Capítulo de livro sobre o romance Tenda dos Milagres

July 26, 2017 | Autor: Ilana Goldstein | Categoria: Literatura Latinoamericana, Identidade Nacional, Literatura e Antropologia
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Myriam Fraga, Aleilton Fonseca e Evelina Hoisel [Organizadores]

Jorge Amado nos terreiros da ficção

TEXTOS APRESENTADOS NO CURSO JORGE AMADO 2011 I COLOQUIO DE LITERATURA BRASILEIRA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA SALVADOR- BAHIA 22 A 26 DE AGOSTO DE 2011

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In: Jorge Amado

Povo e Terra: 40 anos

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JORGE AMADO, PEDRO ARCHANJO E MANUEL QUERINO NA TENDA DOS MILAGRES ~

Ilana Seltzer Goldstein

reflexão que desenvolverei a seguir, no âmbito dessa multifacetada e merecida homenagem a Jorge Amado, é fruto de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo, junto ao Departamento de Antropologia Social (Goldstein, 2003). A pesquisa teve como foco a construção da identidade nacional no discurso literário e extraliterário de Jorge Amado, a partir da análise de um corpus bastante variado: manuscritos do escritor, cartas de fãs, folhetos de cordel, artigos de jornais de e sobre Jorge Amado e vários romances.

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Naquele trabalho, discuti a identidade cultural enquanto um fenômeno em constante construção, e procurei mostrar o papel da literatura na conformação e na reinvenção das identidades nacionais. Dei especial destaque à questão da mestiçagem na visão de Brasil do escritor baiano e relacionei suas ideias, em alguns momentos, às de outros pensadores brasileiros, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque cie Holanda e o próprio Manuel Querino. Foi por esse motivo que recebL

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o convite para compor uma mesa no Curso Jorge Amado, organizado pela Academia Baiana de Letras e pela Fundação Jorge Amado- convite que agradeço e que muito me honra. Meu texto está dividido em três partes. A primeira, de caráter panorâmico e introdutório, recupera alguns dos argumentos centrais de minha pesquisa sobre Jorge Amado, fornecendo um pano de fundo para as partes seguintes. A segunda verticaliza a análise de Tenda dos milagres (1969), que Jorge Amado dizia ser um de seus romances preferidos, e que discute de forma particularmente clara a questão racial brasileira. A terceira parte, mais conceitual e teórica, discute o conceito de identidade e também o "mito da democracia racial" no Brasil.

1. O Brasil mestiço e popular de Jorge Amado

Um primeiro elemento fundamental para se compreender o interesse de Jorge Amado pelos problemas e pelo futuro da nação brasileira, assim como seu apreço pelas manifestações populares e regionais é sua filiação à chamada "geração de 1930". O romancista explicou, certa vez: "Minha geração chegava para a vida e para a criação novelística sob a angústia do Brasil e do homem brasileiro, em busca de caminhos para a solução de nossos problemas (... )havia uma constante: a preocupação pelo Brasil, seu destino, seu futuro" (Manuscrito 482 da Fundação Casa de Jorge Amado). Devido a esse interesse pelo Brasil, mas também graças à enorme repercussão que seu trabalho conquistou, ao longo de sete décadas de produção, Jorge Amado acabou se tornando um verdadeiro formador de opinião sobre o Brasil. O economista Celso Furtado, por exemplo, quando dava cursos sobre a economia e a sociedade brasileiras, nos Estados Unidos, utilizava livros de Jorge Amado. Darcy Ribeiro, por sua vez, acreditava que "Jorge Amado fez mais pessoas terem uma imagem vívida e motivadora do que é o povo brasileiro': E o cineasta Nélson Pereira dos Santos proclamou Jorge Amado seu "grande professor de Brasil': De fato, Amado foi um grande comunicador, que conseguiu atingir setores sociais bastante variados. Isso porque, para além dos mais de 30 milhões de romances vendidos, no Brasil e no exterior, Jorge 34

Jorge Amado, Pedro Archanjo e Manuel Querino na Tenda dos milagres

Amado contava com outros canais - diretos e indiretos - de divulgação de suas ideias, tais como os discursos e falas públicas, os artigos em jornais, as adaptações de sua obra para cinema, teatro e televisão, os enredos de carnaval em sua homenagem e os mais de cinquenta folhetos de cordel que versam sobre ele e suas personagens. Transitando entre a Europa e o Rio Vermelho, entre seminários acadêmicos e terreiros de candomblé, o romancista baiano atuou como uma espécie de intermediário cultural. Em Navegação de cabotagem (1992), explicitou seu orgulho em dialogar com universos distintos: Privei com alguns dos mestres, dos verdadeiros, no universo da ciência, das letras e das artes: Picasso, Sartre, Fréderic Joliot-Curie, meu privilégio foi tê-los conhecido. Não menor o apanágio de ter merecido a amizade dos criadores da cultura popular da Bahia, de haver sido mote para trovadores populares. (p. 95). Assim, não foi por acaso que o romancista escolheu Exu como logotipo, desenhado pelo amigo Carybé. O orixá, associado ao movimento e à passagem na mitologia ioruba, vinha impresso na correspondência pessoal do escritor, aparece nos materiais da Fundação Casa de Jorge Amado e também consta da contracapa dos romances, inclusive na nova edição da Companhia das Letras, iniciada em 2008. A capacidade de transitar entre a cultura popular e a letrada e de dialogar com os mais diversos atores sociais é, diga-se de passagem, um primeiro traço que permite aproximar Jorge Amado é Manuel Querino -e também uma das marcas de Pedro Archanjo, protagonista de Tenda dos milagres (1969). Antes de comentar mais detidamente Tenda dos milagres, convém relembrar como era a representação do Brasil de Jorge Amado, em linhas gerais. Seja como militante político no início da carreira, seja como romancista que cantava o povo mestiçado, suas festas e seus sabores, Jorge Amado sempre discutiu questões de âmbito nacional. Na verdade, sua representação do Brasil era a mesma que fazia da Bahia: Jorge Amado sempre dizia que a Bahia era a "célula-mater" do país. A baianidade/brasilidade retratada e idealizada pelo romancista, ao 35

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mesmo tempo em que condensa elementos objetivos e observáveis, distorce ou inventa outros aspectos da sociedade brasileira - que passam a existir para os leitores, telespectadores e admiradores em geral. No discurso literário e extra-literáriode Jorge Amado, a mestiçagem biológica e cultural - sobretudo entre portugueses e africanos - funcionava como uma espécie de eixo em torno do qual foram se agregand.o outras supostas características d.o Brasil. Existem elementos recorrentes nos romances, q_ue eram acionad.os também em pronunciamentos pú.b\kos d.o escritor. 1. No Brasil, a arte, a culinária, a religiosidade e a população mestiças - e isso é uma de nossas maiores virtudes, fonte de uma de riqueza cultural, que serve, inclusive, como inspiração para o dores eruditos; 2. Apesar dos problemas sociais e desigualdades econôniica.~: castigam grande parte dos brasileiros, o otimismo, a solidaried.if~ criatividade e o amor à festa conseguem imperar e nos dar continuar lutando; 3. As relações sociais, no Brasil, são marcadas pela mtlllllu~ pelo personalismo, tornando tênues as fronteiras entre o privado - característica que, ao mesmo tempo que garante m:.lUUlJ:L' de e informalidade às interações, traz consigo o risco da poder por certos indivíduos; 4. A identidade brasileira é vivenciada e permanentementete(jJ da por meio dos cinco sentidos e, provavelmente por isso, os as cores e os temperos sejam ingredientes fundamentais nos 5. O Brasil desenvolveu um modelo de relações raciais no qual há maior possibilidade de convivência e troca que em outros países, como Estados Unidos e Cuba - esse chamado por Jorge Amado de "humanismo brasileiro" e grande contribuição ao mundo. Para dar um primeiro exemplo de como esses navam matéria-prima do discurso amadiano, no que se refere zação da cultura popular, o escritor declarou, em seu discurso na Academia Brasileira de Letras (1961), haver frequentado

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Jorge Amado, Pedro Archanjo e Manuel Querino na Tenda dos milagres

raparigas" e botecos quando jovem, ter saído de saveiro com os pescadores e, antes dos dezoito anos, já ter recebido seu primeiro título no candomblé: "os anos de adolescência na liberdade das ruas da Bahia, misturado ao povo do cais, dos mercados e feiras, nas rodas de capoeira e nas festas populares foram minha melhor universidade': No plano literário, a técnica narrativa folhetinesca, inspirada em elementos da cultura popular e da tradição oral aproximava-o do grande público. Versos de sete sílabas - como no cordel e nas modinhas populares - constantes reviravoltas, heroísmo, maniqueísmo, palavrão e linguagem das ruas, longos títulos oferecendo alternativas e antecipando o desdobrar do enredo, eram todos ingredientes caros a Jorge Amado. A título de ilustração, em Jubiabá (1935), seu primeiro sucesso, o herói Balduíno "dava a vida por uma boa história, melhor ainda se esta história fosse em verso''. Aliás, o sonho de Baldo era ter sua vida contada em um ABC. Gabriela Cravo e Canela (1958) deixa bem claro que "não havia no mundo comida capaz de comparar-se com essa da Bahia': Em Tenda dos milagres (1969), a festa popular está em todos os cantos: a comemoração dos cinquenta anos do herói Pedro Archanjo é descrita como uma festa de arromba que durou uma semana; é vibrante também a passagem em que se narra a estreia do Afoxé Filhos da Bahia. O próprio funeral de Pedro Archanjo é praticamente uma festa. Jorge Amado foi igualmente sagaz nos retratos e imagens que criou do modo brasileiro de driblar a lei e dar um "jeitinho': com base no prestígio pessoal. O antropólogo Roberto DaMatta (1985) mostrou, em sua análise de Dona Flor e seus dois maridos, que parentes e amigos das personagens amadianas interferem constantemente nas ações, "quebrando galhos" 1• Em Tenda dos milagres há uma passagem em que as personagens praticamente encenam o ritual batizado por Roberto DaMatta (1978) de "você sabe com quem está falando?". A situação é a que se segue: o corpo de Pedro Archanjo está caído na rua, os amigos querem removê-lo, limpá-lo e vesti-lo com roupas decentes

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Vadinho, por exemplo, só consegue impressionar a mãe de Flor porque um parente o ajuda a armar um encontro entre os dois no palacete de um potentado local; o pianista que toca na casa do Major Tiririca, assim o faz porque lhe deve favores.

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para o enterro. Porém, um jovem soldado fardado, que passava por ali, ordena que ninguém se mexa antes de a polícia chegar. Diante da insistência da população, saca as armas e proclama: "Quem vier morre!': Logo em seguida, o guarda noturno Everaldo Pode-Mansinho se aproxima, é posto a par do problema e alerta: "Praça, é melhor você cair fora enquanto é tempo, você perdeu a cabeça e desrespeitou o Major': Quando o soldado é informado de que está diante do famoso Major Damião2 , desculpa-se, passa por cima da ordem oficial que recebera, permitindo que o corpo seja levado dali. A ironia é que Damião não é major do exército, como o título sugere; a patente lhe foi concedida pela população do Pelourinho, porque, informalmente, atuava como uma espécie de advogado, ajudando a defender acusados e arbitrando disputas. Jorge Amado demonstra sensibilidade ao revelar - bem de acordo com o "homem cordial" 3 de Sérgio Buarque de Holanda (1936) -o outro lado do "jeitinho brasileiro': que consiste na atualização autoritária e cotidiana das hierarquias escondidas tão valorizadas em nossa sociedade da "cordialidade;'. Eram recorrentes também as alusões do romancista ao sincretismo e à mestiçagem. "Os mitos brasileiros" (1990) é o nome de um manuscrito que foi lido por Jorge Amado no Salão do Livro de Milão. O autor abriu sua fala constatando que Santo Antônio é o mais popular entre os santos trazidos "às florestas virgens, do outro lado do mar" e que, aqui, tornou-se "negro retinto". Após descrever minuciosamente

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Note-se que o Major Damião de Souza, no romance, é uma alusão ao Major Cosme de Faria, conhecidíssimo em Salvador e apresentado em Bahia de Todos os Santos (1945). Mais um nome jocoso criado por Amado: Cosme remete imediatamente a Damião. No sincretismo afrobrasileiro, os dois "consagram uma gemelaridade que caracteriza o próprio universo, desdobrado em dois mundos na cosmologia nagô (... )" (Trindade-Serra, 1996, 156).

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Sérgio Buarque escreveu, em Raízes do Brasil, que os colonizadores ibéricos cultuavam a personalidade e formavam seus vínculos a partir de sentimentos. Defendeu o historiador que, como desdobramento, o "homem cordial" brasileiro era terno e generoso apenas na superfície, a fim de obter o que não conseguia por mérito ou direito, supervalorizando a esfera privada, a família, os amigos, e driblando ou desconhecendo a esfera pública.

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Jorge Amado, Pedro Archanjo e Manuel Querino na Tenda dos milagres

o ritual das moças que querem encontrar um noivo, Jorge Amado contou que a Igreja de Santo Antonio dos Negros, no Pelourinho, foi construída por escravos, e era nesse templo que vinham assistir à missa e fazer suas orações os negros cativos e as pessoas simples. Desse modo, "por trás da imagem de Santo Antonio, habita Ogum e, desde que se atente bem, pode-se constatar que o altar-mor é uma forja, uma oficina de ferreiro, o pegi de Ogum, sua casà' (pasta e manuscrito s.n., p.2). Explica, então, que Ogum é o senhor dos metais e que se fundiu a Santo Antonio, assim como São Jorge foi associado a Oxossi, São Jerônimo a Xangô, São Lázaro a Omolu, Santa Bárbara a Yansã, São Roque a Oxumaré, Nossa Senhora a Yemanjá, Jesus Cristo a Oxalá e o irreverente Exu, erroneamente, confundiu-se com o diabo católico. Um outro exemplo significativo reside em seu discurso na Universidade de Bari, em 1972, ao agradecer por um prêmio: o escritor afirmou que a honraria fora concedida, não ao "modesto romancistà: mas ao povo baiano; com quem teria aprendido tudo quanto conhecia. Em suas palavras: Desejo vos dizer que a nação brasileira vem se construindo e se afirmando (... ) como o resultado da mistura, persistente e sempre maior, de sangues e de raças, da mistura de culturas; a miscigenação e o sincretismo tem sido nossas armas na batalha do racismo( ... ) Dessa nossa originalidade racial e cultural (... ) nasce a criação brasileira: a música, a dança, a literatura, a arte, o cinema, o carnaval, o ritmo" (pasta 17, manuscrito 500, p. 6). A questão da mestiçagem e do sincretismo religioso também perpassam a ficcção amadiana. Em Gabriela Cravo e Canela, Nacib, marido da protagonista e dono do restaurante onde ela trabalha, personifica ao mesmo tempo o "jeitinho brasileiro" e a tolerância intercultural. Nacib sente-se um perfeito brasileiro, apesar de falar árabe em situações extremas e contar casos da Síria. No início do romance, o narrador explica que, em Ilhéus, o processo de naturalização é muito fácil. O tabelião cobra barato para colocar a "operação legal" ao alcance de todos. Portanto, ao mesmo tempo em que Jorge Amado ressalta

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nossa flexibilidade em incorporar elementos estrangeiros, denuncia o uso privado da esfera pública. Não é por acaso que o título da primeira parte de Gabriela traz, realçado em corpo maior do que as outras linhas e em negrito: Um brasileiro das Arábias. O detalhe ganha sentido quando referido a uma declaração de Jorge Amado à biógrafa Alice Raillard: "era muito importante, para mim, marcar este aspecto da formação da nação brasileira, que é a ausência de preconceito em relação a um homem que vem de fora, do estrangeiro que entra no Brasil, começa a participar da vida brasileira( ... )" (Raillard, 1992, p. 278). Em O Compadre de Ogum (1985/1964), há uma passagem hilária e bem construída na qual um padre católico incorpora Exu no meio de uma cerimônia de batismo, pois o orixá era o padrinho secreto da criança. Em Tenda dos milagres, Pedro Archanjo namora com uma loirinha escandinava, Kirsi e todo o enredo desse romance gira em torno do antagonismo entre a visão otimista da miscigenação - personificada por Pedro Archanjo e as teorias raciais segundo as quais a mestiçagem levaria à degeneração - representadas pelo professor Nilo Argolo. Jorge Amado assim sintetizou o livro: "Trata-se da questão da formação da nacionalidade brasileira, da luta contra os preconceitos, principalmente o racial, contra a pseudociência, a pseudoerudição europeizante, contra as teorias daquele francês 4 que foi embaixador do Brasil" (Raillard,1992, p.105). Passemos, então, à tenda na qual Jorge Amado, Pedro Archanjo e Manuel Querino se encontraram.

2. Tenda dos milagres: encontro marcado entre Pedro Archanjo e Manuel Querino Praticamente toda a ação de Tenda dos milagres se desenvolve no centro histórico de Salvador. O protagonista do livro é Pedro Archanjo,

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O "francês" ao qual Amado se refere é Arthur de Gobineau, autor de Essai sur I' inegalité des races humaines (1853), que pregava que a mestiçagem seria sempre danosa, os mestiços, desequilibrados, e que a civilização só seria possível onde houvesse "raças puras".

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Jorge Amado, Pedro Archanjo e Manuel Querino na Tenda dos milagres

melhor amigo de Lídio Corró - o dono da tenda, que pinta milagres sob encomenda para as pessoas que querem agradecer a seus santos protetores. Pedro Archanjo "nasce" em 1868, órfão de um pai morto na guerra do Paraguai, e é criado a duras penas pela mãe. Mulato bonito, forte, beberrão, louco por um "rabo de saià: é cobiçado por todas as mulheres do Pelourinho, mas seu verdadeiro amor, Rosa de Oxalá, dessa não chega perto, pois ela é amante de seu amigo-irmão Lídio Corró. Vive de bar em bar, de mulher em mulher, conversador, contador de casos. Promove apresentações de dança, canto e até uma animação do tipo "lanterna mágicà: na tenda de Lídio Corró. Quem narra a história de Pedro Archanjo é o sociólogo e poeta Fausto Pena, no ano da comemoração dos cem anos de nascimento de Archanjo, sob encomenda do "famoso" professor James Levenson, da Columbia University. O romance está estruturado em dois eixos temporais paralelos, que vão se alternando. Um nos conta a vida sofrida de Pedro Archanjo e suas ideias sobre mestiçagem, situando-se cronologicamente nas primeiras décadas do século; o outro narra a preparação dos eventos comemorativos de seu primeiro centenário, em 1968, momento no qual o outrora perseguido Archanjo é transformado em herói. O primeiro eixo temporal é estruturado em torno da disputa ideológica entre Archanjo e Nilo Argola, professor da Faculdade de Medicina. O embate se dá na Bahia, no início do século. Explica o narrador: Nos começos do século, a Faculdade de Medicina encontrava-se propícia a receber e a chocar as teorias racistas, pois de~ara paulatinamente de ser o poderoso centro de estudos médicos fundado por Don João VI, fonte original do saber científico no Brasil, a primeira casa de doutores da matéria e da vida, para transformar-se em ninho de subliteratura, da mais completa e acabada, da mais retórica, balofa e acadêmica, a mais retrógrada. Na grande Escola desfraldaram-se então as bandeiras do preconceito e do ódio (p.l40).

O ficcionista criava apoiado em conhecimento histórico. A partir de 1870, devido às epidemias de febre amarela e varíola, aos doentes e

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aleijados que voltavam da Guerra do Paraguai, à intensa e caótica urbanização que aumentava as taxas de criminalidade, desajustamentos psicológicos e embriaguez, o papel do médico adquiriu um novo valor. Buscava-se criar uma "ciência brasileira original", com base na particularidade de nosso clima, etnia, etc. e uma medicina que participasse ativamente na "curà' da sociedade, considerada um "corpo doente". Lilia Schwarcz indica uma especificidade na produção científica baiana, qual seja, o vínculo estabelecido entre doenças e raças, como se a raça pré-dispusesse os indivíduos a certas doenças ou à criminalidade (Schwarcz,1993, p.189-235). Um dos principais nomes da Faculdade de Medicina da Bahia, nessa época, foi Nina Rodrigues, com seu livro de estreia As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil (1894). Partindo da ideia de que as raças humanas atravessavam fases distintas dentro do aperfeiçoamento evolutivo e que, consequentemente, não tinham o mesmo desenvolvimento cerebral/intelectual, Nina Rodrigues concluía que a "teoria do livre arbítrio': no Direito, era irreal e não poderia servir de base à carta constitucional de um país mestiço como o Brasil. Para Nina Rodrigues, faziam -se necessárias medidas drásticas: confinamento em manicômios, exames médicos minuciosos em busca de atavismos, leis diferenciadas para as quatro "sub-regiões" do país de acordo com suas composições raciais e outras medidas "eugênicas': como a esterilização. A possibilidade de um Brasil futuro completamente mestiço aterrorizava Nina Rodrigues, pois os mestiços eram caracterizados por ele como indolentes, apáticos, imprevidentes, impulsivos - por isso tenderiam ao crime-, além de sexualmente perversos e "extra-excitáveis". Em nenhum momento Jorge Amado deixa claro se Nilo Argolo é uma alusão direta a Nina Rodrigues, mas dá, entretanto, alguns sinais que levam a concluir dessa maneira. Em primeiro lugar, os títulos das publicações do personagem Nilo Argolo, "catedrático de medicina legal na Faculdade da Bahià': A degenerescência psíquica e mental dos povos mestiços - o exemplo da Bahia (citado à página 169 de Tenda dos milagres); La paranoia chez les negres et métis (aparece à página 217); Mestiçagem, Degenerescência e Crime; As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil (sim, é idêntico) e Antropologia Patológica- os Mestiços (os três últimos, citados às páginas 272 e 273). Uma segunda

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Jorge Amado, Pedro Archanjo e Manuel Querino na Tenda dos milagres

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pista evidente, apesar do ligeiro anacronismo - pois Nina Rodrigues viveu de 1862 a 1906 -,é a semelhança entre os nomes Nilo e Nina. Mas o que os aproxima ainda mais são as opiniões atribuídas a Nilo Argolo no romance. Algumas ideias de Nilo Argolo aparecem em forma de citação de texto acadêmico, na boca de Pedro Archanjo: Meu Deus, onde fora o professor buscar afirmações assim tão categóricas? "Maior fator de nosso atraso, de nossa inferioridade, constituem os mestiços uma sub-raça incapaz': Quanto aos negros, na tfpinião do professor Argolo, não tinham ainda atingido a condição humana:' em que parte do mundo puderam os negros constituir Estado com um mínimo de civilização?' , perguntara ele a seus colegas no Congresso.(p.l20).

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Outras são apresentadas pelo narrador, por meio do recurso do discurso indireto livreS: o professor de Medicina Legal resumia e ordenava suas conhecidas ideias e teses sobre o problema de raças no Brasil. A superioridade da raça ariana. A inferioridade de todas as demais, sobretudo da negra, raça em estado primitivo, sub-humano. A mestiçagem, o perigo maior, o anátema lançado contra o Brasil, monstruoso atentado: a criação de uma sub-raça no calor dos trópicos, sub-raça degenerada, incapaz, indolente, destinada ao crime. Todo o nosso atraso devia-se à mestiçagem.( ... )" (p.319). O corpo de leis proposto em seguida por Nilo Argolo inclui a segregação de negros e mestiços em áreas inós-

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O discurso indireto livre é uma técnica de narração que cria cumplicidade entre narrador e personagem, deixando ambíguo quem emite o enunciado. Ilustrando: no discurso direto ficaria "Ele perguntou: - Por que Nilo escreveu aquele horror sobre os mestiços?"; o discurso indireto seria: "Ele perguntou por que Nilo escrevera aquele horror sobre os mestiços': O indireto livre combina os dois, não apresenta dois pontos, aspas ou travessão, nem os pronomes interrogativos "que" ou "se": ''Ele caminhava pensativo. Por que Nilo teria escrito aquele horror sobre os mestiços?':

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pitas da Amazônia e do Centro-Oeste, a aquisição de um território na África para onde seriam depois deportados e um decreto proibindo o casamento entre brancos e elementos "portadores de sangue afro". Nilo Argolo é uma personagem crucial, que desperta a revolta e a curiosidade científica em Archanjo. 6 Archanjo sempre fora uma espécie de "promotor cultural" no Pelourinho e resistira valentemente às invasões da polícia nos terreiros de candomblé, mas foi a partir de seu contato com a Faculdade de Medicina- durante o tempo em que trabalhou como bedel - que começou a ler e sistematizar suas opiniões, além de ter se familiarizado com os jargões científicos e teorias em voga na época, passando então a combatê-los no mesmo registro. Porém, o narrador insiste em que não só as leituras e provocações de Nilo Argolo, mas também a vivência cotidiana de Pedro Archanjo tenha sido fundamental em sua formação: à proporção que páginas e capítulos foram nascendo, Pe-

dro Archanjo esqueceu professores e teorias, não mais interessado em desmenti-los numa polêmica de afirmações para a qual não tinha sequer o menor preparo, e sim em narrar o viver baiano, as misérias e as maravilhas desse cotidiano de pobreza e confiança; em mostrar a decisão do perseguido e castigado povo da Bahia( ... )" (p.l64). Lídio Corró possui uma precária oficina tipográfica, na qual se torna possível a Pedro Archanjo imprimir seus livros. A frase inicial

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Permito-me aqui uma digressão sobre os nomes Arcanjo e Argolo. A palavra arcanjo quer dizer "anjo de ordem superior", sugerindo um ser leve, bom, capaz de voar por sobre as coisas. Argolo, por outro lado, remete à argola de ferro, emblema da escravidão. Essas especulações sobre possíveis significados dos nomes das personagens foram encorajadas, a posteriori, por uma citação que encontrei a esse respeito: "O

nome da personagem funciona frequentemente como um indício, como se a relação entre o significado e o significante da personagem fosse motivada intrinsecamente. (... ) Pode revelar estrato social, qualidade física etc. (. ..)"(Aguiar e Silva, 1979:275).

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Jorge Amado, Pedro Archanjo e Manuel Querino na Tenda dos milagres

do primeiro livro que o protagonista escreve, A Vida Popular na Bahia, é seu clarim de guerra - como também o de Jorge Amado e Manuel Querino: "É mestiça a face do povo brasileiro e é mestiça sua cultura" (p.165). Em seu segundo livro, Archanjo faz previsões para o futuro: "Formar-se-á uma cultura mestiça de tal maneira poderosa e inerente a cada brasileiro que será a própria consciência nacional e mesmo os filhos de pais e mães imigrantes, brasileiros de primeira geração, crescerão culturalmente mestiços" (p.258). E vai além, considerando a mestiçagem um bem, uma riqueza, como transparece num parágrafo da terceira obra, que imprime com muito esforço na oficina tipográfica de Lídio Corró, Apontamentos Sobre a Mestiçagem nas Famílias Baianas7: "Se o Brasil concorreu com alguma coisa válida para o enriquecimento da cultura universal, foi com a miscigenação - ela marca nossa presença no acervo do humanismo, é a nossa contribuição maior para a humanidade" (p.141). Assim como se fez um paralelo entre Nilo Argola e Nina Rodrigues, pode-se também relacionar Pedro Archanjo com um autor "de carne e osso': que viveu na Bahia no início do século: justamente Manuel Querino. Desta vez, a ponte é sugerida pelo próprio autor do romance, já que uma das epígrafes de Tenda dos milagres é de Querino: "O Brasil possui duas grandezas reais: a uberdade do solo e o talento do mestiço': Amado revelou sua admiração por Manuel Querino também em uma entrevista: "Manoel Querino dizia que o Brasil tem duas coisas fundamentais: o seu solo e o mestiço. Isto é verdade. Todos esses horrores, toda miséria, toda essa infinita pobreza, a opressão( ... ) tudo isso terá fim'' (Amado apud Gomes, 1981, p. 34). Manoel Querino é descrito nos manuscritos de Jorge Amado como "um dos mestres responsáveis pelo aprofundamento do processo de formação da nacionalidade brasileirà' (pasta 14, manuscrito 397, sem data). Um último detalhe digno de nota é que, no acervo que Jorge Amado doou

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Apontamentos... é a obra que lhe faz perder o emprego de bedel, por provar, numa árvore genealógica, a ascendência negra de Nilo Argola. O eminente professor, possesso, inicia uma campanha contra Pedro Archanjo, que culmina .em sua demissão e, posteriormente, em prisão.

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à Fundação que leva seu nome, consta um livro de Querino, A Bahia de Outrora (1916), precedido de dados biográficos e lista de publicações do autor, que podem ter fornecido subsídios para a construção da personagem Pedro Archanjo. Como se sabe, Manuel Querino foi uma voz destoante entre os cientistas da virada do século XIX para o XX, por criar uma imagem do negro entre a vítima e o herói. Vítima, devido ao "modo desdenhoso e injusto por que se procura deprimir o africano (... ) somente a falta de instrução destruiu o valor do africano" (Querino,1955/1916, p. 22-3). Herói, pois, bem adaptado ao clima quente, e conhecedor de técnicas de mineração e outros trabalhos manuais, o africano "foi o verdadeiro elemento econômico criador do país e quase o único" (Querino,1955/1916, p. 40). Em um ato de ventriloquismo, a fala de Jorge Amado se confunde com a de Pedro Archanjo, herói de Tenda dos milagres - e ambas se inspiram, provavelmente, nas ideias de Manuel Querino. Há várias semelhanças nas biografias de Querino e Archanjo: infância atribulada, perda precoce dos pais, origem humilde, cor negra, autodidatismo e passagem pelo Liceu de Artes e Ofícios. Manuel Querino foi um dos fundadores do Liceu de Artes e Ofícios e é lá que Pedro Archanjo conhece Lídio Corró. Ambos lutam por causas trabalhistas e operárias: Querino militou pela República, pela abolição e empenhou-se na criação de uma liga operária, em 1875, e Archanjo, além de resistir às invasões de terreiros, no final da vida, mete-se numa greve dos funcionários de bonde. Além disso, os dois escrevem sobre uma cultura da qual fazem parte e com a qual têm empatia. Querino e Archanjo pretendem retratar, com riqueza de detalhes, hábitos, rituais, crenças e receitas dos descendentes de escravos, de uma forma que só se faz "de dentro" da comunidade. Pedro Archanjo, ·no romance, e Manuel Querino, na vida real, conseguiram pouca notoriedade em vida, tendo atingindo reconhecimento póstumo. As palavras do prefaciador Pinto Aguiar a um livro de Manuel Querino poderiam também estar em Tenda dos milagres: Foi consecutivamente preterido em todas as ocasiões em que lhe era de justiça a promoção. Esqueciam-no os poderosos do momento. (... )faleceu a 14 de fevereiro de 1923.

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Jorge Amado, Pedro Archanjo e Manuel Querino na Tenda dos milagres

E então seus trabalhos começaram a ter certa notoriedade na Bahia. Escreveram-se louvores à sua memória. Os seus biógrafos contaram a história do humilde professor negro(. .. ) defensor das causas dos trabalhadores e operários de seu nível, do estudioso das questões do negro no Brasil" (Aguiar apud Querino,l955/1916, p. 11).

Archanjo, no romance, morre vinte anos depois de Querino, e nunca chega a professor. Mas os títulos dos livros não deixam dúvidas com relação à conexão: Archanjo "publicà: em 1918: Influências Africanas nos Costumes da Bahia, que lembra uma publicação de Querino, de 1916: A Raça Africana e Seus Costumes na Bahia. O livro em que Archanjo quer mostrar que não há "sangue puro" na Bahia, de nome Apontamentos sobre a mestiçagem na família baiana, parece uma referência a Homens de Cor Preta na História (1923), no qual Querino lista vários negros e mestiços ilustres, como Dr. Caetano Lopes de Moura, "médico particular de Napoleão Bonaparte", e Miguel Moreira de Carvalho, que "com muito brilho, tomou parte em conferências pedagógicas, nas quais discutiu questões de ensino com erudição" (Querino,1955/1916, p. 163). Há ainda o parentesco entre A Culinária Baiana: Origens e Preceitos, última "publicação" de Archanjo, e A Arte Culinária na Bahia (1926), de Manuel Querino. No entanto, duas ressalvas merecem ser feitas, a propósito dessa aproximação. Existem certas ambiguidades e contradições na obra de Querino que, aparentemente, escaparam a Jorge Amado. A principal delas é atribuir a invasores árabes, que já haviam atingido "alto grau de culturà: a introdução dos conhecimentos indispensáveis à vida dos africanos nas florestas e montanhas (Querino, 1955/1916, p.128). Da mesma forma, as nuances do pensamento de Nina Rodrigues - que teve alguns méritos, como o fato de ter inaugurado os estudos sobre negros no Brasil ou ainda de ter reunido uma importante coleção de arte afrobrasileira - desaparecem na leitura maniqueísta de Jorge Amado. O ficcionista simplifica para ganhar em clareza e didatismo ou talvez simplesmente por se tratar de um romancista e não de um cientista social. De qualquer maneira, utiliza outros autores sempre dentro de seu viés, para servir à sua ficção e à mensagem que com ela quer

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propagar. Em Tenda dos milagres, sua visão é um tanto maniqueísta e necessariamente simplificadora: transforma Archanjo/Querino em herói, e Nilo/Nina em vilão. A segunda ressalva é que, embora em minha exposição estejam sendo privilegiadas as semelhanças entre Manuel Querino e Pedro Archanjo, o herói de Tenda dos milagres tem também muito do próprio Jorge Amado e de outras pessoas que impressionaram o escritor, como Miguel Santana. Há que se fazer justiça a esta outra personalidade baiana que certamente também inspirou a construção da personagem Pedro Archanjo: Miguel Arcanjo Barradas de Santana (1898-1974). Empresário pertencente a uma antiga família-de-santo, Miguel Santana tornou-se, ainda jovem, um ogã confirmado de Omolu no Engenho Velho e, mais tarde, um dos primeiros Obás de Xangô, no Axé Opô Afonjá. Fez muitos benefícios aos terreiros, era um grande conhecedor da cultura popular baiana e patrocinou obrigações de irmãos-de-santo sem condições financeiras. Jorge Amado a ele se refere, de modo elogioso, em Bahia de Todos os Santos e transforma-o em personagem também em Tereza Batista Cansada de Guerra. 8 Por subjetiva- e às vezes reducionista- que seja a versão amadiana do problema racial brasileiro, bem como sua leitura dos autores e teorias, elas chegaram e chegam a milhões de pessoas, devido ao sucesso editorial dos romances, mas também às adaptações de Jorge Amado para cinema, teatro, televisão etc. Tenda dos milagres virou minissérie na Rede Globo, em 1985, com adaptação de Aguinaldo Silva e Regina Braga e tema de abertura de Caetano Veloso. No elenco, estavam nomes de peso como Milton Santos, Nicete Bruno e Tânia Alves. Já a adaptação do romance para o cinema ficou a cargo de Nelson Pereira dos Santos, em filme lançado no ano de 1977. Pedro Archanjo dá nome também a uma conhecida praça do Pelourinho - bem mais conhecida que a praça Manuel Querino, em Salvador. Portanto, a partir do

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Agradeço, aqui, a Antônio Carlos Santana, presente em uma palestra que dei no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, por ter me mostrado que seu avô - Miguel Santana - foi uma grande inspiração na elaboração do romance e na construção de Pedro Archanjo.

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romance e de seus desdobramentos, Amado teve o mérito de expor ao grande público um debate histórico e fundante do pensamento social brasileiro, de apresentar ao grande público o nome e as ideias de Manuel Querino, por meio de um enredo surpreendente e acessível a qualquer leitor.

3. Considerações finais: problematizando o conceito de identidade e o "mito das três raças" É possível - e necessário - destrinchar e problematizar cada um

dos pilares que sustentam a representação amadiana da identidade baiana/brasileira. Em primeiro lugar, qualquer processo de construção identitária é um embate entre, de um lado, elementos recorrentes de um repertório cultural, e, de outro, novos valores ou práticas, que passam a fazer sentido e se tornam estratégicos em novos contextos históricos. Do ponto de vista das Ciências Sociais, não existe uma identidade cultural única, nem definitiva, pois se trata de um processo dinâmico de construção de fronteiras entre as sociedades e grupos sociais. Em outras palavras, a identidade não existe objetiva, nem definitivamente, por isso insisto em tratá-la como representação. O interessante das representações é que elas não são nunca um simples decalque da realidade; ao contrário, os elementos representados são sempre triados, transformados ou distorcidos. Assim, a representação da identidade baiana/brasileira de Jorge Amado nada mais é que um recorte parcial da sociedade e da história brasileiras. A releitura que Amado· faz do "mito" da democracia racial ressalta a harmonia dos encontros étnico-culturais e divorcia-os das turbulências no nível socioeconômico. Salienta que não houve, no Brasil, formação de guetos fechados nas grandes cidades; brancos jogam capoeira t7 frequentam terreiros de candomblé; o padrão de beleza está mais para a "morenà: que para a "branquinhà: O que Jorge Amado fez foi absolutizar e romantizar uma parcela da realidade. O escritor não ignorava que a discriminação existe e que as condições de vida de brancos e negros são, de fato, distintas. Contudo, enfatizava a permeabilidade da fronteira entre brancos e negros e incorporava, nos

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romances, uma maneira de discriminar mais sutil e envergonhada que a de outros países. Acima de tudo, Jorge Amado tinha uma utopia: o Brasil seria uma nação forte, com futuro promissor, se soubesse fortalecer seu potencial de miscigenação em todas as dimensões. E isso certamente aprendeu com Manuel Querino. Eu não poderia deixar de mencionar o quanto a discussão da questão racial no Brasil é complexa e polêmica. Embora não seja possível esgotá -la aqui, vale lembrar que são antigas e variadas as raízes do "mito da democracia racial" brasileira. O alemão Von Martius, um dos pioneiros em escrever a história do Brasil sob o prisma dos elementos étnicos, afirmou, em 1840, que "a vontade da Providência predestinou o Brasil a essa mesdà: O crítico literário Sílvio Romero, cinquenta anos depois, considerava o homem mestiço "o verdadeiro brasileiro" e apontava a miscigenação, física e moral, como o centro da História do Brasil. Mesmo Nina Rodrigues - pessimista como grande parte da . geração do final do século XIX - sustentava que "os prejuízos de cor, que certamente existem entre nós, são pouco apurados e intolerantes por parte da raça branca. Em todo caso, muito menos do que dizem ser na América do Norte". Manuel Querino foi pioneiro ao positivar a mestiçagem brasileira e ao valorizar a contribuição do elemento afrobrasileiro. No entanto, foi Gilberto Freyre, nos anos trinta do século passado, que - apesar das acusações que sobre ele pesam por ter "adocicado a escravidão" - conseguiu fazer chegar ao grande público uma releitura particularmente positiva do "mito das três raças': Em Casa Grande & Senzala, notabilizou-se por sustentar que "a miscigenação, que largamente se praticou aqui, corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme, entre a casa-grande e a mata tropical, a casa-grande e a senzalà: Já em Sobrados & Mucambos (1951), Freyre reservou ao mestiço um papel fundamental na "reciprocidade entre culturas': atuando como uma espécie de intermediário. A democracia racial chegou mesmo a servir ao discurso oficial dos governos militares: Castelo Branco promoveu a ideia do Brasil "cadinho de raças" para enfatizar a harmonia entre regiões e realidades diferenciadas. E o mais impressionante é o eco disso no senso-comum

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e no imaginário dos brasileiros. Em uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em 1995, dos cerca de 5000 entrevistados, a maioria (73%) concordou totalmente com a assertiva "uma coisa boa do povo brasileiro é a mistura de raças': Sem contar que o padrão de beleza, no Brasil, está mais para a morena do que para a "branquinhà'. Ao mesmo tempo, o "mito da democracia racial" vem sendo criticado por alguns pesquisadores. Florestan Fernandes, na década de 1950, acusou-o de permitir às camadas dominantes manterem seus privilégios sem competição, nem confronto. Na mesma direção, Clóvis Moura, autor de Sociologia do Negro Brasileiro (1988), argumenta que a ideia de democracia racial faz parte dos "mecanismos ideológicos de barragem aos diversos segmentos discriminados". O professor da USP Kabengele Munanga também acredita que nosso "mito fundador" resulta prejudicial, pois os empréstimos culturais entre segmentos étnicos dificultariam, aqui, a formação de movimentos de "ação afirmativà' e com "identidade racial e cultural" puras: "uma tal postura esbarra na mestiçagem cultural, pois o espaço do jogo de todas as identidades não é nitidamente delimitado. Como cultivar seu jardim se não é separado dos jardins dos outros?': A própria pergunta de Kabengele parece sugerir uma resposta. Talvez, a separação artificial dos grupos não seja a solução para oBrasil atual. Será que é necessário - e possível - que se formem no Brasil "ações afirmativas", como nos Estados Unidos? Existe um grande risco na "globalização de conceitos" e na importação de categorias importadas sem sua historização e contextualização. Pierre Bourdieu e Loic Wacquant, num artigo referindo-se explicitamente à dicotomia brancos versus negros, exportada pelos E.U.A., afirmavam que a estigmatização, no Brasil, lhes parecia menos reversível que em outros países e que aqui, excepcionalmente, a categoria de mestiço tomou o lugar de um sistema de castas definidas. Provocavam: por que, ao invés de considerarem a ordem etno-racial brasileira em sua lógica própria, os pesquisadores nativos se contentam em "substituir em bloco" o "mito da democracia racial" pelo "mito" (norte-americano) de que todas as sociedades são igualmente racistas, independentemente do que se observa nas relações sociais?

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Lilia Schwarcz, professora de Antropologia da USP, concorda que é necessário procurarmos um "modelo local" que leve em conta as especificidades das relações sociais no Brasil: 'a questão é levar a sério a experiência nacional, não com vistas a essencializá-la e torná-la imune ao tempo, mas para não incorrermos no erro de achar que receitas prontas estão à disposição". Por tudo isso, discutir as obras e as posturas pessoais de Jorge Amado revela-se, ainda hoje, uma tarefa necessária e pertinente.

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