Capturando a espiritualidade - Projeto de pesquisa (2016 - 2019)

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Capturando a espiritualidade: pesquisas médico científicas sobre a dimensão espiritual da saúde no Brasil. 1 Rodrigo Toniol2

Resumo: O tema fundamental deste projeto de pesquisa são os usos, as apropriações e as variadas repercussões da categoria espiritualidade no campo das ciências médicas no Brasil. Precisamente, trata-se de investigar o modo pelo qual essa categoria tem emergido como uma variável em pesquisas clínicas. Nosso foco empírico será o cotidiano dos pesquisadores engajados em dois grupos, o ProSER, sediado no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e o Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde, vinculado ao Programa de Pós Gradação em Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora. As pesquisas realizadas pelos médicos-cientistas desses referidos grupos utilizam uma ampla gama de tecnologias que visam identificar, isolar e interpretar a condição espiritual das pessoas e seus efeitos para a saúde. Nesta investigação estaremos especialmente interessados na criação e no uso dessas tecnologias, que vão de questionários ao mapeamento de atividades cerebrais. A ênfase nas mencionadas tecnologias e instrumentos se deve ao fato de que além de constituírem a forma de “acesso” à espiritualidade, os questionários, as ressonâncias magnéticas e os mapeamentos de atividade cerebral são mediadores fundamentais para que a espiritualidade emerja como uma entidade clinicamente visível e avaliável para médicos e pesquisadores. Esta pesquisa, portanto, tem como objetivo principal analisar, a partir das tecnologias de avaliação da espiritualidade, desenvolvidas e utilizadas no campo das ciências médicas, o modo pelo qual essa categoria tem sido articulada e tem mobilizado atores e instituições dedicadas a promoção e aos cuidados com a saúde. Palavras-chave: Espiritualidade; Religião; Saúde; Tecnologia; Ciência

1 Projeto de pesquisa Fapesp – 2015/ 18386-8 Doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador de PósDoutorado do PPGAS/Unicamp, com financiamento Fapesp. Contado: [email protected]

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Introdução O tema fundamental deste projeto de pesquisa são os usos, as apropriações e as variadas repercussões da categoria espiritualidade no campo das ciências médicas no Brasil. Precisamente, trata-se de investigar o modo pelo qual essa categoria tem emergido como uma variável em pesquisas dedicadas a identificar correlações entre o “fator espiritual” e a saúde da população em geral, bem como de pacientes com perfis clínicos específicos. Num primeiro levantamento identificamos que no país existem pelo menos cinco centros de pesquisa, distribuídos em universidades do sul e do sudeste (USP, UNIFESP, UFMG, UFRGS e UFJF), que produzem dados e análises sobre o tema das relações entre saúde e espiritualidade. Tais investigações, como descreverei a seguir, utilizam uma ampla gama de tecnologias que visam identificar, isolar e interpretar, a condição espiritual das pessoas e seus efeitos para a saúde. Nesta pesquisa estaremos especialmente interessados na criação e no uso dessas tecnologias, que vão de questionários ao mapeamento de atividades cerebrais, por parte dos cientistas engajados em alguns desses referidos grupos. A ênfase em tais tecnologias e instrumentos se deve ao fato de que além de constituírem a forma de “acesso” à espiritualidade, os questionários, as ressonâncias magnéticas e os mapeamentos de atividade cerebral são mediadores fundamentais para que a espiritualidade emerja como uma entidade clinicamente visível e avaliável para médicos e pesquisadores. Discutirei, assim, a partir das tecnologias de avaliação da espiritualidade, desenvolvidas e utilizadas no campo das ciências médicas, o modo pelo qual essa categoria tem sido articulada e tem mobilizado atores e instituições dedicadas a promoção e aos cuidados com a saúde. Como explicitarei a seguir, esta pesquisa consiste num desdobramento das investigações que venho realizando desde 2010. Ao mesmo tempo, ela está fundamentada sob um novo campo empírico, bem como sob um conjunto de problematizações distinto daquele ao qual me detive anteriormente. Para sua realização, identifico o departamento de antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e, mais especificamente, o Laboratório de Antropologia da Religião (LAR), como espaços privilegiados para o adensamento e aprofundamento das questões aqui propostas. Com relação a pesquisa, a possibilidade de interlocução com os pesquisadores do LAR, que têm focado seus interesses em temas como secularismo, laicidade e relação entre tecnologia e religião, dimensiona a pertinência do enquadramento desta investigação àquele contexto.



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Constituição do problema de pesquisa Desde a década de 1980 a Organização Mundial de Saúde tem produzido documentos, resoluções e encaminhamentos acerca do reconhecimento da espiritualidade como uma dimensão da saúde humana. A 37ª Assembleia da OMS, ocorrida em 1984, é considerada por alguns pesquisadores (Khayat, 1998) como o evento fundador dos debates sobre espiritualidade no âmbito daquela instituição. Durante o evento, representantes de 22 países encaminharam uma proposta de resolução à assembleia solicitando a “consideração do fator espiritualidade como elemento determinante para a saúde”3. A resolução foi acatada e, por isso, encaminhada para a direção geral da OMS. Seguiu-se a ela um documento que acenava para o incentivo e para o apoio da instituição na realização de pesquisas científicas que investissem no desenvolvimento de técnicas de monitoramento e de avaliação da espiritualidade das pessoas.4 Na esteira dessas resoluções, em 1998, os membros do comitê executivo da OMS referendaram a proposta de alteração do conceito de saúde citado no preâmbulo da constituição daquela agência global, que passou a ser: “saúde é um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social, e não apenas a ausência de doenças ou enfermidades”.5 As resoluções da OMS não são atos excepcionais na legitimação do vínculo entre saúde e espiritualidade. Nas últimas três décadas pudemos observar um expressivo crescimento no número de centros de pesquisas, de laboratórios e de departamentos ligados a universidades, dedicados especificamente a esse vínculo.6 Em que pese a variedade dos significados que ele pode assumir na medida em que as pesquisas que o tematizam se multiplicam, é notável que, de modo geral, as investigações dirigidas a esse vínculo usualmente sentenciam que o fator espiritualidade tem um significativo impacto na manutenção da saúde e na recuperação de estados de adoecimento. Por exemplo, para citar apenas alguns trabalhos: Garssen, Uwland e Visser (2014) afirmam haver uma associação positiva entre a espiritualidade de pacientes com câncer e bem estar; Brewer-Smyth e Koening (2014) reconhecem que, em casos de traumas Parte dessas informações foram obtidas graças ao auxílio dos bibliotecários da University of California San Diego, a quem agradeço o apoio para a elaboração deste projeto de pesquisa. A resolução encaminhada para a diretoria da OMS possui o seguinte registro na entidade: documento Jan. 1984 EB73/l984/REC/l, 2. 4 Idem nota 1. 5 Ver: World Health Organization (1988) Executive Board 101st session, resolutions and decision, EB101.1998/REC/1, p.52-53. 6 Entre os mais destacados e tradicionais centros de pesquisas estão: Center for Spirituality, Theology and Health (Duke University); Center for Spirituality, Health and Disability (University of Aberdeen); Centre for Spirituality and healing (University of Minnesota); Spirituality Mind-Body Institute (Columbia University. 3



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infantis, a resiliência de pessoas mais espiritualizadas é maior do que a de não espiritualizados; Berntson, et al. (2008), por sua vez, afirmam que há uma correlação significativa entre espiritualidade e controle cardíaco autonômico. 7 No Brasil, sobretudo a partir dos anos 2000, fóruns e grupos de pesquisas dedicados a debater e investigar o impacto da espiritualidade na saúde se estabeleceram em universidades e em organizações médicas. Em março de 2013, por exemplo, mais de 500 pesquisadores e médicos subscreveram um documento enviado a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) em que solicitavam a aprovação e incorporação, na entidade, do Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular (Gemca). Conforme a proposta, o Gemca funcionaria tal e qual os outros 11 grupos de estudos daquela sociedade médica, como um fórum de debates e uma instância para o fomento de pesquisas. O documento foi recebido pela diretoria da SBC e a solicitação deferida. Assim, o Gemca adquiriu apoio institucional, a possibilidade de organizar atividades durante os congressos anuais da SBC e, ao mesmo tempo, autonomia para estabelecer sua própria rede de associados. Vinculado ao Departamento de Cardiologia Clínica, assim como os grupos de Valvopatias, o de Circulação Pulmonar e o de Coronariopatias, o Gemca logo em seus primeiros meses de funcionamento atraiu a atenção da imprensa nacional. O médico Álvaro Avezum, diretor do grupo, foi inicialmente o principal porta voz dos objetivos, dos interesses e das expectativas nutridas pelos pesquisadores associados. Numa dessas ocasiões Avezum foi taxativo ao prognosticar os desdobramentos que as pesquisas sobre espiritualidade deverão ter para os cuidados com a saúde nos próximos anos: Hoje posso dizer com segurança a um paciente que se ele fuma, tem maior possibilidade de sofrer um infarto que um não fumante. Provavelmente há de chegar um dia que com a mesma certeza poderemos dizer ao paciente que se ele for espiritualizado e souber lidar adequadamente com suas emoções, poderá evitar doenças cardiovasculares. (...) [mas] é importante esclarecer que não estamos falando de religião, que é o sistema de crenças e dogmas, nem de religiosidade, que é quando a pessoa se dedica à religião. (Grifos meus). 8

Embora não seja o objetivo deste projeto encaminhar uma análise centrada na hermenêutica da categoria espiritualidade, o comentário final do médico-pesquisador que insiste na diferenciação entre as categorias espiritualidade, religião e religiosidade, é emblemático para o reconhecimento de que, por mais amplo e vago que possa ser o conceito de espiritualidade nesses enunciados e nessas pesquisas, seu emprego não é aleatório. Em certo sentido esse é o ponto de partida desta investigação que faz das pesquisas médicas dedicadas a avaliar o impacto Para uma análise pormenorizada dessas e de outras pesquisas clínicas que avaliam o impacto do “fator espiritualidade” na saúde, ver: Toniol, 2015. Para outras reflexões sobre as interfaces entre saúde e espiritualidade, ver Giumbelli e Toniol, 2015. 8 Fontes: http://goo.gl/1tua5A (consultada em 04/01/2014) e http://goo.gl/iYjch7 (consultada em 04/01/2014). 7



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do fator espiritual na saúde o seu universo análise. Diante do amplo quadro de grupos e de instituições médico-científicas empenhadas na análise das relações entre saúde e espiritualidade, privilegiarei como objeto de interesse empírico desta pesquisa dois grupos distintos. O primeiro deles foi fundado em 2000 e teve como nome original Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos (NEPER). Sediado no Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, esse grupo foi pioneiro no país em reunir médicos, pesquisadores e profissionais da saúde em atividades de assistência terapêutica dirigidas a espiritualidade, bem como no desenvolvimento de pesquisas dedicadas ao tema. Em 2009 o NEPER foi institucionalizado no HC como um programa de promoção da saúde e mudou seu nome para Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (ProSER). Conforme sua descrição no site do HC, os objetivos do Programa são9: a) Investigar o impacto da espiritualidade em saúde mental de pacientes internados no IPq; b) Promover atividades terapêuticas que investiguem e promovam o contato com a espiritualidade, com foco em saúde mental; c) Promover assistência às necessidades e conflitos espirituais na interface da saúde mental; d) Incentivar e criar “banco de ideias” em pesquisa na interface entre saúde mental e espiritualidade; e) Promover ensino a alunos residentes e profissionais da área de saúde sobre a relação saúde e espiritualidade. As atividades do grupo, como se pode depreender dos objetivos descritos, estão dirigidas à pesquisa, à clínica e ao ensino. Embora a metodologia e as técnicas empregadas pela investigação aqui proposta prevejam o acompanhamento regular do cotidiano dos pesquisadores e dos profissionais implicados no ProSER, a atenção estará focada sobretudo nas atividades de pesquisa e de clínica do grupo. Especificamente, concentrarei minhas observações na aplicação da “anamnese espiritual”, realizada pelos membros do ProSER com os pacientes do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Tal procedimento consiste na realização de uma série de perguntas protocoladas que, uma vez tabuladas, resultam em índices de espiritualidade, que passam inclusive a constar no prontuário dos usuários. A anamnese espiritual está estruturada na forma de perguntas como, por exemplo: “até que ponto você sente que sua vida tem uma finalidade?” e “até que ponto alguma ligação com um ser espiritual conforta/tranquiliza você?”10 Ainda que esse procedimento tenha o uso relativamente restrito no Brasil, sua legitimidade é crescente noutras partes do mundo. A Organização Mundial de Saúde, por exemplo, publicou Informações disponíveis em: http://goo.gl/KXy5Gr Essas questões foram retiradas do instrumento de avaliação da espiritualidade desenvolvido pela OMS. Isso porque, embora já tenha feito contatos iniciais e até mesmo trabalho de campo exploratório durante as atividades do ProSER, não tive acesso a versão do protocolo de anamnese espiritual que tem sido utilizado pelo grupo.

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em 2002 seu próprio instrumento de anamnese espiritual11 e desde então pesquisadores têm desenvolvido e aprimorado esses questionários. A importância dessa tecnologia que faz a espiritualidade emergir como uma entidade visível para seus experts reside no fato de que, no âmbito do ProSER, ela serve tanto para a clínica quanto para a pesquisa. Isso porque é a partir dos resultados dessa anamnese que os médicos prescrevem atividades aos pacientes como, por exemplo, meditação, yoga e mindfulness, da mesma forma que as informações fornecidas por esse instrumento também servem como base de dados para as pesquisas que buscam encontrar correlações entre a dimensão espiritual da pessoa e seu estado de saúde/doença. 12 Outro grupo de pesquisa privilegiado nesta investigação será o Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (NUPES), vinculado ao Programa de Pós Gradação em Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). O Nupes está consolidado como um grupo de pesquisa do CNPq e reúne pesquisadores, sobretudo médicos e estudantes de pós-graduação, que se dividem em três linhas de pesquisas, a saber: Epidemiologia da Religiosidade e Saúde; Experiências Religiosas e Espirituais; História e Filosofia das Pesquisas sobre Espiritualidade. O grupo é coordenado pelo médico e psiquiatra Alexander Moreira de Almeida, que também dirige as seções de “espiritualidade e psiquiatria” da Associação Mundial de Psiquiatria (World Psychiatric Association) e da Associação Brasileira de Psiquiatria. Nesse grupo há uma série de pesquisas sendo desenvolvidas sobre as relações entre saúde e espiritualidade, cujos resultados têm obtido significativa repercussão na mídia brasileira.13 Do amplo conjunto das pesquisas realizadas pelo NUPES, dedicarei maior atenção àquelas que utilizam tecnologias de neuroimagem como dispositivo de captura da espiritualidade. Tratam-se de investigações que comparam e analisam as atividades cerebrais de pacientes durante atividades como meditação, oração e repetição de frases que provocam sensação de bem estar.14 Nesse grupo acompanharei os diferentes estágios das pesquisas dirigidas a espiritualidade, focando sobretudo nos procedimentos e no uso de exames de imagem que, em certa medida, trabalham para torná-la um objeto possível de ser avaliado. 15

Refiro-me ao módulo "espiritualidade, religiosidade e crenças pessoais" do instrumento de qualidade de vida da OMS, validado no Brasil por um grupo de pesquisadores do Instituto de Psicologia da UFRGS (ver, Panzini, et al., 2011). Para a descrição de outros instrumentos clínicos de avaliação da espiritualidade, ver, Toniol, 2015. 12 Disponibilizo na seção de anexos (anexo A) a imagem de um dos cartazes distribuídos no Instituto de Psquiatria do Hospital das Clínicas que anunciam as atividades do ProSER. 13 Ver: http://goo.gl/4c4Mx1 (consultado em 10/07/2015) e http://goo.gl/hI2dOR (consultado em 10/07/2015). 14 Para uma breve apresentação em vídeo das pesquisas dessa natureza realizada no NUPES, ver https://goo.gl/WcjVyl (consultado em 10/07/2015). 15 Apenas para fins ilustrativos apresento na seção de anexos (anexo b) a série de imagens das atividades cerebrais de pessoas em situação de meditação, utilizada em uma pesquisa semelhante àquelas realizadas pelo NUPES. 11



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Assim como a anamnese espiritual, as tecnologias empregadas pelo NUPES também têm como objetivo tornar a espiritualidade visível, reconhecer seus padrões e possíveis correlações com estados de saúde e de adoecimento. Contudo, há importantes diferenças implicadas nessas duas formas de capturar a espiritualidade. Quanto às conclusões que cada uma delas permite, por exemplo, elas são de ordens distintas. Enquanto o padrão dos resultados das pesquisas feitas pelo primeiro grupo, o ProSER, são considerações como, por exemplo, “quem é mais espiritualizado enfarta menos”, no segundo grupo, o NUPES, o mapeamento das atividades cerebrais pode indicar que as áreas do cérebro acionadas durante orações é a mesma ativada quando experimentamos sensações de prazer. À essa diferença se sobrepõe outra que ganha relevância na medida em que analisamos o modo pelo qual a espiritualidade adquire, em cada um desses procedimentos, estatuto de realidade clínica. Se a anamnese espiritual depende do relato do paciente, os exames de neuroimagem prescindem da atuação de quem é examinado, de modo que, nesse caso, a espiritualidade manifesta é localizada no corpo, mais precisamente no cérebro paciente, e não mais na narrativa de sua experiência cotidiana. O que parece estar em jogo nesses dois grupos, portanto, não é simplesmente a categoria espiritualidade, mas sim essa categoria como um fator de saúde que pode ser interpretado e avaliado por determinados experts a partir da mediação de instrumentos e de tecnologias que trabalham para torná-la visível. Nesse sentido, importa menos perguntar, o que é espiritualidade? E mais, quem pode dizer o que é espiritualidade quando ela se torna uma questão de saúde? Diante desses dois grupos de pesquisa dedicados a relação entre saúde e espiritualidade, pergunto: Como a categoria espiritualidade é mobilizada e o que ela mobiliza em cada um desses contextos? Não seriam as tecnologias que fazem a espiritualidade emergir enquanto um objeto clinicamente visível, manipulável e inscritível (tanto em prontuários quanto nas pesquisas médico-científicas) também mediadores do conceito de espiritualidade que orienta esses pesquisadores? Como os dados gerados por esses instrumentos se deslocam da pesquisa médicocientífica para a clínica médica? Justificativa Apesar da larga trajetória histórica dos debates acerca da categoria espiritualidade na filosofia clássica e na teologia, no campo da antropologia, a análise pormenorizada dos usos e das apropriações da “espiritualidade” é um tema pouco frequente e sistematizado, embora o uso do substantivo em etnografias seja recorrente. Por um lado, o caráter impreciso e pouco estruturado do termo não inibe sua recorrência em narrativas etnográficas, por outro, no mesmo passo que testemunhamos essa constância também constatamos uma espécie de marginalidade das

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reflexões sobre a categoria, muitas vezes descrita, simplesmente, como uma forma de negação da religião institucionalizada ou como sinônimo de uma religiosidade centrada, unicamente, na intimidade do sujeito. Conforme demonstrei em minha pesquisa de doutorado (ver, Toniol, 2014; 2015), o reconhecimento da associação entre espiritualidade e saúde, muitas vezes sintetizado na sentença espiritualidade é saúde, tem repercutido de tal forma que podemos observar suas ocorrências em resoluções da OMS, na realização de pesquisas científicas empenhadas em analisá-la e mesmo no estabelecimento de protocolos clínicos que recomendam a atenção à dimensão espiritual da saúde do paciente. Nessa pesquisa anterior, beneficiada por uma extensa investigação empírica e diálogo teórico realizado no âmbito dos departamentos de antropologia das Universidades da Califórnia San Diego e Berkeley, privilegiei os documentos oficiais que regulamentaram a relação entre espiritualidade e saúde, bem como os efeitos dessas regulações nos atendimentos realizados em postos de saúde e em hospitais do SUS, mais especificamente naqueles que empregam tratamentos com terapias alternativas/complementares. Considerando as resoluções oficiais dos órgãos de gestão da saúde, a pesquisa e a clínica como uma cadeia, a pesquisa aqui proposta pretende justamente analisar a dimensão a qual ainda não me detive analiticamente, a saber: o uso da categoria espiritualidade no âmbito das pesquisas das ciências médicas. Abordagem/debate com a literatura A fundamentação científica e abordagem teórico-metodológica a ser utilizada nesta pesquisa pode ser dividida em dois principais eixos. O primeiro deles concentra o diálogo com autores que, com mais ou menos ênfase, já se detiveram em reflexões sobre a categoria espiritualidade, entre eles destaco os trabalhos de Peter van der Veer (2013), de Catherine Albanese (2007), de Courtney Bender (2010) e de Ann Taves (1999). Já o segundo eixo diz respeito aos desdobramentos que os debates sobre a categoria espiritualidade podem ter para outras problemáticas das ciências sociais da religião, como, por exemplo, a do secularismo e do espaço público. Afinal, vale perguntar, a equação que estabelece espiritualidade como saúde não imporia um novo regime de questões aos analistas interessados nos temas do secularismo e da secularização? Não estaria esse processo de associação entre espiritualidade e saúde também instituindo novas modalidades de presença da religião em espaços públicos? Em que pese a extensa literatura disponível e que poderia ser mobilizada para tratar das questões mencionadas, indico desde já que, por um lado, iremos nos valer do diálogo com trabalhos que já trataram do “problema da secularização” imposto pela categoria espiritualidade (Sullivan, 2014). E, por outro, iremos nos orientar por perspectivas analíticas que, para tratar da

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secularização, privilegiam a análise dos modos de presença do religioso e das configurações contingenciais que o estabelecem no espaço público (Asad, 1999; Giumbelli, 2008), em detrimento daquelas que partem de modelos apriorísticos que definem os limites do secular, do religioso e da relação entre eles no espaço público (Diotallevi, 2015). O interesse mais recente pela categoria espiritualidade repercutiu sobretudo na literatura dos países anglófonos. Em parte, esse interesse esteve inicialmente relacionado com as pesquisas dedicadas ao fenômeno dos movimentos contraculturais da Nova Era, que identificaram na recorrência do termo não somente um apelo ao universo esotérico, mas, principalmente, um modo de descrever um tipo de devoção ao sagrado que não se reconhece como religiosa (Hanegraaff, 1998; ver, Steil e Toniol, 2013). A referência a espiritualidade, nesse caso, designa, antes de tudo, a acentuada privatização da religião ou, no limite, a negação das instituições religiosas. Tamanha popularização desse entendimento do termo que ele passou a sintetizar uma nova qualidade de crentes, spiritual but not religious (ver, Fuller, 2001). Contudo, a partir de meados da década de 1990 e especialmente nos anos 2000, uma série de autores passou a tratar o termo não somente como uma modalidade de engajamento com o sagrado, mas também como uma categoria, cuja genealogia marcada pela modernidade ocidental, indicaria fortes vínculos com outras duas, “religião” e “secularismo”. Essa é a tese desenvolvida por Peter van der Veer, que, no mesmo passo em que identifica convergências entre o estatuto universalizante da categoria espiritualidade e aquele que também caracteriza a “religião” e o “secularismo”, também reconhece que na comparação entre essas três categorias, enquanto as duas últimas foram capazes de pautar uma ampla bibliografia dedicada a historicizá-las, a primeira recebeu significativamente menos atenção. A lacuna, sugiro, não deve ser ignorada ou subestimada, mas deve ser tomada como um dado. Diante dela podemos supor, concordando com outros autores (Albanese, 2001; Bender, 2010), que uma das principais razões para o tímido interesse pela categoria em questão seja a persistência da retórica que insinua que não há nada de político na espiritualidade. Nesse caso, ao contrário da “religião” e do “secularismo”, que foram categorias extensivamente depuradas em sua genealogia moderna por trabalhos como os de Talal Asad (1993) e de José Casanova (1994), a “espiritualidade” ainda é um conceito que parece ter emergido fora do tempo, separado da política e alheio a configurações de poder e de conhecimento específicas. O esforço desta pesquisa não será genealógico, mas sua realização parte das considerações desses autores para, como já afirmei anteriormente, assumir um empreendimento analítico que evita definir o que seja espiritualidade e opta por atentar para como o termo é empregado e como suas definições e diferenciações tornam algumas práticas e engajamentos

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mais ou menos possíveis. Ao fazê-lo, poderei, se não delinear algumas das condições de emergência da categoria na modernidade, ao menos levantar hipóteses sobre em que termos e a partir de quais configurações históricas e políticas ela tem adquirido legitimidade contemporaneamente. Ao realizar o empreendimento analítico desta pesquisa no campo dos serviços de saúde, os problemas impostos pela categoria espiritualidade adquirem ainda outros desdobramentos. Isso porque, se, conforme sugeri anteriormente, o principal organismo de gestão global da saúde, a OMS, legitima o entendimento de que o humano é invariavelmente um ser espiritual e as pesquisas médico-científicas afirmam que a espiritualidade é um fator determinante para a saúde, pergunto: caberia ao Estado prover cuidados com o espírito? Ou ainda, negligenciar a espiritualidade não seria, no limite, um descaso de saúde pública? E mais, como o Estado pode operacionalizar a oferta de cuidados com a dimensão espiritual sem ferir princípios como o da laicidade e da liberdade religiosa? Essas são algumas das questões que remetem ao segundo eixo analítico desta investigação. Winnifred Sullivan (2014), em suas pesquisas sobre capelania nos Estados Unidos, já se deteve em questões semelhantes a essas e, por isso, servirá como uma importante interlocutora, embora muitas vezes tensionada, do trabalho aqui proposto. As contribuições de Sullivan estão majoritariamente relacionadas com controvérsias jurídicas envolvendo o termo, cuja singularidade, afirma a autora, reside no fato de que escapa dos marcos jurídicos que incidem sobre a religião. Outra razão para a aproximação com seu trabalhos reside no fato de que, ao pesquisar capelania em hospitais, Sullivan também lidou com o tema da espiritualidade na sua articulação com a saúde. Em uma de suas pesquisas, a antropóloga demonstra como o reconhecimento da espiritualidade como uma dimensão da saúde humana garantiu que capelães, antes restritos a assistência religiosa nos hospitais, adquirissem um novo status e fossem incorporados às equipes de tratamento médico. Com isso, esses profissionais “deixaram de falar em nome de alguma confissão ou identidade religiosa particular e passaram a tratar da espiritualidade enquanto um aspecto natural e universal a todos os seres humanos” (Sullivan, 2014:3). Depois de analisar extensivamente o fenômeno da capelania nos hospitais, Sullivan conclui que “ao menos nos Estados Unidos, embora a lei se apresente como secular, todos os cidadãos são crescentemente entendidos como universal e naturalmente religiosos – necessitando de cuidado espiritual” (2014:51). A afirmação anuncia a posição guardada pela autora diante do caso que, para ela, explicita como a religião vem sendo naturalizada e avalizada pela lei nos Estados Unidos. A categoria espiritualidade seria, nessa perspectiva, um novo modo de

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estabelecimento da religião ou ainda, um modo de dissimular a religião com a concordância e o apoio do Estado. Minha posição, contudo, diverge daquela defendida por Sullivan na medida em que estou pouco interessado em desvelar a espiritualidade mostrando o que há de religioso nessa categoria.

Meu objetivo nesta pesquisa, pelo contrário, será justamente o de apostar na

pertinência analítica de tratar a espiritualidade como o produto histórico de processos discursivos e cujas formas de relação com a religião são variadas e não determinadas. Trata-se, com isso, de associar-me a agenda de investigações sobre espiritualidade proposta por autores como Courtney Bender e Omar McRoberts (2012), cujo primeiro postulado é não tratar a religião ou a espiritualidade como categorias com núcleos, identidades ou qualidades estáveis, e tampouco assumir que espiritualidade é, necessariamente, algo que contrasta ou se opõe à religião (tal como na fórmula “espiritual, mas não religioso”). Sequer parto da presunção de que haja uma relação categórica particular entre espiritualidade e religião (Bender, 2007; Taves e Benderm 2012; Ammerman, 2013). Viabilizar esse modo atenção a espiritualidade depende da análise pormenorizada das relações contextuais que a categoria estabelece com a religião – e com outros termos. A recorrência e a legitimidade que a categoria espiritualidade tem adquirido no âmbito das ciências médicas e mesmo nas agências internacionais e nacionais de gestão da saúde pública pode ser um fato inesperado para quem analisa a modernidade ocidental nos termos weberianos da “desmistificação”, contudo, para autores como Peter van der Veer, essa é apenas mais uma das demonstrações de que a espiritualidade não é uma forma marginal de resistência à modernidade secular, mas é parte do próprio projeto moderno, sendo, a emergência do termo, um de seus índices e uma chave fundamental para compreendê-lo (Veer, 2013:7). Em suas palavras, conforme transcrevemos abaixo, Veer argumenta que embora possamos reconhecer profundas raízes históricas do termo no misticismo, no gnosticismo, no hermetismo e numa ampla gama de tradições da antiguidade, a espiritualidade moderna é, de fato, uma categoria tributária da modernidade ocidental: Definir espiritualidade é uma tarefa notoriamente difícil. Eu quero sugerir que o termo, como algo vagamente oposto à materialidade, alheio ao corpo e distinto tanto do religioso como do secular, tem se convertido num conceito capaz de conectar muitas tradições discursivas. Meu argumento é que o ‘espiritual’ e o ‘secular’ foram produzidos simultaneamente como duas alternativas conectadas em reação à religião institucionalizada na modernidade euro-americana. (Veer, 2013:36)

O argumento não é trivial e para demonstrá-lo dependeríamos de um amplo esforço genealógico acerca da categoria espiritualidade, cujo empreendimento se afasta dos objetivos mais gerais deste projeto. Mesmo sem a intenção de reconstituir tal genealogia – trabalho feito

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minuciosamente por pesquisadores como Catherine Albanese (2007) e Courtney Bender (2010) , recorremos a afirmação de Veer para sublinhar aquilo que o reconhecimento do vínculo entre essa categoria e a modernidade nos adverte: espiritualidade é um conceito historicamente situado e sua emergência é, ela mesma, o produto histórico de processos discursivos. A semelhança entre essa afirmação e o que diz Talal Asad (1993:29)16 sobre a categoria religião não é despropositada – embora tampouco deva ser estendida além do plano metodológico. Talvez a ordem desse paralelo fique mais clara na paráfrase de outra sentença de Asad (2001, p.220): definir ‘espiritualidade’ é antes de tudo um ato. Isso significa que espiritualidade enquanto categoria está constantemente sendo definida dentro de contextos sociais e históricos, e que as pessoas possuem razões específicas para definí-la de um modo ou de outro (Asad, 2001 apud Giumbelli, 2011)17. A perspectiva parece alçar o debate sobre espiritualidade a um novo plano analítico, distanciado dos imbróglios filosóficos e teológicos clássicos sobre o tema, e marcado pelos aportes de certa filosofia política foucaultiana em que o conceito e suas características são situados nos jogos de relações de poder que os configuram e os transformam historicamente. Em alguma medida, assumir essa analítica é a condição para atender ao chamado de Peter van der Veer de atentarmos para “a política da espiritualidade” (2009; 2013). Isso é, para o modo pelo qual essa categoria produz realidades, agencia atores e mobiliza instituições. A política da espiritualidade, portanto, não diz respeito a um conceito, mas sim a uma espécie de recomendação metodológica que insiste na necessidade de compreender os usos da categoria espiritualidade situacionalmente, a partir das configurações de poder e de conhecimentos com os quais ela se articula cada vez que é enunciada. Em seus trabalhos, por exemplo, Veer mostra como o termo foi central para a formação da modernidade imperial na Índia e na China. Nesses dois países a ideia de espiritualidade teria se estabelecido de modo distinto, embora, em ambos, sobretudo durante o período colonial, tenha funcionado como uma importante via de conexão com o Ocidente. A afirmação, que já havia sido aventada por Richards (1932), explicita o sugerido vínculo entre a modernidade, a partir dos “encontros coloniais” que ela produziu, e a categoria espiritualidade, forjada naquele momento, segundo Veer, como um conceito universal e trans-histórico. Se, por um lado, não é da espiritualidade na Índia ou na China colonial de que nos ocuparemos nesta investigação, por outro, apresentar parte das discussões antropológicas da A citação literal do texto de Talal Asad ao qual faço referência é: “O meu argumento é que não pode haver uma definição universal de religião, não apenas porque seus elementos constituintes e suas relações são historicamente específicos, mas porque esta definição é ela mesma o produto histórico de processos discursivos” (Asad, 2010: 264) 17 A sentença é similar àquela feita por Emerson Giumbelli (2011) que, num texto revisional da obra de Talal Asad, a utiliza para comentar a posição do antropólogo saudita sobre a categoria “religião’. 16



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categoria partindo de uma analítica que a problematiza enquanto produto de articulações entre discursos, práticas e configurações institucionais - tal como feito por Veer -, introduz algumas dimensões dos debates que pretendemos aprofundar nesta pesquisa, bem como aponta para a chave teórico-metodológica a partir da qual a realizaremos. Objetivos Objetivo Geral Analisar o modo pelo qual a categoria espiritualidade tem sido incorporada no âmbito de pesquisas médicos científicas e, a partir da observação do cotidiano dessas investigações no NUPES e no ProSER, identificar como a dimensão espiritual da saúde tem emergido como um objeto possível de ser avaliado por seus experts, médico-cientistas. Objetivos específicos Identificar e analisar a emergência do campo das pesquisas médicas dedicadas ao tema da espiritualidade no Brasil. Analisar as transformações teórico-metodológicas das pesquisas sobre espiritualidade, privilegiando, para tanto, a observação das mudanças nos instrumentos e nas tecnologias empregadas para apreender a dimensão espiritual da pessoa. Identificar as modalidades de relação entre as categorias espiritualidade e religião nessas pesquisas realizadas no campo da saúde. Contribuir para aprofundar o debate e as discussões das ciências sociais da religião dedicadas a espiritualidade, seja como categoria analítica ou como objeto de interesse empírico. Hipóteses A hipótese inicial desta pesquisa é a de que a categoria “espiritualidade” tem adquirido cada vez mais legitimidade no campo da saúde, por meio de resoluções da OMS, de políticas públicas e pelo maior interesse das ciências médicas pelo tema, e, com isso, tem se tornado uma matriz discursiva capaz de mobilizar um conjunto cada vez mais amplo de experts e de instituições. Acompanhar diferentes grupos de pesquisas dedicados especificamente à espiritualidade, nesse caso, também constitui uma tentativa de avaliar a capacidade mobilizadora da categoria e, ao mesmo tempo, de reconhecer aquilo (instituições, grupos e discursos) que resistem a ela. Uma segunda hipótese diz respeito as transformações que as próprias pesquisas que associam espiritualidade à saúde sofreram desde a década de 1980. Nossa sugestão é a de que, se inicialmente essas pesquisas estavam baseadas em teorias calcados nos saberes psi e, por isso,

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avaliavam a espiritualidade a partir de questionários e de instrumentos de anamneses altamente dependentes dos pacientes, mais recentemente, o interesse das neurociências pelo tema têm se desdobrado em duas consequências. Primeiro, a partir das pesquisas das neurociências as considerações sobre a dimensão espiritual da saúde adquiriu maior legitimidade no campo científico e, por conseguinte, passou a repercutir em meios (congressos, revistas, periódicos científicos) nos quais não figurava anteriormente. E, segundo, o uso de instrumentos e de tecnologias de imagem para analisar a espiritualidade, tal como exames de ressonância magnética e de mapeamento da atividade cerebral, a desassociou do relato do paciente e, assim, produziu uma ruptura com os paradigmas que a circunscreviam ao campo da subjetividade. O que está em jogo nessa hipótese é sugerir que cada um desses instrumentos de captura da espiritualidade estão informados por diferentes concepções sobre o que seja a dimensão espiritual e, consequentemente, resultam em distintas recomendações sobre como a clínica deve incidir sobre ela. A isso se relaciona uma última hipótese, que supõe a existência de relações entre a realização de pesquisas sobre espiritualidade e a conformação de protocolos clínicos de atendimentos atentos a essa dimensão da saúde humana. Desdobramos ainda dessa última hipótese a suspeita de que, embora sejam os atendimentos em saúde mental aqueles que mais privilegiam a dimensão espiritual da saúde, progressivamente outras especialidades médicas têm incorporado-na em seus procedimentos, tal como parece indicar a criação do grupo de estudos em espiritualidade e medicina cardiovascular, no âmbito da sociedade brasileira de cardiologia, descrito anteriormente. Metodologia A realização desta pesquisa iniciará com um levantamento bibliográfico da literatura de fundamentação teórica, contemplando as contribuições da antropologia e das ciências sociais da religião, particularmente, acerca da problemática da apropriação e do uso da categoria espiritualidade, visando o aprofundamento das questões levantadas no projeto. Esta revisão da literatura será objeto de debate ao longo da pesquisa, envolvendo estudantes e pesquisadores do departamento de antropologia da Unicamp. Este debate deverá ser estendido para outros pesquisadores que serão convidados a discutir a temática em seminários e em reuniões a serem promovidos no decorrer da pesquisa. A análise dessa literatura buscará aprofundar as reflexões sobre espiritualidade e sobre os aportes oferecidos pela área da antropologia da ciência, que podem contribuir para o desenvolvimento desta pesquisa que, ao fim e ao cabo, trata da emergência de um saber técnico-científico, especializado em avaliar a dimensão espiritual da saúde humana.

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O pesquisa empírica desta investigação estará pautada pela realização sistemática de trabalho de campo junto aos dois grupos de médicos cientistas citados anteriormente, o ProSER e o NUPES. Privilegiaremos a rotina cotidiana de pesquisa dos atores engajados nos grupos, mas também acompanharemos a divulgação dos resultados de suas investigações em seminários e em congressos especializados. Ao trabalho de campo, aliaremos a realização de entrevistas semiestruturada não somente com os membros desses grupos, como também com outros profissionais envolvidos com o estabelecimento da espiritualidade como um objeto de atenção das ciências médicas, bem como com aqueles que resistem a reconhecê-lo. Sobretudo nas entrevistas com os pesquisadores do ProSER e do NUPES, buscaremos identificar nas narrativas sobre suas trajetórias pessoais e profissionais, como o tema da espiritualidade adquiriu relevância. Vale também sublinhar que, além da observação participante nos coletivos de pesquisadores e das entrevistas com esses sujeitos, investirei na leitura e na sistematização da literatura das ciências médicas que relacionam espiritualidade à saúde, farei isso assumindo tal bibliografia como uma outra dimensão de meu próprio objeto de pesquisa. A partir desse procedimento poderei mapear a produção mais geral sobre o tema, como também situar os procedimentos teórico-metodológicos empregados pelos pesquisadores do ProSER e do NUPES num quadro de referências mais amplo, capaz de explicitar suas diferenças e semelhanças com relação a outros coletivos de pesquisa. Resultados esperados Apresentamos a seguir uma relação dos resultados mais relevantes que esperamos alcançar no decorrer e no final da pesquisa: 1. Publicação de artigos em periódicos científicos nacionais e internacionais e de capítulos de livros com o objetivo de divulgar os resultados da pesquisa e contribuir com a discussão crítica sobre a temática em pauta. 2. Organização de um seminário dedicado ao debate sobre os usos e apropriações da categoria espiritualidade, que reúna pesquisadores de diferentes universidades do país. 3.Realização de um dossiê temático sobre espiritualidade a ser publicado no periódico Debates do NER. 4. Apresentação de comunicações e conferências em congressos de antropologia, tais como: Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Jornadas da Associação de Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM), Reunião de Antropologia

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da Ciência e da Tecnologia (React). 5. Proposta de programas de disciplinas com enfoque nas discussões sobre novos movimentos religiosos, nova era e espiritualidade. 6. Preparação de um manuscrito com a etnografia e a análise da cadeia que articula as resoluções oficiais dos órgãos de gestão da saúde sobre espiritualidade, as pesquisas das ciências médicas sobre o tema e os atendimentos clínicos atentos a ela, com vistas a publicação de um livro. Cronograma de atividades: O cronograma segue uma divisão anual, correspondendo às etapas de pesquisa, divulgação dos resultados parciais e redação do relatório. Para a primeira etapa da pesquisa, concebi três meses para o levantamento bibliográfico e detida leitura do material já produzido, no âmbito das ciências sociais, sobre a categoria espiritualidade, bem como da bibliografia, das ciências médicas, sobre a relação entre espiritualidade e saúde. Os cinco meses seguintes serão dedicados ao trabalho de campo junto ao grupo de pesquisa ProSER, sediado no Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Acompanharei o cotidiano das pesquisas do grupo, bem como a participação de seus membros em eventos científicos da área da saúde, nos quais apresentarão os resultados de suas investigações. Nos quatro meses seguintes analisarei e sistematizarei os dados coletados para, posteriormente, produzir o relatório anual. Iniciarei a segunda etapa da pesquisa, a ser realizada em 2017, com a divulgação dos resultados parciais da investigação, por meio da publicação de artigos e de capítulos de livro. Para o mesmo período está prevista a realização de um ciclo de debates sobre o tema, que reunirá sociólogos e antropólogos de outras instituições. Na sequência, durante cinco meses, realizarei o trabalho de campo com os pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (NUPES), vinculado ao Programa de Pós Gradação em Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora. Esse período será intercalado por visitas mais curtas a outros grupos de pesquisa semelhantes ao NUPES e ao ProSER, localizados noutras partes do país, como, por exemplo: o Núcleo de Estudos Transdisciplinares sobre Espiritualidade (NIETE), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o

Núcleo Universitário de Saúde e Espiritualidade (NUSE), da

Universidade Federal de São Paulo, e o Núcleo Avançado de Saúde, Ciência e Espiritualidade (NASCE), da Universidade Federal de Minas Gerais. Por fim, os quatro meses seguintes serão dedicados a análise do material coletado, a produção do relatório e do manuscrito para a publicação de um livro sobre os usos da categoria espiritualidade no campo da saúde.



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Primeira fase Atividades

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Processamentos dos dados (notas de campo, entrevistas, material bibliográfico, registro fotográfico, etc.)

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Análise/elaboração conceitual e redação de artigos e capítulos de livro. Produção do relatório

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Leitura de bibliografia Trabalho de campo

Segunda fase Atividade

03/ 2017

04/ 2017

Divulgação de resultados Ciclo de debates sobre espiritualidade no departamento de antropologia da UNICAMP Trabalho de campo Análise Processamentos dos dados (notas de campo, entrevistas, material bibliográfico, registro fotográfico, etc.) Elaboração do manuscrito com vistas a publicação de livro Produção do relatório

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07/ 2017

08/ 2017

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Anexos Anexo A



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Anexo B Tomasino, Barbara, et al. "Meditation-related activations are modulated by the practices needed to obtain it and by the expertise: an ALE meta-analysis study." Frontiers in human neuroscience 6 (2012).

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