são bastante amplas, posto que variam desde a cooperação até a conflagração regional. Resumidamente, os grandes dilemas que balizam a política externa do país são decorrentes da inserção econômica internacional, da definição do debate político interno e do equacionamento das carências energéticas. O Japão sempre foi, historicamente, um país fundamental para o equilíbrio regional. Desde a Restauração Meiji, em meados do século XIX, o Japão sempre se viu como Estado-Região, e sua ascensão no sistema internacional esteve umbilicalmente ligada à dinâmica regional. Nesse sentido, parece pouco provável que a capacidade do país de manter-se como uma grande potência, seja por sua pujante economia, por possuir vantagem na transição tecnológica e por suas capacidades militares, independa dos vizinhos. Apesar de anti-intuitivo, a autonomia japonesa, hoje, parece passar mais pela capacidade de lidar com as dinâmicas asiáticas do que, simplesmente, afastar-se delas. O debate entre a via regionalista e a via globalista, que se verifica na polarização política interna, reflete assim a dicotomia que se apresenta para o futuro da trajetória internacional do país. Nesse sentido, as respostas que o Japão buscará para retomar o crescimento econômico e reformular sua matrize energética podem arrastar o país tanto para a competição desmedida com os vizinhos, quanto para o aprofundamento do processo de aproximação com os vizinhos. Em termos econômicos, o Japão, hoje, não pode abdicar da China. Em termos energéticos, o país busca, no longo prazo, uma transição que lhe permita diminuir sua vulnerabilidade externa; entretanto, no curto e médio prazo a solução para isso parece estar no aumento da competição por recursos ou na integração infraestrutural regional. A resolução da questão energética não é um problema exclusivo do Japão e por isso incide diretamente sobre o perfil de interação regional que prevalecerá. Afinal, os mesmos dilemas por que passa o país, são enfrentados por China e Coreia do Sul.

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Capítulo 6 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA ALEMANHA Laís Helena Andreis Trizotto Mariele Laís Christ Patrícia Assoni Grechi Luísa Saraiva Bento Introdução A Alemanha importa para o estudo da política internacional dada a sua Capacidade Estatal individual e, principalmente, como esteio da União Europeia. Suas decisões diante dos avanços e retrocessos da integração servem como condicionantes para a viabilidade da Europa enquanto grande potência. O objetivo deste estudo é analisar em que direção aponta a Política Externa e de Segurança (PES) da Alemanha. A principal questão da pesquisa é saber qual será a PES da Alemanha, visto os impactos da crise de 2008. A pergunta é relevante dado que, desde 1951, a integração europeia tem sido o principal motor da política externa alemã e, em virtude da crise econômica, a própria integração da Europa está em questão. Isso pode ser facilmente verificado considerando-se os problemas que a União Europeia recentemente vem enfrentando: a gestão da crise econômica e a ausência de mecanismos institucionais europeus — realçada pelo fracasso na aprovação da Constituição em 2005 e posterior instituição do Tratado de Lisboa e da PESC em 2009 e, não menos importante, a criação de uma aliança militar entre a Inglaterra e a França (Entente Frugale, 2010)1. Para responder provisoriamente o problema da pesquisa, os cenários 1

Para além dos marcos securitários comuns existentes — a OTAN (à qual a Alemanha aderiu em 1955) e o Eurocorps, criado em 1992 e declarado operacional em 1995, do qual a Alemanha é um dos fundadores —, a Entente Frugale é a única aliança militar europeia da qual a Alemanha não participa.

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que seguem foram elaborados: (1) manutenção do contorno básico da União Europeia (U.E), baseado no eixo franco-alemão; (2) reconstrução hegemônica: a manutenção da U.E debilitada pela afirmação de parcerias bilaterais inter-regionais da Alemanha; (3) retorno à forma de soberania do tipo Independência (WATSON, 2004). Tendo em vista os cenários, o ponto de partida do trabalho foi estabelecer uma tipologia acerca da dualidade básica da PES da Alemanha enquanto Estado nação, aqui caracterizada nos termos de uma tensão entre o que denominamos vocação atlantista e vocação eurasiana. A isso se segue um breve histórico e um estudo sobre a economia, a infraestrutura, a política, e a segurança e defesa. Agregou-se uma análise sobre o posicionamento da Alemanha frente à transição tecnológica rumo à digitalização e à crise econômica de 2008 (situação e conjuntura). Por fim, sistematizam-se três cenários (melhor, intermediário e pior) e uma breve conclusão. Importa destacar que a República Federal da Alemanha possui uma área de 357.022 km² (63º maior do mundo), povoada por, aproximadamente, 81.305.856 habitantes. A segunda maior população do continente, de maioria étnica germânica (91%), possui atualmente uma taxa de crescimento de -0,2% ao ano e situa-se em grande parte nas zonas urbanas (75%). O PIB alemão é de U$3.577 trilhões (em 2011, e considerando a taxa real de conversão) e seu PIB per capta é de U$38.400, o 26º país no ranking mundial. A economia está baseada principalmente no setor de serviços (70,6%). A atividade industrial vem em segundo lugar, representando 28,6% do PIB nacional e a agricultura representa apenas 0,8%. Em termos de qualidade de vida, a Alemanha está muito bem colocada, com o 9º melhor IDH do mundo.

1. A DUALIDADE ALEMÃ A localização da Alemanha na Europa central, fazendo fronteira com um número maior de países do que qualquer outro do continente, permitiu que, no curso de sua história, sua diplomacia oscilasse entre dois grandes eixos, o atlântico e o eurasiano, nos quais reside a dualidade básica alemã. A centralidade geográfica da Alemanha, por outro lado, também é uma das maiores vulnerabilidades do país. A Alemanha viu-se, desde 110

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sempre, diante da contingência de relacionar-se com grandes potências a leste e a oeste e do pesadelo da guerra em duas frentes, ilustrado pela Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Doravante, para elidir esta perspectiva, sempre que a Alemanha se projetou em uma direção, procurou previamente assegurar-se da estabilidade na outra. O seu próprio surgimento resultou desse aprendizado: obteve a neutralidade da Rússia para vencer a Áustria (1866) e a França (1871) e passar a existir enquanto país. Trata-se de uma clara ilustração da vocação eurasiana — estabilizar-se no leste e projetar-se em direção ao oeste. Por outro lado, a aliança da Alemanha com a Inglaterra que vigorou até 1914, quando os capitais ingleses financiaram a construção do Império Alemão, representa a vocação atlantista, que consiste em se estabilizar no ocidente para projetar-se ao oriente. Nas duas ocasiões em que a Alemanha não pôde ou não quis aplicar o aprendizado de evitar a guerra em duas frentes, foi derrotada ou destruída, como ilustram as duas guerras mundiais. Naturalmente, alianças implicam valores. A vocação eurasiana, caracterizada na diplomacia de Bismark, relaciona-se mais aos aspectos do poder duro e à perspectiva realista, na qual importa a correlação de forças. Por sua vez, o atlantismo baseia-se no idealismo, no liberalismo e na ideia de comunhão de valores ocidentais — o que vai desde o “fardo do homem branco” no século XIX até os direitos humanos no século XXI. Entre as duas vocações surgiu o integracionismo. Inicialmente como perspectiva subalterna, quase marginal, materializada na obra de Eduard Bernstein (1850-1932), defensor das “colônias civilizatórias”, e Conde Richard Eijiro Coudenhove-Kalergi (1894-1972), criador do europeísmo, ambos complementados por Victor Hugo (1802-1885), proponente dos “Estados Unidos da Europa”. As duas guerras mundiais que conduziram a Alemanha à miséria e à destruição encarregaram-se de converter o que antes era uma tendência improvável em principal política de Estado: a integração europeia, que teve início com a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Tratado de Paris, 1951). Qual é, pois, o sentido atual da dualidade alemã representada pelas vocações atlantista e eurasiana? Ele é dado pela crise econômica, iniciada em 2008, e que hoje se apresenta como uma ameaça existencial à União Europeia. 111

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2. HISTÓRICO O território da atual Alemanha era composto, até o século XIX, por diversos pequenos reinos. O nacionalismo prussiano foi instigado na Guerra dos Sete Anos, na qual a futura potência alemã do século XX começou a ser forjada pelos ingleses, como forma de contenção da França. No Congresso de Viena, em 1815, a fragmentação do território foi deliberadamente mantida pelas potências, com a criação da Confederação Germânica. A Unificação alemã só veio a ocorrer em 1871, quando a política externa do país passou a ser conduzida pelo chanceler Otto von Bismarck, de uma visão mais eurasiana, voltada para o equilíbrio entre diversos polos de poder e com ênfase nas relações com a Rússia e a China. Em 1890, Guilherme II, o último Kaiser alemão, demitiu Bismarck e não soube dar continuidade ao seu complexo sistema de alianças, criando animosidades que contribuíram para a Primeira Guerra Mundial. Hitler radicalizou essa tendência com o estabelecimento de áreas de influência e domínios nos países fronteiriços. Vencida na Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi dividida em quatro setores de ocupação pelos Aliados e, em 1949, dividida em dois países: Alemanha Ocidental, de cunho capitalista, e Alemanha Oriental, socialista. Nesse período, a política externa da Alemanha Ocidental foi de alinhamento com as potências ocidentais como forma de readquirir a confiança dos Aliados. A reunificação ocorreu em 1990, e o Chanceler da Alemanha Ocidental, Helmut Kohl, assumiu o poder com uma política híbrida, que envolveu tanto o apoio aos separatismos nos Bálcãs — procurando aumentar sua influência entre os países recém-independentes e favorecendo o atlantismo —, como também uma visão eurasiana, estreitando relações no Oriente. A integração europeia sintetizou o atlantismo e o eurasianismo. Como expressou o próprio Kohl, “a integração alemã e a integração europeia passaram a ser duas faces de uma mesma moeda”. A Alemanha foi um dos artífices de primeira ordem na União Europeia. Em 1951, assinou o Tratado de Paris, criando, em conjunto com a França e outros países, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). A partir de 1962, suas instituições fundiram-se com as da Comunidade Econômica Europeia (CEE), criada em 1957, consolidando uma ambição continental de integração. Ainda em 1955, a Alemanha tornou-se membro pleno da OTAN e o principal pilar terrestre de defesa 112

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do hemisfério ocidental. Do mesmo modo, junto à França, foi pioneira no processo de transformação da CEE em União Europeia, com o Tratado de Maastricht, em 1992. Em Maastricht, dentre outras coisas, foi expressa a ambição da criação de um aspecto de defesa para a União Europeia — a Política Externa de Segurança Comum (PESC), uma ideia que já havia sido debatida quando da tentativa de estabelecimento da Comunidade Europeia de Defesa, em 1952. Em 2005, o fracasso da Constituição Europeia, rejeitada pelas populações de França e Holanda em plebiscitos, colocou a criação do Estado Europeu em cheque e foi considerado uma derrota para o processo de integração pela Alemanha, já que Merkel se empenhou muito para que ela fosse aprovada. Como alternativa à Constituição, surge o Tratado de Lisboa, em 2007, que, com um caráter mais técnico, conseguiu a institucionalização da PESC através da criação do cargo de Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, uma espécie de "Ministro dos Negócios Estrangeiros da União Europeia”, com responsabilidade em assuntos militares. Em vigor desde 2009, o Tratado também institui a Política de Defesa e Segurança Comum (PDSC): um organismo intergovernamental, ou seja, no qual os Estados-membros são representados, que abrange a defesa e os aspectos militares. Assim, pelo menos teoricamente, a União Europeia tem sua própria política externa e de segurança, que a permite falar e agir em uníssono em questões mundiais. É importante mencionar aqui a criação da Entente Frugale, em 2010, para o desenrolar dos acontecimentos da situação europeia atual, pois acredita-se que o veto alemão à proposta de fusão das duas maiores fornecedoras de material bélico da Europa — a BAE (inglesa) e a EADS/Airbus (majoritariamente francesa e alemã) —, em 2012, tenha relação com a criação dessa aliança militar estabelecida entre Inglaterra e França. O papel de liderança que a Alemanha tem exercido na União Europeia, desde a crise internacional de 2008 e, especialmente, desde que a zona do Euro entrou em recessão, vem sendo exercido principalmente através da proposição das chamadas políticas de austeridade fiscal, a serem abordadas quando tratarmos da situação alemã propriamente dita.

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3. ECONOMIA Desde o século XIX, a economia da Alemanha já demonstrava seu potencial de crescimento e competitividade. A expansão econômica e financeira mudou seu status de nação devedora para uma nação credora das dívidas de países da América Latina e Europa. O protecionismo, marca desse século segundo Hilferding, ao favorecer economias desenvolvidas, também contribuiu para o crescimento alemão, garantindo maior poder de competição e escala de produção. O Zollverein, aliança aduaneira que precedeu a unificação alemã, foi forjado com o intuito de fortalecer o mercado interno da região e torná-lo um impulso para o desenvolvimento. Com a tática econômica de proteger o mercado interno e conquistar o mercado europeu, que continua sendo aplicada até hoje, a Alemanha foi capaz de, no século XIX, adentrar o mercado europeu a ponto de rivalizar com a Inglaterra, hegemonia da época, e, junto aos EUA, subjugá-la. Esse pequeno recorte da história alemã permite compreender o papel de liderança econômica desempenhado atualmente na União Europeia e a solidez de sua economia, se comparada com as demais do continente. Após derrotas nas duas Guerras Mundiais, a Alemanha conseguiu, e até com certa rapidez, reconstruir sua economia, que hoje é a maior da Europa. Em 2011, foi o segundo país em volume de exportações mundiais, perdendo apenas para a China. Devido à existência da União Europeia e suas facilidades de comércio intra-bloco, muitos dos dez principais parceiros comerciais da Alemanha são europeus e alguns países como a Áustria possuem uma pauta de importação com 42% de dependência dos produtos alemães. É válido destacar a importância das exportações para a França, que representam 10,2% do total exportado, figurando como principal parceira da Alemanha nesse quesito. (World Bank; 2012) Em relação às importações, a Alemanha detém a quarta posição no mundo, atrás de Estados Unidos, União Europeia e China. Assim como nas exportações, o padrão de importação alemã é majoritariamente intrabloco, mas países como Rússia e China também aparecem em posição de destaque. As importações da Rússia são majoritariamente de combustíveis e demonstram uma relação de dependência alemã, especialmente no setor energético, que é reforçada pela construção de oleodutos e gasodutos entre os dois países. 114

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O Investimento Externo Direto é um indicativo do padrão de dependência entre países; no caso alemão, esse padrão novamente se mostra mais voltado para a Europa. Os principais investidores no país são membros da União Europeia e os Estados Unidos aparecem apenas em sétimo lugar. Os investimentos alemães também tendem a se concentrar no bloco, com Estados Unidos e China como terceiro e sétimo lugares em 2009. O fato de grande parte desses investimentos se darem em um contexto intra-bloco mostra certa interdependência, o que tornaria uma possível ruptura do bloco ainda mais improvável.

4. INFRAESTRUTURA A Alemanha dispõe de uma excelente infraestrutura, com todas as regiões do país interligadas e portos modernos, facilitando o escoamento da produção industrial. O Vale do Ruhr é a região industrial mais importante, base da forte indústria automobilística — maior produtora do mercado europeu, encabeçada pelas gigantes BMW e Mercedes Benz — e da siderúrgica, responsável por mais de 50% das importações de aço da União Europeia. Embora haja forte concentração nas cidades do norte, o parque industrial alemão está bastante espalhado pelo território e abriga indústrias líderes em diversos segmentos, como a Bayer e a BASF, líder do mercado mundial na indústria química, na qual a Alemanha é a maior produtora e exportadora do mundo. Mas o que vem se mostrando de crucial importância nos últimos tempos é a questão energética, em duas frentes principais: o crescimento das energias renováveis em substituição ao uso de energia nuclear e a grande dependência alemã em relação à Rússia para a obtenção de petróleo e gás natural. A Alemanha é o país que mais importa e consome petróleo e gás natural em toda a Europa, além de ser o 7º importador de petróleo no mundo todo. Estimativas do ano de 2005 mostraram que essas importações vêm majoritariamente da Rússia (34%), seguida pela Noruega (15%), Reino Unido (13%) e Líbia (12%). A partir, principalmente, do oleoduto Druhzba — também conhecido como “oleoduto da amizade”, por ter sido construído para ligar leste e oeste da Europa em meio à Guerra Fria — a Rússia fornece aproximadamente 32% do consumo total da União Europeia. A questão de maior destaque atualmente, no entanto, tem sido a dos 115

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gasodutos. Em 2012, passou a funcionar o segundo ramal do gasoduto Nord Stream, construído em parceria com a Rússia (principalmente, mas com capitais de outros países também). Ligando os dois países através do Mar Báltico, o Nord Stream veio a reforçar ainda mais a dependência em relação à Rússia, que fornece cerca de 40% do consumo da União Europeia; uma única companhia russa, a Gazprom, fornece cerca de 25% desse total. A Alemanha vem percebendo a necessidade de diminuir essa dependência e demonstrou isso ao apoiar a construção de gasodutos alternativos ao fornecimento russo, em especial o projeto Nabucco que, desde a concepção de sua ideia, foi também apoiado pela União Europeia e Estados Unidos. Esse gasoduto passaria pela Turquia, Áustria, Romênia, Bulgária e Hungria e, a partir daí, o gás seria redistribuído pela Europa. Porém, problemas com atrasos (a ideia surgiu ainda em 2002), falta de recursos, dificuldades em estabelecer acordos com os possíveis fornecedores (Azerbaijão, Turcomenistão, Iraque e Egito) e até mesmo a concorrência com outros projetos parecem ter ajudado a estagnar o andamento do Nabucco, de certa forma. Possivelmente por esses motivos, ao final de 2012, perto da data do início da construção do gasoduto South Stream, a Alemanha surpreendentemente anunciou que apoiaria este projeto em detrimento ao “rival” Nabucco, já que o primeiro é liderado pela Gazprom e será abastecido pela Rússia, aumentando ainda mais sua projeção e diversificando suas rotas. Desta forma, o objetivo alemão de não ficar totalmente dependente da Rússia no suprimento energético mostra-se cada vez mais distante, apontando para um possível reforço nas relações entre os dois países. Essa mudança também pode representar um pequeno afastamento da Turquia, com a qual a Alemanha teria uma oportunidade de aproximação através do Nabucco.

5. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS Uma vez que a política externa é também reflexo da política interna de um determinado país, é de fundamental importância analisar a estrutura do sistema político alemão e quais são os critérios e os personagens que influenciam nas decisões de política externa. A Alemanha é uma república parlamentar federal composta por 16 estados 116

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que possuem grande autonomia decisória. O poder de iniciativa na política externa é exercido pelo chanceler, atualmente Angela Merkel, no cargo desde 2005 com mandato até 2013, junto ao Ministério das Relações Exteriores, que atualmente é comandado por Guido Westerwelle, no cargo desde 2009. A Constituição em vigor na Alemanha (Grundgesetz) foi aprovada em 1949, logo após a II Guerra Mundial. Tal Constituição institui os direitos fundamentais do ser humano, o regime democrático, o federalismo e o Estado social como os princípios constitucionais básicos, de caráter permanente. No que tange ao exercício da política externa, destacamos três artigos constitucionais que vigoram a respeito. O artigo 24 trata sobre a transferência de direitos de soberania, o qual assegura que a Federação pode transferir esses direitos para organizações interestatais, bem como legalmente permite a adesão da Federação em um sistema de segurança coletiva mútua. O Artigo 25 destaca a preeminência do direito internacional, ou seja, as regras gerais do direito internacional estão automaticamente vinculadas ao direito federal. Por fim, o artigo 26 preza pela paz, aceitando apenas guerras com objetivos pacíficos e regulando o porte de armas. A Alemanha possui grande representação de seis partidos, sendo basicamente três de direita e três de esquerda. Os partidos socialdemocratas cristãos de cunho conservador são os mais representativos, embora atualmente partidos alternativos tenham crescido substancialmente, como o Partido Pirata e o Partido Verde. Ligada a esta última ascensão, possivelmente está uma recente e polêmica decisão do Parlamento alemão de fechar as usinas nucleares da Alemanha até 2022 e estabelecer o suprimento energético alemão com 80% de participação das energias renováveis até 2050. Esta crítica decisão do Parlamento pode estar vinculada às eleições que ocorrerão em 2013 e foi apontada como uma “manobra política” de Merkel para favorecer os representantes dos partidos emergentes, uma vez que é o Parlamento quem elege o chanceler. Apesar disso, Angela Merkel possui 66% de popularidade entre os alemães e, nas pesquisas presidenciais, quase 50% da população votaria em seu partido. Isto indica que Merkel possivelmente permanecerá no poder e que a população tem apoiado sua política externa de maior integração regional e de preocupação com a zona do Euro, apontando 117

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para uma proeminência da vocação atlantista nas questões políticas.

6. SEGURANÇA E DEFESA Como potência, a Alemanha utiliza-se mais de liderança política e econômica do que de seus recursos duros como modo de efetivar sua posição dominante dentro da União Europeia. O que, em parte, serve para justificar sua menor ênfase na preparação militar. O panorama atual devese, em grande medida, à situação estabelecida após a Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha foi dividida e completamente desmilitarizada. Mesmo após o ingresso da parte Ocidental na OTAN em 1955 e da grande responsabilidade que adquiriu sediando quatro de um total de 14 comandos da OTAN2, o país nunca mais recuperou a proeminência militar de outrora. Atualmente, suas capacidades militares não se destacam em comparação com outros países do continente, como França e Inglaterra e, pelo contrário, muitas vezes seu inventário fica aquém desses em números. A diferença aumenta se a compararmos com outras potências europeias como a Rússia, e até mesmo com a Turquia, também membro da OTAN. Entretanto, os gastos militares alemães servem para ilustrar a posição de proeminência do país: estão entre os dez maiores de 2011, representando 46,7 bilhões de dólares (SIPRI Database, 2012). A Alemanha, em seu Livro Branco, dá ênfase à cooperação em segurança e segurança coletiva, sendo que parte da missão do Bundeswehr — as forças armadas alemãs — diz respeito ao auxílio aos aliados (Germany’s Federal Minister of Defense, 2006). Isso se faz evidenciar pela participação alemã em organismos internacionais que enfatizam a cooperação em segurança e defesa, como o Eurocorps e a Organização do Tratado do Atlântico Norte. Como já mencionado, a Alemanha tem sua entrada na OTAN concomitante à remilitarização da Alemanha Ocidental, em 1955. Posteriormente, quando da reunificação pelos Tratados Dois Mais Quatro, a Alemanha reunificada escolhe 2

Comando do Grupo de Exércitos do Norte (NORTHAG, acrônimo em inglês); Comando do Grupo de Exércitos Central (CENTAG, acrônimo em inglês); Comando das Forças Aéreas Aliadas na Europa Central; e Comando Europeu das Forças Aliadas de Pronto Emprego (ACE Mobile Force, acrônimo em inglês).

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permanecer em tal organização. Já em 1992, uma iniciativa franco-alemã cria os Eurocorps, corpos de exército multinacionais de cinco países: Alemanha, França, Bélgica, Luxemburgo e Espanha (além disso, Turquia, Grécia, Itália, Polônia e Áustria são membros associados). Esses corpos de exército estão à disposição da União Europeia e da OTAN, e sua base principal está localizada na cidade francesa de Strasburgo. (Eurocorps Website, acessado em janeiro de 2013). De relevância também é a atual reestruturação das forças armadas alemãs. Além de objetivar cortes orçamentais, essa reestruturação pretende transformar o Bundeswehr em uma entidade altamente capacitada, flexível e de grande mobilidade. A reforma trouxe novas estruturas ao exército, que supostamente aumentariam sua flexibilidade e capacitação. Além disso, o serviço militar obrigatório foi suspenso em julho de 2011, embora ainda seja aceito o alistamento voluntário (IISS, 2012). Entretanto, pode-se dizer que o inventário germânico não condiz com os objetivos expressos de sua reestruturação, notadamente nos objetivos de mobilidade e flexibilidade. Excetuando-se o exército, as outras forças armadas (marinha e força aérea) perdem em inventário para as principais potências. A marinha alemã não possui de facto navios do tipo destroyer; os que classifica como destroyer são, na realidade, fragatas. Também não possui porta-aviões ou submarinos nucleares, apenas submarinos convencionais. Além disso, em uma comparação com França, Reino Unido, Turquia e Rússia, tem o menor número de caças de 4ª geração e de aviões sisterna, embora tenha um número razoável de aviões de transporte quando comparada ao Reino Unido, Turquia e França. A maior vantagem alemã sobre França e Reino Unido se dá em relação a tanques de ataque (MBT’s), tendo em vista que possui o melhor modelo de MBT, o Leopard, em quantidades maiores que as possuídas pelas duas outras nações (IISS, 2012). Pode-se dizer, após uma análise de sua preparação militar, que a Alemanha não apresenta capacidade de intervir além-teatro sem se associar a outros países, visto que suas forças armadas, hoje, conseguem sustentar apenas 7.000 soldados no exterior. Além disso, a ênfase dada à cooperação em segurança sugere uma preferência pela integração europeia a um possível domínio de outros territórios fora do continente. 119

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7. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA A transição tecnológica representa um grande desafio aos países que almejam se estabelecer como potência ou se manter como tal. A Alemanha é conhecida por ser uma grande investidora em pesquisa e desenvolvimento, perdendo apenas para Japão e EUA (gastos em relação ao PIB). Isso possibilita que seja líder em inovação e pesquisa: atualmente, é o país que mais registra patentes na Europa; outro indicador disso é o alto número de publicações de artigos científicos e técnicos. O retorno desse investimento em capacitação aparece ao observarmos os avanços em tecnologia. A Alemanha possui o seu próprio “Vale do Silício”, especializado em microeletrônica e setores relacionados, onde cerca de 300 companhias atuam — entre elas a AMD e a Siemens. Também é a maior produtora de alumínio da União Europeia, apesar da grande dependência de importações de minerais metálicos. A rede europeia de fibra óptica de alta capacidade, uma espécie de espinha dorsal das comunicações, mostra que há uma grande concentração daquilo que podemos chamar de “estradas eletrônicas” na Alemanha, ligando tanto as cidades entre si quanto o país ao resto do continente. O sistema de navegação Galileo vem sendo desenvolvido pela União Europeia com efetiva participação alemã: o projeto inclui a instalação de 30 satélites até 2020. Atualmente, está em fase de testes e quatro já foram lançados. A expectativa é de serviços iniciais a partir de 2014 e de que o sistema tenha interoperabilidade com o GPS e o GLONASS. A Alemanha possui o quarto supercomputador mais veloz do mundo, e outros três entre os 25 mais velozes, mas todos eles foram montados nos EUA, com processadores americanos. Empresas como a Siemens têm priorizado muito mais o campo energético em detrimento à microeletrônica. Fatos como esses podem ser encarados como indicadores de defasagem no campo tecnológico; por mais que seja um grande investidor dentre os europeus, o país parece estar ficando para trás em relação a outras potências, especialmente Estados Unidos e China. Para manter-se com o status de potência, estar entre as líderes nesse aspecto mostra-se fundamental.

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8. SITUAÇÃO E CONJUNTURA Nosso Marco de Situação é a crise econômica iniciada em 2008, a qual gerou grandes mudanças no continente europeu, principalmente no que se refere à posição ocupada pela Alemanha na região. O país assumiu uma notável posição de liderança na União Europeia, devido ao tamanho e à força de sua economia, destacando-se como principal credor para a reconstrução e reestruturação econômica do bloco. Devido à crise, muitos países com uma fraca base econômica (turismo, por exemplo) encontraram dificuldades com a recessão e o endividamento governamental; Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha, conhecidos como PIIGS, foram os principais afetados. Ademais, devido à sua economia sutilmente abalada pela crise, se comparada às de outros países, a Alemanha estabeleceu para o bloco medidas de austeridade fiscal, que determinavam cortes nos gastos governamentais dos países mais afetados. Essas medidas são defendidas pela Alemanha como a única saída para a salvação das economias em crise, e devem ser largamente aplicadas. O ano de 2012 para a Alemanha foi marcado, principalmente, pela afirmação dessa liderança econômica no âmbito da União Europeia, destacando-se a ajuda econômica aos PIIGS (notadamente a Grécia) e pela insistência na manutenção e acirramento das medidas de austeridade fiscal. Ainda no âmbito da União Europeia, é digno de menção que, durante as reuniões de Cúpula, muitos dos países se recusaram a ampliar o orçamento do bloco e procuraram adiar decisões importantes, demonstrando falta de vontade estatal em investir no mesmo. Também se destacou uma política alemã mais independente, que pode ser representada pela abstenção de voto na ONU sobre a questão Palestina. Além disso, foi relevante a provável desistência alemã do projeto do gasoduto Nabucco3 e a repentina mudança em relação ao financiamento do gasoduto South Stream, no final do ano. Por fim, o apoio militar alemão à Turquia, no tocante à defesa do país contra ameaças da Síria, com o envio de mísseis Patriot e de uma equipe técnica alemã para sua instalação na fronteira com o vizinho em conflito, assinala o início de uma possível cooperação futura maior entre os dois países. 3

Em dezembro de 2012, a segunda maior empresa de energia alemã RWE decidiu abandonar o projeto de construção do gasoduto Nabucco.

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9. CENÁRIOS Existem três possíveis rumos para a Alemanha nos próximos anos. O melhor deles, para o qual as decisões referentes à política externa demonstram preferência, é a continuidade da integração europeia, nos moldes atuais, baseada no eixo Berlim-Paris-Londres. Os outros cenários possíveis são de parcerias inter-regionais com Rússia e Turquia. O último e pior cenário é a volta à forma de soberania do tipo Independência (Watson: 2004). A primeira alternativa é a melhor para o país, tendo em vista que o mesmo permanece como a nação-líder de um bloco que hoje se apresenta como uma virtual grande potência. A vontade nacional de persistir nesse projeto é demonstrada pela busca de uma crescente integração econômica, mesmo em tempos de crise. Os investimentos feitos pela Alemanha na União Europeia e na recuperação dos países da Zona do Euro após a crise mundial apenas reforçam uma tendência integracionista do país, que unifica tanto a vocação atlantista quanto a eurasiana. Em resumo, neste cenário a União Europeia se mantém como ator político e econômico forte no sistema internacional. O cenário intermediário pode ser descrito como um esforço de reconstrução hegemônica. Seu fundamento são parcerias inter-regionais, seja com a Rússia e Turquia — vocação eurasiana — ou com os Estados Unidos — perspectiva atlantista. A ideia básica é a da Alemanha se fortalecer no âmbito da U.E através de parcerias inter-regionais na esfera bilateral. Apesar disso não significar uma ruptura formal de compromissos com a U.E, muito menos o fim da zona do Euro, há um enfraquecimento visível da capacidade negociadora da U.E como um todo, já que a Alemanha passa de fato a responder pela região. No âmbito das parcerias inter-regionais, pode-se destacar as relações bilaterais da Alemanha com Estados Unidos, Rússia, China e Turquia. Em meados de 2013, por iniciativa alemã, a União Europeia irá negociar uma Zona de Livre Comércio com os Estados Unidos. No âmbito das relações estritamente bilaterais, a Rússia assoma-se como forte parceiro, dada a interdependência recíproca envolvendo, de um lado, capitais e energia e, de outro, os hidrocarbonetos. Além disso, a China já é, fora da U.E, o segundo maior parceiro comercial da Alemanha, com um valor anual de negócios superior a USD150 bilhões. Mesmo a Turquia — que pertence à OTAN, mas não à U.E — adquire importância tanto na esfera da 122

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transnacionalização de empresas quanto no âmbito securitário. De fato, apesar das restrições constitucionais, a Alemanha passa a cooperar em matéria de segurança de forma crescente com países extra-regionais: com os Estados Unidos na África, com a Rússia na Ásia Central e com a Turquia no Oriente Médio. Contudo, é ingênuo supor que as parcerias bilaterais são uma alternativa à U.E; trata-se de fortalecer a posição negociadora da Alemanha no próprio bloco, para que também, a partir da proeminência internacional, fortaleça-se a posição alemã no âmbito da zona do Euro. Entretanto, em política, muitas vezes expedientes transitórios acabam por resultar em soluções permanentes. Deve-se reconhecer a existência de uma transição hegemônica, caracterizada pela ação parcial da Alemanha como Independência (âmbito bilateral) e que isso acarretaria o enfraquecimento da U.E. Neste cenário, em seu limite extremo, EUA, Rússia e China tornam-se tão importantes para a Alemanha quanto seus parceiros da União Europeia. O pior cenário proposto é o retorno à forma de Soberania Independência (Watson; 2004). A Alemanha se vê abandonada pela França e, uma vez que a Inglaterra nunca fez parte da zona do Euro, impossibilitada de manter as três âncoras do Euro (fiscal, cambial e monetária). Diante disso, encontra-se na contingência de relançar o Marco alemão e construir ou disputar uma área de influência própria na Europa. Isso parece possível, a princípio, dado o seu potencial econômico — a Alemanha continuaria como centro dinâmico da região formada por países economicamente mais fracos, com poder de influência sobre os mesmos. Entretanto, esta seria uma influência limitada, e ocorreria um “rebaixamento” do patamar de grande potência mundial (pela sua liderança no âmbito europeu) para potência regional. Por hora, contudo, essa perspectiva parece improvável.

Conclusão Ao final deste estudo, podemos concluir que a Alemanha possui as condições necessárias para ser considerada uma grande potência, ainda que, em alguns quesitos, esteja a uma distância significativa das outras. Apesar de suas evidentes limitações em matéria de defesa, ela é o carrochefe da integração europeia. Seu grande trunfo é ser a mantenedora da União Europeia, seu suporte econômico, diplomático e político, atuando, 123

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desde sempre, entre os artífices intelectuais e materiais da integração. Ela continuará uma grande potência enquanto o bloco permanecer nos moldes atuais, baseado no eixo franco-germano-britânico. Resta saber se a União Europeia se manterá na configuração atual. Em caso negativo, merecem atenção duas hipóteses: uma aproximação da Alemanha com a Rússia, dada a interdependência comum e o interesse em reduzir a influência estadunidense na Europa leste. Merece igual atenção a possibilidade, hoje anti-intuitiva — recentemente a Alemanha barrou mais uma vez a entrada da Turquia na U.E — de uma aproximação econômica e política com a Turquia. Naturalmente, essas possibilidades só fazem sentido em um caso intermediário entre o segundo cenário e o terceiro ou na configuração do pior cenário propriamente dito, o de soberania Independência. Em qualquer hipótese, ainda há muito que estudar acerca da Política Externa e de Segurança (PES) da Alemanha. Para além de possíveis insuficiências ou equívocos deste trabalho, permanece o fato de que a política externa alemã encontra-se em uma fase de transição. Os custos da recente reunificação ainda não haviam sido integralmente absorvidos quando eclodiu a crise econômica de 2008. Esta, por sua vez, colocou em questão o fundamento da PES estabelecida desde o pós-guerra: a integração. E, a crise da integração europeia recoloca a dualidade entre atlantismo e eurasianismo, que caracterizaram o Estado nacional. Permanece em aberto saber qual será o contorno final da PES da Alemanha, mas, qualquer que seja seu desdobramento, terá importantes repercussões para a política internacional como um todo.

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Capítulo 7 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA FRANÇA Andressa Cristina Gerlach Borba Luciana Costa Brandão Maximilian Dante Barone Bullerjahn Marina Soares Scomazzon Natasha Pergher Silva Valentina Assis Arnt Andreazza Rossi Introdução O presente estudo tem como foco de análise o atual posicionamento da República Francesa no sistema internacional, atentando para sua atuação na Europa, no continente africano e no Oceano Índico. Para tanto, elegemos o seguinte problema como norteador da nossa pesquisa: a França tem capacidade — militar, econômica e política — para manter-se como uma das potências do sistema interestatal? Em função da sua influência no mundo ocidental, parte-se do diagnóstico de que o país ainda se mantém como uma das potências do século XXI. O presente artigo instrumentaliza sua análise a partir de uma dualidade histórica da política externa francesa entre uma vocação ora direcionada para o Império, ora voltada para a Integração. A dualidade estará presente em todas as esferas de nossa análise daqui para frente e configura um elemento chave para os possíveis cenários que apresentaremos no final do artigo.

1. A DUALIDADE FRANCESA: FRANÇA IMPÉRIO E FRANÇA INTEGRACIONISTA O exame da história francesa permite-nos identificar uma dualidade na essência da atuação do país no cenário internacional, manifestada por meio de uma política externa que, ora se direciona a uma posição imperial — de modo a se impor por meio da força e da coerção —, e ora 126

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projeta-se através de posições integracionistas — marcadas pelo compartilhamento de soberania. Tal dualidade pendula entre esses dois polos sem chegar aos seus extremos, o que significa que, mesmo quando há preponderância de um, manifestam-se traços do outro. Para melhor ilustrar essa dualidade recorremos a dois personagens importantes da história francesa: Napoleão Bonaparte e Charles De Gaulle. O Império Napoleônico foi um dos momentos em que a França se expandiu sobre grande parte da Europa, assegurando o controle e a organização política e militar dos territórios sobre os quais se projetava. Assentamentos temporários do Império Francês em outros continentes e os territórios dominados pela França na África e no Índico são exemplos do polo França-Império. Já a França-Integracionista se expressa na tentativa de criação de instituições econômicas e políticas e no estabelecimento de uma liderança sob os moldes franceses para a Europa, manifestada com clareza durante a administração de De Gaulle e mantida nos governos posteriores. Cabe ressaltar, porém, que o conceito aqui utilizado de Integracionismo tem suas raízes em um momento histórico anterior com a ideia de Federação exposta no livro O Espírito das Leis (1748), de Montesquieu (MONTESQUIEU, 1973). A obra trata da construção de uma República Federativa, como forma de as cidades-Estado unirem-se para resistir ao controle imperial externo. Para o estudo do caso francês, a noção de Federação é trazida para o cenário contemporâneo inserida nas ações políticas de integração europeia desde a década de 1950. Ao longo da análise histórica, portanto, elementos desta dualidade dialogam com eventos e tendências políticas adotadas pelo país.

2. HISTÓRICO: RETOMADA DE FATOS E ILUSTRAÇÃO DA DUALIDADE No início dos anos 50, as lutas por independência, em especial nos domínios franceses e britânicos, demonstram o esgotamento do modelo imperial assumido até então pelos países do velho continente e a necessidade de alteração na política externa do país. A Crise da Argélia culmina com a independência da colônia francesa em 1954. Em 1956, o movimento nacionalista anti-imperialista egípcio, comandado por Nasser, promove a nacionalização do Canal de Suez, construído em meados do século XIX e ainda sob controle francês e britânico. 127

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A intervenção Franco-Britânica na Crise de Suez é combatida pelos EUA, que defendem a retirada das tropas destes países da região. Como resultado da Crise, ocorre o afastamento da França em relação aos EUA e um esfriamento das relações Franco-Britânicas, desde que a Inglaterra havia decidido fortalecer seus laços com os EUA (MAIOR, 2003: p.213). A partir daí, a Inglaterra e os EUA deixam de ser vistos pela França como aliados genuínos e esta se volta para a busca de uma unidade europeia como caminho para recobrar sua projeção internacional abalada após a Crise. Este processo culmina em 1966 com a saída da França da OTAN, durante o governo de Charles DeGaulle. Durante a administração gaullista percebe-se que uma alternativa para que a França desempenhasse um papel importante no cenário internacional seria abandonar o seu compromisso moral com o "Império", em busca de um modelo mais voltado para a Europa (WERTH, 1967: p.315). O projeto de integração europeia baseava-se nas ideias de assumir uma autonomia frente aos Estados Unidos e reconciliar-se com a Alemanha Ocidental, buscando um projeto conjunto liderado pela França. Ao sair da OTAN, desativar as bases aéreas da organização localizadas em seu território e desenvolver um programa nuclear autônomo, a França busca afirmar sua grandeza nacional e independência. A criação da Comunidade Econômica Europeia (CEE), assim como o veto da França ao pedido de participação da Grã-Bretanha no Mercado Comum Europeu, é outro lado da expressão iniciada no governo De Gaulle, voltada para a integração europeia e comprometida com o afastamento da influência estadunidense na região. O Tratado de Maastricht, de 1992, é o documento que consolidará os esforços de integração iniciados com De Gaulle. A institucionalização da integração europeia se dá a partir de dois modelos: o ideal de uma comunidade europeia, expressão de um método de tomada de decisões supranacional que abrange assuntos referentes à política comunitária; em oposição ao mecanismo intergovernamental de decisões referentes à Política Externa de Segurança Comum (PESC) e aos assuntos internos, mantendo a soberania dos Estados-membros quanto a aspectos estratégicos. Em 2005 propõe-se uma Constituição Europeia — uma instituição que seria o passo decisivo para a consolidação da integração europeia nos termos clássicos do federalismo: a formação de um "Estado Europeu". A medida não foi posta em prática depois da sua 128

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rejeição pelas populações da França e dos Países Baixos. No sentido oposto, o Tratado de Lisboa de 2007 apenas reafirma o mecanismo de decisão intergovernamental já estabelecido em Maastricht, não agindo como real fortalecedor do processo de integração. A Política Externa de Segurança e Defesa falha, portanto, na capacidade real de atuação, pois a criação de um acordo de defesa e segurança comuns mantém-se condicionado ao plano de decisão doméstico. O direcionamento da política externa francesa para o polo imperialista ocorre a partir do governo de Jaques Chirac. Nele, há um endurecimento político francês no cenário internacional principalmente quanto à administração de suas esferas de influência, aumentando a projeção de forças para o Índico e instituindo-se a Doutrina Chirac, a qual permite a utilização de armas nucleares mesmo contra países que não as possuem. Em paralelo a isto, houve o retorno à OTAN, concluído em 2009 no governo de Sarkozy. A análise destes eventos históricos evidencia que o padrão de alinhamento francês convive com um desejo de estabelecer-se enquanto polo do sistema internacional, mantendo as bases para sua projeção de força.

3. A ECONOMIA COMO VARIÁVEL INTERPRETATIVA DA DUALIDADE FRANCESA

A França sempre foi fundamental para o continente europeu, pois, como polo industrial consolidado, atrai investimentos estrangeiros independentemente de flutuações econômicas ou políticas. Em 2011, o PIB do país chegou a 2,7 trilhões de dólares, tornando-se a 10ª economia do mundo e 3ª na Europa — atrás da Alemanha e do Reino Unido (CIA, 2012). Para o presente trabalho, a relação econômica com esses dois países é encarada como uma chave de interpretação da dualidade anteriormente exposta. Por um lado, a aproximação com a Alemanha no âmbito econômico caracteriza uma postura mais integracionista pela necessidade de simbiose entre ambos para o êxito da União Europeia. Por outro lado, o estreitamento dos laços com a Inglaterra configura a afirmação da autonomia francesa, pautada em uma política externa mais independente e de expansão da sua área de influência para fora do continente europeu. 129

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A Alemanha, principal parceira comercial da França, é responsável por 16,7% das exportações e 19,1% das importações do país, sendo o comércio entre eles quase duas vezes maior do que com a Bélgica e com a Itália (segundos colocados na relação de parceiros comerciais), o que confirma a interdependência econômica de ambos. A participação do Reino Unido corresponde a 6,7% das exportações, e 5,1% das importações francesas, o que demonstra que a França mantém uma relação mais estreita com a Alemanha do que com o Reino Unido (BRIDGAT, 2008). Em 2011 o relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) diagnosticou deterioração das finanças públicas francesas causadas por fatores estruturais e pelo impacto da crise financeira de 2008, demonstrando os efeitos negativos do aprofundamento da integração. Além de desequilíbrios fiscais, a perda de competitividade da economia, as dificuldades estruturais no mercado de trabalho e os gastos com seguridade social também foram mencionados. As medidas recomendadas pelo FMI não previam alinhamento no âmbito da UE, deduzindo que as dificuldades econômicas só seriam convertidas através de medidas governamentais (IMF, 2011a). As dificuldades econômicas enfrentadas pela França são um elemento chave para a compreensão da política externa do país nos próximos anos. A rejeição da Constituição Europeia se deu, em grande parte, por fatores econômicos, de modo que uma economia frágil pode impedir o fortalecimento da parceria franco-alemã e da União Europeia. A alternativa, nesse caso, seria a busca de parceiros extracontinentais, seja entre os países em desenvolvimento, seja com os EUA. A partir desta análise, então, reconhecemos a presença de condicionantes econômicos na dualidade francesa.

4. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS: A política francesa possui uma característica determinante: a autoridade reforçada do executivo em relação ao parlamento. O executivo é de regime semi-presidencialista, composto pelo presidente da República e pelo primeiro-ministro. O Parlamento auxilia o Presidente na definição da estratégia de segurança nacional e autoriza o envio das forças armadas para o exterior. 130

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Duas ideologias divergentes dominam o cenário político francês, com confrontos que variam ao longo da história. Atualmente, esta divergência se efetiva por meio de dois grupos políticos opostos: um de esquerda, centrado no Partido Socialista Francês, e outro de direita, centrado na União por um Movimento Popular (UMP). Ao analisar os períodos nos quais a França esteve sob comando de partidos de esquerda percebe-se uma tendência integracionista européia, através de uma liderança franco-alemã, e um alinhamento com o terceiro-mundo. Em governos nos quais a Direita ocupa o poder executivo, existe uma projeção mais ofensiva da França buscando uma reafirmação do poder e do status quo nacional francês. Esta característica da política externa francesa é salientada em períodos de coabitação, quando o poder executivo é dividido por dois partidos de oposição, sendo o primeiro-ministro responsável pelas ações de governo, enquanto cabe ao presidente a política externa. Isto ocorreu três vezes na história da França, sendo o período de governo MitterrandChirrac (1986-1988) o mais exemplar.

5. SEGURANÇA E DEFESA: ENTRE A HEGEMONIA COLETIVA E O IMPÉRIO NEOCOLONIAL A doutrina de segurança e defesa que orienta a política externa da França pauta-se no Livro Branco de Defesa francês de 2008, o qual tenciona garantir a posição de potência militar e diplomática da França, assegurando a independência do país e a proteção de seus cidadãos (FRANÇA, 2008). Tal doutrina foi elaborada dentro de um contexto internacional que, segundo seus idealizadores, exige capacidades de antecipação, de adaptação rápida e de resposta por parte de seus agentes. Partindo desse novo contexto, o Livro mostra que os desafios à segurança francesa se assemelham àqueles presentes na Estratégia de Segurança Europeia, divulgada em 2003, a qual buscava um enfrentamento conjunto dos riscos à segurança dos Estados europeus e pretendia, como parte dos objetivos estratégicos, garantir uma ordem internacional baseada no multilateralismo. É importante lembrar que, embora haja uma Estratégia de Segurança Europeia e uma Política Externa de Segurança Comum (PESC) as decisões a respeito do assunto continuam sendo, em última instância, governamentais e não 131

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supranacionais. A Estratégia de Segurança da França ainda enfatiza os desequilíbrios securitários do norte da África, da Ásia Central e do Oriente Médio, região denominada como “Arco de Crise”. A presença francesa no Índico e na África remonta ao período do colonialismo e da partilha da África no século XIX e faz parte da história política francesa dentro da busca pelo seu status de hegemonia e reconhecimento como potência. Atualmente o país tem bases militares permanentes na região do Oceano Índico - nas ilhas de La Réunion e Mayotte -, nos Territórios Franceses Austrais e Antárticos, bem como em Abu Dhabi. A localização estratégica na região possibilita o acesso tanto ao Oriente Médio como à África e o acompanhamento das rotas de comércio existentes na região, principalmente de armas, matérias-primas e petróleo. Ademais, cada um dos territórios franceses no Índico ainda proporciona uma extensão de 11 milhões de km² de Zonas Econômicas Exclusivas, permitindo a exploração e uso de recursos marítimos, inclusive para produção de energia. No continente africano, a França possui bases permanentes apenas em Djibouti e no Gabão (ZOUBIR; DEGANG, 2011: 101), mas atua em missões de paz na Costa do Marfim e no Chade, bem como em operações para conter a pirataria na costa da Somália e auxiliando através de missões da ONU a reforma no sistema de segurança da República Democrática do Congo. Apesar de dados apontarem que quase metade das tropas francesas fora do continente europeu está na África, argumenta-se sobre uma mudança da mentalidade da ocupação francesa em direção a uma “europeização” das missões através da cooperação militar com outros países (ZOUBIR; DEGANG, 2011). Mudança essa que pode ser compreendida tanto como uma alteração da postura francesa, ou como uma necessidade estrutural própria. O foco da política de defesa da França enfatiza as capacidades móveis, bem como a redução do contingente, do número de aviões de combate, e do número de estabelecimentos de serviços, com vistas a gerar recursos para investimento em capacidades (IISS, 2012). Busca-se, com isso, garantir resultados mais eficientes e racionalizar custos, sem comprometer o rendimento das forças armadas. Esse esforço de modernização, através de investimentos em tecnologia e redução dos gastos em custeio configura um elemento essencial para essa análise, uma 132

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vez que é um dos condicionantes da perda de competitividade militar da França em relação às demais grandes potências. Em concordância com a proposta de racionalização de custos em defesa, um acordo de cooperação militar foi firmado entre França e GrãBretanha em 2010. Conhecido como Entente Frugale, visa à coordenação das forças armadas de ambos os países nos seus diversos níveis de atuação (exército, marinha, aeronáutica). O desenvolvimento de uma sólida base industrial de defesa, bem como a consolidação de uma doutrina militar conjunta, configuraram os eixos norteadores da aproximação franco-britânica, resultando no estabelecimento de uma força conjunta expedicionária combinada (CJEF). Programas de treinamento conjunto, como o Exercise Flandres 2011, foram criados com vistas a testar os níveis de interoperabilidade entre os exércitos. Esses acordos militares indicam que o país tem buscado criar sinergias de projeção, em especial na África Setentrional e Oriente Médio. A arquitetura marítima da Entente Frugale é formada por três portaaviões: o Charles de Gaulle, francês, e os Queen Elizabeth I e II, britânicos — estes últimos ainda em fase de construção, com previsão de entrega para 2016. A cooperação conta com pesquisas conjuntas para promover avanços tecnológicos, assim como a utilização compartilhada dos porta-aviões por ambos os países. Finalmente, o acordo previa na esfera aeronáutica a aquisição de equipamentos, o aprimoramento tecnológico de sistemas aéreos não tripulados, o desenvolvimento de armas complexas e de comunicação via satélites, a fabricação de mísseis (SCALP-EG/Storm Shadow) e o suporte logístico para a aeronave de transporte A400M, visando ao compartilhamento de gastos de custeio. Outros projetos colaborativos da França incluem ainda a venda de 4 navios da classe Mistral para a Rússia e a participação em projetos desenvolvidos no âmbito da OTAN, como o Projeto SCORPION . Cabe salientar que, a despeito dos múltiplos acordos na esfera militar, há um esforço por parte do governo francês em fortalecer as empresas militares nacionais, sendo o principal exemplo a Dassault, de quem o governo se comprometeu a comprar 11 aeronaves por ano, de 2011 a 2013, para garantir a linha de produção do Rafale. Finalmente, o que se pode perceber em termos de cooperação militar, condizente com a dualidade que norteia o presente estudo, é que a França tem buscado se consolidar militarmente através desses projetos 133

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colaborativos, desde que esses garantam o acesso à capacidade e à tecnologia, como uma maneira de superar o atraso em relação às demais potências mundiais, a fim de recompor suas capacidades e efetivar a transição tecnológica. Se comparada aos Estados Unidos, à Rússia, à China e à Índia as forças de manobra terrestre francesas são pouco significativas, sendo similares às do Reino Unido. Tal debilidade, no entanto, não se faz presente quando se trata de forças aéreas. França e Reino Unido possuem, conjuntamente, 95 unidades de aviões de transporte pesado (56 e 39, respectivamente), o que lhes confere ampla capacidade de aerotransporte inter-regional se comparada com Índia (24) e China (57). Esses números colocam a Entente Frugale em posição relevante no que tange à mobilidade estratégica. Em se tratando de aviões de combate, a França possui 263 aviões de quarta geração. Segundo a RIA Novosti, no entanto, a França tem acompanhado o movimento da Rússia, dos Estados Unidos e da China no sentido de produzir um novo complexo de aviação militar. Os esforços em desenvolver novos aviões de combates, mais modernos e com tecnologia avançada, são evidentes e configuram a tentativa de chegar à sexta geração de aviões de combate. Já em termos de projeção marítima, a França pode ser considerada uma potência relevante. O porta-aviões Charles De Gaulle, além de ser um elemento essencial para a arquitetura da Entente Frugale, é capaz de carregar até 40 aviões de combate, sendo fundamental para a projeção francesa no Índico e para a consecução da prioridade estratégica materializada no “Arco de Crise”. Em 2011, o Charles De Gaulle participou da operação no Mediterrâneo que deu suporte à invasão da Líbia por parte da OTAN. Cinco meses após o início da missão, o portaaviões teve de abandonar a operação devido à necessidade de manutenção. A partir dos dados expostos acima, nota-se que a França possui capacidade para projeção de forças fora do continente quando focada em apenas um local. O envio de forças para mais de uma região inviabilizaria a estratégia francesa e não seria eficaz, dada a desvantagem numérica e tecnológica de seu efetivo frente ao de outros países que emergem como potências regionais. Entretanto, também é possível ver que, através de seus acordos de cooperação com a Inglaterra, o país reforça e moderniza seu contingente, possibilitando uma estratégia de projeção em mais de um 134

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continente.

6. INFRAESTRUTURA E TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA: O FORTALECIMENTO DO PILAR INTEGRACIONISTA

A dependência do petróleo e do gás natural estrangeiro é o elemento essencial para a análise da PES da França no que tange à infraestrutura, justificando a intensa rede de oleodutos e gasodutos compartilhados com seus vizinhos europeus, e o apoio francês a projetos como o gasoduto no Mar Báltico, o Nord Stream. Atualmente, a França apoia o projeto South Stream, que parte da mesma origem - a Rússia - porém atravessando o Mar Negro e fornecendo gás para o centro da Europa. Devido a essa dependência, a energia nuclear foi a alternativa adotada pela França. Hoje o país conta com um total de 59 reatores e administra por volta de 20 usinas nucleares, produzindo cerca de 80% da eletricidade na França. A sustentabilidade deste modelo no século de transição para as energias renováveis é, no entanto, questionável. Os investimentos em infraestrutura de transporte também atuam como elemento edificador do processo de integração europeu. Dentre os principais projetos ferroviários, destacam-se o Eurostar e o TGV. O país tem dado preferência a projetos europeus, a exemplo do Connecting Europe Facility, que prevê 40 bilhões de euros investidos nas áreas de transporte, telecomunicações e energia nos países do bloco. Outro caso de cooperação intraeuropeia é o sistema de navegação por satélite da União Europeia, o Galileo (ESA, 2012). A capacidade em realizar a transição tecnológica para a Terceira Revolução Industrial depende de investimentos na área de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Os gastos do governo francês com P&D são da ordem de 2,1% do PIB - em torno de 43 milhões de dólares (UNESCO, 2010: 166; R&DMAGAZINE, 2011). Estes valores perdem força quando comparados às economias asiáticas como o Japão e China, e aos próprios EUA. Em termos de capacidade de inovação, a França é considerada um "seguidor de inovações" (EUROPEAN COMISSION, 2009: 10), enquanto Alemanha e Reino Unido ocupam posições de liderança. No entanto, entre os supercomputadores mais velozes do mundo, a França é o único país europeu que realiza a montagem dos equipamentos (TOP500, 2012), ao passo que os demais importam seus modelos dos Estados 135

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Unidos, o que evidencia sua posição de potência. Quanto às matérias primas primordiais para a Terceira Revolução industrial, como alumínio, silício e terras raras, nota-se uma preocupação do governo francês em aperfeiçoar as técnicas de extração e produção, muito embora, o país não possua em quantidades significativas tais elementos em seu território. Pode-se dizer que a França possui as capacidades necessárias para se estabelecer enquanto potência tecnológica e como uma das líderes ocidentais nesta nova etapa da produção, desde que sua projeção global seja feita em conjunto com a União Europeia. Por fim, o continente africano apresenta-se como elemento chave para que a França lidere o processo de transição tecnológica, e a manutenção da esfera de influência francesa sobre Estados africanos que possuem recursos estratégicos é vital.

7. SITUAÇÃO E CONJUNTURA O marco da situação é a eleição de François Hollande para a Presidência da França. Hollande concorreu pelo Partido Socialista e derrotou o então presidente Nicolas Sarkozy, candidato pela UMP. O novo presidente socialista tem se deparado com desafios tanto no âmbito doméstico, com o agravamento da crise econômica, como no âmbito europeu, com os desentendimentos em relação às políticas fiscal e monetária promovidas pela Alemanha. Outra questão polêmica gira em torno do Banco Central Europeu, o qual, na visão francesa, deve ser utilizado como um órgão promotor de políticas macroeconômicas, ao passo que os alemães defendem a sua neutralidade, elemento que dificulta o pilar integracionista da PES da França. A despeito de constituir, em conjunto com a Alemanha, o principal pilar da integração regional, a França tem projetado sua influência além da Europa. Como antiga potência colonial, fazem parte da República Francesa uma série de territórios ultramarinos e, além disso, há um vasto leque de países — como as ex-colônias situadas no “Arco da Crise” — que mantêm laços estreitos com a antiga metrópole e dela permanecem dependentes. A instabilidade na política interna de alguns destes países tem servido de justificativa para ações militares francesas. São os casos da Costa do Marfim, do Mali e da República Centro-Africana, que receberam tropas francesas nos últimos meses. Esses eventos servem para 136

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ilustrar que a manutenção da zona de influência francesa extrarregional está relacionada à sua capacidade de projeção de força além teatro. A França vive um dilema: por um lado, parece depender das intervenções para manter sua influência mundial; por outro, isto tem dificultado o entendimento com a Alemanha no que diz respeito ao futuro da integração e o rumo dos gastos militares europeus. Assim, cabe à República Francesa avaliar com precisão as medidas que devem ser adotadas para que sua condição de grande potência se coadune com seus propósitos de integração na União Europeia.

8. CENÁRIOS Nesta modelagem considerou-se que o melhor cenário para a França seria o fortalecimento da integração europeia, reafirmando sua economia como um dos sustentáculos do Euro. Deste modo, seria possível alcançar um consenso quanto ao futuro da União Europeia e superar a crise juntamente aos outros países europeus. Resta saber o efeito que isso teria sobre a PES da França, pois a esfera de decisão nacional seria transferida para uma nova unidade política maior. Igualmente, ficaria em aberto o caráter da interação francesa com a África. Qualquer que seja o caso, em um horizonte predizível de eventos, parece que as ex-colônias francesas permanecerão dependentes de capitais, tecnologia, mercadorias e serviços da França. Convencionou-se que o pior cenário seria a retomada do imperialismo. A Entente Frugale encarrega-se de conferir estatuto de realidade a essa especulação. Isso traduziria o reforço das ações típicas da França-Império, emulando o chauvinismo e transmitindo a impressão dúbia de um poderio ampliado. As capacidades francesas no âmbito da Entente Frugale autorizam a pensar que sua influência poderá ser exercida de modo efetivo, simultaneamente, no Oceano Índico e na África - o “Arco da Crise”. Nesta hipótese resta saber, como esta postura refletiria na integração europeia. Ademais, fica em aberto os efeitos sobre o aumento dos gastos com custeio militar e os investimentos necessários para a transição tecnológica. Por fim, convencionou-se como o cenário intermediário a hipótese da França conciliar sua projeção global com o financiamento da transição tecnológica através do incremento de parcerias interregionais com a semi137

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periferia. Essa configuração coloca os mercados da semi-periferia como potenciais parceiros para a França. A principal diferença para o segundo cenário é que a França procuraria beneficiar-se da exportação de bens e serviços de alto valor agregado. Desse modo, Brasil, Rússia, Índia, e China se tornariam os principais focos da PES da França. Caso o esforço seja bem-sucedido, a França poderia, simultaneamente, reter seu papel de grande potência e otimizar sua economia como alavanca do Euro, fornecendo a esses países tecnologia, bens de capital e material bélico.

Conclusão Indubitavelmente, a França é uma grande potência. Qualquer que seja o critério (econômico, político e militar) é difícil de colocar em questão o status internacional da República Francesa. A França possui um respeitável arsenal nuclear, termo-nuclear, submarinos lançadores de mísseis balísticos intercontinentais e compartilha com os EUA a condição única de deter capacidade de projetar forças convencionais em qualquer recanto do planeta — prerrogativa que nem mesmo a Rússia ou a China possuem. Trata-se do único país da Europa que produz supercomputadores, o que, associado ao seu domínio aeroespacial, lhe insere favoravelmente na transição tecnológica. Percebe-se que o país vive um dilema entre o integracionismo e o império. A escala de sua economia é portentosa e, apesar de seu déficit (comercial e fiscal), bem como da crise econômica europeia, a condição de país enquanto exportador de capitais e tecnologia se mantém até o presente. Desse modo, a reestruturação da sua inserção internacional parece possível. Em estudos futuros, portanto, importa observar a correlação entre os gastos com custeio e os investimentos de capital. Talvez, este se constitua em um dos principais indicadores acerca do status da França na transição tecnológica e de sua manutenção como grande potência ao longo do século XXI.

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Capítulo 8 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO REINO UNIDO Glaúcia de Siqueira Noronha Jéssica Delabari de Lima Marina Lua Vieira dos Santos Matheus Schneider Gebhardt Introdução O Reino Unido, junto com França e Alemanha, compõe o tripé que comanda os destinos da União Europeia (UE). A aliança com os Estados Unidos permitiu que o país se mantivesse no centro da governança global, e consistiu em apoio fundamental à liderança americana em nível global. Por último, constitui por si só uma força política-econômicafinanceira de relevo, com forças armadas modernas e capacidade dissuasória nuclear consolidada. Neste sentido, buscamos aqui apontar os principais eixos da Política Externa e de Segurança (PES) britânica, elencando seus constrangimentos externos e internos, suas possibilidades e os recursos que se colocam à disposição do país. O Reino Unido é a unidade política que congrega os Estados da Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales, estendendo-se sobre 243.610 km2 e organizado sob um sistema parlamentarista comandado por um monarca (chefe de Estado) e um primeiro-ministro (chefe de Governo). Hoje, ocupam os cargos a Rainha Elizabeth II e David Donald Cameron, respectivamente. O Reino Unido está entre as principais economias do globo, ostentando um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 2,3 trilhões (7º) e um PIB per capita de US$ 36.728 (21º). A população de 61 milhões se concentra basicamente nas cidades (89,9%) em detrimento do campo (10,1%), o que reflete bem a economia baseada na atividade de serviços (73%, contra 16,7% da indústria e 10,3% da agricultura).

142

Política externa e de segurança do Reino Unido

1. HISTÓRICO 1.1. A Aliança Anglo-Americana A relação especial construída entre Inglaterra e Estados Unidos tem seu embrião no contexto de II Guerra Mundial, sendo particularmente sintomáticos a ocorrência da Missão Tizard e seus desfechos: a cessão de tecnologias britânicas vitais em favor do poderoso complexo industrial americano; e a "divisão de trabalho" que cedeu aos EUA os louros da aviação civil-comercial, a qual se desenvolveria amplamente na segunda metade do século XX (ENGEL, 2005). No período de Guerra Fria, o Reino Unido apresentou-se como principal aliado norte-americano, agindo como base avançada na Europa e fazendo uso de suas porções extraterritoriais em benefício do projeto de "cercamento" da URSS (ELLIS, 2009, p.34). É nesse contexto que EUA e Reino Unido avançam também na constituição de uma rede compartilhada de inteligência (Acordo UKUSA, 1946), que abarcaria mais tarde Canadá, Austrália e Nova Zelândia, constituindo o grupo dos Five Eyes. Outrossim, faz-se necessário destacar o crescimento da importância dos Estados Unidos da América (em oposição ao declínio relativo do RU) para a política externa e de segurança dos países da Commonwealth, que historicamente tinham na Inglaterra o seu aliado mais eminente (GARDHAM, 2010) Findo o período de Guerra Fria, pouco mudou nas relações EUAReino Unido. Já em 1991, George Bush (republicano) e John Major (conservador) empreenderam a primeira intervenção conjunta no Iraque de Sadam Hussein. Em 2001, a invasão do Afeganistão contou com apoio irredutível britânico, apesar do ineditismo da Guerra ao Terror enquanto conflito não-interestatal. Finalmente, a segunda guerra no Iraque (2003) reforçou a ideia de relação especial entre EUA e RU face à voz solitária — mas irredutível — de Tony Blair no suporte à invasão americana. Fato curioso, mas não menos revelador da hipótese de relação especial, foi a sinergia verificada entre os governos de Tony Blair (trabalhista) e de George Walter Bush (republicano), que ocorreu à revelia das incongruências político-ideológicas: intuitivamente, esperar-se-ia maior cooperação nos períodos que sobrepuseram democratas e trabalhistas ou republicanos e conservadores no poder dos Estados americano e britânico, respectivamente. Verificar que isso não é necessariamente verdade, no entanto, revela uma disposição institucional e fortemente 143

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

arraigada em torno da cooperação e coordenação (hierarquizada) das políticas empreendidas pelos Estados americano e britânico.

1.2. O Reino Unido e a Política Externa e de Segurança Comum (UE) O Tratado de Lisboa, que entra em vigor em 2009, teve como objetivo reformular o funcionamento da União Europeia. Entre as reformulações, está a mudança da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) para a Política de Defesa e de Segurança Comum (PDSC), que engendrou a criação de um acordo de defesa comum da UE. O Reino Unido, diante das mudanças, preferiu optar por ter direito de exceção em relação a asilos, vistos e imigração. Nesse âmbito, há apenas um cargo para os assuntos exteriores, o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, representado por Catherine Ashton, que é britânica. Porém, é o Conselho da UE que aprova as decisões necessárias à definição e à execução da política externa e de segurança. De acordo com a pesquisa encomendada pela Comissão Europeia, feita em 2012, o Eurobarômetro, o Reino Unido tem o menor índice de confiança na UE (16% da população confiam e 75% não confiam). Vários partidos apresentam, no mínimo, algum grau de euroceticismo. O Partido Conservador, por exemplo, fez campanha contra a adesão à União Monetária, enquanto o Partido Trabalhista já se apresenta mais dividido internamente nessa questão. É importante ressaltar que 47% da população apoiam a saída do país da UE e 33% apoiam a permanência.

1.3. A Aliança Franco-Britânica Ainda que construída sobre uma base de rivalidades e embates frequentes, as relações entre os Estados britânico e francês nos últimos cem anos esboçam um quadro de íntima coordenação das políticas dos dois países. O marco inicial que permitiu o avanço do diálogo entre franceses e britânicos foi a instituição da Entente Cordiale (1904), que se não criou mecanismos profundos de cooperação, logrou antes a estabilização das relações binacionais, marcadas historicamente pela guerra. Para além disso, os eventos das duas guerras mundiais fizeram aprofundar os laços entre França e Reino Unido, que a partir do acordo de 144

Política externa e de segurança do Reino Unido

Sykes-Picot (1916) buscariam em conjunto afirmar-se em regiões estratégicas como o Oriente Médio (SYKES-PICOT AGREEMENT, 1916). Quase como reeditando Sykes-Picot, franceses e britânicos negociaram com Israel, em 1956, o estopim da Crise de Suez em uma sequência de eventos previamente planejados. O acordo, conhecido como Protocolo de Sèvres, previa uma invasão israelense sobre o Egito, seguido de uma contra-intervenção franco-britânica expressa por meio de uma Força-Tarefa composta por militares das duas nacionalidades. O objetivo, finalmente, seria retomar das mãos de Nasser o controle sobre o Canal de Suez, reafirmando a presença franco-britânica no Oriente Médio. Ainda sobre 1956, especula-se acerca de um pedido de inclusão da França ao Reino Unido, ocorrido no contexto da Crise de Suez, em conversas entre o Primeiro-Ministro francês Mollet e seu colega britânico, Eden. Revelada em 2007 pela British Broadcast Corporation (BBC), a informação sobre uma "União Franco-Britânica" deriva alegadamente de documentos secretos recentemente desclassificados, e aos quais a BBC logrou acesso (THOMPSON, 2007). Como exposto, o conteúdo do documento não traz à tona fatos novos à historiografia; antes disso, revela uma disposição maior do que a conhecida para que França e Reino Unido enveredassem por uma alternativa de aliança especial — ou mesmo federalismo — contrapondo-se ao projeto europeu e contrabalanceando a pujança crescente da Alemanha Federal. Mais recentemente, a parceria entre britânicos e franceses retomou sua importância a partir do seu Tratado de Cooperação em Defesa e Segurança (2010), apelidado Entente Frugale, que institucionaliza a integração das operações militares de França e Reino Unido em áreas diversas de Defesa e Segurança. Na sessão "Segurança e Defesa", destacaremos o papel conjunto das capacidades britânicas e francesas somadas, visto os acordos binacionais entre Reino Unido e França, que estabeleceram a interoperabilidade de parte importante de seus recursos de Defesa. Porém, em benefício do rigor metodológico e do corte temporal que adotamos, o acordo da Entente Frugale em si será aprofundado na sessão “Situação”.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

2. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS Sendo o Reino Unido um país baseado no Parlamentarismo como sistema político, quem possui o Poder Executivo realmente é o Chefe de Governo, que é o Primeiro Ministro, David Cameron. Os principais partidos políticos do sistema britânico são o Partido Conservador, com tendências pró livre-comércio e relação especial com os EUA; o Partido Trabalhista, que inicialmente se apresentava como de esquerda, mas a partir dos anos 1980 se tornaram adeptos ao livre-mercado, e atualmente defendem políticas mais conservadoras para ganhar mais votos; e os Liberais Democratas, que são pró União Europeia. O órgão responsável pela implementação das relações internacionais do Reino Unido é o Foreign and Commonwealth Office, chefiado pelo secretário de Estado William Hague. Entre as suas atribuições estão as relações com outros países, os assuntos pertinentes à Commonwealth e aos territórios ultramarinos, a promoção dos interesses britânicos no exterior e a responsabilidade pelo Serviço Secreto de Inteligência. O Ministério apresenta quatro objetivos principais: (i) o combate ao terrorismo e à proliferação de armas; (ii) a prevenção e resolução de conflitos; (iii) a promoção de uma economia global com diminuição do uso de carbono e alto crescimento; e (iv) o desenvolvimento efetivo de instituições internacionais, especialmente a ONU e a UE. Há, ainda, o Department for International Development, responsável pelas questões de desenvolvimento internacional. A chefe do DFID é a Secretária de Estado do Desenvolvimento Internacional, Justine Greening. Os objetivos do órgão são promover o desenvolvimento sustentável, eliminar a pobreza mundial, ajudar em desastres naturais, emergências e apoiar os Objetivos do Milênio da ONU. A Commonwealth (Comunidade das Nações) é uma organização intergovernamental composta por 54 países-membros, todos ex-colônias do Reino Unido, menos Ruanda e Moçambique. Nem todas as excolônias fazem parte, como o Zimbábue e os Estados Unidos. A organização compartilha valores e objetivos comuns, como a promoção da democracia, dos direitos humanos, da boa governança, do Estado de direito, da liberdade individual, da igualdade, do livre comércio, do multilateralismo e da paz mundial. A Rainha Elizabeth II é a chefe da Comunidade das Nações e chefe de Estado de todas as monarquias nela presentes, os “16 Reinos da Commonwealth”. 146

Política externa e de segurança do Reino Unido

3. ECONOMIA A economia britânica baseia-se, principalmente, no setor de serviços, que corresponde a 73% do PIB do país, e no setor financeiro. A indústria ainda é parte significativa da economia do país, tendo destaque a indústria automobilística, aeroespacial e farmacêutica. As grandes multinacionais britânicas são principalmente do setor petrolífero, de extração mineral, bancos e telecomunicações. Constituem-se, portanto, em companhias de importante peso político e estratégico. O principal parceiro econômico, em termos de comércio e investimento, do Reino Unido é os Estados Unidos. Existe entre eles uma relação desigual de maior dependência por parte do Reino Unido. A União Europeia, se considerada em seu agregado, possui maior peso econômico do que os Estados Unidos. Contudo, após a crise de 2008, observa-se uma tendência declinante dos fluxos de negociação do país com o Bloco, aumentando a relevância das negociações bilaterais — tendência também observada nas relações políticas do Reino Unido com o resto da Europa.

4. INFRAESTRUTURA A constituição de infraestrutura assume papel fundamental para o Reino Unido, em especial a partir de sua condição geográfica básica: insularidade. Neste sentido, grande parte de sua integração comercial depende do transporte marítimo, tanto de curta, quanto de longa distância. Em 2011, 730 cargueiros de grande porte estavam registrados sob bandeira britânica, sendo: 162 cargueiros-tanque; 140 cargueiros Roll OnRoll Off; 114 cargueiros de container; e 78 graneleiros. Os principais portos do Reino Unido estão localizados em Felixstowe (3,4 milhões de contêineres/2010) e Southampton (1,54 milhões de contêineres/2010), respectivamente na costa leste e sul da Inglaterra. Quanto aos meios ferroviários, o mesmo assume papel relevante, mas não determinante: atualmente, a principal empresa de transporte ferroviário de carga no Reino Unido é a alemã DB Schenker. A recente política de priorização do método rodoviário vem reduzindo a quantidade de estradas de ferro disponíveis no país (em 2004, eram 17,3 mil kilômetros (km); em 2010, 16,5 mil) em favor das rodovias. Estas 147

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

últimas, subiram de 371 mil km em 1998, para 395 mil km em 2009, assumindo maior relevância no transporte da produção britânica.

5. SEGURANÇA E DEFESA A Política de Defesa britânica sofreu importante revés a partir da crise econômica que atingiu o país, levando à contenção do orçamento militar em até 30% para os próximos anos. Atualmente, o orçamento da pasta é de US$ 62,7 bilhões, representando 2,6% do PIB britânico. O investimento reflete em um efetivo de 174 mil militares na Ativa (Exército: 100 mil; Marinha: 34,6 mil; e Aeronáutica: 39,4 mil) e 82 mil na Reserva, constituindo capacidade expressiva de segundo ataque. Ainda no contexto de racionalização do orçamento, o Strategic Defence and Security Review de 2010 estabelece o incremento das Forças Especiais e do Grupo de Operações Cibernéticas, apontando para um esforço de modernização das atividades militares. O plano Future Force 2020 inclui, ainda, o rearranjo das estruturas de comando e da distribuição de oficiais entre as Forças Armadas, devendo o Exército ceder pessoal em favor da Marinha e Aeronáutica, que ganharão ainda mais destaque.

MBT

Blindados

Reino Unido

227

526

França

254

232

Entente Frugale

481

758

Índia

568

1.105

China

2.800

2.390

Rússia

1.300

4.960

Estados Unidos

6.302

6.452

148

Política externa e de segurança do Reino Unido Caças de 4ª Geração

Helicópteros (Ataque)

Helicópteros (Transporte)

Reino Unido

220

66

183

França

263

36

162

Entente Frugale

483

102

345

Índia

280

20

117

China

747

16

294

Rússia

916

355

638

Estados Unidos

3.029

862

2.809

Portaaviões

Submarinos Táticos

Submarinos Estratégicos

Cruzadores, Destróieres e Fragatas

Reino Unido

-

7

4

18

França

1

6

4

24

Entente Frugale

1

13

8

42

Índia

1

1

-

21

China

-

5

3

78

Rússia

1

25

12

32

Estados Unidos

11

57

14

111

Tabelas elaboradas pelos autores. Fonte: IISS Military Balance 2012.

Ainda no tocante às capacidades navais, dois projetos britânicos merecem destaque. O primeiro, dos porta-aviões classe Queen Elizabeth, entregará duas unidades de 65 mil toneladas, comportando até 40 aeronaves: os novíssimos F-35 britânicos (48 unidades foram encomendadas), além de caças Rafale franceses e helicópteros Chinook, Apache, Merlin e outros. Cada um dos navios deverá entrar em atividade em 2016 e 2018, respectivamente. Sob uma perspectiva comparada, a Entente Frugale passaria a ter 3 porta-aviões, podendo disputar projeção 149

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

de poder contra todas as demais potências, à exceção dos Estados Unidos. O segundo projeto em execução promete renovar a frota de submarinos táticos a partir da geração Astute, que já tem uma unidade em operação, e deverá entregar mais seis para os próximos anos. Não obstante os investimentos crescentes em recursos para projeção de poder, a capacidade dissuasória nuclear britânica vem sofrendo cortes à medida em que se restringe também o orçamento das pastas de Defesa. O plano de constituir um arsenal mínimo à manutenção da capacidade dissuasória prevê um máximo de 180 ogivas até 2025, constituindo o menor arsenal do P5 (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França), atrás inclusive do Paquistão. Atualmente, todo o arsenal nuclear britânico está vinculado a um único sistema de entrega — mísseis balísticos SLBM Trident II de fabricação americana — lançados a partir dos quatro submarinos estratégicos da classe Vanguard à disposição da Marinha Real.

6. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA Quanto à transição tecnológica produtiva, pode-se dizer que o Reino Unido já alcançou o seu auge. O país liderou as duas primeiras ondas da Revolução Industrial e hoje tem seu PIB basicamente composto pelo setor de serviços, principalmente os financeiros. Quanto à transição tecnológica referente à inovação, considerando os índices que podem ser usados para sua determinação, o Reino Unido possui um alto número de artigos científicos publicados, estando na média ou acima das maiores economias europeias. A indústria de defesa concentra 24% dos gastos em pesquisa e desenvolvimento, segundo dados da Organisation for Economic Co-operation and Development (2009), valor próximo ao da França e menor do que a metade da cota norte americana. O país investe menos em P&D em relação ao PIB do que grande parte das economias de mesmo porte, o que diminui o valor efetivo da parcela destinada ao P&D na área de segurança e defesa.

7. SITUAÇÃO Arbitrou-se a crise econômica de 2008 como marco da situação do 150

Política externa e de segurança do Reino Unido

Reino Unido. Esta delimitação foi empreendida na medida em que: (i) a crise econômica fragilizou o principal eixo de política externa para o Reino Unido, os Estados Unidos da América; (ii) desviou o esforço europeu para o combate à crise, agindo em detrimento do projeto de uma política externa e de segurança comum à UE; (iii) fez crescer a distância entre Reino Unido e o "projeto europeu", visto que a crise do bloco fez reacender nacionalismos e discursos eurocéticos no país1; e finalmente, (iv) provou necessária a racionalização das capacidades militares de França e Reino Unido a partir da contenção dos orçamentos de defesa e do objetivo de manter o status de potência, o que, em última análise, levou à construção e efetivação da Entente Frugale como alternativa aos projetos nacionais individuais.

A Entente Frugale O Tratado de Cooperação em Defesa e Segurança, assinado entre França e Reino Unido em 2010, nasce da percepção de que ambos Estados devem buscar simultaneamente políticas que assegurem seu status de potência nos anos a seguir, e ainda que se adequem à nova realidade de corte de orçamento público, em especial nas atividade militares. Face a isto, os acordos da Entente Frugale preveem: (i) a interoperabilidade entre porta-aviões franceses e britânicos (um Charles de Gaulle, francês e já em operação, e outros dois Queen Elizabeth, britânicos e que operarão a partir de 2016 e 2018); (ii) o gerenciamento conjunto dos arsenais nucleares, incluindo a construção de plantas conjuntas para armazenamento e manutenção das ogivas francesas e britânicas; e (iii) a criação de uma Força Militar Conjunta, que conta com oficiais das duas nacionalidades e que deverá atuar em situações que constranjam os dois Estados. Paralelo ao Tratado, observou-se recentemente a negociação que envolvia a fusão entre a franco-alemã EADS e a britânica BAE, duas gigantes da indústria de defesa europeia com atuação no ramo da aviação. Caso lograsse sucesso, a fusão significaria a criação de uma terceira empresa planejada para concorrer no mesmo nível da americana Boeing. 1

Em pesquisa de novembro/2012 encomendada pelo jornal The Independent, 54% da população alegou preferir a saída britânica do bloco.

151

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

Ambicionada por britânicos e franceses, a fusão só não ocorreu devido ao veto empreendido pelo governo alemão, que controla fatia importante do grupo EADS. Entre as hipóteses mais prováveis do veto, estaria a possibilidade de patentes europeias vazarem para o controle americano, o que poderia ocorrer caso os contratos entre a BAE e o governo dos Estados Unidos continuassem vigorando com cláusulas de transferência de tecnologia. Já no campo da suposição, pode-se interpretar o veto como uma negativa ao plano de aprofundamento da Entente Frugale enquanto projeto paralelo e excludente, na medida em que desloca a poderosa Alemanha da liderança do processo de integração. Como última hipótese a ser verificada, supomos a aliança francobritânica como a "via possível" para a integração das políticas de defesa e segurança europeias. Se considerarmos a pujança das capacidades militares de Reino Unido e França comparativamente com as dos demais países europeus, perceberemos que a Entente Frugale representa unificar 100% das capacidades nucleares da UE, bem como parte muito expressiva de suas forças convencionais. Contribui para a última hipótese a análise do discurso de Nicolas Sarkozy ao Parlamento Britânico (honraria incomum para chefes de Estado estrangeiros), em 2008, quando da articulação do acordo, e que esclarece a ideia de França e Reino Unido coordenarem políticas em favor do projeto de integração europeia: Nunca antes na História, França e Reino Unido mantiveram relações tão próximas. [...mas,] se quisermos mudar a Europa — e nós, franceses, queremos —, nós precisaremos da ajuda de vocês dentro da Europa.

8. CENÁRIOS Nesta modelagem, considerou-se que o melhor cenário para o Reino Unido seria o da consolidação de uma PES Europeia. Isto significaria instituir a Europa como novo polo no sistema de Estados, dado que conferiria contornos de federalismo ao bloco, pelo menos no tocante à PES. Nesse horizonte, a Entente Frugale poderia eventualmente assumir papel de laboratório para coordenação das ações de política externa. Ao unificar 100% das capacidades nucleares europeias, bem como porção relevante de suas forças convencionais, a aliança franco-britânica serviria 152

Política externa e de segurança do Reino Unido

como experiência empírica preliminar, sendo o sucesso da coordenação entre França e Reino Unido absolutamente determinante para a ampliação do processo para o nível regional. Convencionou-se que o pior cenário ao Reino Unido seria uma condição de Soberania Tutelada aos Estados Unidos. Na eventualidade de falha no projeto da aliança equânime entre Reino Unido e França, e na ocasião do fracasso do projeto de fortalecimento da União Europeia com o consequente afastamento do país do bloco, a única alternativa ao Reino Unido que possibilitasse inserção no SI, seria a tutela dos EUA. Devido aos relacionamentos históricos na área econômica e de desenvolvimento de tecnologia, os EUA manteriam o Reino Unido sob sua tutela, provendo em algum grau a manutenção de suas capacidades no SI. Por fim, convencionou-se como cenário intermediário a hipótese de uma aliança franco-britânica. Dados o afastamento crescente dos países dentro da União Europeia, a posição cada vez mais isolada do Reino Unido no bloco, e o plano frustrado de construção de uma gigante europeia da aviação militar — a pretendida fusão entre EADS e BAE —, a principal alternativa ao Reino Unido surge na figura da Entente Frugale. Nesta hipótese, Reino Unido e França ainda não se afirmariam como um polo por si só, mas avançariam em termos de defesa e segurança de seus Estados, mantendo a condição atual de ambos como grandes potências do Sistema Internacional.

Conclusão A Inglaterra pode ser considerada polo do até então incipiente sistema internacional desde 1588 (Batalha de Gravelines), quando derrotou a potência dominante da época, a Espanha. Graças às reformas dos Tudors (religiosa, política, tributária, produtiva e marítima), a Inglaterra possuía uma diplomacia independente do Vaticano e relações que seriam aquelas características de um Estado soberano. Passados apenas três anos após o estabelecimento do SI (em 1648), em 1651 o Ato de Navegação serve de moldura a uma economia madura que através do livre comércio e da exportação de capitais erigiu o que, mais tarde, seriam as denominadas relações centro-periferia ou divisão internacional do trabalho. Em 1689, a Bill of Rights projetou, mais uma vez, a Inglaterra e o constitucionalismo inglês como marco e modelo ideal que 153

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

todos os povos do planeta passariam a perseguir até o presente. Nesse sentido, a Pax Britânica estabelecida após a vitória em Trafalgar em 1805, apenas confirma o percurso de uma grande potência que já tinha deixado a marca indelével de sua trajetória no SI. A Independência dos EUA (1776) representou a única derrota militar de toda a longa história do Império Britânico. Nem por isso o Reino Unido entrou em declínio, pelo contrário, sobreviveu até mesmo à ascensão dos EUA à condição de potência industrial. A transnacionalização de empresas da Inglaterra foi, em grande medida, a responsável pelo processo. O crescimento estadunidense, antes de representar um desafio, representava complementaridade, dada a voracidade do consumo da indústria americana em matérias-primas industriais, dinheiro e bens de capital. Pode-se até mesmo estabelecer um paralelo entre a relação mantida entre a Inglaterra e os americanos e dos EUA com a China, nos dias de hoje. As duas Guerras Mundiais, sobretudo a segunda, alteraram esse panorama. Dado o que parecia ser uma invasão das ilhas metropolitanas, em 1940 a missão Tizard inaugurou um processo maciço de transferência de tecnologia (planos, projetos e protótipos). Esse processo proveu aos EUA desde a bomba atômica até o radar de micro-ondas, passando pelo domínio das supercargas, motores a pistão e turbinas à gás. Desde cedo a Inglaterra percebeu as consequências dessa transferência. Ainda em 1942, a comissão Brabazon procurou estabelecer as diretrizes da economia britânica no que seria o pós-guerra: um mundo dominado pelas portentosas capacidades industriais dos EUA e da URSS. Contudo, a atitude britânica reticente em relação à descolonização trouxe a dependência da logística estadunidense — sobretudo de sua capacidade naval. Isso permitiu o exercício de veto player da diplomacia dos EUA sobre as estratégias corporativas de empresas britânicas, dificultando o processo de transnacionalização das empresas e a transferência de capitais a outros países. Resultado disso é o aprofundamento das relações entre Reino Unido e EUA, que se transformaram desde então em principais parceiros de transferência de capitais e trocas de produtos de alta tecnologia. A Inglaterra ainda possui atributos clássicos de uma grande potência — retaguarda financeira industrial, população ativa e capacidades militares convencionais e nucleares. Contudo, o Reino Unido parece 154

Política externa e de segurança do Reino Unido

carecer de recursos para que mantenha sua PES plenamente independente. Talvez seja justamente por isso que o país valha-se da Entente Frugale para empreender ações em política externa que o configurem como polo do sistema internacional. A Entente pode ser o marco da oportunidade da Inglaterra reerguer-se enquanto potência global e não apenas regional. A despeito do afastamento atualmente existente entre UE e o governo conservador britânico, a possibilidade de sucesso da Entente Frugale poderá, na opinião dos autores, agir futuramente como catalisador do processo de integração regional. Em estudos futuros deve-se aprofundar a análise sobre a situação da transição tecnológica na Inglaterra, bem como o comportamento de seu polo bancário, sobretudo no que tange à sua inserção na Ásia. Também merecem atenção as relações anglo estadunidenses no que tange à seus benefícios para o Reino Unido. De qualquer modo, o Reino Unido deverá continuar sendo objeto privilegiado de atenção em um horizonte predizível de eventos.

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Capítulo 9 POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA TURQUIA Aércio Artur Mateus Anaís Brum Medeiros Bernardo Rolim Soares Gustavo Hack de Moura Maud Trutta Pedro Perfeito da Silva Pedro Hercz Merlo Introdução O presente artigo pretende tratar da política externa e de segurança da Turquia através de seus indicadores em termos de instituições políticas, economia, capacidades militares, infraestrutura e transição tecnológica. O problema é entender em que medida a sua atuação externa a qualifica enquanto potência regional ou Grande Potência. A hipótese assumida é que o país, a fim de se qualificar enquanto Grande Potência, precisa aprofundar sua atuação na Ásia Central e no Oriente Médio. São elaborados três cenários possíveis: (i) integração a partir da Organização para a Cooperação Econômica (ECO, em inglês), (ii) intervencionismo e (iii) manutenção da ambiguidade entre ECO e União Europeia (UE), todos eles baseados em condicionantes internos e externos. A política externa turca apresenta uma dualidade no seu modo de atuação. Por um lado, o kemalismo compreende a modernização como adoção de valores e instituições tipicamente ocidentais. Por outro, a vertente neo-otomana aceita a modernização e alguns aspectos ocidentais, mas visa conciliá-los com a percepção de que a Turquia é herdeira do Império Turco-Otomano, portanto, um corredor entre Europa e Ásia. Para compreender o país, é preciso ter em mente alguns dados gerais que permitam a comparação com outros Estados. Desse modo, o PIB turco alcança os 773 bilhões de dólares, o que a torna a 17ª economia mundial. O setor de serviços é o responsável por 64% da economia do 157

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país, a indústria responde por 27% e a agricultura por 9%. O PIB per capita alcança de 10.498 dólares e o IDH é 0,699 (92º do mundo). Sua população é 70% urbana e 30% rural. Seu território é o 37ª em extensão e suas forças armadas possuem o 6º maior contingente do mundo (TURKSTATS, online) e (TCMB, online).

1. DUALIDADE A Turquia está localizada em uma área responsável por conectar a Europa à Ásia. Isso se reflete na política externa do país, já que esta ora atua mais voltada e preocupada com a sua conexão com o Ocidente, ora tende a priorizar sua atuação no Oriente Médio e Ásia Central. A dualidade alterna-se na sua influência sobre a política turca. Isso significa que o país em nenhum momento apresenta total sobreposição de uma visão sobre a outra. Pelo contrário, as duas se complementam e dialogam constantemente na formulação da política externa e de segurança. Ambas as visões apresentam um ponto de vista modernizante, ou seja, não há dicotomia entre o moderno e o tradicional, apenas em como deve se dar a modernização e como ela deve influenciar a política. O kemalismo remonta ao processo de independência turco no imediato pós-Primeira Guerra. Os líderes da época associaram a condição de não independência com as instituições do próprio Império Otomano: assim, Kemal Ataturk iniciou um processo de modernização que buscou, no Ocidente, as bases para a constituição do Estado nacional turco. Deixou de haver uma preponderância da Turquia enquanto império na sua região para focar-se no interior de suas fronteiras. A modernização ocidentalizante é vista pelos seus idealizadores como um processo, cujo momento culminante de incorporação no mundo ocidental seria a entrada na União Europeia (UE). A percepção neo-otomana remonta ao domínio que a Turquia possuía sobre a região da Rota da Seda na época do Império TurcoOtomano. Para os apoiadores dessa visão, o controle de seu país sobre a região é antes resultado da legitimidade que o país possui diante dos demais Estados da região, do que de uma condição gerada pela sua proximidade aos países ocidentais. Então, a manifestação mais expressiva desse propósito é a busca pela liderança da ECO e do mundo muçulmano. 158

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1.1. História A formação do Império Turco-Otomano se dá a partir da decadência do Império Mogol e da herança das rotas de comércio controladas por este. Durante a Primeira Guerra, os turcos se aliam às potências centrais, após estes garantirem a integridade dos otomanos depois da guerra. Os conflitos pelo controle da Rota da Seda com as cidades-estados italianas, a Questão Oriental durante o Concerto Europeu e a gradual integração ao sistema capitalista contribuíram para o processo de desintegração do Império Otomano, que se consumou ao final da Primeira Guerra Mundial. Com a proclamação da República em 1923, ocorre a revolução kemalista, que traz uma agenda de modernização altamente ocidentalizada e secular, com a construção do Estado Nacional a partir da supressão da herança otomana. Na Segunda Guerra Mundial, o país se manteve neutro. O alinhamento da política externa turca com o Ocidente e o objetivo comum de conter a URSS — que disputava com a Turquia o controle dos estreitos de Bósforo e Dardanelos — resultaram na entrada do país na OTAN. Neste período, formou-se o Estado Profundo1, que se utilizava de táticas clandestinas de contraguerrilha e de ramificações do poder dos militares em diversos setores e instituições nacionais. A ascensão do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), em 2002, em meio a uma grave crise financeira, remonta à evolução do islamismo político desde a década de 1980. Tal partido se apresenta como moderado e nacionalista, capaz de resgatar valores muçulmanos e otomanos e concluir a ocidentalização através da democratização. De certo modo, pode-se afirmar que o AKP incorporou o projeto modernizante kemalista, ou seja, é sua continuação. Ademais, o partido é resultado da globalização: congrega seus vencedores, os capitalistas muçulmanos, e seus perdedores, a massa muçulmana de baixa renda. No plano externo, o AKP estabelece a política de zero problemas com os vizinhos, uma postura de retomada, ou melhora, das relações com os países próximos à Turquia, e a diminuição do peso relativo do acesso à UE na agenda externa turca permitiu um maior interesse na ECO e no papel de líder regional.

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Grupo civil-militar, de viés anticomunista, surgido no período da Guerra Fria, que atuava influenciando a alta política turca de modo não oficial

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1.2. Economia Para a compreensão de como variáveis econômicas condicionam a política externa de segurança é necessário aliar a evolução de dados gerais (como PIB, inflação e etc.) a uma análise das relações econômicas com o resto do mundo. A economia turca foi seriamente afetada pela crise econômica de 2008/2009. Isso fica claro na redução do PIB nominal e dos valores tanto na conta-corrente quanto na conta capital do balanço de pagamentos, além disso, ressalta-se que as reduções verificadas em 2009 mantiveram-se dois anos ou ainda não foram recuperadas. Quanto à balança comercial (integrante da conta-corrente), observase que sua natureza estruturalmente deficitária aprofundou-se a partir de 2009. Como é indicado em Röhn (2012, p. 10), o déficit em contacorrente do país é da ordem de um décimo do PIB (dado semelhante ao verificado na Grécia) e metade desse montante diz respeito a importações energéticas. As exportações e importações, segundo o Turkstats (TURKSTATS, online), indicam um padrão de dependência frente a União Europeia, ainda que se deva destacar o peso das relações com a Organização do Mar Negro para Cooperação Econômica (BSEC — destaque para Rússia), com a Organização para Cooperação Econômica (ECO — destaque para o Irã), com a Organização para Cooperação Islâmica (OIC — destaque para Arábia Saudita e para os Emirados Árabes) e com os EUA. Quanto ao fluxo de investimentos diretos, tanto a entrada quanto a saída de capitais é fortemente concentrada na Europa (mais de três quartos) o que fica evidente nos principais destinos e origens (com exceção para Rússia, Azerbaijão, EUA, Cazaquistão e Macedônia) (TCMB, online). A composição dos investimentos feitos na Turquia é hegemonizada por serviços financeiros e de seguros, enquanto que os investimentos turcos ao redor do mundo são liderados pelo setor comercial e pelo setor manufatureiro. O conteúdo exposto nos parágrafos anteriores é o retrato de uma economia que condiciona a política externa turca à manutenção da ambiguidade entre a União Europeia (UE) e a Organização para Cooperação Econômica (ECO). A opção por uma maior atuação regional (seja pela via diplomática multilateral, seja pela intervenção militar) esbarra: (i) nos laços comerciais e financeiros com a UE; (ii) na incapacidade turca de atuar como centro contracíclico regional para 160

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momentos de crise; e (iii) nos desequilíbrios verificados na contacorrente2.

1.3. Infraestrutura A localização geográfica da Turquia a coloca em uma posição especial no que se refere à infraestrutura. Ela é a ponte entre a Europa e a Ásia, o que a torna relevante no contexto da Nova Rota da Seda (NRS), uma rede de infraestrutura que pode ligar a Europa ao Leste Asiático, cujos projetos concorrentes são liderados por países como China, EUA e Rússia. A Turquia enfrenta a necessidade de diversificar sua fonte de suprimentos energéticos: é dependente de gás e petróleo russos e iranianos. Os diversos oleodutos e gasodutos projetados para atravessar seu território podem cumprir esta tarefa. O oleoduto BTC inicia-se na capital azeri, Baku, atravessa a Geórgia (Tbilisi) e vai até o porto de Ceyhan na Turquia. Questões securitárias tornam este um oleoduto não confiável. O gasoduto BTE é paralelo ao BTC e funciona para alimentar exclusivamente Turquia e Geórgia. O gasoduto Blue Stream vai da Rússia à Turquia sem passar por terceiros países. O projeto TANAP, idealizado por Azerbaijão e Turquia, tem o objetivo de ser uma rota alternativa aos oleodutos russos: levaria gás natural da Ásia Central até a Europa, atravessando a Turquia e os Bálcãs. Inicialmente o gasoduto carregaria 16 bilhões de metros cúbicos de gás, dos quais 6 bilhões ficariam com a Turquia (OIL PRICE, online). Seus acionistas são a azeri SOCAR (80%) e as turcas BOTAS (15%) e TPAO (5%) (SOCCOR, 2012). A Turquia participa do Projeto da Ferrovia Transasiática, que seria uma importante conexão de transporte da NRS. A Turquia trabalha no Projeto Marmaray, importante por ligar a Europa pelo Bósforo. A Ferrovia Baku-Tbilisi-Kars liga a Turquia à região do Mar Cáspio, rica em petróleo. A ferrovia Islamabad-Teerã-Istambul é um dos projetos mais importantes da ECO, uma vez que liga três de seus principais países, e pode produzir maior aprofundamento de suas relações. Quanto aos 2

Os desequilíbrios são potencializados pela memória inflacionária do país e pelo conteúdo inerentemente instável da principal pauta de entrada de capitais — serviços financeiros e de seguros.

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portos, é significativo o fato de que, em 2006, 87,4% do comércio exterior turco se deu pelo mar (IFEA, online). A siderurgia do país é a 10ª maior produtora do mundo e a 3ª da Europa (ISPAT, 2010). Sua principal indústria é a automotiva, que responde por boa parte das exportações do país. Nota-se que em 2012 a Turquia foi considerada o 7º país em termos de penetração de fios de internet de fibra óptica em lares (TURKCELL, online). O país participa do Projeto Regional Cable Network que visa melhorar a qualidade da conexão de internet do Oriente Médio. Participa também do Projeto JADI Link, que visa a ser uma alternativa a cabos que passam sob os mares Mediterrâneo e Vermelho.

1.4. Transição Tecnológica A Turquia está construindo um parque tecnológico para pesquisas de ponta. O objetivo principal do projeto é a transformação da Turquia em um dos polos de pesquisa e desenvolvimento da Europa: visa a atrair empresas e universidades, de modo que trabalhem juntas em projetos de inovação. As tecnologias prioritárias são a aeroespacial, de defesa, naval, de eletrônica avançada, de automação industrial e de materiais avançados. Os primeiros prédios devem ser entregues em 2013. Quanto à existência de elementos químicos estratégicos em solo turco, ressalta-se que há minas de elementos de terras raras, alumínio, antimônio (semicondutores e baterias), níquel, (baterias e ligas metálicas) e tungstênio (ligas e armamentos). Porém, ainda não há exploração significativa destes elementos. Apenas uma pequena parcela do PIB turco é destinada à área de pesquisa e desenvolvimento, comparativamente a outros países e regiões. No entanto, a Turquia mais do que triplicou seu valor, passando de 2 bilhões, em 1998, para 9 bilhões em 2009. O número de patentes multiplicou-se em aproximadamente dez vezes, alcançando 5.430. As publicações científicas multiplicaram-se, aproximadamente, quatro vezes entre 1998 e 2009. (CONSELHO DE PESQUISA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DA TURQUIA, online) A transição tecnológica na Turquia é mais lenta que em alguns países emergentes, mas tem sido ampliada nas indústrias pesadas, cujo maior expoente é a indústria naval, uma das mais importantes do mundo. Cresce 162

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no país o número de empresas ativas na área de tecnologia militar. Os caças F-16, por exemplo, são produzidos pela TAI, estatal de acionistas turcos e americanos. A empresa foi a responsável pela modernização de caças F-16 paquistaneses. Os tanques Altay são desenvolvidos pela empresa turca Otokar. Há também forte cooperação entre empresas turcas e estrangeiras (a empresa Raytheon participa dos projetos Genesis e TF2000). Desse modo, o gasto em P&D no setor de defesa passou de 58 milhões em 2003 para 672 milhões em 2011 (SSM, online). Nota-se que o florescimento tecnológico de empresas turcas no setor militar tem potencial para ser um dos motores da inserção regional turca, através da cooperação econômica e militar. É possível antecipar que o desenvolvimento tecnológico turco fará com que os demais países se aproximem da Turquia com o intento de se modernizarem. Egito e Paquistão, por exemplo, já buscaram uma abordagem de parceria ou busca de novos produtos. A tecnologia pode contribuir para sua ascensão como Grande Potência, já que suas forças armadas estariam entre as mais bem preparadas do mundo e suas empresas estariam na vanguarda da inovação.

1.5. Instituições Políticas A tomada de decisões na Grande Assembleia Nacional determina oficialmente a política externa. O presidente é o comandante-em-chefe das Forças Armadas; o primeiro-ministro, o responsável pela implementação da política externa e o Conselho de Segurança Nacional, órgão consultivo para o Conselho de Ministros. Os determinantes de facto da política externa são o equilíbrio de forças no parlamento, a questão curda e a questão militar e sua relação com a transição democrática. O AKP não possui a maioria parlamentar qualificada (2/3) para impor determinadas opções, de modo que a oposição kemalista mantém algum poder de barganha. Isso favorece a ambiguidade entre voltar-se para a União Europeia e para o ativismo regional (ECO). O combate ao PKK é articulado com o discurso de unidade nacional turca, representado politicamente na elevada cláusula de barreira que limita a participação institucional da minoria curda (a partir do BDP). A questão curda também influencia profundamente nas relações dos Estados do Oriente Médio. Os militares mantêm relevância, ainda que ocorra um processo de 163

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transição que está em vias de colocar tal grupo sob hegemonia ética e estrutural da coalizão articulada em torno do AKP. Segundo Arturi (2001), os processos de transição democrática têm três etapas: i) os partidos relevantes reconhecem a disputa democrática; ii) não há poder de veto; iii) não existem instituições autônomas independentes. Entre 2002 e 2007, a eleição e a postura de conciliação do AKP permitiram a conclusão da primeira etapa. Em 2007, a reeleição do AKP e a eleição do presidente Gül alteraram a correlação de forças permitindo uma série de reformas constitucionais que envolvem a eleição presidencial direta, a possibilidade de processar os militares e o direito ao parlamento e ao presidente de intervir na Suprema Corte — avanços na segunda e terceira etapa da transição. Os casos Ergenekon (2008) e Sledgehammer (2012) são processos-símbolo na diminuição do poder de veto e insularidade dos militares pelo fato de que lideranças desse grupo foram acusadas de tentativas de golpe; observa-se que a mudança de postura do AKP entre os dois processos, oscilando de uma postura demarcatória para uma postura de conciliação, é um indício da inclusão dos militares no conteúdo ético da hegemonia do AKP (KARAVELI, 2012). Por fim, é preciso tratar do Movimento Gullen, organização da sociedade civil com atuação nacional e internacional nos negócios, nas comunicações e nas escolas que pode significar um novo Estado Profundo a partir da decadência relativa dos militares (VELA, 2012; STELLER, 2010 & ÇAKIR, 2012). Tal organização seria capaz de influenciar o governo e permitiria que, mesmo em uma democracia estável e secular, a religião não ficasse à margem da política. Além disso, ela pode ser um elemento de poder brando capaz de estimular países da região a adotarem o modelo político-econômico turco. Conclui-se que a dimensão das instituições políticas traz informações que atestam um fortalecimento do polo neo-otomano da dualidade e, consequentemente, da busca por uma maior atuação regional, ainda que haja poder de barganha kemalista e que a viabilidade de uma democracia estabilizada resida na possibilidade de superação das oscilações econômicas.

1.6. Defesa e Segurança Sobre as capacidades do país, importa observar que há uma crescente indústria bélica e que sua expansão faz parte dos planos do 164

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governo turco de tornar o país uma referência na exportação de equipamentos militares. Não apenas o desenvolvimento militar, como também a ênfase em produtos de alta tecnologia, abrem a possibilidade de que suas forças armadas se tornem uma das mais bem preparadas do mundo em um futuro próximo. Atualmente, mesmo que a Turquia, por sua localização, seja uma ponte entre diversas regiões importantes, o Oriente Médio se destaca. Isso se deve principalmente ao problema interno turco relacionado ao PKK e questões geopolíticas atuais. Isso se confirma pela mudança de foco do AKP que passou a explorar mais os possíveis benefícios econômicos e políticos de sua presença no Oriente Médio. As forças armadas turcas possuem cerca de 510 mil pessoas a seu serviço (IISS, 2012:160). A marinha do país é hoje considerada a 8ª maior do mundo e a 3ª maior da Europa (TURKEY DEFENCE, online). Não possui nem porta-aviões, nem navios-aeródromo, mas o projeto para a obtenção de um navio aeródromo está em andamento. A indústria nacional abastece 80% de suas necessidades (TR DEFENCE, online). Possui 4 fragatas que apresentam o sistema de lançamento vertical (vertical launch system, VLS), o qual permite resposta mais rápida, concentrada e contínua a ataques. A marinha turca também possui os mísseis cruzadores SOM, além de 14 submarinos táticos, 7 corvetas, 17 fragatas e 108 fast attack ships (TURKEY DEFENCE, online). A força aérea turca é a 3ª maior da OTAN. O país possui aviões de 4ª geração: os caças F-16. Em números totais, o país possui 410 aviões de combate. O exército possui uma grande quantidade de tanques blindados e de armas de artilharia (4.503 daqueles e pelo menos 7.787 destas)(IISS, 2012:161). Atualmente, o exército desenvolve o projeto Altay: tanques blindados de fabricação quase exclusivamente nacional. Na marinha, merecem destaque os projetos MILGEM e TF-2000. O primeiro promove a fabricação de oito corvetas e quatro fragatas. O segundo projeto prevê a construção de seis fragatas com defesa antiaérea e antimíssil. As forças aéreas, por seu turno, participam do programa internacional que visa a desenvolver o caça F-35, de quinta geração. O forte desenvolvimento das forças armadas tem relação direta com o desejo turco de se firmar como potência regional. A partir disso, ela poderá afiançar a segurança da região contra ameaças externas, garantindo a liderança do processo de integração. 165

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2. SITUAÇÃO Em fevereiro de 2008, a Turquia lançou uma ofensiva ao PKK. As forças armadas turcas invadiram o Norte do Iraque, região autônoma controlada pelo KRG (governo regional do Curdistão, em inglês). O objetivo alegado pela Turquia era o desmantelamento do grupo terrorista, o qual visa à formação do Estado curdo. A partir daí, pode-se observar que a Turquia alterou sua PES para um posicionamento mais assertivo com relação ao território que, no passado, foi parte do Império Otomano. A Organização para Cooperação Econômica (ECO) foi fundada em 1985 por Turquia, Irã e Paquistão. É composta atualmente por dez países da Ásia Central e Oriente Médio. A consolidação desse bloco fortalece a alternativa neo-otomana de inserção internacional da Turquia como hub entre Europa e Ásia. Além disso, viabiliza-a como potência regional fortalecida no mundo árabe e na disputa por mais espaço na antiga área de influência russa na Ásia Central. A partir de 2008, a ECO avançou ao ratificar o Acordo de Livre-Comércio com a meta de eliminar barreiras não-comerciais e reduzir tarifas comerciais para um máximo de 15% até 2015, e ao fundar o Banco de Comércio e Desenvolvimento da ECO. Em 2012, a Turquia foi aceita como Parceira de Diálogo da OCX. Essa entrada está inserida no contexto da OCX como organização provedora de segurança para a Ásia Central, a qual é fundamental para a Nova Rota da Seda. A Turquia é um forte candidato a exercer esse papel, visto que possui uma relação estável e crescentes investimentos nos países da região. A atuação da Turquia já se verifica na intensificação das suas relações com Afeganistão e Paquistão, relacionada à futura saída dos EUA do território afegão. Recentemente, a Turquia aceitou que o projeto South Stream russo passasse pelas suas águas territoriais. Isso permite a manutenção da ambiguidade turca em relação a UE e na atuação turca na Ásia Central, uma vez que diminui as desavenças com a Rússia. A colocação de mísseis Patriots na Turquia pela OTAN reverberam uma possível postura intervencionista para acabar com a guerra civil síria, podendo se tornar modo de atuação padrão da Turquia na região. Memorandos de entendimento assinados nos últimos meses entre Turquia, Paquistão e Afeganistão e Turquia e Irã, bem como a aproximação turco-egípia (empréstimo turco ao Egito e visita de Erdogan), reforçam a possibilidade 166

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de que o cenário de integração em torno da ECO ocorra. Importante notar que o Egito torna-se membro em potencial ao aproximar-se da Turquia.

3. CENÁRIOS A dualidade turca mostra que o país ora tende a se inclinar para um modelo mais próximo ao ocidental, ora incorpora a esse modelo elementos culturais próprios de sua herança otomana. A formulação de cenários para o país, portanto, deve usar como base tais elementos, mostrando como as diferentes inclinações alteram a política externa. Não se deve esquecer, porém, dos indicadores e de como eles influenciam a política externa do país. O melhor cenário traz a Turquia como polo de integração da ECO. A integração de 10 unidades soberanas, com uma população de 416 milhões de habitantes em uma área de 7.937.197 km² — superior à superfície contígua dos EUA (7.663.941.7 km²) — é, virtualmente, uma Grande Potência em gestação. Esta possibilidade não contradiz nem o domínio otomano de outrora, nem o presente, da moderna Turquia integrada à OTAN. As dificuldades para consecução deste propósito são, contudo, de monta considerável. Em princípio, a integração só seria possível graças à conjugação improvável de três fatores: i) a anuência das Grandes Potências, ii) a disponibilidade de crédito, e iii) a unanimidade entre os países da região. A integração afigura-se menos impossível, no entanto, se considerar-se que a região arca com os custos de três processos: i) da modernização, ii) da globalização, e iii) do fundamentalismo religioso. Os problemas sociais gerados por esses fenômenos seriam amenizados pela integração, uma vez que a Turquia tem a base político-social para evitar a deterioração interna dos demais países da região. Os levantes ocorridos entre 2010 e 2012 impactaram a região. A conjunção dos custos da globalização e da Guerra ao Terror afeta também a Turquia, que por ora permaneceu fora do mapa das rebeliões. Foi impossível para a pesquisa dimensionar o impacto dos levantes somado aos efeitos da crise econômica. Se comparada ao Paquistão e ao Irã, os outros dois eixos da ECO, a Turquia é uma ilha de estabilidade. Dois dos maiores dilemas de segurança internacional estão em meio à estruturação da ECO: a conclusão da Guerra ao Terror e a questão nuclear iraniana. Os povos da região terão de encontrar um modo de viver; os governantes, um 167

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novo modo de governar. Em qualquer caso, dificilmente a região poderá permanecer nos marcos atuais. Excluído o impossível — a manutenção indeterminada da tensão, da violência e da escassez —, o improvável, por menos plausível que pareça, torna-se possível. Por isso, a improvável integração há que ser considerada. Escolheu-se um hipotético intervencionismo turco para modelar o segundo e pior cenário. O critério norteador da escolha foram os efeitos de longo prazo que o intervencionismo pode ter sobre as relações civilmilitares e o próprio tecido social turco. Entretanto, existem indicadores que tornam o cenário bastante plausível, alguns já referidos no primeiro cenário acima. O principal deles está relacionado à conclusão da guerra ao terror e à questão nuclear iraniana. Em virtude de seus problemas orçamentários, os EUA estão adotando uma PES que pode ser caracterizada como de burdensharing ou buckpassing3. Em qualquer dos casos, a política externa estadunidense implica em reduzir os custos de engajamento no exterior com o mínimo de perda de sua influência. Da parte turca isso importa (ver cenário acima) para obter o consentimento para a estruturação da ECO enquanto união aduaneira e atrair capitais de tecnologia que alicercem o desenvolvimento. O alargamento da demanda, no caso do intervencionismo, alicerçado também em gastos de custeio, pode fazer as vezes de um keynesianismo militar perverso — visto que é baseado na guerra e não na mera competição militar — que pode mascarar a tendência de ciclos econômicos de curto prazo que caracterizam a economia turca. Além disso, como descrito no tópico Situação, a própria Turquia tem revelado disposição de intervir unilateralmente quando julga que seus interesses estão em jogo — no caso descrito, tratou-se dos curdos do Iraque. Mais recentemente, insinuou a possibilidade de intervir na guerra civil síria. De qualquer modo, a Turquia tem sido essencial para os EUA na manutenção da estabilidade regional. Esse é o caso de Egito, Paquistão e Afeganistão em que, seja através de seu poder brando, seja através de seu poder duro, a Turquia tem algum grau de influência. Quanto ao Irã, em caso de intervenção da OTAN neste país, os turcos possuem credenciais junto a ambas as partes para uma solução intermediária de manutenção de paz. Como se depreende, mesmo em um cenário de intervencionismo, a 3

Para maiores informações sobre esses conceitos, veja o capítulo sobre a Política Externa e de Segurança dos Estados Unidos da América.

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Turquia não abdica da manutenção de suas parcerias no âmbito da ECO (no caso do Irã, fortalecidas pela questão comum curda) e do consentimento expresso ou tácito da comunidade internacional. Trata-se, pois, de uma modelagem plausível, conquanto, conforme referido, seus efeitos de longo prazo sejam imprevisíveis e eventualmente deletérios. A Turquia possui as credenciais mínimas necessárias no âmbito da ECO para dar suporte ao intervencionismo caso seja este seu desejo. Além disso, possui capacidades para tanto (ver tópico Defesa e Segurança). O cenário intermediário tem maior probabilidade de acontecer. Nesse caso, a Turquia manteria sua ambiguidade na atuação externa, ou seja, ora agiria conforme o kemalismo, mais voltada ao Ocidente, ora incorporaria o neo-otomanismo, priorizando o Oriente Médio. Logo, haveria uma política semelhante à atual, em que o país mantém as esperanças de entrar na União Europeia e se relaciona bilateralmente com os países da ECO. Ademais, o relacionamento das elites internas não se alteraria: os capitalistas muçulmanos, a elite política secular e os militares continuariam se opondo mutuamente, sem que um grupo se sobrepusesse ao outro. Para este cenário se efetivar contam condições internas e externas. Do ponto de vista interno, a estabilidade econômica deveria condicionar a manutenção da estabilidade política — sem maiores crises, o risco de golpes ou mudanças abruptas de governo seria mínimo. Do ponto de vista externo, seria preciso contar que Israel não ataque o Irã, que a transição no Egito se dê a contento e que a crise síria permita, senão um desfecho negociado, ao menos uma intervenção de baixo perfil e curta duração. Mesmo que se mantenha como predominante o cenário intermediário, a Turquia permanece como séria candidata, através da ECO, a constituir-se enquanto Grande Potência. Nesse caso, importa permanecer estudando e observando tanto os indicadores internos e externos do país quanto, sobretudo, as pressões sistêmicas em seu entorno local e regional que podem condicionar, de fora para dentro, o status do país na hierarquia internacional.

Conclusão Do exposto, pode-se concluir que a ascensão da Turquia depende de condicionantes internos e externos. O principal condicionante interno da Política Externa e de Segurança (PES) turca é sua situação econômica. A 169

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capacidade de pagamento, os investimentos na região, a modernização militar e o próprio investimento em P&D dependem da manutenção do crescimento do PIB e da conquista da estabilidade econômica. O principal condicionante externo da PES reside na dificuldade da Turquia em manter a delicada barganha diplomática que tem sustentado entre EUA, Rússia, China e UE. Naturalmente, os condicionantes externos e internos atuam simultaneamente. A construção de cenários feita acima foi uma tentativa de simular seu desdobramento. Assim, no melhor cenário, o do multilateralismo presidido pela construção da Economic Cooperation Organization (ECO), se supõe um posicionamento ótimo tanto em termos de capacidade de pagamento quanto de relacionamento com as Grandes Potências e a UE. O pior caso, o intervencionismo, reflete a incapacidade da Turquia em adquirir poder de alavancagem através dos meios de pagamento tradicionais, além do reconhecimento tácito da impossibilidade em manter sua barganha diplomática com os quatro principais polos do SI. Por fim o terceiro cenário assume a manutenção da capacidade de pagamento da Turquia e de sua relação com as Grandes Potencias. Esta última perspectiva, por ora, parece afigurar-se como a mais plausível. Ainda que a Turquia possa estar longe de se configurar enquanto uma Grande Potência, parece forçoso reconhecer que seu papel nos assuntos internacionais aumentou exponencialmente. A partir de 2008, o papel da PES turca ganha relevância tornando-se mais que um apêndice da PESC europeia. Desde o segundo mandato de Erdogan e da invasão do Iraque, a Turquia adquiriu um papel próprio e autônomo no SI. Em termos sistêmicos, a disposição turca vem ao encontro das demandas sistêmicas, caracterizadas pela demanda estadunidense de desonerar-se de responsabilidades de proteção no âmbito regional. Caso os EUA adotem o buckpassing ou o burdensharing, a perspectiva estadunidense vai ao encontro das ambições turcas de um maior papel regional e global. A recente parceria da Turquia com o Brasil, tendo em vista solucionar a questão nuclear iraniana, ilustra claramente essa realidade. Em qualquer hipótese, a PES da Turquia merece, cada vez mais, a atenção acurada de pesquisadores e analistas.

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Capítulo 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS: RECOMPOSIÇÃO HEGEMÔNICA E INSERÇÃO INTERNACIONAL DO BRASIL José Miguel Quedi Martins

Como conclusão se fará um breve balanço dos estudos de caso, considerações acerca da guerra no equilíbrio internacional, do papel cumprido pela diplomacia no período compreendido entre as guerras mundiais de 1914-18 e 1939-45, por fim, trata-se do processo da triangulação entre EUA, Rússia e China e da inserção internacional do Brasil. No decorrer destes temas aborda-se o problema das transições tecnológicas, da tendência do sistema internacional ao desequilíbrio (entropia), das soluções simplificadores e da alternativa anti intuitiva do aumento da complexidade.

BALANÇO ESTUDOS DE CASO Como se pode depreender da conclusão do último estudo de caso, a inclusão da Turquia na categoria de Grande Potência só seria válida mediante o cumprimento de condições que ainda não se realizaram, dentre elas a constituição da ECO como um efetivo processo de integração da Ásia Central. Apenas com grandes reservas, portanto, poderíamos considerar a Turquia uma Grande Potência. De fato, se levarmos em conta seu posicionamento regional e apenas suas próprias forças — veja, no capítulo anterior, papel cumprido pelos EUA na hipótese de sua assunção — a situação da Turquia parece mais próxima a de uma potência regional. Embora em situação nitidamente superior à da Turquia — a julgar pelas conclusões do estudo de caso — a Alemanha só reterá sua condição de grande potência caso seja capaz de ancorar o Euro e, a partir de suas parcerias inter-regionais, manter-se como esteio da União Europeia. Em 174

Considerações finais

todo caso, o estudo não parece vislumbrar a possibilidade de uma ação independente envolvendo projeção de força além teatro por parte da Alemanha. Parece, antes, estreitar laços com os EUA na África, com a Rússia na Ásia Central e com a China no Extremo Oriente. Tratam-se de concertações mais características de uma potência regional que de uma Grande Potência — da qual a ação militar extrarregional independente é uma das características. Ainda que sua inserção na atual transição tecnológica exija estudos mais acurados, chama atenção a ausência da produção de supercomputadores. Por outro lado, parece igualmente prematuro retirar a Alemanha do rol das Grandes Potências: ela é o esteio de uma região que tem o poder dos meios de pagamentos equivalente a 17 trilhões de dólares. Já no caso do Japão, que, juntamente a EUA e China, está entre os três produtores mundiais de supercomputadores e superprocessadores, a inserção favorável na transição tecnológica parece assegurada. No quesito dos superprocessadores, o Japão tem se revelado especialmente hábil na inovação, introduzindo novos conceitos de construção e de processamento dos núcleos. A partir de 2009, na esteira do estreitamento de relações com a China — fortalecido pela criação da Comunidade do Leste Asiático — o país retomou o crescimento econômico. Só com a China seu fluxo comercial chegou a quase USD 400 bilhões (2011), com superávit de quase USD 20 bilhões1, tendo substituído os EUA como maior fornecedor da China. Em 2010, esse superávit chegou a USD 37,1 bilhões, constituindo-se no segundo maior da Ásia (perdendo apenas para a China com os EUA, de USD 273 bilhões). Contudo, em 2012, fez-se sentir o efeito da tragédia de Fukushima (2011) e o superávit converteuse em déficit (USD 4,4 bilhões) (JETRO e US Census Bureau). Fica em aberto saber qual será o efeito do litígio em torno das Diaoyu/Senkaku (2012) sobre as relações bilaterais nos números de 2013. A princípio, a sorte da economia japonesa parece estar associada ao destino da China, o que não chega a ser uma tragédia, afinal, o mesmo ocorre com outras economias da OCDE (EUA e Alemanha) e, obviamente, com a América Latina. De qualquer modo, a ideia do Japão como superpotência econômica parece estar superada. Quanto às suas capacidades militares, as forças terrestres japonesas se destacam pelo seu notável grau de mobilidade tática e estratégica. 1

Os valores consideram a República Popular da China, Hong Kong e Macau.

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Sobressai-se o aerotransporte, o que é de suma importância para que se leve em conta o efetivo terrestre de uma potência naval. O que dá efetividade à capacidade aeroterrestre japonesa é a Marinha (JMSDF), que possui capacidade anfíbia considerável, associada à competente força de submarinos e à poderosa força de guerra de minas. Em seu conjunto, o componente de superfície é portentoso, constituído por vasos de fabricação própria que perfazem o efetivo de dois porta-aviões, dois cruzadores e vinte e oito destróieres lançadores de mísseis. Porém, carece de capacidade de ataque à terra: apesar de aptos, os vasos não carregam míssil cruzador de longa distância (e.g.: Tomahawk) e o navio aeródromo não possui aeronaves de asas fixas. Entretanto, essas limitações podem ser elididas no curto prazo. Afinal, o Japão investe apenas 1% do seu PIB em defesa, e em caso de necessidade, esse montante pode ser elevado e adquiridas capacidades adicionais. Apesar de avançadas, com efetivo de 151.641 homens, 32 combatentes de superfície capazes de lançar mísseis e 374 aviões com capacidade de combate além do alcance visual (BVR) as SDFJ são suficientes apenas para seu propósito constitucional. Contudo, talvez sejam insuficientes para projeção de força na Ásia. Além disso, evidencia-se que, atualmente, as forças de autodefesa do Japão só poderiam empreender ações além teatro associadas à outra potência, ou coalizão, para que suas deficiências sejam compensadas. Ainda assim, o Japão possui capacidade para, após uma preparação de curto prazo, empreender ações independentes no Sistema Internacional. Em suma, a despeito de não se configurar como uma superpotência econômica, o Japão ainda pode ser considerado uma grande potência por suas demais capacidades. Inglaterra e França podem, com maior facilidade, ser classificadas como grandes potências. Ambas possuem capacidade nuclear e de projeção de força extrarregional. Este último atributo, no caso da França, é exercido rotineiramente. As potencialidades da Inglaterra no último quesito, por sua vez, não são tão claras. Desde 1982, no entanto, ninguém ousou desafiar suas possessões no Atlântico Sul. Além de bases insulares através do Atlântico e de boa parte do mundo, a Inglaterra pretende assegurar sua capacidade de operação independente além teatro com a entrada em serviço dos porta-aviões da classe Queen Elizabeth, que já conta com pelo menos duas unidades encomendadas, com entrega 176

Considerações finais

prevista para os anos de 2016 e 2020. Ademais, Inglaterra e França robusteceram sua capacidade de intervenção por meio da afirmação da Entente Frugale — basicamente um acordo para ações militares fora da Europa. A Inglaterra parece conservar uma capacidade considerável de exportação de capitais e tecnologia, ainda que restrita predominantemente aos Estados Unidos: a BAE Systems se mantém entre os seis maiores fornecedores do complexo militar estadunidense. A França, por sua vez, tem demonstrado capacidade de inserção favorável na Transição Tecnológica, destacando-se como único país europeu capaz de produzir supercomputadores — ainda que com componentes importados dos EUA. Quaisquer que sejam as limitações do poderio anglo-francês, dificilmente poder-se-á cogitar retirá-las do rol das Grandes Potências. A Índia é o único país do mundo que empresta seu nome a um oceano. No curso da história, o Oceano Índico revelou-se decisivo para a sorte das hegemonias no Sistema Internacional. Foi assim em 1509, quando, após a Batalha de Diu, a frota portuguesa destruiu a turca e abriu o caminho do Pacífico para a Europa. Nas Guerras de Sucessão Austríaca e dos Sete Anos, o controle do Índico mostrou-se crucial para a supremacia naval inglesa e a própria conquista da Índia. Nas duas guerras mundiais, o Oceano Índico foi decisivo para manter as rotas de suprimento estadunidenses para os beligerantes: a Inglaterra na Austrália, a URSS através do Irã e a China por intermédio da Birmânia. Sendo assim, a proeminência internacional da Índia, diferentemente do que se dá com as demais potências, está assegurada apenas por sua capacidade de interferência na região, já que sua projeção de poder marítimo domina o Oceano Índico. Naturalmente, a Índia possui outros recursos de poder: trata-se de uma potência termonuclear, dotada de moderna força aérea e um comando do espaço em construção (65 satélites lançados, 7 de uso militar exclusivo). Diferentemente do que se dá com suas outras capacidades (e.g.: aeroespacial, nuclear), contudo, a projeção naval de forças não pode ser contrarrestada por seus vizinhos no sul da Ásia. A PES na Índia parece depender de três aspectos críticos: (a) o processo da integração do sul da Ásia; (b) o caráter da competição militar com a China e (c) o modelo de negócio e serviços. Mesmo sendo Grande Potência sem ter previamente concluído um 177

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processo de integração regional, a Índia depende de seus vizinhos do Sul da Ásia para não ter suas capacidades comprometidas. Isso se aplica mesmo em relação ao domínio do mar: Bangladesh domina o vértice do Golfo de Bengala, e Paquistão o acesso ao Golfo Pérsico. Alianças desses países com potências extrarregionais podem limitar consideravelmente a ação da marinha indiana. Ainda que suas capacidades militares sejam suficientes para projeção defensiva de forças no âmbito regional, demonstram-se deficitárias para servir como contrabalança inter-regional, no caso, do Leste Asiático. Neste caso, o desfecho mais provável seria uma corrida armamentista com a China. A dificuldade reside em compreender que, a aquisição adicional de capacidades para cumprir a função de contrabalança, tem resultado duvidoso e pode ser claramente contraproducente. O sistema de vasos comunicantes entre o leste e o sul da Ásia se encarregam de dificultar o gerenciamento da dimensão e do perfil das capacidades. Ainda não está claro se a Índia seria capaz de vencer a China em uma a competição militar, mas certamente ela drenaria recursos tão necessários em outras áreas. O país não pode abrir mão de investimentos em infraestrutura (energia e capacidade produtiva) para alavancar sua atração de IED. Isso inviabilizaria o uso de seus meios de pagamento para integração, um elemento necessário para sua política de defesa, já que evita o estabelecimento de bases militares extrarregionais permanentes no sul da Ásia. Além disso, importa entender o papel da governança corporativa. Há pouco mais de uma década atrás, uma conflagração envolvendo Índia e China afigurava-se muito improvável, dado que ambos dependiam dos mesmos parceiros de subcontratação e partilhavam dos mesmos mercados. Na medida em que ambos países passaram a operar a fusão entre o capital bancário e industrial e configuraram-se como exportadores de capitais, a tendência à cooperação deixou de estar condicionada favoravelmente pela economia. A interferência da diplomacia na gestão da infraestrutura inter-regional parece ser o modo de delimitação de áreas de influência tácitas e o caminho possível para os governos incidirem sobre os respectivos modelos de negócios e serviços. Nesse sentido, a governança corporativa permite a interferência política no modelo de negócios e serviços de modo a configurar uma gestão cooperativa e associada de fontes de energia extrarregionais e algum tipo de divisão de 178

Considerações finais

mercados. Sem dúvida, a Índia ainda possui grandes obstáculos em seu caminho, mas a gestão desses empecilhos pode ser realizada em conformidade com o status de grande potência. Considerou-se que China, Rússia e Estados Unidos são claramente grandes potências. Tampouco cabe aqui ir além do disposto nos estudos de caso. Deste modo se tratará deles em conjunto, na abordagem acerca do papel triangulação como mecanismo de governança do SI, o que é feito adiante, ao fim deste texto.

GUERRA E EQUILÍBRIO Caso se dê algum crédito ao presente estudo, entre suas conclusões mais relevantes está a constatação de que o Sistema Internacional atual possui entre sete e oito grandes potências2. O Sistema Internacional já possuiu quantidade semelhante de grandes potências em pelo menos duas ocasiões: entre 1700 e 17633 e entre 1914 e 19454. Ambos os períodos foram marcados por confrontações militares que podem ser consideradas guerras centrais ou mundiais. Usualmente, acredita-se que, nestes dois momentos a governança do SI foi dificultada, senão impossibilitada, pelo elevado montante de grandes potências em ascensão ou declínio. A funcionalidade da guerra central seria justamente a de restabelecer a governança do SI (equilíbrio estável). Em oposição, o período mais pacífico da existência do SI, compreendido entre os anos 1815 e 1914 é caracterizado pelo domínio de apenas cinco grandes potências — a pentarquia de Kissinger e, de resto, da teoria clássica do equilíbrio na multipolaridade (Edward Carr, Hans 2

3

4

Cumpre lembrar, concluiu-se que a Turquia ainda não é uma grande potência e que a Alemanha depende do status futuro da União Europeia. Entre 1700 e 1721 deram-se duas conflagrações simultâneas que alteraram o status da polaridade. A Grande Guerra do Norte (1700-1721) que retirou da Suécia a condição de grande potência e que constituiu a Rússia enquanto tal. E a Guerra da sucessão espanhola (1702-1714) que marcou o declínio da Espanha e Holanda enquanto grandes potências. A Guerra dos Sete Anos (1756-1763) marcou a ascensão da Prússia enquanto grande potência na Europa. Período correspondente às duas guerras mundiais: a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) e a 2ª Guerra Mundial (1939-1945).

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Morgenthau, Raymond Aron, Samuel Huntington, entre outros). Usualmente, considera-se que esta forma de equilíbrio multipolar, quatro potências e uma quinta com o papel de balanceador, é a forma de multipolaridade mais estável5. Note-se que a ideia de associar a estabilidade do SI a um número determinado de grandes potências, está relacionada à expectativa de governança dos assuntos internacionais. Contudo, é a noção de governança, de decisão baseada no consenso, que alicerça a noção de equilíbrio e não a quantidade de polos (grandes potências). Abstraída esta ressalva, a sugestão subjacente — e, na literatura de RI, não raro, este argumento assume sua forma explícita — é a de que, na experiência do SI, tanto na paz quanto na guerra, sete ou oito potências desequilibram o SI, impedindo sua governança. Nesta linha de raciocínio, seria forçoso reconhecer que o atual SI traz consigo a possibilidade da guerra central. Todavia, nem sempre guerras centrais alteram o número de polos do SI (polaridade). Este parece ser o caso das guerras da Revolução Francesa (1792-1815) que, segundo Clausewitz, inauguraram a guerra total ou absoluta na Europa6. As guerras napoleônicas produziram uma profunda modificação no conteúdo ético do continente e do próprio SI. Para além da hegemonia inglesa, importa o registro do papel cumprido pelo Congresso de Viena: a primeira oposição séria ao sistema anárquico de Estados soberanos estabelecidos em Vestfália (1648). Ao menos entre 1818 e 1848, o Congresso comportou-se mais como um sistema de governo mundial do que, propriamente, de governança e concertação do SI. Para além das mudanças institucionais, veio a Revolução Industrial, o emprego do vapor de alta pressão (1815), a produção em série de Eli Whithney (1851) e o processo Bessemer de siderurgia (1855). Mas, a despeito de todo o seu impacto sobre os valores, o Estado, a sociedade e o processo produtivo, nem por isso, as guerras da Revolução Francesa alteraram a polaridade do SI. Por outro lado, no chamado “século de paz” (1815-1914), houve uma alteração significativa na polaridade, que, a princípio, parece estar mais diretamente associada ao Congresso de Viena que à Revolução 5

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Na época este papel era cumprido pela Inglaterra que geralmente balanceava as tensões entre as potências continentais (França, Rússia, Prússia e Áustria). WALTZ, Kenneth. Theory of International Politics. EUA: Waveland Press, 2010. pp 163-164. CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp 831

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Considerações finais

Francesa e às suas guerras. As guerras de Independência da Grécia (18211832) e a Primeira Guerra Egípcio Otomana (1831-1833) retiraram a Turquia (Império Otomano) do rol das grandes potências. Mesmo considerando-se a magnitude das forças reunidas pelas potências de Viena na batalha de Navarino (1827) para destruir a esquadra turca; ou a escala da guerra egípcio turca — 100 mil por parte do Egito e 147 mil por parte da Turquia — não parece razoável supor que se tratou de uma guerra central7. A Independência da Grécia, ao contrário, parece se ajustar ao que atualmente se convenciona chamar de guerra local8. Isso porque a despeito de relativamente confinada em termos geográficos, mobilizou e esgotou os recursos do Império Otomano. Igualmente, a Primeira Guerra Egípcio-Otomana, na melhor hipótese, pode ser considerada uma guerra regional, dada a participação oficiosa da Rússia, que ironicamente apoiou a Turquia. A Independência Grega parece ilustrar precocemente (antes do advento das armas nucleares) o papel da guerra local no equilíbrio internacional. Importa notar que as alterações na polaridade do SI ao longo do “século de paz" são fruto de confrontações ainda menos prolongadas ou intensas daquelas que ocasionaram a derrocada da Turquia como grande potência. O surgimento da Itália como grande potência em 18759, foi precedido pelas Revoluções de 1848, que propiciaram a união das Repúblicas italianas contra o domínio da Áustria. Mesmo o malogro do movimento foi suficiente para retirar a Áustria da Santa Aliança e, por fim, do Congresso de Viena, doravante sucedido pelo Concerto Europeu. De qualquer modo, em 1859, os italianos, desta feita em aliança com a França, desafiaram o domínio austríaco, no episódio conhecido como a segunda guerra de independência italiana. Esta igualmente não foi coroada de êxito, mas permitiu que o Piemonte se fortalecesse, constituindo-se como o esteio de unificação da península. Isso acabou por ocorrer na Terceira Guerra de Independência da Itália em 1866 (parte da 7

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Guerra Central é uma conflagração que ocorre entre as grandes potências, os polos do Sistema Internacional. Guerra local é uma conflagração delimitada geograficamente e de intensidade variável. O ano de 1875, já após a unificação, marca a expansão da influência italiana para os Bálcãs, evento que demonstrou a maioridade da Itália como uma grande potência. TERZUOLO, Eric R. The International History Review. Vol. 4, nº 1. Fevereiro de 1982. Págs 111-126.

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guerra Austro-Prussiana), quando os italianos, desta vez aliados aos prussianos, conseguiram obter a vitória. Contudo, convenciona-se a data da Unificação Italiana como 1870, quando em virtude da guerra francoprussiana, os italianos conseguem recuperar Roma10. Em resumo, o surgimento de duas grandes potências (Itália 1870 e Alemanha 1871) deveu-se a uma sucessão de conflagrações de curta duração que, na melhor hipótese, constituem episódios de guerra limitada11. Dentre as revoluções de 1848, a guerra franco-austríaca de 1859, a guerra austro-prussiana de 1866 e a franco-prussiana de 1871, apenas esta última pode ser considerada de proporção significativa. O papel que estes países desempenhariam nas duas guerras mundiais, sobretudo na segunda, deve ser o suficiente para ilustrar o significado da alteração da polaridade ocorrida durante a vigência do “século de paz”. De fato, ambas as guerras mundiais podem ser consideradas como a soma de duas guerras locais que escalaram no âmbito vertical e horizontal12, produzindo uma conflagração generalizada. Na Primeira Guerra temos, de um lado, a confrontação entre a Rússia e a ÁustriaHungria, naquilo que poderia ter sido a Terceira Guerra Balcânica e que, devido ao sistema de alianças paradoxalmente construído para deter a guerra, produziu sua generalização. O mesmo pode ser dito sobre a confrontação entre Alemanha e França envolvendo a região da AlsáciaLorena, uma sequela da guerra limitada de 1871. De modo análogo, a Segunda Guerra Mundial pode ser considerada a soma da guerra sinojaponesa (1931-1945) e da ocupação da França pela Alemanha — consumando as guerras de 1871 e de 1914-1918. A diferença neste caso, foi, de um lado, o ataque japonês a Pearl Harbor, que tornou a guerra sino-japonesa uma conflagração regional e, de outro, a invasão da URSS 10

Anteriormente, em 1867 as tropas francesas, haviam apoiado os Estados Papais, impedindo que Roma fosse capturada. Foi só em 1918, já sob os auspícios da Liga das Nações, que a Itália logrou recuperar os últimos territórios sob o domínio austríaco a Veneza, Júlia e Trentino. 11 Guerra limitada consiste em uma conflagração confinada não só na geografia, mas também na duração e na escala. 12 Escalada: o aumento no grau do conflito em situações internacionais. Escalada Vertical: aumento da intensidade da guerra pelo emprego de mais tropas ou de armamento de maior poder destrutivo. Escalada Horizontal: aumento da intensidade da guerra em virtude do concurso de novos beligerantes. KAHN, Hermann. A Escalada. Rio de Janeiro: Bloch, 1969. pp 23.

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e a declaração de guerra aos Estados Unidos feitas pela Alemanha, o que mundializou a confrontação militar.

DIPLOMACIA E ECONOMIA NO ENTRE-GUERRAS Costuma-se atribuir a II GM ao fracasso da Liga das Nações (LDN) em evitar a conflagração devido à ausência dos EUA e da URSS entre os seus membros13. Este fato, aliado ao discurso do nacionalismo autárquico e do capitalismo de estado — partilhado tanto pelos regimes corporativos quanto pelo soviético — alimentam a ideia de que nas décadas de 30 e 40, não havia interdependência e, tampouco, diplomacia multilateral. Embora a ideia seja confortável, nos dá a sensação de segurança de que a guerra mundial é impossível em um mundo interdependente e sob os auspícios do sistema ONU, trata-se de uma simplificação excessiva da realidade Os principais beligerantes mantinham relações significativas de interdependência. As mais conhecidas são as existentes entre o Japão e os EUA, manifestas na cadeia de eventos que conduziram à Pearl Harbor. O caso da Alemanha e da Inglaterra é bem conhecido — foi levado às telas no filme Vestígios do Dia, de James Ivory (1993) —, além de devidamente abordado na literatura de RI14.Dentre estas relações, talvez a menos conhecida seja entre os Estados Unidos e a Alemanha. Desde o período do entre-guerras, o governo alemão se utilizava amplamente da praça de Wall Street para financiar os seus empreendimentos. As grandes corporações americanas possuíam participações em empresas como a Krupp e ainda, empresas como a Standard Oil, General Eletric, AT&T 13

A Liga das Nações foi criada pela Conferência de Paris de 1919, teve entre os seus principais proponentes o presidente estadunidense Woodrow Wilson, sua primeira sessão teve lugar em janeiro de 1920. Devido a não ratificação do tratado pelo senado americano — o senador Henry Cabot-Lodge se opunha ao envio de tropas ao exterior sem o aval do Congresso —, os EUA não ingressaram na LDN. A Rússia, por sua vez, estava em guerra civil e viu-se invadida pelas grandes potências da época, os membros mais proeminentes da LDN, de 1918 à 1925. Em virtude disso, a URSS só pode ingressar na Liga em 1934, contudo, acabou sendo expulsa em 1939. 14 O filme retrata o círculo de aristocratas que formavam o Grupo de Cliveden: cartel anglo-francês do carvão e do aço, que buscavam evitar a guerra através de negócios com os industriais alemães. Cf. VIZENTINI, Paulo Fagundes. História do Século XX. Porto Alegre: Novo Século, 1998.pp.75, 77, 78, 82 e 84.

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Communications e Ford. Além de fornecer produtos, também transferirem tecnologias para o país, como a do combustível e da borracha sintética15.Os Tratados de Rapallo (1922) e Berlim (1926) documentam a cooperação tecnológica e militar entre a Alemanha e a URSS. Naturalmente, a interdependência era mais intensa entre os polos que comporiam o campo aliado na II GM16. O capitalismo de estado, em suas diferentes matizes e feições, foi a resposta ao desafio colocado pela transição tecnológica da primeira para a segunda fase da Revolução Industrial — correspondeu ao período da aliança dos monopólios com o Estado para custear o processo de transição tecnológica.17 Desse modo, a despeito dos Estados corporativos frequentemente valerem-se de um discurso centrado no nacionalismo e na 15

SUTTON, Antony C. The Wall Street and the Rise of Hitler. Nova York: Buccaneer Books. 2000. 16 Ainda em 1913, a criação do FED nos EUA sob os auspícios do banco N M Rothschild & Sons Limited da Inglaterra, demonstra a interação anglo-estadunidense devido ao processo de transnacionalização de empresas britânicas. Tratou-se da materialização do Pacto de Elites anglo-estadunidense iniciado ainda no século XIX, e que vigorou até o New Deal e a II GM, quando Roosevelt tentou substituí-lo pelo Pacto Social Mundial. O tema dos Pactos de Elite e Pactos Sociais Mundiais foi desenvolvido em BUENO, Eduardo Urbanski. Paradigmas Técnico-Econômicos, Pactos de Elites e o Sistema Monetário Internacional. Trabalho de Conclusão de Curso de Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas, UFRGS. Porto Alegre, 2009. A cooperação estadunidense-soviética antes da Segunda Guerra tornou-se um tema bem conhecido, sobretudo, após a queda do Muro de Berlim. Contudo, ainda antes do fim da Guerra Fria, Louis Fischer e Armand Hammer encarregaram-se de remontar as relações russoestadunidenses desde a retirada das tropas estadunidenses da Sibéria em 1920 (chegada de Hammer em Moscou ), passando pelas relações com Lênin (documentada por Fischer desde 1922), até a amizade de Stálin com Henry Ford. Ainda à época da perestroika, publicizou-se a importância da cooperação bilateral durante a II GM: embora se trata-se de pouco mais de 5% do aportado ela se deu em um momento crítico de transferência das fábricas para além dos Urais. Sobre as relações EUA e URSS no pré-II GM ver: FISCHER, Louis. A Vida de Lênin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967; HAMMER, Armand. Hammer, um Capitalista em Moscou. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1989; e SUTTON, Antony C. Wall Street and the Bolshevik Revolution. New York: Buccaneer Books. 2001. 17 Pode-se comparar a primeira e a segunda fase da Revolução Industrial a partir de três fatores: processo produtivo, geração de energia e o domínio da metalurgia. Na Primeira Revolução Industrial as inovações foram pautadas pela produção manufatureira mecanizada, pela energia à vapor e pelas melhorias na produção do ferro. Já na Segunda Revolução Industrial o progresso foi capitaneado pela produção em série, pelo motor à explosão e pela produção em escala do aço a partir do advento do processo Bessemer.

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Considerações finais

ideia de um desenvolvimento autárquico, no mundo real, em seus fundamentos econômicos (transferência de tecnologia, patentes, capitais) o capitalismo monopolista de Estado mantinha relações de interdependência. A ideia de que a guerra foi causada pela ausência de instituições multilaterais, igualmente, não é de todo exata: toma a diplomacia por sua forma e abstrai seu conteúdo. Os fundamentos do Internacionalismo Conservador18 do entre-guerras foram lançados ainda no século XIX, no afã de conter a ascensão da Rússia (Crimeia 1853-1856) e de estabelecer uma governança sobre a China após a Revolta dos Boxers (1900). A Partilha da China deu-se desde o Tratado de Nanjing (1842), contudo a decadência da dinastia Qing precipitou-se após a Guerra SinoJaponesa de 1894-1895 — a guerra limitada que converteu o Japão em potência regional — após a qual aconteceu a Revolta dos Boxers (1900). Então, graças aos erros de cálculo da Imperatriz Cixi, o exército imperial foi destruído pelas potências ocidentais. Esse episódio — a destruição do Exército chinês — estabelece um novo umbral nas relações das potências ocidentais com a China. Mais que dividir áreas de influência, tratava-se agora de governá-la. A garantia de lei e ordem passou a depender fundamentalmente do Ocidente: foi firmado o Tratado das Oito Potências19, fundamento mediato do Internacionalismo Conservador. Em sua esteira veio o Tratado Anglo-Japonês de 1902, explicitamente dirigido contra a presença russa na Manchúria. A Guerra Russo-Japonesa de 1905 — guerra local que converteu o Japão em Grande Potência — foi a consequência lógica da gestação do Internacionalismo Conservador, cujo marco remoto é a Guerra da Crimeia; mediato, o Acordo AngloJaponês; e imediato, a Revolução Russa, cujo embrião também está associado à Guerra Russo-Japonesa. O Tratado Lansing-Ishii (02/11/1917) firmado entre Japão e EUA é a continuidade lógica do Tratado das Oito Potências e o espelho americano do Tratado AngloJaponês. Cinco dias depois (07/11/1917) deu-se a Revolução de Outubro, 18

Internacionalismo Conservador — Categoria utilizada por Robert Schulzinger para caracterizar o conteúdo da diplomacia do entre-guerras. Neste trabalho, conforme se explica no texto, o termo é operacionalizado em um contexto mais amplo, procura-se enfatizar as raízes desta política, lançada ainda no anos anteriores à I GM. SCHULZINGER, Robert. American diplomacy in the twentieth century. New York: Oxford University Press, 1990. 19 Inglaterra, EUA, Rússia, França, Alemanha, Áustria, Itália e Japão.

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e já no ano seguinte (11/08/1918) americanos e japoneses invadiram a Sibéria para combater os bolcheviques. A intervenção dos EUA e do Japão tipifica o conteúdo programático do consenso existente: manter a China ocupada e a Rússia (agora soviética) fora dos assuntos internacionais. Assim, a despeito dos EUA ficarem à margem da Liga das Nações, permaneceram no centro da concertação internacional. O fato de sediarem a Conferência de Washington de 192220 ilustra claramente a proeminência estadunidense e a capacidade da diplomacia em exercer a governança do SI. De modo ímpar, o Tratado Naval firmado para limitar a quantidade de couraçados e a tonelagem das Marinhas — precursor multilateral dos SALT e START —, denominou e hierarquizou as grandes potências através da discriminação do perfil de força de suas frotas de superfície21. Pode-se considerar que a Conferência de Washington foi a prefiguração do que, após a fundação da ONU, seriam os denominados regimes internacionais. Além disso, foi precursora do Pacto KelloggBriand de 1928. 20

A Conferência de Washington foi concluída com a assinatura de três tratados. O Tratado das Quatro Potências, das Cinco Potências e das Nove Potências. Tratado das Quatro Potências — estipulava a manutenção do status quo na Ásia. Assinado por EUA, Inglaterra, França e Japão. Considerado uma extensão do Tratado Lansing-Ishii (1917) e precursor do Tratado Kellogg-Briand (1928). Tratado das Cinco Potências (Tratado Naval) — estipulava o perfil de forças e a tonelagem de cada frota. Signatários: Inglaterra, EUA, Japão, França e Itália. Tratado das Nove Potências — garantia a integridade da China e a continuidade da política de Portas Abertas. Signatários: EUA, Inglaterra, Japão, China, França, Itália, Bélgica, Holanda e Portugal. 21 Tratado Naval de Washington — estipulou a nomenclatura e a tonelagem máxima por país dos principais combatentes de superfície: couraçados, cruzadores e porta-aviões. Foi dividido em duas partes. A que dispunha sobre couraçados e cruzadores e a que tratava dos porta-aviões — seu conteúdo é de prenhe significado, daí a importância de sua descrição. Couraçados e Cruzadores — equiparou os EUA à Inglaterra, distinguindo a ambos com 525 mil toneladas. Colocou o Japão em posição de proeminência sobre a França e a Itália, com 315 mil toneladas. Por fim, equiparou a Itália à França, permitindo que ambos construíssem até 175 mil toneladas. Vigorava para todos o limite máximo de tonelagem por vaso de 35 mil toneladas, e que seu armamento principal não poderia exceder o calibre de 406 milímetros.(16 polegadas). Japão e Inglaterra já possuíam canhões navais de calibre superior. Porta-aviões — mais uma vez se distingue EUA e Inglaterra com 135 mil toneladas. Concede-se ao Japão construir até 81 mil toneladas. E, por fim procura-se compensar a França e a Itália com a autorização de construir até 60 mil toneladas. Para todos signatários ficou estipulado que a tonelagem máxima por casco ficasse limitada a 27 mil toneladas.

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Considerações finais

Proposto pelos EUA e a França, o Pacto Kellogg-Briand estipulava a renúncia à guerra como instrumento legítimo de política nacional. Foi assinado por 55 países — todos os membros da LDN, além de EUA e URSS. Na ocasião, Alemanha, Itália e Japão ainda faziam parte da LDN. Portanto, todas as Grandes Potências da época assinaram o Pacto Kellogg-Briand. Foi a governança das disputas da Ásia, materializada na Conferência de Washington, que permitiu sua assinatura. Ele antecipa o artigo 2, parágrafo 4 da Carta da ONU que proscreve a guerra de conquista como instrumento legítimo de política internacional. A adesão soviética aos termos do Pacto abriu as portas da LDN ao seu ingresso, que se efetivou em 1934. Nesse sentido, pode-se dizer que se a Conferência de Washington prefigurou os regimes internacionais, o Pacto Kellogg-Briand, por seu turno, antecipou os instrumentos de governança do sistema ONU 22. Nem o Congresso de Viena (1815), nem a LDN — a despeito de seus feitos na governança internacional —, haviam ousado ir tão longe. O Congresso de Viena não dispunha de nenhum mecanismo formal para evitar conflagrações. Com exceção de tratados territoriais, todas as disputas eram solucionadas através de mediações informais ou tratados secretos. A LDN, por sua vez, apesar do objetivo final de promover a paz apenas requeria de seus membros que recorressem às instâncias de arbitragem, sem explicitamente proscrever a guerra como instrumento de política externa. Do exposto, emerge uma imagem diferente da que usualmente temos acerca do papel da diplomacia no entre-guerras. Percebe-se o quão precária é a imagem de que foi a ausência dos EUA e da URSS na LDN o que inviabilizou a governança do SI, levando à guerra. Em 1929 veio a crise econômica — que já foi comparada com a de 2008 — e então todas as declarações altissonantes da diplomacia acerca da proscrição da guerra se desfizeram. Nem mesmo a interdependência monopolística — acerba nos casos da interação entre EUA e Japão — cumpriram o papel de contrapeso eficiente à confrontação. Ainda em 1929 foi publicado o Memorando Tanaka que preconizava a conquista da 22

De fato, sua formulação foi ainda mais ousada: pretendeu abolir todo tipo de guerra e substituí-la por mecanismos de solução de controvérsias. Isso fica claro na rejeição da emenda francesa que propunha salvaguardar o direito do uso da guerra em legítima defesa ou em cumprimento das disposições da LDN. Cf. KISSINGER, Henry. Diplomacia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1999. p.301.

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China para o êxito do Japão no Leste Asiático. Em 1931 teve início a invasão da China e a guerra que se prolongaria até 1945. Nos EUA, que já eram um Estado Região, a crise foi contornada pelo New Deal que efetivou a expansão para dentro, através de frentes de trabalho, obras de infraestrutura, e não menos importante, a construção naval. A Alemanha, mais semelhante ao Japão que aos EUA, também expandiu-se na região. Em 1936 remilitarizou a Renânia, em março de 1938 anexou a Áustria, em setembro os Sudetos. Em 1939 invadiu a Polônia e em 1940, a França. Como referiu-se anteriormente, caso Hitler não invadisse a URSS ou declarasse guerra aos EUA em 1941 a II GM poderia ter se apresentado como duas guerras regionais simultâneas, mas desconectadas entre si. Como, por exemplo, se deu com a Sucessão Espanhola (1702-1714) e a Grande Guerra do Norte (1700-1721). Possivelmente, em todo caso, haveria guerra central. Pouco importa se sincronizada ou desconectada. Importa pois, saber porque se deu a guerra. Impossível pretender uma resposta cabal. Contudo, parece legítimo supor que a guerra está relacionada aos desafios envolvendo a passagem da primeira para a segunda Revolução Industrial. No caso, aos recursos para custear essa transição tecnológica, mormente de economia de escala. Em suma, da capacidade da URSS e dos EUA em constituírem-se enquanto Estado Região e da dificuldade da Alemanha e do Japão em fazerem o mesmo. Neste caso, os contrapesos representados pelas instituições (do mundo da política) e a interdependência (do mundo da economia) não foram suficientes para conter a determinação sistêmica que impelia os Estados rumo ao aço e ao petróleo (competição militar e guerra). Nesta linha de raciocínio, não se trata de desconstruir a importância da interdependência, mas simplesmente reconhecer a importância da terceira imagem de Waltz (a guerra) sobre as demais determinações. Ato contínuo, identificar a transição tecnológica entre os principais fatores de desequilíbrio, isto é, que criam demandas antes inexistentes e impelem os Estados a erigirem novas capacidades. Desta perspectiva há pouca diferença entre a interdependência liberal e a monopolista, ou ainda entre a diplomacia do Congresso de Washington e do Pacto Kellogg-Briand com o sistema ONU. E uma semelhança perturbadora: estamos diante de uma nova transição tecnológica, desta feita da segunda para a terceira Revolução Industrial. 188

Considerações finais

Entretanto, antes de se vaticinar acerca da suposta inevitabilidade de uma nova guerra central (que, por certo, pode ocorrer), importa perguntar-se como se dá o sociometabolismo entre os três mundos: o da política (instituições/diplomacia); o da economia (mercadoria/dinheiro); e o da guerra (ou competição militar). Pode-se adotar como ponto de partida a abordagem de Karl Deutsch23 e propor-se uma interpretação cibernética: a eclosão ou não da conflagração depende mais do gerenciamento do sistema do que da diplomacia, da economia, ou mesmo, do número de polos.

TRIANGULAÇÃO E LIÇÕES PARA O BRASIL Conquanto, o Sistema Internacional seja fechado, composto por número limitado e definido de Estados, sua governança é um sistema aberto, definido pela oscilação do número de grandes potências, isto é, daqueles Estados cujas capacidades devem ser levadas em conta. Um problema envolvendo a análise ou o cálculo em política externa, é saber quem são essas potências e em que medida suas posições devem ser consideradas. Esta incerteza deriva, entre outros fatores, do dinamismo característico do sociometabolismo da política, da economia e da guerra. Estes três aspectos podem ser considerados como subsistemas com seus próprios inputs, processamento autônomo e retroalimentação independentes. Assim, o Sistema Internacional sofre oscilações tanto em virtude das revoluções de 1848 ou da Primavera Árabe — para efeitos do subsistema político — das variações demográficas, mudanças climáticas, da oferta de matérias-primas ou commodities — no que tange ao subsistema econômico — ou ainda, das transições tecnológicas, no caso da guerra. Dada sua extrema complexidade, número de inputs e outputs, processamento simultâneo de subsistemas, assimetrias (e.g.: sistema aberto governando sistema fechado), entre outros, a tendência natural é 23

A referência à Karl Deutsch é um tributo ao seu pioneirismo no emprego da teoria da comunicação para a análise do Sistema Internacional. Isto não significa cingir-se ao seu enfoque, ou estabelecer qualquer compromisso de sinonímia com a taxionomia, muito menos no que tange ao conteúdo normativo.

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procurar respostas na simplificação. No caso, a estrutura mais simples de governança do SI seria a unipolaridade. Com uma única potência ditando as regras do sistema, sua governança afigura-se como mais exequível. Contudo, a simplicidade pode ser enganosa: a tarefa de governar todo o sistema pode converter-se em um fardo insuportável, fazendo com que todo o peso de suas tensões se façam sentir sobre o polo dirigente. Ilustra esta perspectiva a crise estadunidense que se seguiu ao momento unipolar do SI. A bipolaridade contém a mesma estratégia de gestão, procura governar a complexidade através da simplificação. A partir da ótica dos dois enfoques precedentes a multipolaridade seria a forma menos estável de governança, posto que trata-se de muitos, simultaneamente, pretendendo escrever as regras do sistema. Sem dúvida, o sistema multipolar é mais propenso a instabilidade. Contudo, não existe evidência de que esta não seja uma tendência aplicável tanto aos equilíbrios do SI quanto aos sistemas em geral. Aqui cabe lembrar que a plausibilidade da pretensão de um Estado em escrever regras está relacionada às suas capacidades e ao reconhecimento destas por parte dos demais. Ainda que não se possa pretender reduzir a política internacional à nenhum dos três campos (político, econômico e militar) e, muito menos aos particularismos de cada um deles, pode-se distinguir na projeção de força um fator que com maior facilidade permite o reconhecimento por parte dos demais Estados como algo que deve ser levado em conta no seu cálculo. Em suma, o medo pode não ser o motor da política externa, como pretende o realismo ofensivo, mas se dissemina com maior facilidade do que a suscetibilidade à imitação a partir da liderança. Isto se dá na medida em que o SI não tem uma autoridade central, a coerção é indireta, baseada no cálculo de interações, feito a partir da correlação de forças. Portanto, a capacidade de prevenir a guerra, isto é de dissuadir, pode estar relacionada diretamente com as promessas de recompensa ou punição. Neste caso, importam as grandes potências, posto que apenas estas podem ser computadas fora de seu âmbito regional — estando aptas a aplicar punições. Então, a capacidade de gestão de crise em um sistema de poder, pode ser legitimamente relacionada às suas forças navais, já que é por mar que se desloca a tonelagem da guerra. Considerando-se que o que distingue uma potência regional de uma Grande Potência é que a esfera de influência da primeira é a região e da 190

Considerações finais

segunda, o mundo, pode-se concluir que a distinção básica entre ambas reside na capacidade de projeção de força militar além da região (além teatro). Como a maior parte das interações inter-regionais — mesmo tratando-se de regiões contíguas — se dão através do mar, parece também razoável supor que as capacidades navais estão no âmago da distinção entre a potência regional e a grande potência. Portanto, o inventário acerca das capacidades navais importa duplamente: (I) para tentar identificar quem são as Grandes Potências; e (II) para prospectar sua capacidade em administrar uma crise. Parece, pois, válido comparar:(1) as capacidades navais da pentarquia do século XIX; (2) das potências do entre-guerras e (3) das atuais. O que é feito a seguir. Em 1880, o ranking das frotas das potências expresso em toneladas, era: (1) Grã-Bretanha, com 650 mil; (2) França com 271 mil; (3) Rússia com 200 mil;(4) Itália com 100; (5) Alemanha com 88; e (6) ÁustriaHungria com 6024. Tomando-se estes dados fica mais fácil entender a estabilidade da pentarquia no século de paz. A Inglaterra possuía mais que o dobro da tonelagem da França e da Rússia, que por sua vez, guardavam proporção semelhante à Itália, Alemanha e Áustria-Hungria. A hierarquia de capacidades, expressa neste sistema piramidal, serve para ilustrar os jogos envolvendo a oscilação de alinhamentos e a formação de alianças flexíveis que caracterizaram o Concerto Europeu. O líder encontra-se em posição confortável, há pelo menos duas potências em situação intermediária e três grandes potências em situação precária. Na verdade cinco, se considerarmos que na época, Japão e EUA já tinham forças navais consideráveis, apesar de serem mantidos aparte do Concerto Europeu. No argumento anterior, vimos como era a distribuição da tonelagem por frota na década de 1880. Em 1922 o Congresso de Washington desenhou um quadro de como o mundo deveria ser: EUA e Inglaterra com 660 mil toneladas cada; Japão com 396 mil toneladas; e França e Itália com 235 mil toneladas cada uma. O que chama a atenção no desenho do Congresso de Washington é que ele não traduz a realidade no inventário, mas projeção daquilo que os diplomatas consideravam idealmente possível. Em suma, daquilo que consideravam ser a própria essência do SI em sua época. A imagem que brota, desta feita, é de uma 24

KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro: Campus, 1989. p. 200.

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ampulheta. Com duas grandes potências no topo (EUA e Inglaterra), Japão em uma situação intermediária e França e Itália em uma terceira posição. O desenho facilita a compreensão do internacionalismo conservador, a semelhança de capacidades no topo e na base das grandes potências dificulta qualquer hierarquia e, portanto, a percepção de quem tem legitimidade para escrever regras. Desta perspectiva fica mais fácil compreender porque o consenso possível no internacionalismo conservador era baseado na exclusão da Rússia e da China — de certo modo, esta atitude era preexistente em relação à própria Revolução Russa. A saída voluntária do Japão da LDN em 1933 e o ingresso da URSS no ano seguinte, eliminou o único fundamento de consenso possível para se escrever regras: a exclusão. Desta ótica não é de admirar que com a crise de 1929 tenha vindo a guerra. O panorama atual das forças navais das principais grandes potências é: EUA com 445 navios e 3.416 mil toneladas; a Rússia com 283 navios e 1.261 mil toneladas; China com 275 navios e 834 mil toneladas; Japão com 99 navios e 340 mil toneladas; Inglaterra com 82 navios e 335 mil toneladas; França com 72 navios e 330 mil toneladas; e Índia com 118 navios e 283 mil toneladas25. Este desenho de capacidades é claramente triangular. Há um líder inconteste, seguido por duas grandes potências que se distinguem o suficiente das demais para constituir-se em uma classe à parte. A China, situada no vértice mais baixo deste triângulo escaleno, possui o dobro da tonelagem das grandes potências que podem ser classificadas em uma terceira posição. Abaixo da Índia vem a Coreia do Sul, uma potência regional, mas contando com 177 mil toneladas, a Índia possui aproximadamente 40% de tonelagem acima dela. Este talvez seja o problema deste terceiro grupo, sua distância para as potências regionais não é tão clara e pronunciada do que separa o segundo do terceiro grupo de grandes potências. De qualquer forma, o SI atual parece ser mais governável do que o estabelecido no entre-guerras. Talvez por isso, o seu conteúdo ético seja distinto, possui uma lógica inclusiva. Estados, adotam um comportamento semelhante ao das empresas e formam conglomerados (os grupos da OMC) para negociar coletivamente. A agenda varia desde questões trabalhistas até as mudanças climáticas, passando pelo tráfico de 25

Cf. Total Naval Ship Strength by Country. Disponível em: www.globalfirepower.com . Dezembro de 2012.

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armas leves, proliferação nuclear, terrorismo, separatismo, em suma, há um processo imperfeito, porém efetivo de governança, o que se dá também através dos regimes internacionais. Trata-se de responder à complexidade de processamento de sistema, sem procurar a simplificação, pelo contrário, aumentando a complexidade dos mecanismos e processos de gestão e de controle. Conquanto seja antiintuitivo, talvez seja o único equacionamento possível em termos humanistas — a alternativa é a de acelerar-se a entropia já existente no sistema através da guerra, mas esta opção não pode ser qualificada deste modo (ver capítulo sobre os EUA). Porém, talvez o mais importante, seja o processo de triangulação estabelecido entre EUA, Rússia e China. A triangulação praticada por estes países permite que as regras sejam escritas de forma coletiva: O que é obtido pelo alinhamento de dois destes três polos contra o terceiro. Quando após a Guerra do Vietnã a URSS pareceu estar ganhando a guerra fria, e prestes a tornar-se o polo dominante no Sistema Internacional, os EUA aproximaram-se da China para balanceá-la. Quando, por sua vez, estabeleceu-se o momento unipolar estadunidense, Rússia e China deixaram suas diferenças de lado e aproximaram-se através da criação da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Em grande medida, a amizade entre os dois países é custeada pelo receio dos efeitos da defesa antimíssil (DAM) estadunidense e de que estes sejam capazes de estabelecer a primazia nuclear. Permitindo aos EUA poder atacá-las nuclearmente sem o receio de que um contragolpe nuclear possa acarretar a destruição mútua. Contudo, as assimetrias nos vértices do triângulo talvez sejam pronunciadas demais. Os EUA possuem em suas forças navais, em termos de tonelagem, quase o dobro de Rússia e China somados. Contudo, a perspectiva é enganosa. Do ponto de vista qualitativo a diferença ainda é maior: Rússia e China possuem apenas um porta-aviões contra dez estadunidenses e, ainda assim, inferiores à este. Apenas os EUA possuem aeronaves de 5ª geração e mais aeronaves de 4ª geração do que ambas somadas. Estas assimetrias dificultam a percepção pela parte estadunidense de que, conquanto sejam muito mais fortes que Rússia e China, por outro lado a diferença não justifica a pretensão de que possam ditar regras nas regiões de suas competidoras. Quando então, as portentosas capacidades do inventário estadunidense são reduzidas pelas 193

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possibilidades reais da cadeia de logística e pelo número limitado de linhas de abordagem. Ademais, os números ficam sujeitos aos azares da imponderabilidade da guerra, que por esta razão, costuma beneficiar os defensores. Os que lutam em casa, estão mais aptos a empregar a plenitude de seu potencial. Nem sempre estas considerações parecem claras à opinião pública e ao congresso americano. Há uma perigosa tendência de que possam, a partir apenas dos números do inventário, exigir de suas forças armadas mais do que elas podem realmente oferecer. Existem elementos de entropia e entalpia no sistema. Conta à favor de uma recomposição hegemônica o fato de que a mudança não implica na troca do hegêmona, mas apenas de seu conteúdo ético, no que tange ao papel conferido às regiões e ao multilateralismo. Importa também constatar que a triangulação seja praticada desde 1971, portanto há 42 anos, mais que uma geração bíblica. Ela iniciou-se à época da bipolaridade, informou a transição que redundou na unipolaridade e, por fim, tem sido o esteio da atual multipolaridade assimétrica. Contudo, permanece desejável encontrar meios para reduzir a extensão das assimetrias na multipolaridade (por definição esta forma de equilíbrio é assimétrica) ao menos para tornar mais claro quem escreve as regras do jogo e onde sua opinião não deve ser contestada. Existem inúmeras razões que conduzem ao aumento da incerteza e disseminam a insegurança. Entre eles, o elevado número de grandes potências e a situação incerta de algumas delas, que parecem estar em trajetória declinante. A ascensão da Índia como grande potência e a do Brasil como líder inconteste da América do Sul. A emergência dos Próximos 11 (N-11)26, dentre estes, quatro com perspectivas de liderança regional (Egito, Indonésia, México e Nigéria) e dois com interesses que vão além de suas regiões (Turquia e Coreia do Sul). Tudo isto associado a uma crise econômica prolongada multiplica a percepção acerca do papel cumprido pelo papel da guerra limitada e da guerra local na definição da polaridade internacional. Se sua efetividade já revelou-se durante o século XIX, que dizer do presente quando, graças à digitalização horizontalizam-se as capacidades militares, disseminam-se equipamentos de alta tecnologia e multiplicam-se as possibilidades de emprego da guerra assimétrica. 26

Grupo de países composto por: Bangladesh, Egito, Indonésia, Irã, México, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Coreia do Sul, Turquia e Vietnã.

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Para o interesse nacional, importa atentar para uma dupla possibilidade (1) de que a recomposição hegemônica se dê sem guerra central, mas definida por guerras limitadas e locais, feitas por intermédio de proxies, mais com o intuito de arruinar economias do que com o propósito de violar fronteiras. (2) A possibilidade da guerra central se dar sem a confrontação direta entre as três principais potências, por intermédio de guerras locais, mais ou menos intensas, mas prolongadas (e.g.: EUA vs Irã, China vs Vietnã). Trata-se de situações que não justifiquem a confrontação direta, mas que acarretem prolongada mobilização de recursos nacionais, a ponto de comprometer a posição do país na hierarquia internacional. Em qualquer casos, importa a capacidade produtiva seja para dissuadir a potência extrarregional ou para travar a guerra limitada ou local sem colapsar economicamente. No passado o impasse colocado para o Brasil era justificar investimentos em defesa em um país que se considerava isento de ameaças externas. Este dilema não faz mais sentido. Temos de deter capacidades à altura de nossas responsabilidades diante da ordem internacional. O Brasil ainda está longe de constituir-se enquanto grande potência, mas tampouco é apenas uma potência regional. No exterior poucos duvidam de que o Brasil é um sério postulante a condição de grande potência. A liderança do Brasil na América do Sul consolidou-se, sua voz tem peso nos fóruns internacionais, sua influência política e econômica projeta-se claramente além da região. O Brasil tem acertado em decisões estratégicas cruciais. Recusou-se a responder à intensificação da complexidade com a simplificação, ao protelar diplomaticamente o seu ingresso na ALCA, enquanto discretamente construía o seu próprio bloco regional. O Brasil acerta no método: responde aos novos e crescentes desafios da governança, multiplicando os instrumentos de interferência nas Relações Internacionais. Na esfera regional criou a ALCSA (1993), a IIRSA (2000) a CASA (2004) e a UNASUL (2008). No âmbito inter-regional ingressou no IBAS em 2003 e compôs o BRIC em 2009. O Brasil diversificou seus parceiros comerciais e, sem prejuízo de suas relações sul-norte, solidificou seus laços sul-sul, sobretudo na Ásia, estreitando sua parceria com a China. Em grande medida a posição privilegiada do Brasil no contexto da crise internacional, espelha o 195

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crescimento chinês. É graças à elevada demanda por matérias-primas e produtos agrícolas que os preços destas commodities se mantém elevados no mercado internacional e o PIB de nosso país se mantém crescendo. Contudo, os fundamentos deste crescimento são incertos, o Brasil precisa qualificar suas exportações e inserir-se favoravelmente na transição tecnológica. Neste ponto, as demandas políticas e econômicas encontram-se com as militares. Para preservar sua influência política local o Brasil precisa ser capaz de honrar os compromissos assumidos no âmbito da UNASUL: afiançar a proteção no processo de integração. O mesmo vale para o reconhecimento de sua influência no âmbito inter-regional. Na esfera econômica, a qualificação das exportações, a geração de emprego e renda, dependem da aquisição de alta tecnologia. No centro da equação está a aquisição de capacidades militares. Mais uma vez, o Brasil tem demonstrado acertar no aspecto conceitual, forjou uma sólida base legislativa que constitui arcabouço normativo de defesa no Brasil. As diretrizes para o emprego das Forças Armadas (Decreto 3897/2001), a Política Nacional de Defesa (Decreto 5484/2005), que pavimentou o caminho para o acordo militar Brasil-França (Decreto 6011/2007), o mais ambicioso plano de modernização das Forças Armadas brasileiras. Contudo, os fundamentos doutrinários que interligam a preparação militar, a sustentação do processo de integração e o desenvolvimento econômico, valendo-se das políticas de defesa para a geração de emprego e renda, vieram com a estruturação do Sistema Nacional de Mobilização (Decreto 6592/2008), que foi seguido pela Estratégia Nacional de Defesa (Decreto 6703/2008), onde explicitam-se as diretrizes citadas. Ambos foram sucedidos pela Política de Mobilização Nacional (Decreto 7294/2010) e, por fim, em 2011 o Brasil publicou seu primeiro exemplar do Livro Branco de Defesa (Decreto 7438/2011). O Brasil possui a visão estratégica precisa, equacionamento de meios adequados e a agenda compatível com as demandas sistêmicas, impostas pela transição tecnológica. Possui planos de modernização das três armas e de estruturação do comando do espaço, onde destaca-se a aquisição de satélite geoestacionário. A Marinha planeja a duplicação da frota, a aquisição e construção de vasos de superfície, a construção de submarinos e já goza do domínio da propulsão nuclear. A Força Aérea Brasileira possui capacitação doutrinária e tecnológica para o combate 196

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além do alcance visual (BVR) e há previsão de modernização da frota, mediante o programa FX-2. A Força Terrestre opera intenso processo de modernização, capacitação, informatização, intensificando sua preocupação com o teatro sintético de guerra, a defesa antiaérea, a aquisição e produção de blindados e veículos automotores de emprego militar. Contudo, à despeito de toda a base legislativa, do planejamento de modernização das forças e do mérito das conquistas já obtidas, o projetado ainda está por realizar-se. Em grande medida, trata-se de um problema de gestão: inexistem especialistas civis versados em assuntos militares em número suficiente junto ao Ministério da Defesa, Planejamento, Fazenda, etc. Também fazem falta no do Congresso Nacional, como assessores do Poder Legislativo, informando, esclarecendo, disseminado informações da Defesa Nacional. Neste sentido urge a criação de uma carreira civil que assuma e leve a cabo ao menos os programas já aprovados — alguns há mais de uma década. Que possa manifestar-se livremente e fazer ecoar junto a imprensa e a opinião pública a agenda da Defesa Nacional. Além disso, é preciso reter o aprendizado de que o aumento da complexidade dos mecanismos de controle é a resposta possível frente ao incremento dos desafios. O modelo de integração baseado exclusivamente no Estado, no empregos de meios de pagamento ligados aos bancos de fomento e alicerçado na infraestrutura, chegou ao seu limite. O risco presente de crises, políticas ou sociais, eclodirem em países sócios do Mercosul, demonstra a necessidade de estender a integração para a esfera da governança corporativa. Urge o estabelecimento de um modelo de negócios e serviços em defesa. Que se articule à um programa de fusões e incorporações de empresas dos mais diversos ramos. Sem uma burguesia sul-americana, que resulte desse processo, a integração pode oscilar ao sabor do ritmo plebiscitário da eleições — que podem trazer surpresas desagradáveis ao Mercosul e a UNASUL. O processo de articulação da governança corporativa no âmbito da América do Sul exige marco regulatório comum, fusões e incorporações, mecanismos de coordenação macroeconômica e crédito. O processo de integração fica sem defesas profundas diante de inputs deletérios no âmbito dos subsistemas político e econômico. O estabelecimento de políticas de governança corporativa pode permitir 197

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negociações sérias no âmbito da liberalização de serviços e compras de governo no âmbito do Mercosul. Isso pode ampliar exponencialmente o mercado de serviços bancários e de telecomunicações, criando uma retroalimentação virtuosa entre bancos e processo produtivo, serviço e indústria. Mas, esta é apenas uma das tarefas que os internacionalistas têm para o século XXI.

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