Capítulo 5 – O local e o global na cidade de Tete e no Município de Moatize: convivência pacífica ou conflituosa

June 4, 2017 | Autor: Vânia Pedro | Categoria: Multiculturalismo
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Capítulo 5 – O local e o global na cidade de Tete e no Município de Moatize: convivência pacífica ou conflituosa?

Vânia Pedro1 Introdução Pela epígrafe pode parecer haver alguma vontade peremptória de desvendar certa relação biunívoca impregnada de ambiguidade entre o pacífico e o conflitual. Na verdade, o que se pretende no fundo é desvendar entre os dois conceitos supracitados e territorializados num contexto específico da cidade de Tete e da Vila de Moatize o que predomina? Relação de conflito, de pacifismo ou a coexistência e convivência entre ambos? Com efeito, este capítulo tem como objectivo discutir a relação entre o local e o global na Cidade de Tete e no Município de Moatize, a partir de dados empíricos colhidos no âmbito da investigação levada a cabo pelo Instituto Superior de Artes e Cultura (ISArC) sobre: “O Impacto do Processo de Industrialização na Urbanização e em Culturas Locais: o caso da Cidade de Tete e da Vila de Moatize”. O capítulo encontra-se estruturado da seguinte forma: primeiro, apresentamos as premissas teóricas em torno da globalização, do local e do global, por forma a aprimorarmos a nossa discussão e situarmos ao leitor sobre a abordagem que circunda estes conceitos. Segundo, apresentamos os resultados e a discussão. Terceiro, as considerações finais, e, por fim as referências bibliográficas. 5.1. Algumas considerações sobre o debate em torno da globalização Muitos estudiosos principalmente da área de Ciências Sociais têm procurado conceptualizar e discutir a globalização, assim como a sua natureza, mas tem sido uma discussão que não tem alcançado consenso. Sofia Aboim (2014: 2) refere que a globalização tem sido um conceito em disputa entre os teóricos sociais que divergem em definição da linha do tempo, o conteúdo ou mesmo as consequências de processos globais, se elas se referem ao capitalismo transnacional, a democracia liberal, aos encontros culturais, mass-media, a moda ou a internet.                                                                                                                         1

Faculdade de Estudos da cultura do Instituto Superior de Artes e Cultura.

 

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Tradicionalmente, a globalização tem sido vista como a disseminação da modernidade ocidental, como uma força que provoca a erosão do Estado-nação ou, talvez mais importante, como um sistema desigual e contraditório de fluxos entre o centro e a periferia, que é frequentemente associado com a dicotomia historicamente enraizada entre o ocidente e o resto. Florentino Kassotche (1999: 35) afirma que os paladinos da globalização defendem que ela comporta os seguintes aspectos positivos: liberalização da tecnologia e do comércio; emergência de uma cultura global e preocupação das pessoas em torno de problemas globais, por exemplo, a questão ambiental e o HIV. Ainda de acordo com Kassotche os arguentes da globalização receiam que ela destrua o estilo de vida tradicional, o ambiente, crie uma cultura uniforme e que provoque movimentos migratórios não controlados. Igualmente, temem que o fosso entre ricos e pobres aumente e que os governos nacionais percam a soberania. Kassotche afirma ainda que os países em vias de desenvolvimento consideram que a globalização apenas é aplicável aos países ocidentais e que esta promove uma exploração mais eficiente das nações menos desenvolvidas, tudo em nome dessa abertura. Rebatendo a ideia de que os malefícios da globalização apenas são observáveis nos países em desenvolvimento, Kassotche refere que estes podem ser observados também nos países desenvolvidos e que a diferença nessa visibilidade reside na intensidade do seu impacto na vida sóciopolítica. Na mesma linha de análise dos pontos positivos e negativos da globalização, Alexandre Melo (2002) refere que considerando os principais usos quotidianos, ou especializados da palavra globalização duas clivagens parecem mais relevantes: •

A primeira é entre os que entendem a palavra globalização como a designação de uma característica real do processo histórico em curso e os que a consideram como o nome de uma doutrina que inspira um programa ideológico em vias de aplicação;



A segunda clivagem é entre os que defendem a globalização como uma coisa boa e os que a assumem como uma coisa má (Melo, 2002: 17).

Anthony Giddens (2012: 20) refere que quando fala-se de globalização emergem dois grupos de opiniões, nomeadamente a dos cépticos e dos radicais. Os cépticos consideram que a

 

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globalização não existe, porque a seu ver a economia global não é tão diferente da que existia em períodos antecedentes e que o mundo continua o mesmo. Por seu turno, os radicais, olham para a globalização como um facto bem concreto, cujos efeitos se fazem sentir por toda a parte (idem). Giddens afirma que a razão está do lado dos radicais porque o volume do comércio externo da actualidade é maior que de qualquer período anterior e abrange uma gama muito mais extensa de bens e serviços. Para este autor a maior diferença regista-se a nível financeiro e no movimento de capitais (idem). Perfilando com Giddens, consideramos que os radicais têm razão, porque o volume de contactos, negócios, transacções

comerciais e comunicação entre as diversas partes do

mundo, incluindo as entre as zonas mais recônditas tem sido sem sombra de dúvidas fruto da globalização, coadjuvada pelas Tecnologias de Informação e Comunicação. 5.2. Conceito de globalização Como se pôde depreender acima, os efeitos da globalização dividem os estudiosos do fenómeno. O que seria então a globalização? “Globalização é um processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social, ou entidade rival”(Santos, 1997: 14). Boaventura de Sousa Santos considera que não existe apenas uma única globalização, mas globalizações porque constituem conjuntos diferenciados de relações sociais, que propiciam diferentes fenómenos de globalização O conceito de globalização proposto por Sousa Santos releva a capacidade de uma certa realidade particular e contextual conseguir se estender à mais realidades e sobrepor-se às mesmas. Neste sentido, a globalização realizada por certa condição ou entidade local actuaria de modo vertical, ou seja, apenas um dos contextos se sobreporia aos demais. Sarita Albagli (1999) afirma que a globalização corresponde a um alongamento das relações entre o local/presente e o distante/ ausente, por meio das redes, que estabelecem interacções e conexões que perpassam o conjunto do planeta. Giddens e Albagli nos seus conceitos mostram que certos fenómenos à nível local são

 

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influenciados por processos externos e/ou globais que se difundem e alargam a sua influência através da globalização, do papel e potencial das redes e das Tecnologias de Informação e Comunicação. Tais redes e mecanismos de comunicação e diálogo mesmo à distância fazem com que certas entidades consigam se fazer presentes em outros contextos e alargar o seu raio de acção, moldando o modus vivendi e operandi. Por seu turno, Anthony McGrew (1997) define a globalização como processos actuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo em realidade e experiência mais interconectado. A definição de McGrew releva o facto de a globalização relacionar e ligar o mundo, ultrapassando as barreiras geográficas, culturais e sociais. Em África, certos estudiosos têm se debruçado sobre o fenómeno da globalização. Um deles é o moçambicano Florentino Dick Kassotche. Este autor define“a globalização como um processo complexo que não é conduzido por uma única e inevitável lógica. Ele tem os seus prós e contras, que são características dialécticas de qualquer conceito com dimensões sócio-políticas”(Kassotche, 1999: 34). Os pontos de vista de Albagli e McGrew sobre a globalização são na nossa óptica os mais apropriados para a nossa análise, pois por um lado consideramos que o local e o global se interpenetram e se retroalimentam produzindo novas identidades, e/ou até reformulando as já existentes. Por outro lado, a maior parte dos conceitos de globalização apresenta uma perspectiva economicista em detrimento de outras componentes do social, pois de acordo com Marcel Mauss citado por Silva & Pinto (2007: 17) “qualquer facto, quer ocorra em sociedades arcaicas, quer em modernas, é sempre complexo e pluridimensional; pode , pois, ser apreendido a partir de ângulos distintos, acentuando cada um destes apenas certas dimensões. Todo o comportamento remete para uma e só se torna compreensível dentro de uma totalidade, quer dizer: constelações compósitas de recursos, representações, acções e instituições sociais intervêm nas mais elementares relações entre pessoas”. Daí que seja importante olhar para o fenómeno da globalização de modo holístico.

 

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5.3. O local e o global: premissas teóricas De acordo com Albagli (1999: 182), a ideia de local encerra uma dupla perspectiva: a teórica e a empírica. É uma noção relacional, remetendo aos seguintes principais aspectos: a) tamanho/dimensão, associando-se ao conceito de escala; b) diferenciação/especificidade; c) grau de autonomia; d) nível de análise e de complexidade, os quais vêm sendo postos em questão no momento actual. Situado ante o global, o local pode referir-se a uma dada localidade (cidade, bairro, rua), região ou nação, constituindo, em qualquer dos casos, um “subespaço” ou um subconjunto espacial, e envolvendo algum modo de delimitação ou recorte territorial, o que se expressa em termos económicos, políticos e culturais. O local tem sido identificado com a ideia de lugar, termo que se reveste de uma variedade de significados. Alguns autores como Agnew e Duncan, Giddens e Augé citados por Albagli (1999) debruçaram-se sobre a ideia de lugar. Dentro de uma acepção geográfica estrita, lugar pode ser definido como “uma parte do espaço na qual as pessoas vivem em conjunto” (Agnew e Duncan, 1989), implicando, portanto, aí a ideia de co-presença. De acordo com Ana Carlos (1996: 20), o lugar é o mundo do vivido, é onde se formulam os problemas da produção no sentido amplo, isto é, o modo onde é produzida a existência social dos seres humanos. Ainda de acordo com esta autora, a análise do lugar se revela em sua simultaneidade e multiplicidade de espaços sociais, que se justapõem e interpõem no quotidiano com suas situações de conflito e que se reproduz hoje. Para Giddens (1991:26) citado por Albagli (1999: 183), lugar “é melhor conceitualizado por meio da ideia de localidade, que se refere ao cenário físico da actividade social como situado geograficamente”. Contrapõe-se assim à ideia de “não-lugar” proposta por Marc Augé, que corresponde aos lugares de passagem, de não fixação, ao espaço abstrato como as vias informatizadas (Albagli, 1999: 183). Lugar, entretanto, não deve ser compreendido apenas como o espaço onde se realizam as práticas diárias; mas também como aquele no qual se situam as transformações e a reprodução das relações sociais de longo prazo, bem como a construção física e material da

 

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vida em sociedade. Nele, realiza-se o quotidiano, o momento, o fugidio; mas também a história, o permanente, o fixo, correspondendo ao identitário, ao relacional e ao histórico, no âmbito da tríade habitante-identidade-lugar (Carlos, 1996). O conceito de lugar pode assim ser visto a partir da complementaridade de três dimensões, conforme Agnew & Duncan (1989) citados por Albagli (1999): a) Dentro de uma óptica mais económica, enquanto localização de actividades económicas e sociais operantes em uma escala mais ampla; b) De uma perspectiva microsociológica, como espaço rotineiro de interacção social; c) De um ponto de vista antropológico e cultural, correspondendo a um sentido de lugar, mediante a identificação do sujeito com o espaço habitado. Local tem igualmente sido amplamente associado à ideia de região. Sobre o conceito de região, desenvolveram-se três grandes linhas interpretativas, a partir da década de 1970 (Correa, 1993 citado por Albagli, 1999). A primeira, apoiada na teoria marxista, analisa Globalização e espacialidade: o novo papel do local. A perspectiva apoiada na teoria marxista olha para a região a partir das relações de produção, entendendo a região como “a organização espacial dos processos sociais associados ao modo de produção” capitalista e partindo do pressuposto de que existe uma regionalização da divisão social do trabalho, do processo de acumulação capitalista, da reprodução da força de trabalho e dos processos políticos e ideológicos (idem). A segunda considera que a região é definida como “um conjunto específico de relações culturais entre um grupo e lugares particulares”, uma “apropriação simbólica de uma porção do espaço por um determinado grupo”, um “elemento constitutivo de sua identidade”. Por fim, a terceira percebe a região como “um meio para interacções sociais”, enfatizando as relações de dominação e poder como constitutivas da diferenciação entre regiões. De entre as três perspectivas acima enunciadas, operacionalizamos a segunda que postula que região é definida como “um conjunto específico de relações culturais entre um grupo e lugares particulares”, uma “apropriação simbólica de uma porção do espaço por um determinado grupo”, um “elemento constitutivo de sua identidade”, porque olha para a região  

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não só do ponto de vista geográfico e espacial, mas também como um sistema simbólico de representações sociais. Neste capítulo olhamos para o local como uma combinação das três perspectivas de lugar acima apresentadas e da segunda perspectiva de região, ora apresentada nos parágrafos anteriores. Na nossa óptica, o local (que pode ser entendido como lugar ou região) encerra duas dimensões que na verdade resumem-se à uma, que é a dimensão social e, esta por sua vez, comporta duas sub-dimensões a saber: a espacial e a social. Afirmamos que a dimensão espacial está inserida na social, porque a ideia de lugar ou região, a sua identificação e demarcação é socialmente construída e, constitui um processo histórico que vai sendo inventado e reinventado devido à dinâmica das relações, interacções sociais e à interacção dos humanos com o meio ambiente. O global, por oposição, diz respeito à inexistência de limites internos, enquanto internacional e multinacional têm como referência os espaços nacionais, seja, no primeiro caso, correspondendo a relações entre nações, seja, no segundo caso, a acontecimentos ou actividades ocorridas em mais de uma nação (Albagli, 1999). A competência global implica por vezes o acentuar da especificidade local (Santos, 1997). Este autor olha para o local e o global como uma vertente da globalização. Este autor destaca o localismo globalizado e globalismo localizado. Localismo globalizado consiste no processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, transformação da língua inglesa em língua franca (...) as leis de propriedade intelectual, ou telecomunicações dos Estados Unidos da América (Santos, 1997: 16). O globalismo localizado consiste no impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais, as quais são, por essa via, desestruturadas e reestruturadas de modo a responder a esses imperativos transnacionais. Tais globalismos localizados incluem: enclaves de comércio livre ou zonas francas, desflorestação e destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; uso turístico de tesouros históricos; lugares ou cerimónias religiosos (...) etnicização do local de trabalho  

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(desvalorização dos salários pelo facto de os trabalhadores serem de grupo étnico considerado inferior, ou menos exigente (idem). De acordo com Albagli (1999: 186), o local redefine-se a partir do novo padrão tecnológico, ganhando em densidade comunicacional, informacional e técnica no âmbito das redes de informação, que se estabelecem à escala planetária. Ainda de acordo com esta autora, o local vem tornando-se “fantasmagórico”, desprovido de um significado próprio e fortemente condicionado por influências externas. Para outros, no entanto, o local constitui suporte e condição para relações globais: é nele que a globalização se expressa concretamente e assume especificidades. Santos (1997), olha para o global como factor de erosão do local. Ao passo que Hall (2002) defende uma articulação entre o global e o local, ao invés de vê-lo como substituto do local. Ainda de acordo com este autor, este local não pode ser confundido com velhas identidades firmemente enraizadas em localidades bem delimitadas. Ela actua dentro de uma lógica da globalização. Para Hall, parece improvável que a globalização vá simplesmente destruir as identidades nacionais. É mais provável que ela vá produzir simultaneamente novas identificações globais e novas identificações locais. A globalização tem o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e fechadas em uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas, unificadas, ou transhistóricas (Hall, 2002 :87). Por seu turno Giddens (2012) considera que a globalização leva ao reaparecimento das identidades culturais em diversas partes do mundo e cria novas zonas económicas e culturais, dentro e por cima das nações. Nós concordamos com os posicionamentos de Hall e de Giddens mencionados nos dois anteriores parágrafos, porque consideramos que os localismos e globalismos se interpenetram  

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e geram novas ordens, na medida em que as identidades são plásticas, sendo, por conseguinte negociadas, imbricadas, inventadas e reinventadas em função da dinâmica social. 5.4. O local e o global na Cidade de Tete e no Município de Moatize: convivência pacífica ou conflituosa? Na nossa óptica o local e o global coexistem e convivem. Neste tópico procuramos apresentar as metamorfoses ocorridas em Tete e em Moatize, decorrentes da relação entre o local e o global. Para tal, utilizamos algumas áreas específicas como exemplo, nomeadamente: a saúde, a gastronomia e o vestuário. 5.4.1. Saúde Procuramos trabalhos que documentassem as principais doenças que têm afligido os Nyungwés, mas não encontramos. Rosário (1989) citado por Maia (2010) refere que os Senas e o Nyungwés são dois grupos com a mesma origem e mesmas características etno-culturais. Terão sido um mesmo grupo numa primeira fase, tendo começado a divergir por diversas circunstâncias. Não tendo encontrado uma obra que versasse sobre as doenças que afligem os Nyungwés, recorremos a uma monografia sobre os usos e costumes dos Sena, da autoria de Rego Martins e publicada pela Sociedade de Estudos de Moçambique em 1960. Essa monografia refere que as principais doenças por ordem de frequência eram: (a bilharziose vesical, os parasitas intestinais, as desenterias (amibianas e outras), o sezonismo, as boubas, a sífilis, a genococia e a lepra.) Com o passar dos anos mais doenças foram surgindo em Tete e em Moatize. Durante o nosso trabalho de campo contactamos com autoridades de saúde, por forma obtermos o panorama epidemiológico dos dois contextos em estudo. “ Com o aumento da industrialização, tende a aumentar o número de casos de acidentes de trabalho. Houve também aumento de casos de doenças cardiovasculares e Infecções de Transmissão Sexual” (entrevista com a Directora Provincial de Saúde de Tete).

 

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Relacionando os dados fornecidos pela Directora Provincial de Saúde e a crescente industrialização em Tete, pode-se notar que a crescente mobilidade de pessoas de diversos contextos nacionais e internacionais, bem como da crescente mecanização altera ou pode alterar de certo modo o quadro epidemiológico da província. Relativamente aos acidentes de trabalho as grandes indústrias, sobretudo as mineradoras têm um grande número de operários, o que não causa estranhamento quanto à possibilidade da ocorrência e crescimento do número de acidentes de trabalho. Igualmente, a crescente pressão sob os trabalhadores pode ocasionar quadros de stress e de doenças cardiovasculares. De igual modo, a mobilidade e inter-cruzamento de pessoas gera uma multiplicidade de relacionamentos, incluindo os de índole afectiva, sexual e/ou até transacional e inter-geracional, o que pode servir de mote para o aumento das Infecções de Transmissão Sexual. 5.4.2. Gastronomia A base da alimentação do indígena segundo a monografia de usos e costumes dos Sena, assenta na produção e consumo de cereais. Para além dos cereais os Nyungwés cultivam e consomem amendoim, vários tipos de feijões, melancias, pepinos, batata doce, hortícolas, milho, abóbora. Além dos produtos agrícolas, os Nyungwé conhecem ainda uma grande variedade de folhas, frutos, raízes e tubérculos de árvores e plantas silvestres que utilizam para enriquecer a sua dieta alimentar, ou como simples recurso nos anos de penúria (idem). A agricultura dos Nyungwé é complementada pela criação animal, sobretudo de galináceos, caprinos e ovinos. Porém, apesar da criação, a carne habitualmente mais consumida é a de caça. A pesca é outra actividade complementar importante, principalmente para os Nyungwés que vivem próximo dos rios e dos lagos (idem). A dieta alimentar descrita acima diz respeito aos anos 60 do século XX.A nossa pesquisa foi realizada em Outubro de 2012 e visitamos alguns restaurantes e hotéis, aonde observamos os cardápios, por forma a relacionar os hábitos locais e globais de gastronomia.  

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Na observação sobre a gastronomia nos locais ora mencionados foi possível identificar nos cardápios pratos provenientes de outros contextos, como por exemplo: pizzas, bifes, pastas ou massas. Nalguns casos, apesar de produtos como o peixe serem locais, acabam sendo preparados de um jeito particular de outros contextos. Esta diversidade no cardápio advém do crescente fluxo de pessoas de outros contextos como: Libaneses, Brasileiros, Chineses, Portugueses e pessoas de outras nacionalidades que implantaram alguns restaurantes, hotéis e pastelarias. Por exemplo, na Vila de Moatize, existe uma pastelaria que serve uma miríade de refeições, que também tem uma filial na Cidade de Tete. Como se pode ver em seguida este facto reflete-se na tabela da opinião publica relativa a influencia da vinda dos estrangeiros nas culturas locais. A tabela abaixo apresenta o tratamento estatístico dos inquéritos que foram aplicados aos participantes da pesquisa. Nela pode se constatar que com o advento da segunda vaga de industrialização (vide o capítulo sobre a caracterização geográfica, sócio-económica e histórica cultural das urbes, concretamente na resenha histórica da exploração carbonífera em Tete) houve uma alteração considerável nos padrões culturais em algumas áreas como os hábitos alimentares, hábitos de vestuário, diversão, linguagem e relacionamento familiar. Comparando as vertentes vestuário e alimentação que são objecto de análise neste artigo, nota-se a partir dos dados facultados pela tabela que a maior alteração foi registada à nível do vestuário. No que toca à alimentação, os dados da tabela vêm reforçar a observação por nós efectuada durante o trabalho de campo, segundo a qual há um consumo paralelo de pratos locais e estrangeiros, com maior realce para estes últimos, na tentativa de atrair maior clientela com o aparecimento de muitos cidadãos estrangeiros que se fixam em Tete e Moatize por causa da actividade mineira.

 

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    Tabela 1: influência da industrialização nas práticas locais.

Frequency Valid

Missing

Percent

Valid Percent

Cumulative Percent

Costumes

24

11.7

13.3

13.3

Hábitos alimentares

27

13.1

15.0

28.3

Hábitos de vestuário

54

26.2

30.0

58.3

Diversão

23

11.2

12.8

71.1

Linguagem

5

2.4

2.8

73.9

Relacionamento familiar

3

1.5

1.7

75.6

N/A

44

21.4

24.4

100.0

Total

180

87.4

100.0

26

12.6

206

100.0

System

Total

Apesar de consumir-se em algumas partes de Tete e de Moatize pratos como pizzas, massas, pasta ou bifes, ainda se consomem também pratos típicos. Alguns turistas que visitam Tete querem experimentar as iguarias locais. Outrossim, a confecção de pratos de outros contextos é também reflexo da tentativa dos agentes económicos locais de responder às exigências do seu diversificado público. Com o advento da industrialização da crescente actividade de extracção mineira, Tete e Moatize têm estado a registar um boom em termos de imigração, principalmente por parte de pessoas de nacionalidade brasileira, devido à acção das duas maiores e mais conceituadas mineradoras brasileiras: nomeadamente: a Vale do Rio Doce e da Rio Tinto. Por exemplo, numa das instâncias hoteleiras uma funcionária, referiu que naquele local não é confeccionado e nem é comercializado nenhum prato local, em virtude de os clientes não procurarem pelos mesmos. Importa igualmente realçar que do mesmo modo que o global exerce a sua influência sobre o local, este último também pode influenciar o global. Tal facto é notório em certos restaurantes onde apesar de os proprietários serem estrangeiros confeccionam pratos locais como o peixe pende2, pese embora muitas das vezes a guarnição seja feita com produtos não locais.                                                                                                                         2

 

Peixe pende é um produto tipicamente de Tete.

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5.4.3 Vestuário Durante o trabalho de campo foi possível ver nas ruas de Tete e Moatize mulheres (maioritariamente jovens e de acordo com a nossa observação na faixa etária entre os 20-35 anos) vestidas de forma brasileira e/ ou ocidental. Os penteados são feitos através de extensões de cabelo importadas de diversos contextos como o Brasil, Índia e China. Ao mesmo tempo que é possível ver mulheres vestidas de modo ocidental e/ ou Brasileiro, também é possível ver outras mulheres vestidas de capulanas e outras vestes aparentemente locais. Contudo, por vezes, as mesmas mulheres que se vestem de modo ocidental e/ou brasileiro também se trajam de variadas formas, porque entendemos que as identidades são temporais, múltiplas e plásticas. A tabela abaixo ilustra a influência que a ida de estrangeiros tem estado a ter nalguns padrões culturais.

Na componente vestuário, que é objecto desta secção, tem estado a ocorrer

alterações, que a nosso ver são fruto do contacto, coexistência e convivência presencial e/ou até virtual entre o local e o global. Tabela 2: influência da vinda e contacto com estrangeiros nas culturas locais

Frequency Valid

Total

Valid Percent

Cumulative Percent

Costumes

22

10.7

12.3

12.3

Hábitos alimentares

44

21.4

24.6

36.9

Hábitos de vestuário

36

17.5

20.1

57.0

Diversão

23

11.2

12.8

69.8

Linguagem

10

4.9

5.6

75.4

Relacionamento familiar

Missing

Percent

4

1.9

2.2

77.7

N/A

40

19.4

22.3

100.0

Total

179

86.9

100.0

27

13.1

206

100.0

System

Se olharmos para o conceito de globalização proposto por McGrew (1997) que defende que a globalização são processos actuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaçotempo, tornando o mundo em realidade e experiência mais interconectado, pode concluir-se que se adequa à análise de todo o processo de comunicação, coexistência, convivência e interacção sócio-cultural que se tem estado a verificar em Tete e em Moatize.

 

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5.5. Em jeito de conclusão... Este capítulo abordou o local e o global tomando como exemplo os Municípios de Tete e Moatize, na província de Tete. Para tal num primeiro momento discutiu os conceitos de globalização, local e global. Num segundo momento procurou conciliar a teoria e a prática, servindo-se da discussão, ora realizada e, em seguida, dos dados recolhidos durante o trabalho de campo. O conceito de globalização que foi operacionalizado foi fruto da combinação da perspectiva de três autores, resultando num conceito que olha para o fenómeno como um processo complexo que interconecta o local e global, influenciando e/ou moldando o modus vivendi ou operandi dos indivíduos, penetrando até em esferas mais profundas das suas vidas. O local e o global são tidos neste trabalho como duas entidades que coexistem e convivem. No nosso trabalho foi possível notar que em Tete e Moatize estão a ocorrer metamorfoses em certas áreas como a saúde, a gastronomia e o vestuário. A globalização e o advento maciço da industrialização nos dois contextos estudados têm estado a ser um catalisador na relação entre o local e o global, todavia, as formas locais não foram extintas pela influência global tal como era de supor, ambas coexistem, criam e reformulam novas formas de ser, estar e de agir.

6. Referências bibliográficas ABOIM, Sofia. (2014). Globalization and identity: reassessing power, hybridism and plurality (working paper). Lisboa: ICS. ALBAGLI, Sarita. (1999). “Globalização e espacialidade: o novo papel do local”, in: globalização e inovação localizada: experiências de sistemas locais no Mercosul. Rio de Janeiro: UFRJ. CARLOS, Ana. (1996). O lugar no/do mundo. São Paulo: hacitec.

 

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HALL, Stuart. (2002). A identidade cultural na pós-modernidade (11ª edição). Rio de Janeiro: DP&A editora. KASSOTCHE, Florentino. (1999). Globalização-receios dos países em vias de desenvolvimento: reflexões sobre o caso de Moçambique. Maputo: ISRI. MAIA, António. (2010). Saúde e doença na cultura Nyungwé: um olhar antropológicoteológico. Dissertação de mestrado em teologia sistemática. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. MARTINS, Rego. (1960). Monografia sobre uso e costumes dos Sena. Lourenço Marques: Sociedade de Estudos de Moçambique. MELO, Alexandre. (2002). O que é globalização cultural (1ª edição). Lisboa: Quimera. SOUSA SANTOS, Boaventura. (1997). “Por uma concepção multicultural dos Direitos Humanos”. Revista crítica de Ciências Sociais, nº 48. Pp. 11-32. SILVA, Augusto Santos & MADUREIRA, Pinto José. (2007). “Uma visão global sobre as Ciências Sociais”, in: Metodologia das Ciências Sociais. Porto: edições afrontamento.

 

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