Cargos administrativos e critérios de representatividade nas ordens terceiras do Carmo e de São Francisco (c. 1700-1822): uma análise comparativa

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R IHGB a. 172 n. 451 abr./jun. 2011

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO DIRETORIA – (2010-2011) Presidente: 1º Vice-Presidente: 2º Vice-Presidente: 3º Vice-Presidente: 1ª Secretária: 2ª Secretária: Tesoureiro: Orador:

Arno Wehling Victorino Coutinho Chermont de Miranda Max Justo Guedes Affonso Arinos de Mello Franco Cybelle Moreira de Ipanema Maria de Lourdes Viana Lyra Fernando Tasso Fragoso Pires José Arthur Rios

CONSELHO FISCAL Membros efetivos:

Antônio Gomes da Costa, Marilda Corrêa Ciribelli e Jonas de Morais Correia Neto. Pedro Carlos da Silva Telles e Marcos Guimarães Sanches.

Membros suplentes:

CONSELHO CONSULTIVO Membros nomeados:

DIRETORIAS ADJUNTAS

Augusto Carlos da Silva Telles, Luiz de Castro Souza, Lêda Boechat Rodrigues, Evaristo de Moraes Filho, Hélio Leoncio Martins, João Hermes Pereira de Araujo, José Pedro Pinto Esposel, Miridan Britto Falci e Vasco Mariz

Arquivo: Biblioteca: Museu: Coordenadoria de Cursos: Patrimônio: Projetos Especiais: Informática e Disseminação da Informação: Relações Externas: Iconografia: Coordenação da CEPHAS: Editoria do Noticiário:

Jaime Antunes da Silva Claudio Aguiar Vera Lucia Bottrel Tostes Mary del Priore Guilherme de Andréa Frota Maria da Conceição de Moraes Coutinho Beltrão Esther Caldas Bertoletti João Maurício Ottoni Wanderley de Araújo Pinho D. João de Orléans de Bragança e Pedro Karp Vasquez Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal Guimarães. Victorino Coutinho Chermont de Miranda

COMISSÕES PERMANENTES ADMISSÃO DE SÓCIOS: José Arthur Rios, Alberto Venancio Filho, Carlos Wehrs, Alberto da Costa e Silva e Fernando Tasso Fragoso Pires.

CIÊNCIAS SOCIAIS: Lêda Boechat Rodrigues, Maria da Conceição de Moraes Coutinho Beltrão, Helio Jaguaribe de Mattos, Cândido Antônio Mendes de Almeida e Antônio Celso Alves Pereira.

ESTATUTO: Affonso Arinos de Mello Franco, Alberto Venancio Filho, Victorino Coutinho Chermont de Miranda, Célio Borja e João Maurício A. Pinto.

GEOGRAFIA: Max Justo Guedes, Jonas de Morais Correia Neto, Ronaldo Rogério de Freitas Mourão e Miridan Britto Falci.

HISTÓRIA: João Hermes Pereira de Araújo, Maria de Lourdes Viana Lyra, Eduardo Silva e Guilherme de Andréa Frota.

PATRIMÔNIO: Affonso Celso Villela de Carvalho, Claudio Moreira Bento, Victorino Coutinho Chermont de Miranda e Fernando Tasso Fragoso Pires.

REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos. Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172, n. 451, pp. 11-374, abr./jun. 2011.

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 172, n. 451, 2011 Indexada por/Indexed by Ulrich’s International Periodicals Directory – Handbook of Latin American Studies (HLAS) – Sumários Correntes Brasileiros

Correspondência: Rev. IHGB – Av. Augusto Severo, 8-10º andar – Glória – CEP: 20021-040 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Fone/fax. (21) 2509-5107 / 2252-4430 / 2224-7338 e-mail: [email protected]

home page: www.ihgb.org.br

© Copright by IHGB Tiragem: 700 exemplares Impresso no Brasil – Printed in Brazil Revisora: Sandra Pássaro Secretária da Revista: Tupiara Machareth

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) - . Rio de Janeiro: o Instituto, 1839v. : il. ; 23 cm Trimestral ISSN 0101-4366 Ind.: T. 1 (1839) - n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) - 449 (2010) em n. 450 (2011) N. 408: Anais do Simpósio Momentos Fundadores da Formação Nacional. – N. 427: Inventário analítico da documentação colonial portuguesa na África, Ásia e Oceania integrante do acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro / coord. Regina Maria Martins Pereira Wanderley – N. 432: Colóquio Luso-Brasileiro de História. O Rio de Janeiro Colonial. 22 a 26 de maio de 2006. – N. 436: Curso - 1808 - Transformação do Brasil: de Colônia a Reino e Império. 1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografia. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Celia da Costa

Conselho Editorial Arno Wehling – UFRJ, UGF e UNIRIO – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Antonio Manuel Dias Farinha – U L – Lisboa – Portugal Carlos Wehrs – IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Eduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Humberto Carlos Baquero Moreno – UP, UPT, Porto, Portugal João Hermes Pereira de Araújo – Ministério das Relações Exteriores e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil José Murilo de Carvalho – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Vasco Mariz – Ministério das Relações Exteriores, CNC e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Comissão da Revista: Editores Eduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Esther Bertoletti – MinC – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Lucia Maria Paschoal Guimarães – UERJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Maria de Lourdes Viana Lyra – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Mary Del Priore – UNIVERSO – Niterói – RJ– Brasil

Conselho Consultivo Amado Cervo – UnB – Brasília – DF – Brasil Aniello Angelo Avella – Universidade de Roma Tor Vergata – Roma – Itália Antonio Manuel Botelho Hespanha – UNL – Lisboa – Portugal Edivaldo Machado Boaventura – UFBA e UNIFACS – Salvador – BA Fernando Camargo – UPF – Passo Fundo – RS – Brasil Geraldo Mártires Coelho – UFPA – Belém – PA José Octavio Arruda Mello – UFPB – João Pessoa – PB José Marques – UP – Porto – Portugal Junia Ferreira Furtado – UFMG – Belo Horizonte – MG – Brasil Leslie Bethell – Universidade Oxford – Oxford – Inglaterra Márcia Elisa de Campos Graf – UFPR– Curitiba – PR Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – UFPE – Recife – PE Maria Beatriz Nizza da Silva – USP – São Paulo – SP Maria Luiza Marcilio – USP – São Paulo – SP Nestor Goulart Reis Filho – USP – São Paulo – SP – Brasil Renato Pinto Venâncio – UFOP – Ouro Preto – MG – Brasil Stuart Schwartz – Universidade de Yale – Inglaterra Victor Tau Anzoategui – UBA e CONICET – Buenos Aires – Argentina



SUMÁRIO SUMMARY Carta ao Leitor

Lucia Maria Paschoal Guimarães

I

ARTIGOS E ENSAIOS ARTICLES AND ESSAYS Joaquim Nabuco e o pensamento brasileiro Joaquim Nabuco and the Brazilian thought

11

13

Ricardo Vélez Rodriguez

Nabuco e o pensamento liberal inglês Nabuco and the British liberalism

31

José Arthur Rios

Política e História: Figurações da Escravidão e da Revolução nas obras de Joaquim Nabuco. Politics and History: aspects of slavery and revolution in Joaquim Nabuco’s writings

45

Izabel Marson

Joaquim Nabuco e a luta contra a escravidão: “Ação Política” e “Ação Revolucionária” Joaquim Nabuco and the struggle against slavery: “Political Action” and “Revolutionary Action”

73

Eduardo Silva

Joaquim Nabuco: um historiador político, um político historiador Joaquim Nabuco – A political historian, a historian and politician

89

José Almino de Alencar

Joaquim Nabuco e as reformas sociais Joaquim Nabuco and social reforms in Brazil

111

O Projeto Nacional de Joaquim Nabuco Joaquim Nabuco’s National Project

131

Roberto Cavalcanti de Albuquerque

Maria Emília Prado

Joaquim Nabuco, o diplomata Joaquim Nabuco, the diplomat

145

Vasco Mariz

Joaquim Nabuco e a Conferência da Paz da Haia de 1907 163 Joaquim Nabuco and the 1907 Peace Conference in the Hague Antonio Celso Alves Pereira

“Dano e prejuízo da Fazenda Real” ou a dinâmica dos processos de arrematação na Capitania do Rio de Janeiro 181 “Damages and Losses of the Royal Treasury”, or the dynamics of the collection of duties in Colonial Rio de Janeiro Marcos Guimarães Sanchez

Cargos administrativos e critérios de representatividade nas ordens terceiras do Carmo e de São Francisco (c. 1700-1822): uma análise comparativa 201 Administrative offices and representational criteria in the third holy orders of Carmel and St Francis (c. 1700-1822): A comparative analysis William de Souza Martins

Impressores e Livreiros: Brasil, Portugal e França, ideias, cultura e poder nos primeiros anos do oitocentos 231 Printers and Booksellers: Brazil, Portugal and France, ideas, culture and power in the early years of the Nineteenth Century

Lucia Maria Bastos Pereira das Neves

Política de terras, latifúndio e projetos de reforma: colonialismo, iluminismo e percursos liberais Land policy, large landed estates and land reform projects: Colonialism, Enlightenment and liberal courses Marisa Saenz Leme

257

II COMUNICAÇÕES NOTIFICATIONS Caminho Novo – Fazendas de Petrópolis 291 “Caminho Novo” (New Road) – Rural Properties in Petropolis Fernando Tasso Fragoso Pires

Do interior mais distante: uma história de poder e paixão From the distant backlands: a History of power and passion

307

Veredas de Brasília – O papel do IBGE Brasilia Pathways – The Role of IBGE

319

Lena Castello Branco Ferreira de Freitas

Nelson de Castro Senra

V DOCUMENTOS DOCUMENTS Um manuscrito inédito do naturalista José Bonifácio de Andrada e Silva: a Memória sobre o melhoramento dos Pauis para a sua cultura, s/d., s/l. 329 An unpublished manuscript by naturalist Jose Bonifacio de Andrade e Silva: “Registry of the Improvement of the Swamp Areas and its Cultural Effects” Alex Gonçalves Varela

IV RESENHAS REVIEW ESSAYS Teoria da História

Monike Garcia Ribeiro

361

A Serra e a Cidade: O Triângulo Dourado do Regionalismo

367

• Normas de publicação Guide for authors

371 373

Carlos Francisco Moura

Carta ao Leitor A passagem do centenário de falecimento de Joaquim Nabuco, em 17 de janeiro de 2010, recebeu especial atenção do Instituto Histórico, que reverenciou a memória do seu antigo sócio e orador oficial. Além de realizar sessão solene conjunta com a Academia Brasileira de Letras, da qual o homenageado foi um dos fundadores, o Instituto promoveu uma jornada de estudos, em julho de 2010, coordenada por Antonio Celso Alves Pereira. O evento reuniu um conjunto de especialistas, a propósito de refletir sobre diferentes aspectos da atuação de Nabuco no panorama político, social e cultural do período compreendido entre últimos anos do regime monárquico e o alvorecer da República. As contribuições desses estudiosos acham-se publicadas no número 451 da R. IHGB, na seção Artigos e Ensaios, a começar pela instigante intervenção de Ricardo Vélez Rodriguez, que distingue duas fases da vida de Joaquim Nabuco, a do jovem aristocrata, “queridinho dos salões” da Corte, e a do pensador político amadurecido, voltado para as graves questões nacionais. José Arthur Rios transporta-se para Londres e assinala a influência exercida pelo liberalismo inglês nas ideias políticas de Nabuco, enquanto Izabel Marson reflete sobre as figurações da escravidão e da Revolução em sua obra. Eduardo Silva, Roberto Cavalcanti de Albuquerque e Maria Emilia Prado destacam-lhe a militância abolicionista, a demanda pelas reformas sociais e o projeto de sociedade por ele formulado. Por sua vez, José Almino de Alencar oferece um balanço crítico da sua produção historiográfica, ao passo que Vasco Mariz e Antonio Celso Alves Pereira analisam-lhe a performance como diplomata. Mais longa do que de hábito, a seção Artigos e Ensaios completase com quatro originais. No texto “ Dano e prejuízo da Fazenda Real”, Marcos Sanches discute a dinâmica dos processos de arrematação na Capitania do Rio de Janeiro. Já o contributo de William de Souza Martins compara aspectos administrativos e critérios de representatividade na organização das filiais das ordens terceiras do Carmo e de São Francisco. Avançando no tempo, Lucia Bastos Pereira das Neves examina as idéias políticas e culturais no início dos anos oitocentos que circularam no Brasil, por meio da atividade de impressores e livreiros. Na longue durée, o

ensaio de Marisa Saenz Leme problematiza a política de terras na América portuguesa e no Império, estabelecendo uma interessante comparação com os Estados Unidos da América do Norte. No segmento Comunicações, como de costume, a R.IHGB privilegia trabalhos expostos em sessões da Comissão de Estudos e Pesquisas Históricas (CEPHAS). Fernando Tasso Fragoso Pires, conhecido estudioso das fazendas fluminenses de café, recupera a história de três propriedades situadas no Caminho Novo, na altura de Petrópolis, cujas sedes foram preservadas pelo tombamento federal. A intervenção de Lena Castello Branco Ferreira de Freitas focaliza a marcha do desbravamento das terras de Goiás, por meio do relato da saga da família Caiado, ali estabelecida desde o século XVIII. A ocupação do planalto central também é tangenciada no texto de Nelson Senra, que joga luz sobre o papel desempenhado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no processo de transferência do Distrito Federal para o interior do país, sobretudo, na demarcação do sítio onde hoje se ergue a cidade de Brasília. Aliás, um dos precursores da ideia de deslocar para o hinterland a capital brasileira foi José Bonifácio de Andrada e Silva, autor de uma memória científica sobre a questão, apresentada à Assembleia Constituinte de 1823. Embora seja mais conhecido por sua atuação política, o “Patriarca da Independência” era renomado homem de ciência. Pois bem, a seção Documentos, a R. IHGB dá publicidade a um manuscrito inédito do naturalista José Bonifácio, acompanhado de estudo introdutório preparado por Alex Gonçalves Varela. Arrematam o número duas resenhas críticas: a primeira, assinada por Monike Garcia Ribeiro, aborda a coleção “Teoria da História”, lançada por José Assumpção Barros. A segunda, redigida pelo sócio correspondente Carlos Francisco Moura, contempla o livro A Serra e a Cidade; o Triângulo Dourado do Regionalismo, da socióloga portuguesa Maria Beatriz Rocha Trindade. Boa leitura!

Lucia Maria Paschoal Guimarães



Diretora da Revista

Joaquim Nabuco e o pensamento brasileiro

I – ARTIGOS E ENSAIOS

ARTICLES AND ESSAYS JOAQUIM NABUCO E O PENSAMENTO BRASILEIRO Joaquim Nabuco and the Brazilian thought Ricardo Vélez Rodríguez 1

Resumo: A contribuição examina dois aspectos relativos ao ideário defendido por Joaquim Nabuco, que são relevantes para o pensamento político brasileiro: em primeiro lugar, o compromisso do jovem aristocrata com o ideal monárquico; em segundo, a pauta política do deputado desenvolvida na sua prática parlamentar: O abolicionismo.

Abstract: This text examines two aspects of the ideas argued by Joaquim Nabuco, which are relevant to the Brazilian political thought: first, the young aristocrat commitment with the monarchical regime; and second the political agenda developed by Nabuco in his parliamentary practice: the abolition of slavery

Palavras-chave: pensamento político - ideal monárquico - prática parlamentar - abolicionismo.

Keywords: Political thought- monarchical regime - parliamentary practice- abolition of slavery

Pretendo, neste comentário, desenvolver dois aspectos relativos ao pensamento de Joaquim Nabuco, que me parecem relevantes para a meditação brasileira: 1 – O queridinho dos salões e o ideal monárquico; 2 – Uma pauta para a política parlamentar: O abolicionismo. Farei, antes, um breve escorço biobibliográfico do nosso autor. Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo foi o quarto filho de José Tomás Nabuco de Araújo e Ana Benigna de Sá Barreto, sendo que os seus irmãos eram: Sizenando, Rita de Cássia (Iaiá), Vitor e a caçula, Maria Carolina (Sinhazinha). Nasceu no Recife, em 19 de agosto de 1849. Em dezembro desse ano, Nabuco de Araújo, eleito deputado, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. O menino Joaquim (Quincas) ficou com os padrinhos, no engenho Massangano, no Recife. Em 1857, em decorrência da morte da madrinha, Nabuco foi para o Rio morar com os seus pais. No ano de 1859 estudou, interno, no colégio do Barão de Tautphoeus, em 1 – Sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Nova Friburgo. No ano seguinte, ingressou no Colégio Pedro II, tendo se bacharelado em Letras, em 1865. Em 1866 ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, onde estudou durante três anos, destacando-se pelos seus pendores de orador e pelo fato de organizar o jornal A Independência. No ano seguinte, Nabuco organizou o jornal estudantil A Tribuna Liberal, e escreveu Estudos Históricos. Em 1868, o nosso autor traduziu, para o pai, documentos do jornal Anti-Slavery Reporter, órgão da British and Foreing Anti-Slavery Society. Em 1869, transferiu os seus estudos para a Faculdade de Direito do Recife. Em novembro desse ano, Nabuco formou-se em ciências sociais e jurídicas, tendo voltado ao Rio de Janeiro, onde começou a sua vida de dandy, frequentando os salões do Império. Lembremos que em setembro de 1871 foi proclamada a Lei do Ventre Livre. Em 1873, ano da formação do Partido Republicano de São Paulo, o nosso autor realizou a sua primeira viagem à Europa. Conheceu, no navio, a jovem e rica aristocrata Eufrásia Teixeira Leite, com quem viveu tumultuado noivado, que teve como palco a Europa e o bairro da Tijuca, no Rio. Nabuco, já maduro, em 1889, preferiu casar com uma filha da aristocracia remediada, de prendas domésticas, Evelina Torres Soares Ribeiro. Com ela teve cinco filhos: Maria Carolina, Maurício, Joaquim, Ana Maria e José Thomaz. Em 1875, fundou, com Machado de Assis, a revista A Época. No ano seguinte, ocupou o seu primeiro emprego, como adido da Legação Brasileira nos Estados Unidos. Em 1878, o nosso autor foi transferido para Londres, ocupando o mesmo posto de adido de Legação. Tendo falecido o pai, Nabuco regressou ao Brasil. Elegeu-se deputado e fundou, em 1880, no Rio de Janeiro, com André Rebouças, a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão e lançou, a seguir, o jornal da Sociedade, O Abolicionista, redigido, na íntegra, por ele mesmo. Em 1881, o nosso autor candidatou-se para a Câmara dos Deputados pelo 1º distrito da Corte, mas não se elegeu. Mudou-se para Londres, como correspondente do Jornal do Comércio. Em 1882, tornou-se membro da British and Foreing Anti-Slavery Society. Em 1883, publicou o

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seu livro O Abolicionismo. Em 1887, em Londres, conheceu o grande reformista William Gladstone, por quem tinha admiração profunda. No final desse ano, elegeu-se deputado e passou a desempenhar, na Câmara, o papel de líder do movimento abolicionista. Este período representou a culminância do prestígio parlamentar de Nabuco. Em setembro de 1890, desgostoso com os rumos positivistas e jacobinos por que enveredara a República, o nosso autor publicou o manifesto intitulado: “Por que continuo monarquista”, vendeu a sua casa em Paquetá e passou a residir em Londres. Nabuco tornou-se correspondente do Jornal do Brasil. Residindo em Petrópolis, para onde se mudara com a família em 1893, recebeu várias propostas para aderir à República, tendo-as recusado. Ao ensejo de uma dessas negativas, escreveu o seu manifesto intitulado: O dever dos monarquistas. Em 1896, o nosso autor aderiu ao recém-fundado Partido Monarquista. Em vista de que não foi indicado para continuar dirigindo o jornal dessa agremiação, A Liberdade, afastou-se do partido. Em 1897, foi eleito secretário-geral da Academia Brasileira de Letras. Entre 1898 e 1899, Nabuco publicou os dois volumes de Um estadista do Império. Integrou, a pedido do presidente da República, a missão para estudar a questão das Guianas, que seria arbitrada em favor da Inglaterra, fato que o aborreceu profundamente. Em 1900, o nosso autor assumiu a embaixada brasileira em Londres e publicou Minha formação. Em 1901, publicou os seus Escritos e discursos literários. Em 1905, tendo sido criada a representação diplomática do Brasil em Washington, Nabuco assumiu o cargo de embaixador. Em 1906 presidiu, no Rio de Janeiro, a Conferência Pan-americana. Recebeu o título de doutor honoris causa das Universidades de Columbia e de Yale. Em 17 de janeiro de 1910, Joaquim Nabuco morreu em Washington, vítima de congestão cerebral. O seu corpo foi transportado para o Rio de Janeiro, onde foi velado no Palácio Monroe e, depois, enterrado no Recife.

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1 – O queridinho dos salões e o ideal monárquico. A vida nas cortes europeias girava em torno dos salões, notadamente na França, ao longo do século XIX. Já desde os tempos do Primeiro Império, logo após a Revolução Francesa, eles floresceram. Napoleão Bonaparte apreciava muito a suntuosidade dos bailes palacianos e o burburinho de belas mulheres, homens de negócios, governantes, embaixadores e nobres que acudiam aos mesmos [cf. Lévy, 1943:35]. Madame de Staël, a corajosa opositora ao absolutismo bonapartista em ascensão, considerava que a pior coisa que poderia lhe suceder era viver fora dos salões parisienses. De fato, o seu inimigo mais feroz, o Imperador, baniua da corte e dos salões, fato que ensejou a escrita dessa magnífica obra de lamento e crítica mordaz ao seu algoz, intitulada Dez anos de exílio [cf. Staël, 1996]. Na corte de Luís Filipe, entre 1830 e 1848, o brilho dos salões constituía ainda a mola mestra da sociedade, o que levou Victor Cousin, o maior filósofo da corte, a dedicar os seus últimos anos de vida a historiar a vida desses memoráveis recintos de cultura, intrigas palacianas e fofocas cortesãs, num momento identificado pelos historiadores como “La Belle-Époque de la monarchie de juillet” [cf. Caron, 1993:117]. Na corte portuguesa transplantada para o Rio de Janeiro em 1808, no Primeiro Reinado, na Regência, mas especialmente no Segundo Reinado, não podia ser diferente: a vida dos salões era como que o coração social da cidade. Joaquim Nabuco, o jovem Quincas, como o chamavam familiares e amigos mais íntimos, experimentou, de forma muito viva, o ambiente dos salões do Segundo Reinado. Único país latino-americano a ter instituído vida de corte (as tentativas mexicanas foram muito curtas e sanguinolentas), o Brasil constituiu palco privilegiado, nas Américas, para essa experiência social. A propósito da vida cultural do Rio de Janeiro, no início da década de 1870, escreveu Angela Alonso: “A boa sociedade se encontrava nos teatros, como o de São Pedro, na praça do Rossio. No Casino Fluminense dançavam-se quadrilhas; schottish; polca; mazurca e valsa. O clube Mozart tinha serões, com

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a presença da família imperial, e no clube Beethoven havia recitais de música de câmara de Chopin, Weber, Mendelssohn – mas a moda eram os italianos, suas óperas e especialmente Rossini. O epicentro da vida social eram os salões. Neles, Quincas, o Belo, reinou. Os dotes naturais, o jeito faceiro e o requinte da última moda fizeram dele um partido desejado. Recitava madrigais às moças e ganhava a fama de sedutor, como Juca Paranhos, filho do visconde de Rio Branco, o então todo-poderoso chefe de gabinete” [Alonso, 2007:32].

É bem verdade que algo de taciturno rodeava a corte de Dom Pedro II, austero por natureza e pela importância que o Imperador conferia à vida familiar e aos estudos. Mais do que grandes festas no Palácio Imperial, o Monarca preferia pequenas reuniões com familiares e amigos íntimos. Mesmo assim, ou talvez justamente por essa característica de austeridade imperial, a sociedade abria lugar para que, nos salões mantidos pela nobreza e pelos altos funcionários do Império, se vivessem as pequenas glórias da vida de corte. “Essa abdicação da suntuosidade cortesã pela família imperial – frisa Angela Alonso – pulverizou a vida social em salões particulares. A pequena envergadura da boa sociedade obrigava a uma rotação dos dias da semana entre os anfitriões, de modo a minimizar a competição pelos convivas. A condessa de Barral, preceptora das princesas e amante do imperador, dirigia uma pequena corte, para onde afluíam políticos em busca de favores imperiais. No salão da marquesa de Abrantes, em Botafogo, bailes, concertos, jogos, representações e tertúlias atraíam diplomatas, políticos, homens de letras e de negócios. Havia distinções partidárias. Os conservadores iam ao barão de Cotegipe encontrar artistas e diplomatas, em jantares seguidos de voltarete, dança, poesia e música. Os liberais visitavam Francisco Octaviano, aonde os letrados – José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Bernardo Guimarães, Alfredo Taunay, Machado de Assis – iam ler trechos de obras em andamento” [Alonso, 2007:33].

Como se situava a vida da família Nabuco nesse contexto de corte? Diríamos que com uma dignidade austera, que lembrava os hábitos imperiais. Mas sem descuidar o refinamento da melhor tradição aristocrática. Os Nabuco não eram ricos. O Senador Nabuco de Araújo, patriarca da R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (451):13-30, abr./jun. 2011

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família, era conservador pernambucano de longa data, e foi juiz de direito e deputado (entre 1843 e 1851), presidente da província de São Paulo (em 1851), ministro da Justiça do gabinete Paraná (entre 1853 e 1857) e do gabinete Abaeté (entre 1858 e 1859), e, por fim, senador do Império (em 1857). O pai de Quincas sempre desejou, como culminância da sua carreira política, chegar ao cargo de Chefe de Gabinete. Nunca conseguiu, em decorrência do predomínio dos denominados “emperrados” na chefia do Partido Conservador. Nabuco de Araújo, reformista, não encontrou o lugar almejado na cúpula do Partido. Desgostoso, afastou-se da sigla tradicional e, junto com Zacarias de Góes, fundou novo partido, a Liga Progressista, em aliança com os liberais moderados. Embora não possuísse título de nobreza, o senador Nabuco de Araújo poderia ser arrolado entre os que Oliveira Vianna identificava como “Homens de Mil”, fiéis e incorruptíveis funcionários do Império [cf. Vianna, 1987:I, 300]. A principal biógrafa de Quincas caracteriza da seguinte forma a inserção da família do nosso autor no contexto dos salões da época: “Comparativamente pouco abastados, os Nabuco recebiam num salão menor, às quintas. Compensavam com elegância e austeridade, mantendo seu oratório aberto durante as recepções. Ali despontaram Sinhazinha e Iaiá, muito apreciadas como cantoras líricas, e debutou o Quincas. Foi assim, em casa, que ele conheceu os políticos brasileiros de proa, diplomatas estrangeiros e a alta sociedade. Virou habitué de todos os salões. Com o amigo Arthur, também rebento liberal, ia às soirées de Cotegipe. Apesar das marcas partidárias, a polidez com os adversários se impunha, uma exigência de bom-tom. Afinal, como diria em sua autobiografia, acima de quaisquer partidos está a boa sociedade. Nesse mundo reinava a etiqueta, e a moeda forte eram a elegância e a arte da conversação. A maestria nesses quesitos elevou Quincas a estrela de primeira grandeza. Solidificou-se como sedutor incorrigível e irresistível. Voltou-se especialmente para as mulheres maduras (...)” [Alonso, 2007:33-34].

Com uma delas ocorreu o seu primeiro affaire romântico. Tratava-se de uma senhora casada (Carolina Delfim Moreira). A paixão começara nos salões cariocas e prolongou-se no paraíso de Petrópolis. Completa-

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mente enamorado, Quincas confessava ao amigo Sancho, em setembro de 1871: “Quisera que a felicidade me venha sempre sob a forma que tomou para mim e que eu suponho a definitiva” [apud Alonso, 2007:34]. A fim de evitar o escândalo, o marido traído viajou para a Europa com a família. Quincas teria gostado de seguir a amada. Formado em Ciências Sociais e Jurídicas pela Faculdade do Recife, em 1870, o jovem bacharel não quisera praticar a profissão à frente de um escritório de advocacia. Preferia empreender uma viagem – mesmo que romântica – à Europa, como, aliás, faziam os jovens aristocratas da época. Mas os recursos familiares eram parcos, para lhe garantir longa permanência no Velho Continente. A hegemonia dos conservadores no poder, de outro lado, diminuía as chances de conseguir algum emprego oficial digno da sua estirpe. Procurou, junto ao ministro do Império, o conservador João Alfredo Correia de Oliveira, obter uma bolsa de estudos para “aprofundar seus estudos na Europa”. O ministro recusou a concessão da bolsa a Quincas com um argumento arrasador: “Sei que o moço quer pretexto para uma viagem romântica, acompanhando pessoa que já partiu, ou vai partir; e se eu não tivesse outros motivos para recusar a proposta, este seria peremptório” [apud Alonso, 2007:35-36]. De nada valeram os bons ofícios do diretor da Inspetoria da Instrução Pública Primária e Secundária do Rio de Janeiro, Homem de Mello, amigo do senador Nabuco de Araújo, nem sequer a intermediação do próprio Imperador. O austero ministro impôs a sua vontade. Funcionário público imperial era outra coisa. Em 31 de agosto de 1873, o nosso autor partiu para a sua primeira viagem à Europa. No navio conheceu a jovem aristocrata, sobrinha do conservador Barão de Vassouras, Eufrásia Teixeira Leite, com quem iniciou tumultuado namoro, que se prolongaria por anos a fio, sem que tivessem chegado ao casamento. Ela, herdeira de grande patrimônio. Ele, aristocrata remediado. As diferenças econômicas teriam sido o motivo das dificuldades que o namoro teve. A primeira escala do jovem viajante foi Paris. Ali, pela mão de aristocratas brasileiros, amigos de seu pai, como o barão de Itajubá, circulou pelos mais importantes salões, tendo tido a oportunidade de conhecer figuras importantes como Adolphe

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Thiers, Jules Simon, Victor Schoelcher, Edmond Schérer, Édouard de Laboulaye, Charles Edmond, Saint-Hilaire, Renan, Hipólito Taine e a já velha senhora George Sand, com quem conversou animadamente sobre amenidades literárias e políticas. Em junho de 1874, o nosso autor chegou a Londres. A majestade da city impressionou fortemente Nabuco. No entanto, ele ficou balançado entre a feminina Paris e a máscula capital britânica, Meca do capitalismo. Mas a balança pendia, no peito do jovem viajante, em favor da metrópole francesa. Quincas avaliava esta com o coração e Londres com a razão. Como, aliás, fazia com os seus inúmeros amores parisienses. Eufrásia, radicada na capital francesa, era a prima donna das suas preferências afetivas. As namoradas britânicas que teve, durante as várias permanências em Londres, eram pragmáticas demais para o jovem advogado. Em A minha formação escreveu a respeito dessa ambiguidade, transportada para os respectivos povos, o francês e o inglês: “Às vezes me distraio a pensar que povo eu salvaria, podendo, se a humanidade se devesse reduzir a um só. Minha hesitação seria entre a França e a Inglaterra – aliás, sei bem que no começo do século quem eliminasse a Alemanha do movimento das idéias, da poesia, da arte, eliminaria o que ele teve de melhor. Entre a França e a Inglaterra, porém, fico sempre incerto. O meu dever seria, talvez, socorrer a França. Se madame Récamier e eu estivéssemos a nos afogar, qual de nós duas o senhor salvaria? – perguntou uma vez madame de Staël ao seu amigo Talleyrand. Oh! Madame, vous savez nager. A Inglaterra, também, sabe nadar” [Nabuco, 2005:70].

Mesmo a Inglaterra sabendo nadar, ou talvez por isso, desde o início a preferência prática de Nabuco foi por Londres e não por Paris. Foi na city onde o nosso autor passou a maior parte dos anos vividos na Europa, antes da sua final destinação estado-unidense. Vale a pena acompanhar o raciocínio de Nabuco em relação à sua apreensão de ambas as metrópoles, que é uma apreciação das duas culturas, a inglesa e a francesa, muito semelhante, aliás, à que já tinha efetivado François Guizot nessas duas magistrais lições (13 e 14) da sua Histoire de la civilisation en Europe. O

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nosso autor escreveu, a respeito: “O gênio francês tem todos os raios do espírito humano, principalmente os raios estéticos; o gênio inglês não os tem todos, tem até uma opacidade singular nos focos do espírito, que merecem o nome de franceses, em quase todos os que merecem o nome de atenienses. A Inglaterra – a associação de idéias tem sido muitas vezes feita – é a China da Europa; isto é, tem uma individualidade inamolgável, incapaz de tomar a fisionomia comum. Latinos, alemães eslavos formarão uma só família, por muitíssimos traços comuns, antes que o inglês deixe de ser um tipo sui generis, à parte do tipo coletivo europeu. Por esse motivo, a França, só, representaria melhor a humanidade do que a Inglaterra; há nela mais atributos universais, maior número de faculdades criadoras, de qualidades de tronco, maior soma de hereditariedade humana, de possibilidades evolutivas portanto, do que no particularismo e no exclusivismo inglês. Em compensação, a raça inglesa parece ser mais sã, mais elástica; ter maior vigor mesmo de gênio e de criação; maior provisão de vida e de força – ainda que a força sem a imaginação e a cultura (que na Inglaterra tem sido, em grande parte pelo menos, estrangeira) possa degenerar em brutalidade e egoísmo. Estão aí as razões da minha hesitação, quando imagino um novo dilúvio universal e me pergunto que país, nos mais altos interesses da inteligência humana, mereceria o privilégio de construir a arca” [Nabuco, 2005:70].

Londres, para Nabuco, era grande como grande foi a Roma dos Césares. “Qualquer que seja a explicação, – escreveu em A minha formação – o fato é que nunca experimentei esse prazer de viver em Paris, que foi e é a paixão cosmopolita dominante em redor de nós. A grande impressão que recebi não foi Paris, foi Londres. Londres foi para mim o que teria sido Roma, se eu estivesse entre o século II e o século IV, e um dia, transportado da minha aldeia transalpina ou do fundo da África Romana para o alto do Palatino, visse desenrolar aos meus pés o mar de ouro e bronze dos telhados das basílicas, circos, teatros, termas e palácios; isto é, para mim, provinciano do século XIX, foi, como Roma para os provincianos do tempo de Adriano ou de Severo: a Cidade. Essa impressão universal, da cidade que campeia acima de todas, senhora do mundo pelo milliarium aureum, o qual no século

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tinha de ser marítimo; essa impressão soberana, tive-a tão distinta como se a humanidade estivesse ainda toda centralizada. O efeito dessa impressão de domínio foi uma sensação de finalidade, que somente Londres me deu (...)” [Nabuco, 2005:70-71].

Porém, não foi a City, como monumento, foram as instituições políticas inglesas, todas elas criadas para garantir a liberdade dos cidadãos, as que mais fortemente impressionaram Nabuco. Após a sua permanência em Londres, o nosso autor passou a defender, com ardor, o modelo britânico de monarquia constitucional como o mais civilizado da Terra. As instituições do governo representativo, a magistratura e o papel simbólico da monarquia: eis os três elementos que constituíam a pedra de toque das instituições britânicas. A propósito, escreve Nabuco: “O que deixa tão funda impressão na Inglaterra é, antes de tudo, o governo da Câmara dos Comuns: a suscetibilidade daquele aparelho, ainda perante as mais ligeiras oscilações do sentimento público, a rapidez dos seus movimentos e a força, em repouso, da reserva, que ele concentra. Mais ainda, porém, do que a Câmara dos Comuns, é a autoridade dos juízes. Somente na Inglaterra, pode-se dizer, há juízes. Nos Estados Unidos a lei pode ser mais forte do que o poder; é isso que dá à Corte Suprema de Washington o prestígio de primeiro tribunal do mundo, mas só há um país no mundo em que o juiz é mais forte do que os poderosos: é a Inglaterra. O juiz sobreleva à família real, à aristocracia, ao dinheiro e, o que é mais do que tudo, aos partidos, à imprensa, à opinião; não tem o primeiro lugar no Estado, mas tem-no na sociedade (...). Esta é, a meu ver, a maior impressão de liberdade que fica da Inglaterra. O sentimento de igualdade de direitos ou de pessoa na mais extrema desigualdade de fortuna e condição é o fundo da dignidade anglo-saxônia” [Nabuco, 2005:83].

Fazendo especial referência à instituição monárquica, eis a apreciação entusiasmada de Nabuco, convertido, após a sua primeira viagem a Londres, em incondicional defensor da monarquia constitucional: “Foi na Inglaterra que senti que nunca a nossa raça atingiu o mesmo ponto de altivez moral que em uma Monarquia. Com o privilégio dinástico, que também o meu radicalismo rejeitava, eu agora o via bem,

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não se fazia no século XIX senão aproveitar a tradição nacional mais antiga e mais gloriosa para neutralizar a primeira posição do Estado. A concepção monárquica ficava sendo esta: a do governo em que o posto mais elevado da hierarquia fica fora de competição. Era uma concepção simples como a da balança, como a do eixo. Nenhum direito se transformou tanto no decurso deste século no Ocidente como o direito real, que de divino passou a ser passivo. O rei da Inglaterra, se quiser influir na política com as suas idéias próprias e a sua iniciativa, tem primeiro de abdicar e – se a hipótese é admissível – fazer-se eleger à Câmara dos Comuns ou tomar a direção da Casa dos Lordes. Entre o czar e a rainha Vitória a diferença de autoridade é infinitamente maior do que entre a rainha Vitória e o presidente dos Estados Unidos. O governo pessoal é possível na Casa Branca; é impossível em Windsor Castle” [Nabuco, 2005:84-85].

2 – Uma pauta política: O abolicionismo. Tardiamente Quincas entrou no universo da política partidária. Preferiu, antes dela, a tarefa de correspondente de imprensa, como colunista do Jornal do Comércio em Londres. Deu preferência, outrossim, aos trabalhos como consultor de empresas, atividade que desempenhou juntamente com o jornalismo econômico. Também escreveu artigos jornalísticos sobre política, mas em menor escala, em decorrência do fato de o jornal para o qual escrevia estar interessado mais naquilo que tangia aos negócios. Exerceu Quincas, outrossim, funções públicas: primeiro, como adido da Legação Brasileira nos Estados Unidos (entre junho de 1876 e fevereiro de 1878) e, depois, na mesma função junto a Legação em Londres (entre fevereiro e abril de 1878). Morto o pai nesse ano, Nabuco viu-se obrigado a regressar ao Brasil e ocupar a trincheira parlamentar que o seu progenitor tinha dignificado durante décadas, como senador do Império. Em 5 de setembro, o nosso autor elegeu-se deputado. Embarcado na carreira política pouco à vontade, Nabuco passou a buscar um norte para a mesma, na escolha de algum tema que lhe servisse de bordão parlamentar. Curiosa a situação do Quincas, muito parecida, aliás, com a vivida, décadas atrás, pelo jovem advogado Alexis

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de Tocqueville, que procurava uma atividade diferente daquela para a qual foi encaminhado pela família, como magistrado. Descontente com a dificuldade oratória para as funções de juiz, Tocqueville partiu, em 1831, para viagem de pesquisa sobre o sistema penitenciário americano, em companhia do amigo Gustave de Beaumont. Nove meses depois, o ainda magistrado desembarcava na França com um ensaio sobre o tema mencionado, mas também munido do rascunho da obra que marcaria a sua vida daí para frente: A democracia na América (1833). O jovem advogado, deixada a magistratura que exercia em Versailles, dedicou-se aos estudos sobre o grande tema da democracia moderna, que lhe deu inspiração para a sua participação no parlamento como deputado. Diferentemente de Tocqueville, Quincas estava bem-dotado para a oratória parlamentar. E, de modo semelhante ao escritor francês, elaborou acurada análise acerca de um tema de momento: a escravatura, que deu ensejo ao seu livro O abolicionismo. Na defesa das teses levantadas na obra, Joaquim Nabuco virou figura de prol do parlamento brasileiro e se firmou, outrossim, como ativista humanitário em nível internacional. Marco Aurélio Nogueira sintetizou, com claridade, nos seguintes termos, a contribuição do nosso autor ao debate parlamentar sobre a escravatura: “O abolicionismo e Nabuco se completaram. A causa da libertação ajudou a amortecer o impacto da política imperial sobre o jovem deputado (impedindo que ele fosse, por exemplo, cooptado) e nele acabou por encontrar um de seus mais brilhantes e talentosos porta-vozes. Como parlamentar e propagandista – e, nos momentos eleitorais, eficiente agitador – Nabuco deu o melhor de si ao abolicionismo, ajudando decididamente a fazer com que o movimento adquirisse operacionalidade política e os protestos das senzalas ecoassem no parlamento, nos jornais, nas cidades. Nele, pôde ser verdadeiramente radical, ir às raízes da sociedade. Personalidades, instituições, partidos, doutrinas e procedimentos, nada escaparia à sua crítica ferina e veemente, mas sempre ponderada; saberia como poucos aliar à denúncia apaixonada dos crimes da escravidão uma análise abrangente da estrutura social brasileira e dos grandes problemas nacionais. Beneficiado pelo renascimento do liberalismo brasileiro, que naquela década agitava-se

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como um todo, Nabuco não se limitaria a ser um mero repetidor das plataformas partidárias ou dos jargões abolicionistas: seria um renovador, um ideólogo. E acabaria por se aproveitar (não se sabe com que dose de consciência) da formação inglesa recebida ao longo dos anos 70, que lhe permitirá manter saudável distância do liberalismo mesquinho e limitado que se praticava no Brasil. Pôde, com isso, aderir de forma intransigente e não conservadora à luta pela emancipação dos escravos – uma causa grandiosa e humanitária até então desfocada pelo viés liberal-conservador predominante dos partidos e no sistema político” [Nogueira, 1988, apud Nabuco, 2000:10-11].

Uma breve anotação acerca da forma em que Nabuco utilizou as fontes inglesas. A magnífica biografia escrita por Angela Alonso deixa claro que o nosso autor louvou-se, conscientemente, na questão abolicionista, de duas fontes: de um lado, os discursos reformistas de Gladstone, que se encaminhavam em direção da democratização das instituições (sem pregação republicana e mantendo os institutos da monarquia constitucional); de outro lado, a plêiade de autores britânicos, irlandeses e americanos que, a partir da The British and Foreing Anti-Slavery Society, fundamentavam a luta abolicionista, pelo mundo afora, como uma questão de ordem moral. A Sociedade Brasileira contra a Escravidão (SBCE), nascida, em 1880, na casa dos Nabuco, no Rio de Janeiro, recolheu essa herança moderada (as grandes mudanças sociais realizam-se com reformas liberais, à la Gladstone, não com revoluções, à la Karl Marx), bem como a ideia dos antiescravagistas anglo-saxões, da criação de uma rede política internacional que pressionasse o governo brasileiro em prol da abolição [Cf. Alonso, 2007, p. 116 seg.]. Quais foram as teses centrais da obra de Nabuco, O abolicionismo, publicada pelo autor, em Londres, em 1883? Essas teses (que passaram a inspirar a pregação parlamentar do nosso autor, ao longo da segunda parte da década de 1880), são as seguintes, nas palavras dele: “Queremos acabar com a escravidão (...) pelos seguintes (motivos): 1– Porque a escravidão, assim como arruína economicamente o país, impossibilita o seu progresso material, corrompe-lhe o caráter, desmoraliza-lhe os elementos constitutivos, tira-lhe a energia e a resolução,

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rebaixa a política; habitua-o ao servilismo, impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitais do seu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre classes, produz uma aparência ilusória de ordem, bem-estar e riqueza, a qual encobre os abismos de anarquia moral, de miséria e destruição, que do Norte ao Sul margeiam todo o nosso futuro. 2 – Porque a escravidão é um peso enorme que atrasa o Brasil no seu crescimento em comparação com os outros Estados sul-americanos que a não conhecem; porque, a continuar, esse regime há de forçosamente dar em resultado o desmembramento e a ruína do país; porque a conta dos seus prejuízos e lucros cessantes reduz a nada o seu apregoado ativo, e importa em uma perda nacional enorme e contínua; porque somente quando a escravidão houver sido de todo abolida, começará a vida normal do povo, existirá mercado para o trabalho, os indivíduos tomarão o seu verdadeiro nível, as riquezas se tornarão legítimas, a honradez cessará de ser convencional, os elementos de ordem se fundarão sobre a liberdade, e a liberdade deixará de ser privilégio de classe. 3 – Porque só com a emancipação total podem concorrer para a grande obra de uma pátria comum, forte e respeitada, os membros todos da comunhão que atualmente se acham em conflito, ou uns com os outros, ou consigo mesmos: os escravos, os quais estão fora do grêmio social; os senhores, os quais se vêem atacados como representantes de um regime condenado; os inimigos da escravidão, pela sua incompatibilidade com esta; a massa inativa da população, a qual é vítima desse monopólio da terra e dessa maldição do trabalho; os brasileiros em geral que ela condena a formarem, como formam, uma nação de proletários” [Nabuco, 2000:91-92].

Em síntese, o que Nabuco pregava era, apenas, que o Brasil se modernizasse plenamente, alargando a conquista da liberdade a todos os habitantes deste imenso país e adotando, de forma plena, uma economia de mercado que preservasse as instituições de governo representativo existentes no Império. Não aderia à pregação republicana. Exorcizava, pioneiramente, a deletéria tese, nascida nos arraiais do jacobinismo e do socialismo marxista, da divisão irreconciliável da Nação brasileira em campos irreconciliáveis que confrontassem, em fratricida luta, negros contra brancos, empresários contra empregados, silvícolas contra habitantes das cidades, etc. Pena que o nosso autor não tivesse compulsado os escritos

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de Alexis de Tocqueville (com os quais, certamente, encontraria plena identificação, de forma semelhante à simpatia que despertaram, nele, os discursos de Gladstone). É que os tempos eram outros e Tocqueville, nos idos de 1870, tinha se ocultado nos canais subterrâneos das tradições que não são esquecidas, mas que dormitam à espera de um novo amanhecer: o grande escritor francês somente seria redescoberto no século XX, ao ensejo da luta heroica da Europa, arrasada por duas guerras mundiais, na trilha da luta a morte entre o totalitarismo e a Liberdade. Concluamos. Qual foi a relevância de Joaquim Nabuco para o pensamento brasileiro? Responderia brevemente: a lição de moderação liberal nas reformas a serem executadas, a defesa das instituições que – como a monarquia e o governo representativo – garantiam o exercício da liberdade por parte de todos os cidadãos, a coragem para lutar por aquilo que ele considerava questão de justiça (a abolição da escravatura, notadamente) e, em matéria de política externa, um sadio realismo que consultava os interesses da Nação, não apenas as mesquinhas perspectivas partidárias ou de pessoas. Este último ponto exigiria que fosse analisada, com detalhamento, a passagem de Nabuco pela embaixada brasileira em Washington, no final da sua brilhante corrida de estadista. Façamos para terminar, uma apertada síntese do que significou a lição de diplomacia deixada pelo nosso autor. Duas tendências da política externa brasileira foram delineadas no início da República: o Brasil deveria privilegiar, no seu relacionamento internacional, a perspectiva sul-americana, em decorrência da urgência de delimitação clara das nossas fronteiras, a fim de evitar confrontos ulteriores. Esta foi a opção adotada pelo ministro do exterior, o Barão do Rio Branco. A segunda tendência, formalizada por Nabuco, consistia em privilegiar, na nossa política externa, a perspectiva de pan-americanismo que se desenhava nesse momento e que ia colocar o Brasil no contexto da globalização da época, ao abrigo da doutrina Monroe. O nosso autor achava que essa opção não conflitava com a primeira; mas destacava que não poderia o Brasil se fechar numa

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opção sul-americana, que comprometesse a abertura ao grande mercado que se desenhava, o norte-americano e que nos trancafiasse, ressentidos, no pequeno universo da nossa vizinhança. Pareceria que o nosso primeiro embaixador em Washington tivesse enxergado os impasses ensejados por uma visão terceiro-mundista, ao ensejo de uma Unasul contraposta à Organização dos Estados Americanos. Tremenda atualidade das lições diplomáticas de Joaquim Nabuco! Uma última observação. Cometi a injustiça de não analisar, nestas páginas, uma das obras-mestras do nosso autor, Um estadista do Império. Problema de tempo e de espaço que espero futuramente equacionar. Mas valha apenas destacar uma lição que se depreende dessa magna obra: a defesa desassombrada do Segundo Reinado, não na trilha de um saudosismo vácuo, mas no caminho construtivo de mostrar o que essa experiência poderia iluminar a nossa vida republicana. O Império, para Nabuco, colocou em alto a ideia da necessidade de uma aristocracia sobre a qual tivesse estabilidade o serviço público. Ele próprio trocou a aristocracia dos salões pela encontradiça nos círculos intelectuais, como a Academia Brasileira de Letras. Ora, o nosso autor adaptou essa consideração às exigências republicanas, quando da sua fecunda passagem pela embaixada de Washington, cargo no qual culminou a sua brilhante carreira – e a vida. Fez algo semelhante ao que Tocqueville pensou quando, ao ensejo da descoberta da democracia americana, percebeu que, nos Estados Unidos, a velha aristocracia de origem feudal foi substituída pela ideia de idoneidade e de responsabilidade nas funções de gestão do Estado. Desde os Selected Men das localidades, até os Ministros de Estado, os Magistrados da Suprema Corte, os Congressistas e o Chefe do Executivo, o pensador francês encontrava, em todos eles, a exigência, de parte da sociedade, de uma capacitação para o exercício do cargo, bem como a pressuposição de que todos eles fossem responsáveis perante os cidadãos, não ficando ninguém fora do domínio da lei. Ora bem, essa foi exatamente a lição que Nabuco tirou do estudo do sistema inglês, bem como da sua adaptação à democracia americana. Em todos esses contextos, como,

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aliás, no desenho que traçou do ideal de regime republicano brasileiro (tardia e pragmaticamente aceito), o pensador pernambucano destacou os dois ideais de capacidade e de responsabilidade dos funcionários públicos, sem exceções. Bela lição de civilidade, muito atual em momentos em que o Brasil chafurda em abjeto populismo patrimonialista que coloca alguns – beneficiários do peleguismo, do compadrio político e dos lucros exorbitantes das empresas cooptadas pelo Estado – por fora da produtividade no trabalho e da prestação de contas a que somos obrigados os demais brasileiros. Referências Bibliograficas ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. BOSI, Alfredo. “Joaquim Nabuco, o ícone do novo liberalismo”. In: Ideologia e contra-ideologia: temas e variações. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. CARON, Jean-Claude. La France de 1815 à 1848. Paris: Armand Colin, 1993. CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO (organizador). Dicionário biobibliográfico de autores brasileiros. Salvador-Bahia: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro; Brasília: Senado Federal, 1999 (Coleção Biblioteca Básica Brasileira). CHACON, Vamireh. Joaquim Nabuco: revolucionário conservador (Sua filosofia política). Brasília: Senado Federal, 2000. (Coleção Biblioteca Básica Brasileira). GLADSTONE, William. The Throne and The Prince Consort; The Cabinet and Constitution. New York: Charles Scribner´s Sons, 1886. GUIZOT, François. Histoire de la Civilisation en Europe depuis la chute de l´Empire Romain jusqu´a la Révolution Française. 8ª edição. Paris: Didier, 1864. LÉVY, Artur. A vida íntima de Napoleão. (Tradução de Emil Farhat). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943. NABUCO, Joaquim. Minha formação. 10ª edição. (Introdução de Gilberto Freyre). Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981. (Coleção Itinerários). NABUCO, Joaquim. Minha formação. (Introdução de Gilberto Freyre). Brasília: Senado Federal, 1998, ( Coleção Biblioteca Básica Brasileira). NABUCO, Joaquim. Minha formação. São Paulo: Martim Claret, 2005.

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NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. 6ª edição. (Introdução de Marco Aurélio Nogueira). Petrópolis: Vozes, 2000. NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. 4ª edição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1975. SISSON, S. A. Galeria dos brasileiros ilustres. Brasília: Senado Federal, 1999, volumes I e II. (Coleção Brasil 500 anos). STAËL, Madame de (Germaine Necker de Staël-Holstein). Dix années d´exil. (Edição crítica preparada por Simone Balayé e Mariella Vianello Bonifacio). Paris: Arthème Fayard, 1996. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2ª edição. (Tradução, prefácio e notas de Neil Ribeiro da Silva). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1977. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras – Volume I: Fundamentos sociais do Estado (direito público e cultura). Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói: Universidade Federal Fluminense; São Paulo: USP, 1987.

Texto apresentado em agosto /2008. Aprovado para publicação em setembro /2008.

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Nabuco e o pensamento liberal inglês

Nabuco e o pensamento liberal inglês Nabuco and the British liberalism José Arthur Rios 1 Abstract: Joaquim Nabuco was definitely influenced by British liberals, especially by Gladstone, Stuart Mills and Bagehot. The latter, an economist, expressed the middle class values in his British Constitution. Unlike Rousseau, he was a sympathizer of the Monarchy, his liberalism adopted the Parliamentary regime based on a Cabinet Government and on a Parliamentary Monarchy, which was opposed to the American Presidentialism. Keywords: Liberalism – Monarchy - Presidentialism.

Resumo: Em Joaquim Nabuco foi decisiva a influência dos liberais ingleses, sobretudo de Gladstone, Stuart Mills e Bagehot. Este, economista, na sua A Constituição inglesa, exprimiu valores da classe média. Partidário da Monarquia seu liberalismo, contrário a Rousseau adotava o regime do Parlamentarismo baseado no governo de gabinete e na monarquia parlamentar que se opunha ao Presidencialismo Americano. Palavras-chave: Liberalismo; Monarquia; Parlamentarismo.

I Quando Nabuco aportou pela primeira vez à Europa em agosto de 1873, no vapor Chimborazo, Paris, sob a mão de ferro de Thiers, ainda curava as feridas da derrota de Sedan e dos massacres da Comuna. Enquanto isso a Inglaterra consolidava seu Império e viria o efeito das grandes reformas políticas de 1832 e de 1867. Nabuco apertou a mão de Thiers, atravessou o Canal e ouviu na Câmara dos Comuns a palavra ardente de Gladstone. Essa viagem lhe trouxe dois deslumbramentos: o primeiro foi conhecer, ainda a bordo, Eufrásia Teixeira Leite com quem viria a manter durante 14 anos uma relação amorosa – conflitante, entre noivado, rompimentos e reatamentos. Maior impacto no entanto, foi para ele a descoberta da Inglaterra, do Parlamento e da Monarquia Inglesa. Muito de espantar, em brasileiro do seu tempo, essa atitude. Os olhos do Brasil estavam postos na França, sobretudo em Paris, na sua moda, nos seus artistas, nos seus intelectuais, nas comoções frequentes de sua política. 1 – Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Todavia, para Nabuco, que se definia “por natureza um temperamento político”, essa revelação foi decisiva. Enquanto os liberais brasileiros, seus amigos, se encantavam pela França – alguns pelos Estados Unidos – Nabuco passou em Paris apenas o tempo de travar dois dedos de conversa com Renan, com Taine, e cortejar George Sand. Entregou-se, de corpo e alma, à fascinação de Londres, seus parques, seus monumentos, à oratória dos seus políticos e viu, nas casas do Parlamento, “a mais grandiosa sombra que uma construção civil projeta sobre a terra”. 2 É verdade que esse mocetão pernambucano, frequentador de salões e querido das moças, acadêmico de Direito, meio doidivanas, que chegava a Londres no viço e esplendor dos seus 25 anos, já recebera um preparo intelectual para esse vestibular político. Conta ele que, nos idos de 1869 numa livraria do Recife, talvez um sebo desarrumado e poeirento, topara com o livro, quase opúsculo, a Constituição Inglesa, de Walter Bagehot. Já muito lera sobre a Carta Magna britânica e absorvera páginas de alguns liberais ingleses como Stuart Mills, Spencer e outros. Mas foi Walter Bagehot quem lhe abriu os olhos para o real funcionamento do Regime Parlamentar inglês.3 II Quem foi afinal esse Walter Bagehot? Um economista inglês da brilhante geração dos anos 30 do século XIX, ligado ao nascimento do que hoje se chama “Economia como Ciência”. Nasceu em 1827, foi editor – no sentido inglês, do jornal Economist, desde 1860 até 1877 quando faleceu. Filho de banqueiro, ele próprio homem de banco, casou-se em família de políticos e ganhou acesso e relacionamentos na elite política inglesa. Passou a conhecer a vida do Parlamento na sua intimidade, através de suas maiores lideranças, Gladstone e Robert Lowe. Sem falar no convívio com os altos escalões de uma burocracia do Império em expansão, sobretudo os diretores do Banco da Inglaterra, toda a liderança bancária e financeira da City. Assim conseguiu vida e experiência que se 2 – Joaquim Nabuco, Minha Formação, São Paulo, Rio, 1934. 3 – É o próprio Nabuco quem o diz. V. Ibid, p. 7 e segs.

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reflete em seus dois grandes livros – a Constituição Inglesa, de 1867 e Lombard Street, de 1873. No primeiro, – que marcou, declaradamente, a vida e a obra de Joaquim Nabuco, – leem-se os frutos de uma observação cotidiana, apurada em minuciosa descrição do sistema político inglês. “A Constituição Inglesa é descrita, não como um texto jurídico, como qualquer advogado a descreveria, mas no seu concreto funcionamento, como Bagehot o testemunhou em seu contato com ministros, com chefes das repartições públicas e, sobretudo com a vida da sociedade em que se moviam os políticos do seu tempo.”4 Curioso observar que a carreira política do nosso ensaísta não se beneficiou desses vastos conhecimentos: tentou sem sucesso três vezes o ingresso no Parlamento. Isso contrasta com a difusão e influência do seu livro que emprestou luz nova ao entendimento da Constituição. Casa de ferreiro... Conservador, por temperamento, foi, sem contradição, nas suas ideias um liberal, acima de tudo homem de classe média, o que explica suas visões, também suas limitações. Essa classe média inglesa, meado o século, em plena era vitoriana, viria suceder à aristocracia na condução da coisa pública. Até depois da era napoleônica, os landlords, os latifundiários dominavam política inglesa. “A Inglaterra, – dizia um comentarista, em 1922, – é hoje mais classe média do que no tempo de Bagehot, o que torna sua análise mais relevante”. 5 Liberal de tradição conservadora? Explique-se o paradoxo: adepto de reformas não participava dos excessos radicais do partido liberal. Sua vinculação com os liberais resultava de sua convicção na necessidade 4 – Para uma curta e essencial biografia de Bagehot, V. Enciclopédia Britânica, art. “Bagehot”, V. II, p. 922, Londres, 1952. 5 – Norman Saint-Hohn Stevas, prefácio às The Collected Works of Walter Bagehot (8 volumes), V.vv, p. 37, Londres, 1974. Devo a Alberto Venâncio Filho essa indicação.

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do livre mercado. Homem de centro, Bagehot tinha a intuição de uma “fábrica social”, subjacente ao debate político, o que hoje chamaríamos em sociologuês, estrutura ou sistema social. Rejeitava a mudança pela mudança, que fanatiza os novidadeiros de todos os tempos, mas abraçava com entusiasmo tudo que pudesse promover o homem comum. Para compreender essa época, seus homens – e o nosso pensador, – é preciso entender que pairava sobre eles como sobre a classe média inglesa um grande medo. Na primeira metade do século XIX as classes médias emergentes temiam acima de tudo a erupção do Terror revolucionário, os anos infames de 1793 a 94, as delações, os tribunais, a guilhotina, o banho de sangue instaurado na França pelos Jacobinos. Por isso rejeitavam, repugnadas os “princípios franceses” – ainda que, com o tempo, ficasse claro que incluíam muita reforma racional e necessária.6 No Brasil dos anos 70 – na época em que Nabuco lia avidamente as páginas de Bagehot – o medo era a anarquia, entendida como uma grande insurreição da escravaria – o que nunca houve. Paradoxalmente, Bagehot – no momento em que Disraeli lançava as bases do império colonial britânico – ficaria feliz se a Inglaterra se libertasse da Índia e das Colônias e se tornasse uma potência de segunda classe. No seu entender de político moderado, essa medida viria a beneficiar a qualidade do povo, sua consciência cívica e aprimoraria suas mais genuínas inclinações. Nada mais estranho a seu espírito que a febre nacionalista vivida pela Europa até o século XX, dando os frutos que sabemos. Contra a corrente de ideias dominantes em seu tempo, Bagehot era avesso ao que chamava “radicalismo sentimental”, o romantismo político de inspiração rousseauniana que favorecia as massas em detrimento da

6 – Stevas, op.cit. p. 43. Para uma visão da política inglesa nesse tempo, ver o até hoje indispensável, Elie Halevy. A History of the English People, Londres, 1924, v. I, passim.

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elite. Sob esse ponto de vista era o que hoje se chamaria, com horror, um elitista. Nenhuma simpatia, portanto, com as várias formas de populismo. Nem é preciso dizer que não acreditava nos ideais da Revolução Francesa, ou de qualquer outra revolução. Era evolucionista, não revolucionário. Acreditava na “dignidade” cimento da ordem. Apostava em reformas moderadas, o que se traduzia em seu tempo em abrir o voto às mulheres e admiti-las nas universidades (estávamos em1870). Com isso o sexo dito fraco (escrevia tendo em vista as mães de família) se beneficiaria zelando pelo marido e os filhos. Para ele, a escravidão, está visto, era incompatível com a sociedade pré-industrial em que vivia. E defendia a reforma da lei penal. Hesito em classificá-lo como sociólogo; foi, certamente, um pensador político, avant la lettre, um psicólogo social. No seu livro Physics and Politics, de 1872, – escrito sobre a influência das ideias de Darwin – (A Origem das Espécies de 1859), como das teorias de Tylor e, sobretudo, de Henry Maine (O Direito Antigo, de 1861). Bagehot aplicou as ideias evolucionistas que Maine utilizara para uma compreensão da história do Direito à política inglesa. Buscou, sob a carne da política, a ossatura da sociedade – a ideia fria subjacente ao calor da paixão. Fundamental para entender essa obra é sua teoria da imitação como base e nervo das sociedades humanas – no que precedeu o francês Gabriel Tarde (As Leis da Imitação, de 1890). Não escapou, todavia, a um pecado intelectual do seu tempo, a obsessão de formular leis de evolução social. Encontrou as ideias simples na superioridade das sociedades que favoreciam a discussão, o debate sobre outras que a reprimiam. Mais que de sociólogo, são de psicólogo social suas considerações sobre o caráter inglês e sua relação com o sistema político. Atribuía a

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instabilidade da política e das instituições na França às convicções revolucionárias do povo francês. Como bom inglês, considerava os franceses algo levianos, daí a sucessão de terremotos políticos entre 1789 e 1848. Enquanto isso os ingleses, do outro lado do Canal, talvez fumando placidamente seus cachimbos, acompanhavam com espanto e um traço de ironia, coups d´état, os golpes e contragolpes, voltas e revoltas dos regimes políticos. O psicólogo confundia, nesse ponto, caráter com preconceito. Foi necessário alguns terremotos históricos para alterar essas prevenções, – durante a Segunda Guerra Mundial graças a De Gaule e aos esforços de compreensão e aproximação intelectual de escritores como André Maurois e sociólogos como Raymond Aron. Não se pense, entretanto, que fosse cego aos defeitos do seu país, entre eles, o conformismo que explicava pelo apego das classes médias emergentes ao conforto, e seus comodismos. Nada disso comoveu Nabuco na obra de Bagehot. O que o fascinou nessa leitura e o que o levou a dedicar ao inglês um capítulo inteiro de sua autobiografia foi a rejeição tanto do radicalismo republicano francês como do presidencialismo americano – tudo que resumiu como “a influência inglesa”. 7 Foi a descoberta de que a monarquia podia conviver com a liberdade e que os tempos do absolutismo estavam definitivamente encerrados. “Na Inglaterra senti que nunca a nossa raça atingiu ao mesmo ponto de altivez moral que em uma monarquia.” 8 Foi às margens do Tâmisa que passou a considerar a monarquia constitucional como “a mais elevada das formas de governo; a ausência de unidade, de permanência, de continuidade no governo que é a supe7 – “A ideia principal que recebi de Bagehot, foi essa superioridade prática do governo de gabinete inglês sobre o sistema presidencial americano; por outra que uma monarquia secular ... como é a inglesa, podia ser um governo mais direto e imediatamente do povo, do que a república”. Grifo do autor in Minha Formação, p. 18. 8 – Ib. pp. 3 e 5.

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rioridade para muitos da forma republicana, convertia-se em nível de inferioridade”. A essência dessa convicção ele a fundamentava no núcleo do sistema parlamentar inglês, para ele, a Câmara dos Comuns. No coração inglês, a fidelidade à Câmara dos Comuns precede a fidelidade à realeza e dessa regra não faz exceção a própria dinastia que sente como a nação. Passou a ter Bagehot como seu autor de cabeceira. Até então considerara a Câmara dos Comuns como algo importante, mas reduzia suas proporções na visão liberal, americanizada, de um autor francês muito lido por esse tempo no Brasil, o publicista e jurista Edouard de Laboulaye (1811-18).9 Era um especialista nos Estados Unidos, hoje se diria americanista, que revelava aos europeus esse país exótico e distante – os Estados Unidos da América do Norte. Nabuco, então no 4º ano da academia, já lia muita eloquência inglesa, “muito Fox e Pitt”, mas nutria desapreço pela realeza britânica, e muito mais pela Câmara dos Lordes instituição aristocrática que causava aversão a seu democratismo incipiente. Na formação política de Nabuco foi sempre declarada e dominante a influência paterna, do Senador e Ministro da Justiça, Nabuco de Araújo. O filho, nas suas memórias, conta que, em casa, proseava com Tavares Bastos e todo o grupo político liberal da época; andava de braço dado com Teófilo Ottoni, na rua do Ouvidor. E, na redação do Diário do Rio, trocava ideias com Saldanha Marinho e ouvia Quintino Bocayuva. “Liberal eu o sou duma só peça...”. Como liberal sofreu as glórias e os ostracismos dessa marca política. Até que o dominou a paixão do Abolicionismo que o levou a afastar-se até de correligionários.

9 – Nabuco inclui o nome de Laboulaye entre as pessoas que desejava ver em Paris. Pediu para isso cartas de apresentação a Renan. Não fica claro se chegou a se avistar com o publicista.

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Negava ao novo governo parlamentar, qualquer base representativa. Era um parlamento eleito oficialmente pelos delegados do ministério – “pantomima de governo”.10 Era, na sua imaturidade liberal à brasileira, melhor dizendo à francesa, porque os bacharéis liberais brasileiros se uniam na opção por uma monarquia constitucional na linha de Benjamin Constant e de Luis Felipe, como também apostavam no federalismo e num abolicionismo mitigado e progressivo – devagar com o andor – mediante é claro indenização aos fazendeiros.11 Era a classe de que, quase todos, procediam e em que participavam. Muito mais tarde, em 1901, amadurecido o tribuno e convertido ao memorialismo, Nabuco viu a obra de Bagehot como “o livro de um pensador político, não de um historiador, nem de um jurista”, mas que lhe trouxe a visão “das molas da constituição, seu delicado aparelho e sua principal peça de aperfeiçoamento, – a dissolução regia, direito próprio do monarca”. Essa convicção nenhum outro autor da época, nem Freeman, nem Guizot, nem mesmo Macaulay, lhe proporcionaram. Freeman, por exemplo, lhe ensinou que a Constituição Inglesa “nunca foi feita”. Fato curioso: o povo inglês nunca pediu novas leis mas o cumprimento das existentes, porque, ponto essencial “a vida, a alma da lei inglesa foi sempre o precedente”. Bagehot como Nabuco o entendia, era quase um republicano. Quase republicanos eram os positivistas ingleses – Grote, Stuart Mill, John Morley, mas esse “quase” era tudo. Nabuco admitia que o inglês lhe dera 10 – Em seus Diários, edição de Evaldo Cabral de Melo, Rio, 2006, p. 135. 11 – Nabuco, até determinado momento, também foi partidário da abolição com indenização aos proprietários de escravos. Ver Discursos Parlamentares (seleção de Gilberto Freyre, Rio, 1949, p. 139 e sgs). “Propunha transferir a escravidão numa espécie de colonato (Ib. p. 164). Seu fulcro era a emancipação gradual e indenizada dos escravos”. Ângela Alonso, Joaquim Nabuco, os salões e as ruas, São Paulo, 2007, p. 97. Mas, depois mudou, lutou pela Abolição plena e sem indenização.

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poucas ideias, mas estas verdadeiras “chaves dos sistemas, concepções políticas, o genuíno estado de espírito moderno.” Quais essas ideias que passaram a nortear o pensamento político e a ação de Nabuco? Ora, era, afinal, seu liberalismo? A primeira “a alma da constituição inglesa, o governo de gabinete”. Nele, o Poder Legislativo escolhe o Executivo, uma espécie de comissão, ou poder delegado. O Legislativo confia no gabinete a parte prática dos negócios do Estado. Entre os dois poderes não há conflito. Se o Legislativo não está satisfeito muda essa delegação. Não há, porém, da parte do Executivo, o dever de obedecer cegamente ao Legislativo. Tem o direito de fazê-lo; ou aparece perante os eleitores para compor outra Câmara. O gabinete tem, portanto, o direito de dissolver a Câmara. É clara a diferença entre essa prática e o pensamento de Montesquieu, difundido entre alguns liberais brasileiros: a separação radical dos três poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário. No sistema inglês, o Gabinete é o laço que os une. O que existe é um só poder, – a Câmara dos Comuns. Nada semelhante ao regime presidencial em que os poderes são independentes e até rivais, muitas vezes em conflito aberto como, quase sempre, no momento de fixar o orçamento: o Executivo exige recursos, pede elevação de impostos, mais tributos, enquanto os interesses e pressões eleitorais, pesando no Legislativo, retardam ou bloqueiam sua votação. O orçamento torna-se então cabo de guerra entre os dois poderes e, afinal, dilui-se entre eles a responsabilidade pelo excesso ou míngua de tributos e – sofre o país. Nesse cenário o debate parlamentar, como lembrou Bagehot, é o grande educador da opinião pública que o acompanha e se identifica ou não com suas correntes partidárias. É o que se chama verdadeiramente tomar partido.

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No regime presidencial, – e, ao compará-lo com o sistema inglês, Bagehot visava os Estados Unidos – o Executivo paira acima do bem e do mal e o povo só entra no palco pelos bastidores, isto é, no momento das eleições, para pedir emprego ou barganhar apoio. O Executivo é intangível, inabalável. Por isso, no caso do Brasil republicano, um observador deu ao livro que escrevia sobre nosso país o título de – Sua Majestade o Presidente.12 Quem acompanha hoje os debates do Congresso – quem lê o Diário do Congresso? – os congressistas, por sua vez, clamam no deserto ou entravam a Administração quando não desempenham duplo papel – pais da pátria – para os eleitores, negociantes nas tratativas e conciliações de corredores. (Daí tanto se falar hoje em transparência, o que seria inútil e até risível num regime parlamentar.) Nem falemos da perplexidade do eleitorado, muitas vezes surpreendido, no sistema presidencial, por nomes obscuros ou desconhecidos. Nos Estados Unidos foi o caso egrégio de Lincoln, advogado de um Estado interiorano, por sorte um grande estadista, até sua eleição quase desconhecido. Em casos mais próximos o resultado não foi tanto feliz. Nos Estados Unidos as presidências desastrosas de Nixon e Bush, enquanto no Brasil ... passemos. Nabuco reconhece sua dívida com outras ideias de Bagehot. Distinguia o pensador inglês entre as instituições da Constituição que chamou eficientes – as que dão movimento e rumo à Administração – e as instituições imponentes, diríamos cerimoniais, as que produzem e conservam o respeito do eleitorado. 13 Foi aí que Nabuco se deparou com a respeitabilidade da monarquia inglesa, cuja única função – para muitos puramente decorativa – é representar simbolicamente um Poder. As coisas da realeza, até seus escândalos, mobilizam a opinião inglesa, agitam a parte afetiva, sentimental do 12 – Ernest Harmbloch, His Magesty, the President, Londres, 1934, passim. 13 – Nabuco, em discurso memorável, pronunciado perante a Câmara, em 1º de setembro de 1879, combateu as tentativas de imigração chinesa. Sobre o assunto, Ver Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, São Paulo, 14ª ed., 2003, p. 561.

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eleitorado. Seus rituais dão-lhe a sensação indispensável de segurança, dignidade, continuidade, atendem ao gosto universal do espetáculo. O Liberalismo brasileiro seguiu o rumo do Presidencialismo americano que lhe foi traçado, na Constituição Republicana, pelo engenho de Ruy Barbosa. Anos mais tarde, o Parlamentarismo foi bandeira de um pequeno e bravo Partido, o Libertador, empunhada pelo tribuno gaúcho Raul Pila. A ideia porém não logrou impor-se à opinião. O breve interregno parlamentarista, durante o governo do Presidente João Goulart, foi mero simulacro. Faltou-lhe algo essencial – o governo de gabinete. Hostilizado por um Presidente de formação e tradição incompatíveis com suas normas e disciplinas o Parlamentarismo não logrou criar raízes. O país era favorável ao Executivo, às vezes paternal, sempre autoritário, até ditatorial, mais do agrado das classes médias como das massas. O Liberalismo, depois de Nabuco, sofreu várias transmutações. Sob a forma francesa ou norte-americana incorporou-se a vários sistemas de Governo, foi o Liberalismo do fim do Império da República, foi Silveira Martins, foi Ruy. Congelou-se em várias Constituições, sofreu polêmicas e contraditas. Seu foco central mudou com os tempos: ora a expansão do direito de voto, ora as várias liberdades – de imprensa, de palavra, na luta contra as expansões indevidas do Executivo, contra os desmandos do Poder de Polícia. No século XX virou vítima expiatória dos extremismos de esquerda e direita. Entre nós, críticos de vários matizes atribuíram à doutrina liberal todos os erros e decomposições da República dita Velha. Oliveira Vianna deu a seu ensaio o título ambíguo de – O Idealismo da Constituição; não significava para ele um traço moral, e sim a anomia das elites republicanas. Teriam dado as costas à realidade brasileira – entidade de contornos vagos que passou a figurar com relevo na literatura, na ensaística dos anos 30.

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De fato, o grave pecado desses liberais foi ignorarem a questão social, no máximo considerada caso de polícia. A fermentação das massas desfavorecidas, a luta sindical, o arrocho salarial, o confinamento de operários e imigrantes a guetos – aqui chamados parques proletários – tudo isso as oligarquias políticas dominantes ignoraram e pagaram preço alto por essa indiferença, tornando-se caudatárias de ditaduras. No tempo de Nabuco, a questão social era a escravidão, sua substituição pelo trabalho livre dos imigrantes que os latifundiários brasileiros se esforçaram em reduzir à condição escrava. Num esforço de sobrevivência – e de imaginação – pretenderam até importar coolies chineses, sabidamente dóceis e de escassas necessidades, para tomar o lugar do africano nas plantações. Muito liberal, o brasileiro recuou ante o passo decisivo da Abolição plena. Temiam a anarquia. Nem se fale na reforma agrária que seria sua consequência lógica da Emancipação. Nabuco foi além da Abolição. Viu o cerne do problema no que chamou impropriamente o regime feudal das fazendas. Mas propôs – em O Abolicionismo (1883) – uma reforma da propriedade, não no sentido do coletivismo, mas distributista pelo acesso dos libertos à propriedade da terra. A República positivista e conservadora não o acompanhou, dando azo às quarteladas e mudanças constitucionais que desembocaram, através de revoluções que foram verdadeiras journée de dupes, às invasões atuais dos sem terra. O liberalismo teve sua morte proclamada por vários autores no correr do século. Apressaram-se em lhe passar o atestado de óbito. Não parece ter morrido. Sobreviveu nas diversas resistências que se opuseram aos totalitarismos. Porque é antes de tudo uma atitude e uma mentalidade – de defesa das liberdades contra toda forma de tirania, de opressão e de exclusão; contra a manipulação das massas e o crescimento do Estado, de suas burocracias. 14 14 – Sobre os destinos do liberalismo em nosso tempo, ver o ensaio do historiador inglês Tony Judt, “The Silence of the Lambs: on the strange death of Liberal américa”, in Reappraisals, Londres, 2008, pp. 384 e sgs. Sobre nossos “liberais escravocratas”, Ver Evaldo Cabral de Melo, Comentário aos Diários, op. cit., p. 215.

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O liberalismo de Nabuco, bebido nas boas fontes inglesas, permanece vivo na luta pela sobrevivência do Parlamento, como forma de convívio e de debate; pela ética e transparência nos negócios públicos. Por isso a lição de Nabuco permanecerá para as novas gerações como apelo e memória. Rio de Janeiro, IHGB, julho de 2010 Texto apresentado em agosto /2010. Aprovado para publicação em setembro /2010.

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Política e História: figurações da Escravidão e da Revolução nas obras de Joaquim Nabuco1 Politics and History: aspects of slavery and revolution in Joaquim Nabuco’s writings Izabel Marson 2 Resumo: Esta reflexão tem por objetivo demonstrar como o exercício do trabalho intelectual – sobretudo como historiador e jornalista – foi para Joaquim Nabuco um refinado recurso de atuação política. Nesse sentido, sinaliza o diálogo entre suas obras – A Escravidão (1870), O Abolicionismo(1883), Um Estadista do Império (1897) e Minha Formação (1900) – com questões políticas contemporâneas como a defesa da abolição do cativeiro, da causa monárquica e, especialmente, com a condenação das “revoluções jacobinas” na Europa e no Brasil. E conclui que a argumentação do político-historiador reiterou, de forma cada vez mais acentuada, um mesmo princípio – “reforma contra revolução”. Reiterou também convicções liberais aristocráticas espelhadas na política inglesa moderna e em orientações deterministas apreendidas de Hippolyte Taine. Dentre estas convicções destacamse a recusa da tirania dos soberanos, dos ditadores e das massas e a necessidade de estadistas na condução de sociedades inorgânicas como as sul-americanas em geral e a brasileira, do final do século XIX, em particular.

Abstract: This paper seeks to demonstrate how the practice of intellectual work – mainly as historian and politician – was for Joaquim Nabuco a refined instrument for political action. This is true in the dialogue among his writings - A Escravidão (1870), O Abolicionismo (1883), Um Estadista do Império (1897) and Minha Formação (1900) – and contemporary political issues, such as the defense of the abolition of slavery, of the monarchy and, especially, the condemnation of “Jacobinian Revolutions” in Europe and in Brazil. The conclusion is that the arguments of the politician/historian strongly reiterate only one principle –“counter-revolution reform”. They also reiterate liberal convictions of the aristocracy mirrored in British modern politics and in deterministic directions assimilated from Hippolyte Taine. Among those convictions, a few stand out: rejection of the tyranny of sovereigns, dictators and the masses, and the need for statesmen to lead unorganized societies, such as those in South America in general, and in Brazil at the end of the Nineteenth century, in particular.

Palavras-chave: Escravidão, Revolução, Império.

Keywords: Slavery, Revolution, Empire.

“Isto quer dizer que minha ambição foi toda, em política, de ordem puramente intelectual, como a do orador, do poeta, do escritor, do reformador”. (Joaquim Nabuco, Minha Formação)3

Tendo por objetivo trazer alguma contribuição para a temática proposta por este ciclo de conferências – Joaquim Nabuco: intelectual e ho1 – Pesquisa financiada pelo CNPq 2 – Livre-docente de História do IFCH/Universidade Estadual de Campinas e bolsista de Produtividade do CNPq. 3 – NABUCO, J. Minha Formação. 5ª ed. Brasília: Ed. da UnB, 1963, p. 35.

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mem de ação – apresento reflexão abordando um dos possíveis diálogos entre estas duas facetas do desempenho daquele personagem, ou em outros termos, como o exercício do trabalho intelectual – sobretudo como historiador e jornalista – foi, para Nabuco, um refinado recurso de atuação política. Nesse sentido, lembro a sensível imbricação de suas obras – A Escravidão, O Abolicionismo, Um Estadista do Império, Balmaceda, A intervenção estrangeira durante a Revolta da Armada e Minha Formação 4– com questões políticas contemporâneas como a abolição do cativeiro, a defesa da causa monárquica, a avaliação da derrota da Armada frente ao governo Floriano Peixoto, as implicações da abolição na queda da monarquia e, em todas as circunstâncias, a problemática questão das revoluções que Nabuco conheceu de perto e, intensamente, na viagem à Europa em 1873 e nas agitações e confrontos que precederam e acompanharam a instauração da República no Brasil. Marcando sua singularidade frente à atuação de outros monarquistas, preferia exercer uma modalidade muito particular de militância, especialmente após a queda do regime monárquico: estudar, compreender e divulgar as origens dos problemas que afligiram a monarquia, suas realizações e os motivos de seu declínio; conhecer os regimes republicanos implantados na América e suas probabilidades de evolução; ainda, atuar em seletas agremiações de intelectuais como o IHGB e a Academia Brasileira de Letras. Ainda tendo em vista o diálogo entre história e política, não por acaso, figuras literárias e, sobretudo, eventos e exemplos históricos sempre constituíram importante fio da argumentação escrita e falada do 4 – NABUCO, J. O Abolicionismo. Londres: Typ. de Abraham Kingdon, 1883; Balmaceda. R. de Janeiro: Typ. Leuzinger, l895; A intervenção estrangeira durante a Revolta da Armada. R. de Janeiro: Typ. Leuzinger, l896; Um Estadista do Império. Nabuco de Araújo, sua vida suas opiniões, sua época. R. de Janeiro/Paris: H. Garnier livreiro e editor, l897-99. 3 vols; Minha Formação. 1ª ed. Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier, 1900. As citações neste texto estão remetidas a: NABUCO, J. A Escravidão. Compilação de José Antonio Gonçalves de Mello; apresentação de Leonardo Dantas Silva; prefácio de Manuel Correia de Andrade. Recife:Fundaj/Ed. Massangana, 1988 (2ª. ed. comemorativa); NABUCO, J. Um Estadista do Império: Nabuco de Araujo – sua vida, suas opiniões, sua época. 2ª ed. S. Paulo: Cia. Ed. Nacional; R. de Janeiro:Civ. Brasileira, 1936. 2 v. e NABUCO, J. O Abolicionismo. Introdução de Marco Aurélio Nogueira. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1988. NABUCO, J. Minha Formação. 5ª ed. Brasília: Ed. da UnB, 1963.

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político-escritor, que os manejou com precisão no jornalismo, na Câmara e na escrita da História. No que diz respeito ao trato dos temas escravidão e revolução – referências privilegiadas na época de Nabuco e naquela argumentação –, personagens e circunstâncias da Roma republicana e imperial, da Grécia clássica, do Antigo Regime e da história do Império, dentre outras, marcaram presença nos pronunciamentos e obras do político-historiador. Assim recorreu a imagens do cativeiro, da servidão, da grande e pequena propriedades, da aristocracia, das rebeliões e da decadência das civilizações antigas, com destaque para a história de Roma,5 para explicar problemas sociais e situações do Brasil do século XIX – como a escravidão africana, as rebeliões do Império e a tirania imperial – e criar projetos políticos visando solucioná-los. Conforme bem apontaram seus interlocutores no Parlamento e sua biógrafa Carolina Nabuco, ocorrências de um amplo passado foram engenhosamente associadas na tessitura de convincente e pragmática retórica que, dentre outras realizações, concebeu o Abolicionismo, uma proposta de extinção do cativeiro e de “regeneração” das instituições monárquicas por meios parlamentares. Observar alterações nos significados daqueles temas e compreendê-las à luz das conjunturas históricas que as suscitaram constitui maneira profícua de perceber o diálogo entre história e política nos textos de Nabuco. Sempre sintonizado com a discussão no Parlamento e fora dele sobre as melhores formas de propriedade, de trabalho, de sociedade e de Estado para o Brasil, o político-historiador os (re)significou continuamente para adequá-los aos problemas e percepções de cada momento. Assim, em 1870, no texto A Escravidão, alertou para os perigos que aquela instituição representava para a integridade do Império e reconheceu diferentes 5 – Apropriadas especialmente aos Anais e Germânia, de Tácito e à História de Roma, do jurista, político e historiador liberal alemão Theodor Mommsen. TÁCITO, Cornélio. Anales (libros XI-XVI). Trad. José Moralejo. Madrid: Editorial Gredos, 1986; Germânia. Trad. J.M.Requejo. Madri: Editorial Gredos, 1999; MOMMSEN, Theodor. El Mundo de los Césares. Trad. Wencelao Roces. México: Fondo de Cultura Económica, 1995.(História de Roma, libro V). Nabuco citou especialmente trechos do cap. 1 desse volume, de título “Las províncias bajo Julio César”, pp.7-50.

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exemplos da condição escrava – um expressivamente negativo (o romano), e outros mais aceitáveis (o grego e o germânico) – para defender gradativa finalização do cativeiro por intermédio de uma lei que concedesse a liberdade ao ventre escravo, o direito ao pecúlio e ao resgate forçado expedientes que, em seu entender, naquele momento, evitariam os riscos de uma guerra civil como a recentemente ocorrida nos Estados Unidos, ou um conflito entre elites de diferentes regiões. Noutra ocasião, em 1883, no texto de O Abolicionismo, reiterou experiências da escravidão antiga (a romana especialmente) e da servidão do Antigo Regime para projetar valorações exclusivamente negativas da relação servil. E, ainda tendo em vista a ordem pública e razões de Estado, propôs uma reforma – entendida como substitutivo de uma pressentida revolução de cunho popular – que principiaria pela extinção rápida do cativeiro sem ônus aos cofres públicos, além do incentivo aos investimentos estrangeiros e à imigração europeia. Contudo, no final da década de 1890, ao divulgar Minha Formação, retomaria figurações nuançadas da condição escrava, providenciais na rememoração respeitosa do passado, das instituições monárquicas e de seus estadistas e, também, diante do quadro recém-superado de sangrentas guerras civis, de oportuna conciliação entre “abolicionistas e escravocratas” e entre monarquistas e republicanos. Acompanhemos o percurso dessa argumentação nesses três momentos: 1870, 1883 e 1900. 1. A Escravidão e a defesa da Lei de 28 de setembro de 1871 As primeiras figurações detalhadas do cativeiro apareceram em A Escravidão, texto escrito em 1870, quando Nabuco finalizava o curso de Direito no Recife. Peça que originalmente previa três atos – o crime, a história do crime e a reparação do crime – da qual só foram escritas as duas primeiras,6 seu conteúdo compôs-se, na primeira parte, com argu6 – O texto permaneceu inédito até 1951, quando foi publicado pela Revista do IHGB n. 204, relativa ao ano de 1949. As teses nele utilizadas provinham de fontes contemporâneas, destacando-se entre elas a obra do político e jurista Perdigão Malheiro, publicada originalmente em 1866-67. Cf. MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Intr. de Edison Carneiro. 3ª. ed. Petrópolis:Vozes, Brasília:INL, 1976.

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mentos do processo criado para livrar da pena de morte o escravo Tomás, autor de dois assassinatos. Intentando comprovar a inocuidade daquela punição quando o objetivo era prevenir atos de violência dos cativos, Nabuco faz severa denúncia contra a escravidão, demonstrando-a como “a opressão de uma raça sobre a outra sob o domínio da força”; razão maior dos atos da agressão de escravos contra os senhores e a ordem pública; e um crime contra a moral, a propriedade, o cristianismo, a caridade e os direitos naturais do homem. A segunda parte do texto apresentou uma história da escravidão antiga e moderna marcando diferenças formais e históricas entre os dois momentos – tanto porque a escravidão antiga se extinguira juntamente com o império romano quanto porque o cativeiro moderno desenvolvera procedimentos próprios definidos pelo costume de um outro tempo –, e ressaltando, portanto, a impropriedade da recorrência à lei e à experiência romanas, sempre lembradas por juristas e políticos para invalidar duas cláusulas do projeto da lei de 28 de setembro de 1871, então discutida no Conselho de Estado e no Parlamento: o direito do escravo ao pecúlio próprio e ao resgate forçado. Ao conceituar a escravidão na antiguidade, Nabuco enfatizou seu perfil bárbaro e princípios superados pelos argumentos da razão, particularmente apreendidos nos escritos de Montesquieu e Rousseau: a diferença de raças (na Grécia) e, em Roma, o direito das gentes – o direito de posse sobre os vencidos na guerra, os apreendidos na pirataria, ou na execução de dívidas. Demonstrou o quanto a escravidão romana representava um desvio moral, – um “vício” expressivo “da sanha, egoísmo” e “luxo” dos senhores – provindo do número excessivo de cativos obtidos nas conquistas, tanto de escravos domésticos quanto dos empregados em outras tarefas; pelo poder ilimitado do senhor sobre todos escravos – poder de vida e de morte; pela desvalorização absoluta do cativo, ali equiparado aos objetos, aos animais, aos corpos mortos, sujeitos a castigos aviltantes e penalidades rigorosas e injustas.

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Todos esses atributos explicavam a forma cruel como eram tratados na vida cotidiana e nas leis; o caos político-social e a dissolução dos costumes da sociedade que os incorporou; e a decadência do império romano, desfecho que Nabuco não desejava para o Brasil. Nessa argumentação, foi essencial um episódio do relato de Tácito nos Anais, Livro 14 (42-45): o assassinato do prefeito de Roma, Lucio Pedânio Segundo, ocorrido em 61 d.C. durante o reinado de Nero, e seus desdobramentos: a divisão dos membros do Senado na decisão de estender aos 400 escravos que habitavam a casa daquela autoridade, sob a acusação de cumplicidade, a pena de morte prevista na lei; e a reação da plebe romana à execução daquela sentença. O evento, no qual Nabuco destaca o discurso recriminador do senador Caio Cássio, foi providencial para o trato de vários temas: a demonstração da ineficácia da pena de morte quando aplicada isoladamente a cativos pelo crime de assassinato; a reiteração do risco representado pela escravidão à segurança pessoal dos senhores e à ordem pública o que a tornava, portanto, uma questão de Estado; e a certeza da inevitável decadência moral e política a que estavam condenadas as sociedades que praticavam a escravidão: “O que aconteceu em Roma, quando o número de escravos depois de guerras sucessivas tornou-se tão considerável? (...) Foi preciso dominar a multidão pelo medo, e os escravos foram atirados a uma morte certa contra as feras, nos circos, às dezenas de milhares. Tomaram-se essas grandes medidas, (...) que abrangiam a muitos, fazendo a todos solidários no menor crime de um só. Como se vê uma sociedade que chegava a essas violências extremas estava a dois passos de desaparecer no abismo. Procurando nós as causas que apressaram, na transição do mundo antigo para o mundo moderno, a extinção da escravidão pessoal; outra não achamos senão esse mesmo caos, que então se fez e no qual as instituições todas se precipitaram.(...) Os escravos, os libertos, os estrangeiros, todos esses em que em seu exclusivismo a aristocracia não quis fazer cidadãos, foram outros tantos inimigos que o império achou em seu seio. Esse grande estado que havia vivido não com o ideal de justiça, como Atenas, mas com um sangrento ideal de glória; que havia feito uma religião à sua imagem, e desprezado a cultura das letras e das artes, sentiu então quanto a educação moral

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vale nas horas de perigo. A dissolução dos costumes, o luxo ilimitado, espetáculos sanguinários, grandes crimes, eis o que foi a vida da decadência romana.”7

Contudo, apesar de condenar o cativeiro por seus riscos à moral, à ordem pública e à sociedade; e problematizar como inadequado e inoportuno o uso indiscriminado que os juristas brasileiros faziam do código romano, o texto de A Escravidão também admitiu a existência de práticas mais humanas de trabalho escravo reconhecidas na Grécia clássica e entre os povos da Germânia, experiências que contrapõe à romana. Referindo-se à Grécia comenta: “Nessa civilização eminentemente artística, havia na escravidão certos detalhes que salvavam a dignidade do homem; assim a avaliação dos seus talentos, cuja manifestação era plenamente permitida.” Quanto à escravidão existente entre os germanos, mencionando Tácito, considera-a “mais uma servidão que um cativeiro”. As razões dessa opinião possivelmente se relacionam às circunstâncias de sua moldagem e aos objetivos para os quais o texto foi escrito. Diante das expectativas da lei sobre o elemento servil em debate no Parlamento – abolir gradualmente o trabalho escravo –, Nabuco considerou que a escravidão era um fato “que deve ter vida longa” e, assim como muitos outros defensores do direito escravo ao pecúlio e ao resgate forçado, sinalizou formas alternativas de cativeiro inspiradas na escravidão ateniense e na servidão da Germânia, categorias que assumiram o perfil de importantes metáforas em sua argumentação8. Assim descreveu a escravidão entre os gregos e os germanos: 7 – NABUCO, J. A Escravidão. p. 75. Os Anais de Tácito também sinalizaram outros temas e argumentos políticos importantes nos textos de A Escravidão e O Abolicionismo: a abordagem da escravidão como uma questão de Estado, tanto pela ameaça dos cativos à ordem pública quanto e, sobretudo, por ser aquela instituição, quando desregradamente utilizada, a origem e o alicerce da tirania imperial, do servilismo dos políticos (especialmente do Senado) e da corrupção política. Sobre os temas e mensagens políticos imbricados na narrativa das obras de Tácito ver: BOISSIER, Gaston.Tacite. Paris: Hachette, 1904; MELLOR, Ronald. Tacitus. N. York, Routledge, 1994. Sobre os sentidos e usos políticos da categoria escravidão naquele autor ver: JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão. Um estudo da cultura política romana. S. Paulo: Edusp, 2004. 8 – Segundo alguns estudiosos da obra de Tácito, a narrativa da escravidão praticada em Roma e entre os povos da Germânia constituiu importante metáfora para construir “um discurso sobre os valores morais e políticos romanos. Tácito teria representado o bárbaro como antítese do homem romano a fim de apresentar um espelho crítico da sociedade

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“A escravidão na Grécia era todavia, mais branda que a de Roma, sobretudo quanto aos casamentos; (...) na Grécia as faculdades de cada um eram desenvolvidas com a animação do senhor, e escravo houve que tocaram entre os gregos de maior glória. Esopo, Phedro, Epicteto são nomes ilustres do país. (...)Em frente, porém, [de Roma] e bem perto desse corpo que definhava, havia as hordas indômitas da Germânia. Entre essas havia a escravidão, mas que diferença no quadro: a de Roma pessoal, a dos germânicos, real, uma própria de uma raça dissoluta, outra de uma raça forte: a de Roma exercendo-se sobre homens sujeitos ao açoite, que viviam nas ocupações domésticas, a dos germânicos sobre homens que cultivaram o solo, sendo mais uma servidão que um cativeiro. Na verdade Tácito descreve (...)Quanto essa servidão é um progresso sobre a escravidão antiga dí-lo a idade média, com sua instituição dos servos da gleba, que não é outra coisa senão a escravidão dos germânicos. Assim um povo bárbaro tinha mais noção da dignidade da alma e do homem, que o povo romano e mostrava desde então quanto uma sociedade que trabalha é superior a uma que faz trabalhar, quanto a escravidão pessoal desenvolve o luxo e a corrupção.”9

Todavia, para além dessas razões circunstanciais, a expressiva tolerância e mesmo a admiração para com a Grécia clássica perduraram e sinalizaram a sintonia de Nabuco com pressupostos de historiadores ingleses, alemães e franceses da Terceira República a propósito das instituições, sobretudo, atenienses10. Nesse sentido, nos dois trabalhos aqui romana e imperial”. MELLOR, R. Tacitus. p. 57 ; e JOLY, F.B. ob.cit. especialmente os capítulos 3 e 4. 9 – NABUCO, J. A Escravidão, pp. 72-74. Mommsen também partilha dessa tese, considerando a escravidão romana mais degradante e nefasta do que a grega. Sobre a expansão do trabalho escravo nas manufaturas de Roma comentou: “La situación de estos esclavos tenia, naturalmente, pouco de envidiable y era em todo más desfavorable que la de los griegos.” MOMMSEN, T. op. cit. p. 527. 10 – Contrapontuando leituras francesas criadas no contexto da revolução de 1789 favoráveis ou críticas dos antigos – jacobinas e termidorianas – com as dos historiadores de outros países, Hartog destaca a boa acolhida das instituições atenienses em Grote, Winckelmann, Hegel; e mesmo algumas romanas (o direito e o Estado) em Mommsen. Destaca também a politização dos antigos – pela valorização da “democracia ateniense”– a partir do período da Terceira República francesa. HARTOG , François. “O confronto com os antigos”. In: Os antigos, o passado e o presente. Org. de José Otávio Guimarães. Trad. Sonia Lacerda, Marcos Veneu e José Otávio Guimarães. Brasília: Ed. da UnB, 2003. pp. 151-153.

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mencionados, sua avaliação da Grécia é muito positiva – apesar da presença da escravidão fundada na “diferença de raças” – até por concebê-la como expressão exemplar da beleza, da tolerância, da democracia e da razão. Não por acaso, a atuação de Péricles foi importante para referenciar a origem do abolicionismo e do verdadeiro liberalismo. 2. Figurações da Escravidão na campanha abolicionista (1880-88) “Observai essa Roma (...) por que todo esse edifício, da mais bela civilização que o mundo já viu desabou com a chegada dos bárbaros? Porque estava fundada na escravidão, e a multidão de escravos e um povo de libertos não foram capazes de defender a pátria romana contra homens livres.”(Joaquim Nabuco, Discurso na solenidade de encerramento da Conferência sobre Direito Internacional de Milão, outubro de 1883.)

Em O Abolicionismo, livro preparado em Londres para o embate eleitoral de 1884, Nabuco associou argumentos jurídicos, políticos e morais apropriados a várias historicidades e fontes para tecer uma imagem exclusivamente nefasta e universal da escravidão a quem atribuiu todas as dificuldades enfrentadas pelo Império. Projetou-a como um grande “crime”, sintomático de muitas infrações. Em primeiro lugar, o tráfico no continente africano – um “contrabando de sangue” – era uma ilegalidade perante o direito internacional11 que o Brasil, solitário na prática escravista, desrespeitava. Em segundo, a escravidão também desafiava a legislação brasileira pois, pela lei de 7 de novembro de l831 (que decretou a ilegalidade do tráfico), todos os africanos aqui chegados a partir daquela data deveriam ser declarados livres. Em terceiro, a instituição tornara-se uma infração do ponto de vista da propriedade – pois expropriava os cativos dos frutos de seu labor quando já tinham direito à alforria.12 Em quarto, a escravidão constituía, invaria11 – NABUCO, J. O Abolicionismo. p. 89. Especialmente após a abolição do cativeiro nos Estados Unidos e a estipulação de uma data para o seu fim em Cuba. 12 – “Pense entretanto a lavoura, faça o agricultor a conta dos seus escravos; do que eles efetivamente lhe custaram e do que lhe renderam, das crias que produziram – descontando os africanos importados depois de 1831 e seus filhos conhecidos, pelos quais seria um ultraje reclamarem uma indenização pública – e vejam o país, depois de grandes e solenes

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velmente, um crime de “usura”, porque os proprietários de escravos pagavam, literalmente, com carne humana, os juros exorbitantes cobrados por agiotas inescrupulosos e financiadores da lavoura do Império13. Nesse sentido, a maior “chaga” da escravidão brasileira era a “violação da lei” que constrangia os estadistas a criarem meios de validar os africanos escravizados ilegalmente, a reduzir reféns estrangeiros ao cativeiro e de torná-los propriedade legítima. 14 Além de crime, a escravidão é também apresentada como um “fato social” abrangente – similar ao conjunto das instituições das civilizações antigas, do “Antigo regime” e do feudalismo europeus – ou seja, figuração de um tentacular e asfixiante monopólio da terra, do trabalho, dos negócios, do Estado. Nesse entendimento, enquanto monopólio da terra e do trabalho, a escravidão fundamentara a grande propriedade territorial com “trabalhadores enclausurados” verdadeiros “servos da gleba sem independência alguma vivendo ao azar do capricho alheio”, constituindo um organismo social desordenado e inconsequente formado por “algumas famílias transitoriamente ricas e dez milhões de proletários”. Isto porque esse gigantesco monopólio impedira a formação de pequenas propriedades, de uma “classe média”,15 e de classes operárias; aviltara o avisos para que descontinuassem essa indústria cruel, não tem o direito de extingui-la, de chofre, sem ser acusado de os sacrificar. Se eles não conseguem remir as suas hipotecas, pagar suas dívidas, a culpa não é dos pobres escravos, que os ajudam quanto podem, e não devem responder pelo que o sistema da escravidão tem de mau e contrário aos interesses do agricultor.” Ibid. p.157-158. 13 – Ibid. p. 89, 98. Na definição desse significado, inspira-se na peça de Shakespeare, O Mercador de Veneza. Ibid. pp.157-158. 14 – Ibid. pp. 45-l0l, passim. 15 – NABUCO, J. “Segunda Conferência no Teatro Santa Isabel”, l.ll.l884. In: O Abolicionismo. Conferencias e Discursos Abolicionistas. S. Paulo:IPE, p. 271. Nabuco aproxima a situação do Brasil das difíceis circunstâncias políticas e sociais do império romano no tempo de César descritas por Mommsen, que atribuiu ao predomínio de uma “oligarquia capitalista” e à expansão do trabalho escravo na Itália a decadência política, social e moral de Roma, na medida em que haviam alicerçado a grande propriedade territorial e ocasionado o empobrecimento dos pequenos proprietários, a formação de imenso contingente de proletários e as guerras civis do final do período republicano. Em suma, a sociedade romana passara a caracterizar-se pela presença ostensiva da riqueza e da pobreza, pela hegemonia de comerciantes e especuladores, pela ociosidade, servilismo, corrupção política e moral. MOMMSEN, T. op.cit. p. 49.

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trabalho, criara uma riqueza estéril e efêmera reaplicada em escravos e no luxo, não fomentara nenhuma indústria, não criara consumidores, não desenvolvera cidades, tornara o comércio servo de uma classe, a dos produtores de café.16 Sem uma “classe média”, fizera crescer artificialmente o contingente de empregados públicos e os tornara “servos da gleba do Estado”. Também dificultara o engendramento de uma verdadeira aristocracia, pois “a aristocracia territorial não é nem aristocracia do dinheiro, nem de nascimento, nem de inteligência, nem de raça”; e neutralizara as forças sociais: cooptara a Igreja, degenerara o patriotismo (“ser patriota é ser escravagista”), impedira a formação da opinião pública.17 Ainda responsabiliza o cativeiro pela geração de uma sociedade sem hierarquia e oposta à dos Estados Unidos, pois naquele país os negros libertos ficaram fora da sociedade e “a parte superior do organismo [permanecera] intacta”. Aqui, todavia, a escravidão fora mais hábil e não desenvolvera a prevenção de cor nem “uma divisão fixa”, criando “um caos étnico” e “degradando as classes” já que, no dia seguinte à alforria, o escravo tornava-se um cidadão como qualquer outro, podendo mesmo comprar escravos, casar com pessoas livres, participar das eleições e ascender na sociedade: “Entre nós a escravidão não exerceu toda a sua influência apenas abaixo da linha romana da libertas; exerceu-a, também, dentro e acima da esfera da civitas (..) a unidade nacional faz pensar na soberba desordem dos mundos incandescentes”. 18

Em virtude de todas essas decorrências, a escravidão desvirtuara a verdadeira política liberal. Ao fundar “um Estado dentro do Estado” impusera ao Império “as suas finanças” e sua política, usufruídas por uma minoria e apoiada “em quatro pilares econômicos carcomidos”: a apólice do governo, a dívida externa, o câmbio baixo e o papel-moeda. Eram eles os responsáveis pelo “déficit colossal” do país e por um sistema extorsivo de impostos que arruinava a lavoura, o comércio, o artesanato e, 16 – NABUCO, J. O Abolicionismo, pp. 129-130. 17 – Ibid. pp. l38-l39, passim. 18 – Ibid. pp. l26-127.

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principalmente, a monarquia, escravizando toda a nação aos proprietários de escravos e aos “Correspondentes” reunidos nos Clubes da Lavoura.19 Assim, ela também desvirtuara a monarquia parlamentar, criando uma “paródia de democracia”, degenerando os partidos – tornando-os veículos de interesses e ambições pessoais de uma “casta de senhores”–, e fazendo do sistema representativo um “enxerto de formas parlamentares num governo patriarcal”, onde ministros, senadores e deputados viviam subjugados pelo poder pessoal do Imperador absoluto “como o Czar e o Sultão”. Era isso o que efetivamente ocorria, embora o monarca estivesse no centro de um governo moderno e provido de todos os órgãos superiores e de Parlamento: “Ministros, sem apoio na opinião, que ao serem despedidos caem no vácuo; presidentes de Conselho que vivem, noite e dia a perscrutar o pensamento esotérico do Imperador; uma Câmara cônscia de sua nulidade e que só pede tolerância; um Senado, que se reduz a ser um pritaneu; partidos que são apenas sociedades cooperativas de colocação ou de seguro contra a miséria. Todas essas aparências de um governo livre são preservadas por orgulho nacional, como foi a dignidade consular no Império Romano; mas, no fundo, o que temos é um governo de uma simplicidade primitiva,em que as responsabilidades se dividem ao infinito, e o poder está concentrado nas mãos de um só. Este é o Chefe do Estado (...). Olhando em torno de si, o Imperador não encontra uma só individualidade que limite a sua, uma vontade, individual ou coletiva, a que se deva sujeitar (...)Foi a isso que a escravidão, como causa infalível de corrupção social, e pelo seu terrível contágio, reduziu a nossa política. O povo como que sente um prazer cruel em escolher o pior (...)esse chamado governo pessoal é explicado pela teoria absurda de que o Imperador corrompeu um povo inteiro (...) a verdade é que esse governo é o resultado, imediato, da prática da escravidão pelo país. Um povo que se habitua a ela não dá valor à liberdade, nem aprende a governar-se a si mesmo”.20

Negando qualquer traço particular ou suavidade àquela instituição, considerou-a a mesma havia 300 anos, e igual “a qualquer outro país da 19 – Ibid. pp. l38-l39; 34; “Segunda Conferência no teatro Santa Isabel,” Recife. 1º .11.1884. In: O Abolicionismo. Conferências e Discursos Abolicionistas. p. 273. 20 – NABUCO, J. O Abolicionismo, pp. 138-140.

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América”.21 Nesse sentido, reafirmando a clássica sentença latina Latifundia perdidere Italiam, 22 a escravidão brasileira reverberava um repetitivo episódio da história da humanidade flagrado tanto na antiguidade quanto no Antigo Regime do qual resultara apenas “ruína, intoxicação e morte”. Em seu entendimento, de certa maneira, repetia-se aqui a “terrível pintura” do império romano sob o governo da oligarquia”, magistralmente desenhada por Mommsen “o grande historiador alemão de Roma”. 23 3. Reforma contra Revolução: significados do projeto abolicionista e da revolução praieira “(...). o que resulta é que as reformas, (...) serão governadas por algumas regras elementares. Uma delas será conservar do existente tudo o que não seja obstáculo invencível ao melhoramento indispensável; outra, que o melhoramento justifique (...) o sacrifício da tradição(...) Dessas regras resulta o dever de demolir com o mesmo amor e cuidado com que outras épocas edificaram(...)” (Joaquim Nabuco, Minha Formação.) 24

O argumento que associa os termos “antigo regime, feudalismo, latifundia, servidão, escravidão” 25, pressuposto fundamental nos pronunciamentos de Nabuco é corrente entre políticos e autores que desde o final do XVIII e ao longo do XIX opinaram sobre os costumes e os problemas políticos do Brasil. A mais evidente razão dessa recorrência diz respeito à sua eficácia na explicação da singularidade e imaturidade da sociedade brasileira, identificadas na presença de instituições ultrapassadas que 21 – Ibid. pp. 39-50 passim. 22 – Ibid. pp. 122-123. 23 – Ibid. pp.165-166. 24 – NABUCO, J. Minha Formação, pp. 111-112. 25 – Os traços do “feudalismo” são o oposto daqueles da civilização: desconhecimento dos hábitos disciplinadores do corpo e da mente; o abuso e desrespeito em relação ao outro. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann. Revisão e apresentação de Renato Janine Ribeiro. R. de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994. v. 1. p. 63. A dimensão histórica e política do conceito de “feudalismo”, divulgado no século XVIII pela ilustração, e definido em oposição ao de civilização, foi demonstrada por Marc Bloch em suas obras maiores. BLOCH, Marc. La Societé Féodale. Paris: Ed. Albin Michel, 1940; Les Rois Thaumaturges. Paris: Éditions Gallimard, 1983.

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dificultavam o trânsito da “barbárie à civilização”e de revoluções indesejáveis frequentes no Império e no início da República. Tal diagnóstico tornou-se o primeiro passo na construção de projetos reformadores visando à implantação de práticas liberais neutralizadoras de revoluções “girondinas ou jacobinas”, reconhecidas por Nabuco nos eventos do 7 de Abril de 1831, na Revolução Praieira (1848-50) e, também, nos episódios de guerra civil da primeira década republicana. Nabuco criou a versão mais difundida daquele argumento em O Abolicionismo e nas Conferências e comícios proferidos durante a campanha eleitoral de 1884, quando, inspirando-se na história da política inglesa contemporânea (especialmente no expediente de recorrer a reformas para contornar revoluções); no desempenho de Gladstone, no problema irlandês e na orientação abolicionista da British and Foreign Anti-Slavery Society, concebeu a abolição institucional do cativeiro como ponto de partida da grande “reforma regeneradora e pacífica” da sociedade, dos partidos e da monarquia visando instaurar o que denominava um “verdadeiro liberalismo”. Entendia que a finalização da escravidão não poderia ser abandonada ao movimento natural da história como acontecera no império romano, nem ao alvedrio dos proprietários de escravos. Também não concordava com soluções extremas a exemplo da “guerra civil” ocorrida nos Estados Unidos; da “guerra servil”, uma “incitação ao crime”, remetido à desorganização do trabalho nos engenhos e fazendas incentivada por grupos abolicionistas que já instigavam fugas e revoltas nas senzalas; ou “insurreições” de iniciativa escrava,26 por exporem a classe 26 – Mais frequentes nos últimos anos do Império em virtude da transferência de trabalhadores do norte para as áreas de café, da formação de grandes plantéis e do rigor ao qual estava submetido o trabalho escravo. Cf. COSTA, Emília V. da. Da Senzala à Colônia. 3a. ed. S. Paulo: Brasiliense, 1989; AZEVEDO, Célia M.M. Onda negra medo branco. O negro no imaginário das elites do séc. XIX. R. de Janeiro: Paz e Terra, 1987; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. S. Paulo: Cia. das Letras, 1990; MACHADO, Maria Helena. O Plano e o Pânico. Os movimentos sociais na década da abolição. R. de Janeiro: Ed. da UFRJ; S. Paulo:EDUSP, 1994; Crime e Escravidão. Trabalho, luta, resistência nas lavouras paulistas. 1830-1881. S. Paulo:Brasiliense, 1987; MATTOS, Hebe M. Das Cores do Silêncio. Os significados da liberdade na sociedade escravista. Brasil século XIX. 2a. ed. R. de Janeiro: N. Fronteira, 1978; GOMES, Flávio dos S. Histórias de Quilombolas. Mocambos e Comunidades de

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mais influente e poderosa do Estado à “vindita bárbara e selvagem de uma população mantida ao nível dos animais e cujas paixões, quebrado o freio do medo, não conheceria limites”.27 3.1. O Abolicionismo Contrapondo-se a tais iniciativas, o Abolicionismo propôs uma intervenção ponderada e pacífica no tempo e lugar adequados: um projeto de emancipação do monopólio do cativeiro, uma “segunda independência” do país a ser realizada por um partido político no âmbito do Parlamento por meio de leis. A primeira delas, a emancipação dos escravos existentes sem qualquer ressarcimento, era “urgente” e significava uma “nova” concepção de Abolicionismo que sucedia a “ideia de suprimir a escravidão entregando-lhe um milhão e meio de escravos (...)e deixando-a morrer com eles”.28 A segunda, divulgada especialmente em comícios populares realizados no Recife, seria uma “lei agrária” instituindo um “imposto territorial” sobre terras incultas, expediente capaz de impelir seus proprietários a negociá-las e assim concretizar a pequena propriedade e uma “classe média” de lavradores de cana fornecedores dos engenhos centrais 29. Mas a tarefa mais ambiciosa do Abolicionismo previa a reeducação da elite política e sua conversão aos princípios do “verdadeiro liberalismo”. Aos liberais, conseguiria convencer que era preciso ir além da lei de 28 de setembro de 1871, e “pôr a descoberto os alicerces mentirosos do liberalismo entre nós”, exemplarmente demonstrados na política dos clubes da lavoura e “finanças” do cativeiro executada pelo ministério Sinimbu, ao qual Nabuco fizera insistente oposição.30 E explicaria a um grande número de republicanos que sua obrigação mais urgente não era “mudar a forma de governo com o auxílio de proprietários de homens mas que a Senzalas no R. de Janeiro. séc. XIX. R. de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993. 27 – NABUCO, J. O Abolicionismo, pp. 39-40; 103. 28 – Ibid. pp. 25. 29 – NABUCO, J. “Discurso num meeting popular no Bairro de S. José”. Recife 5.11.1884. In: O Abolicionismo. Conferências e Discursos Abolicionistas. p. 285. 30 – “Terceira Conferência no teatro Santa Isabel”. Recife, 16.11. 1844. Ibid. pp.293347.

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elevação dos escravos a homens era tarefa que precedia toda a arquitetura democrática”, cabendo a eles auxiliar a monarquia a solucionar a questão da escravidão.31 Concebido como universal e eterno porque pertencente aos domínios da natureza, o “instinto/sentimento” liberal também se amoldava ao “grau de civilização” ou à historicidade de cada Estado.32 Por tais motivos, a Constituição brasileira poderia integrar uma “reforma” política, instrumento de uma “revolução social” que permitiria a “regeneração da monarquia”, ou seja, que os ministérios representassem os partidos; o governo fosse efetivamente de Gabinete e não do presidente do Conselho; os grandes negócios do Estado fossem decididos em conferência de ministros e não em despacho imperial; o eixo parlamentar passasse pela Câmara e não pelo Senado vitalício; as províncias se vinculassem federativamente à União; e que, finalmente, fossem implantadas a eleição direta (com o sufrágio estendido a todos os alfabetizados e com maior representação das grandes cidades), a liberdade religiosa e a emancipação dos escravos sem indenização, em um prazo estipulado. Ela seria um substitutivo eficaz de uma anunciada revolução jacobina, ameaçadora da sociedade, da ordem política e do Estado, revolução que acabou implantando a República e contra a qual Nabuco pugnou ao longo da década de 1890 na imprensa e em trabalhos historiográficos, dentre os quais se destacaram Balmaceda, A intervenção estrangeira durante a revolta da Armada e, especialmente Um Estadista do Império, onde privilegiaria alguns episódios, dentre eles o 7 de Abril e a revolta/revolução da Praia, sobre a qual criou uma interpretação particularmente crítica. 3.2. Um Estadista e a revolução da Praia Um Estadista foi preparado em meio a sangrentas guerras civis – a Revolta Federalista e da Armada (1893-94) e a Guerra de Canudos (189697) – num clima de convivência com o militarismo e o terror jacobinos, 31 – NABUCO, J. O Abolicionismo. p. 31. 32 – NABUCO, J. O Abolicionismo. Conferências e Discursos Abolicionistas. pp. 299300.

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ora explosivos ora encobertos, e sob o receio constante de sua intervenção. Integrando intensa polêmica política e histórica sobre a experiência monárquica e o advento da república,33 dentre outros objetivos, seu conteúdo quis demonstrar a republicanos e monarquistas de vários matizes as origens históricas daquela “doença republicana” que acometia alguns governantes e iludia uma população imatura e despreparada para o exercício da política. Obra de grande fôlego, expôs minuciosamente a atuação de Pedro II, de Nabuco de Araújo e de outros estadistas e o funcionamento da monarquia constitucional. Homenagear a memória de seu pai, o senador e conselheiro José Thomaz Nabuco de Araújo, cuja biografia constitui o fio dos acontecimentos, e demonstrar a contribuição do regime monárquico parlamentar ao progresso da nação, sua superioridade frente a república e adequação às condições históricas e físicas do país, foram as razões políticas mais evidentes da obra. Para Joaquim Nabuco, a república de inspiração girondina ou jacobina, sinônimo de anarquia, despotismo e risco à integridade da nação, constituía a negação da obra monárquica e já tivera, sem sucesso, sua chance durante o período da Regência. Nesse sentido, a narrativa, projetou “a Praieira” como episódio exemplar do comportamento das massas nas revoluções de inspiração republicana vivenciadas no período de afirmação do regime monárquico (1822-48). Não por acaso, a narrativa e a interpretação desse episódio de guerra civil, no qual o biografado teve importante desempenho, constituiriam capítulo importante do livro.34 33 – Além dos textos de Nabuco, foram publicados: OTTONI, Christiano. O advento da República no Brasil. Rio de Janeiro: Perseverança, 1890; BUARQUE, Felício. Origens republicanas. Estudos de gênese política em refutação ao livro do sr. Afonso Celso, O Imperador no Exílio. Recife: Francisco Soares Quintas Ed., 1894. Por sua vez, os monarquistas escreveram: CELSO, Afonso. Advento da ditadura militar no Brasil. Paris: E. Pichon, 1891; PRADO, Eduardo. Fastos da ditadura militar no Brasil e A ilusão americana. São Paulo: Escola Typographica Salesiana, 1902; PEREIRA DA SILVA, J.M. Memórias do meu tempo. Rio de Janeiro: Garnier, 1895-6. 2 v. 34 – Intitulado “A luta da Praia”. Nele os acontecimentos recebem várias denominações entendidas como sinônimas: revolta praieira, revolução de 1848, revolução de Pernambuco, revolução pernambucana e revolução praieira. O tema foi exaustivamente abordado em MARSON, Izabel A . Política, história e método em Joaquim Nabuco: tessituras da revolução e da escravidão. Uberlândia:EDUFU, 2008.

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Fundamentando-se nos escritos do juiz Nabuco de Araújo e no processo preparado pelo chefe de polícia, e depois historiador dos acontecimentos Figueira de Melo,35 a narrativa priorizou a atuação praieira no período que antecedeu a guerra civil de 1848 para demonstrar que a “revolução” corporificada no “movimento praieiro” – um “movimento político e, principalmente, social” – se demonstrava pela presença de “alguns atributos próprios da democracia” e “característicos do jacobinismo”: “a força de um turbilhão popular” (violência, indiferença a leis e princípios); “despotismo” (incapacidade de conviver com a diferença e empregar meios muito mais enérgicos do que as resistências exigiam); “embriaguez pelo excesso de autoridade.” Mas, também, no fato do movimento ser uma “reação instintiva” contra a triste condição da população de Pernambuco, condição originada nos abusos praticados por indivíduos que usufruíam de privilégios remanescentes do Antigo Regime, mais especialmente “os portugueses que monopolizaram o comércio nas cidades e os senhores de engenho que monopolizavam a terra no interior”, abusos habilmente explorados pela demagogia praieira. A “revolução” progredira, por um lado, devido aos “erros” do Partido Praieiro na orientação do movimento: ele “não tinha disciplina” – congregava monarquistas e republicanos, e seus chefes não dominavam seus correligionários levando os deputados do partido a “promover uma guerra que não desejavam e não controlavam”. E, por outro, devido à “moderação” com que o gabinete Olinda administrou a revolta em seu início. Dessa forma, errara o ministério de 29 de setembro que, “por medo e finura”, não enviara para a Província, logo no princípio do rompimento, um homem forte e de “prestígio nacional”(como Honório Hermeto ou Caxias), e só dissolvera a Câmara dos Deputados em fevereiro de 1849, quando poderia tê-lo feito em setembro de 1848.

35 – ARAÚJO, José T. Nabuco de. Artigos de O Lidador. Recife, Typographia de M. Figueiroa de Faria, 1845-1848; As Eleições para Senadores em Pernambuco; e Justa Apreciação do Partido Praieiro ou História da Dominação da Praia. Recife, Typographia de M. Figueiroa de Faria, 1847.

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Arrolando as razões do insucesso da revolução da Praia, Nabuco aponta a ausência de ajuda de outras províncias, à qual acrescenta os “equívocos da prática liberal jacobina” – a impaciência em aguardar a sua vez na sequência dos partidos, prevista no jogo parlamentar; a facilidade com que, quando alijados do poder recorriam às revoluções; o hábito de copiar as experiências estrangeiras, inspirando-se, neste caso, na proclamação da República na França e no “fermento socialista”. Menciona também, a “falta de um pretexto ou de um princípio por causa do qual fosse legítimo ensanguentar a província”; até porque “o efeito da revolução de fevereiro na França estava gasto”. E lembra a falta de coesão das lideranças do partido liberal (não se entendiam), razão por que se esfacelou e não conseguiu impedir, em setembro de 1848, a queda do gabinete Paula Souza e “fazer frente à cerrada falange conservadora”. Todas essas limitações foram atribuídas à “inexperiência política e ao radicalismo” dos praieiros, procedimentos resultantes de sua origem e trajetória singular. Nabuco então explicita, à sua maneira, as origens desta singularidade, lida como sinônimo de oportunismo e inconsequência política. A Praia nascera de uma cisão interna ao partido liberal pernambucano e, por sua falta de identidade com os liberais históricos de Pernambuco, Minas e S. Paulo, nunca conseguira participar dos ministérios liberais. Chegara à presidência de Pernambuco pela intervenção da política palaciana manipulada pela facção áulica, e ali fizera uma administração truculenta que revolvera a Província, colocando-a num estado revolucionário. Para consolidar seu poder na gestão de Chichorro da Gama (1845-48), fizera uma completa inversão administrativa e, pela violência, alterara os costumes, obrigando rendeiros e moradores a votarem contra seus senhores tradicionais com quem tinham uma relação antiga e justa. Ainda, embora fizessem proclamações monarquistas, aliaram-se a conhecidos políticos republicanos (Borges da Fonseca, por exemplo) e adotaram um programa impraticável que conciliava “o preconceito vulgar e retrógrado da nacionalização do comércio a retalho, com a republicana e socialista reivindicação do trabalho como garantia de vida para os cidadãos brasileiros”.

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Considerações finais: conciliação e progresso “Essa era a sua [de Nabuco de Araújo] qualidade principal de político: adaptar os meios aos fins e não deixar periclitar o interesse social maior por causa de uma doutrina ou de uma aspiração. ‘Eu entendo - dizia ele falando da idéia de conciliação, a qual estava no ar – que é preciso fazer alguma concessão no sentido que o progresso e a experiência reclamam, para que o mesmo orgulho e o amor-próprio não se embaracem ante a idéia de apostasia’”. Joaquim Nabuco, Minha Formação) 36

Portanto, considerando-se o percurso da argumentação de Nabuco, pode-se perceber que reiterou, de forma cada vez mais acentuada, um mesmo princípio – “reforma contra revolução” – e convicções liberais aristocráticas modernas tributárias do humanismo cívico neo-romano, às quais associou orientações deterministas inspiradas em Hippolyte Taine: a defesa intransigente da liberdade e da individualidade com ordem, da hierarquia fundada no talento, da educação como meio efetivo de intervenção política, de estadistas na condução das sociedades informes como as sul-americanas em geral e brasileira em particular, e a recusa da tirania, tanto dos soberanos e dos ditadores quanto da maioria37, convicções que se manifestariam com mais vigor nos escritos da década de 1890, em seu Diário38 e na correspondência pessoal. Sobre a sociedade brasileira, tinha uma percepção particularmente desencantada, e singular, mesmo frente à de outros monarquistas e republicanos, com os quais Nabuco tinha divergências políticas e um compli36 – NABUCO, J. Minha Formação. pp.162,159. 37 – Em seus pronunciamentos públicos, e particulares, Nabuco referencia especialmente Edmund Burke, Walter Bagehot, Alexis de Tocqueville e Hippolyte Taine, empenhados críticos do jacobinismo e da tirania da maioria. Sobre o liberalismo aristocrático ver: KAHAN, Alan S. Aristocratic Liberalism. The social and political thought of Jacob Burckhardt, John Stuart Mill and Alexis de Tocqueville, with a new after word by the author. New ��������������������������������������������������������������������������������� Brunswick, N. Jersey: Transaction Publishers, 200; sobre as matrizes do humanismo neo-romano Cf. SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. Trad. Raul Fiker. S. Paulo: Ed. UNESP, 1999 – (UNESP/Cambridge); TAINE, H. Les origines de la France contemporaine. Paris:Hachette. vol.V-VI (La révolution, la conquête Jacobine). 38 – NABUCO, J. Diários. Prefácios e notas Evaldo Cabral de Melo. R. de Janeiro: Bem Te Vi Produções Literárias; Recife:Ed. Massangana, 2005.

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cado relacionamento, um dos motivos de seu “isolamento” nessa década39. Considerava que, em virtude do habitat inóspito e, sobretudo, da longa convivência com a escravidão africana – motivo maior, como vimos, da falta de coesão do organismo social e da condição de “menoridade” do Brasil – o povo oscilava entre a indiferença política e a violência irrefletida e anárquica das revoluções, sendo, portanto, presa fácil dos ditadores. Nesse sentido, entendia que ele precisava ser preparado para um retorno pacífico e efetivo ao regime monárquico ou, na impossibilidade deste retorno, ser conduzido por bons estadistas na direção de uma república similar à chilena, tese sinalizada no livro Balmaceda, publicado no início de 1895, momento em que o partido monarquista se revigorava após intensa perseguição sofrida nos primeiros anos da república. Naquela circunstância, ao declinar o convite de Eduardo Prado para assumir a chefia da redação de O Commércio de S. Paulo, comentou que não poderia fazer um jornal de agitação ou panfletário como se esperava, pois compreendia que o papel da imprensa naquele momento deveria ser “o de um médico em um hospício de alienados”40. Nessa medida, as duas categorias – escravidão e revolução – se associam estreitamente no diagnóstico das fragilidades e problemas da sociedade brasileira. Elas também se imbricam na narrativa de Minha Formação, desta feita, para tentar atenuar especialmente a “luta terrível entre abolicionistas e escravocratas”, monarquistas e republicanos no passado e, sobretudo, no presente. O livro incorporou escritos publicados na imprensa – inclusive caretas da polêmica de Nabuco com o barão de Jaceguai – para tratar de questões delicadas do presente e do passado: quais as razões do seu engajamento no abolicionismo? Quais as responsabilidades do movimento abolicionista na queda da monarquia? Por quais motivos, desde 1895, afastara-se da militância monarquista e, em 1899, aceitara o encargo oferecido pela república de Campos Sales? 39 – Sobre a atuação dos monarquistas após o l5 de novembro ver JANOTTI, M.L. Os subversivos da República. S. Paulo, Brasiliense, l986. Para uma análise mais detida de Minha Formação cf. MARSON, Izabel A. “Minha Formação: autobiografia, política e história”. Revista Brasileira de História (Biografia, biografias), 33(17):78-97, 1997. 40 – NABUCO, J. Cartas a Amigos. Coligidas e anotadas por Carolina Nabuco. S. Paulo: IPÊ, 1949, pp. 264-5, v. 2.

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Sobre as origens do engajamento na “grande causa” abolicionista apresentou três grandes “influências”: a experiência do liberalismo inglês (“sentia-se como se militasse sob as ordens de Gladstone”), as motivações de seu “liberalismo hereditário” e “instintivo” (Nabuco considerou-se um “continuador da obra do pai” na causa da abolição) e uma antiga “identificação humana e perene com os escravos”. Na rememoração de cenas da infância, alterou imagens conferidas tanto para a “casta de senhores” quanto para a escravidão no texto de O Abolicionismo e nos discursos das campanhas eleitorais, retomando duas formas idealizadas e contrapostas de cativeiro: uma, a do “jugo cruel”, observada “nas novas e ricas fazendas do sul onde o escravo, desconhecido do proprietário, era somente um instrumento de colheita”. E outra, a do “jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do escravo”, assistida no engenho Massangana, propriedade de sua madrinha D. Rosa Falcão de Carvalho, e em antigas propriedades do norte “pobres explorações industriais, onde os escravos existiam apenas para a conservação do estado de senhor, e administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade por uma aristocracia de maneiras”, dotada de “um pudor, um resguardo em questão de lucro próprio das classes que não traficam”. Ali se poderia perceber “uma longa hereditariedade de relações fixas entre o senhor e os escravos”, tornando-os “uma espécie de tribo patriarcal isolada do mundo”: “Nessa escravidão da infância não posso pensar sem um pesar involuntário (...) Tal qual o pressenti em torno de mim, ela conserva-se em minha recordação como um jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também íntimo do escravo, alguma coisa parecida com a dedicação do animal que nunca se altera porque o fermento da desigualdade não pode penetrar nele. Também eu receio que essa espécie particular de escravidão tenha existido somente em propriedades muito antigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade, e onde uma longa hereditariedade de relações fixas entre o senhor e os escravos tivessem feito de um e outros uma espécie de tribo patriarcal isolada do mundo. Tal aproximação entre situações tão desiguais perante a lei seria impossível nas novas e ricas fazendas do sul onde o escravo, desconhecido do proprietário, era somente um

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instrumento de colheita. Os engenhos do norte eram pela maior parte pobres explorações industriais, existiam apenas para a conservação do estado de senhor, cuja importância se avaliava pelo número de seus escravos. Assim, também se encontrava ali, com uma aristocracia de maneiras que o tempo apagou, um pudor, um resguardo em questão de lucro próprio das classes que não traficam.” 41

Associadas a outros argumentos, o destaque das lembranças da escravidão como “jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também íntimo do escravo”, parece ser, ao mesmo tempo, uma homenagem a “uma aristocracia de maneiras”; uma constatação de seu inevitável declínio, dada a irreversibilidade da história; e, isto posto, um convite à conciliação entre “abolicionistas e escravocratas”. Não por acaso, ao explicar o sucesso do movimento abolicionista, Nabuco apresentou uma leitura serena daquele evento, acentuando seu caráter nacional e inevitabilidade em virtude do estágio de desenvolvimento da humanidade, atributos reconhecidos pela sociedade brasileira, pois “ ser a última nação de escravos humilhava a nossa altivez de país novo”. Por isso, quase todo o país dera apoio ao movimento, concordância externada na propaganda dos jornais; no desempenho do Parlamento, das sociedades que promoviam fugas em massa dos escravos; dos proprietários que “emancipavam os seus escravos, em vez de se unirem para linchar os abolicionistas, como o fariam os criadores do Kentucky ou os plantadores da Luisiânia”, dos estadistas e da dinastia. 42 A certeza desse desenvolvimento se demonstra ainda na convicção de Nabuco, no momento da publicação do livro, da impossibilidade de um retorno à monarquia, convicção que aconselhava outra aproximação, desta feita com a república aristocrática de Campos Sales, uma república já descompromissada com o jacobinismo43. Em capítulo inédito de Minha 41 – NABUCO, J. Minha Formação, p. l86. 42 – Ibid. pp. 193-l94. 43 – Nabuco partilhava muitas concepções com os republicanos paulistas mais aristocráticos, a exemplo dos Prados e sua “entourage”. Sobre os projetos civilizadores dos republicanos paulistas: BRESCIANI, M. Stella – Liberalismo e Controle Social. Tese de Doutoramento. S. Paulo, FFCH-USP, 1976. (mimeo); “As voltas de um parafuso”. História; Cadernos de Pesquisa. n. 2. S. Paulo:Brasiliense/AUPHIB, 1978, p.7-20;BLANCO,

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Formação, o escritor comentou que o estudo detido da história do Império e da política realizada por seus estadistas, especialmente exemplificada na atuação do pai, haviam sinalizado que a fidelidade ao liberalismo não pressupunha necessariamente um compromisso exclusivo com o regime monárquico mas, o cumprimento de metas mais amplas e nobres ditadas pelo progresso e pelo dever de zelar pela pátria: “Por outro lado, durante os anos que trabalhei na Vida de meu pai a minha atitude foi insensivelmente sendo afetada pelo espírito das antigas gerações que criaram e fundaram o regime liberal que a nossa deixou destruir...O que eu respirava naquela vasta documentação não era um espírito monárquico inconcebível, bastando como uma religião(...)A monarquia para aquelas épocas de arquitetos, pedreiros e escultores políticos incomparáveis, era uma bela e pura forma, mas que não podia existir por si só; o interesse, o amor, o zelo, o fervor patriótico deles dirigia-se à substância nacional, o país; sua vassalagem ao princípio monárquico era apenas um preito rendido á primeira das conveniências sociais (...) Para tais homens, verdadeiramente fundadores, um terremoto poderia subverter as instituições, mas o Brasil existiria sempre, e à sua voz seria forçoso acudir (...). Eles não estabeleceram nunca o dilema entre a monarquia e a pátria, porque a pátria não podia ter rival.”44

Assim, respondia aos correligionários, de quem se isolara também por discordar do princípio do “quanto pior melhor” e da aproximação da resistência monárquica dos métodos jacobinos, que a levariam a organizar uma revolta no interior de S. Paulo, em agosto de 1902, e se envolver com a greve dos cocheiros do Rio de Janeiro (1904).45 Nessa decisão, manifestou novamente sua recusa diante da revolução jacobina e da guerSilvana Mota. República das Letras: discursos republicanos na província de S. Paulo.1870-1889. (Dissertação de Mestrado) Campinas:Unicamp, 1995. 44 – NABUCO, J. Minha Formação, pp. 256-257. 45 – Em 1899, os monarquistas se decidiram pela política do “quanto pior melhor”, ou seja, pela conspiração contra o governo Campos Sales. Preservando sua independência, Nabuco recusou a estratégia (por considerá-la contrária à sua concepção da política e do liberalismo), rompeu com o partido monarquista e aceitou representar o Brasil na questão da Guiana Inglesa. Seu apoio ao governo provocou veementes protestos dos ex-aliados; rompimentos definitivos (por exemplo, com João Alfredo) e grande repercussão na imprensa. Sobre os jacobinos nesse período ver: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Os radicais da república. S. Paulo: Brasiliense, 1986.

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ra civil que ela pressupunha. Explicando-se, em carta de 3 de janeiro de 1899, com Eduardo Prado, um amigo antigo, comentou: “Desde a tal fundação da liberdade aqui separei-me, isolei-me. Hoje estou me retirando mesmo desta posição, porque minha consciência me impede o uso de explosivos, mesmo sob a forma de idéias, mesmo por simples processos de insinuação, e eu não encaro mais indiferentemente hipóteses de guerra civil, revolução, golpes de Estado, etc.”46 Referências Bibliográficas AZEVEDO, C. M. Onda negra medo branco. O negro no imaginário das elites do séc. XIX. R. de Janeiro, Paz e Terra, 1987. BLANCO, Silvana Mota. República das Letras: discursos republicanos na província de S. Paulo.1870-1889. (Dissertação de Mestrado) Campinas:Unicamp, 1995. BLOCH, Marc. La Societé Féodale. Paris: Ed. Albin Michel, 1940. _____. Les Rois Thaumaturges. Paris: Éditions Gallimard, 1983. BOISSIER, Gaston.Tacite. Paris: Hachette, 1904. BRESCIANI, M. Stella – Liberalismo e Controle Social. Tese de Doutoramento. S. Paulo, FFCH-USP, 1976. (mimeo) BUARQUE, Felício. Origens Republicanas. Estudos de Gênese Política em refutação ao livro do sr. Afonso Celso, O Imperador no Exílio.Recife: Francisco Soares Quintas Ed. 1894. CELSO, Afonso. Advento da Ditadura Militar no Brasil. Paris: E. Pichon, 1891. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. S. Paulo: Cia. das Letras, 1990. COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. 2a. ed. S. Paulo: Ciências Humanas, 1979. _____. Da Senzala à Colônia. 3a. ed. S. Paulo: Brasiliense, 1989. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann. Revisão e apresentação de Renato Janine Ribeiro. R. de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994. v. 1. GOMES, Flávio dos S. Histórias de Quilombolas. Mocambos e Comunidades de Senzalas no R. de Janeiro. séc. XIX. R. de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993. 46 – Carta de Joaquim Nabuco a Eduardo Prado. R. de Janeiro, 3.1.1899. Coleção particular de Olynto Moura apud JANOTTI, M. de Lourdes M. op.cit. pp. 171-172.

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Política e História: figurações da Escravidão e da Revolução nas obras de Joaquim Nabuco

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Texto apresentado em novembro /2008. Aprovado para publicação em dezembro /2008.

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Joaquim Nabuco e a luta contra a escravidão: “ação política” e “ação revolucionária”

JOAQUIM NABUCO E A LUTA CONTRA A ESCRAVIDÃO: “AÇÃO POLÍTICA” E “AÇÃO REVOLUCIONÁRIA” Joaquim Nabuco and the struggle against slavery: “Political Action” and “Revolutionary Action” Eduardo Silva 1 Resumo: Este trabalho discute a participação de Joaquim Nabuco não apenas no movimento parlamentar abolicionista, sua conhecida e essencial “ação política”, mas também sua participação no movimento popular ou underground abolicionista, o que ele próprio classificou como “ação revolucionária”. Na verdade, abolicionismo parlamentar e abolicionismo revolucionário eram apenas faces diferentes da mesma moeda. Não podem ser separados senão muito artificialmente. Joaquim Nabuco, o grande campeão da “ação política” e parlamentar, não deixa também de contribuir secretamente para a ação direta, tendo inclusive frequentado o notório Quilombo do Leblon, um dos centros mais efetivos da “ação revolucionária” contra o sistema.

Abstract: This paper discusses the participation of Joaquim Nabuco, not only in the parliamentary abolitionist movement -his well known and necessary “political action” - but also his participation in the abolitionist popular, or underground, movement, that he classified as a “revolutionary action.” In fact, parliamentary abolition and revolutionary abolition were just two different faces of the same coin. They can not be separated; it would be an artificiality. Joaquim Nabuco, the great champion of political and parliamentary action, secretly contributed to direct action as well, having at times attended sessions at the notorious Quilombo do Leblon, one of the most effective counter system centers of “revolutionary action.”.

Palavras-chave: Joaquim Nabuco, abolição da escravatura, “ação política”, “ação revolucionária”, underground abolicionista, Quilombo do Leblon.

Keywords: Joaquim Nabuco – Abolition of Slavery – Political Action – Revolutionary Action – Abolitionist Underground – Quilombo do Leblon.

Luís Viana Filho, comparando as personalidades de Rui Barbosa e Joaquim Nabuco – na verdade dois gigantes não apenas do movimento abolicionista, mas da História do Brasil como um todo – defendeu claramente que enquanto Nabuco era um reformador, Rui, sempre mais radical, possuía “a alma do revolucionário”. Para Viana Filho, em síntese, “Nabuco reforma, para conservar – Rui destroi, para inovar” E mais adiante: “Nabuco orgulhava-se de ser um reformador. Mas, certamente, teria pudor de se ver inscrito num rol de revolucionários. O oposto de Rui, que se sentiria diminuído se lhe faltasse a coragem de ir com as suas ideias até ao incêndio das revoluções”.2 1 – Pesquisador da Fundação Casa Rui Barbosa, bolsista de produtividade do CNPq e sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 2 – Luís Viana Filho, Rui Barbosa: seis conferências. Rio de Janeiro, FCRB, 1977,

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A comparação, embora possa parecer estranha, possui sua boa dose de verdade e tem se firmado – seguindo as mais diversas formas e caminhos – na historiografia contemporânea. Em livro recente, o historiador Antônio Penalves Rocha sugere que o abolicionismo de Joaquim Nabuco teria como principal limitação o fato de desconhecer a participação do povo, para ele ainda inexistente enquanto expressão ou força política efetiva. A pregação de Nabuco, seu antiescravismo ou abolicionismo dirigia-se, assim, preferencialmente aos próprios senhores de escravos e demais setores dirigentes da sociedade (incluindo-se aí o Imperador Pedro II e a Princesa Isabel), que, uma vez devidamente esclarecidos, promoveriam de bom grado as grandes reformas que se faziam necessárias. 3 Essa posição historiográfica tem encontrado um bom respaldo documental, sobretudo, no capítulo IV de O Abolicionismo, livro publicado originalmente em Londres, em 1883, onde Joaquim Nabuco defende enfaticamente que “A propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos. Seria uma covardia, inepta e criminosa, e, além disso, um suicídio político para o partido abolicionista, incitar à insurreição, ou ao crime, homens sem defesa, e que a lei de Lynch, ou a justiça pública, imepp.8-11. Ver também, do mesmo autor, Rui & Nabuco. Rio de Janeiro, José Olympio, 1949. 3 – Antonio Penalves Rocha, Abolicionistas brasileiros e ingleses: a coligação entre Joaquim Nabuco e a British and Foreign Anti-Slavery Society (1880-1902). São Paulo, Editora UNESP, 2009. Outras contribuições recentes de e sobre Nabuco, incluem: Rui Barbosa, Meu caro Rui, meu caro Nabuco. Organização de José Almino de Alencar e Ana Maria Pessoa dos Santos. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999; Ricardo Salles, Joaquim Nabuco, um pensador do Império. Rio de Janeiro, Topbooks, 2002; José Almino de Alencar e Ana Maria Pessoa dos Santos, Joaquim Nabuco: o dever da política. Rio de Janeiro, Edições Casa de Rui Barbosa, 2002; Joaquim Nabuco, Diários vol.1 1873-88, vol.2 1889-1910. Prefácio e notas de Evaldo Cabral de Mello. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi e Recife: Editora Massangana, 2005. Izabel Andrade Marson, Política, história e método em Joaquim Nabuco: tessituras da revolução e da escravidão. Uberlândia, EDUFU, 2008; Leslie Bethell e José Murilo de Carvalho, orgs. Joaquim Nabuco e os abolicionistas britânicos (correspondência 1880-1905). Rio de Janeiro, Topbooks, 2008; Joaquim Nabuco, Essencial Joaquim Nabuco. Organização e introdução de Evaldo Cabral de Mello. São Paulo, Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.

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diatamente haveria de esmagar. Covardia, porque seria expor outros a perigos que o provocador não correria com eles; inépcia, porque todos os fatos dessa natureza dariam como único resultado para o escravo a agravação do seu cativeiro; crime, porque seria fazer os inocentes sofrerem pelos culpados, além da cumplicidade que cabe ao que induz outrem a cometer um crime; suicídio político, porque a nação inteira – vendo uma classe, e essa a mais influente e poderosa do Estado, exposta à vindita bárbara e selvagem de uma população mantida até hoje ao nível dos animais e cujas paixões, quebrado o freio do medo, não conheceriam limites no modo de satisfazer-se – pensaria que a necessidade urgente era salvar a sociedade a todo o custo por um exemplo tremendo, e este seria o sinal de morte do abolicionismo de Wilberforce, Lamartine, e Garrison, que é o nosso, e do começo do abolicionismo de Catilina ou de Espártaco, ou de John Brown”. 4

E, mais adiante, para não deixar dúvida: “A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É, assim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o desencadeamento de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado que tem por si o direito, a justiça, a procuração dos oprimidos e os votos da humanidade toda”. 5

O texto é claro, mas não pode ser tomado em termos absolutos. O Abolicionismo, como sabemos, foi escrito em 1883, durante o exílio voluntário de Nabuco em Londres, ainda no início da campanha. Trata-se de um livro eminentemente teórico, livro de colocação ampla de princípios, livro ainda de doutrinação política. Posição bem diferente encontraremos mais adiante, uma vez travada a luta efetiva, em Minha Formação, livro de memória pessoal e, ao mesmo tempo, de profunda reflexão sobre o período concreto da luta abolicionista. Não mais um livro de proposições teóricas e doutrinárias, mas uma avaliação histórica do período 4 – Joaquim Nabuco, O Abolicionismo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, cap. IV, pp. 29-30. 5 – Ibid., p. 30. Grifo nosso.

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efetivamente vivido, publicado em 1900, ou seja, 12 anos depois de travada a luta e obtida a vitória final de 1888. 6 Ambos os livros – O Abolicionismo (1883) e Minha Formação (1900) – traduzem, na verdade, o pensamento inteiro e a marca da contribuição de Joaquim Nabuco. Enquanto documentos históricos não podemos estabelecer qualquer hierarquia de valor entre eles. Mas temos que reconhecer que refletem momentos muito diferentes da luta e, portanto, devem ser usados com todo cuidado pelo historiador. O primeiro, O Abolicionismo, lança a ideia e inicia a luta; o segundo, Minha formação, faz um balanço já calmo e ponderado, sobre o que foi o período de lutas concretamente vivido e as consequências da Abolição. Sim, Joaquim Nabuco defendeu, em 1883, que a luta abolicionista devia ser decidida prioritariamente por via parlamentar. Trata-se, aliás, de posição mais ou menos óbvia e decorrente de suas próprias posições sociais e políticas mais profundas. Mas, por outro lado – podemos nos perguntar –, será lícito interpretar seu abolicionismo como pura e simplesmente “conservador”, sempre igual a si mesmo, em total oposição a um outro abolicionismo mais radical, militante e democrático? Nas linhas que seguem, vamos procurar refletir mais detidamente sobre essas e outras questões que nos parecem fundamentais não apenas para entender o pensamento e ação de Joaquim Nabuco, mas para o aprofundamento de nossa percepção do movimento abolicionista como um todo, tal como se deu no Brasil. Em Minha Formação, seu texto da maturidade, Joaquim Nabuco aponta um conjunto de cinco ações ou circunstâncias que teriam propiciado a Abolição da escravatura no Brasil. Em primeiro lugar – escreve ele – “a ação motora dos espíritos que criavam a opinião pela ideia, pela palavra, pelo sentimento, e que a faziam valer por meio do Parlamento, dos meetings, da imprensa, do ensino superior, do púlpito, dos tribunais”. Isto é, em outras palavras, a ação política da sociedade civil organizada e 6 – Joaquim Nabuco. Minha formação. Introdução de Gilberto Freyre. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1963 (Biblioteca básica brasileira, v.8).

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dos chamados formadores de opinião. Em segundo lugar – continua Nabuco – “a ação coerciva dos que se propunham a destruir materialmente o formidável aparelho da escravidão, arrebatando os escravos do poder dos senhores”. Primeiro, portanto, houve a criação da opinião pública favorável. Depois, a “ação coerciva”, a ação direta, a luta aberta contra o sistema, “arrebatando os escravos”, isto é, promovendo e facilitando fugas em massa e, por via de consequência, colaborando na formação de “quilombos abolicionistas”. Em outras palavras, como diríamos hoje, a luta aberta e o uso da força contra o sistema. Aqui temos, segundo Joaquim Nabuco, o absolutamente essencial das “ações ou circunstâncias” que teriam propiciado a grande conquista do13 de Maio: a “ação política” e a “ação revolucionária”. As demais ações ou circunstâncias apontadas são claramente subordinadas a essas duas primeiras. Para efeito desta ligeira exposição, podemos citá-las mais rapidamente: (3) “a ação complementar dos próprios proprietários, que à medida que o movimento se precipitava diminuíam diante dele as resistências, libertando em massa as suas fábricas; (4) “a ação política dos estadistas, representando as concessões do governo”; (5) “a ação dinástica”. 7 Primeiro, portanto, fez-se o sonho dos poetas; depois a invenção social da ideia de transformação. Por fim, como sugere Nabuco, “a ação coerciva” das fugas em massa e dos quilombos abolicionistas. É interessante notar que nesse momento-chave da História do Brasil, como nunca antes talvez, “ação política” e “ação revolucionária” parecem inextrincavelmente ligadas. Ouçamos o próprio Nabuco: “As duas primeiras categorias” – escreve ele sobre a ação política e a ação revolucionária – “formavam círculos concêntricos, compostos [...] em grande parte dos mesmos elementos. É a elas que pertence o grosso do partido abolicionista, os líderes do movimento”. 8 7 – Ibid., p.194. Grifo nosso. 8 – Ibid., p.194. Grifo nosso.

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Penso poder afirmar, portanto, que na campanha abolicionista, tal como se deu no Brasil, “ação política” e “ação revolucionária” trabalham juntas e, na prática, se confundem. O líder da “ação política”, reconhecido pelos próprios contemporâneos, é Joaquim Nabuco. Seu grupo principal encontra-se muito bem identificado, em diversos textos, pelo próprio Nabuco: “Dentre aqueles com quem mais intimamente lidei em 1879 e 1888 e que formavam comigo um grupo homogêneo, a nossa pequena igreja [ou grupo político-ideológico], as principais figuras eram André Rebouças, Gusmão Lôbo e Joaquim Serra”. 9

Os líderes da “ação revolucionária” também podem ser perfeitamente identificados: José Carlos do Patrocínio, Ferreira de Meneses, Vicente de Sousa, Nicolau Moreira, João Clapp e, em síntese, o grupo que se formou em torno da Confederação Abolicionista. Reconhecida a influência mútua dos círculos, restará, contudo, uma disputa talvez eterna. Disputa que começou com os próprios contemporâneos e, na verdade, chega forte aos nossos dias movimentando discussões acaloradas e dividindo a historiografia sobre questões de prioridade e importância relativa de cada individualidade no movimento histórico. 10 Sílvio Romero, fechando sua monumental História da Literatura Brasileira poucos dias depois da Abolição, questionou-se exatamente sobre esse ponto. Quem seria o grande Herói ou Heroína, o/a responsável principal por tão grande conquista? Com o mau humor que lhe foi largamente reconhecido, mas não sem sua dose de verdade, Romero escreveu o seguinte: “E seja logo o meu primeiro asserto: a raça negra foi liberta porque merecia sê-lo, e quem a libertou foi principalmente o povo brasileiro. Não foi Sua Alteza Regente, como dizem os monarquistas; não foi o Sr. João 9 – Ibid., p.196. 10 – CF. Osório Duque-Estrada, A Abolição (esboço histórico). Rio de Janeiro, Leite Ribeiro & Maurillo, 1918, especialmente, cap. “Emancipadores e Abolicionistas”, pp.83109.

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Alfredo, como dizem os pretendentes; não foi o Sr. Joaquim Nabuco, como dizem os liberais; não foi o Sr. Patrocínio, como dizem os democratas; não foi o Sr. Dantas, como dizem os despeitados... Não, nada disso, a cousa vem um pouco mais de longe. “O feito que se acaba de realizar tem valor aos meus olhos justamente por ser uma obra na qual colaborou toda a nação.” 11 Temos, portanto, por um lado, o abolicionismo popular, a “ação revolucionária”, e, por outro lado, o abolicionismo de elite, ou “ação política”, como campos teoricamente separados e até excludentes de luta. Mas temos também, por outro lado, a influência mútua, o influxo recíproco, a “circularidade” de ações, para usar o termo consagrado por Carlo Ginzburg. 12 Disputas de prioridade e importância ‘histórica’ aparecem de cada lado. O abolicionismo parlamentar – a “ação política” – começou, fora de dúvida, na Câmara dos Deputados em 1879, com os pronunciamentos de Jerônimo Sodré, e, poucos dias depois, de Joaquim Nabuco. O abolicionismo popular – a “ação revolucionária” – foi iniciado pelo elemento republicano e negro em maioria. Joaquim Nabuco defende a prioridade do movimento parlamentar, mas, na verdade, de modo bastante flexível. Como ele próprio coloca com muita lucidez e equilíbrio, “tudo na abolição se prende, não se pode escrever-lhe a história suprimindo qualquer dos seus elos...” 13 Podemos ter como certo, portanto, que política parlamentar e pressão das ruas formam um conjunto tenso e, em última instância, explicam o encaminhamento da abolição da escravatura tal como se deu no Brasil. Para Rui Barbosa – outro personagem importante no processo –, a ação popular exerceu papel absolutamente preponderante para a conquista do 11 – Sílvio Romero, História da literatura brasileira, 7. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1980, v.1, p.37. 12 – Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. Tradução Betania Amoroso. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 15-34. 13 – Joaquim Nabuco, Minha formação, op. cit., p.198.

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13 de Maio. Para Rui Barbosa, mesmo a atitude firme da Princesa Isabel só se explica levando-se em conta o levante geral dos escravos com o apoio do movimento abolicionista. A chamada “avalanche negra, e o não quero do escravo – resume com precisão Rui Barbosa – impôs aos fazendeiros a abolição”. 14 Embora frequentemente se auxiliem e se confundam, ambos os grupos tentam manter sua individualidade e importância relativa no encaminhamento da luta. Como sintetizou Joaquim Nabuco, fazendo questão absoluta de resguardar a prioridade histórica do Parlamento frente à participação do elemento popular: “Jerônimo Sodré [...] foi quem pronunciou o fiat, [...] porque o movimento começou na Câmara em 1879, e não, como se tem dito, na Gazeta da Tarde de Ferreira de Meneses, que é de 1880, nem na Gazeta de Notícias, onde então José do Patrocínio, escrevendo a “Semana Política”, não fazia senão nos apoiar e ainda não adivinhava a sua missão. Decerto pelos escravos já vinham trabalhando Luís Gama e outros, mesmo antes da lei de 1871, como trabalharam todos os colaboradores dessa lei; mas o movimento abolicionista de 1879 a 1888 é um movimento que tem o seu eixo próprio, sua formação distinta, e cujo princípio, marcha, velocidade, são fáceis de verificar; é um sistema fluvial do qual se conhecem as nascentes, o volume de água e valor de cada tributário, as quedas, os rápidos, o estuário, e esse movimento começa, fora de toda dúvida, com o pronunciamento de Jerônimo Sodré em 1879 na Câmara... [...] Ao ato de Jerônimo Sodré filia-se cronologicamente a minha atitude dias depois...”

Isto, continua Nabuco, “é reivindicar para a Câmara, para o Parlamento, a iniciativa que se lhe tem querido tirar nesta questão, dando-se-a ao elemento popular, republicano... É uma pura questão de datas[...]. Reconheço que a minha inscrição vem na ordem do tempo depois da de Jerônimo Sodré... As outras, porém, vieram depois da minha... Foi o movimento popular talvez que mais tarde incubou o germe parlamentar, não o deixando 14 – Rui Barbosa, Trabalhos diversos. Rio de Janeiro, MEC, 1965, pp. 138-39 (Obras Completas de RB, v.15, t.1, 1888).

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morrer nas Sessões seguintes, mas que o germe foi parlamentar, que o liber generationis começou em 1879 com Jerônimo Sodré, é o que se pode demonstrar com os próprios documentos”. 15

E continua Nabuco: “Os dois grupos de que falei, encontravam-se, trabalhavam juntos, misturavam-se, mas a linha divisória era sensível: um representava a ação política, o outro a revolucionária, ainda que cada um refletisse por vezes a influência do outro. Isso no tempo em que a idéia está sendo lançada, pois dentro de pouco o movimento se torna geral, e então há o influxo das províncias, há o Ceará, o Amazonas, o Rio Grande do Sul, Pernambuco, a Bahia, São Paulo, que surgem como grandes focos de propaganda... O movimento abolicionista teve, com efeito, duas fases bem acentuadamente divididas: a primeira, de 1879 a 1884, em que os abolicionistas combateram sós, entregues aos seus próprios recursos, e a segunda, de 1884 a 1888, em que eles viram sua causa adotada sucessivamente pelos dois grandes partidos do país. Em 1884 deu-se a conversão do partido liberal e em 1888 a do partido conservador.”·.

Na igreja ou círculo liderado por Nabuco, uma das figuras-chave foi, sem dúvida, André Rebouças: “Rebouças encarnou como nenhum outro de nós, o espírito antiescravagista” [...] “Foi um industrial, um engenheiro ousado e triunfante, que acabou praticando o tolstoísmo... Foi um gênio matemático, um sábio, que reduziu sua ciência a uma serpentina em que de tudo destilava a abolição...”16

Eis, em síntese, a figura histórica de André Rebouças. Embora Nabuco o inclua em sua igreja, podemos ao menos desconfiar que Rebouças não pertencesse com exclusividade a qualquer grupo, mas praticamente a todos, sendo talvez o único abolicionista que atuava em todos os campos e subáreas do movimento. Foi fundador, junto com Joaquim Nabuco, da Sociedade Brasileira Contra a Escravidão. Foi fundador, com José do 15 – Joaquim Nabuco, Minha formação, op. cit., pp.196-197. 16 – Ibid., pp. 199 e 201.

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Patrocínio, da Confederação Abolicionista. Foi fundador, com Affonso de Taunay, da Sociedade Central de Imigração. Foi fundador, com seus alunos e colegas, da Sociedade Emancipadora da Escola Politécnica. Foi fundador, com Nicolau Moreira e Vicente de Souza, da Sociedade Central Emancipadora. Na verdade, onde quer que houvesse o bom espírito abolicionista ou emancipador, lá estaria – e sempre exercendo posições de destaque e responsabilidade – o engenheiro André Pinto Rebouças. 17 Nabuco aponta também a outra igreja, a de José do Patrocínio: “Este é o representante do espírito revolucionário que com o espírito liberal e o espírito de governo fez a abolição, mas que foi mais forte do que eles, e acabou por os absorver e dominar... Sem o espírito governamental de homens como Dantas, Antônio Prado e João Alfredo, não se teria chegado pacificamente ao fim, nem tão cedo; sem o espírito humanitário, estreme de ódios e tendências políticas, a abolição teria degenerado em uma guerra de raças ou em um encontro de facções; sem o trabalho vário, inapreciável, de cada um dos grandes fatores provinciais, que conservarão sua autonomia na história, como o do Ceará com João Cordeiro, o de São Paulo com Antônio Bento, o de Pernambuco com João Ramos, tomando esses nomes como coletivos, o resultado teria sido diferente e talvez funesto. O que Patrocínio, porém, representa é o fatum, é o irresistível do movimento... Ele é uma mistura de Espártaco e de Camille Desmoulins...”18

Quando afirma que o “espírito revolucionário” foi mais forte e acabou por “absorver e dominar” o “espírito liberal”, Nabuco aponta para uma sobredeterminação, naquele momento, da revolução sobre a política, 17 – Sobre André Rebouças, ver: Ignácio José Veríssimo, André Rebouças através de sua autobiografia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1939; Sydney M. G. dos Santos, André Rebouças e seu tempo. Rio de Janeiro, 1985; Joselice Jucá, André Rebouças: reforma & utopia no contexto do segundo império: quem possui a terra possui o homem. Rio de Janeiro, Odebrecht, 2001(Originalmente Tese de PhD defendida na Universidade de Essex, Inglaterra, em 1986); Leo Spitzer, Lives in between: assimilation and marginality in Áustria, Brazil, West África, 1780-1945. London, Cambridge University Press, 1989; Maria Alice de Carvalho, O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro, Revan, 1998; Andréa Santos da Silva Pessanha. Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a vida e as ideias de André Rebouças. Rio de Janeiro, Quartet, 2005. 18 – Joaquim Nabuco, Minha formação, op. cit., p.207.

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reconhecendo e valorizando em extremo o papel exercido por José do Patrocínio. Nabuco compara Patrocínio às figuras de Espártaco e Camille Desmoulins. O paralelo é significativo: de um lado, Espártaco, o gladiador que comandou a célebre revolta de escravos que abalou o Império Romano por volta do ano 70 antes de Cristo, o próprio símbolo da luta contra a escravidão em Roma no final da República. E, de outro lado, Camille Desmoulins (1760-1794), um dos mais influentes panfletários da Revolução Francesa. Patrocínio seria, na definição de Nabuco, uma mistura do intelectual que pensa, escreve e prega (Desmoulins) com o próprio escravo que se revolta e faz acontecer a história (Espártaco). Era, portanto, o grande jornalista que todos conheciam e, ao mesmo tempo, o líder secreto dos escravos fugidos do Quilombo do Leblon. “Patrocínio é a própria revolução”, sintetizou Nabuco. “Se a abolicionismo no dia seguinte ao seu triunfo se dispersou e logo depois uma parte dele se aliou à grande propriedade contra a dinastia que ele [o abolicionismo] tinha induzido ao sacrifício, é que o espírito que mais profundamente o agitou e resolveu, foi o espírito revolucionário que a sociedade abalada tinha deixado escapar pela primeira fenda dos seus alicerces... Patrocínio foi a expressão da sua época; em certo sentido, a figura representativa dela.” 19

E quanto à Princesa Isabel? Joaquim Nabuco expressa claramente sua convicção de que Isabel, “renuncia virtualmente o trono para apressar a liberdade dos últimos escravos...”20, isto é, ao unir-se aos abolicionistas e apoiar a “ação revolucionária”, ao adornar, em síntese, o vestido real com as camélias revolucionárias do Quilombo do Leblon. Bem que a preveniu, inúmeras vezes, o republicano Silva Jardim: “Cuidado, Senhora! Que estas flores não se vos tornem demasiado encarnadas, que elas se não vos tornem vermelhas!...”21 19 – Ibid., p. 208. Grifo nosso. 20 – Ibid., p. 212. 21 – Antônio da Silva Jardim, Propaganda republicana (1888-1889). Discursos, opúsculos, manifestos e artigos coligidos, anotados e prefaciados por Barbosa Lima Sobrinho. Rio de Janeiro, FCRB, Conselho Federal de Cultura, 1978. “A pátria em perigo”(II), pp.76-88. Citação à p. 82.

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Nos últimos anos do século XIX, quando escreveu e publicou Minha formação, Nabuco encontrava-se em meio a um diálogo – ou melhor, a um debate surdo – com alguns de seus contemporâneos que, à boca pequena, culpavam os abolicionistas pelo fim da monarquia e, portanto, pela crise e instabilidade inicial da República. Afinal, argumentavam os inconformados, se a Abolição trouxe necessariamente a República, e sendo Nabuco um monarquista sincero, não deveria ele manifestar claramente seu arrependimento por ter se aliado com quem se aliou e se colocado à frente de um tal movimento? A resposta de Nabuco não deixa dúvida quanto à importância primordial, para ele, da formação e consolidação do povo brasileiro, sobre a política pura e simples: “Decerto o exílio do Imperador foi triste, mas também foi o que deu à sua figura a majestade que hoje a reveste... Não, não há assim nada que me faça olhar para a fase em que militei na política com outro sentimento que não seja o de uma perfeita gratidão... Não devo à dinastia nenhuma reparação; não lhe armei uma cilada; na humilde parte que me coube, o que fiz foi acenar-lhe com a glória, com a imortalidade, com perfeição do seu traço na história... Ninguém pode afirmar que desprezando a abolição ela se teria mantido, ou que não teria degenerado... A abolição em todo o caso era o seu dever, e ela recolheu a glória do seu ato; deu-nos quitação...”22

Quando trata de sua “passagem pela política”, no capítulo 23, Nabuco revela em detalhes sua relação com as bases abolicionistas do velho Recife. Fica bastante clara, nesse capítulo, sua ligação com os grupos envolvidos com a ação direta antiescravista. Nabuco expressa claramente o que podemos chamar as motivações pessoais, ou mesmo psicológicas, de seu envolvimento com a campanha. E expressa também claramente a importância da participação popular que, na verdade, deu a tônica do movimento a seu favor. “Ah! O que não recebi nesses anos de luta pelos escravos! Como os sacrifícios que por vezes inspirei eram maiores que os meus! Eu tinha 22 – Joaquim Nabuco, Minha formação, op. cit. p. 213.

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a fama, a palavra, a carreira política... É certo que não tive outras recompensas, mas essas eram as mais belas para um moço, nesse tempo ávido de nomeada e das sensações do triunfo. Era o meu nome que saía vitorioso das urnas numa dessas eleições que eletrizavam os espíritos liberais de todo o país, que me traziam de longe as bênçãos dos velhos quakers da Anti-Slavery Society, e até uma vez os votos de Gladstone... Aqueles, porém, que concorriam para a vitória desapareciam na lista anônima dos esquecidos... Seus nomes, mesmo os principais, não ecoavam fora da província... Só, dentre eles, José Mariano era conhecido de todo o país e reputado o árbitro eleitoral do Recife”. 23

José Mariano era exatamente um dos esteios principais da ação direta no Recife, o grande chefe por trás do perigoso “Clube do Cupim”. Mas, além dos chefes conhecidos por todos, o que dizer dos militantes anônimos? “Quem conhecia, porém – continua Joaquim Nabuco -, a Antônio Carlos Ferreira da Silva, então simples guarda-livros em uma casa do Recife e que no entanto fez todas as minhas eleições abolicionistas? A verdade é que era ele o espírito que movia tudo em meu favor; sem ele tudo teria corrido em outra direção... Essa é a melhor prova do caráter espontâneo, natural, popular, das minhas eleições do Recife, o ter bastado para faze-las um homem como ele, sincero, dedicado, inteligente, leal, hábil, todo coração e entusiasmo sob uma máscara de frieza e misantropia, mas sem posição, sem fortuna, sem status político, sem ligação de partido, simples abolicionista, nunca aparecendo em público, e, além do mais, republicano confesso... Essa circunstância só por si mostra bem a sinceridade, a humildade, a ingenuidade de todo esse movimento de 1884-1888. Esse foi o meu paraninfo...”24

E, mais adiante, para concluir: “ainda uma vez revelo o segredo da minha relação com o Recife, dizendo que Antônio Carlos, que nada era e nada quis ser, foi o verdadeiro autor dela...”25 Além, portanto, dos grandes nomes da elite liberal da província, como Dr. Ermírio Coutinho, Dr. Joaquim Francisco Cavalcanti, ou mes23 – Ibid., cap. 23, pp. 214-221. Citação à p.214. 24 – Ibid., pp. 214-215. 25 – Ibid., p. 215.

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mo Dr. José Mariano e “sua meiga e amorosa dona Olegarinha”, Nabuco lembra com especial reconhecimento a gente simples – geralmente negra e mestiça – do Clube do Cupim. “Não esqueço ninguém, nenhum dos chefes e centuriões liberais, Costa Ribeiro, João Teixeira, Barros Rego, o Silva da Madalena, Faustino de Brito, os Rochas do Peres: seria preciso citar cem, duzentos... Nenhum também desse grupo de abolicionistas, que me recebeu com Antônio Carlos: Barros Sobrinho, João Ramos, Gomes de Matos, João Barbalho, Numa Pompílio, João de Oliveira, Martins Júnior, todos eles”. 26

Além de apoiar-se na militância radical do Clube do Cupim e das classes mais populares, Nabuco – ele próprio, e ao arrepio das leis vigentes – dava abrigo a escravos fugidos. Confessaria esse “pecado”, aliás, ao próprio Papa Leão XIII, a quem fora pedir ajuda, já no fim do processo, em 1888. Recém-eleito deputado-geral com o apoio do underground abolicionista do Recife, Nabuco, em golpe de grande audácia, partiu para Roma em busca do apoio do Soberano Pontífice. “Nós, abolicionistas, por toda parte acoitamos escravos”, confessou Nabuco ao Santo Padre, tentando convencê-lo a intervir no processo brasileiro através de uma encíclica condenando a escravidão. “Fazemos o que faziam os bispos da média idade com os servos”, continuou ele. “O sentimento da nação, isto posso afirmar a Vossa Santidade, é unânime, e a palavra do chefe da Igreja não encontraria ninguém para disputá-la”. 27 Para concluir, portanto, podemos afirmar que embora fizesse parte do círculo ou grupo afeito preferencialmente à “ação política” e parla26 – O apoio dos Drs. Ermírio Coutinho e Joaquim Francisco Cavalcanti, de cuja dupla renúncia resultou a inesperada eleição de Nabuco pelo Quinto distrito, logo em seguida à anulação de seu diploma pelo Primeiro distrito, foi essencial. Da mesma forma, o apoio de José Mariano e sua esposa, dona Olegarinha, que chegou a empenhar suas joias para financiar o movimento. Nabuco lembra ainda a contribuição imprescindível da imprensa local, o suporte de “tantos jornalistas distintos”, dentre eles, com destaque, Maciel Pinheiro, e o apoio dos “chefes intelectuais da mocidade”, como Aníbal Falcão e Sousa Pinto. Cf. Minha formação, op. cit., pp. 215-216. 27 – Ibid., p.232. Nabuco narra o encontro, com riqueza de detalhes, no cap. 24, “No Vaticano”, pp. 222-241.

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Joaquim Nabuco e a luta contra a escravidão: “ação política” e “ação revolucionária”

mentar, Joaquim Nabuco não deixou também de participar e contribuir para a “ação direta”, tendo, inclusive, frequentado o famoso Quilombo do Leblon, um dos centros efetivos da “ação revolucionária” contra o sistema. O estudante de Medicina Brício Filho, notório militante do underground abolicionista, nos deixou emocionado relato de um jantar servido no Quilombo do Leblon, em março de 1887, por ocasião do aniversário de José de Seixas Magalhães, um dos chefes do quilombo. Figuravam entre os convidados, em perfeito congraçamento, os próprios chefes tanto da “ação revolucionária” quanto da “ação política” do movimento. Lá estavam Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, João Clapp, Domingos Gomes dos Santos, conhecido como “o Radical”, Dr. Campos da Paz, Ernesto Senna e outros. À sobremesa, um dos líderes quilombolas, em nome dos companheiros, agradeceu a presença e o apoio dos abolicionistas presentes. Em nome dos visitantes respondeu Joaquim Nabuco, emocionando a todos com seu verbo inspirado. Para o historiador fica claro, neste obscuro episódio, até que ponto chegara – um ano antes da abolição final – o congraçamento e união de propósitos entre “políticos” e “revolucionários”: “Tive ensejo, em momentos vários, de aplaudir as palavras saídas dos lábios do insigne pelejador, deixando-me arrebatar pelos tropos de sua eloquência fascinadora e eletrizante”, anotou emocionado Brício Filho. “Nunca entretanto sua oratória tanto me penetrou no imo d’alma, tanto me impressionou, tanto me comoveu. O másculo tribuno desceu ao nível dos promotores da manifestação [os quilombolas do Leblon], discorreu por meio de períodos singelos em sua contextura ressaltando ensinamentos, doutrinas e conselhos! Anunciou que a liberdade não tardava e aconselhou que os futuros libertos procurassem percorrer o caminho da honra e do dever, trabalhando, mostrando-se úteis a si e ao país e tornando-se bons cidadãos. Quando terminou o seu discurso o maior batalhador parlamentar da santa cruzada, percebi que

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lágrimas me rolavam pela face. Contemplei o Patrocínio e verifiquei que com ele o mesmo acontecia”.28

No Quilombo do Leblon, portanto, choraram unidos pela mesma esperança chefes e representantes da “ação política” e da “ação revolucionária”. Eis aqui, em síntese, a própria alma do 13 de Maio. Texto apresentado em outubro /2008. Aprovado para publicação em novembro /2010.

28 – Depoimento do jornalista Brício Filho sobre o Quilombo do Leblon (1928). In: Eduardo Silva, As camélias do Leblon, op. cit. Apêndice F, pp.102-108. Citação às pp. 106107.

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Joaquim Nabuco: um historiador político, um político historiador

Joaquim Nabuco: Um historiador político, um político historiador Joaquim Nabuco – A political historian, a historian and politician José Almino de Alencar 1 Resumo: Ao se afastar da vida política durante a década de 1890, Joaquim Nabuco escreverá os seus livros mais importantes: Balmaceda (1895), A revolta da Armada (1896), Um estadista do Império (1896), Minha formação (1900). Eram obras de memorialista, de historiador e de um observador privilegiado da política e das instituições brasileiras e sul-americanas. Este artigo tenta mostrar como as análises de Nabuco eram influenciadas pela situação de instabilidade política na América do Sul, atestada pelas sucessivas crises e conflitos do novo regime republicano brasileiro ou de tentativas de golpes de estado, tais como no Chile do Presidente Balmaceda Fernandez (1891), entre outros eventos emblemáticos do mesmo período.

Abstract: Upon his retirement from the political scene during the 1890’s, Joaquim Nabuco wrote his most important books: Balmaceda (1895), A Revolta da Armada (1896), Um Estadista do Império (1896), Minha Formação (1900). Those were the work of an autobiographer, a historian, and a privileged commentator of Brazilian and South American politics and institutions. This article proposes to demonstrate how Nabuco’s analyses were influenced by the context of political instability in South America, corroborated by the successive crises and conflicts of Brasil’s new Republican regime and the attempted coups d’État such as that in Chile (President Balmaceda Fernandez, 1891), among other emblematic events during that same period.

Palavras-chave: instabilidade política, regi-

Keywords: Political Instability, Political Regime, Brazilian History Writings.

me político, historiografia brasileira

I Em julho de 1906, Joaquim Nabuco, então embaixador brasileiro junto aos Estados Unidos, volta ao Brasil depois de sete anos de ausência. Vem participar da Terceira Conferência Pan-Americana que se realizaria naquele mês no Rio de Janeiro, graças em muito ao seu empenho. Desde a escala em Recife no dia 13 é recebido por manifestações populares e homenagens diversas; e nessas ocasiões, os seus discursos tratam quase sempre de sua trajetória de homem público: o jovem abolicionista, o parlamentar quase monotemático no combate à escravidão, o monarquista renitente que – juntamente com Alfredo Taunay e André Rebouças, por exemplo – se diferenciara de vários de seus companheiros de geração que associavam o abolicionismo ao republicanismo. Fazia assim o rol de 1 – Pesquisador da Fundação Casa Rui Barbosa e sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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seus combates e das suas fidelidades, antes de se dizer conformado com a consolidação da República: convencido da impossibilidade, da improficuidade da restauração [monárquica] que me restava senão aceitar os fatos, fazer auto de fé nos grandes destinos do país. É o que declara no discurso em banquete em sua homenagem no Cassino Fluminense aos 23 de julho2; e acrescentava, com a satisfação do dever cumprido: “Senhores, eu não me separei de repente do partido monárquico: levei dez anos nessa lenta evolução, que me fez ceder à invencível prescrição da História. [...] Nesses cinco anos fiz pela história da Monarquia muito mais do que podiam fazer; do que teriam feito todos os outros que a servem. Eu levantei os homens de Estado do antigo regime, levantei o Imperador; ao mesmo tempo, que por piedade filial, procurava cumprir um dever para com a memória sagrada de meu pai. Eu levantei o monumento que estava ao alcance de minha inteligência, de minha dedicação nas páginas da jurisprudência do Império3.”

Referia-se à sua obra recente de historiador, memorialista e ensaísta político, onde obviamente se destacam os seus livros: Minha formação, Um estadista do império, Balmaceda e A revolta da armada4; obra a qual se dedicara com afinco do momento em que, após a proclamação da república, abandonou a política, ou pelo menos, no seu dizer, a política com “p” pequeno, a politique politiciéene: as eleições, as articulações parlamentares e as combinações partidárias que haviam ocupado duas gerações de sua família5. 2 – Discurso proferido em banquete em homenagem ao embaixador Joaquim Nabuco em 23 de julho de 1906, no Cassino Fluminense, apud GALVÃO, Sebastião V. Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 74, p. 49, 1912. Parte 2. 3 – Idem, pp. 48-49. 4 – Publicados entre 1895 e 1900. 5 – José Tomás Nabuco de Araújo (S. Pedro Velho, BA 1785 – Salvador, BA 1850), avô de Joaquim Nabuco, foi presidente das províncias da Paraíba (1831) e do Espírito Santo (1836). Seu filho, de mesmo nome, José Tomás Nabuco de Araújo (Salvador, BA 1813 – Rio de Janeiro, RJ 1878), foi ministro da Justiça nos gabinetes de Paraná (1853-1856), de Caxias (1856-1857), de Abaeté (1858-1859) e no último de Olinda (1865-1866). Conselheiro de Estado em 1866 acabou tornando-se uma das vozes mais destacadas do Partido Liberal.

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Dez anos antes, em 25 de outubro de 1896, em seu discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ele já indicara o propósito militante que dava ao seu trabalho. A história do Brasil, ou melhor, a sua interpretação, dizia, atravessava uma grave crise, cujo resultado podia ser sua “mutilação definitiva”. Os agentes dessa ação eram uma “escola religiosa” [os republicanos ‘jacobinos’ ou mais radicais] que pretendia reduzir a história nacional a três nomes: Tiradentes, José Bonifácio e Benjamin Constant. [...] Nabuco não concorda que Tiradentes “resuma em si o ingente esforço pela independência”, a ponto de não se valorizar “os heróis pernambucanos em 1817”, ou de que José Bonifácio fosse mais destacado que Pedro I, até porque aquele se ligava muito mais à independência do que ao passado imperial.6 Tratava-se menos de proteger uma galeria de nomes e mais de combater as distorções, que tais escolhas introduziam na história do país: isso porque, para ele, o projeto positivista/jacobino, além de fazer datar nossa história da Independência, como se não existisse uma história portuguesa do país, pretendia criar entre a Independência e a República um deserto de quase setenta anos, “a que posso dar o nome de deserto do esquecimento”; [...] objetivava realizar uma ruptura entre Monarquia e República e ignorando todo o progresso material então alcançado.7 Registrava assim a intenção política das suas obras históricas da maturidade, fazendo claro o desejo de confronto com a época imediata: a primeira década de uma república ainda incerta e que sucedia a um longo período de estabilidade monárquica.

6 – GOMES, Ângela de Castro. “Rascunhos de história imediata: de monarquistas e republicanos em um triângulo de cartas”. In: Remate de Males, n. 24. Campinas: Departamento de Teoria Literária, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade de Campinas, 2004, p. 20. 7 – Idem, p. 21.

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II Em 1848, a derrota da Revolução Praieira em Pernambuco – a última revolta regional com certa expressão – significa a consolidação da monarquia parlamentar no Brasil, que poderá doravante se colocar como a principal construtora e guardiã da unidade nacional. Daí em diante, e até a proclamação da República, rememoremos, esse regime político mostra-se capaz de praticamente evitar os conflitos políticos violentos, promovendo a alternância das camadas dirigentes, cooptando opositores, sob a regência e mediação do Poder Moderador da coroa. Até o final do Segundo Reinado, o funcionamento continuado do parlamento e dos partidos políticos é garantido e vigora a liberdade de expressão. A economia brasileira cresceu entre 1848 e 1888, graças principalmente ao desenvolvimento da cafeicultura. A proibição do tráfico de escravos, em 1850, deixou disponíveis mais recursos financeiros, antes empregados naquele comércio, para aplicação em outros setores da economia. O Estado passou a promover o investimento estrangeiro em setores de infraestrutura, como portos e ferrovias, garantindo muitas vezes um rendimento mínimo para esses empreendimentos. Em todo o período, o país conheceu relativa estabilidade monetária, o que contribuiu para criar certo sentimento de segurança, sobretudo entre as elites e as populações das grandes cidades. Durante o seu longo domínio, o império firmara as bases territoriais do país e construíra, bem ou mal, um ordenamento legal, uma estrutura burocrática, uma comunidade política, em torno de um estado nacionalmente implantado. O progresso econômico veio acompanhado de uma diferenciação do sistema social como um todo. O percentual do capital investido no setor manufatureiro começa a aumentar, ainda que timidamente, assim como cresce de maneira expressiva o número daqueles que trabalham na administração e em profissões liberais. A maior diferenciação na estrutura social, sobretudo nas camadas urbanas e nas elites, possibilitou maior inclusão na vida pública de elementos das profissões liberais ou de uma camada média urbana ainda que muito incipiente, nem sempre herdeiros

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diretos de posições de fortuna ou de poder, o que favoreceu mudanças na agenda política e imprimiu maior dinamismo à sociedade. É nesse contexto histórico-sociológico – de crescimento econômico consistente, estabilidade política e liberdade de imprensa e vida parlamentar relativamente competitiva para os grupos dirigentes – que crescerá a geração de Joaquim Nabuco e no qual ele consolidará a sua formação intelectual e as suas inclinações políticas. Face à debacle da monarquia e a instabilidade política introduzida pelo novo regime, tocado pelo espírito partidário, idealizado e nostálgico, Joaquim Nabuco faz a seguinte avaliação sobre o legado da Coroa: “Tenho por certo que a função benéfica da monarquia no Brasil foi esta: Descobrimento, conquista, povoamento, cristianização, edificação, plantio, organização, defesa do litoral, expulsão do estrangeiro, unificação e conservação do todo territorial; administração, estabilidade, ordem perfeita no Interior; Independência, unidade política, sistema parlamentar, sentimento da liberdade, altivez do caráter brasileiro, inviolabilidade da imprensa, força das oposições, direito das minorias; tirocínio, aptidão, moralidade administrativa; vocação política desinteressada; crédito, reputação, prestígio exterior; brandura e suavidade de costumes públicos, igualdade civil das raças, extinção pacífica da escravidão; glória militar, renúncia do direito de conquista, arbitramento internacional; cultura literária e científica a mais forte da América Latina; por último, – como o ideal realizado da democracia antiga, “o governo do melhor homem”, – um reinado Pericleiano de meio século8.”

O novo regime extinguira o Poder Moderador, “a mais bela ficção no Direito Constitucional que imaginou Benjamin Constant” 9, diria Na8 – NABUCO, Joaquim. “O Dever dos Monarquistas. Carta ao Almirante Jaceguai”. In: ALENCAR, José Almino de e PESSOA, Ana (orgs.), Joaquim Nabuco: o dever da política, Rio de Janeiro, Edições Casa de Rui Barbosa Rio de Janeiro, 2002, p. 81. Ou como escreveu em outra ocasião: A missão da Monarquia no Brasil não tem exemplo na história das dinastias. O primeiro Imperador criou a nacionalidade, o segundo constituiu a Nação, e sua Filha n’uma curta Regência, aproveitando o que ele mesmo havia iniciado, realizou a abolição, fundando a igualdade social. Um criou a Pátria, o outro a Nação, e a terceira pessoa d’essa Trindade nacional criou o Povo. 9 – NABUCO, Joaquim. Balmaceda. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 214.

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buco; e com ele abolira-se um instrumento que havia sido habitualmente utilizado, sobretudo durante o Segundo Reinado, para mediar e resolver as lutas entre os facciosismos regionais e partidários10; agravadas agora com as pressões dos novos agrupamentos políticos e de opinião que compunham os republicanos alçados às competições em torno do poder, os militares politizados pela participação decisiva do Exército na derrubada do Imperador e os partidários da monarquia alijada, estes últimos dispondo ainda de apoios em setores armados, sobretudo na Marinha11. De resto, depois de constatar a instabilidade endêmica na América do Sul, com o seu excesso de levantes militares, Nabuco conclui que todo continente careceria de uma instituição semelhante: “O que a América do Sul precisa é um extenso Poder Moderador, um Poder que exerça a função arbitral entre partidos intransigentes. De muitas doenças graves costuma-se dizer que foi no princípio um resfriamento mal curado; a história da América do Sul parece não ter sido outra coisa senão uma revolução mal curada12.”

10 – Este argumento é desenvolvido por mim em outro lugar (cf: ALENCAR, José Almino de. (2002), “Radicalismo e desencanto”, in: ALENCAR, José Almino de e PESSOA, Ana (orgs.), Joaquim Nabuco: o dever da política, op. cit.), seguindo uma análise feita por Renato Lessa (In: A Invenção Republicana. Rio de Janeiro: Topbooks, segunda edição revista, 1999.) Ponto de vista semelhante pode ser encontrado também em: CARDOSO, Fernando Henrique. “Dos governos militares a Prudente – Campos Sales”. In: O Brasil Republicano. 1. Estrutura de poder e economia (1889-1930). Coleção História Geral da Civilização Brasileira, sob a direção de Boris Fausto. São Paulo. Difel, 1997. P. 41. 11 – Em novembro de 1890, ao recusar a sua candidatura para a Assembleia Constituinte da república recém-proclamada, Joaquim Nabuco envia aos seus eleitores pernambucanos a seguinte mensagem onde denuncia o caráter heterogêneo e contraditório das forças e valores que compõem o novo regime: O caráter do povo que há de sair da fusão de tantas raças é uma incógnita tão grande como o da república que há de resultar da luta dos elementos heterogêneos que entraram na revolução: o ideal Americano, o espírito militar, e o ressentimento escravista. Não me atrevo a tentar indutivamente a síntese d’este produto orgânico de uma sociedade amalgamada pela escravidão em uma nação criada e formada pela monarquia.” (NABUCO, Joaquim. “Resposta às Mensagens de Recife e Nazaré. Rio de Janeiro: Typ. Leusinger & Filhos, segunda edição, 1890, p. 20.). 12 – NABUCO, Joaquim. Balmaceda, op. cit. p. 214.

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III Ao se afastar da vida política durante a década de 1890, Joaquim Nabuco vai, então, escrever textos... políticos, nos quais dramatiza a narrativa histórica através da análise da vida ou de comportamentos de indivíduos excepcionais: ele mesmo, em Minha formação (1900); seu pai, o senador José Tomás Nabuco de Araújo, em Um estadista do Império (1896); e Balmaceda (1895), no qual ele trata da guerra civil que precedeu a deposição e depois o suicídio de um presidente chileno, Balmaceda Fernández, em 1891. Nessas três obras, Nabuco se esforça em recontar a trajetória nacional a partir da composição conclusiva de uma consciência única, atualizada em diferentes gerações13. São esses textos narrativas vívidas, onde se procura analisar o comportamento e as decisões de homens de poder em situações (Nabuco Araújo durante a Revolução Praieira, Balmaceda combatendo o levante armado organizado pelo parlamento chileno) nas quais se defrontavam escolhas entre valores, identificados por ele como fundamentais para as sociedades em questão: a ordem e a unidade nacionais, representadas pelo Império, contra o populismo da Praia em 1848; o despotismo de Balmaceda contra o “parlamentarismo oligárquico” no Chile, percebido como uma solução democrática viável para a América do Sul. Embora imbuída de espírito partidário, a abordagem de Nabuco fugia com vantagem, pelo menos aos nossos olhos, das doutrinas deterministas, às vezes biologistas, com as quais os seus contemporâneos intentaram elaborar interpretações sobre o país. O seu trabalho histórico [...] é apenas de crítica e de generalização, dirá o seu contemporâneo José Veríssimo, [...] A história para ele não é mais que a política em teoria, dela o que lhe interessa é a parte contemporânea, cujos atores ainda conheceu e de cujos atos sente ainda os contrachoques. [...] A desenterrar a história do pó dos arquivos como, para não sairmos da nossa língua, Herculano, ele preferira animá-la com o 13 – CARVALHO, Maria Alice de. O quinto século, André Rebouças e a Construção do Brasil. Rio de Janeiro, Editora Revan, 1998, p. 46.

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seu pensamento, com a sua crítica, com a sua generalização, como Oliveira Martins.14 Em Nabuco, portanto, não se deveria procurar o historiador, mas o político e, acrescentava Veríssimo, também o literato. Neste sentido, Silviano Santiago15 caracteriza Minha formação como uma série de ensaios ficcionalizados e o mesmo poderia ser dito sobre os outros três trabalhos. Em todos eles está presente a busca de uma combinação daqueles dois ângulos que regem – é o que nos diz Antônio Cândido – a visão do escritor: o de subjetivismo que investiga a realidade como algo subordinado à consciência e outro de objetividade que põe a consciência a serviço de uma realidade considerada algo existente fora dela.16 Em Balmaceda, a narrativa toma frequentemente uma forma romanesca – entremeada de comentários e análises, em um ritmo atraente que nos faz seguir sem pena os conflitos entre as facções políticas chilenas, as manobras militares do embate entre o parlamento e o executivo, a queda de Balmaceda e o seu suicídio. Em Minha formação, Nabuco dramatiza a sua própria condição: “Sou antes um espectador do meu século do que do meu país: a peça é para mim a civilização e se está representando em todos os teatros da humanidade [...] Em minha vida vivi muito da Política, com P grande, isto é, da política que é história [...] Mas para a política propriamente dita, que é a local, a do país, tenho esta dupla incapacidade: não só um mundo de coisas me parece superior a ela, como também minha curiosidade, o meu interesse, vai sempre para o ponto onde a ação do drama contemporâneo universal é mais complicada ou mais intensa. Poderíamos acrescentar também a expressão mais conhecida deste sentimento, porque freqüentemente citada: o sentimento em nós é brasileiro, a imaginação européia... 17” 14 – VERÍSSIMO, José. “Um historiador político”. In: NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império, vol. II. São Paulo: Topbooks, 1973, p. 1.304. 15 – SANTIAGO, Silviano. “Atração do mundo – políticas de globalização e de identidade na moderna cultura brasileira”. In: SANTIGAO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 11. 16 – CÂNDIDO, Antônio. “A compreensão da realidade”. In: O observador literário. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 33. 17 – NABUCO, Joaquim. Minha formação. Rio de Janeiro: W.M. Jacksom Editores, 1952, p. 41 e p. 48.

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Esta “instabilidade”, como ele a nomeia, é o lote comum a muitos intelectuais do seu tempo nos países da periferia ocidental. É análoga a mesma dualidade vivenciada, por exemplo, pela inteligenzia russa do século XIX, dividida entre cosmopolitas e populistas, “irmãos inimigos”, no dizer de um ocidentalizante, Alexander Herzen, juntos no fervor intelectual patriótico e separados quanto ao caminho a ser adotado pelo país: o da imersão na cultura popular nacional ou o da integração no universo da civilização do ocidente europeu. Neste contexto, Evaldo Cabral de Mello fala da nossa grande ferida oitocentista, o dilema do mazombo18, isto é, do brasileiro descendente de europeu ou considerado como tal, inseguro na sua identidade, sentindose dividido entre a América e a Europa. Em “A atração do mundo” 19 Silviano Santiago chama a atenção para um trecho de uma carta do jovem Carlos Drummond de Andrade endereçada a Mário de Andrade, logo após a famosa visita deste as Minas Gerais, em 1924. Dizia Drummond: “Pessoalmente acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados. Acho o Brasil infecto.” Nesta afirmação, Mário vê uma manifestação sintomática de uma nova forma de doença tropical e responde ao jovem poeta: “O Dr. Chagas descobriu que grassava no país uma doença que foi chamada de moléstia de Chagas. Eu descobri outra doença mais grave, de que todos estamos infeccionados: a moléstia de Nabuco.” O sentimento de desamparo do indivíduo provinciano que se transforma em aspiração cosmopolita é caracterizado por ele como “[a] tragédia de Nabuco, de que todos sofremos”; sofrimento que somente poderia ser transmudado se nós brasileiros enfrentássemos o nosso passado nacional: “Nós já temos” – escreve Mário – “um passado guassu e bonitão pesando em nossos gestos; o que carece é conquistar a consciência desse peso, sistematizá-lo e tradicionalizá-lo, isto é, referi-lo ao presente [...] Nós só 18 – CABRAL DE MELLO, Evaldo. “Joaquim Nabuco”. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 140: 5/30, jan. – mar., 2000, p. 26. 19 – SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2004, pp. 11-44.

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seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo, pra fase de criação. E então seremos universais, porque nacionais”. Em seu relato autobiográfico, Nabuco sugere que a sua atividade política seria um esforço de superação dessa dicotomia na busca de integração entre a experiência local e uma dinâmica universal da razão20 que identificava como o movimento da história nos centros civilizados. Observado da maturidade, ele via no seu engajamento abolicionista o momento privilegiado quando esta síntese emergira: “Era preciso que o interesse fosse humano, universal; que a obra tivesse o caráter de finalidade, a certeza, a inerrância do absoluto, do divino, como tem as grandes redenções, as revoluções de caridade ou da justiça, as auroras da verdade e da consciência sobre o mundo. No Brasil havia ainda, no ano em que comecei minha vida pública, um interesse daquela ordem, com todo esse poder de fascinação sobre o sentimento e o dever, igualmente impulsivo e ilimitado, capaz do fiat, quer se tratasse da sorte de criaturas isoladas, quer do caráter da nação... Tal interesse só podia ser o da emancipação [...]. É a emancipação a verdadeira ação formadora para mim, a que toma os elementos isolados ou divergentes da imaginação, os extremos da curiosidade ou da simpatia intelectual, os contrastes, os antagonismos, as variações de faculdades sensíveis à verdade, à beleza, que os sistemas mais opostos refletem uns contra os outros, e constrói o molde em que a aspiração política é vazada, e não ela somente, a inteligência, a imaginação, os próprios sonhos e quimeras do homem.21”

IV Em uma sociedade escravista como a brasileira, o movimento abolicionista seria ele mesmo, segundo Nabuco, a manifestação de um privilégio que só poderia existir graças à vontade política de uma elite, erguida a partir da militância de uma aristocracia do espírito, capaz de vir a romper com o sistema e a aboli-lo. É o que procurou demonstrar em O abolicionismo, onde se aponta o caráter predatório e a natureza economicamente 20 – CARVALHO, Maria Alice de. O quinto século, André Rebouças e a Construção do Brasil, p. 40. Aqui, eu sigo de perto a análise de Maria Alice de Carvalho. 21 – NABUCO, Joaquim. Minha formação, op.cit., p. 218 e pp. 222-223.

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estagnante do regime servil, em termos que se tornaram comuns na literatura sociológica contemporânea. Com este pequeno livro, Nabuco poderá ter sido o primeiro a articular numa visão da sociedade a intuição segundo a qual o regime servil é a variante sociológica que a explica de maneira mais abrangente [...], aquela que ilumina mais poderosamente o nosso passado. Com referência à escravidão é que se definiu entre nós a economia, a organização social e a posição das classes e das ordens, a estrutura do estado e do poder político, o próprio sistema de idéias.22 A maior parte das terras era monopolizada pelos proprietários de escravos, em grandes glebas, destinadas, sobretudo, a uns poucos produtos de exportação. A exploração extensiva exauria o solo, a concentração de riqueza inibia a criação de indústria, do pequeno comércio e o aparecimento de camadas médias. O universo urbano era pouco diferenciado, constituído na sua maioria de centros administrativos. Atados a um produto único de exportação, sujeito a variações de preço, quase sempre endividados pela compra de escravos ou por seus hábitos de consumo luxuoso, os proprietários se colocavam frequentemente na dependência dos bancos ou dos comerciantes exportadores, tornando precária até mesmo a condição de senhor de terra. No regime servil, o Estado, sendo a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e o distribui, entre os seus clientes, pelo emprego público, sugando a economia do pobre pelo curso forçado, e tornando precária a fortuna do rico; como consequência, o funcionalismo é a profissão nobre e a vocação de todos.23 A classe de funcionários vira o abrigo dos descendentes das antigas famílias escravistas que tiveram suas fortunas diminuídas pelo processo de divisão hereditária, comprometidas por dívidas ou por estarem enfiadas em alguma região economicamente decadente. O funcionalismo era também “o viveiro po22 – CABRAL de MELLO, Evaldo. “Um livro elitista? Posfácio”. In: NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. 5ª ed. vol. II. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 1.324. 23 – Ibid., p. 180.

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lítico, porque abriga todos os pobres inteligentes [...], os que têm ambição e capacidade, mas não têm meio, e que são a grande maioria dos nossos homens de merecimento”.24 A escravidão permearia por inteiro o tecido social, subordinaria todas as hierarquias aos seus interesses, amesquinharia ou praticamente anularia a política. O peso da inércia escravocrata só poderia ser quebrado por um fator, digamos assim, externo: por isso, Joaquim Nabuco falava da “vontade política de uma elite”, capaz de vir a romper com o sistema e a aboli-lo. Este é o fundamento do mandato da raça negra,25 por ele reivindicado para os abolicionistas. Diante do caráter incipiente dessa aristocracia, egressa dos favores da administração e que dependia para subsistir do poder do Estado acima da massa civicamente inerte dos escravos, no mundo da polis, levanta-se dominando as tendas dos agiotas políticos [...], a estátua do imperador, símbolo do único poder nacional independente e forte.26 De um diagnóstico radical sobre a estrutura social brasileira, Nabuco infere uma conclusão política conservadora: as transformações civilizadoras só poderiam vir “de cima”. E, prolongada essa visada, depois do 13 de Maio, tendo a Coroa sancionado a causa abolicionista, e quando o prestígio do monarca ganhara o coração da pátria, caberia à monarquia conduzir o processo de democratização mais adiante – envolvendo o conjunto da população, inclusive os ex-escravos27 – à força de audácia e de 24 – Ibid., p. 180. 25 – O mandato abolicionista é uma dupla delegação, inconsciente da parte dos que a fazem, mas, em ambos os casos, interpretada pelos que a aceitam como um mandato a que não podem renunciar. Nesse sentido, deve-se dizer que o abolicionista é o advogado gratuito de duas classes sociais que, de outra forma, não teriam meios de reivindicar os seus direitos, nem consciência deles. Essas classes são: os escravos e os ingênuos. [...] No Brasil, o abolicionismo é antes de tudo um movimento político, para o qual, sem dúvida, poderosamente concorre o interesse pelo escravo e a compaixão pela sua sorte, mas que nasce de um pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade. Cf. NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Op. cit., pp. 21-23. 26 – Ibid., pp. 193-184. 27 – Antônio Cândido assinala que em Nabuco o conceito de povo corresponde à totalidade da população branca ou negra, livre ou escrava, rica ou pobre, com o direito de se

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resolução política. Esse projeto, segundo ele, frustrara-se com a Proclamação da República. V As suas memórias e as biografias que escreveu são diálogos que Joaquim Nabuco entreteve com o seu tempo e com as alternativas políticas que os seus contemporâneos enfrentavam. A sua geração deixara destruir o regime liberal erigido pela geração de seu pai28 e a queda da monarquia não trouxe de imediato “a invenção positiva de uma nova ordem” 29. O ano de 1895 – ano de publicação de Balmaceda – seria decisivo para a consolidação da República instaurada pelo golpe militar de 15 de novembro de 1889. A posse de Prudente de Moraes em 15 de novembro de 1894 viera marcar o início do fim de um período de tensão e conflito que caracterizaram os dois primeiros governos republicanos, chefiados por marechais do Exército. O estabelecimento de um governo civil abre caminho para a pacificação entre as diversas facções da elite nacional. O momento era de congraçamento, de colaboração. O dever do momento, título de uma carta pública30 do até há pouco monarquista Almirante Jaceguai e dirigida a Nabuco – seria o de se integrar ao processo político de uma República, enfim pacificada e que poderia reconstruir as mesmas características de convivência entre as elites políticas, prevalecentes durante o Segundo Reinado entre aqueles que habitualmente conduziam os negócios do governo no país. manifestar e de fazer as leis adequadas aos seus interesses, que são os interesses gerais. Daí o empenho em considerar a Abolição como vestíbulo da cidadania, devendo esta dar ao Brasil uma situação correspondente ao que de fato era a sua realidade social e racial. Cf. CÂNDIDO, Antônio, “Radicalismos”, em Vários escritos, op. cit., pp. 275-276. 28 – CARVALHO, Maria Alice de. p, 45. 29 – LESSA, Renato. A Invenção Republicana. Rio de Janeiro: Topbooks, segunda edição revista, 1999, p. 66. 30 – De 2 de setembro de 1895. O texto integral da carta pode ser encontrado em ALENCAR, José Almino de e PESSOA, Ana (orgs.), Joaquim Nabuco: o dever da política, pp. 59-75.

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Jaceguai toma exatamente como pretexto a série de artigos de Joaquim Nabuco sobre e a guerra civil chilena de 1891 – que foram reunidas em livro com o título Balmaceda – para lançar todos esses temas e colocar a seguinte questão: Se Nabuco enaltecera as instituições republicanas no Chile, a solidez daquele regime posta à prova na luta contra a ditadura temporariamente imposta por Balmaceda; se admirara o caráter democrático das elites daquele país que defenderam as prerrogativas de um regime parlamentar ameaçado por um golpe do Executivo, por que não vislumbraria ele também um destino parlamentar republicano para outros países americanos, inclusive o nosso? Republicano no Chile, por que não sê-lo no Brasil?31 No entanto, para Nabuco o que está em jogo naquele período e o seu objetivo maior em Balmaceda, como deixa claro no capítulo de conclusão (“Balmaceda e o Chile”) de seu livro, é a viabilidade de uma ordem liberal – para além das querelas entre regimes políticos – no Brasil e na América do Sul; um arranjo institucional possível que garantisse a estabilidade política, as liberdades públicas e certa coexistência competitiva entre as elites políticas, seguindo o exemplo do que havia existido – aos seus olhos – durante a maior parte do Segundo Reinado. Para ele, a derrota de Balmaceda na guerra civil que se seguiu, e que restabeleceu o 31 – Jaceguai termina a sua carta dizendo: E assim, como sois republicano no Chile, na frase do Dr. José Veríssimo eu espero que, transpondo os Andes, ainda vireis a ilustrar o novo regime político do Brasil com esse nome venerado com que vosso pai ilustrou o antigo (cf. “O dever do momento”, In: ALENCAR, José Almino de e PESSOA, Ana (orgs.), op.cit. p. 75). Nesse período, muitos dos opositores a Floriano, republicanos, como Rui Barbosa e monarquistas como Joaquim Nabuco foram instados a colaborarem com o novo presidente civil. Veja-se, por exemplo, a seguinte entrada do Diário de Nabuco: 16 de janeiro de 1895: converso com o [José Carlos Rodrigues, diretor-proprietário do Jornal do Comércio] Rodrigues sobre os meus artigos sobre Balmaceda . O Rosa e Silva, em visita ao João Alfredo, fala sobre as vantagens para a República da minha adesão. (Cf. NABUCO, Joaquim. Diários. Volume 2: 1889-1910. Rio de Janeiro: Bem-te-vi Produções Literárias e Editora Massangana, 2005, p. 103.). João Alfredo Correia de Oliveira, durante o Segundo Reino era do Partido Conservador, foi presidente do Conselho e organizador do gabinete de 1888, que aboliu a escravidão no Brasil. Francisco de Assis Rosa e Silva, também conservador, foi ministro da Justiça do gabinete João Alfredo. Aderiu à república e foi vice-presidente de Campos Sales e governador de Pernambuco. Ambos eram pernambucanos, como Joaquim Nabuco.

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sistema anterior, significou, por assim dizer, a restauração das virtudes da monarquia parlamentar brasileira dentro da ordem republicana do Chile. O que houve no Chile foi algo inédito, na América: uma rebelião comandada por um parlamento que defendia as suas prerrogativas, com o apoio da Marinha e que levou de vencida um poder Executivo apoiado no Exército. Normalmente, a história da região vinha se caracterizando por golpes de estado iniciados pelo exército contra presidentes civis, ou contra outros militares e a despeito de qualquer tomada de posição pelo legislativo. Duplamente inédita, portanto este desfecho da crise no Chile que havia forjado uma concertação do parlamento legislativo e a supremacia militar da Marinha, uma força que habitualmente apresentaria limitações de mobilidade tática quando empenhada em conflitos internos. No Chile, segundo Nabuco, havia-se constituído, ao longo do século XIX, uma situação constitucional, conservadora, criada e fortalecida por um arranjo oligárquico, sob a forma republicana e parlamentar. Balmaceda ao tentar impor a força do Executivo contra o parlamento representara – à semelhança do golpe militar republicano, no Brasil – um rompimento com a cultura social do país, uma evocação, pode-se dizer, na presidência do Chile, do gênio sul-americano da ditadura que nunca havia penetrado nela 32. Nabuco opõe o reformador em geral [que] detém-se diante do obstáculo; dá longas voltas para não atropelar nenhum direito; respeita, como relíquias do passado, tudo que não é indispensável alterar; inspira-se na idéia de identidade, de permanência e a natureza intransigente do metodismo científico a que ele associa Balmaceda e os nossos positivistas republicanos. Tanto um quanto os outros viram as costas à experiência e à sabedoria acumuladas pelas respectivas histórias nacionais e preconizam transformações baseadas em concepções que dão lugar a receitas abstratas de transformação social: Não há paixão, por mais feroz, que se possa comparar em seus efeitos destruidores à inocência da infalibilidade. Os Terroristas de Paris, “massacravam” brutalmente como assassinos 32 – NABUCO, Joaquim. Balmaceda, op. cit. p. 42 e p. 43.

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ébrios; os Teoristas inovadores amputam com a calma e o interesse frio de cirurgiões33. Sente-se rondar aqui o espectro do pensamento contrarrevolucionário do século XIX, o de Edmund Burke, por exemplo, nas suas análises e invectivas contra a Revolução Francesa e a quem Nabuco se refere algumas vezes no seu livro. A diferença entre Chile antes de Balmaceda e o Brasil do Segundo Reinado estava em que o Chile havia tido um governo forte como nós nunca tivemos. Durante o império, a liberdade brasileira [havia sido] uma teia de uma tenuidade invisível, possuindo apenas a resistência da elasticidade da seda que a monarquia, como uma epeira doirada, tirou de si mesma e suspendeu entre a selva amazonense e os campos do Rio Grande34. No entanto, enquanto no Chile, um acerto oligárquico horizontalizado permitira a sobrevivência de certa forma de república – restrita, porém liberal – e de um parlamento, no Brasil o regime parlamentar durante o reinado havia sido praticamente uma concessão da monarquia, a maneira encontrada pela Coroa de melhor governar política e administrativamente o país. E essa teia ameaçava romper-se, face à ausência da proteção monárquica e a emergência de forças heteróclitas – os militares “jacobinos”, os ex-proprietários de escravos ressentidos35, separatistas e toda sorte de 33 – NABUCO, Joaquim. Balmaceda, op.cit. p.77. 34 – NABUCO, Joaquim. Balmaceda, op. cit. p. 207. 35 – Logo após a abolição Nabuco ataca o movimento republicano, no qual identifica elementos de “reação” escravocrata, em uma série artigos publicados no O Paiz entre setembro e dezembro de 1888 (Cf. CRUZ GOUVÊA, Fernando da. Joaquim Nabuco entre a Monarquia e a República. Recife. Editora Massangana, 1989, pp. 365-399). Por exemplo, em “O crescimento da republica”, de 5 de outubro de 1888, lê-se: Eu sei que há abolicionistas sinceros no atual movimento republicano, e que não se pode acusar de escravista o movimento republicano do Rio Grande do Sul, por exemplo, mas o que sustento é que sendo cada vez mais claro que o atual movimento republicano, onde ele realmente tem importância, é uma reação contra a lei de 13 de maio, ele ficará isolado do abolicionismo, isto é do povo... Da lei de 13 de maio não pode sair a república senão pela evolução, não pode sair pela reação e a reação demora a evolução. Em carta a José Mariano, de 2 de janeiro de 1889, encontramos: Não te enganes! A causa do povo não é a república [...] qualquer que seja o caráter democrático do movimento no Norte, no Sul ele é a explosão de despeito e de rancor contra a lei de 13 de maio. Organizou-se

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arrivistas – unidos apenas na oposição conjunta à monarquia. A disputa facciosa, sem o poder moderador do imperador, findaria por empurrar o poder para as mãos ditatoriais de um vencedor mais empenhado. Nabuco reconhecia obviamente as limitações de um regime oligárquico, ou como ele diz [que] a queixa contra a oligarquia, em um sentido, era real: quem não tivesse, em certa época, a boa vontade de Eusébio de Queirós, de Torres, de Paulino de Sousa desanimaria da carreira política. [E perguntava:] Qual é o modo, entretanto, de curar esse defeito do patronato, que não é do sistema parlamentar só, mas de todo e qualquer governo?36 O método radical, dizia, “é mandar abrir as portas para que todos entrem, como a República fez a 15 de novembro”, estabelecendo a competição desenfreada entre aqueles – relembrando a sua expressão – agiotas políticos e empurrando o poder para as mãos ditatoriais de um vencedor mais empenhado. Em carta ao barão do Rio Branco (de julho de 1890), ele desabafa: Entramos na série dos governos pessoais militares e daí virá a degradação do Exército, a bancarrota pela ladroeira e pela especulação, como nas repúblicas do mesmo tipo, o governo nos “Estados” de verdadeiros caudilhos, cercados de uma quadrilha de analfabetos, e por fim o desmembramento, se o sentimento nacional não reagir à ultima hora37. nesta cidade uma chamada Guarda Negra e no domingo houve um combate entre ela e os republicanos na Sociedade Francesa de Ginástica. Os republicanos fizeram fogo sobre os sitiantes do prédio e dispararam não sei quantos tiros. Isto não promete nada bom, mas o resultado de tudo há de ser o ódio de raça, porque os republicanos falam abertamente em matar negros como se matam cães. Eu nunca pensei que tivéssemos no Brasil a guerra civil depois, em vez de antes, da Abolição. Mas havemos de tê-la. O que se quer hoje é o extermínio de uma raça e, como ela é a que tem mais coragem, o resultado será uma luta encarniçada. De tudo isto eu lavo as mãos. Os liberais se subirem hão de ter um papel difícil a desempenhar. (Apud. CHACON, Vamireh. Joaquim Nabuco: Revolucionário Conservador (sua filosofia política), Brasília 2000: Senado Federal, p. 135.) 36 – NABUCO, Joaquim. Balmaceda. op. cit., p. 197 e p. 198. 37 – VIANA FILHO, Luís. A Vida de Joaquim Nabuco. Porto, Lello & Irmão – Editores, 1985, p.183.

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Acima de tudo, Nabuco identificava na república brasileira um vício grave de origem: ela seria o resultado da conjunção entre a reação despeitada dos escravistas e de ideias jacobinas de certos grupos (militares, por exemplo) – que frustrara a possibilidade de uma evolução democrática harmoniosa e inclusiva. Denomina jacobinos – inspirado em Burke –, aqueles que dão as costas à experiência e à sabedoria acumuladas pelas respectivas histórias nacionais e que preconizam mudanças em receitas ou concepções abstratas de transformação social. O seu Balmaceda é uma reação a essa república recém-proclamada. Por sua vez, o passado republicano chileno garantira a reação antijacobina. No Chile, a vitória do movimento liderado pelo Congresso foi possível porque a “sociedade” inteira estava mobilizada contra [Balmaceda] 38. Por “sociedade”, grafada assim mesmo entre aspas, ele entendia o conjunto de pessoas e grupos que se reuniram em torno do noyau oligárquico, instalado no controle do parlamento. Em contraste com o Brasil, a “revolução chilena”, como a denomina Nabuco – liderada pelo parlamento –, reconduz o país à República39, uma república de práticas muito semelhantes às nossas práticas do Segundo Reinado. As duas situações – a brasileira e a chilena – eram simetricamente opostas e, na sua exposição didática, virtuosamente exemplares. Desde cedo a primeira república assistirá ao desenvolvimento e à consolidação de uma interpretação revisionista da história da monarquia brasileira que segue de perto as linhas gerais do diagnóstico de Nabuco, cujos ecos se encontram, por exemplo, embora de maneira mais partidária, no grande balanço intitulado A década republicana, promovido pelo Diretório Monarquista e organizado pelo visconde de Ouro Preto. Essa interpretação se prolonga em O ocaso do Império (1925), de Oliveira 38 – NABUCO, Joaquim. Balmaceda, op. cit., p. 232. 39 – Em contraste, o passado republicano chileno garantira a reação anti-jacobina. No Chile, a vitória do movimento liderado pelo Congresso foi possível porque a “sociedade” inteira estava mobilizada contra [Balmaceda].. Por “sociedade”, grafada assim mesmo entre aspas, ele entendia o conjunto de pessoas e grupos que se reuniram em torno do noyau oligárquico, instalado no controle do parlamento.

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Viana, e constitui ainda hoje a versão canônica de boa parte da historiografia brasileira. Nela, põe-se de lado a longa duração do regime servil e sublinhase a extinção pacífica da escravidão; faz-se abstração das revoltas regionais e salienta-se a consolidação da unidade nacional desenvolvida pela Coroa e mais: a obra de construção do Estado brasileiro, do sistema político-administrativo, o funcionamento continuado do parlamento e de partidos políticos, em um regime onde vigorava ampla liberdade de expressão. Por último, ao lado desse rol de feitos positivos gerados pelo realismo, quase nunca se deixa de mencionar a chance histórica de ter sido o regime conduzido por um monarca exemplar que teria realizado como citamos anteriormente o ‘governo do melhor homem’, – um reinado pericliano de meio século”, no dizer hiperbólico de Nabuco.40 VI Para além de reações de circunstância, visando à experiência republicana no Brasil, as obras de Nabuco na sua maturidade esboçariam também a sua resposta política ao diagnóstico radical sobre a estrutura socioeconômica brasileira que ele adotara desde a juventude. Em Minha formação, escreverá: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”,41 que prolongava uma afirmação já antiga, proferida em 1884, durante a campanha abolicionista: [Da escravidão] nasceu fatalmente a política negativa que nos abate, porque ficamos sem povo. A escravidão não consentiu que nos organizássemos, e sem povo as instituições não têm raízes, a opinião não tem apoio, a sociedade não tem alicerces... a vontade nacional não existe.42 Essa gente abúlica, que não sabia dar organicidade às suas demandas, ameaçava a todo instante a ordem política. Durante a Revolução Praieira 40 – NABUCO, Joaquim. “O dever do monarquista”. In: ALENCAR, José Almino de & PESSOA, Ana (org.). Joaquim Nabuco: o dever da política. Op. cit. p. 81. 41 – Cf. NABUCO, Joaquim. Minha formação. Op. cit., p. 232. 42 – “Segunda Conferência no Teatro Santa Isabel. No 1º de novembro de 1884”. In: NABUCO, Joaquim. Campanha abolicionista no Recife. Recife: Fundação Joaquim NabucoMassangana, 1988. p. 31.

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– está em Um estadista do Império – o povo acreditava ter dois inimigos que o impediam de ganhar a vida e adquirir algum bem-estar: [...] os portugueses, que monopolizavam o comércio nas cidades, e os senhores de engenho que monopolizavam a terra no interior. A guerra dos praieiros era [...] mais que um movimento político, era um movimento social. Ora, a dificuldade desses movimentos quando se organizam em partido está em descobrirem uma fórmula que os satisfaça sem ser anti-social. [...]. O partido Praieiro foi um partido sem direção e sem disciplina, porque propriamente não foi senão um movimento de expansão popular. Os chefes deixavam levar-se pelo instinto das multidões que formavam o seu séqüito, em vez de guiá-las e de procurar o modo prático de satisfazer, na medida do possível, o mal-estar que elas sentiam sem o saber exprimir.43 Horror à sociedade iníqua, temor da massa informe que dela resultava e desprezo pelas elites republicanas entregues às lutas pelo poder e por seus interesses imediatos são sentimentos que atravessam os escritos de Nabuco na maturidade; sentimentos que se socorrem, diga-se de passagem, do pensamento antirrevolucionário do século XIX e do liberalismo advindo da Restauração francesa. Uma construção nacional brasileira bem-sucedida seria o resultado de um esforço civilizacional vindo do alto e que acomodasse ou integrasse o que resultara da escravidão: grupos sociais dispersos, vítimas ou dependentes do regime escravista, presas fáceis da sedução e do controle de demagogos e de tiranos. Quando abolira a escravidão, pensara ele, um desses momentos em que o Brasil se aproximara dos ideais modernos, a Coroa agira praticamente sozinha, sob os aplausos de uma pequena elite abolicionista e a despeito de uma teia de interesses, que ativamente ou por inércia procrastinara a extinção do trabalho servil. Passada o que Nabuco denomina o período republicano da regência, a construção da monarquia parlamentar se fizera também pelo esforço de uma elite tenaz, a geração do Conselheiro Nabuco que privilegiara a ordem e edificara regras institucionais de coexistência entre as facções da oligarquia. 43 – In: NABUCO, Joaquim. Um estadista no Império. Vol. I. Op. cit., p. 114.

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Para ele, esses dois momentos, a abolição e edificação das instituições políticas durante o Segundo Reinado, constituíram os pontos culminantes da história brasileira da segunda metade do século XIX; dois processos em que o Brasil pode se aproximar da política com P grande, em que os esforços políticos empreendidos pelos seus contemporâneos e pelos contemporâneos de seu pai, se juntaram, por um momento, ao grande curso da História, com H maiúsculo. Acredito não ser por acaso que essa saga tenha sido registrada e narrada sob a forma de biografias. Para Joaquim Nabuco e outros do pequeno grupo de elite que com ele dialogava, o autoexame e os projetos biográficos estavam imbricados com o destino que imprimiriam ao futuro da sociedade brasileira e da construção da posição dessa sociedade num mundo que se modernizava. Texto apresentado em outubro /2008. Aprovado para publicação em novembro /2008.

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Joaquim Nabuco e as reformas sociais Joaquim Nabuco and social reforms in Brazil Roberto Cavalcanti de Albuquerque 1 Resumo: A vida e o tempo de Joaquim Nabuco desde seu retorno ao Recife (1869), com destaque para a visita a Massangana e o compromisso com a emancipação dos escravos, o julgamento do preto Tomás e o reformismo social tal como revelado na Campanha Abolicionista no Recife (1884-5). Palavras-chave: Joaquim Nabuco – Massangana – Campanha Abolicionista no Recife – Reformismo social.

Abstract: The life of Joaquim Nabuco and the time period as from his return to Recife (1869), with emphasis on his visit to Massangana and his commitment to slave emancipation, the trial of Preto Tomas, and the social reforms announced during the Campaign for the Abolition of Slavery, in Recife (1884-5). Keywords: Joaquim Nabuco – Massangana – Campaign for the Abolition of Slavery in Recife – Social reforms.

RETORNO A MASSANGANA A volta de Joaquim Nabuco ao Recife, em 1869, para ali concluir o curso de Direito, exerceu sobre seu futuro influência decisiva. Ele foi ao encontro de seu destino, buscando na terra mater a “ligação indissolúvel” que iria soldar-se entre ele e Pernambuco, ele e o Recife.2 O Recife de 1857 já dera ao Nabuco menino de oito anos, criado pela madrinha como filho no Engenho Massangana, a primeira impressão de uma grande cidade. Antes do embarque para o Rio de Janeiro, onde seus pais moravam, ele percorreu à noite a Cidade Maurícia: “com suas pontes, suas torres, os mastros dos seus navios apertados uns contra os outros e ancorados, dentro da cidade, na água dos rios que a cruzam”.3 Acolhia-o agora no Recife o carinho dos familiares de sua mãe Ana Benigna, uma Sá Barreto aparentada aos Pais Barreto, Sá e Albuquerque e Cavalcanti. Eles se desdobraram em atenções, em particular quando o jovem foi acometido de febre tifoide. 1 – Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco. 2 – Ver a propósito, NABUCO, Carolina, p. 28. 3 – Idem, p. 29 [Notas de autoria de Joaquim Nabuco].

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Um livro, A constituição inglesa (1867),4 de Walter Bagehot (18261887), adquirido na livraria Lailhacar, do Recife,5 reforçou em Nabuco a “inclinação do lado da monarquia parlamentar britânica” ao evidenciar a “superioridade prática do governo de gabinete inglês sobre o sistema presidencial americano”.6 Politicamente, “o fundo liberal” continuava “intacto, sem mistura sequer de tradicionalismo”.7 Nabuco visitou nessa época, doze anos depois, a sede de seu “oráculo íntimo”, o Engenho Massangana: a casa-grande; a senzala, “pombal negro”; “a capelinha de São Mateus onde minha madrinha (...) jaz na parede ao lado do altar”; o “cercado onde eram enterrados os escravos... Cruzes, que talvez não existam mais, sobre montes de pedras escondidas pelas urtigas, era tudo quase que restava (...). Embaixo, na planície, brilhavam como outrora as manchas verdes dos grandes canaviais, mas a usina agora fumegava e assobiava com um vapor agudo, anunciando uma vida nova. (...) O trabalho livre tinha tomado o lugar (...) do trabalho escravo. (...) O sacrifício dos pobres negros, que haviam incorporado as suas vidas ao futuro daquela propriedade, não existia mais talvez senão na minha lembrança... Debaixo de meus pés estava tudo que restava deles” (...).8 “Sozinho ali, (...) chamei-os a muitos pelos nomes, aspirei no ar carregado de aromas agrestes (...) o sopro que lhes dilatava o coração e lhes inspirava a sua alegria perpétua. Foi assim que o problema moral da escravidão se desenhou pela primeira vez aos meus olhos em sua nitidez perfeita e com sua solução obrigatória. Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a tinham até o fim abençoado... A gratidão estava do lado de quem dava. Eles morreram acreditando-se os devedores...”9

4 – Cf. BAGEHOT. 5 – Essa livraria, muito frequentada pelos professores e alunos da Faculdade de Direito, ficava na Rua do Crespo, 9, hoje Rua Primeiro de Março, Bairro de Santo Antônio, Centro da Cidade. 6 – NABUCO, 1900, p. 31. 7 – Idem, p. 19. 8 – Idem, p. 193. 9 – Idem, pp. 193-4

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“Eram essas as ideias que me vinham entre aqueles túmulos, para mim, todos eles, sagrados, e então ali mesmo, aos vinte anos, formei a resolução de votar a minha vida, se assim me fosse dado, ao serviço da raça generosa entre todas (...), que por sua doçura no sofrimento emprestava até mesmo à opressão de que era vítima um reflexo de bondade...”10

O JULGAMENTO DO PRETO TOMÁS Terá sido em decorrência desse voto que Nabuco, em desafio aberto às suas origens e seu meio, defendeu em júri o escravo Tomás, “escândalo local” que se transformou em seu “primeiro triunfo oratório”.11 Ele relata o caso em obra sua que nos chegou inconclusa: A escravidão, de 1870, escrita aos 21 anos e somente publicada em 1951. Vale a pena destacar os pontos básicos dessa narrativa, que integra o parágrafo 8º. da primeira parte do livro,12 intitulado “A escravidão e a pena de morte – o preto Tomás”. Trata-se, diz Nabuco, de fato verídico que protesta ao mesmo tempo contra a escravidão e a pena de morte, dois crimes que ele profliga com a mesma eloquência.13 Havia em 1868 em Olinda um escravo chamado Tomás: forte, de boa aparência, moço de 25 anos. Circunspecto, humilde, era reputado no lugar. Fora educado como livre, ninguém lhe falando em cativeiro. Trabalhava para sua senhora e para si com estímulo e consciência. Era conhecido em Olinda como “seu Tomás”.14 Certo dia, ausente ou morta a senhora, ele foi preso, amarrado e barbaramente açoitado em praça pública, na presença dos moradores seus vizinhos. Desde então, de humilde tornou-se altivo; era bom, tornou-se uma fera. Fugiu com um bacamarte decidido a cruel vingança. Matou 10 – Idem, p. 194. 11 – NABUCO, Carolina, p. 33. 12 – Cf. NABUCO, 1870, pp. 58-60. 13 – Idem, p. 58. 14 – Ibidem.

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à queima-roupa a autoridade que suspeitava fora mandante dos açoites. Processado, foi condenado à morte. Como o juiz, por força de lei, tinha apelado da decisão, o preto Tomás foi recolhido à Casa da Detenção do Recife para aguardar novo julgamento. Não era mais um homem, era um tigre que se tinha debaixo de ferros. Mesmo acorrentado, era terrível. Tendo-se lhe deixado a porta da cela aberta, conseguiu evadir-se. O guarda, um pobre Honorato de Bastos, tentou detê-lo na fuga, tendo sido ferido pelo preto com golpe que lhe alcançou a região posterior do pescoço. Desse ferimento resultou a morte do guarda, tendo o criminoso presuntivo sido levado ao júri do Recife para responder por mais um homicídio. Nabuco foi o defensor do preto Tomás nesse julgamento. Para ele, na origem do processo havia dois “crimes sociais”: “havia a escravidão, havia a pena de morte. Fora a escravidão que levara Tomás a praticar o primeiro crime, a pena de morte que o levara a perpetrar o segundo. Fora por ser escravo que o haviam açoitado; açoitado, fez-se nele um crepúsculo interior em que a educação que tivera como livre, e os brios que ela lhe formara, lutavam de energia com os ímpetos do homem selvagem de repente lançado ao cativeiro.”15 “Preso, foi condenado à morte, obrigado pela lei natural a conservar uma vida que não era da sociedade, mas de Deus.” Buscava evadir-se quando tentaram prendê-lo de novo para o cadafalso. Foi então que praticou o segundo crime: ou por medo invencível ou vindita atroz, abateu o guarda que o agarrava para sujeitá-lo às penas da lei quando estava a entrar pela fuga no gozo da liberdade. “A agressão a Honorato de Barros tinha pois uma explicação natural.”16 Graças a Nabuco, o crime do preto Tomás praticado contra seu guarda na Detenção do Recife foi capitulado no artigo 193 do Código Criminal do Império (homicídio sem circunstância agravante), com o réu recebendo a pena de galés perpétuas. Escapou assim da pena de morte, 15 – NABUCO, 1870, p. 59. 16 – Ibidem.

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pedida pela promotoria com fundamento no artigo 192 do CCI (matar alguém com circunstância agravante).17 Por “sentimento do dever”, o jovem Nabuco lutara corpo a corpo com a escravidão e a pena de morte, pesando sua influência na prática do crime. Ele, que agora apalpava as chagas da sociedade que queria transformar, poderia dizer com Lamartine: “Feliz o dia em que a legislação vir banidos diante da luz divina esses dois grandes escândalos da razão do século dezenove: a escravidão e a pena de morte.”18 Cabe referir que precede ao autógrafo de A escravidão, doado em 1926 pela família de Nabuco ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, IHGB,19 a seguinte nota, do próprio punho do autor e provavelmente de data posterior a 1870: “Este livro foi escrito por mim em 1870 quando estudante do 5º. ano, no Recife, morava eu então com o Dr. Santos Mello e Barros Pimentel fazia bolsa conosco. JN”.20 Sabe-se que o médico homeopata Jesuíno Augusto dos Santos Mello morava na então Rua Barão da Vitória (hoje Rua Nova), no Centro do Recife.21 Já Sancho de Barros Pimentel era colega de Faculdade e amigo íntimo de Nabuco, chegando a ser presidente da Província de Pernambuco (1884-5), no tempo da Campanha Abolicionista, quando houve penoso desentendimento entre eles. A expressão “fazia bolsa conosco” sugere que eles partilhavam as despesas 17 – Cf. CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO DO BRASIL, artigos 192 e 193. 18 – NABUCO, 1870, p. 60. Trata-se de tradução do autor de trecho do “Discours sur l’abolition de la peine de mort” (Paris, 1836), publicado no livro de Lamartine intitulado Recueillements poétiques, de 1849. No original: “Heureux le jour ou elle [la législation] verra disparaître, devant la lumière divine, ces deux grands scandales de la raison du dixneuvième siècle: l’esclavage et la peine de mort!”. Cf. LAMARTINE, pp. 246-7. 19 – Cf. NABUCO, 1870. A escravidão foi publicada pela primeira vez na Revista do IHGB (RIHGB: 204:3-116, jul./set. 1949 (número editado em 1951). 20 Os sublinhados duplo e simples são de Nabuco. A data 1979 foi vigorosamente remendada para 1970. 21 – A Rua Barão da Vitória (Rua Nova) é seguida, na outra margem do Capibaribe, pela Rua do Aterro [da Boa Vista], depois Rua da Imperatriz, onde nasceu Nabuco (em vistoso sobrado atualmente em restauração). Os dois logradouros, interligados pela ponte da Boa Vista (a atual ponte, metálica, substituiu em 1876 a antiga, ali desde 1815), comandaram o comércio fino do Recife até o advento dos shopping centers (anos 1980). No século XIX, os dois ou três andares superiores dos sobrados das áreas centrais do Recife eram habitados principalmente por famílias burguesas.

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da casa. Surpreende que Nabuco, em geral tão cioso em informar, tenha silenciado na nota acima transcrita sobre a falta da terceira parte de A escravidão, intitulada “A reparação do crime” (A primeira parte chama-se “O crime”; a segunda, “A história do crime”). A CAMPANHA ABOLICIONISTA: O REFORMISMO SOCIAL Nabuco nunca se viu “capaz de viver na pequena política”, interessando-lhe verdadeiramente “a política que é história”.22 Fora o pai dele, o conselheiro Nabuco, falecido em março de 1878 quando o filho se encontrava em Londres, que assegurara, antes da morte, sua eleição para deputado-geral com o chefe político liberal de Pernambuco, Domingos de Sousa Leão, barão de Vila Bela, então ministro dos Negócios Estrangeiros. Vila Bela “tinha a religião da amizade e da lealdade”, diz Joaquim Nabuco, e a morte do pai, “em vez de delir o seu compromisso, tornara-o de honra...”23 É fato, porém, que Nabuco não foi bem recebido no Recife em 1879, inclusive pelas próprias hostes liberais. Tinha “a fama de um dândi”. “Chegaram a inventar que usava pulseirinhas de ouro, que punha brilhantina nos bigodes, e os jornais humorísticos da época, bem como os panfletos políticos, compararam-lhe a Cupido”.24 A reação local a ele, visto como um arrivista, atingiu o ápice em sessão no Teatro Santa Isabel de 11 de agosto de 1879, comemorativa da fundação dos cursos jurídicos no Brasil. A cerimônia estava sendo presidida pelo professor Aprígio Guimarães, liberal da velha guarda e que a plateia preferia a Nabuco como candidato a deputado pelo Partido.

22 – NABUCO, 1900, p. 41. 23 – Idem, p. 178. 24 – FERNANDES, p. 23. Note-se que o jornal conservador “O Tempo”, do Recife, apelidou Nabuco de “Quincas, o belo”, chamando-o ainda de “candidato da pulseira”. Cf. ALONSO, p. 81. Obra recente de ficção historiográfica insinua que Nabuco pouco parecia incomodar-se com essas diatribes. Nela, um Nabuco já deputado comenta, em carta a Eufrásia Teixeira Leite: “Riem-se e se catucam quando entro na Câmara, culpa de meu terno de casimira clara, do sapato inglês e do chapéu de palha”. Acrescentando: “Só para provocar, usei outro dia a pulseira de ouro... Aquela que me deste”... Cf. LAGE, p. 340.

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Após várias falas de tendências republicanas, Nabuco pediu a palavra arriscando-se a defender tese segundo a qual “a grande questão para a democracia brasileira não era a monarquia, mas a escravidão”.25 O teatro veio abaixo em ensurdecedora manifestação de desagrado: não queria ouvir “aquele “áulico que defendia o Imperador”.26 Por essas razões, a despeito do esforço de Vila Bela, Nabuco foi eleito deputado pelo Recife com apenas 58 votos, ficando em último lugar entre os pernambucanos.27 Ele estava enfim de posse da ferramenta com a qual, segundo suas próprias palavras, iria “trabalhar em política”. Indo buscar na força do sentimento a energia a eficaz atuação parlamentar: “Eu tinha necessidade de outra provisão de sol interior; era-me preciso, não mais o diletantismo, mas a paixão humana, o interesse vivo, palpitante, absorvente, no destino e na condição alheia, na sorte dos infelizes; (...) ajudar o meu país, prestar os ombros à minha época, para algum nobre empreendimento. (...) No Brasil havia ainda, no ano em que comecei minha vida pública, um interesse dessa ordem, com todo esse poder de fascinação sobre o sentimento e o dever, igualmente impulsivo e ilimitado (...), quer se tratasse da sorte de criaturas isoladas, quer do caráter de uma nação... Tal interesse só podia ser o da emancipação (...).28 Coerente com esse voto, Nabuco defende na Câmara a libertação dos escravos, opondo-se neste ponto ao Ministério Sinimbu (1878-80). Funda e comanda a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, em cujo manifesto, redigido por ele, se lê: “O Brasil seria o último dos países do mundo se, tendo a escravidão, não tivesse também um partido abolicionista; seria a prova de que a consciência moral não havia despertado nele. O que fazemos hoje é no interesse do seu progresso, do seu crédito, da sua unidade 25 – NABUCO, 1900, p. 179. 26 – Cf. VIANA FILHO, pp. 84-5. Nabuco anotou em seu diário nesse dia: “Sessão no Teatro Santa Isabel. Pateado” (NABUCO, 2005, v.1, p. 222). Anos depois, ele registra com mais detalhe os protestos, a que chama “onda raivosa e espumante”, em Minha Formação (Cf. NABUCO, 1900, p. 180). 27 – NABUCO, 1885, p. 59. 28 – NABUCO, 1900, pp. 177-8.

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moral e nacional”.29 Apresenta na Câmara projeto abolicionista. Recusa pedido do barão de Vila Bela para cessar a oposição que fazia, em nome das convicções emancipacionistas, ao Gabinete Sinimbu, inviabilizando politicamente sua própria reeleição por Pernambuco. E apoia o Ministério Saraiva (1880-2), também liberal, mas ressalvando os compromissos de abolicionista diante de Gabinete que não considerava a extinção da escravatura objetivo de governo.30 Nas eleições de 1881, Nabuco, candidato pelo 1º. Distrito da Corte – o que poderia dar à batalha abolicionista a maior repercussão –, foi derrotado. Não pedira votos; o Partido Liberal, pelo qual se candidatara, não levara em conta a emancipação; esta representava “uma simples agressão”, não tendo ainda penetrado a consciência nacional.31 Abatido, ele parte para nova temporada em Londres (1882-4), numa espécie de exílio voluntário. Escreve e publica na “cidade acima todas”32 um de seus mais importantes livros, O abolicionismo,33 somente retornando ao Brasil após a ascensão, em junho de 1884, do Gabinete do conselheiro Dantas. Com esse ministério, o Partido Liberal e o próprio Governo engajaram-se afinal no abolicionismo, de que Nabuco já era, nacionalmente, o maior expoente. Como candidato a deputado pelo 1º. Distrito do Recife, ele faz campanha limpa, “diante do povo, (...) sem cabala e sem fraudes”. A eleição de 1º. de dezembro de 1884, contudo, não ocorreu sem lutas, culminando em conflito aberto na primeira secção da Freguesia de São José, no Centro do Recife, de que resultaram morte e feridos, tornando 29 – NABUCO, 1885, p. 77. 30 – NABUCO, 1885, p. 98. Idem, 2005, v. 2, p. 499. 31 – NABUCO, 1885, p. 100. 32 – Cf. NABUCO, 1900, p. 91. Depois de conhecer (em 1874) Londres, Nabuco sentiu a “imaginação excedida e vencida”, “a curiosidade de peregrinar (...) trocada em desejo de parar ali para sempre”. Idem, p. 90. 33 – Cf. NABUCO, 1883. Esse livro está por trás e fundamenta os discursos proferidos por Nabuco na campanha eleitoral de 1884-5, iluminando, em particular, as reformas políticas e sociais que ele prega.

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a votação passível de nulidade. Austero, Nabuco declara “solenemente” que não aceitaria “o diploma de deputado do Recife sem os votos de São José”.34 O segundo escrutínio, realizado em 9 de janeiro de 1985 no 1º. Distrito do Recife, deu ao candidato liberal ampla margem de votos sobre seu opositor, Manuel do Nascimento Machado Portela, chefe político conservador em Pernambuco. Foi uma vitória de alta significação para o movimento abolicionista.35 Essas eleições soldaram as afinidades entre Nabuco e o povo do Recife, que nunca mais arrefeceram. O candidato “amou essa campanha política, que foi a glória de sua vida”.36 Chamada campanha abolicionista no Recife, ela está documentada em livro que compila 12 discursos realizados por Joaquim Nabuco entre 12 de outubro de 1884 e 18 de janeiro de 1885, contados entre eles as famosas seis conferências realizadas no Teatro Santa Isabel. Neles Nabuco, orador maduro, empolga o público com a voz, os gestos, a postura, a presença. Convence pela força dos argumentos, pelo domínio dos temas que aborda. E vai além do abolicionista ao assumir a postura do reformador social com pendores de revolucionário. Revolucionário nas ideias, nas propostas. Ele afirma em Minha formação que os discursos proferidos no Teatro Santa Isabel do Recife, juntamente com os pronunciados na Câmara dos Deputados em maio de 1888, às vésperas da Abolição, são “o melhor de minha vida”.37 Para o Nabuco de 1884-5, a solução para o problema maior do País – “o da igualdade social de todos os brasileiros”– se resume na fórmula 34 – Cf. GOUVÊA, p. lviii. 35 – NABUCO, 1885, p. 190 [conferência no Teatro Santa Isabel, 18 de janeiro de 1885]. 36 – FERNANDES, 1949, p. 104. 37 – NABUCO, 1900, p. 181.

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“Liberdade e Trabalho”, “o trabalho que dá dignidade, a liberdade que dá valor à vida”.38 “A escravidão é o meio social do nosso povo. (...) Ela começou por ser um regime de trabalho agrícola”. (...) Precisando “cercar-se proteções especiais e de viver num meio à parte, fechado e todo seu”, evoluiu para “um sistema (...) caracterizado pelo monopólio da terra e pala clausura dos trabalhadores” – dando origem, “nas suas fendas apenas, à aparição, e gradualmente ao crescimento, de uma população livre que nada tem que possa chamar seu: sem um palmo de terra que possa cultivar por sua conta; miserável e dependente no mesmo grau que o escravo. Eis aí a escravidão agrícola e territorial”. 39 Possuindo “o solo, o trabalho agrícola e a população livre”, a escravidão como instituição “tornou-se um regime social e estendeu seu domínio por toda a parte”. E como há “uma só classe que produz neste País, todas as outras são tributárias dela”, gerando um Brasil “de algumas famílias transitoriamente ricas e de dez milhões de proletários”.40 “Desse regime social nasceu fatalmente a política negativa que nos abate porque ficamos sem povo. Sem povo, “as instituições não têm raízes, a opinião não tem apoio, a sociedade não tem alicerces (...), “a vontade nacional” (...) não existe”. Nesse regime, as reformas políticas, muitas tentadas, algumas feitas, geraram “cinquenta anos de esperanças populares atraiçoadas”. Elas não têm base nem “razão de precedência”, pois “as reformas de que imediatamente necessitamos são as reformas sociais que levantem o nível do nosso povo, que o forcem ao trabalho e deem em resultado o bem-estar e a independência que absolutamente não existem e de que nenhum governo ainda cogitou”.41 38 – Idem, p. 16 [Primeira conferência no Teatro Santa Isabel, 12 de outubro de 1884]. 39 – NABUCO, 1885, pp. 29-31 [Segunda conferência no Teatro Santa Isabel, 1º. de novembro de 1884]. 40 – Idem, p. 31. 41 – Idem, pp. 31-2.

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Não é “o emprego público que há de resolver o terrível dilema: a fome ou a infâmia, que aí está posto diante de grande número de concidadãos nossos. A escravidão produziu (...) um orçamento [público] colossal, muito superior às nossas forças, e que se apoia sobre quatro pilares, cada qual mais carcomido: a apólice que nunca se amortiza; a dívida externa que se agrava com o câmbio, o papel-moeda que sempre se deprecia, e um déficit (...) crescente que nada pode encher”.42 “Sim, senhores,” continua Nabuco, “precisamos (...) de reformas sociais, sobretudo de duas grandes reformas: a abolição completa, civil e territorial da escravidão (...) e o derramamento universal da instrução.43 (...) Eis a razão pela qual abandonei no Parlamento a atitude propriamente política para tomar a atitude do reformador social”.44 “Avanço neste momento levantando pela primeira vez a bandeira de uma lei agrária, a bandeira da constituição da democracia rural”. (...) “Sim, senhores, a propriedade não tem somente direitos, tem também deveres, e o estado de pobreza entre nós, a indiferença com que todos olham para a condição do povo, não faz honra à propriedade, como não faz honra aos poderes do Estado. Eu, pois, se for eleito, não separarei mais as duas questões – a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. Uma é o complemento da outra. Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão” 45 Nabuco se adentra pela fisiologia da servidão, entranhada na sociedade, para reconhecer, em longa e brilhante exortação, que acabar com a escravidão é obra de tempo e perseverança. “Os que temos em nós tendências de senhor, os que temos fraquezas de escravo – e a massa da população brasileira, composta de descendentes ou de senhores ou de es42 – Idem, pp. 32-3. 43 – Nabuco chega a afirmar no discurso aos artistas [operários] do Recife, reunidos no Campo das Princesas, atual Praça da República em 29 de novembro de 1884: “É tempo de pensarmos na educação do operário de preferência à educação do bacharel”. Idem, p. 146. 44 – Idem, pp. 33-4. 45 – NABUCO, 1885, p. 47-9 [Discurso proferido num meeting popular no pátio da Igreja de São José do Ribamar, bairro de São José, no Recife, em 5 de novembro de 1884].

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cravos, e em grande parte de escravos que foram senhores, tem os vícios combinados dos dois tipos, o senhor e o escravo, tipos que aliás formam um só porque em geral o escravo é um senhor a quem só falta o escravo e o senhor é um escravo a quem só falta o dono – os que temos, dizia eu, um desses vícios, ou todos eles, devemos, pelo exame da nossa consciência e pelo uso da nossa firmeza esclarecida vencer e dominar qualquer desses tristes legados da escravidão”.46 O grande orador conclui com emocionada condenação da escravatura: “Sim, em nome do passado e do futuro, denuncio ao povo do Recife (...) aquela instituição que, para ser condenada pela consciência humana, basta ser chamada pelo seu nome – de escravidão; eu a denuncio como incursa em todos os crimes do código penal, em todos os mandamentos da lei de Deus. A vós, artistas, eu a denuncio como o roubo do trabalho; a vós, sacerdotes, como o roubo da alma; a vós, capitalistas, como o roubo da propriedade; a vós, magistrados, como o roubo da lei; a vós, senhoras, como o roubo da maternidade; a vós, pais, filhos, irmãos, como o roubo da família; a vós, homens livres, como o roubo da liberdade; a vós, militares, como o roubo da honra; a vós, homens de cor, como o roubo de irmãos; a vós, brasileiros, como o roubo da pátria... Sim, a todos eu a denuncio, essa escravidão maldita, como o fratricídio de uma raça, como o parricídio de uma nação!”47 Em sua sexta e última conferência no Teatro Santa Isabel (18.01.1885), Nabuco, deputado já eleito, afirma que sua vitória política de 9 de janeiro de 1885 fora “antes de tudo a vitória de uma ideia, a vitória da Revolução que, por meio da lei se quiserem, e senão pelos próprios acontecimentos, está fatalmente resolvida na consciência pública”. (...). Acrescentando: “Há muitos anos que estamos subindo essa grande cordilheira do abolicionismo em que estão separadas as vertentes do Brasil colonial das vertentes do Brasil moderno. (...) Até hoje não houve em nossa marcha 46 – NABUCO, 1885, p. 55 [discurso pronunciado na sessão magna do Montepio Pernambucano, 9 de novembro de 1884]. 47 – Idem, pp. 162-3. [Quarta conferência no Teatro Santa Isabel, 30 de novembro de 1884, véspera das eleições].

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um abalo qualquer, mas (...) nós não poderíamos mais parar (...) quando mesmo tivéssemos que fazê-lo (...) por sobre as oscilações e o pânico de grandes terremotos sociais. Sim, senhores, não haveria que estranhar em uma sublevação do solo em que pisamos (...). É essa fatalidade providencial, essa necessidade histórica que me faz dizer (...): O que está feito, está feito; o que está por fazer... está feito”.48 A LEI ÁUREA E O ESPÍRITO REVOLUCIONÁRIO Ao retornar ao Rio a bordo do paquete inglês Patagonia, Nabuco ainda se nutria do “triunfo esplêndido” do dia 9 de janeiro de 1885. Mas não deveria ter muitas ilusões sobre o futuro de seu mandato. Ele seria depurado meses depois pela Câmara dos Deputados, em favor de seu opositor Machado Portela. Pode não ter previsto foi a reação explosiva dos pernambucanos em sua defesa. Nem os gestos de dois companheiros seus, Ermírio Coutinho e Joaquim Francisco de Melo Cavalcanti que, candidatos liberais a deputado em eleição pendente no 5º. Distrito de Pernambuco (Nazaré, hoje Nazaré da Mata, e Bom Jardim), renunciaram em favor de Nabuco, que foi o deputado eleito em 7 de junho. O que Nabuco talvez nem suspeitasse foi que iria derrotar o conselheiro Portela, então ministro dos Negócios do Império no Gabinete Cotegipe (1885-8), em setembro de 1887, sendo eleito deputado pelo Recife com 1.470 votos contra 1.270 dados ao velho adversário. Como deputado e líder abolicionista, Nabuco estava de pé na tribuna da Câmara dos Deputados, na sessão de 8 de maio de 1888 em que o também pernambucano João Alfredo Correia de Oliveira, presidente do Conselho de Ministros, apresentou o projeto de abolição. Aceita a urgência proposta por ele, Nabuco, um liberal, o projeto, de um Gabinete conservador, foi aprovado por 83 votos a 10. Dias depois estava formalmente extinta pela Lei Áurea a escravidão no Brasil. Logo no início da República, o dia 13 de maio foi dedicado à fraternidade de todos os brasileiros.49

48 – Cf. NABUCO, 1885, pp. 190-8. 49 – Pelo Decreto no. 155-B, de 14 de janeiro de 1890.

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Ao empreender em Minha formação um balanço da campanha abolicionista, Nabuco identifica em sua condução um somatório de forças: do espírito revolucionário com o espírito liberal ou humanitário e o espírito de governo. Sem o espírito governo de homens como Dantas e João Alfredo, não se teria “chegado pacificamente ao fim, nem tão cedo”. Sem o espírito liberal, “da raça dos cegos de boa vontade (...) que as revoluções empregam para abrir a primeira brecha”, e sem o espírito humanitário, “estreme de ódios e tendências políticas, a abolição teria degenerado em uma guerra de raças ou encontro de facções”. Se depois da vitória o abolicionismo dispersou-se, com parte dele aliando-se “à grande propriedade contra a dinastia que ele tinha induzido ao sacrifício”, foi porque “o espírito que mais profundamente o agitou e revolveu foi o espírito revolucionário. A sociedade abalada o tinha deixado escapar pela primeira fenda de seus alicerces. Patrocínio, “a própria Revolução”, “foi a expressão da sua época; em certo sentido, a figura representativa dela...”50 Nabuco conclui reconhecendo que a realização da obra da abolição parou “naturalmente” na supressão do cativeiro. “Seu triunfo podia ser seguido, e o foi, de acidentes políticos, até de revoluções, mas não de medidas sociais complementares em benefício dos libertados, nem de um grande impulso interior, de renovação da consciência pública, da expansão dos nobres instintos sopitados. (...) “A verdade (...) é que a corrente abolicionista parou no dia mesmo da abolição e no dia seguinte refluia.”51 ADMIRAÇÃO E RECONHECIMENTO – SEMPRE O ESPÍRITO Joaquim Nabuco obteve em vida o reconhecimento entusiasmado e unânime dos brasileiros. Em 1906, embaixador nos Estados Unidos, ele retornou ao país, depois de sete anos de ausência, para participar, no Rio de Janeiro, da III Conferência Pan-Americana. Aportou primeiro no Recife, sob recepção entusiástica: no cais, nas ruas, no Palácio do Governo, 50 – NABUCO, 1900, p. 206. Note-se que nesse texto Nabuco parece alinhar-se ao espírito liberal ou humanitário, além de lamentar o “sacrifício” da monarquia resultante da aliança da “grande propriedade” com o espírito revolucionário que a “sociedade abalada” “tinha deixado escapar pela primeira fenda de seus alicerces”. 51 – NABUCO, 1900, p. 210.

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no Teatro Santa Isabel, onde disse, sob aplausos unânimes: “Ganhamos aqui a causa da Abolição.”52 Era o “carinho pernambucano”, que ele via “como a mais grata recordação que levarei da vida ou do mundo, e que espero perdurará mesmo para os meus, no nome que dei a meu primeiro filho em lembrança da nossa Mauriceia”.53 O mesmo calor humano repetiu-se em Salvador (recifense, ele era filho de um baiano, o terceiro senador Nabuco) e no Rio de Janeiro, que viu nele um herói, quase um mito. Após ouvi-lo, Olavo Bilac escreveu: “Não é o mesmo orador, e é melhor. O estilo é um modelo de concisão e de clareza; e o talento, amadurecido, em pleno outono fecundo, está dando os seus melhores frutos.”54 Levi Carneiro, que o esperava no porto carioca, lembra que Nabuco “deslumbrou a todos os que o conhecíamos apenas de tradição”, completando: “Por impulso incontível, o acompanhamos a pé através da cidade.”55 Essas cenas impressionaram fundamente os delegados dos demais países americanos, que elegeram Nabuco presidente da Conferência. Ponderado, ele escreveu: “Eu reconheço a popularidade (...). É um fato. Mas um fato que é um sintoma; que revela esperança e resolução por parte do País, pois é a minha política americana que se aclama.”56 O pan-americanismo era sua nova, grande causa. Desde então Joaquim Nabuco passou a ser visto como o “grande brasileiro de seu tempo e de todos os tempos” a que se refere Gilberto 52 – Cf., para testemunho ocular, SETTE. Ver também VIANA FILHO, p. 376. 53 – NABUCO, Carolina, p. 420. O primeiro filho de Joaquim Nabuco chamou-se Maurício. Em carta a sua mulher, Evelina Torres Ribeiro, ao comentar a “esplêndida recepção” que teve no Recife, Nabuco exclama: “Que extraordinária dedicação a que se tem por mim em Pernambuco! E como pagar por isso?” Cf. NABUCO, 2005, v.2, p. 386. 54 – Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 de julho de 1906 (Apud NABUCO, Carolina, p. 421). 55 – Em “Joaquim Nabuco e a monarquia federativa”, Jornal do Commercio, 25.12.1926 (Apud NABUCO, Carolina, pp. 423-4). 56 – NABUCO, Carolina, pp. 421-2.

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Freyre.57 Ou, segundo Alceu Amoroso Lima, como a “imagem mais fulgurante do humanismo brasileiro”.58 Nas comemorações do centenário de seu nascimento (1949), essa visão dele como modelo e exemplo impôs-se definitiva na cultura dir-se-ia canônica, decerto ainda desatenta ao que Eduardo Portella chama “lógica exterminadora do modernismo”.59 Os mais exigentes, porém, entre eles os modernistas de 1922, viram em Nabuco um sintoma de arraigadas patologias do caráter nacional. Mário de Andrade, sempre cáustico com os ídolos do passado, chamou “moléstia de Nabuco” a “isso de vocês andarem sentindo saudade do cais do Sena em plena Quinta da Boa Vista” e “isso de você falar dum jeito e escrever covardemente colocando o pronome carolinamichaelisticamente” – ele próprio, Mário, dotando a língua de medonho palavrão. E em instigante exegese, de sabor pós-moderno, do capítulo XX de Minha formação, intitulado Massangana, Luiz Costa Lima vê a confessada saudade nabuquiana do escravo como “trauma da escravidão”.60 Em 21 de outubro de 1906, um Joaquim Nabuco cansado, feliz com o êxito da Conferência Pan-Americana do Rio, revê, do navio que o conduzia de volta aos Estados Unidos, o seu Recife pela última vez: “Ao longe (...), o cabo de Santo Agostinho, toda a paisagem familiar da costa pernambucana, a orla branca da praia, os coqueiros, as colinas verdes. À tarde, defronte do Recife. Não desembarco. Depois que se vão os amigos, os moços da academia, fico a olhar para o ocaso que flameja como um Turner sobre Olinda. À noite, a lua forma um navio, uma caravela de ouro, sobre uma nuvem negra. E assim me despeço do Recife, talvez para sempre.61 A referência a Joseph Mallord William Turner (1775-1851), o grande paisagista inglês do século XIX, sua luz e cores imbatíveis em trans57 – FREYRE, pp. 1. 58 – LIMA, pp. 6-7. 59 – PORTELLA, p. 140. Veja-se também MORICONI, pp. 113-4. 60 – Cf. ALBUQUERQUE, pp.23-34. E COSTA LIMA. 61 – NABUCO, 2005 v. 2, p. 372.

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parência e palidez, trai o olhar europeu. O sentimento segue sendo o de romantismo tardio. Cruel, sua razão investiga o organismo debilitado, endurecendo pela arteriosclerose. A vermelhidão do rosto, sinal do excesso de hemácias resultante da policitemia, empresta-lhe, em contraste, aspecto sadio. Os crepúsculos são curtos, dissera certa vez à mulher.62 O dele seria longo, penoso, vivido quase todo nos Estados Unidos, e de permeio a atividade diplomática e intelectual que cada vez lhe pesava mais. No verão de 1907, confessa-se fatigado. “Não fui feito para velho”, reclama.63 E escreve a Machado de Assis (1908): “É uma grande privação viver longe dos amigos, em terra estranha, como estrangeiro. Sobretudo acabar assim. Mas espero voltar ainda antes da noite.”64 Miragem. Sem tempo de serviço para aposentar-se, sem recursos para sobreviver com a família numerosa, Nabuco teve de seguir cumprindo jornada interminável.65 Além da surdez, já antiga, a dor de cabeça, a sonolência não mais o deixam. “Cheguei aos 60 anos sem fôlego e exausto da longa ascensão da vida”, escreveu em agosto de 1909. “Agora, para a descida, tenho que usar outros músculos, não mais os do impulso, mas os da resistência”.66 A morte colheu Joaquim Nabuco em Washington a 17 de janeiro de 1910. Pouco antes, ele afastou com esforço o torpor que o dominava e balbuciou ao médico: “Doutor, pareço estar perdendo a consciência... Tudo, menos isso!...”67 Os restos mortais do grande brasileiro vieram para o Rio, depois para o Recife, onde estão sepultados, por desejo dele e vontade do povo pernambucano.

62 – Carta de 24.11.1902. Cf. VIANA FILHO, p. 408. 63 – Carta a Magalhães de Azevedo (Apud NABUCO, Carolina, p. 447). 64 – Carta de 01 de agosto: ARANHA, p. 158. 65 – VIANA FILHO, p. 411. 66 – NABUCO, 2005, v.2, p. 461 [19 de agosto de 1909]. 67 – VIANA FILHO, p. 414.

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Um ano antes, em janeiro de 1909, Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo escrevera em seu diário: “O corpo pode ser demolido, não o seja nunca o espírito.”68 Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de. Nabuco: razão e sentimento/ Memorial da Restauração. Rio de Janeiro, Edição do autor, 2005, pp. 7-39. ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo, Companhia das Letras, 2007 [Perfis brasileiros]. ARANHA, Graça, org. Machado de Assis & Joaquim Nabuco: correspondência. Rio de Janeiro, ABL-Topbooks, 2003 [1. ed.: 1923]. BAGEHOT, Walter. 1867. The English Constitution. EBook # 4351, The Project Gutenberg, www.gutenberg.net. CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO DO BRASIL (Lei de 16 de dezembro de 1830). www.presidenciadarepublica.gov.br/legislacao. COSTA LIMA, Luiz. 2002. “Nabuco: trauma e crítica”. Em COSTA LIMA, Luiz, Intervenções. São Paulo, Editora da USP, 2002, pp. 341-57. FERNANDES, Anibal. Nabuco, cidadão do Recife. Recife, 1949. FREYRE, Gilberto. Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro, José Olympio, 1948. JOAQUIM NABUCO: BRASILEIRO, CIDADÃO DO MUNDO, 160 ANOS. Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional, 2009 [Catálogo de exposição comemorativa dos 160 anos de do nascimento de Joaquim Nabuco]. GOUVÊA, Fernando da Cruz. “Joaquim Nabuco no Recife, 1884” [Estudo introdutório]. In NABUCO, Joaquim, Campanha abolicionista no Recife, p. v-lxii. LAGE, Claudia. Mundos de Eufrásia: a história do amor entre a incrível Eufrásia Teixeira Leite e o notável Joaquim Nabuco. Record, Rio de Janeiro, 2009. LAMARTINE, Alphonse de. Recueillements poétiques. Paris, Charles Gosselin– Furne et cie.–Pagnerre Éditeurs, 1849 [Google livros]. LIMA, Alceu Amoroso. “Pró-memória: introdução a Minha formação”. In NABUCO, Joaquim. Minha formação. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1965. MORICONI, Ítalo. Interfaces da formação. Tempo Brasileiro, n, 140, jan.-mar., pp. 113-34. 68 – NABUCO, Carolina, p. 461.

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NABUCO, Carolina. A vida de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro, José Olympio, 4. ed., 1958 [Coleção Documentos Brasileiros, 92]. NABUCO, Joaquim. 1870. A escravidão. Recife, Massangana, 1988 [Edição compilada do original manuscrito por José Antônio Gonçalves de Mello. Prefácio de Manuel Correia de Andrade. Organização e apresentação de Leonardo Dantas Silva]. _____. 1883. O abolicionismo. Em SANTIAGO, Silviano, coord., Intérpretes do Brasil, 3v. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2000. v. 1, pp. 3-167. 1. ed.: Londres, Tip. Abraham Kingdom. _____. 1885. Campanha abolicionista no Recife. Eleições 1884. Discursos de Joaquim Nabuco. Recife, Massangana, 1988. Primeira edição: Rio de Janeiro, Leuzinger & Filhos [Estudo introdutório de Fernando da Cruz Gouvêa; prefácio de Anníbal Falcão]. _____. 1900. Minha formação. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957 [Documentos brasileiros, 90]. 1. ed. Rio de Janeiro, H. Garnier, 1900. _____. 2005. Joaquim Nabuco diários, 1873-1910. Rio de Janeiro, Bem-te-vi/ Massangana, 2 v. [Prefácio e notas de Evaldo Cabral de Mello]. PORTELLA, Eduardo. As impurezas da modernidade. Tempo Brasileiro, n. 140, jan.-mar. 2000, pp. 137-40. SETTE, Mario. “Como eu vi Nabuco”. In Jornal do Recife, 14.11.1937. VIANA FILHO, Luiz. A vida de Joaquim Nabuco. São Paulo, Martins Editora/ INL, 2. ed., 1973.

Texto apresentado em agosto /2008. Aprovado para publicação em setembro /2008.

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O PROJETO NACIONAL DE JOAQUIM NABUCO Joaquim Nabuco’s National Project Maria Emilia Prado 1 Resumo: Este trabalho tem a finalidade de apresentar o diagnóstico sobre o Brasil da segunda metade do século XIX, formulado por um dos intelectuais que mais intensamente atuou no cenário político da época: Joaquim Nabuco. Ao mesmo tempo, procurou-se pôr em relevo o projeto nacional formulado por Nabuco que implicava a introdução de amplas e profundas reformas sociais e políticas. Palavras-chave: intelectuais, política, nação, cultura, Estado

Abstract: This article aims at presenting a diagnosis on Brazil during the second half of the Nineteenth Century, authored by Joaquim Nabuco, one of the intellectuals who most intensively influenced the political scene at that time. At the same time, emphasis will be given to Nabuco’s national project, which proposed the adoption of ample and profound social and political reforms. Keywords: Intellectuals, Politics, Action, Culture, State.

Joaquim Nabuco foi o pensador que produziu o diagnóstico mais denso da realidade brasileira no século XIX, além de ter sido o formulador de um projeto nacional cuja abrangência revela atualidade no Brasil do século XXI, uma vez que a maior parte de suas propostas não foram postas em prática pelas diferentes elites políticas que desde os finais do século XIX estiveram à frente do Estado no Brasil. Dessa forma, o pensamento de Nabuco contribui para iluminar as questões sociais e políticas do Brasil de sua época e de décadas posteriores2. Parte significativa dos pensadores que se propuseram a analisar as dificuldades do Brasil em se construir como uma nação moderna apontava para soluções destinadas a introduzir modificações na estrutura político-administrativa do país.3 Questionava-se a vigência do poder moderador, o processo eleitoral e o modo como se davam as relações entre o Legislativo e o Executivo, além do tema da centralização e descentralização. A questão da engenharia política era primordial para os pensa1 – Professora Titular de História do Brasil – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2 – Este tema foi tratado por mim em Joaquim Nabuco. A Política como Moral e como História. Rio de Janeiro, Ed. Museu da República, 2006. 3 – Referimo-nos aqui a pensadores como: Bernardo Pereira de Vasconcelos, Visconde do Uruguai, Tavares Bastos, Alberto Sales, Belisário Soares de Souza preocupados em indicar reformas na organização política e/ou administrativa.

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dores do século XIX, que acreditavam ser possível construir no Brasil uma nação moderna (liberal e/ou democrática) mediante arranjo político e administrativo. Recusando-se a discutir apenas as questões do ponto de vista do sistema ou das instituições políticas, Joaquim Nabuco optou por produzir uma obra onde procurava demonstrar as razões pelas quais os valores do liberalismo não podiam ser implantados no Brasil. Alterava, assim, a natureza das análises que eram produzidas até então, pois buscou evidenciar que os impasses vividos pelo Brasil não estavam relacionados ao modo como se organizavam as instituições políticas, pois o “calcanhar de aquiles” do país encontrava-se na vigência da escravidão. Nabuco retomava, assim, parte das análises feitas por José Bonifácio 4, mas, o projeto nacional que elaborou foi além daquele proposto por Bonifácio. Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo nasceu em 19 de agosto de 1949, quarto filho de Ana Barreto Nabuco de Araújo e José Thomas Nabuco de Araújo. Como era tradição, foi-lhe dado o nome do santo do dia: Joaquim. Era filho, tanto pelo lado paterno como pelo materno de famílias tradicionais. Logo após o nascimento do menino Joaquim, seu pai foi reeleito para a câmara dos deputados, onde tomou assento em janeiro de 1850. Com isto a família mudou-se para o Rio de Janeiro e o menino, ainda muito pequeno, foi deixado aos cuidados dos padrinhos, Ana Rosa Falcão Carvalho e Joaquim Aurélio de Carvalho. Cresceu em meio aos canaviais do engenho Massangana de onde só saiu aos 8 anos para viver com os pais no Rio de Janeiro, onde foi matriculado no colégio Pacie. Aí permaneceu até 1859, quando foi transferido para um colégio localizado na cidade de Nova Friburgo. Este era dirigido pelo barão de Tautphoeus, bávaro expatriado por razões políticas e que teve papel importante na formação de Nabuco. Com a vinda de Tautphoeus para ensinar no Colégio Pedro II, o jovem Nabuco deixara o internato e também se dirigiu para o Rio de Janeiro a fim de estudar no Colégio Pedro II. A partir de então, 4 – José Bonifácio de Andrada e Silva. Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura. Memórias sobre a escravidão (org. Graça Salgado) Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1988.

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passou a conviver mais amiúde com o pai e com a atmosfera política e intelectual reinante na casa do então senador Nabuco de Araújo. Sobre este tempo, Nabuco assim se referia: “Em casa eu via muito a Tavares Bastos, que me mostrava simpatia, todo o grupo político da época; era para mim estudante um desvanecimento descer e subir a rua do Ouvidor de braço com Teófilo Otoni: um prazer ir conversar no Diário do Rio com Saldanha Marinho e ouvir Quintino Bocaiúva, que me parecia o jovem Hércules da imprensa.”5

Terminado o colégio, ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Era o ano de 1866 e, como tantos outros estudantes, dedicara-se às atividades jornalísticas; e no segundo ano da faculdade fundou o jornal A Tribuna Liberal juntamente com dois colegas: Arthur Carvalho Moreira, filho do ministro do Brasil em Londres (barão de Penedo), e Ferreira Braga, amigo da época do colégio Pedro II. No ano seguinte era a vez do jornal Independência, no qual contava com a companhia de Castro Alves, Rui Barbosa, Martim Cabral, Carvalho Moreira, Pimenta Bueno e alguns outros. Este jornal tinha por objetivo promover campanhas destinadas a tornar possível o progresso real do Brasil, mediante a universalização da instrução, a liberdade para todas as crenças, a garantia do voto, o sufrágio universal, a responsabilidade dos ministros, a defesa do casamento civil, da imigração, etc. Integrando o que ficou conhecido como sendo a “geração de 1870”, Joaquim Nabuco teria por colegas de turma em São Paulo, Castro Alves e Rui Barbosa. Os anos da Academia corresponderam ao momento em que seu espírito se deixou seduzir pelas mais diversas impressões, mas, a influência decisiva adveio, segundo o próprio Nabuco, do livro de Baghetot sobre a Constituição Inglesa. Foi através desta leitura que se decidiu pelo modelo político inglês. Em Joaquim Nabuco as reflexões políticas tinham caráter eminentemente prático. Ele foi, antes de tudo, um observador atento do seu tempo e das grandes questões que afetavam o mundo, em especial, o Ociden5 – Joaquim NABUCO, Minha Formação.1981, l0ª ed, Brasílila, UnB, p.28.

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te. Sua curiosidade intelectual era intensa e sua intervenção literária em questões políticas teria sempre a finalidade de demonstrar a necessidade de serem realizadas modificações profundas na sociedade e no Estado brasileiro. A escravidão, alertava Nabuco, constituía-se no grande obstáculo com que o império brasileiro precisava se defrontar, pois, sua permanência obstaculizava a construção de uma sociedade permeável aos princípios do liberalismo. Introduzia, dessa forma, um olhar novo sobre os problemas políticos brasileiros e elaborava a um só tempo uma teoria da sociedade brasileira na qual destacava ser a escravidão o núcleo originário de todos os impedimentos, posto que inviabilizava a construção de uma nação moderna. Mas Nabuco não se limitou a apontar as causas, já que elaborou um amplo projeto de mudanças que implicava, por sua vez, a realização no Brasil de uma verdadeira revolução na sociedade e no Estado. Declarava, através de seus discursos, pronunciamentos e livros que os ex-escravos precisavam se tornar cidadãos e para além da liberdade deveriam possuir todas as condições necessárias para desenvolverem suas potencialidades. Através dos discursos pronunciados no parlamento e nas campanhas eleitorais, procurava afirmar a premência em serem feitas mudanças radicais na sociedade brasileira, de modo a extinguir o mais rapidamente possível os vestígios que o país guardava em virtude de ter sido colônia e por manter, quando já independente, uma ordem senhorial e escravista. À questão da escravidão seguida dos meios necessários à integração dos ex-escravos, Nabuco dedicou sua vida e sua ação em política. Seus escritos tinham por objetivo mostrar aos senhores de escravos que a escravidão era contrária aos princípios da civilização e do humanitarismo e tampouco era lucrativa do ponto de vista econômico. No tocante ao país a vigência da escravidão contribuía, decisivamente, para dificultar a construção da nação, a integração bem como o progresso. Por fim, objetivava Nabuco sensibilizar a opinião pública, ainda nascente, e arregimentar o

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apoio da opinião internacional para a causa abolicionista bem como mobilizar a própria dinastia reinante. No ano de 1879 Joaquim Nabuco tomou posse na Câmara dos Deputados e este foi o momento em que teve início à formação, no parlamento, de uma frente em defesa da abolição, e aproveitando-se desse cenário, Nabuco apresentou um projeto no qual propunha um prazo de 10 anos para a abolição total. Apesar de ser uma proposta bastante moderada foi, ainda assim, recusada pelos deputados, sob alegação de que Nabuco objetivava “construir um templo à liberdade”, mas dando-lhe “por colunas a ociosidade, o roubo e o assassinato”6. A reação não foi suficiente para desmobilizar o movimento abolicionista que se ensaiava na câmara dos deputados. Ao contrário, a partir de então, a causa abolicionista ganhou novos adeptos. Joaquim Nabuco, contrariando suas convicções de que a abolição deveria ser realizada no parlamento, não mais restringia a luta ao recinto parlamentar. A pouco e pouco buscava envolver um público maior, para com isso ganhar maior apoio para a causa abolicionista. Desejava transformar a libertação dos escravos na grande questão do seu tempo e buscava atuar de modo a envolver as populações das principais cidades do império. Em decorrência do projeto apresentado, Joaquim Nabuco foi considerado “persona não grata” e na eleição de 1881 foi derrotado. Dirigiu-se, assim, a Londres, onde trabalhou como correspondente do Jornal do Comércio e aproveitou seu tempo para redigir aquele que viria a se constituir no mais destacado libelo contra a escravidão: o livro O Abolicionismo7. Através dessa obra objetivava falar à razão, ainda que por vezes buscasse despertar a emoção dos leitores, procurando se utilizar de argumentos políticos, econômicos e humanitários para demonstrar que já era mais do que tempo de se extinguir a escravidão. Dessa maneira, procurava tornar a abolição seguida dos meios necessários para integração dos ex-escravos à grande causa nacional. 6 – Anais da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, 1880, v.5, p.359. 7 – Joaquim Nabuco. O Abolicionismo. Petrópolis, Vozes, 5º ed, 1988.

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Nabuco era um profundo admirador da Inglaterra e dos princípios liberais, mas acreditava que no Brasil era preciso que o Estado estivesse presente, atuando como construtor da nação. Ao se empenhar no sentido de evidenciar as desvantagens econômicas da escravidão, buscava demonstrar aos grandes senhores interesse pelo futuro de seus negócios. Procurava fazê-los compreender que o trabalho livre seria mais lucrativo do que o trabalho escravo a que tanto se aferravam. Argumentos retirados do humanitarismo cristão seriam também evocados, na tentativa de tocar o coração dos senhores para que estes promovessem espontaneamente a libertação dos escravos. Por fim, argumentos extraídos dos direitos naturais dos quais a liberdade era o primeiro deles. Nabuco procurava relacionar os direitos naturais à questão nacional, ou seja, o Brasil para progredir e assim vir a pertencer, de fato, ao rol das nações civilizadas não podia ser um país escravista. Logo nas primeiras páginas do Abolicionismo esclarecia o sentido da escravidão bem como as mudanças que deviam ser feitas para valorizar o trabalho fabril e incentivar o estabelecimento de indústrias, para que desta forma se reduzisse a presença do estado como locus gerador de trabalho. Diante da realidade descrita, a luta a favor da libertação dos escravos tinha que ser mais ampla, levando à reforma total da sociedade. Indicava Nabuco que em outros países o abolicionismo não tinha esse “caráter de reforma política primordial! porque não se queria a raça negra para elemento permanente de população, nem como parte homogênea da sociedade. O negro, libertado, ficaria nas colônias, não seria nunca um fator eleitoral na própria Inglaterra, ou França. Nos Estados Unidos, os acontecimentos marcharam com tanta rapidez e desenharam-se por tal forma, que o Congresso se viu forçado a fazer dos antigos escravos do Sul, de um ida para outro, cidadãos americanos, com os mesmos direitos que os demais: mas esse foi um dos resultados imprevistos da guerra.”8

Nabuco acreditava que no Brasil a abolição precisaria conduzir à transformação global da sociedade, uma vez que ela teria de eliminar to8 – Ibidem, p. 36.

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dos os males produzidos pela escravidão. Dessa maneira o abolicionismo pretendia acabar com a escravidão não apenas porque ela era ilegítima do ponto de vista moral, mas, pelo fato de que ela impedia a construção no Brasil de uma nação moderna, com integração social e política e com uma economia forte. Ao longo do livro Nabuco procurava ver a escravidão como tendo criado uma “escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores”9, porque afetava toda sociedade fazendo com que a organização física, intelectual e moral estivesse comprometida. Isto ocorria na medida em que em virtude da existência da escravidão, o trabalho era desvalorizado, os proprietários de terras ficavam presos à produção de gêneros agrícolas, os que os tornava imobilizados e pouco dispostos a tentarem novos empreendimentos. “Esta {a escravidão} não significa somente a relação do escravo para com o senhor; significa muito mais: a soma do poderio, influência, capital, e clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a dependência em que o comércio, a religião, a indústria, o Parlamento, a Coroa, o Estado enfim, se acham perante o poder agregado da minoria aristocrática, em cujas senzalas centenas de milhares de entes humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regime a que estão sujeitos.”10

Paulatinamente, ia desdobrando passo a passo cada um dos problemas nacionais e demonstrando as consequências da escravidão. O fato de existir um hiato entre o homem e a terra estava relacionado à existência da escravidão, pois esta inviabilizava que houvesse o vínculo à propriedade ligando o homem a terra. O subpovoamento do território também se relacionava à escravidão, pois devido ao caráter extensivo da lavoura tropical e ao fato de que ela absorvia a vida econômica do país, o território não ocupado pela grande lavoura permanecia despovoado. Negava a opinião vigente de que o Brasil era uma nação rica, afirmando que não se podia dizer isto de um país que tinha sua economia dependente da grande lavoura. Os latifundiários viviam solicitando favores 9 – Ibidem, p. 27. 10 – Ibidem, p. 28.

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ao Estado e necessitando dos fundos que lhes eram fornecidos mediante a usura que, por sua vez, os sufocava. O crédito agrícola, também concedido pelo Estado, não era suficiente e, diante desse quadro, o grande proprietário territorial se via na necessidade de tomar dinheiro das mãos de um grande comerciante. Impossibilitado de saldar sua dívida, terminava por perder a propriedade. Esta situação levava o Estado a socorrer os descendentes dos grandes proprietários empobrecidos. O socorro prestado resultava na hipertrofia do funcionalismo. Esta, por sua vez, era o modo pelo qual o Estado garantia o sustento dos membros empobrecidos oriundos da classe dos proprietários de terras. “O funcionalismo é, como já vimos, o asilo dos descendentes das antigas famílias ricas e fidalgas, que desbarataram as fortunas realizadas pela escravidão, fortunas a respeito das quais pode dizer-se, em regra, como se diz das fortunas feitas no jogo, que não medram nem dão felicidade. É além disso o viveiro político, porque abriga todos os pobres inteligentes, todos os que tem ambição e capacidade, mas não tem meios, e que são a grande maioria dos nosso homens de merecimento.”11

Na mesma linha de raciocínio procurava demonstrar que nas circunstâncias em que o Brasil se encontrava o Estado era fraco diante dos interesses dos proprietários de escravos. E em assim sendo, afirmava: “o que é o Estado entre nós, poder coletivo que representa apenas os interesses de uma pequena minoria e, por isso, envolve-se e intervém em tudo o que é da esfera individual, como a proteção à indústria, o emprego da reserva particular, e por outro lado, abstém-se de tudo o que é da sua esfera, como a proteção à vida e segurança individual, a garantia da liberdade dos contratos...”12

Procurava externar sua posição de que a luta em benefício dos escravos teria de ser encaminhada de modo a evitar que estes tivessem participação ativa no processo de sua libertação. Envolver as senzalas seria, por um lado, provocar uma carnificina e por outro dificultaria, sobremaneira, 11 – Ibidem, p.131. 12 – Ibidem, p.148.

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a reorganização da sociedade. Essa posição de Nabuco é perfeitamente coerente com o modo pelo qual ele concebia o papel da monarquia. Cabia ao monarca esclarecido cuidar dos seus súditos. À monarquia competia efetivar as transformações que se fizessem necessárias para o benefício do reino e/ou do império. De um outro ponto de vista Nabuco, adepto dos postulados iluministas, estava certo que a razão poderia servir de guia no sentido de ser utilizada para convencer os senhores de que os escravos se constituíam em empecilho para que pudessem obter mais lucro em seus empreendimentos. De modo geral esse posicionamento de Nabuco tem sido visto como decorrente de sua visão de mundo aristocrática, que o impedia de fazer um chamamento à massa de cativos para que lutasse por sua liberdade. Não se pretende, aqui, entrar em análises e/ou julgamentos dessa natureza. Dessa forma, além dos argumentos listados acima, é preciso não esquecer a admiração de Nabuco pelo modelo inglês e o fato dele acreditar que o parlamento era o local onde se deviam equacionar todas as questões que afetavam a nação. Pode ser dito, contrariamente à visão de Nabuco, que nem sempre as questões nacionais foram enfrentadas na Inglaterra através da via parlamentar. A consolidação do moderno sistema parlamentar inglês se efetivou apenas após a guerra civil e os movimentos sociais que eclodiram no século XVII13. De toda maneira nesses finais do século XIX o parlamentarismo inglês já se consolidara de tal modo que se tornara uma tradição14, possibilitando que os ingleses pudessem sustentar a imagem que construíram sobre si como um povo capaz de “resolver as suas diferenças políticas e econômicas por meio de processos pacíficos, justos e democráticos”15.

13 – A esse respeito ver C.B. Marcpherson. A Democracia Liberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar. 1977. 14 – Ver Eric Hobsbawm e Terencer Ranger. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 15 – Ver Barrington Moore. As origens sociais da ditadura e da democracia. Senhores e camponeses na construção do mundo moderno. Trad. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p.12.

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O analfabetismo no país atingia mais de 90% da população e isto impedia que se tivesse uma imprensa forte e atuante. Ao mesmo tempo a opinião pública era reduzida e desarticulada. Enfim, o cenário era trágico, caso se tome por parâmetro os princípios que caracterizam a modernidade: liberdade civil e política, integração social e econômica, mercado interno forte. Nessas circunstâncias, escravidão e regime territorial escravista constituíam-se nos principais obstáculos para a construção de um país moderno. Por ocasião dos discursos proferidos na campanha eleitoral de 188416, Nabuco levou este diagnóstico para um público ampliado. Desejava obter, desta forma, apoio para que a monarquia realizasse as reformas que preconizava. Procurava falar de um modo o mais detalhado possível dos problemas que impediam o Brasil se constituir como um país integrado, capaz de voltar-se para as atividades industriais e criar os meios necessários ao desenvolvimento educacional e cultural. Seu objetivo era, portanto, nacional. Alertava que na vigência da escravidão, a indústria não podia se estabelecer e se desenvolver, o mercado de trabalho livre era insignificante, o mercado interno incipiente, de modo que se vivia na dependência da comercialização de produtos originários do estrangeiro. A primeira das reformas e a que considerava a mais urgente, era a reforma agrária. A abolição precisava ser imediatamente seguida de uma política de terras, pois sem este passo inicial, seria impossível garantir a integração do ex-escravo e do homem livre despossuído. A reforma agrária seria apenas a primeira das reformas de que o país necessitava após ter terminada a escravidão. “Pois bem, senhores, não há outra solução possível para o mal crônico e profundo do povo senão uma lei agrária que estabeleça a pequena propriedade, e que vos abra um futuro, a vós e vossos filhos, pela posse e pelo cultivo da terra. Esta congestão de famílias pobres, esta extensão de miséria –, porque o povo de certos bairros desta capital não vive na pobreza, vive na miséria – estes abismos de sofrimento 16 – Cf. Campanha Abolicionista no Recife. Eleições de 1884. Recife, FUNDAJ, Editora Massangana, 1988.

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não têm outro remédio senão a organização da propriedade e da pequena lavoura. É preciso que os Brasileiros possam ser proprietários de terra, e que o Estado os ajude a se-los.”17

Acreditava Nabuco que sem se dar este primeiro passo seria impossível se promover a integração dos brasileiros pobres, que viviam dependentes dos favores dos grandes proprietários. Reafirmava sua posição, há muito explícita, de que não era no Estado que se devia encontrar o meio de garantir emprego para a população. A burocracia estatal devia e precisava existir, mas não podia se transformar no espaço privilegiado do emprego: “não há empregos públicos que bastem às necessidades de uma população inteira. É desmoralizar o operário acenar-lhe com uma existência de empregado público, porque é prometer-lhe o que não se lhe pode dar e desabituá-lo do trabalho que é a lei da vida. O que pode salvar a nossa pobreza não é o emprego público, é o cultivo da terra, é a posse da terra que o Estado deve facilitar aos que quiserem, por meio de um imposto-o imposto territorial.”18

Outras reformas se faziam necessárias para que o trabalho fosse garantido e valorizado. Para ele esse estado de coisas só podia ser superado se fossem implantadas medidas que conduzissem à criação de indústrias, à liberdade e à proteção ao trabalho e o direito do operário ao voto. Todo esse conjunto se encontrava, porém, dependente da adoção do binômio: EDUCAÇÃO E SISTEMA PREVIDENCIÁRIO. Era necessário que houvesse um redirecionamento da POLÍTICA EDUCACIONAL de modo a torná-la mais voltada para a CIÊNCIA em detrimento da educação BACHARELESCA E ELITISTA. O analfabetismo era alto, impedindo a existência de uma imprensa forte e atuante. Ao mesmo tempo a opinião pública era reduzida e desarticulada. A escravidão repeliu a escola, a instrução pública, e mantendo o país na ignorância. Por fim, uma legislação que garantisse os direitos do trabalhador a um salário digno, 17 – Ibidem, p. 48. 18 – Ibidem, p.48.

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uma jornada de trabalho condizente com o salário e por fim segurança no emprego. Não descuidava Joaquim Nabuco de advertir sobre a necessidade dos trabalhadores se organizarem. Frisava sempre que dependia dos próprios trabalhadores a sua emancipação. “vós sois a grande força do futuro; é preciso que tenhais consciência disso, e também de que o meio para desenvolver a vossa força é somente a associação. Para aprender, para deliberar, para subir, é preciso que vos associais. Fora da associação não tendes que ter esperança.”19

O projeto formulado por Joaquim Nabuco objetivava tornar o Brasil uma nação moderna, dotada de sólidas instituições, capazes de garantir que a liberdade vigorasse em sua plenitude: “liberdade e trabalho – o Trabalho que dá dignidade, a Liberdade que dá valor à vida”.20 Afirmava Nabuco. O projeto apresentado era amplo e profundo. Em uma palavra era um projeto global, destinado a produzir uma verdadeira revolução no cenário político e social do Brasil do final do século XIX. Defendia que competia ao Estado cuidar do estabelecimento de um sistema educacional eficiente e que atendesse à população do império. Igualmente, competia ao Estado criar um sistema de saúde e previdenciário eficientes. Defendia que competia também ao Estado praticar uma política de empréstimos destinados a facilitar as atividades produtivas e empreendedoras. Por fim, Nabuco acreditava que deveria haver liberdade política e administrativa para as províncias e para isto queria transformar o governo em uma monarquia federativa. Introduzia Joaquim Nabuco um olhar novo sobre os problemas políticos brasileiros. Mais que isto, elaborou uma teoria da sociedade brasileira destacando ser a Escravidão o núcleo originário das dificuldades de se construir no Brasil uma nação moderna. Além de indicar um modo novo de analisar a questão nacional, Nabuco não se limitou a apontar os 19 – Ibidem, pp. 146-147. 20 – I b i d e m , p . 1 6 .

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problemas. Elaborou um amplo projeto de mudanças que implicava a realização de uma verdadeira revolução na sociedade bem como no Estado brasileiro da segunda metade do século XIX. Na medida em que entramos no século XX sem que este conjunto de medidas tivesse sido adotado, adiamos a construção dessa nação moderna, caracterizada pela existência de uma população detentora dos direitos plenos de cidadania, tendo uma economia constituída por indústrias bem como por produção agrícola realizada em média e pequena propriedade, gerando um mercado interno forte e organizado. Nabuco assistiu à chegada da abolição e às discussões posteriores acerca dos direitos que possuíam os senhores de escravos a serem indenizados pelo Estado. Assistiu às lutas entre os deputados que integravam o partido liberal, reivindicando as glórias pela lei de abolição e protestando pelo fato da referida lei ter sido promulgada por um gabinete conservador. Por fim, presenciou a queda da monarquia e a proclamação da república. Não conseguiu, porém, ver implantadas as reformas que representariam uma verdadeira revolução e que eram imprescindíveis para que tivesse início, nesses finais do século XIX, a construção dos alicerces indispensáveis para tornar o Brasil uma nação moderna. Fontes ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. Rio de Janeiro, 1880,v. 5. NABUCO, Joaquim. Minha Formação. l0ª ed, Brasília: UnB,1981 ______.O Abolicionismo. 5ª ed. Petrópolis: Vozes,1988. ______. Campanha Abolicionista no Recife. Eleição de 1884. 2ª ed. Recife, FUNDAJ, ed. Massangana,1988. ______. Discursos Parlamentares. (1870-1889). Obras Completas. São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949. ______. Perfis Parlamentares. Int. de Gilberto de Mello Freyre, Brasília, Câmara dos Deputados, 1983. ______. Um Estadista do Império. Rio de Janeiro, apresentação de Raymundo Faoro, Toopboks, 5ª ed, 1998.

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______.Escritos e Discursos Literários. Obras Completas de Joaquim Nabuco. São Paulo, Instituto Progresso Editorial, s/d. ______. Campanhas de Imprensa.1884-1887. Sâo Paulo, Ipê, 1949. ______. Conferências e Discursos Abolicionistas. São Paulo, Ipê, 1949. (Obras Completas, v.7.)

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Texto apresentado em setembro /2008. Aprovado para publicação em outubro /2008.

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JOAQUIM NABUCO, O DIPLOMATA Joaquim Nabuco, the diplomat Vasco Mariz 1 Resumo: Nabuco, um dos próceres da Abolição, ao fim de sua carreira política, exerceu importante atividade diplomática. Foi ministro do Brasil no Reino Unido e embaixador nos EUA. Defendeu os direitos do Brasil na disputa territorial com a Inglaterra com relação à Guiana inglesa. A sentença do rei da Itália como árbitro redundou em prejuízo para o Brasil, apesar da excelente defesa de Nabuco. Palavras-chave: Abolição, diplomacia, disputa territorial Brasil/Inglaterra, sentença do rei da Itália, embaixador em Washington.

Abstract: Nabuco, one of the leaders for the abolition of slavery in Brazil, at the end of his political career became an important diplomat. He was Envoy to the United Kingdom and Ambassador to the USA. He defended the Brazilian rights in the territorial dispute with the United Kingdom over British Guyana. The sentence given by the arbitrator, the King of Italy, was detrimental to Brazil, despite the excellent defense prepared by Joaquim Nabuco. Keywords: Abolition, Diplomacy, Brazil/United Kingdom territorial dispute, The King of Italy Arbitrator’s Sentence, Ambassador to the USA.

Nossas autoridades culturais em boa hora decidiram homenagear Joaquim Nabuco declarando o ano corrente de 2010, centenário de sua morte, de “Ano Joaquim Nabuco”. Foi oportuno porque sua imagem e suas obras estão bastante esquecidas e as novas gerações têm uma ideia cada vez mais vaga de sua personalidade e, sobretudo, de sua atuação como escritor, abolicionista e diplomata. Temos ouvido recentemente várias palestras recordando este ou aquele aspecto de sua personalidade, destacando sobretudo seus feitos em prol da abolição. Vou deixar de lado essas facetas importantes e me concentrar em sua atuação como diplomata, primeiro na Inglaterra e depois nos Estados Unidos da América, que estão ficando cada vez mais remotas para o público contemporâneo e merecem ser recordadas, pois levantaram controvérsias. — Em 1896 urgia resolver os problemas de fronteiras com as Guianas francesa e inglesa, objeto de antigas disputas com esses países. Para defender os interesses do Brasil, Rio Branco foi novamente escolhido, em 1 – Diplomata, musicólogo e sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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consequência de seu êxito no complexo diferendo com a Argentina. Desde o princípio, o Barão fez de Paris o centro dos trabalhos preparatórios das duas questões. Além da vantagem de ter ali uma instalação confortável, com seus livros e seus documentos, a consulta direta aos arquivos e às bibliotecas estava à mão. Rio Branco prosseguiu simultaneamente o estudo das duas questões e escreveu uma memória inicial a respeito da Guiana inglesa. Enviou seu filho Raul a Bruxelas para a impressão da mesma, pois na França era obrigatório o depósito de dois exemplares de cada livro impresso. Não desejava fornecer à parte contrária a possível indicação das fontes e dos argumentos relativos ao assunto. Como escreveu Raul do Rio Branco:2 “Trabalhou assim meu pai algum tempo em Paris. Tinha lhe sido possível, a custo de enorme esforço, enfrentar a tarefa das duas defesas, mas, como cumpria, consagrou-se depois exclusivamente à disputa francesa, cujos prazos já começavam a correr. E julgou que devia passar a outras mãos capazes a causa com a Inglaterra, mesmo para não dar a impressão de querer monopolizar as questões arbitrais sobre nossos limites. E contribuiu não só como amigo pessoal, mas tambem como especialista em tais assuntos, para a escolha de Nabuco.”

Joaquim Nabuco, monarquista como ele, achava-se em posição delicada, já que, após a proclamação da República em 1889, julgou devia manter uma atitude definida contra o novo regime e de fidelidade ao Império. Essa atitude era também de gratidão à princesa Isabel pela sua ação em 1888 na abolição da ecravatura, atitvidade principal de Nabuco nos últimos dez anos. Com isso ele havia virtualmente cortado as pontes atrás de si. Rio Branco via com tristeza essa inteligência excepcional afastada talvez para sempre dos negócios públicos. Por outro lado, o presidente Campos Sales e seu ministro do exterior, Olinto de Magalhães, pensavam chamar Nabuco à vida ativa, fazendo apelo às suas altas qualidades intelectuais para a defesa de nossos direitos na Guiana. Nabuco viu-se 2 – Rio Branco, Raul do – Reminiscências do barão do Rio Branco, Livraria José Olympio, Rio de Janeiro, 1942, p. 136.

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perante uma crise de consciência. O mesmo Raul do Rio Branco, em seu citado livro, comentou: “Rio Branco, que havia dado o exemplo do sacrificio de principios antigos em favor do serviço imediato ao país, trabalhou também para que ele aceitasse, dentro dos escrúpulos morais que tinha, a incumbencia que lhe era oferecida em questão de tão grande relevância para a integridade do território nacional.”3

A nomeação de Nabuco não foi do agrado do ministro plenipotenciário Sousa Corrêa, que ameaçou licenciar-se, pois não desejava dividir com outrem suas funções junto ao Foreign Office. Luis Viana Filho nos conta que a posição de Nabuco, forçado a permanecer nos bastidores, não lhe agradou nada e houve até rusgas entre os assessores dos dois diplomatas em Londres. Nabuco, que já havia sido hóspede de Rio Branco, decidiu ir passar alguns dias em Paris para conversar sobre as pesquisas já feitas e as conclusões a que o Barão havia chegado sobre o assunto. Era a fase de exploração e tiveram longas conversas no gabinete de trabalho de Rio Branco, em Auteuil. Nabuco estava sempre acompanhado de dois secretários de sua escolha: Graça Aranha e Caldas Viana. Rio Branco e Nabuco eram amigos sinceros, estimavam-se muito e tinham quase a mesma idade. Sua colaboração seria de vital importância para a elaboração da tática de defesa dos intereses brasileiros. No entanto, seu relacionamento nem sempre foi tão amistoso e, em carta de 22 de novembro de 1902 a sua esposa Evelina, Nabuco se queixou: “O Paranhos não tem uma verdadeira atenção para com seus amigos. Ele nunca me disse uma palavra carinhosa.” — As relações diplomáticas do Brasil com o Reino Unido eram corretas e até cordiais em Londres. O ministro residente Sousa Correia era íntimo do palácio de Saint James e conversava com desenvoltura e franqueza com o primeiro-ministro britânico lord Salisbury. No entanto, a Inglaterra escondia o jogo na questão da Guiana. O Brasil preferia confiar a decisão 3 – Rio Branco, Raul do – op. cit. p. 137.

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a um chefe de Estado, ao passo que a Inglaterra se inclinava para resolver a questão em um tribunal arbitral. Salisbury avaliou com Sousa Correia os possíveis árbitros, que afinal descartava: o rei da Suécia, o Papa, o imperador da Alemanha e, por último, Correia lhe sugeriu o nome do grão-duque de Baden. Ele era o candidato ideal para Rio Branco, que preferia ver a questão estudada com seriedade pelos professores de Heidelberg. Salisbury afinal concordou, mas para imensa surpresa de Paranhos e de Nabuco, o próprio chanceler brasileiro Olinto de Magalhães objetou o nome do grão-duque por considerá-lo apenas um suzerano e não um soberano. Em telegrama oficial o chanceler sugeriu os nomes do presidente dos EUA, o rei da Itália e o imperador da Alemanha. Os ingleses escolheram o italiano, o mais vulnerável a pressões políticas. Este foi o primeiro erro do Brasil e não foi culpa nem de Rio Branco nem de Nabuco. A reação de Nabuco foi fraca e não insistiu. Ao ser convidado formalmente para defender os interesses do Brasil, Nabuco preferira instalar-se perto de Paranhos, em Saint Germain-en-Laye, nos arredores de Paris, com sua esposa Evelina e os filhos pequenos, e não em Londres perto da Legação. Era um mau momento para ele: os monarquistas haviam sofrido represálias de republicanos e tomaram a mal a designação de Nabuco. Carlos de Laet, importante jornalista, chamou-o de “apóstata” e de “trânsfuga” e que ele havia aceito “um prato de lentilhas podres”. Ao receber o artigo de jornal, Nabuco limitou-se a comentar: “Só posso dizer-lhe que rezei hoje por ele.” Em verdade, com essa nomeação Nabuco cortara de vez as amarras com os monarquistas. Pior foi o que aconteceu pouco depois em Londres: O hábil diplomata Sousa Correia, que tinha ótimas relações com o primeiro-ministro inglês, faleceu subitamente, terminando assim os preciosos laços pessoais que o Brasil tinha com Salesbury e que facilitavam a defesa de nossos interesses. Por outro lado, isso foi benéfico para Nabuco, pois a vacância do cargo abriu caminho para a sua designação oficial como ministro plenipotenciário junto ao governo britânico, o que ocorreria meses depois em amplo remanejamento diplomático. Naquele momento, Paranhos e Nabuco aceitavam plenamente fazer um acordo amigável com os ingleses.

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O novo ministro brasileiro em Londres assumira o posto em momento delicado. Nabuco foi bem recebido por Salisbury, já que falava bem o inglês e ambos concordaram com a esperança de um acordo amigável sobre o território, no qual Salisbuy dissera que “não havia nele nem sequer uma vaca”. No entanto, o jogo apenas começava. Ambas as partes escondiam o pensamento: decidido a não transigir, Salisbury mostrava-se cordato, enquanto Nabuco, autorizado a fazer pequenas concessões, tentava passar a impressão de que não podia ceder nem um milímetro. Aconteceram depois as eleições gerais no Reino Unido e Nabuco torceu pela vitória dos unionistas de lord Salisbury, com quem estabelecera um bom diálogo. Seu partido venceu as eleições, mas aí aconteceu algo surpreendente e negativo para o lado brasileiro. Ao começar o novo mandatto, Salisbury decidiu entregar o Foreign Office a um ilustre colaborador, o marquês de Landsdowne, bisneto de Talleyrand, homem extremamente formal e cerimonioso, de acesso dificil para os diplomatas estrangeiros em geral. Infelizmente, Nabuco não tinha a experiência diplomática e a lábia de Sousa Correia. O excessivo formalismo de seu interlocutor complicaria bastante as negociações. No ínterim, Rio Branco venceu a difícil questão do Oiapoque contra a França e os ingleses alertados para que não deveriam subestimar os brasileiros. O governo Campos Sales chegava ao fim e tanto ele quanto Olinto de Magalhães decidiram que seria uma fraqueza, ou mesmo covardia, fazer um acordo amigável com a Inglaterra. A imprensa brasileira e sobretudo os inimigos políticos do governo afirmariam que o Brasil se apequenara diante da maior potência mundial da época. No diário de Nabuco não há tampouco referência ao possível desagrado ou revolta de Nabuco devido à renúncia do Brasil à possibilidade um acordo amigável com a Inglaterra. Ele estava talvez confiante demais nos argumentos e documentos de sua defesa. Embora Salisbury se tivesse referido com desprezo ao território de apenas 30.000 km2, os ingleses defendiam com tenacidade o que julgavam ser o seu direito. Seu objetivo era uma saída fluvial para o vale ama-

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zônico e, ao mesmo tempo, vedariam ao Brasil todos os caminhos para o vale do rio Essequibo. Sem maior significação no momento, a pretensão britânica poderia resultar em vantagens significativas no futuro. Por tudo isso, o governo brasileiro decidiu colocar as cartas na mesa: um acordo na base da proposta brasileira já apresentada há meses, ou o arbitramento. Ao delegado brasileiro Joaquim Nabuco só restava cumprir as instruções do Rio de Janeiro e pode-se imaginar suas dúvidas e temores. Teria ele errado ao aceitar sem maior resistência a decisão presidencial? Ele tinha prestígio pessoal para isso e não o fez. Em verdade, os diários de Nabuco são um pouco decepcionantes, pois não encontramos referência a esse período tão importante. Nele há uma infinidade de anotações sem a menor importância e alguns hiatos em períodos em que seria fascinante ter o registro de suas reações íntimas. — Os portugueses haviam tentado consolidar a posse daquelas paragens remotas ao explorar todo o sitema fluvial dos rios Negro e Branco e isso constituiu uma das nossas provas possessórias. A base lusa na região era o forte de São Joaquim, construido em 1775. O diferendo só teve início em 1835 com as explorações do cientista alemão Schomburgk, a serviço dos ingleses. Ao verificar a excelente qualidade das terras da região, ele mobilizou um bispo protestante que pretendeu defender os indígenas, alegando que eles estavam sendo escravizados pelos brasileiros. O governo britânico mandou fazer um mapa da região e ordenou colocar marcos de acordo com a linha divisória determinada por esse novo mapa britânico guarnição do forte São Joaquim foi intimada a se retirar da região chamada Pirara. O governo brasileiro protestou mas cedeu e, após negociações, o Foreign Office propôs a neutralização do território por 50 anos até a solução definitiva da questão. Um tratado nesse sentido foi assinado em 1842 e em 1892 a questão foi reaberta. Perdida a posse cabia ao Brasil provar seus direitos, o que seria bem feito em 1897 em memória redigida por Rio Branco, inicialmente escolhido para defensor do Brasil. Abertas as conversações para o arbitra-

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mento, verificou-se que vários atos possessórios do Reino Unido foram realizados após o tratado de 1842. Este seria o ponto curcial de nossa defesa. A 22 de maio de 1902 Nabuco oficiou ao Foreign Office contra essa delicada cláusula, que ficaria à discrição do árbitro. Sua argumentação foi perfeita e a documentação apresentada ao rei da Itália teve nada menos de onze volumes de arrazoados. Das tres Memórias redigidas pessoalmente por Nabuco, na primeira ele apresentou todos os pontos de vista da defesa brasileira e, nas duas últimas, rebateu os argumentos da documentação inglesa. Foram quase dois anos de trabalho: de março de 1902 a fevereiro de1904. Luis Vianna Filho parece esclarecer a questão: “Guilherme Ferrero, o grande historiador italiano, em carta escrita a Graça Aranha, narra o que Buzzatti, professor em Pavía e membro da comissão incumbida pelo rei da Italia de examinar o litigio, revelara a um colega, professor em Zurich. Monsieur Buzzatti, dizia Ferrero, contou ao meu amigo que, encarregando-lhes de estudar a questão, o Rei recomendou inicialmente aos membros da comissão de dar razão à Inglaterra. Apesar dessa recomendação, o direito do Brasil era tão evidente que a comissão chegou a conclusões inteiramente favoráveis às pretensões do Brasil. Mas o Rei não tomou conhecimento e teria, segundo a versão de Buzzatti, redigido ele próprio a sentença que conhecemos. Vittorio Emanuele desejava tudo, menos aborrecer a Inglaterra, dizendo “que não podia fazer uma coisa desagradavel à Inglaterra”.4

Aqui cabem algumas considerações sobre a aceitação de Vittorio Emmanuele III, rei da Itália, como árbitro. No início do século XX o Reino Unido estava no auge de seu poderio político e militar, situação semelhante à dos Estados Unidos da América nos dias de hoje. Paranhos e Nabuco se bateram por outros árbitros que não se deixariam influenciar pelo poderio britânico. No entanto, Campos Sales e Olinto de Magalhães cederam ao romantismo de acreditar que o rei da Itália não prejudicaria o Brasil, que estava recebendo milhares de italianos pobres como imigran4 – Viana Filho, Luis. Vida de Joaquim Nabuco, Livrria Martins Editora, São Paulo, 1973, p. 288.

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tes. Enganaram-se completamente, como ficou claro pelo texto acima de Luis Vianna Filho. Mas voltemos um pouco atrás. Nabuco tardara bastante a apresentar suas credenciais como o novo ministro plenipotenciário do Brasil junto ao governo britânico. A rainha Vitória estava bastante doente e todos os novos chefes de missões diplomáticas tiveram de aguardar algumas semanas, inclusive Nabuco, que afinal seria o último diplomata a apresentar credenciais à rainha Vitória, que viria a falecer pouco tempo depois. Nesse ínterim Nabuco visitou as principais autoridades locais, muitos dos quais já conhecera informalmente desde que se instalara em Londres. Mal assessorado, o chanceler brasileiro tomou a já mencionada decisão de não aceitar o grão-duque de Baden, árbitro ideal para Paranhos. Nabuco argumentou, lembrou as conversas de Correia com Salisbury, mas de nada adiantou. Devemos buscar a culpa pelo meio fracasso não em Nabuco, mas no Itamaraty da época. Se Paranhos já fosse o chanceler, como ocorreu pouco tempo depois, certamente as escolhas seriam diferentes e bem melhores. Qualquer outro árbitro nos teria dado muito mais. No entanto, conhecida a sentença, todos no Brasil foram amáveis com Nabuco, reconhecendo o alto mérito de seu esforço em defesa de nossa causa. A imprensa entendeu o impasse e não atacou Nabuco. Nas vésperas da sentença, a 13 de junho de 1904, Nabuco escrevera em seu diário: “Qualquer que seja a decisão amanhã, não me arrependeria de ter trabalhando tanto, porque se nos derem alguma coisa somente, depois desse trabalho todo, é sinal que, sem ele, não nos teriam dado nada. Não fui responsavel pela escolha do árbitro. Sugeri a escolha do presidente dos Estados Unidos ou do imperador da Austria.”

Em carta a sua esposa Evelina na noite da sentença, 14 de junho, Nabuco escreveu: “Foi um quarto de hora terrível o da leitura que o rei nos fez, ao embaixador inglês e a mim, da sentença que concluia pela vitória da Inglaterra. (...) A mão tremia-me quando tive de assinar o recibo da sentença. Nunca esperei que o rei desse aos ingleses o Tocutu como

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fronteira. Não lhes deu o Cotingo, mas tambem isso seria demais, não se chamaria arbitramento.”

Pelo ofício de 15 de junho de 1904, no dia seguinte à sentença, Nabuco comentou para o chanceler Rio Branco os diversos consideranda do rei da Itália. Observou que “ele demonstrou estabelecer que os ingleses eram os sucessores dos holandeses e só poderiam alegar soberania sobre parte do territorio em disputa, ao passo que os brasileiros, como sucessores dos portugueses, só tinham exercido soberania apenas sobre porções do mesmo território.”

A zona efetivamente ocupada por uns e outros não podia ser definida com segurança sobre quem tinha direitos preponderantes. Assim a partilha do território em litigio foi feita e de modo discricionário e aí vemos a influência política do Reino Unido sobre o rei da Itália. Vittorio Emmanuele adotou a linha Schomburgk, que era a pretensão máxima dos ingleses, e com isso o rei não nos deu acesso ao rio Essequibo. Tempos atrás, o Foreign Ofice já nos havia oferecido muito mais. O rei da Itália atribuiu ao Reino Unido o maior e o melhor quinhão dessa partilha nada equitativa: 19.000 km2 para os ingleses e 12.000 para os brasileiros. No dia 17, em outra carta a Evelina, Nabuco dizia: “Eu fiz o que me era possível, acompanhando no meu trabalho toda a minha vida, dando-lhe todo o meu amor, mas não me hei de suicidar por ter perdido. Tendo feito todo o meu dever, estou com a consciencia tranquila, mas o coração sangra-me, parece que sou o mutilado do pedaço que falta ao Brasil.”

Graça Aranha, o depois famoso assessor de Nabuco, escreveu no Jornal do Brasil: “A sentença feriu em cheio o coração de Nabuco, não no seu amor próprio, mas no seu patriotismo. Não tentou recorrer, nem protestou. Nos ultimos dois anos, ele dera prova de assombrosa energia intelectual. Chamado sem esperar ao serviço da pátria, atirado a estudos que

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nunca tinham sido sua especialidade, Nabuco teve no caminho dificuldades que só puderam ser superadas pelo seu talento e capacidade de trabalho. Quase tudo foi redigido pessoalmente por ele.”

Nabuco chegara a Roma dois meses antes da data da sentença, visitou personalidades locais, fez intensa vida social e preparou-se para enfrentar in loco a entrevista final. Diz Cabral de Mello que “sua missão junto ao rei da Itália exigiu três estadas em Roma, onde teve de desenvolver uma vida social intensa que, embora não fosse do seu gosto, considerava sua obrigação diplomática”. A audiência do rei da Itália com os representantes das partes foi marcada para o dia 14 de junho de 1904. Somente os dois delegados estavam presentes e o rei leu pessoalmente a decisão. Entregou depois o documento em lingua italiana da sentença, por ele assinada, a cada um dos representantes, bem como a tradução em francês, que era então a lingua internacional vigente. Entregou-lhes tambem um mapa do territorio litigioso no qual estava desenhada a nova fronteira entre os dois países. O embaixador da Inglaterra e o delegado do Brasil se limitaram a agradecer e se retiraram. Em seu diário, Nabuco manifestou seu desapontamento sobretudo em cartas a sua esposa Evelina, lembrando que não fora ele quem escolhera o árbitro. Evaldo Cabral de Melo, organizador e comentarista de Joaquim Nabuco – Diários, assim resumiu (páginas 389 e 390): “Nabuco trabalhou na redação dos textos por quase dois anos, de março de 1902 a fevereiro de 1904. A primeira das memórias expõe os fundamentos e as provas do direito do Brasil ao território em litígio; a segunda e a terceira memórias são a crítica dos argumentos invocados pela Inglaterra. (...) Foram 2.000 páginas, todas redigidas por Nabuco e incluía quantidade de mapas e documentos.(...) As memórias foram redigidas em Londres, mas sobretudo em Charles-les-eaux e em Nice, e revistas em Paris.”



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Cabe aqui um parêntesis para focalizar as relações entre Nabuco e Rio Branco. Eram amigos desde jovens e Paranhos, sem dúvida, o ajudou muito em sua carreira diplomática. No entanto, seu relacionamento nem sempre foi tão amistoso e, em carta de 22 de novembro de 1902 a sua esposa Evelina, Nabuco se queixou: “O Paranhos não tem uma verdadeira atenção para com seus amigos. Ele nunca me disse uma palavra carinhosa.” Ao ter notícia do laudo do rei da Itália, Rio Branco escreveu em seu diário: “Recebi hoje telegrama de Nabuco. Salisbury daria 16.418 ao Brasil e 16.790 à Inglaterra (proposta inglesa de 24.05.1898). Villiers, em nome de Salisbury, daria, a 23 de agosto de 1899, 22.930 ao Brasil e 10.270 à Inglaterra. A sentença deu 13.750 ao Brasil e 19.630 à Inglaterra.” Não acrescentou comentário algum. — Nabuco a 19 de agosto completou 55 anos de idade, mas demoraria poucos meses mais em Londres. Depois da posse do presidente Rodrigues Alves e da instalação do Barão do Rio Branco como chanceler da República, seu amigo Paranhos ofereceu-lhe a legação em Roma, cidade que lhe havia agradado muito. Diante de sua negativa, decidiu elevar a legação em Washington ao nível de embaixada e escolheu-o para ser o primeiro embaixador do Brasil na capital americana. Nabuco teve dúvidas antes de aceitar, pois a sentença do litigio da Guiana inglesa acelerara seus diversos achaques. Estava muito envelhecido para sua idade, deprimido e sua surdez aumentara bastante, apesar de haver ido a Viena consultar importante especialista. Em carta a sua esposa Evelina de 21 de novembro de 1902, portanto ainda bem antes da sentença do rei da Itália, ele escrevia: “Certas vezes não ouço nada.” Em seus Diários lemos no dia 12 de dezembro de 1902, bem antes da sentença italiana, o seguinte: “Com a surdez o mundo me vai parecendo uma grande pantomima. Eu posso ainda gozar da pantomima social, mas não mais da comédia social. Não sirvo nem para diplomata porque não posso fazer o flerte politico e social, a côrte às grandes damas, nem para homem político sul-americano porque não posso conspirar.”

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Apesar disso, três anos depois, em 1905, ele aceitou ser embaixador em Washington. O handicap da surdez não era pequeno, mas ele soube vencê-lo, pois em breve conquistaria a simpatia do presidente Roosevelt e do secretário de Estado Elihu Root, e participou com destaque de importantes eventos na capital americana. Nabuco apresentou suas credenciais em 1905 ao presidente Theodore Roosevelt e em Washington conquistou devagar o seu espaço, graças à sua cultura, inteligência e fluência no idioma inglês. Fotos dele nessa época ainda mostram um homem alto, elegantemente vestido, verdadeiro dandy, representante de sua classe social, superando assim o difícil handicap da surdez crescente. Ele gostava dos EUA desde que lá vivera um ano, jovem de 27 anos, como adido da Legação e escrevera em seu diario: “Vivi como um americano nos EUA.” Nabuco foi um entusiasta do pan-americanismo, e a embaixadora Odete de Carvalho e Souza, em brilhante conferência no Itamaraty em 1947, considerou que o tema foi seu principal interesse durante a estada em Washington. Sua amizade com o Secretário de Estado Elihu Root e seu bom entendimento com o presidente Theodore Roosevelt muito contribuíram para implantar a doutrina do pan-americanismo. No entanto, os antiamericanistas de hoje poderão dizer que Nabuco se deixou envolver pelos dois políticos norte-americanos e abraçou essa nova política de expansionismo continental. Essa admiração de Nabuco pelo presidente Roosevelt de certo modo prejudica a sua imagem histórica. Lembro que o presidente norte-americano era um notório imperialista, que ficou famoso pela sua teoria do big stick. Durante a guerra dos EUA com a Espanha, em 1898, ele ficara famoso por seus atos violentos em Cuba. Em 1905, isto é, já durante a missão de Nabuco em Washington, Roosevelt criou um adendo à doutrina de Monroe pelo qual os EUA poderiam exercer um poder político internacional. Nesse mesmo ano ele ordenou a invasão da República Dominicana e de Cuba por motivos pouco convicentes e provocou uma revolução na Colômbia que resultou na indepedência do Panamá, o que lhe permitiria

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o início dos trabalhos de abertura do grande canal. A associação do Brasil a esse tipo de pan-americanismo não me parece ter sido uma ideia feliz e acredito que Nabuco foi ingênuo e acabou se tornando um instrumento da expansão política e comercial dos EUA no continente.5 Na escolha da sede da 3ª.Conferência Pan-Americana, Nabuco teve influência decisiva para que fosse realizada no Rio de Janeiro. Nabuco foi um dos presidentes da conferência no palácio Monroe, onde foi criada uma Secretaria das Repúblicas Americanas em Washington. A 11 de março de 1908 foi lançada a pedra fundamental da sede da União Pan-Americana, hoje Organização dos Estados Americanos, a tão discutida OEA, onde aliás tive o privilégio de representar o Brasil nos anos sessenta. Nabuco foi o principal orador da cerimônia e seu discurso é considerado modelar, talvez seu melhor texto produzido nos EUA. Nabuco discursou em diversas prestigiosas universidades norte-americanas, como Yale e Columbia, onde recebeu o título de doutor em Direito. Recusou convite de Rio Branco para integrar a delegação brasleira à conferência da paz na Haia, que seria chefiada pelo seu amigo Rui Barbosa, a quem no entanto ajudou indiretamente através de seus amigos norte-americanos. Sua conhecida vaidade não permitira que se contentasse em ser apenas o nº 2 da delegação. No entanto, representou o Brasil nas cerimônias da restauração da independência de Cuba em 1909. Nesse mesmo ano o embaixador do Brasil tivera de enfrentar uma importante questão comercial. O futuro chanceler Raul Fernandes, em sua palestra sobre Nabuco em 1927, no Instituto Histórico de São Paulo, assim comentou o impasse (páginas 21 e 22): “Em 1909 propõe-se no parlamento americano um imposto de importação sobre o café. O autor da proposta arguia que o imposto brasileiro de exportação praticamente recaia sobre o consumidor americano. Foi grande o alarme no Brasil. Nabuco multiplica-se em diligências para 5 – Roosevelt dizia “Speak softly and carry a big stick” (fale suavemente e leve um grande porrete).

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conjurar o perigo, representa oficialmente ao governo, vê deputados e senadores ou escreveu-lhes, declara-se pessoalmente em causa perante a opinião pública em seu país pela criação de uma taxa que não existia quando ele chegou ao seu posto e afinal ganha a partida.”

Nabuco foi um grande viajante não só na Europa quanto nos EUA, que visitou de trem de leste a oeste e regressou à capital atravessando o Canadá, o que naquela época era uma verdadeira expedição. Ao final de sua vida, Nabuco teve papel decisivo como mediador questão Alsop, firma norte-americana que detinha concessões minerais na Bolívia em área que havia passado para a administração do Chile. Em meados de 1909 ainda veraneou com sua família em uma praia perto da capital americana, mas a 17 de janeiro de 1910 viria a falecer em Washington com apenas 60 anos de idade. Faleceu de congestão cerebral, mas estaria sofrendo de uma enfermidade pouco comum, o que teria apressado a sua morte. Talvez para agradecer a contribuição de Nabuco à sua versão do panamericanismo, o presidente Theodore Roosevelt visitou a embaixada brasileira para apresentar seus respeitos e determinou que o cruzador norteamericano “North Carolina” trouxesse corpo de Joaquim Nabuco até o Rio de Janeiro, dois gestos excepcionais, sem dúvida. Depois de homenageado, Nabuco foi levado até o Recife pelo navio da Marinha nacional “Carlos Gomes”. Foi enterrado no cemitério de Santo Amaro, conforme seu expresso desejo. Hoje seu nome e a sua obra são permanentemente estudados e celebrados por uma importante fundação que leva o seu nome no Recife. No entanto, uma triste injustiça ocorreu depois de seu enterro: a viúva Evelina teve de lutar por longos meses para poder receber uma modesta pensão. Valeu-lhe o prestígio de seu amigo Rio Branco, que se empenhou junto ao próprio presidente Rodrigues Alves. As nações raramente demonstram gratidão aos familiares de seus próceres. —

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Gostaria de dizer mais algumas palavras em relação à ex-Guiana inglesa, cujos problemas territoriais não ficaram resolvidos em 1904 com a sentença do rei da Itália. No primeiro trimestre de 1960 o presidente Jânio Quadros tentou abrir uma janela para o Caribe: seu plano era comprar a Guiana francesa ao general De Gaulle, e provocar uma rebelião na Guiana holandesa sob o pretexto de que a região fora desenvolvida por judeus brasileiros e portugueses que deixaram Pernambuco depois da expulsão dos holandeses. A terceira etapa era a invasão simultânea da Guiana Essequiba por tropas brasileiras e venezuelanas. O processo foi iniciado em meados de 1960, e a embaixada do Brasil em Washington, onde eu trabalhava no momento, recebeu instruções para tomar contato com o vice-presidente da ALCOA, grande empresa americana que explora alumínio na Guiana holandesa, garantindo-lhe no futuro as mesmas vantagens operacionais que dispunha na colônia holandesa. A reação foi péssima, mas mesmo assim o comandante militar da Amazônia brasileira recebeu instruções oficiais para preparar a invasão das Guianas holandesa e inglesa. A renúncia de Jânio Quadros em agosto deixou em ponto morto aquela iniciativa descabida e não se falou mais no assunto. É provável que nosso tresloucado presidente tenha desejado recuperar a rica região dos Campos Gerais, perdida na decisão arbitral do rei da Itália em 1904. Com o assassinato do presidente Kennedy em 1963, o texano Lyndon Johnson assumiu a presidência dos EUA e foi reeleito em 1964. A Venezuela mantinha suas ambições históricas sobre o que chama até hoje de Guiana Essequiba. Através das companhias norte-americanas que exploram o petróleo na Venezuela, as autoridades de Caracas pressionaram fortemente o presidente Johnson para que ele revogasse uma decisão arbitral do presidente Theodore Roosevelt, que dera ganho de causa à Inglaterra, com prejuízo das pretensões venezuelanas. Em 1968 estava eu como chefe interino de nossa missão junto à OEA, quando recebi instruções para acompanhar de perto essas gestões venezuelanas junto ao presidente Johnson. Fiz camaradagem com o encarregado de negócios da Guiana, que ficara independente em 1960, e certo dia ele me telefonou pedindo-me que comparecesse à embaixada da R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (451):145-161, abr./jun. 2011

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Guiana, pois o primeiro-ministro Forbes Burnham estava em Washington e desejava conversar comigo. Ele teria importante entrevista com o presidente Johnson no dia seguinte sobre a questão da Guiana Essequiba. Aconselhei-o a sublinhar na entrevista que a eventual anulação da decisão arbitral de 1902 do presidente Theodore Roosevelt representaria uma verdadeira desmoralização de um importante presidente democrata, que ele Johnson, também democrata, não deveria fazer. Salientei também que a anulação dessa decisão arbitral poderia desencadear um verdadeiro pandemônio na América do Sul, já que os países que perderam outras decisões arbitrais certamente iriam reivindicar a revisão de fronteiras. Para o Brasil seria um desastre completo, pois provavelmente teríamos de enfrentar novas reivindicações da Argentina, Paraguai, Bolívia e Peru. Forbes Burnham gostou da minha argumentação e pediu-me que redigisse um projeto de memorando que ele entregaria ao presidente Johnson. Ele leu com atenção o meu curto texto de apenas uma página, fez algumas modificações e mandou datilografá-lo. Na tarde do dia seguinte, recebi telefonema jubilante do encarregado de negócios da Guiana me agradecendo efusivamente pelas sugestões que lhes dera. Ao ler o memorando, o presidente Johnson assegurou ao primeiro-ministro da Guiana que jamais revogaria a decisão arbitral de seu ilustre colega democrata Theodore Roosevelt. No dia seguinte minha mulher recebeu uma bonita cesta de flores com um cartão de agradecimentos do sr. Burnham e na mesma tarde, em reunião da OEA, o embaixador dos EUA piscou-me o olho dizendo “escrevendo memos o presidente Johnson, hein!” A embaixada guianesa estava cheia de microfones que gravaram toda a nossa conversa. Finalmente, poderia acrescentar que a questão da ex-Guiana inglesa talvez ainda não tenha acabado. O presidente Hugo Chavez da Venezuela está armando espetacularmente o seu país e talvez um de seus objetivos militares será ocupar a Guiana Essequiba. Ora, a frágil república da Guiana, ex-inglesa, membro das Nações Unidas, continua no Commonwealth britânico e, assim como a sra.Thatcher não hesitou em defender as ilhas Falklands (Malvinas) das ambições argentinas nos anos 80, tampouco o

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atual governo inglês dificilmente abandonará a ex-colônia, que continua membro da comunidade britânica. Quem viver, verá. Referência Bibliográficas CARVALHO E SOUZA, Odete de. Joaquim Nabuco, diplomata e geógrafo, Serviço de Publicações do MRE, conferência proferida do IHGB a 20 de agosto de 1949. FERNANDES, Raul – Joaquim Nabuco, diplomata, Serviço de Publicações do MRE. Conferência proferida a 28 de junho de 1927 no Instituto Histórico de São Paulo. O autor foi duas vezes chanceler do Brasil nos anos 40. MARIZ, Vasco – Temas da Política Internacional. Editora Topbooks, Rio de Janeiro, 2008. Relata o episódio da janela para o Caribe de Jânio Quadros. MENDONÇA, Renato de. Um diplomata na corte da Inglaterra. O barão de Penedo e sua época. Editora Bloch, Rio de Janeiro, 1968. NABUCO, Joaquim – Diários. Notas de Evaldo Cabral de Mello. 1ª. edição pela Editora Bem-te-vi, Rio de Janeiro, 2005, em dois volumes. A 2ª. edição, de 2009, saiu em um só volume. Curiosamente, faltam entradas em momentos importantes, mas é um bom documento sobre a vida de Nabuco. RIO BRANCO, Raul do. Reminiscencias do barão do Rio Branco, Livraria José Olympio, Rio de Janeiro, 1942. Editora, Rio de Janeiro, 1942.VIANA FILHO, Luiz – A vida de Joaquim Nabuco. Livraria Martins Editora, São Paulo, 1973. Excelente biografia. _______.- Rui & Nabuco (ensaios), Livraria José Oympio Editora, Rio de Janeiro, 1949. Contém episódios interessantes.

Texto apresentado em julho /2010. Aprovado para publicação em agosto /2010.

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JOAQUIM NABUCO E A CONFERÊNCIA DE PAZ DA HAIA DE 1907 Joaquim Nabuco and the 1907 Peace Conference in the Hague Antônio Celso Alves Pereira 1 Abstract: This article will discuss the role played by Joaquim Nabuco in the arrangements for, and development of the Second Peace Conference held in The Hague, Holland, 1907. At the time, Nabuco was the Brazilian Ambassador to the United States of America. As such, and due to his great prestige with President Theodore Roosevelt as well as with State Secretary, Elihu Root, he was initially invited by Baron of Rio Branco, Brazilian Chancellor2, to head the Brazilian delegation to the Conference. However, due to the harsh campaign against nis name, carried out by the newspaper Correio da Manhã, Nabuco ended up uninvited. Rui Barbosa was chosen as his replacement. Notwithstanding, Nabuco demonstrated grandeur, patriotism and high civic spirit, by helping Rui Barbosa to fulfill his mission, successfully and efficiently.

Resumo: No presente texto discute-se o papel desempenhado por Joaquim Nabuco na preparação e no desenrolar da Segunda Conferência de Paz realizada na cidade de Haia, Holanda, em 1907. Nabuco, à época, era embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Nessa condição, e por gozar de grande prestígio junto ao presidente Theodore Roosevelt e ao secretário de Estado Elihu Root, foi, inicialmente, convidado pelo Barão do Rio Branco, chanceler brasileiro, para chefiar a delegação brasileira à Conferência. Em consequência da contundente campanha empreendida pelo jornal Correio da Manhã contra a escolha do seu nome, Nabuco acabou desconvidado e, para seu lugar, foi escolhido Rui Barbosa. Apesar disso, Nabuco, demonstrando grandeza, patriotismo e elevado espírito público, atuou de forma eficiente e desinteressada para ajudar Rui a cumprir com êxito a alta missão. Palavras-chave: História do Brasil, História Diplomática do Brasil, Direito Internacional Público, Segunda Conferência de Paz da Haia, 1907.

Keywords: History of Brazil, History of Brazilian Diplomacy, International Public Law, Second Peace Conference in the Hague, 1907.

I O século XIX foi marcado, dentre outros, por dois acontecimentos da maior importância na história mundial: as unificações da Alemanha e da Itália, fatos que determinariam, no primeiro caso, o início do colapso do Império Austro-Húngaro e do prestígio francês, e, no segundo, o fim do poder temporal do Papado, com a incorporação dos Estados Pontifícios pelo novo reino da Itália. A nova configuração política da Europa, decorrente dos fatos mencionados, deslocara o eixo da disputa política 1 – Sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 2 –1Corresponding to the Office of Foreign Affairs (Translator’s note).

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que, praticamente, desde a consolidação dos grandes Estados nacionais no século XVI, marcara a vida política europeia, isto é, França versus Casa de Habsburgo, para França versus Alemanha. A disputa milenar entre França e Inglaterra superava-se diante das possíveis consequências da unificação alemã. Nas últimas décadas do século XIX, e nos primeiros anos do século XX, a Europa vivia tempos conturbados e de grande agitação política. Por um lado, prosperava no continente a crença no desenvolvimento fundamentado na ciência; por outro, era ampla a desconfiança entre as grandes potências, oriunda, sobretudo, da acirrada disputa colonial. Assim, tudo isso justificava, para os Estados sedentos de poder, a corrida armamentista em que estavam envolvidos, principalmente, o Império Alemão, que buscava, a qualquer custo, compensar os prejuízos de toda a ordem que julgava sofrer em decorrência de sua unificação tardia. Nesse período em destaque ocorreram consideráveis avanços no aperfeiçoamento dos armamentos, sobretudo, da artilharia. As grandes potências estavam todas preocupadas com novo canhão de 77 milímetros, modelo 1896, que fazia até dez disparos por minutos enquanto os modelos anteriores disparavam, no máximo, dois tiros por minuto. A Alemanha ampliava seus projetos de construção naval, numa tentativa de quebrar a hegemonia da Inglaterra nos mares. Agravando a instabilidade do sistema internacional eurocêntrico, nas últimas décadas do século XIX e primeiros anos do século XX, o terrorismo individual ou de pequenos grupos ideológicos alarmava as autoridades nas principais capitais do mundo. Diferente do terrorismo de massa dos dias de hoje, era, contudo, um fenômeno interno, portanto, espacialmente limitado. Constituía-se em ações desesperadas e violentas, praticadas por grupos e, às vezes, por indivíduos isoladamente, com a finalidade de derrubar um regime político, eliminar pessoas e governos tirânicos, ou, como pretendiam os anarquistas, negar todos os valores estabelecidos, suprimir todo e qualquer tipo de autoridade, em suma, liquidar com o Estado e a propriedade. Tratava-se, pois, de grupos ideologicamente definidos, e que, a exemplos de todos os outros grupos radicais da época,

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como os de inspiração nacionalista, cometiam atentados apenas contra as autoridades públicas; não era o assassinato aleatório do terrorismo de hoje, cuidavam mesmo para que seus atos violentos não atingissem e não causassem danos colaterais à população. Foi com esse espírito que, de 1865 a 1914, nacionalistas e anarquistas mataram reis, presidentes, primeiros-ministros e outras autoridades em vários países da Europa e nos Estados Unidos. O sistema internacional dessa época, fundado no equilíbrio de poderes, diante da mencionada corrida armamentista e da competição imperialista, dava claros sinais de esgotamento. Era, portanto, fundamental criar condições para manter o diálogo entre as grandes potências e, com isso, evitar que as disputas por prestígio, poder militar e por vantagens de toda a ordem na exploração colonialista levasse, naquele momento, a Europa à guerra. A solução imediata foi a convocação de uma Segunda Conferência de Paz, com o objetivo de se encontrar, pelo diálogo diplomático, saídas para a crise e resolver questões pendentes da agenda da Primeira Conferência de Paz, que se realizara, na Haia, em 1889.

II Coube ao czar da Rússia, Nicolau II, a iniciativa de promover, em 1899, a Primeira Conferência de Paz da Haia. Seu ato seguia a tradição dos imperadores Romanoff de convocar conferências internacionais reunindo as grandes potências europeias. Vale lembrar que o czar Alexandre I foi um dos fundadores da Santa Aliança, em 1816, e Alexandre II, em 1874, convocou a Conferência de Bruxelas que, pela primeira vez, tentou normatizar a guerra terrestre. Nos termos da Nota enviada pela chancelaria russa a todos os Estados com representação diplomática em São Petersburgo, o Czar Nicolau II convidava-os a buscar “mediante uma discussão internacional, os meios mais eficazes para assegurar a todas as nações os bens de uma paz real e duradoura e, da mesma forma, pôr fim ao progressivo desenvolvimento dos armamentos”. Vinte e seis Estados compareceram à Primeira Conferência – vinte europeus, dois americanos (Estados Unidos e México), quatro asiáticos (China, Japão, Pérsia (Irã) e Sião (Tailândia). R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (451):163-179, abr./jun. 2011

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Essa cimeira teve início em 18 de maio de 1899, dia do aniversário do Czar, e encerrou suas atividades em 29 de julho de 1899. Não conseguiu avançar na proposta de desarmamento e nem na questão da limitação de novos armamentos. Contudo, aprovaram-se normas internacionais de humanização da guerra, ou seja, de Direito Internacional Humanitário, e três convenções, sendo que uma, sobre a solução pacífica das controvérsias internacionais, previa a criação de um Tribunal Permanente de Arbitragem, com sede na Haia. A Alemanha conseguiu excluir das discussões a arbitragem obrigatória. A segunda convenção consistia na aplicação à guerra naval da Convenção de Genebra de 1864; e a última aprovou o Regulamento sobre leis e costumes relativos à guerra terrestre. Este último documento constituiu o primeiro grande instrumento de direito internacional dos conflitos armados a ser ratificado por um considerável número de Estados. Foi esse, em linhas gerais, o saldo da Primeira Conferência de Paz da Haia. No verão de 1904, no Congresso da União Interparlamentar da Paz, realizado nos Estados Unidos, aprovou-se uma resolução, apresentada por um delegado norte-americano, na qual se pedia ao presidente dos Estados Unidos que patrocinasse uma Segunda Conferência de Paz na cidade da Haia, onde se poderia tentar, pela via diplomática, conter a corrida armamentista e obter um compromisso das grandes potências em relação à paz. Em razão disso, o então presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, resolveu convocar a Segunda Conferência de Paz. Os Estados Unidos, no final do século dezenove, emergiam como grande potência. Sua economia superava a inglesa em muitos setores. A indústria manufatureira norte-americana era pouco menor que a da Europa Ocidental, considerada em seu conjunto. Responsáveis por 40% da produção mundial de ferro e aço os norte-americanos, àquela altura, já dominavam a economia capitalista. Como se sabe, a partir de 1898, o país entrara, de forma definitiva, no clube imperialista, com sua vitória sobre a Espanha em Cuba, a anexação do Havaí e das Ilhas Guan. Chegava à China por meio da política de “portas abertas” do secretário de Estado John Hay e, com isso, ampliavam as rendosas possibilidades do comércio

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asiático inauguradas, em 1854, pelo Tratado de Kanagawa, acordo celebrado entre os Estados e o Japão pelo comodoro Mattew C. Perry. Como se sabe, anos antes, impulsionados pela mística do destino manifesto, os norte-americanos conseguiram, pela força, conquistar quase metade do território mexicano com a anexação do Texas e a incorporação dos territórios que hoje compreendem os Estados de Utah, Califórnia, Novo México, Arizona e parte do Colorado. Muito a contragosto dos europeus, o presidente Theodore Roosevelt exigia a presença dos Estados Unidos nas grandes decisões mundiais. O primeiro Roosevelt, o homem do big stick, era um falcão pragmático, que, sem hipocrisia, e sem arroubos salvacionistas, afirmava que os EUA eram uma potência como outra qualquer, que não devia e nem podia ser a encarnação singular da virtude. Portanto, era seu direito participar das grandes decisões internacionais e defender os interesses políticos e econômicos do seu país. Nessa altura, não somente os Estados Unidos desafiavam o chamado Diretório Europeu. Os Japoneses, mirando-se na humilhação que a China sofrera na Guerra do Ópio, perceberam que sua sobrevivência nacional dependia da obtenção das conquistas científicas e tecnológicas, que davam suporte militar e econômico aos Estados imperialistas do Ocidente. Assim, confiando no poder transformador da educação, a partir de 1850, o Império do Japão empreendera um radical programa de modernização que, em poucas décadas, permitiu-lhe meter o pé na porta do clube imperialista, vencer a Rússia numa guerra integralmente moderna, em 1905, e transformar-se numa grande potência. No início do ano de 1905, o Departamento de Estado dos Estados Unidos enviou a diversos países convites para a realização de uma Segunda Conferência Paz na cidade de Haia. A proposta teve boa receptividade, com respostas favoráveis, porém, quase todas, com a ressalva de que a Conferência só deveria começar uma vez terminada a guerra russo-japonesa, deflagrada em 1904. Os dois impérios disputavam, nesse conflito, os territórios da Manchúria e da Coreia. Superada esta questão, com a mediação do presidente norte-americano, selou-se, na Conferência

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de Portsmouth, Virginia (9 de agosto a 5 de setembro de 1905), a paz entre russos e japoneses. Nessa altura, o Czar Nicolau II, cuja Marinha de guerra fora completamente destroçada pelos japoneses no estreito de Tsushima, em 1905, e já enfrentava a onda revolucionária que anos depois acabaria por executá-lo e a toda a sua família, buscava recuperar o prestígio internacional da Rússia. Para isso, em setembro de 1905, solicitou ao presidente dos Estados Unidos que a ele fosse deixada a iniciativa de organizar a conferência proposta. Como a reunião se daria novamente na Haia, o convite seria compartilhado pela rainha da Holanda. A ideia inicial era convocar a Conferência para a segunda quinzena de 1906. O governo brasileiro fez chegar ao Czar e à Rainha da Holanda, com anuência dos Estados Unidos, que o Brasil e os demais Estados americanos não poderiam comparecer à Conferência naquela data, em razão de estar fixado, desde dezembro de 1905, o dia 21 de julho de 1906, para a inauguração da III Conferência Internacional Americana, que seria realizada no Rio de Janeiro. Atendendo aos Estados americanos, os organizadores da Segunda Conferência marcaram o evento para o período compreendido entre 15 de junho e 18 de outubro de 1907. Para a Segunda Conferência de Paz foram convidados 44 países, que foram representados por 256 delegados, número significativamente maior de Estados do que o evento de 1899. Graças aos esforços e às pressões dos norte-americanos, 18 Estados latino-americanos foram convidados. Considerando as mudanças que se operavam no mundo naquela época, principalmente a expansão imperialista e a redefinição do equilíbrio de forças entre as grandes potências, o Brasil, para defesa de seus interesses, implementara, com o advento da República, uma nova política externa, que levava na devida conta a realidade do novo quadro mundial e, assim, como prioridade, redimensionava suas relações com os Estados Unidos. Não se pode esquecer que os norte-americanos, desde 1865, eram os maiores importadores do café brasileiro. A nova política externa brasileira elegia também como prioridade estreitar laços políticos com os nossos vizinhos sul-americanos, uma vez que era urgente solucionar definitivamente as questões pendentes relativas às nossas fronteiras. A política de

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estreitamente de relações com os Estados Unidos, é bom lembrar, causou forte reação em alguns setores da vida nacional. Os monarquistas, contrariados com a mudança da política externa e, sobretudo, com a nova postura em relação aos Estados Unidos, idealizada nos primeiros dias da República por Quintino Bocaiúva e pelo ministro plenipotenciário nos Estados Unidos, Salvador de Mendonça (representou o Brasil em Washington de 1890 a 1898), reagiram de forma contundente. Eduardo Prado, em 1893, em A Ilusão Americana, manifesta seu inconformismo com os rumos da política externa da República. Esse livro foi, à época, apreendido pelo governo. Joaquim Nabuco, reagindo também ao abandono das tradições europeístas da política externa do Império, em posição frontalmente contrária ao pan-americanismo que assumiria nos anos seguintes, em sua obra Minha Formação (1900), expressa que “não existe ainda o menor sinal de que a elaboração do destino humano ou a revelação superior feita ao homem tenha um dia que passar pelos Estados Unidos. A sua missão na história é a mais absoluta incógnita”.3 Vale acrescentar que os monarquistas não esqueciam os incidentes entre o Brasil e os Estados Unidos ocorridos, em 1850, em razão das demandas norte-americanas pela abertura da navegação do Rio Amazonas. É bom também acentuar que a política externa imperial, pragmaticamente, reconhecia a importância de manter um relacionamento cordial e comercialmente proveitoso com os Estados Unidos. Em 26 de abril de 1849, Teixeira Macedo, de Washington, escrevia ao Marquês de Olinda, Chefe do Gabinete e Ministro do Exterior do Império: “Precisamos ser muito cuidadosos para evitar que os Estados Unidos pensem que, por causa de nossas relações próximas com os hipanoamericanos, isso signifique que estejamos numa liga contra eles. Não devemos sacrificar a amizade de uma potência importante, cujas relações comerciais são vantajosas para nós, para jogar nosso bem-estar em futuras alianças de importância duvidosa.”4 3 – Ver NOGUEIRA, Marco Aurélio. O Encontro de Joaquim Nabuco com a Política – As desventuras do Liberalismo. São Paulo, Paz e Terra, 2010, pp. 266/267; 4 – RODRIGUES, José H. Fundamentos da Política Externa Brasileira. In: O Barão do Rio Branco por Grandes Autores. FRANCO, Álvaro da Costa e CARDIM, Carlos H. Organizadores. Rio de Janeiro: Funag/EMC, 2003, pp. 132/133.

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Nesse contexto, vale a lembrança da visita de D. Pedro II aos Estados Unidos, em 1876. Segundo o historiador norte-americano Bradford Burns, a viagem foi muito positiva e abriu portas para futuros entendimentos entre os dois países. “O Imperador descobriu o vizinho setentrional do Brasil, e vice-versa. Norte-americanos curiosos receberam o imperador-filósofo dos trópicos. Um imperador, igualmente curisoso, examinou o florescente colosso norte-americano. Ambos gostaram do que viram, e a visita de D. Pedro II foi um grande sucesso. Tomando maior consciência um do outro, os dois países fizeram vistas grossas para as dificuldades passadas.”5

Apesar disso, de uma balança comercial altamente favorável ao Brasil – os americanos respondiam por 28% das nossas exportações – até o advento da República, para a política externa imperial, as relações políticas com os Estados Unidos estavam em segundo plano, pois a prioridade eram os negócios com a Europa. Ainda em relação ao livro de Eduardo Prado, Joaquim Nabuco, mais tarde convertido a um radical monroismo,6 apontava tratar-se de “um livrinho que nos faz muito mal, entretém no espírito público a desconfiança” contra os Estados Unidos “nosso único aliado possível”.7 Em 1902, o presidente Rodrigues Alves nomeou o Barão do Rio Branco seu ministro das Relações Exteriores. O Barão, monarquista como 5 – BURNS, E. Bradford. As Relações Internacionais do Brasil durante a Primeira República. In: História Geral da Civilização Brasileira – III O Brasil Republicano 2 – Sociedade e Instituições (l889/1930). Rio de Janeiro: Difel, 1978, p. 378. 6 – Registra Vasco Mariz que, em 1905, isto é, já durante a missão de Nabuco em Washington, Roosevelt criou um adendo à doutrina de Monroe pelo qual dos EUA poderiam exercer um poder político internacional. Nesse mesmo ano ele ordenou a invasão da República Dominicana e de Cuba por motivos pouco convincentes e provocou uma revolução na Colômbia que resultou na independência do Panamá, o que lhe permitira o início dos trabalhos de abertura do grande canal. A associação do Brasil a esse tipo de pan-americanismo não me parece ter sido uma ideia feliz e acredito que Nabuco foi ingênuo se tornando instrumento da expansão política e comercial dos EUA no continente. MARIZ, Vasco. Joaquim Nabuco, o Diplomata. In: Carta Mensal, nº 665, agosto de 2010. Rio de Janeiro: Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, 2010, pp.15/16. 7 – NOGUEIRA, op. cit. p. 273.

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Nabuco, mas também devotado ao seu país e à sua gente, continuava a servir a República, agora em seu mais alto posto diplomático. Arno Wheling, em excelente estudo intitulado Visíon de Rio Branco: El Hombre de Estado y los Fundamentos de su Política, ao destacar os fundamentos da política externa implementada por Rio Branco, registra que De Gaulle, “abre seu livro de memória falando de ‘certa idéia de França’, que sempre o perseguiu, também o Barão do Rio Branco manifestava uma ‘certa idéia de Brasil”. Ele a exteriorizou em várias ocasiões, assim como no discurso pronunciado no Club Naval em 1º de decembro de 1902, em sua chegada ao Rio de Janeiro para assumir o Ministério, quando afirmou que ‘chegava para servir o país, que todos desejamos ver unido, íntegro, forte e respeitado.”8

A política externa implementada pelo Barão buscava fortalecer o poder nacional e ampliar a inserção internacional do Brasil. A Chacelaria brasileira recebeu, com satisfação, o convite para que nosso país participasse da Segunda Conferência de Paz da Haia. Ao contrário do que acontecera em 1899, ocasião em que o governo brasileiro resolveu não comparecer à Primeira Conferência, sob a alegação de que, por solidariedade continental, não concordava que somente Brasil, Méxito e Estados Unidos fossem os únicos convidados do Continente Americano, agora era participar ativamente, de modo firme, não caudatário, portanto, plenamente independente, na Conferência de Paz. Nessa reunião internacional o Brasil podia passar ao mundo os fundamentos da política externa da República, centrada no respeito ao direito internacional e na solução pacífica das controvérsias. Para tanto, o Barão precisava indicar ao presidente Afonso Pena um nome de grande prestígio nacional, social, intelectual e político, para chefiar a delegação brasileira. Como extraordinário político, Rio Branco sabia que era essencial manter, ao lado dos princípios que fundamentavam a nova política externa, uma adequada dose de pragmatismo, que se expressava, conforme Arno Wehling, na “consciência do 8 – WEHLING, Arno. Visíon de Rio Branco: El Hombre de Estado y los Fundamentos de su Política. In: Rio Branco – América del Sur y la Modernización del Brasil. CAR���� DIM, Carlos Henrique e ALMINO, João – Organizadores. Rio de Janeiro: EMC Edições, 2003, pp. 107/108.

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limite das ambições políticas do país”, e, ainda mais, considerar, numa perspectiva realista, nas “condições objetivas de cada situação”. Contudo, sua concepção da Realpolitick, ao contrário dos exemplos europeus, se pautava por critérios éticos e jurídicos bastante explícitos.9 III Foi com base nesses princípios que Rio Branco convidou Joaquim Nabuco para chefiar a delegação brasileira à Segunda Conferência de Paz da Haia. Nos critérios de Rio Branco, Nabuco era um nome natural para a missão. O Barão tinha consciência de que os Estados Unidos teriam participação e liderança destacada na Conferência. Nabuco, embaixador em Washington, amigo pessoal do presidente Theodore Roosevelt e do secretário de Estado Elihu Root, era, para ele, o nome ideal. Reunia todas as condições intelectuais e políticas para o êxito da importante missão. No contexto, ainda a considerar, o fato de que o presidente Afonso Pena, outro monarquista que servia com grande competência e correção à República ocupara, na monarquia, por três vezes, o cargo de ministro e fora Conselheiro do Império tinha Nabuco no rol dos seus melhores amigos. Eram da mesma geração. Afonso Pena nascera em 1847 e Nabuco em 1849. Pode-se mesmo dizer que Nabuco era íntimo de Afonso Pena. Logo após o término da III Conferência Americana, realizada no Rio de Janeiro, em 1906, reunião internacional que Joaquim Nabuco presidira com brilhantismo, e na qual, pela primeira vez, um Secretário de Estado participava fora dos Estados Unidos, cansado do esforço empreendido para a concretização e êxito do evento, foi descansar em Belo Horizonte, a convite do presidente-eleito Afonso Pena, que o hospedou em sua casa e, nessa oportunidade, teria convidado Nabuco para assumir o Ministério das Relações Exteriores. Ele prontamente agradeceu e recusou o convite, sugerindo ao futuro presidente a manutenção do Barão no ministério. Como ficou dito, Nabuco era monarquista convicto. Por ideologia e por gratidão mantivera-se, até sua morte, fiel à ideia monárquica. Como jogara tudo, e se entregara, como poucos, à causa da abolição, era grato 9 – WEHLING, op. cit. p. 109.

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à princesa Dona Isabel pela Lei Áurea. Seus amigos, como o Barão do Rio Branco, viam com tristeza seu afastamento da vida pública, a partir da queda do Império. Em 1899, o presidente Campos Sales e seu ministro do Exterior, Olinto de Magalhães, resolveram convocar Nabuco para voltar ao serviço do Brasil. O governo requeria sua ação e competência na defesa dos nossos interesses no contencioso fronteiriço que mantínhamos com a Inglaterra, em relação à Guiana. Joaquim Nabuco, após ouvir amigos, movido pelo espírito público, aceita o convite presidencial e, assim, ingressa no serviço diplomático da República. Sua concordância em voltar à vida pública, assinalam seus biógrafos, foi movida pelos seguintes motivos: em primeiro lugar, não podia faltar à convocação do seu país, pois estava em jogo altos interesses do Brasil, na questão da Guiana, que seria resolvida pela via arbitral; por outro lado, a atividade diplomática não exigiria dele qualquer participação partidária, uma vez que implicava, de forma estrita, negócios e políticas de Estado. O Visconde do Rio Branco, a quem Joaquim Nabuco muito admirava, em 1868, destacando a natureza do serviço diplomático, dizia: “País regularmente constituído e civilizado como o nosso não pode sujeitar sua política externa aos vaivéns da política interna....(...) Uma vez que o diplomata tenha ilustração, habilidade, experiência dos negócios e lealdade, pode servir com qualquer Ministério, a cor política do Ministério não o inabilita para servir bem ao seu Pais.”10

Como se sabe, apesar da competente e irretocável ação de Nabuco na questão da Guiana, e do reconhecimento geral sobre a inquestionável procedência e legitimidade de nossos direitos, acabamos perdendo a causa, em razão do servilismo, e por que não dizer da desonestidade do árbitro, o rei da Itália, Vittorio Emanuele, que decidiu favoravelmente à Inglaterra. Sobre esse assunto, citando Luis Viana Filho, Vasco Mariz informa que o monarca italiano assim agira, segundo suas próprias palavras, porque “não podia fazer uma coisa desagradável à Inglaterra”.11 10 – Ver NOGUEIRA, p. 255. 11 – MARIZ, Vasco. Joaquim Nabuco, o Diplomata. In: Carta Mensal, nº 665, agosto de 2010. Rio de Janeiro: Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, 2010, p.10.

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O interesse da imprensa e do público pela participação do Brasil na Segunda Conferência de Paz levou o Correio da Manhã a abrir uma contundente campanha, que teve ampla repercussão, pela designação do vice-presidente do Senado Federal, Rui Barbosa, para a chefia da delegação brasileira. Em sua edição de 14 de janeiro de 1907, em editorial estampado na primeira página, intitulado O Brasil na Haia, o Correio da Manhã faz duras críticas à indicação de Nabuco para chefiar a nossa delegação. Desmerece, de forma injusta, a sua atuação na III Conferência Americana, afirmando que ele não proferira no evento os discursos mais significativos, o que não era verdade, e que a “única ideia pessoal que defendeu, a da exclusão dos representantes da imprensa nas reuniões da Conferência, os delegados rejeitaram-na por grande maioria”. Segue afirmando que o discurso proferido por Nabuco em um dos eventos sociais da III Conferência Americana, o banquete no Cassino Fluminense, só fora significativo num ponto, ou seja, “na sem-cerimônia com que Sua Excelência se despediu dos seus últimos escrúpulos de charrete literário da causa monárquica”. E, de forma cruel, ataca: “o Senhor Joaquim Nabuco (...) já não é o homem brilhantíssimo e a intelectualidade superior que todos habituaram a acatar com uma das mais nobres que se tenha jamais orgulhado o Brasil. Um grave defeito físico, a surdez, dolorosamente insanável e de efeitos desoladores impedia-lhe, de modo absoluto, de ouvir o que se passava na sala (da Conferência)”. Por fim, com ironia, assevera o editorial: “Se esse defeito não o torna incompatível com a carreira diplomática – no bom sentido clássico da diplomacia, a surdez pode parecer até uma superior elegância – é visível que o incompatibiliza com os trabalhos de um congresso, em que todas as nações do mundo fazem timbre em ser representadas pelo escol dos seus homens de intelectualidade ativa e eficiente, a ponto que se anuncia que a Inglaterra o será pelo próprio Senhor Campbell Bannermann, primeiro-ministro do gabinete atual. (...) Onde o Senhor Nabuco não pode ir, ou não convém que vá, o Brasil pode mandar outros homens de igual valor, de não menos brilhante tradição, e fisicamente capazes de desempenhar, à perfeição, o seu mandato. Basta por todos o nome do Senhor Rui Barbosa, (...) O que não é possível, o que não é admissível, é que o Brasil possa ser

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representado na Haia pelo Senhor Joaquim Nabuco. Cabe ao governo providenciar em tempo para que a nossa delegação na Conferência da Haia não fique acéfala e ineficaz.”

Rio Branco, diante da insidiosa e injusta campanha do Correio da Manhã contra Joaquim Nabuco, resolveu recuar e apresentar o nome de Rui Barbosa ao presidente Afonso Pena, para chefiar a delegação brasileira, sem, contudo, retirar o nome de Nabuco. Gilberto Freyre, em Ordem e Progresso12 afirma que o Barão, de fato, desejava que Nabuco fosse o escolhido. Segundo ele, Rio Branco, “quando senhor quase absoluto do Itamaraty, procurou cercar-se de homens não só inteligentes, cultos e políticos, como altos, belos eugênicos: homens que, completados por esposas formosas, elegantes e bem vestidas, dessem aos estrangeiros a ideia de ser o Brasil – pelo menos sua elite – país de gente sã e bem conformada.13 Por aí, se procedente a crítica de Gilberto Freyre, Nabuco, belo, culto, prestigiado nacional e internacionalmente, era, para o Barão, sem dúvida, o nome ideal para a missão. Procurando, de toda a forma, contar com Nabuco na Haia, Rio Branco propõe uma delegação com dois embaixadores: telegrafa a Nabuco: “Já houve ministério das águias, poderíamos ter ali delegação das águias.” Nabuco e Rui eram grandes amigos. Ambos nasceram em 1849 e, conforme Luiz Viana Filho,14 em muitas situações, lado a lado, “manejaram as mesmas armas – a palavra e a pena – e era perfeita e recíproca a admiração de um pelo outro”. Reagindo à insistência do Barão em convencê-lo a fazer dupla com Rui na Haia, Nabuco, em carta a Graça Aranha, assevera: “Por mais que eu deseje dar ao Rui essa prova de amizade e confiança. por mais que me custe não estar com ele na Europa... não posso ir a Haia como segundo e ele só poderia ir como primeiro... E depois o presidente da Conferência Pan-Americana do Rio, segundo na delegação do Brasil a Haia, que desprestígio para aquela Conferência.” Mas, para ficar bem com o amigo, envia a Rui o seguinte telegrama: “Saúde obriga-me a declinar, mas estarei em pensamento ao seu 12 – CARDIM, Carlos Henrique. A Raiz das Coisas – Rui Barbosa: o Brasil no Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 96. 13 – CARDIM, A Raiz das Coisas, p. 96. 14 – Ib., p. 102.

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lado, orgulhoso ver Brasil assim representado entre as nações. Muitos, muitos parabéns. Joaquim Nabuco.”15 O Presidente Afonso Pena, em 27 de fevereiro de 1907, designou Rui Barbosa para a alta missão na Haia. O Barão, pessoalmente, levara o convite, subindo até Petrópolis, à casa de Rui, no Largo D. Afonso. No primeiro momento, Rui hesitara em aceitar. Pediu tempo e acabou levando 42 dias para dar a resposta afirmativa. Em carta ao Barão, datada de 31 de março, declara sua aceitação, apontando que a missão era, “de natureza tão especial e tão extraordinariamente elevada”, deixando evidente a sua convicção de que “a incumbência melhor estaria confiada só aos talentos e dotes singulares do Senhor Joaquim Nabuco”16. É interessante citar o estado de espírito de Rui Barbosa ao firmar e entregar o documento aceitando sua indicação. Em suas palavras: “Lembro-me que era domingo, e que, ao entregar meu compromisso, uma banda, que tocava ali perto, no pavilhão do largo, encetou a música dolorosa da Tosca, na ocasião em que se aproxima o desenlace trágico da partitura, e que essa coincidência, notada por mim aos circunstantes, despertou no meu espírito, assustado com a hipótese de um desastre na empreitada, cuja responsabilidade acabava de assumir, impressões supersticiosas.”17

De posse da aceitação de Rui, o presidente Afonso Pena o nomeia, em 27 de abril de 1907, “Delegado do Brasil à Segunda Conferência de Paz da Haia”.18 Joaquim Nabuco, pelo o que nos indica a sucessão dos 15 – Ib., pp. 93/103. 16 – ACCIOLY, Hildebrando. O Barão do Rio Branco e a Segunda Conferência da Haia. In: O Barão do Rio Branco por grandes autores. FRANCO, Álvaro da Costa e CARDIM, Carlos Henrique. Rio de Janeiro: EMC, Ed. 2003, pp. 83/84. 17 – CARDIM, A Raiz das Coisas, p. 94. 18 – Não somente o Correio da Manhã defendia o nome de Rui para chefiar a delegação brasileira na Haia. Como informa CARDIM, no citado A Raiz das Coisas, p. 99, “Oliveira Lima, no livro Pan-americanismo (1907), promove o nome de Rui para representar o Brasil em Haia, nos seguintes termos: (...) Um Rui Barbosa ali saberia dar o maior relevo ao seu nome, e em tal caso ao seu país, porque se os banquetes diplomáticos, por mais estrondosos, não aumentam o lustre nacional, as manifestações intelectuais de valor contribuem decididamente para semelhante brilho. Por isso, não mandem, pelo amor de Deus, um que da ciência diplomática só haja aprendido o capítulo festeiro.”

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fatos, demonstrando espírito público e amor ao Brasil, não manifestou, publicamente, desapontamento ou mágoa pela escolha de Rui. Pelo contrário, embora não aceitando fazer parte da delegação, embarcou para a Europa com o objetivo de preparar o ambiente e a recepção a Rui Barbosa. Uma vez na Europa faz, a amigos europeus e norte-americanos, elogiosas referências a Rui. “Interessa-se pela missão do companheiro como se fora sua.”19 Em 13 de junho de 1907, Nabuco envia a Rui correspondência confidencial aconselhando-o a agir sem considerar as regras “tolas e anacrônicas” da atividade diplomática, uma vez que ele, por não ser diplomata de carreira, não devia se prender a tais expedientes, e que lhe cabia atuar como o estadista que era, enfim, “dar vazão a seu perfil de político”.20 A Segunda Conferência de Paz foi inaugurada no dia 15 de junho de 1907 na sala dos Cavaleiros, no Palácio de Binnenhof, na Haia. O Barão do Rio Branco, compreendendo a importância da Conferência para a projeção do Brasil, empenhou-se pessoalmente na preparação de todos os meios possíveis para o bom êxito e o brilho da delegação brasileira. Durante todo o período da Conferência, isto é, de 15 de junho a 18 de outubro de 1907, nosso Chanceler foi incansável na orientação da delegação brasileira. Suas instruções para Rui Barbosa eram diárias, minutadas por ele próprio. Essa assistência incansável pode ser avaliada consultando-se os 170 telegramas enviados à chefia da Delegação pelo próprio Barão. É interessante salientar que os cuidados do Barão pelo bom êxito da missão brasileira na Haia não se limitavam às funções normais da Chancelaria. “Assim, pois, em telegramas à nossa Legação na Haia e à nossa Delegação à Conferência, recomendava aos Secretários brasileiros que procurassem correspondentes de jornais estrangeiros e fossem amáveis com eles.” Joaquim Nabuco, de forma generosa, demonstrando grandeza, usando seu prestígio pessoal, em gestão bem-sucedida junto ao Departamento de Estado dos Estados Unidos, conseguiu a indicação de Rui para a presidência de honra da Primeira Comissão, uma das quatro que foram 19 – CARDIM, pp. 100. 20 – Ib., p. 101.

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compostas para abrigar os vários temas da pauta da Conferência. Além disso, empenhou-se, durante e após o término da Segunda Conferência, para contornar, junto à delegação norte-americana e ao Departamento de Estado, as discordâncias e a oposição do Brasil manifestada com veemência por Rui Barbosa, em relação à posição dos Estados Unidos em várias matérias discutidas e votadas na Conferência, sobretudo na questão da composição do Tribunal Permanente de Justiça, proposto pelos Estados Unidos. A criação dessa Corte era o principal projeto da delegação norte-americana. O Departamento de Estado estava vivamente empenhado em sua aprovação. Tratava-se de uma Corte diferente do Tribunal criado na Primeira Conferência de Paz, que, de fato, não era um Tribunal, e sim uma mera lista de possíveis árbitros. A Corte proposta teria dezessete juízes residentes na Haia, que seriam bem remunerados, e funcionaria nos moldes da Suprema Corte dos Estados Unidos. Acusando a proposta de injusta, em consequência da forma como se daria a escolha dos juízes, Rui, com muita coragem e competência, conseguiu a adesão dos chamados países fracos, sobretudo dos latino-americanos, à sua tese de igualdade jurídica dos Estados e de pronta rejeição da proposta norte-americana, nos termos em que fora apresentada. O projeto norte-americano estipulava que as grandes potências, Alemanha, Estados Unidos, Áustria-Hungria, França, Grã-Bretanha, Itália e Rússia teriam acentos permanentes e os demais países, trinta e oito, teriam assentos rotativos por períodos mais longos ou mais curtos e, no caso, deveriam ser observados critérios relativos à população, à indústria e ao comércio de casa país; por exemplo: Espanha, Holanda e Turquia, seus juízes teriam mandato de dez anos; Brasil, Argentina, Bélgica, Chile, Dinamarca, Grécia, México, Noruega, Portugal, Romênia, Suécia e Suíça, quatro anos; os demais Estados apenas um ano. Em suma, seria, de certa foram, uma composição parecida com a verticalidade do atual Conselho de Segurança. A historiadora norte-americana Bárbara Tuchman, em seu livro, A Torre do Orgulho, ao comentar esse episódio da Segunda Conferência, ataca a posição brasileira e, especialmente, a atuação de Rui Barbosa:

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“A proposta americana para um Tribunal Permanente seria alvo de uma forte oposição. Um dos obstáculos era a insistência do Brasil no sentido de que todos os quarenta e quatro países nele estivessem representados. A idéia de as decisões serem tomadas por Estados decadentes do Oriente, como a Turquia ou a Pérsia, ou por um advogado de meia-casta da América do Sul, segundo as palavras de um comentador, desgostava as maiores potências européias.”21

Não está entre os objetivos do presente texto discutir a atuação de Rui na Segunda Conferência de Paz. Assim, para encerrar, volto ao meu tema, isto é, a questão do convite e a participação de Joaquim Nabuco na Segunda Conferência de Paz da Haia. Pressões insidiosas do Correio de Manhã, problemas de saúde, talvez o sempre confessado fervor monarquista, tudo isso, certamente, se alinhou, na agitada primeira década do século XX, para impedir que o notável brasileiro fosse, apesar do convite inicial, designado chefe da delegação brasileira à Segunda Conferência de Paz da Haia de 1907. Mas, nesse contexto, não se pode ignorar a grandeza, o inquestionável amor ao Brasil, a correta e irretocável atitude de Joaquim Nabuco, diante de tudo que sofrera nesse episódio marcante da nossa história republicana, além, evidentemente, dos conselhos e da sua ação, junto à delegação norte-americana, para auxiliar o amigo Rui Barbosa em sua bem-sucedida missão diplomática, na Haia, em 1907. Texto apresentado em janeiro /2011. Aprovado para publicação em fevereiro /2011.

21 – TUCHMAN, Barbara. A Torre do Orgulho – Um retrato do mundo antes da Grande Guerra – 1890-1914.Tradução de João Pereira Bastos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 406.

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“Dano e prejuízo da Fazenda Real” Capitania do Rio de Janeiro

ou a dinâmica dos processos de arrematação na

“DANO E PREJUÍZO DA FAZENDA REAL” ou a dinâmica dos processos de arrematação na Capitania do Rio de Janeiro “Damages and Losses of the Royal Treasury”, or the dynamics of the collection of duties in Colonial Rio de Janeiro Marcos Guimarães Sanches 1 Resumo: Os dízimos foram o tributo mais importante e universal tributo do período colonial, no sentido que o Direito Tributário do nosso tempo lhe atribui, tendo sua arrecadação definida desde o os Regimentos do Provedor-mor e dos Provedores de Fazenda (1548) e dos Dízimos (1577), incidindo de modo particular sobre o açúcar, mas extensivo a todas as produções. Baseado no sistema de arrematação, o exercício do fiscus foi exercitado pelos colonos, dentro da lógica da administração fazendária do Estado moderno. A série de contratos da Capitania do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVII é representativa da complexidade das relações coloniais, indicando a permanente tensão entre o esforço fiscal da metrópole, numa conjuntura de crise, e as resistências coloniais, muitas vezes decorrentes da real impossibilidade de quitar as obrigações. O funcionamento da Provedoria da Fazenda, suas relações com outras esferas da administração e sua direção monopolizada pelas principais redes de poder da sociedade revelam, ao mesmo tempo, o sutil e tenso “jogo” entre a exploração colonial e os interesses dos próprios colonos, eles próprios operadores da colonização. As constantes denúncias e suspeitas de conluios e descaminhos mais do que esvaziar a efetividade dos objetivos da administração fazendária na extração fiscal sobre a colônia são reveladoras da sua dinâmica.

Palavras-chave: Brasil Colonial; Administração Fazendária; Dízimos.

Abstract: The dizimos2 were the most important and universal taxes during the colonial period, as granted by the current tributary law. Its collection has long been defined by the Treasury Senior Purveyor’s, the Treasury Purveyors’ (1548), and the Dizimos (1577) bylaws, befalling particularly on sugar, however, extensive to other commodities. Based on the auction system, the practice of fiscalization was undertaken by the local population according to the logic of the Treasury administration in a modern State. The city’s series of contracts during the second half of the Eighteenth Century show the complexity of colonial relations and indicate the permanent tensions between the city’s fiscal efforts during circumstancial crises and colonial opposition, often derived from the actual impossibility of freeing themselves from their obligations. The operations of the Treasury Purveyorship, its relations with other administrative spheres, its own administration, monopolized by society’s power networks, reveal at the same time the subtle and tense “game” between colonial exploration and the interests of the actual population who were, at the same time, agents of colonization. The constant accusations and suspicions of conspiracies and frauds reveal its dynamics, even more so than the decrease of effectiveness of the goals of the Treasury fiscal administration. Keywords: Colonial Brazil, Treasury Administration, Dizimo.

“Dano e prejuízo da Fazenda Real”, expressão recorrente na documentação acerca das dificuldades de extração fiscal da Coroa, foi, durante 1 – Professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade Gama Filho e sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 2 – Mandatory donations paid by faithful Church members as a religious obligation (translator’s note).

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muito tempo, lida na perspectiva de um paradigma estadualista” como indício de fraqueza, ineficiência e corrupção do Estado colonial. No entanto, a historiografia mais recente, preocupada em compreender o Estado não apenas no seu arcabouço institucional, mas na eficácia social de sua ação, nos permite uma visão mais perspectivada da expressão. Os “danos” ou “prejuízos” registrados nos processos de arrematação de tributos podem ser compreendidos como parte das relações de tensão entre as intenções da metrópole e as resistências legais ou não da sociedade colonial, expressões da própria dialética que assegura a exploração colonial. Vitoriosa a Restauração, se refletiam na administração colonial as dificuldades gerais da conjuntura, agravadas pela guerra da Restauração, e pelo encolhimento do império, incluindo-se, neste caso, o controle da Cia. das Índias Ocidentais sobre o Nordeste brasileiro e as alianças europeias formalizadas pelos Bragança, que não só reduziram o império colonial mas promoveram aberturas à participação estrangeira no comércio colonial. Neste contexto, as políticas coloniais se caracterizaram por um esforço fiscal, capaz de fazer frente às prementes necessidades do Reino, que exemplificadas na análise dos contratos de arrematação, refletem a distância entre o instituído e o praticado, na qual os objetivos fiscais esbarravam na crítica situação da colônia e nos conluios que burlavam a arrecadação, apesar do Estado do Brasil representar a “vaca de leite” do Império e sustentar, em grande parte, a sua própria expansão. O papel relevante do Brasil numa conjuntura de “atlantização do Império” destacava-se como seu principal centro3 e se refletiu em ações de maior controle administrativo e fiscal com medidas de incremento da exploração colonial, com o incentivo à produção e controle do comércio, visando ao enfrentamento da tendência geral de baixa do seiscentos, associada a manifestações agudas de crise financeira. 3 – FRANÇA, Eduardo d’Oliveira, Portugal na Época da Restauração, São Paulo: Hucitec, 1977, pp.380-400.

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A ação do Estado português estava inserida numa etapa de “consolidação do poder” entre 1640 e 1698, para utilizar a periodização de Nuno Monteiro4, que marcou, sob a direção dos Bragança, a trajetória do Estado português rumo ao absolutismo, desdobrado numa “nova configuração dos centros de poder, que se traduziu em diversos mecanismos de estruturação das elites sociais”5 e, no caso colonial, no aprofundamento da presença portuguesa na América. A administração e o funcionamento da fazenda refletiam a profusão de normas editadas, muitas das quais, contraditórias entre si. Se a conjuntura negativa e o papel do Brasil no Império, já com sua face predominantemente atlântica, justificam, até certo ponto, a abundância de ordenamentos, estes reproduziam a profusão regulamentadora do mercantilismo, expressa por procedimentos monopolistas e fiscalistas, levando Varnhagem a relacioná-las com a atrofia das atividades econômicas6. No reino, as Cortes lançavam as bases de uma progressiva centralização administrativa. Consolidou-se a administração baseada nos Conselhos (Guerra, Estado, Fazenda e Ultramarino), “indiscutível revitalização das instituições tradicionais”7. A criação do Conselho Ultramarino (1642), tal qual o Conselho das Índias do período filipino, impôs uma direção centralizada dos negócios coloniais – “...por ela há de correr a administração da Fazenda dos ditos Estados ...e a que deles vier ao Reino se administrará pelo Conselho da Fazenda...”8, assumindo, na interpretação de Souza Sampaio, jurisdição semelhante nos domínios ultramarinos ao do Conselho da Fazenda no Reino9. 4 – MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas. A consolidação da dinastia de Bragança e o apogeu do Portugal barroco: centros de poder e trajetórias sociais. In: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal. São Paulo: Unesp, 2000, pp. 127-148. 5 – Idem, p.128. 6 – VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História Geral do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1956. Tomo III, p. 267. 7 – MONTEIRO, Nuno. Op. cit, p.127. 8 – SILVA, José Justino de Andrade e. Coleção Cronológica da Legislação Portuguesa compilada e anotada desde 1603. Lisboa: Imprensa J. J. Silva, 1854-1859, vol. 6, , p. 152. 9 – SAMPAIO, Francisco Coelho de Souza. Preleções do direito pátrio, público e parti-

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Na colônia, o Conselho de Fazenda já instituído durante a União Ibérica (26.12.1695), era composto pelo governador-geral, provedor-mor, o juiz dos Feitos da Fazenda, o procurador da Fazenda e dois desembargadores de Agravos. Diluía-se o poder num órgão colegiado que funcionou, dependendo do período, sob maior ou menor influência do governador. Da mesma forma, a recriação da Relação da Bahia e, no século seguinte, a Relação do Rio de Janeiro, restringiram a jurisdição judicial do Provedor a 40 mil-réis, com os agravos encaminhados ao Juízo dos Feitos da Fazenda. A arrecadação das rendas, das quais o dízimo foi uma das mais relevantes em todo o período e a mais importante no início da colonização, era feita por arrematantes particulares, através de pregão, devendo os rendeiros apresentar fiança da décima parte do lance que eram arrecadados no mês de janeiro, registrados e remetidos à Bahia no mês seguinte. Duas referências constantes da documentação merecem ser apontadas para posterior discussão: a dificuldade de arrematar e receber os dízimos quer porque os valores estavam superestimados, quer porque os rendeiros não honravam os pagamentos devidos, e, constantemente “os dízimos ...se arremataram ...ao mesmo lançador ...”10, sugerindo um grupo restrito de indivíduos envolvidos na atividade, podendo ter nela uma estratégia de “acrescentamento”. Os Regimentos eram pródigos em determinações de controle burocrático, como o registro de todas as etapas do processo em um “caderno”– “que se declare como as rendas são arrematadas, declarando-lhes as pessoas a quem se arremataram, a quantia e as condições, o ano ou anos por que se arremataram, bem como o nome dos fiadores ...”. O caderno ficava em poder do Almoxarife, dele tirando-se uma cópia a ser remetida ao provedor-mor.

cular. In: Hespanha, António Manuel. Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp.446-447. 10 – “Correspondência do Conde de Castelomelhor ao Provedor da Fazenda Real do Rio de Janeiro, Pedro de Souza Pereira, 7.10.1651”, Documentos Históricos, vol. 15.

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Duas preocupações apareciam ao longo do processo: o descaminho e a fiança. A constância da referência aos descaminhos pode ser tomada como indicativo da sua frequência. As punições iam do confisco das rendas da arrecadação à prisão dos rendeiros, podendo proceder-se à venda das fazendas, não só dos rendeiros mas também dos almoxarifes responsáveis pela cobrança. A garantia da fiança era necessária, pois a sua não apresentação implicava o pagamento imediato das rendas. O descumprimento da norma podia levar à prisão do rendeiro. Idêntica atitude atingia os funcionários, sendo rigorosa a exigência de prestação de contas ao provedor-mor no prazo certo. O estudo da arrematação dos contratos é revelador do efetivo funcionamento da administração fazendária, através da tensão entre a mais rigorosa e minudente ação do Estado e, em contraponto, as pressões e descaminhos exercidos pelos colonos na arrematação dos contratos como constituintes dos jogos de força que envolviam a administração das colônias, e as posturas metropolitanas como essenciais para a manutenção do império ultramarino. Entender a dinâmica da arrematação significa também entender os espaços abertos, pela própria Coroa, para a atuação dos particulares. O estudo dos contratos permite perceber os jogos de poder entre metrópole e colônia e as múltiplas relações inerentes a esse processo. Permite também avaliar os limites impostos, pelo poder local, à autoridade metropolitana, na medida em que a prática, muitas vezes, burlava os interesses de um governo central. O estudo revela ainda as múltiplas relações assumidas pelos colonos entre si, que poderiam se colocar ao lado da Coroa ou da ilegalidade. A monarquia portuguesa tinha, portanto, diante de si a tarefa de administrar todo o seu império, e faz isso de formas diversas, estabelecendo conexões variáveis de acordo com a época e região. Com o poder encarnado no corpo social, a administração da coisa pública é compartilhada

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com grupos diversos, situação reforçada pela inviabilidade da manutenção de um extenso corpo burocrático. O sistema dos contratos, necessário para a manutenção do próprio sistema colonial, se baseava, portanto, em uma conjugação da ação estatal com empresas particulares. O produto (ou tributo) é da Coroa, mas sua administração ou arrecadação ficava a cargo de terceiros, individualmente ou em sociedade. Dessa forma, a interação entre Coroa e particulares e dos particulares entre si, ou seja, entre os diversos agentes de poder, mostra que o ato de governar vai além de uma perspectiva impessoal e passa a significar também administrar relações privadas11. Assim, embora tenha uma superioridade de poder, a Coroa não detém sua exclusividade12, compartilhando o poder com os grupos locais e tendo os seus espaços de atuação invadidos por ações sobretudo ilegais que, na prática, limitam o poder metropolitano. Nesses espaços de sombra, nos espaços sociais onde o poder régio não chega com tanta força, que as sociedades locais exercem um poder de fato, mas, não deixando de efetivar a própria dominação colonial. UM ESTUDO DE CASO: Os Contratos da Capitania do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVII No momento da substituição do governador Salvador de Brito Pereira, falecido no exercício do cargo, em 1655, Castelmelhor, governador-geral, lembrava ao governador interino Antônio Galvão, designado pela Câmara (7.10.1651), que os dízimos “se arrematam hoje em 155 mil cruzados ao mesmo lançador”, o que, tomado de forma isolada, pode conduzir ao equívoco de uma renovação tranquila da arrecadação dos tributos13. 11 –������������������������������������������������������������������������������������ DEDIEU, Jean Pierre. “Procesos y e redes. La historia de las instituciones administrativas de la época moderna hoy” in: CASTELLANO, Juan Luiz; DEDIEU, Jean Pierre; LOPEZ CORDON, Maria Victoria. La Pluma, La Mitra y la Espada. Estudios ������������������� de la Historia Institucional em Edad Moderna. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 23. 12 – HESPANHA, António Manuel. “Por uma teoria institucional do Antigo Regime” in: Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986. p. 35. 13 – Biblioteca Nacional (BN), Manuscritos. 7,1, 31, n.54.

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Já no triênio seguinte (1655-58) a documentação sugere dificuldades na renovação do contrato, pois, passado o período regular para o procedimento, o novo governador-geral, Conde de Atoughia, em 10 de fevereiro de 1655, “reparava muito na tardança” de sua execução, ordenando ao provedor Pedro de Souza Pereira que “enviasse os dízimos dessa Capitania para que arrematassem na Bahia”14. Em 27 de abril, o governador-geral novamente escrevia ao provedor “entendendo as causas de se porem os dízimos em pregão tão tarde” e exprimindo a certeza de que os oficiais da Câmara “se incumbissem do sustento do seu presídio”. A preocupação em garantir as despesas da cidade, em especial com aquelas ligadas à defesa, é justificável, pois somente em setembro, o processo de arrematação era retomado em meio a divergências que o dificultavam15. Atoughia, em correspondência aos oficiais da Câmara (25 de setembro), reiterava a orientação de “se rematarem a quem ultimamente mais der por eles”, mas acolhia recurso de Domingos Monteiro, proibindo novos lances. O beneficiário/recorrente obteve o contrato por 110 mil cruzados, apesar do lance não aceito de Bento da Rocha ser de 130 mil cruzados16. Ao comunicar sua decisão ao Provedor (1º de outubro), o governador, no entanto, esclarecia não ser sua intenção dificultar o processo, desejando que os dízimos aumentassem sempre17, mas não o isentava da suspeita de ligações com o contratador, passando-lhe Provisão que proibia o recebimento de novos lances. A confusa orientação do governadorgeral refletiu-se na metrópole que em Carta Régia de 21.2.1656 solicitava esclarecimentos sobre o processo de arrematação “com prejuízo da Fazenda Real”18. Outros casos apontam diretamente para o envolvimento 14 – BN, Manuscritos. 7, 1, 22, n. 282. 15 – Idem. 7, 1, 31, n. 93. 16 – Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1944. V. 66. pp. 116117. 17 – BN, Manuscritos 7, 1, 31, n. 95-96. 18 – BN, Manuscritos 7, 3, 53, n. 181.

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entre arrematadores e oficiais régios, como ocorreu, em fins do século XVII, com o contrato da baleia (1675)19 e dos dízimos (1686)20. As oscilações das orientações administrativas foram constantes em todo o período. Carta Régia de 7.11.1657 endereçada ao governador-geral Francisco Barreto determinava cobrança a Marcos da Costa Manuel da dívida com a Fazenda Real, por força de seu contrato de arrematação dos dízimos do Rio de Janeiro. Dez meses depois, em 27.9.1658, o governador dava contas ao Rei de haver repassado as ordens ao provedor da Fazenda, com prazo de três meses para cobrar os dois mil cruzados restantes do contrato. Na mesma correspondência, o governador expunha os paradoxos da política fazendária, não deixando de elogiar o contratador inadimplente e questionar a inoportunidade da cobrança real: “Pela competencia, que entre este, e outros Contractadores houve na rematação dos dizimos daquella Capitania, foi tão grande o excesso a que subiram, que lhe occasionou a perda que hoje experimenta, mas foi consequencia, della a que a Fazenda de Vossa Magestade teve, porque ha mais de um anno, que não acham seus Ministros quem alli queira lançar nos dizimos, e havendo pois chegado a 130.000 cruzados por tres annos, o mais que hoje dão por elles são 50, por cuja razão estão por arrendar, e ainda com este exemplo do aperto da ordem de Vossa Magestade, haverá menos quem se anime a dar mais.”21

As preocupações do Governador tinham fundamento, pois no ano seguinte (18.1.1659) escrevia ao provedor da Fazenda que os dízimos eram “tão pouco” “que não convinha rematá-lo”, determinando cobrá-los “por conta de Sua Majestade”, evitando-se ainda os descaminhos, o que reduziria ainda mais o seu valor”22. 19 – Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951. V. 92. pp. 224228. 20 – FRAGOSO, João. “A nobreza da República: notas sobre a formação da elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII)”, Topoí, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, pp. 45-123, 2000. 21 – BN, Manuscritos. 7, 3, 54, n. 83 (negrito nosso). 22 – Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928, T. V, p. 97.

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Francisco Barreto de Menezes, governador-geral entre 1657 e 1663, foi administrador pouco estudado nas sínteses gerais da colonização. Varnhagem a ele só se refere quando da reconquista de Pernambuco. Hélio Vianna é omisso e Calmom o elogia quanto à restauração das defesas da Bahia e em relação à preocupação em dominar os índios bravos e negros fugidos no sertão23. No entanto, sua correspondência com o Rio de Janeiro sugere-nos um juízo um pouco diferente do firmado por Porto Seguro: um “cabo de guerra”, “carrancudo”, “gênio seco”, “voz áspera”, “partidário da máxima antiga de que os soldados devem temer o próprio capitão mais do que o inimigo”. Ao contrário, o General reconhecia as dificuldades da administração, a inadequação das normas e o caráter antieconômico das práticas monopolistas. Embora extrapolando o objetivo do presente trabalho, não devemos deixar de registrar como possível explicação para as posições do Governador, o seu amplo envolvimento nos negócios coloniais como destacou José Antonio Gonsalves de Mello ao publicar seu Testamento que “nos revela o fidalgo e alto administrador do Ultramar a exercitar a mercancia, lado a lado com sua função de governo”24. No final da década de 1650, em meio a conjuntura adversa da guerra contra a Espanha, cresciam na colônia as insatisfações contra as práticas de monopólio, em especial o exercido pela Companhia Geral de Comércio que, no caso do Rio de Janeiro culminou na Revolta de 1660. Mais uma vez, o governador-geral manifestava ao Rei sua crítica aos monopólios e reconhecia as dificuldades de arrecadação: “Havendo me apresentado os Administrativos da Companhia Geral um Alvará de 9 de Maio de 658 em que Vossa Magestade manda com a nova confirmação da dita Companhia, não partam deste Estado navios fóra do comboi; me parecer devia representar a Vossa Magestade o grande damno, que recebe a Fazenda de Vossa Magestade com 23 – CALMOM, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981, vol. 3, pp. 723-724. 24 – MELLO, José Antonio Gonsalves de. Testamento do General Francisco Barreto de Menezes. Recife: Parque Histórico Nacional dos Guararapes – IPHAN/MEC, 1976, p. 9.

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tal prohibição, porque sendo aquella de dizimos, que se pagam em assucar, não podem os Contractadores reduzil-o dinheiro para acudir ás obrigações de seu contracto, não tendo navios que os carreguem, e sendo uma das principais considerações delle dar-se-lhe os necessarios, faltando-se a esta clausula, não haverá quem queira ser Contractador; pois por consequencia infallivel se ficam perdendo com esta falta; porque são obrigados a pagarem a folha Ecclesiastica, e a secular, donde entram os Ministros da Justiça, e Fazenda, a quem é necessario não faltar com seus quarteis, por ser unico remedio, que têm para seu sustento, afóro outros gastos, que precisamente são necessarios fazer-se com dinheiro da Fazenda Real, e não pode achar-se nesta praça faltando saida os assucares, por cuja causa se perderam os Contractadores do Rio de Janeiro, e vae por dous annos, que os dizimos daquella Capitania estão por arrendar, por não haver quem queira lançar nelles, em razão da falta de navios, que experimenta aquelle porto com a dilação do comboi, como tenho avisado a Vossa Magestade em differentes occasiões. E se Vossa Magestade não permitir, que os navios do contacto partam, se atrazarão os dizimos de certo, que não haverá quem lance nelles, de que ficam recebendo os filhos da folha damno consideravel com a falta do soldo, que Vossa Magestade lhes manda dar, para se poderem sustentar; porque ainda que se lhes pague em assucar não é possivel reduzil-o dinheiro, debaixo deste fundamento me pareceu conceder aos Contractadores os navios, que se tinham promettido na occasião em que debaixo desta condição remataram os dizimos ... 25.”

Na mesma ocasião (10.1.1659) dirigia-se aos oficiais da Câmara do Rio de Janeiro para, mais uma vez, determinar a arrematação dos dízimos pelos oficiais da Fazenda, recomendando ainda, a venda do açúcar à época do comboio26. As decisões de transferir a arrematação dos contratos para a Capitania da Bahia ou de arrecadar os tributos pelos oficiais do Rei tornaram-se cada vez mais frequentes na segunda metade do século XVII e na centúria seguinte, ou simplesmente pretendia-se impor um maior controle sob o processo: 25 – BN, Manuscritos. 7,3,54 n.90 (negrito nosso). 26 – BN, Manuscritos. 7, 1, 31, n.135.

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“... que se ponham, pelos provedores, em pregão com antecipação conveniente remetendo-se à Bahia declarando-se as condições antigas examinando se estas são de receber ou não e que se espere confirmação dos ministros superiores do Estado e com ela se tornem a por os contratos (...) e havendo outro maior ou sem condições novas neles as arrematem nos mesmos seguindo a forma de confirmação e que esta arrematação se faça mandando de correr aos contratadores dando fiança na forma do Regimento e se dê conta à Bahia e ao Conselho Ultramarino para que em ambas as partes se saiba como e em quanto se arremataram os ditos contratos e todos os que de outra forma foram feitos se por nulo e dos Provedores que faltarem se haverá por conta de seus bens e que do contrário obrarem toda a perda que a Fazenda Real receber nesta parte”27.

No entanto, a própria Coroa em várias situações voltava atrás, reconhecendo que as cobranças efetuadas pela sua própria Fazenda também não alcançavam o rendimento desejado: “...sobre o pouco rendimento que tem havido no contrato do tabaco depois que corre por conta da Fazenda pelas quebras que tem e pela ruinado do tabaco que vem da Bahia e dilação que houve na remessa (...) não se administra a tal contrato pela sua Fazenda sem embargo de não havido lanço algum nele (...) a respeito do que por ele dava o contatador e se não estivera na terra como esteve pela dilação da remessa da Bahia havia de haver ganho por seis meses sem render e a metade do ano sem lucro donde se infere que o preço porque se deve arrematar há de ser maior que o então oferço acrescentando ao estanco as capitanias do sul em que se não há de gastar ...”28.

A historiografia tende a interpretar tais decisões pela centralização da administração, o que nos parece deva ser no mínimo relativizado à medida que se conhecem melhor as dinâmicas sociais do processo de colonização. As cadeias hierárquicas não eram claras. A correspondência dos governadores-gerais, com diversas autoridades do Rio de Janeiro lembrando-lhes a subordinação, é expressiva, conhecendo-se as “relações directas entre as capitanias e os diferentes portos de Portugal, entre os 27 – Arquivo Nacional (AN). Cód. 61, vol. 11, n. 25, 19.4.1695. 28 – AN. Cód. 61, vol. 14, n. 76. 25.6.1723.

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quais Lisboa” e no caso específico da fazenda os “provedores das capitanias agiam sem referência permanente à Baía ou à autoridade do provedor-mor”29. Outra perspectiva analítica a ser considerada é o reforço como instrumento de proteção ou favorecimento da “tessitura” das relações de poder na sociedade colonial, como demonstrado por Junia Furtado no Distrito Diamantino30. Em 1662, ao receber Carta Régia (24.7.1662) pedindo informações sobre os dízimos do Rio de Janeiro, Francisco Barreto repassava o pedido ao governador Pedro de Melo, firmando o entendimento que a solicitação real confirmava a extensão da Jurisdição da Bahia sobre a fazenda do Rio, estando encerrada a autonomia concedida à época de Sá e Benevides31. O governo da colônia após a Restauração expressava um “modelo administrativo concentrado”, marcado por “unidade de filosofia” e “diversidade da ação administrativa”, que se mostrou “viável e funcional”, numa conjuntura marcada pelas carências da colônia e pelas tensões do processo de consolidação de absolutismo32. Em paralelo, a política mercantilista reproduziu em todos os seus aspectos a defasagem entre propósitos e resultados e, em meio a grave crise oscilaram entre o fomento e a extração fiscal, como transparece da impressão do Conde de Óbidos declarada em 23.10.1663 ao governador Pedro de Mello confirma as dificuldades da administração: “Achei as causas deste Estado tão demasiadamente confusas, e a jurisdição deste Governo tão limitadamente despedaçada”33. 29 – MARTINIÈRE, Guy. A Implantação das Estruturas de Portugal na América (16201750) In: MAURO, Frédéric. O Império Luso-Brasileiro. Nova História da Expansão Portuguesa 1620-1750, Lisboa, Estampa, 1991, p.183. 30 – FURTADO, Junia Ferreira. Relações de poder no Tijuco: um teatro rm três atos. Tempo, Niterói, vol. 4, nº 7, julho 1999, parte 47. 31 – BN, Manuscritos, 7, 1, 31, 192. 32 – WEHLING, Arno, Administração Portuguesa no Brasil. De Pombal a D. João. Brasília: Funcep, 1986, pp. 27-28. 33 – Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928, T. V, p. 465.

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O esforço fiscal se apresentava em outros impostos como a vintena, estabelecida desde 1631 para financiar o Exército e manter as fortificações, quando do conflito com os holandeses. A repartição, decidida em 1660 para pagamento do dote da infanta D. Catarina, futura rainha da Inglaterra, sobrecarregou também pesadamente o açúcar. Para garantir o pagamento de 140.000 cruzados por ano que o Brasil tinha de fornecer, a capitania da Baía era taxada em 80.000 cruzados, enquanto o Rio e Pernambuco tinham de pagar, respectivamente 26 e 25.000 cruzados, e só 3000 a Paraíba. São conhecidas as dificuldades de arrecadação da contribuição. Em 29.4.1662, Francisco Barreto lembrava ao governador Pedro de Mello “que os que governam tem de molestar os súditos”, a propósito dos 600 cruzados que faltavam para completar os 4 milhões do dote da rainha da Inglaterra e da paz com a Holanda, cabendo 26 mil ao Rio de Janeiro. O próprio governador-geral, em 2.11.1662, em correspondência ao capitão-mor de S. Vicente Cipriano Tavares, reconhecia “a pobreza das Villas” e justificada a queixa das autoridades atendendo-lhes o “ânimo” a autorizar os oficiais a repartir o 4 mil cruzados/ano de acordo com a possibilidade de cada localidade34. A cobrança do donativo enfrentava ainda a dificuldade de transformar em dinheiro os gêneros recolhidos como tributo. O problema era grave e constante, pois em 14.11.1674 autorizava a junta da Fazenda a emitir “letras” para sua prestação de contas no reino, utilizando o “dinheiro em contado” para receber outros tributos, uma vez que “os moradores do Brasil não pagam o donativo em dinheiro de contado, senão em gênero de açúcar e tabaco, nem há razão para se poder obrigar a que paguem em dinheiro e este é tão pouco no Brasil, que para seu sustento e favorecimento o não tem”35. A centralização da arrecadação não significava necessariamente uma maior eficiência e imparcialidade no processo. São conhecidas as denún34 – Idem, pp.149-151 e 177-179. 35 – Idem, 1950, T. LXXXVIII, pp.27-29.

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cias contra oficiais em conluio com os contratadores, a exemplo da acusação a Pedro de Souza Pereira na Revolta de 1660 e trabalhos recentes como os de Helen Osório para o Rio Grande, destacam a arrematação de contratos como importante instrumento de acumulação de capital, que transcendia o nível local de cada capitania, e podia chegar a envolver homens de “grosso trato” com atuação em vários locais da colônia e na própria metrópole36. Sobre o funcionamento da fazenda pesavam ainda as tensões comuns da sociedade colonial. O governador Alexandre de Souza Freire esclarecia ao D. Pedro de Mascarenhas (14/9/1668) que Cabo Frio não pertencia à jurisdição do Rio de Janeiro, estando ainda seus habitantes livres da obrigação de para aí conduzirem toda produção de sal.37 Além dos clássicos conflitos de jurisdição, os interesses típicos do patrimonialismo que caracteriza o exercício do poder na colônia como sugere a carta de D. João de Lencastro ao Provedor da Fazenda Real da Capitania do Rio de Janeiro (10.2.1694): “Francisco de Andrade pretende a preferencia do contracto dos dizimos dessa Capitania entre os oppositores de sua rematação sem prejuizo da Fazenda real. Tenho entendido que é sujeito de verdade e que tem bons fiadores. A minha tenção é, que o augmento da Fazenda Real não tenha mais preferencia, que a de quem o fizer maior, e com mais seguras fianças. Nestes termos estimarei eu muito seja Francisco de Andrade o preferido, porque creio delle que exceda a todos”38.

Ainda durante a administração de Souza Freire, a Mesa da Fazenda tomou interessante “Assento” sobre os contratos de dízimo do Rio de Janeiro. Em 13.1.1671, a Mesa da Fazenda39 examinou os autos de arrematação para o período 1671-1674 contratado por João Soares Pereira 36 – OSÓRIO, Helen. “As elites econômicas e a arrematação dos contratos reais: o exemplo do Rio Grande do Sul”. In: FRAGOSO, J., BICALHO, M. F., GOUVÊA, M. de F. (org.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVIXVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p.111. 37 – BN. Manuscritos, 7,1,28,n.102. 38 – Idem, 7, 1, 32, 202. 39 – Governador Alexandre de Souza Freire, procurador da Fazenda Lourenço de Brito de Figueiredo e juiz dos Feitos da Coroa Manuel da Costa Palma.

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por 66 mil cruzados, comprometendo-se a pagar a metade em fazendas e o restante em açúcares brancos e mascavos, além das propinas dos ministros do Estado e dos religiosos. Dois recursos eram submetidos à Mesa: o primeiro do contratador que, invocando arrematações anteriores, pleiteava o direito de mandar um navio por ano ao Reino com açúcar e frutos da terra, retornando com os “gêneros necessários ao seu contrato”; o segundo, do Administrador eclesiástico em nome de todos os religiosos, desejando receber “dinheiro em contado” ou, na pior das hipóteses, em açúcares brancos e bons”, ao preço da época da frota. Quanto ao navio, foi reafirmado o monopólio, sob o argumento de que só o Rei poderia autorizar navio fora da frota. O recurso dos religiosos também não obteve sucesso. Alegavam seus direitos com base em Provisão de 1608 e o contratador contra-argumentava que a condição pleiteada não estava estipulada no contrato. A “Mesa” considerou que a Provisão nunca fora posta em prática na capitania e “por seu direito particular não estava incorporada na lei do Reino” e os religiosos deveriam “fazer a tempo o requerimento que lhe tocava e não depois de tomado o lance”. Concluía com argumento semelhante ao apresentado por governadores anteriores que a alteração das condições “se arriscava a que o contratado presente desistisse”40. Em fevereiro de 1675, o Rei aprovou consulta do Conselho Ultramarino mandando tirar devassa dos conluios no contrato dos dízimos, motivada pelo desembargador Pedro da Rocha Gouveia, Procurador da Fazenda do Estado do Brasil que estranhava o fato dos dízimos do Rio de Janeiro até 1655 renderem em média 120 mil cruzados e naquele ano, haviam sido arrematados por 66 mil cruzados, tendo-se apresentado três lançadores. O vencedor Manuel Lopes de Morais trespassou o contrato ao segundo candidato Antonio Antunes que, por sua vez, apresentou fiança do terceiro concorrente Tomé da Silva. 40 – Documentos históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1944, V. LXIV, pp.115125.

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Pesava ainda sob o contrato a suspeita de procrastinação, pois arrematado em 12.9.1673 só chegou para confirmação em 24.4.1674, “sendo passados sete meses depois da arrematação só a fim de lograrem aquele lanço e por ficar já quase um ano decurso não havia quem lançasse, que é notório que neste contrato havia conluios em dano e prejuízo da Fazenda Real”41. No caso do já citado contrato das baleias (1675), as relações entre arrematador e o Provedor da Fazenda levaram a uma baixa no valor dos contratos, contraposta aos altos lucros obtidos – se para a Coroa a arrematação desse contrato havia rendido quatrocentos mil-réis, para os contratadores, a quantia somava quinze mil cruzados bons42. A denúncia é apresentada pelo governador do Rio de Janeiro, que recomenda uma investigação sobre o caso e afirma que “será conveniente não se encarregar ao ouvidor que está servindo por ter estreita amizade com êste provedor, e obrará de maneira que fique tudo como dantes, sem o castigo que merece. (...)”43. Outra preocupação da Coroa residia nas dívidas contraídas pelos arrematadores por contratos não pagos, tomando grande proporção, uma vez que “(...) costumam os contratadores atuais lançar e arrematar o mesmo contrato para os anos futuros sem terem pago os passados, de que se segue paguem o que devem de um contrato com os efeitos que cobram do outro até que o empenho é tão crescido que nem êles nem seus fiadores têem com que pagar e se fica perdendo considerável fazenda (...)”44.

41 – Idem, 1950, V. LXXXVIII, pp. 19-20. 42 – Consulta ao Conselho Ultramarino. Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951, vol. 92. pp. 224-228. 43 – Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951. V. 92. pp. 224228. 44 – A provisão régia é de 1688. Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, s/d. V. 80. pp. 43-46.

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As dívidas dos contratadores somavam grandes quantias, em especial no caso dos contratos que atingiam os valores mais altos, como dos dízimos reais e das dízimas da alfândega. É o caso, por exemplo, do negociante Antonio Doria, que devia “muitos mil cruzados” do contrato dos dízimos que teve por seis anos 45. O resultado das várias dívidas somadas eclodia na década de 1730, quando se denunciava “(...) que o cofre da sua Real Fazenda se achava totalmente exaurido por não pagarem os contratadores dos dízimos reais o que deviam (...)”46. E de fato, apenas uma pequena parcela dos contratadores endividados tinham seus bens penhorados47. Já era antiga a determinação régia de que os devedores da Fazenda Real não poderiam tomar outro contrato ou renda até terem suas dívidas quitadas, mas “(...) estas ordens e regimentos ou se não guardam ou se interpretam segundo a conveniência, e vontade dos ministros a que tocam”48. É fato que as redes relacionais exerciam peso importante nos descaminhos, tanto em seu desenvolvimento quanto em sua ocultação. Mas, uma vez desnudadas as irregularidades, pode-se apontar, em alguns casos, para uma certa complacência da Coroa em relação às dívidas dos valores da arrematação, negociadas49. Os objetivos dos contratadores parecem girar em torno da lucratividade (ou ao menos de uma sobrevida financeira, atingida caso tivessem seus bens confiscados) que poderiam obter através desse mecanismo. Já as posturas assumidas pela Coroa parecem oscilar em torno de uma governabilidade sobre a colônia, ou seja, giram em torno de um governo possível, já que um controle mais intenso seria difícil de ser mantido.

45 – Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928. V. 04. pp. 438440. 46 – A Consulta do Conselho Ultramarino é de 1732. Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1950. V. 90. pp. 255-256. 47 – Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1950. V. 90. pp. 255256. 48 – Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, s/d. V. 80. pp. 43-46. 49 – ARAUJO, Luiz Antonio Silva. “Contratos nas minas setecentistas: o estudo de um caso – João de Souza Lisboa (1745-1765)”. Op. cit.

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Percebe-se assim uma distância entre o instituído e a prática colonial . Se o instituído era o desejável, a prática era o permitido. Se para a manutenção do jogo político, havia uma necessidade de cessão51, também na administração fazendária havia uma necessidade de contemporizar com as elites financeiras, dada principalmente a escassez de recursos do Estado português moderno. Os contratadores, portanto, se tornavam parceiros do Estado dentro de uma visão de um Estado empreendedor como o Moderno português, ainda que apenas pelo tempo de vigência do contrato52. E mais do que isso: ao se inserir no aparelho estatal, mesmo sem as necessárias condições para fazer isso através da ocupação de um ofício, o contratador assumia, dentro do prazo estipulado pelo contrato, o papel de representante do Estado português, passando a agir não só em nome da Fazenda Real, mas como Fazenda Real53. 50

Os contratadores, portanto, pactuam com o Estado português na medida em que os interesses e os monopólios de ambos os lados deveriam ser mantidos54. Mas, ao exceder o espaço pactuado, descaminhando e burlando, o contratador se utiliza de mecanismos inerentes ao próprio sistema colonial, limitando na prática o alcance do poder régio. Medidas como a arrematação dos contratos das capitanias na Bahia ou o transpasse de contratos administrados pela Câmara para a Fazenda Real demonstram uma tentativa de centralização e do exercício de um controle mais efetivo. Mas as pressões e irregularidades exercidas pelos colonos ultrapassam as 50 – SANCHES, Marcos Guimarães. “Contratos e Conluios: a administração fazendária no Rio de Janeiro”. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, v. 21, Curitiba, pp. 41-49, 2001. 51 – SOUZA, Laura de Mello. O Sol e a Sombra: política e administração na América portuguesa no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 31 e 297. 52 – ELLIS, Myriam. “Comerciantes e contratadores do passado colonial”. São Paulo, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, USP, 1982, pp. 97-122. Disponível em: http:// www.ieb.usp.br/revista/revista024/rev024myriamellis.pdf. p. 98. 53 – ARAUJO, Luiz Antônio Silva. “Contratos nas minas setecentistas: o estudo de um caso – João de Souza Lisboa (1745-1765)”. II Seminário sobre a economia mineira: Cedeplar, Diamantina, 2002. EconPapers: Economics at your fingertips. Economic Research Institute (EFI) at the Stockholm School of Economics., 2002. Disponível em: https:// www.cedeplar.ufmg.br/diamantina2002/textos/D02.PDF 54 – MATTOS, Ilmar Rohloff, O Tempo Saquarema. 5ª edição. São Paulo: Hucitec, 2004. pp. 30-44

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medidas que a metrópole toma como garantia para si, trazendo a necessidade de uma repactuação, ou negociação, sob pena de ver trincadas as bases econômicas de seu império colonial. Sem dúvida, aprimorou-se na passagem para o setecentos a administração da colônia, inserida dentro do que Russel-Wood chamou de “trajetória crescente”, quando as posições da Coroa foram, também de forma crescente, submetidas à “pressão colonial”55. Texto apresentado em setembro /2009. Aprovado para publicação em novembro /2009.

55 – RUSSEL-WOOD, A. J.R.. Centros e Periferias no Mundo Luso-Brasileiro 15001808. Revista Brasileira de História, v.18, n. 36, 1998, p. 243.

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Cargos administrativos e critérios de representatividade nas ordens terceiras do Carmo e de São Francisco (c.1700-1822): uma análise comparativa Administrative offices and representational criteria in the third holy orders of Carmel and St Francis (c. 1700-1822): A comparative analysis William de Souza Martins 1 Resumo: Este artigo pretende elaborar uma análise comparativa de diferentes filiais das ordens terceiras do Carmo e de São Francisco, fundadas no Rio de Janeiro, em Pernambuco, na Bahia, na região das Minas e em Portugal, entre o século XVII e o princípio do século XIX. O eixo da comparação concentra-se nas eleições para os cargos administrativos dos diferentes sodalícios dos irmãos terceiros. Palavras-chave: Ordem Terceira do Carmo, História; Ordem Terceira de São Francisco, História; Ordens Terceiras, História, séculos XVIIXIX; Igreja católica na época colonial.

Abstract: The purpose of this article is to undertake a comparative analysis among the different branches of the Third Holy Orders of Carmel and St. Francis, founded in Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, in the Minas Gerais region, and in Portugal, between the Seventeenth and the early Nineteenth Centuries. The axis of this comparison focuses on the elections to the administrative offices of the various brotherhoods of the Third Holy Orders Keywords: Third Holy Order of Carmel, History; Third Holy Order of St. Francis, History; The Catholic Church in Colonial times.

A historiografia que se tem ocupado do estudo das ordens terceiras – amplamente disseminadas, desde o início do século XVII, nos territórios das monarquias ibéricas e nas respectivas regiões de colonização – limitou-se, em linhas gerais, à análise isolada de cada associação, detalhando o perfil dos membros e as atividades institucionais realizadas.2 No interior da temática enfocada, algumas análises comparativas já foram efetuadas, 1 – Professor Adjunto de História Moderna e Contemporânea da UFRJ. 2 – Quanto a Portugal e territórios ultramarinos, cf. os trabalhos citados ao longo do artigo. Para os territórios espanhóis, podem ser referidas as monografias seguintes: DELGADO PAVÓN, Maria Dolores. Reyes, nobles y burgueses em auxilio de la pobreza (La Venerable Orden Tercera Seglar de San Francisco de Madrid em el siglo XVII). Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, 2009; IGUINIZ, Juan B. Breve historia de La Tercera Orden franciscana em La Provincia del Santo Evangelho de México desde sus orígenes hasta nuestros dias. Mexico D. F.: Editorial Patria, 1951.

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limitadas, entretanto, a uma base local.3 Assim, verificada a escassez de estudos dedicados às ordens terceiras no período colonial, elaborados a partir de uma perspectiva comparativa, este artigo tenta preencher uma lacuna na historiografia. Esta ausência se torna mais sensível quando se constata que, à diferença das simples irmandades leigas, a organização jurídica e canônica das ordens terceiras tinha alcance universal. Isto é, uma associação local compartilhava regras espirituais, normas gerais de funcionamento, privilégios pontifícios, etc. com outras associações, que configuravam assim uma fraternidade mais ampla. Tais características parecem justificar uma abordagem das ordens terceiras fundadas em diferentes territórios a partir de um eixo comparativo. No caso do presente estudo, os pontos de comparação são constituídos pelas estruturas administrativas montadas em cada associação para o desempenho das atividades institucionais e os critérios de escolha dos dirigentes locais. Os irmãos que ocupavam cargos nas ordens terceiras eram escolhidos em eleições anuais. Para ter uma ideia da importância de tais eleições na época, basta referir que as datas de realização das mesmas frequentemente coincidiam com as das festas dos santos padroeiros das associações. A hipótese que se tentará sustentar aqui é a de que as eleições periódicas em que tomavam parte os irmãos leigos para escolherem os respectivos líderes associativos constituíam instrumentos para reforçar a representatividade local de cada associação. Pensando na inserção das ordens terceiras nas redes de poder da América Portuguesa, a dinâmica eleitoral em cada associação adquire um especial significado. E, se for levado em conta que, ao longo do século XVIII, diminuiu a importância da participação dos colonos nos órgãos tradicionalmente representativos do poder local, como eram as câmaras municipais e as filiais das misericórdias, torna-se mais relevante a escolha dos irmãos que dirigiam as ordens terceiras. Um dos objetivos aqui valorizados é a indicação da importância assumida, no contexto do Antigo Regime, pelos escrutínios praticados pelos irmãos 3 – RUSSELL-WOOD, A. J. R. Prestige, Piety and Power in Colonial Brazil: The Third Orders in Salvador. Hispanic American Historical Review. Durham, 69, n. 1, pp. 61-89, Feb. 1989; MARTINS, William de Souza. Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700-1822). São Paulo: Edusp, 2009.

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terceiros. Serão comparadas as associações de São Francisco e do Carmo fundadas no Rio de Janeiro, como também diversas filiais das ordens terceiras fundadas nas capitanias de Pernambuco, da Bahia e das Minas. Outra possibilidade de comparação aqui também explorada diz respeito aos modelos europeus de escolha dos dirigentes das ordens terceiras. As fontes utilizadas neste trabalho são constituídas pelos estatutos e manuais devocionais e administrativos elaborados para o governo das ordens terceiras, na América Portuguesa e no Reino de Portugal. Para iniciar a análise, foram selecionados os estatutos das associações das ordens terceiras de São Francisco e do Carmo fundadas no Rio de Janeiro. Com relação à primeira, os únicos estatutos que contêm informações para o objeto deste trabalho foram os que a Mesa Administrativa organizou em 1801. A iniciativa, segundo é possível apurar nos termos, está provavelmente associada ao ministro Manoel José da Costa Rego. A Mesa justificou a elaboração de novas normas administrativas observando que “desde a sua criação se estava governando pelos Estatutos da Ordem Terceira da cidade do Porto, os quais pela alteração dos tempos e diversidade de Países se não podia observar inteiramente nesta cidade”.4 Fundada em 1619, não há informações a respeito da adoção de estatutos dos terceiros do Porto pela filial do Rio de Janeiro, nas décadas iniciais de funcionamento desta associação. Em 1684, os religiosos franciscanos organizaram os primeiros estatutos locais da fraternidade fluminense. Este documento pouco informava sobre a organização administrativa da associação do Rio de Janeiro, resumindo-se a comentários sobre pontos da regra dos terceiros franciscanos. No ano referido, fr. Luís de São Francisco, que desenvolveu em diversos bispados portugueses uma fremente atividade de organização de associações de terceiros franciscanos, publi4 – Arquivo da Venerável Ordem Terceira de São Francisco do Rio de Janeiro (AVOTSF). Livro 4º dos termos da Venerável Ordem Terceira de Nosso Seráfico P. São Francisco, f. 45v. Como será visto mais adiante, em meados do século XVIII, os terceiros franciscanos do Rio de Janeiro teriam elaborado estatutos locais, cujo documento possibilitou aos irmãos terceiros de Vila Rica a redação de seus próprios estatutos. Os estatutos de meados do século XVIII não foram localizados na documentação da Ordem do Rio de Janeiro. A ortografia e a pontuação das fontes foram atualizadas, respeitando-se apenas o uso de maiúsculas no original.

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cou o Livro em que se contém tudo o que toca à Origem, Regra, Estatutos, Cerimônias e progressos da sagrada Ordem Terceira da Penitência de N. Seráfico P. S. Francisco (Lisboa: Oficina de Miguel Deslandes, 1684). O frade mencionado desempenhou também durante 24 anos o cargo de comissário dos irmãos terceiros da cidade do Porto, responsabilizando-se assim pela direção espiritual da associação local. Em 1675, fora incumbido para a tarefa de organização dos estatutos válidos para todas as fraternidades de Portugal e Espanha, aprovados na ocasião pelo ministro geral da Ordem franciscana.5 Assim, provavelmente a Mesa dos terceiros fluminenses deveria estar aludindo à obra de fr. Luís de São Francisco, que teria fornecido à fraternidade do Rio de Janeiro algumas diretrizes administrativas de funcionamento. Outra possibilidade que não pode ser desprezada é que a Mesa tenha se referido em 1801 aos estatutos locais que os terceiros franciscanos portuenses tinham publicado cinquenta anos antes: os Estatutos e regra da Ordem Terceira do Serafim Humano o Glorioso Patriarca S. Francisco da cidade do Porto novamente reformados e confirmados pela Sé Apostólica (Lisboa: Oficina de Manoel Soares Vivas, 1751).6 Seja como for, fica evidente nos exemplos citados de que maneira as ordens terceiras, como fraternidades de alcance universal, possuíam uma organização administrativa complexa, pautando-se em ordenamentos e estatutos gerais aprovados pela Sé apostólica ou pelos gerais das ordens, ou então se apoiando em estatutos locais redigidos para específicas associações. Segundo referem os estatutos de 1801, nas eleições para nomeação dos cargos da Mesa da Ordem Terceira de São Francisco do Rio de Janeiro somente poderiam participar os mesários eleitos no ano anterior. Os estatutos não são muito claros a respeito dos irmãos que compunham a Mesa. De acordo com o que se pode apurar em informações dispersas encontradas na documentação da Ordem, o organismo administrativo estava formado pelos seguintes irmãos: o ministro, o vice-ministro, o comissá5 – RIBEIRO, Fr. Bartolomeu, OFM. Os terceiros franciscanos portugueses. Sete séculos da sua história. Braga: Tipografia Missões Franciscanas, 1952, pp. 62-66. 6 – ALMEIDA, Fortunato de. História da Igreja em Portugal. Nova ed. prep. e dir. por Damião Peres. Porto-Lisboa: Livraria Civilização, 1970, v. III, p. 110.

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rio-visitador, o secretário, o síndico, o procurador-geral e doze definidores. Irmãos que possuíam cargos de menor relevância, como andador, zeladores e outros, não tinham assento na Mesa. Tampouco participavam do organismo administrativo os funcionários contratados pela ordem, como organistas, capelães, etc. A eleição do comissário-visitador, um religioso franciscano da província da Imaculada Conceição do Rio de Janeiro, não se pautava pelos critérios definidos para a escolha dos demais mesários. O cargo devia ser designado pelo provincial dos religiosos franciscanos e demais religiosos definidores da província, nas reuniões capitulares.7 Os estatutos de 1801 reconheceram a faculdade adquirida pelos religiosos, “pela incorporação em que se acha a nossa Ordem à Religião do Santo Patriarca”. Contudo, o documento dos terceiros franciscanos procurava preservar os interesses da associação, se o comissário indicado não fosse satisfatório: “e quando a Religião não der os Religiosos a contento da Ordem, poderá esta Eleger um Irmão Clérigo Secular, obtendo aprovação do Prelado, ou Bula de Sua Santidade para o dito efeito”.8 No que diz respeito aos irmãos seculares que compunham a Mesa Administrativa, a praxe adotada no Rio de Janeiro era que a eleição do ministro, o ocupante do cargo mais elevado, se fizesse oito dias antes dos demais membros oficiais da associação, seguindo o exemplo dos religiosos franciscanos, em que o “Prelado maior se faz antes da Eleição dos menores”.9 Tanto no caso da eleição do ministro quanto na dos demais membros da futura Mesa, os mesários em exercício eram chamados pelo irmão andador a comparecerem à eleição. O irmão secretário possuía a maior responsabilidade no processo de votação anual, cabendo ao mesmo indicar três possíveis nomes para assumir cada cargo. Para tornar a esco7 – CHAGAS, Fr. Antônio das Chagas, OFM. Estatutos Municipais da Província da Imaculada Conceição do Brasil, Tirados de Vários Estatutos da Ordem, Acrescentando neles o mais Útil e Necessário à Reforma Desta Nossa Província; Feitos, Ordenados e Aceitos no Capítulo que se celebrou no Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro aos 7 Dias do Mês de Abril de 1710 [...] dados à estampa por [...]. Lisboa Ocidental: na Oficina de José Lopes Ferreira, Impressor da Sereníssima Rainha Nossa Senhora, 1717, p. 169. 8 – AVOTSF, Livro 4º dos termos da Venerável Ordem Terceira de Nosso Seráfico P. São Francisco, f. 52v. 9 – Idem, f. 47.

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lha mais justa e menos repentina, as listas nominais eram fixadas em pauta pública com um mês de antecedência, para conhecimento dos irmãos votantes. Estes selecionariam os nomes de candidatos para cada cargo, escrevendo em uma cédula fechada os nomes dos mesmos. A última providência prática prevista para o processo eleitoral era a necessidade de reeleição de dois mesários, para facilitar aos que estavam ingressando o “Conhecimento dos negócios da Ordem”.10 Passando agora a tratar da associação dos terceiros carmelitas fluminenses, torna-se evidente a maior complexidade do processo eleitoral praticado nesta associação. Os estatutos locais foram elaborados em 1697 pelo visitador dos carmelitas do Estado do Brasil, fr. Manoel Ferreira da Natividade.11 De forma análoga ao ocorrido no exemplo anterior, os terceiros do Carmo do Rio de Janeiro começavam elegendo o ocupante para o posto mais elevado da associação, o do irmão prior. Para se candidatar a este cargo, o terceiro carmelita deveria preencher alguns predicados: ter a experiência prévia de exercício em algum cargo administrativo da Ordem; “ser Nobre, ou por geração ou pelo trato com que viver, de sorte que seja para maior Respeito e autoridade”; cabedal para assistir aos gastos no desempenho do cargo, entre outras obrigações.12 A eleição do prior tinha início a 14 de outubro, na véspera do dia de Santa Teresa, a padroeira da Ordem do Rio de Janeiro. Na manhã daquele dia, deviam reunir-se na casa da sacristia os irmãos da Mesa, que se compunha então do irmão prior em exercício, do padre comissário, do subprior, secretário, seis definidores, tesoureiro, procurador e enfermeiro, totalizando doze irmãos seculares e um religioso carmelita ocupante do comissariado. Diante dos mesários convocados, e tendo em mãos uma pauta em que estavam inscritos os nomes de todos os membros professos na associação, o prior em exercício e o padre comissário escolheriam dois irmãos candidatáveis ao 10 – Idem, f. 46, v-47. 11 – MARTINS, William de Souza, op. cit., p. 132. 12 – AGCRJ (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro), Ordem do Carmo (OC), Administração (AD), cód. 12.01. Atas, Leis ou Estatutos da Venerável Ordem Terceira da Penitência da Sempre Virgem Maria do Monte do Carmo do Rio de Janeiro (1697, cópia de 1812), f. 2.

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priorado. Em seguida, os demais membros da Mesa tinham a faculdade de habilitar ou de recusar com votos os quatro previamente selecionados, da maneira seguinte: “saindo qualquer dos quatro nomeados com seis favas brancas, ficará habilitado, e saindo vice-versa com seis favas negras ficará excluso”.13 O resultado da habilitação seria publicado no mesmo dia à tarde. Em seguida, seriam nomeados três irmãos da Mesa como escrutinadores da votação. O voto dos irmãos seria mantido em segredo em uma cédula fechada, depositada em um vaso de prata. A ordem do sufrágio seguia uma hierarquia institucional, votando em primeiro lugar o padre comissário, sucedido pelo prior e demais membros da mesa em exercício. Após os mesários, a votação continuava com a participação dos irmãos professos em ordem de antiguidade. Os estatutos mencionam a obrigatoriedade do comparecimento de todos os membros da associação, “salvo estiverem enfermos com enfermidade que os impossibilite a vir, e os que assistem fora da Cidade lhe ocorrem a mesma obrigação que aos da Cidade”.14 O resultado da eleição seria divulgado no dia seguinte ao da festa de Santa Teresa, acompanhado de diversas solenidades. No que diz respeito à eleição dos demais mesários, os procedimentos seguidos pelos terceiros do Carmo assemelhavam-se àqueles presentes entre os terceiros franciscanos. Assim, congregada a Mesa “velha” no consistório da Ordem, o irmão secretário propunha três candidatos para cada cargo, que seriam selecionados pelos membros ali reunidos. A eleição do comissário da Ordem seguia diretrizes diversas. Diferentemente dos terceiros franciscanos, a escolha do comissário da Ordem Terceira do Carmo não era decidida no capítulo dos frades observantes, mas compartilhada entre a Mesa da associação e o provincial dos religiosos. Assim, a Mesa devia enviar ao referido prelado uma nominata contendo três indicações de religiosos para assumir o comissariado da Ordem. A escolha do provincial incidia necessariamente sobre os nomes indicados.15 Uma vez escolhido, o religioso comissário tinha entre as suas atribuições propor nomes de irmãs para ocupar os cargos de prioresa, subprioresa e de mes13 – Idem, f. 17v. 14 – Idem, f. 18v. 15 – Idem, f. 3-3v.

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tra de noviças. Tais indicações passavam depois pela votação dos outros componentes da Mesa.16 O comissário era visto como o único oficial da Mesa apto a obter informações sobre as referidas irmãs, uma vez que os demais mesários não tinham “comunicação” com as ditas mulheres. Assim, o religioso carmelita assumia certa tutela sobre tais irmãs terceiras, devido às normas de recato e honestidade exigidas no contexto para as mulheres daquela condição. Apesar da equivalência formal com alguns dos cargos ocupados por irmãos, as terceiras carmelitas escolhidas para as três funções mencionadas não tomavam parte das deliberações das mesas. Um traço comum que deve ser assinalado nas duas ordens terceiras era a existência de religiosos comissários que não só participavam e votavam nas mesas administrativas, mas também tinham jurisdição exclusiva sobre a esfera espiritual das fraternidades. À diferença dos irmãos da mesa, cujos mandatos eram limitados pelo tempo de um ano, os religiosos comissários eram escolhidos por triênios. As atribuições espirituais eram comunicadas pelos religiosos provinciais ou por prelados superiores, como os gerais das ordens, núncios apostólicos, ou até mesmo a Santa Sé. A vinculação dos irmãos terceiros aos religiosos mendicantes constitui uma das faces do “corpo místico” que ambos formavam no período, no sentido de integrarem um organismo simultaneamente unido e hierarquizado.17 Com o propósito de aprofundar a comparação das estruturas administrativas nas duas associações, cabe referir aqui os comentários do padre Manoel de Oliveira Ferreira, doutor em cânones pela Universidade de Coimbra, nomeado em 1740 pelos irmãos terceiros do Porto como cronista-geral da Ordem Terceira de São Francisco. A respeito das faculdades pertencentes às mesas administrativas, o estudioso da história e dos privilégios dos terceiros franciscanos observou que

16 – Idem, f. 21-21v. 17 – MARTINS, William de Souza, op. cit., pp. 53-99.

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“Está nas Mesas toda a economia com que se devem reger e dirigir as congregações seculares. Três estados há de governo: Monárquico, quando governo um só. Aristocrático, quando governam os nobres e sábios. Democrático, quando governam os populares.18

O cronista acrescentou que, no caso das ordens terceiras seculares, encontravam-se presentes o segundo e o terceiro modos de governo. Tendo em mira as considerações do cronista e os dois processos eleitorais analisados mais acima, pode-se inferir que, na Ordem Terceira de São Francisco fluminense, o processo de escolha do dirigente máximo e dos demais mesários assumia uma forma “aristocrática”, na medida em que apenas os membros da Mesa administrativa em exercício participavam do escrutínio. Por seu turno, na associação dos terceiros carmelitas, a escolha do maior dirigente envolvia uma combinação de formas “aristocráticas” e “democráticas”, encarregando-se o comissário e o prior em exercício da indicação inicial, passando em seguida para o aval da Mesa e, finalmente, definidos os nomes dos quatro selecionados que participariam do pleito, tais candidatos eram votados por todos os irmãos professos. A escolha dos demais mesários para a Ordem Terceira do Carmo era praticamente a mesma daquela observada na outra associação, isto é, um processo inicialmente conduzido pelas propostas dos secretários em exercício, concluindo-se com a votação apenas dos membros das mesas. Evocando ainda as observações do cronista da Ordem Terceira da Penitência, as formas “monárquica”, “aristocrática” e “democrática” de governo podiam ser percebidas em outras corporações de natureza eclesiástica no período moderno. Uma estudiosa dos conventos femininos da época assinalou que 18 – FERREIRA, Pe. Manoel de Oliveira. Compêndio geral da história da Venerável Ordem Terceira de São Francisco: dividido em cinco tábuas, que mostram a sua Instituição, Prelados, Mesas e Formas dos Atos Espirituais: a sua Regra, Expositores, Conservadores e Promulgadores, com os Terceiros Fundadores e Patriarcas de Religiões: os seus Canonizados, Beatificados, Veneráveis, Pontífices, Cardeais, Imperadores, Reis e Ilustres de todas as Províncias e Nações: as suas grandezas, prerrogativas, graças, privilégios e indulgências lucráveis em todos os dias do ano: o seu progresso e aumento em todo o Mundo com as memórias anuais de 534 anos [...] Porto: na Oficina Episcopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1752, p. 47.

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“as constituições de um convento veneziano equiparavam-se de perto às estruturas do Estado veneziano. Assim como a república se baseava numa constituição mista, consistindo em monarca (doge), aristocracia (Senado) e democracia (Grande Conselho), também o sistema de governo conventual se apoiava na divisão de autoridade entre a abadessa, um grupo de idosas (‘as discretas’ ou ‘madres de conselho’) e o capítulo, que abrangia todas as freiras de coro professas.19”

Em alguns estabelecimentos claustrais femininos, o tipo de organização administrativa descrito era muito semelhante, conforme se pode apurar nas normas que pautavam o funcionamento do Convento do Desterro na Bahia.20 De modo a permitir uma comparação mais adequada com as associações de irmãos terceiros, cabe aqui um comentário acerca das eleições das abadessas conventuais. No convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda do Rio de Janeiro, fundado entre 1749 e 1750, o bispo diocesano, que tinha jurisdição ordinária sobre o convento, e por isso considerado como prelado conventual, foi incumbido de escolher as primeiras abadessas para a instituição. Decorridos doze anos após a fundação, as religiosas professas poderiam escolher a sua própria prelada. As religiosas que faziam votos solenes tinham direito a participar da eleição, exceto as coristas que haviam professado há menos de cinco anos. O bispo diocesano detinha a presidência das eleições. Se por acaso não se atingisse um consenso entre as religiosas quanto à eleição da abadessa, o bispo poderia indicar aquela religiosa que parecesse mais conveniente para assumir o cargo. Esta situação excepcional não anulava o grau de autonomia facultada às religiosas para a escolha da sua superiora: “e poderá qualquer que presidir nomear ou propor algumas religiosas para que elejam delas as que lhe parecer, mas não poderá obrigá-las a que forçosamente haja de eleger alguma delas, antes lhes há de ficar livre a faculdade para eleger outra qualquer”.21 19 – LAVEN, Mary. Virgens de Veneza: vidas enclausuradas e quebra de votos no convento renascentista. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 75. 20 – NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e religião: as enclausuradas clarissas do Convento do Desterro da Bahia (1677-1890). Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 1994, p. 96. 21 – Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ), Portarias e ordens

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Em síntese dedicada a diversos estabelecimentos claustrais femininos fundados na Nova Espanha, uma autora encontrou no processo de eleição das abadessas características semelhantes àquelas apontadas no Rio de Janeiro. E, discutindo de forma mais geral as características da administração conventual, analisa que esta pode ser concebida “como um duplo círculo, onde o interno correspondia às próprias mulheres e o outro era a hierarquia masculina”.22 Esta imagem, até certo ponto, ajusta-se também à administração das ordens terceiras, na medida em que tais fraternidades vinculavam-se às instituições regulares. O intuito de comparar a administração das ordens terceiras à gestão dos estabelecimentos conventuais foi o de observar melhor o funcionamento dos poderes inerentes a tais organismos para, a partir daí, compreender o espaço de autonomia que cada instituição dispunha na intrincada rede do Antigo Regime. Seguindo as análises de Antonio Manuel Hespanha, percebe-se que até o final do período em questão, “a estrutura política vai ser dominada por uma muito sensível pulverização do poder político por uma série de corpos inferiores”.23 Se o comentário do autor pretende caracterizar a dinâmica existente entre os poderes do centro – representados pela soberania régia – e os poderes periféricos, os exemplos analisados revelam as potenciais tensões dos corpos periféricos atuantes na esfera eclesiástica, a opor, por exemplo, comissários e religiosos aos irmãos terceiros, e o bispo diocesano às mulheres professas. Outro aspecto crucial mencionado pelo autor toca na questão dos mecanismos internos deliberativos próprios das instituições de poder local ou periférico: “os corpos contavam, dum modo geral, com uma estrutura triádica de órgãos de governo: uma assembléia geral dos seus membros (que, em geral, apenas englobava de fato uma fração restrita, como veremos), episcopais (1750-1761), v. 1, cód. E-238, f. 15v-16. Cf. também SANTOS, Antonio Alves Ferreira dos. Notícia histórica da Ordem da Imaculada Conceição da Mãe de Deus e do Convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia Leuzinger, 1913, pp. 45-49 e 225. 22 – LAVRÍN, Asunción. Brides of Christi. Conventual Life in Colonial Mexico. ����� Stanford: Stanford University Press, 2008, p. 121. 23 – HESPANHA, Antonio Manuel. História das instituições: épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982, p. 220.

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um conselho deliberativo restritivo e um órgão (individual) executivo e de deliberação”.24

No interior da referida estrutura, o autor enfatiza as limitações das formas “democráticas” de representação, na medida em que os poderes locais no mais das vezes eram geridos por “oligarquias” administrativas. No caso das ordens terceiras fluminenses, o único momento em que todos os membros de uma associação eram chamados a decidir consistia na eleição do prior do Carmo. Em todas as demais situações examinadas, a Mesa administrativa, sob a presidência do ministro ou do prior, funcionava ao mesmo tempo como órgão consultivo, deliberativo e executivo. A faculdade de aconselhar os executores antes da tomada de decisões era também desempenhada, no âmbito das ordens terceiras, pelas juntas de irmãos. Na associação dos terceiros carmelitas, os estatutos previam que a Mesa Administrativa podia eleger seis irmãos para compor a junta, selecionados entre aqueles membros da Ordem que já haviam servido em mesas anteriores. Tinham preferência na composição das juntas os priores jubilados, isto é, os irmãos que haviam ocupado por três vezes o cargo máximo da associação. As juntas eram convocadas para dar maior autoridade a certas decisões tomadas pelas mesas em exercício, quais sejam: a mudança de deliberações assumidas pelas mesas anteriores; a recepção de legados e a aquisição ou alienação de bens; e a aceitação de sepulturas perpétuas nas dependências do templo da Ordem.25 Na Ordem Terceira de São Francisco, os estatutos não previam formalmente a constituição de uma junta. O documento observava apenas que, quando os mesários se reunissem para as sessões ordinárias de decisão, deviam ser chamados os ex-ministros que tinham servido três anos “Com Despesa do seu Cabedal”. Esta diferença sutil parecia conferir à associação dos terceiros franciscanos um caráter muito mais “aristocrático” do que a dos terceiros do Carmelo, na medida em que na primeira a influência dos ministros jubilados se estendia às decisões ordinárias da associação, independentemente da convocação da Mesa em exercício.26 24 – Ibid., p. 214. 25 – AGCRJ, OC. AD., cód. 12.01, Atas, Leis ou Estatutos..., cit., f. 21v-22. 26 – AVOTSF, Livro 4º dos termos da Venerável Ordem Terceira de Nosso Seráfico P. São

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Uma vez analisados os processos de escolha dos membros das mesas administrativas dos irmãos terceiros da cidade do Rio de Janeiro, o foco deste estudo passará agora às filiais das ordens terceiras estabelecidas em diferentes partes da América Portuguesa. Foge ao propósito deste trabalho efetuar um estudo exaustivo dos critérios eleitorais observados na maior parte das ordens terceiras que possuem documentação disponível, o que implicaria um esforço de pesquisa e de reunião de dados que não poderia ser feito aqui. A proposta contida neste estudo tem um alcance mais limitado: a partir de alguns exemplos retirados das capitanias de Pernambuco, Bahia e Minas, pretende-se observar alguns traços em comum ou, ao contrário, as diferenças que as ordens terceiras daquelas regiões guardam em relação às associações do Rio de Janeiro. A filial da Ordem Terceira de São Francisco na vila de Recife foi fundada em 1695, recebendo logo no princípio o ingresso de mais de uma centena de irmãos.27 Os estatutos locais trazem a data de 1784. Os próprios irmãos reconheciam o grande intervalo cronológico existente entre o momento inicial da fundação e a formalização das normas específicas para o funcionamento da Ordem, achando-se “esta desde a sua fundação sem leis algumas econômicas por onde pudesse governar-se”.28 O documento enviado pela associação pernambucana foi examinado no Conselho Ultramarino pelos procuradores da Fazenda e da Coroa. Este último emitiu um longo parecer em 1804, salvaguardando as atribuições dos oficiais da Coroa que julgava ameaçadas em capítulos dos estatutos, além de outras ressalvas pontuais. Acima de tudo, ponderou em sua consulta que o ouvidor da comarca devia ser informado acerca do teor do documento e, ouvindo a Ordem, excluir “tudo o que for contra as Leis, Ordens e Costumes louváveis, ou não tiver a aprovação dos irmãos atuais”. O Conselho emitiu um despacho em maio de 1805 para que o ouvidor da comarca informasse com seu parecer o processo, mas não há o relatório da autoridade pernambucana. Francisco, f. 45v. 27 – PIO, Fernando. A Ordem Terceira de São Francisco do Recife e suas igrejas. 5ª ed. Recife: Ed. da UFPE, 1975, pp. 12-14. 28 – Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), cód. 1684, Estatutos da Ordem Terceira de São Francisco do Recife (1805), f. 44.

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Os estatutos dos irmãos terceiros do Recife foram influenciados pelo Compêndio geral da história da Venerável Ordem Terceira de São Francisco, de autoria do padre Manoel de Oliveira Ferreira, que é referido textualmente, ao lado da Palestra da Penitência, do frade Jerônimo de Belém. Quanto à eleição dos membros da Mesa, importa aqui distinguir as escolhas do ministro, do comissário e dos demais mesários. No processo de escolha do primeiro, participavam todos os irmãos da associação. Os nomes dos três candidatos ao ministério mais votados seriam levados ao escrutínio da mesa, que definiria a partir daí o novo ministro.29 Quanto à seleção do padre comissário, os definidores da Mesa deveriam dirigir ao capítulo da província dos religiosos franciscanos uma lista contendo os nomes de três frades, “que sejam desembaraçados dos atuais empregos de seus conventos”. Neste processo que envolvia duas instituições muito ciosas de suas prerrogativas, embora evidentemente vinculadas, os estatutos tentavam demarcar com clareza as esferas de competência da Mesa e dos religiosos: “não devendo nós aceitar (sic) outro que contra a nossa vontade nos for dado fora dos nomeados; também o não devem dar se o não pedirmos”.30 Por fim, ao tratar da escolha dos futuros mesários da associação, os estatutos definem que o irmão ministro e o comissário levariam à Mesa em exercício os nomes de dois candidatos aos cargos, totalizando quatro indicações para cada lugar. A partir destas relações nominais, os definidores da Mesa escolheriam os seus sucessores. A Mesa estava composta pelo padre comissário, irmão ministro, o vice-ministro, o secretário, o síndico, doze definidores, um ou dois vigários do culto divino e quatro procuradores. Todo o processo eleitoral segue muito de perto as normas contidas nos estatutos dos terceiros carmelitas do Rio de Janeiro, exceto quanto à votação para o cargo de ministro, em que o sufrágio de todos os irmãos precedia e orientava a decisão da Mesa. Um último ponto requer maior atenção nos estatutos da Ordem Terceira de São Francisco do Recife: as atribuições do irmão ministro e do padre comissário. No documento em pauta, os membros mais destacados 29 – Idem, f. 28-28v. 30 – Idem, f. 5-5v.

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são definidos como prelados da associação, cabendo ao padre comissário a direção no plano espiritual e ao irmão ministro “que os reja tão somente em tudo quanto for da economia política e temporal da mesma ordem”.31 O comissário não deveria se intrometer nas atribuições do ministro, de modo a perturbar o governo político da associação, e “só assim se dá a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César”.32 Os estatutos se preocupam também claramente em limitar as competências do comissário e dos ministros para que não anulassem as prerrogativas das mesas. Assim, ambos “nunca obrarão despoticamente, sem que intervenha o preciso assenço (sic) da Mesa, ainda que dela sejam os principais chefes”.33 Ao caracterizar as atribuições dos ministros, os estatutos destacam a presidência que o referido irmão assumia nos assuntos temporais, “assim para mandar propor, consultar, eleger e decidir, quanto lhe parecer”. Não obstante, em todos os assuntos discutidos nas assembleias da Mesa, deveria consultar os demais membros e “se conformar com docilidade ao maior número de votos”, cabendo ao ministro a última decisão apenas em caso de empate.34 Tratando da dependência que o comissário guardava, no âmbito de sua jurisdição, às deliberações do conjunto da Mesa, os estatutos realçam o caráter “oligárquico” das decisões, como também a característica da Ordem como um “corpo místico” em que diferentes partes se articulavam de modo orgânico e indissolúvel: “nas sobreditas espiritualidades deve o Reverendo Comissário consultar os pareceres do Ministro e mais Deputados da Mesa, e concordar com eles no que se propuser, e conformar-se ao maior número de votos, como também o Ministro, no que for de sua inspeção deve convir com todos os Deputados da Mesa; e esta mesma nada pode no espiritual sem o Comissário, no temporal sem o Ministro, pois é recíproca a dependência e inseparável a união para serem válidas, canônicas e regulares todas as suas disposições”.35 31 – Idem, f. 4v. 32 – Idem, f. 10. 33 – Idem, f. 4v. 34 – Idem, f. 9v. 35 – Idem, f. 22.

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Na Bahia, a maior parte dos estudos dedicados às ordens terceiras enfatiza os aspectos artísticos e arquitetônicos presentes nas capelas das referidas associações.36 Assim, na medida em que não foi pesquisado nenhum estatuto das fraternidades locais fundadas nesta capitania, as observações aqui colhidas limitar-se-ão a discutir o que alguns poucos autores analisaram acerca das estruturas administrativas e das formas de governo daquelas instituições. Na síntese que dedicou às ordens terceiras fundadas na cidade do Salvador, Russell-Wood examina as atribuições e o processo de escolha das mesas administrativas das associações dos terceiros do Carmo, de São Francisco e de São Domingos. Na primeira, as reeleições para o priorado não eram comuns, com duas exceções notáveis, que não encontram equivalentes nas demais associações da Bahia e do Rio de Janeiro: os cônegos da Sé da Bahia Dr. João Calmon e o Dr. Antônio Rodrigues Lima, que foram priores dos terceiros carmelitas por oito e sete anos consecutivos, respectivamente.37 Em seguida, o autor enfoca as contribuições monetárias que os irmãos escolhidos para as funções nas mesas deveriam oferecer. Na documentação das ordens terceiras tais gastos aparecem designados como “joias”, e eram proporcionais à importância do cargo ocupado pelo irmão. Com relação aos terceiros dominicanos, foi possível apurar maiores detalhes referentes às mesas. A associação foi estabelecida em 1723, por iniciativa do missionário Gabriel Batista, religioso dominicano que aportara na baía de Todos os Santos, procedente das Índias Orientais. Os irmãos tinham a intenção de fundar na capital da Colônia um hospício ou pequeno estabelecimento conventual para os religiosos de São Domingos, fortalecendo assim o “corpo místico” formado por irmãos leigos e religiosos. A pretendida fundação não se concretizou e, em 1742, foi expedido 36 – Ver por exemplo: ALVES, Marieta. História da Venerável Ordem Terceira da Penitência do Seráfico Padre São Francisco da Congregação da Bahia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948; CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt. Mentalidade e estética na Bahia colonial: a Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1996. 37 – RUSSELL-WOOD, A. J. R. Prestige, Piety and Power in Colonial Brazil: The Third Orders in Salvador. Hispanic American Historical Review. Durham, 69, n. 1, pp. 61-89, Feb. 1989.

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um breve pontifício, isentando a associação dos terceiros dominicanos da jurisdição dos religiosos do referido instituto, e subordinando-a ao arcebispo da Bahia.38 No que tange à escolha do diretor espiritual da associação, que ocupava lugar equivalente ao do padre comissário nas outras ordens terceiras, há diferenças substanciais em relação a estas, relacionadas à ruptura dos vínculos jurídicos com os religiosos de São Domingos. Assim, o primeiro compromisso da Ordem Terceira de São Domingos, elaborado em 1771, estipulava que a escolha do diretor espiritual era uma atribuição da Mesa, que o selecionava entre os terceiros dominicanos do clero secular.39 As eleições para os lugares da Mesa ocorriam dez dias antes da festa da padroeira da Ordem, a mística dominicana Santa Catarina de Siena. Naquela ocasião, o irmão prior em exercício propunha três irmãos como ocupantes dos cargos da associação, inclusive o seu próprio sucessor, segundo se depreende do estudo citado. Depois, os membros da Mesa iniciavam a votação a partir dos nomes propostos, utilizando para isso favas brancas e pretas, para indicar respectivamente aprovação e reprovação.40 Comparando a estrutura administrativa e o processo eleitoral desenvolvidos pelos terceiros de São Domingos na Bahia com aqueles já estudados, pode-se concluir que há uma nítida concentração de poderes nas mãos do irmão prior, em detrimento das atribuições do diretor espiritual, que não tinha prerrogativas para propor candidatos para a Mesa futura. No território das Minas, a difusão de associações de terceiros franciscanos ocorreu a partir da fundação da Ordem na sede administrativa da capitania, em 1746. Os sodalícios vinculados à Ordem Terceira de São Francisco em Vila Rica constituíam no início “presídias”, isto é, seções administrativas filiadas àquela associação. O presidente de cada ramo administrativo local era designado pela Mesa de Vila Rica entre os irmãos 38 – Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), lata 68, pasta 15: Resumo cronológico-histórico da Venerável Ordem Terceira de São Domingos da Bahia, desde a sua fundação em 1723 até o ano de 1781, f. 1-46. 39 – CAMARGO, Maria Vidal de Negreiros. Os terceiros dominicanos de Salvador. Dissertação de Mestrado apresentada à UFBA, sob a orientação de José Calazans. Salvador, mimeo., 1979, p. 10. 40 – Ibid., pp. 20-21 e 39-40.

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terceiros professos. Mais tarde, tais presídias tornaram-se associações independentes, como as de Mariana, Congonhas, entre outras localidades.41 Devido à importância que assumiu no conjunto das associações de irmãos terceiros estabelecidas no território em pauta, a Ordem Terceira de São Francisco em Ouro Preto tem merecido constante interesse por parte da historiografia, não só quanto aos aspectos artísticos e arquitetônicos, mas também quanto às questões institucionais, sociais e religiosas. Assim, importa aqui fazer uma rápida síntese dos tópicos administrativos relacionados à referida associação para, depois disso, analisar os estatutos dos terceiros franciscanos em Mariana, cujo documento foi possível consultar diretamente. O cônego Trindade conferiu um importante destaque em sua obra aos conflitos de jurisdição entre a associação dos terceiros franciscanos de Vila Rica e os religiosos provinciais do Rio de Janeiro. No ano seguinte ao da fundação efetuada pelo missionário franciscano fr. Antônio de Santa Maria, ato realizado por delegação do prelado fluminense, este religioso designou para a sucessão no lugar de comissário o sacerdote Bernardo Madeira. Esta substituição foi devida às limitações existentes sobre a permanência de eclesiásticos regulares na região das Minas. Impossibilitada assim de manter religiosos franciscanos como comissários residentes, como era a praxe adotada em diversas localidades da América Portuguesa, impôs-se assim a seleção de padres diocesanos para assumir a referida função.42 Os primeiros estatutos dos terceiros franciscanos de Vila Rica datam de 1754, elaborados ainda durante o comissariado do padre Bernardo Madeira. Dois anos depois, foram encaminhados ao capítulo provincial dos religiosos franciscanos do Rio de Janeiro, para que fossem confirmados. O provincial fluminense, fr. Arcângelo Antônio de Sá, em documento datado de 29 de abril de 1756, estranhou o procedi41 – TETTEROO, Fr. Samuel, OFM. Subsídios para a História da Ordem III de S. Francisco em Minas (parte 3). Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis, 6, n. 3, pp. 671-681, set. 1946. 42 – TETTEROO, Fr. Samuel, OFM. Subsídios para a História da Ordem III de S. Francisco em Minas (parte 4). Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis, 7, n. 2, pp. 333-356, jun. 1947.

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mento dos irmãos terceiros de Vila Rica. Primeiramente, por haverem extraído cláusulas dos estatutos elaborados pela Ordem Terceira de São Francisco do Rio de Janeiro, que não tinham sido ainda aprovados pela autoridade dos provinciais. Em segundo lugar, porque aquela ação interferia nas competências mantidas pelos prelados espirituais da Ordem, conforme indicava de maneira contundente o provincial: E só a Nós pertence dar Estatutos para se regerem e governarem as veneráveis Ordens Terceiras a Nós sujeitas; damos estes Estatutos por de nenhum vigor, pelas causas acima ditas; e só mandamos se rejam e governem os nossos Caríssimos Irmãos terceiros pela Palestra da Penitência, e só esta se observe e guarde, pois por ela se regem e governam tantas e tão inumeráveis Ordens terceiras existentes em todo o mundo, sujeitas à nossa Seráfica Religião.43

A Ordem Terceira de Vila Rica não se deu por vencida e, para contornar a autoridade do provincial do Rio de Janeiro, recorreu em Madri à autoridade de fr. Pedro Juan de Molina, padre-geral dos religiosos de São Francisco. O prelado-geral da Ordem confirmou os estatutos em pauta, que foram solenemente publicados em 1761 em Vila Rica. Os conflitos continuaram durante o provincialado de fr. Inácio da Graça Leão (176467), que negava a faculdade arrogada pela Mesa da Ordem Terceira de Vila Rica de escolher seus próprios comissários. Não obstante, este provincial propôs uma solução intermediária, que depois seria aplicada na prática, isto é, que a Mesa enviasse à província do Rio de Janeiro uma nominata contendo três indicações de sacerdotes seculares para desempenhar o ofício de comissário. Esta lista seria apreciada pelos religiosos reunidos no capítulo provincial, que escolheriam então o sacerdote mais capaz para exercer o comissariado.44 Segundo refere uma autora, os estatutos de 1758 dos terceiros franciscanos de Vila Rica já previam a escolha dos comissários entre os irmãos terceiros pertencentes ao clero secular. Além do comissário residente na região das Minas, a associação em foco 43 – TRINDADE, Cônego Raimundo. São Francisco de Assis de Ouro Preto. Crônica narrada pelos documentos da Ordem. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1951, pp. 25-26 (grifos de Trindade). 44 – Ibid., pp. 149-150.

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recebia a inspeção anual de um comissário visitador, representante do provincial do Rio de Janeiro, que permanecia em Vila Rica desde o começo do Advento até o início da Quaresma.45 No que tange à composição e à escolha dos dirigentes seculares, os estatutos de 1754 dos terceiros de Vila Rica estipulavam que a Mesa Administrativa era formada pelos irmãos ministro, vice-ministro, secretário, síndico, seis definidores e o vigário do culto divino. O momento da eleição ocorria a 16 de setembro, véspera da festa das Chagas de São Francisco, quando se comemorava a especialíssima graça da impressão dos estigmas da Paixão no corpo do seráfico patriarca. Participavam da votação para os cargos não somente os irmãos mesários em exercício, mas também o irmão ministro cujo mandato estava terminando, o ministro “que por eleição for o mais antigo” e os ministros que ocuparam o cargo em três ocasiões (jubilados). Em cédulas secretas, conferidas pelo irmão secretário encarregado da apuração, os ditos mesários propunham três nomes para ocupar a função de ministro. Em seguida, os mesmos participantes colocariam em outra cédula o nome de um candidato para cada lugar da Mesa, assim como os nomes das irmãs que propunham para ministra e mestra de noviças. A contagem e a proclamação dos resultados ocorriam no dia da festa das Chagas. Assim, na associação de Vila Rica, pode-se dizer que as estruturas administrativas e os escrutínios assumiam uma forma “oligárquica”, impressão reforçada pela participação facultada aos irmãos ministros jubilados das votações ordinárias das mesas.46 Prosseguindo com o enfoque comparativo deste trabalho, é o momento de iniciar a análise dos estatutos dos terceiros franciscanos da cidade de Mariana. O documento em pauta tem a data de 1811, tendo sido 45 – EVANGELISTA, Adriana Sampaio. Pela salvação de minha alma: vivência da fé e vida cotidiana entre os irmãos terceiros em Minas Gerais – séculos XVIII e XIX. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ciência da Religião da UFJF, sob a orientação de Célia Maia Borges. Juiz de Fora, mimeo., 2010, pp. 84-86 e 195-197. 46 – SOUSA, Cristiano Oliveira de. Os membros da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Vila Rica: Prestígio e poder nas Minas (século XVIII). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFJF, sob a orientação de Célia Maia Borges. Juiz de Fora, mimeo, 2008, pp. 86-90 e 179-192 (este último trecho contém a cópia dos estatutos de 1754).

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enviado aos tribunais da Mesa do Desembargo do Paço e da Mesa da Consciência e Ordens para alcançarem a graça da confirmação régia. No período de mais de meio século a separar a elaboração dos dois estatutos das associações mineiras, surgiram mudanças significativas referentes à composição das mesas e à escolha dos membros que a compunham.47 Em primeiro lugar, ao lado dos mesários que figuravam de costume nas associações de terceiros franciscanos (ministro, vice-ministro, secretário, síndico, doze definidores, etc.) os estatutos incluíam na Mesa a irmã ministra, aspecto inédito entre todas as normas administrativas até aqui consultadas. Não obstante, o documento em pauta trata de maneira vaga as atribuições da referida irmã. Além dos requisitos morais e materiais exigidos para o cargo, devia “assistir a todas as funções da Nossa Ordem, com toda a modéstia e respeito, para que a seu exemplo o façam as Nossas Irmãs”.48 Este comentário se aplica bem provavelmente à assistência das cerimônias de culto divino. No que toca à escolha do comissário da Ordem, o processo distingue-se também daquele observado em Vila Rica. O comissário devia ser escolhido a partir de uma lista contendo os nomes de doze irmãos terceiros sacerdotes. O irmão secretário tinha a atribuição de preparar a relação nominal, que depois passaria pelo escrutínio dos membros da mesa. Uma vez escolhido para o lugar de comissário o candidato mais votado, a relação seria enviada para o Rio de Janeiro, onde seria confirmada pelo capítulo provincial. Assim, levando em conta as análises anteriores, o documento em pauta deixava evidente a diminuição dos poderes dos religiosos no processo eleitoral praticado pelas associações de irmãos terceiros.49 A eleição para as demais ocupações da Mesa realizava-se a cada ano no dia 14 de agosto. Reunindo-se todos os membros da Mesa em exercício, sob a presidência do padre comissário, aqueles irmãos lançariam em uma cédula os nomes de três proponentes ao cargo de ministro. Os votos seriam conferidos pelo comissário e pelo ministro em exercício, “para se 47 – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), cód. 844. Estatutos da Ordem Terceira de São Francisco da Cidade de Mariana (1811), f. 3. 48 – Idem, f. 13. 49 – Idem, f. 4.

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saber quais ficam aprovados”. O processo de habilitação dos candidatos efetuado pelos dois membros mais proeminentes da Mesa ficava concluído com a indicação de somente três nomes, entre os quais os demais mesários escolheriam um para exercer o futuro ministério da associação. Esta segunda eleição era feita também em cédulas de papel, com a indicação de apenas um nome. Processo análogo era praticado para a eleição dos cargos de vice-ministro e de ministra. Quanto à escolha dos demais membros da Mesa, todas as propostas partiam do padre comissário, que apresentava para cada cargo um irmão que tivesse os requisitos necessários. Após o anúncio de cada candidato, ordenava “correr votos por escrutínio de feijões brancos e pretos e, saindo aprovado, mandará o irmão Secretário escrever o seu nome em o papel da eleição”. Adotavam-se os mesmos procedimentos para escolherem os mestres de noviços, mestras das noviças, sacristães, presidentes, vice-comissários, andador e enfermeiro.50 Assim, no âmbito do processo eleitoral, torna-se perceptível a primazia do comissário e, em menor grau, do ministro, na apresentação das propostas iniciais dos candidatos, confirmando-se todas as indicações pelo sufrágio conjunto da Mesa. No que tange à Ordem Terceira do Carmo na região das Minas, uma autora analisou recentemente a composição dos quadros administrativos da associação de Vila Rica, mas sem detalhar os critérios de eleição de cada mesário.51 Outro processo eleitoral pode ser analisado nos estatutos elaborados em 1767 pela Ordem Terceira do Carmo fundada na Vila do Príncipe. Exceto pela forma de seleção dos padres comissários desta, as eleições para todos os cargos seguiam de perto os procedimentos dos terceiros carmelitas fluminenses. Quanto à eleição do comissário, denominado de “cabeça espiritual do corpo místico” da Ordem, os estatutos determinavam que a Mesa fizesse uma “nominata de três Sacerdotes terceiros, a qual será remetida ao Reverendíssimo Provincial para ser aprovado um dos ditos”. A escolha dos mesários leigos era efetuada na véspera do dia da festa de Nossa Senhora do Carmo. Para preencher o futuro prio50 – Idem, f. 14. 51 – EVANGELISTA, Adriana Sampaio, op. cit., pp. 92-109.

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rado da associação mineira, o padre comissário propunha à Mesa quatro irmãos com os requisitos para o cargo. Após a habilitação da Mesa, todos os irmãos professos deviam tomar parte do sufrágio. Para a escolha dos demais oficiais e definidores, o irmão secretário fazia propostas com três candidatos para cada cargo, que depois seguiam ao escrutínio da Mesa. A eleição da prioresa e das demais irmãs à frente de funções administrativas pautava-se pelas propostas do comissário, que depois eram submetidas à Mesa.52 Para completar o plano comparativo de análise proposto neste trabalho, falta examinar a organização administrativa e os critérios de eleição praticados nas ordens terceiras estabelecidas no Reino de Portugal. Obviamente, impõe-se aqui um critério rigoroso de seleção, pois seria impossível, dentro dos limites do espaço disponível e da documentação consultada, sequer compor um quadro semelhante ao que foi esboçado para a América Portuguesa. Assim, para a análise da Ordem Terceira de São Francisco, foi selecionada a Palestra da Penitência, de fr. Jerônimo de Belém, pelo fato de ser mencionada como modelo de governo para diferentes associações coloniais. Com relação aos irmãos do Carmelo, optou-se pela análise dos estatutos da associação de Lisboa, por ter sido a principal e de fundação mais antiga no Reino.53 No que tange às diretrizes para o governo das associações dos terceiros franciscanos, a Palestra menciona duas fontes jurídicas: os estatutos gerais elaborados em 1675 pelo geral da Ordem de São Francisco, de que se fez menção no início deste trabalho; e os estatutos aprovados pelo papa Inocêncio XI em 1686. A primeira norma determinava a participação nas eleições dos mesários em exercício, do ministro mais antigo e dos irmãos ministros “que por três vezes tiverem exercitado a mesma ocupação”. Por sua vez, a legislação mais recente limitava a participação no pleito ao comissário, ao ministro e aos mesários em exercício. Não obstante, as eleições feitas pelo primeiro modo não deveriam ser anuladas.54 52 – AGCRJ, OC. AD., cód. 12.04. Estatutos da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo ereta na vila do Príncipe (1767), f. 7, 8 e 62-74v. 53 – MARTINS, William de Souza, op. cit., pp. 49-50. 54 – BELÉM, Fr. Jerônimo de, OFM. Palestra da Penitência, sendo corifeu, autor e Mes-

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Quanto aos estatutos dos terceiros carmelitas da Corte, o documento previa a existência de treze lugares na Mesa, cabendo doze aos irmãos leigos (prior, subprior, secretário, etc.) e um ao religioso comissário. Se a quantidade e a hierarquia de cargos não diferiam muito do padrão encontrado nas associações coloniais, o mesmo não pode ser dito do processo eleitoral efetuado para a escolha dos irmãos mesários. No que diz respeito à eleição do futuro prior – que “será sempre Fidalgo de boa qualidade, havendo-o na Ordem” –, principiava com a reunião da Mesa em exercício, excluindo-se deste grupo o irmão que então ocupava o priorado. A comissão formada pelos doze membros escolhia um corpo eleitoral de vinte irmãos, sendo dez nobres e dez oficiais. Os vinte eleitores assim escolhidos eram selecionados entre os membros que tinham desempenhado ocupações na Mesa. Este corpo eleitoral reduzia-se depois à metade por sorteio, formando-se cinco pares de irmãos, nos quais entravam um nobre e um oficial. Entre os nobres, deveriam existir obrigatoriamente seis expriores. Separadamente, cada dupla elaborava uma pauta com nomes de irmãos aptos para exercerem as funções da futura Mesa. Os nomes contidos nas cinco relações eram finalmente levados à eleição da Mesa em exercício, começando com o voto do prior. Ficava eleito para o próximo ano administrativo o irmão que contasse com o maior número de votos nesta última votação. A importância dos dez eleitores no âmbito administrativo da associação fica reforçada ao se constatar que aquele colegiado formava as juntas da Ordem, convocadas pela Mesa em exercício para reformar as decisões das antigas mesas administrativas.55 Aplicando a terminologia utilizada para a classificação do perfil da Mesa e do processo de eleição, este caso parece aproximar-se da forma “aristocrática”, pois as decisões fundamentais eram exclusivamente controladas por uma oligarquia institucional, sem a participação do conjunto da associação. tre o milagroso Deus Menino, e seu legítimo substituto o Patriarca dos Pobres, o grande Pequeno São Francisco de Assis [...] Lisboa Ocidental, na Oficina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1736, pp. 336-337. 55 – Estatutos da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo desta Corte. Novamente reformados, assim dos antigos, como dos acórdãos das mesas e juntas [...]. Lisboa, na Oficina de Miguel Manescal, Impressor do Santo Ofício e da Sereníssima Casa de Bragança, 1715, pp. 1, 2, 31-38 e 51-52.

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É nítida a distância encontrada entre os procedimentos eleitorais praticados pelos irmãos do Carmo em Lisboa e aqueles aplicados pelos terceiros carmelitas no Rio de Janeiro, em Minas e, muito provavelmente, em outras regiões coloniais. No âmbito das associações franciscanas, não parece haver muitas diferenças entre os mecanismos representativos adotados no Reino e na América Portuguesa. Pelo fato talvez da Ordem Terceira de São Francisco se apoiar em determinações administrativas de caráter geral, complementadas tardia e pontualmente por estatutos locais. O documento que prescreve o funcionamento dos pleitos eleitorais adotados pelos terceiros em Lisboa inspira-se diretamente nas votações para a escolha dos oficias das câmaras municipais do Reino e domínios. Conforme a descrição de Boxer, os homens bons das localidades escolhiam um colegiado de seis cidadãos que, divididos em três duplas, elaboravam pautas contendo os nomes daqueles considerados mais capazes de assumir as ocupações no governo local ou de maior popularidade para o desempenho dos ditos postos. O resultado da eleição era definido por meio de sorteio.56 Outra comparação permitida pelos estatutos dos terceiros do Carmo em Lisboa ocorre com as diretrizes adotadas pelas filiais das misericórdias. Nestas, a Mesa Administrativa era composta por sete irmãos nobres e seis mecânicos, eleitos anualmente “por uma comissão eleitoral de dez irmãos escolhidos pela totalidade da irmandade”. O conjunto da irmandade foi inicialmente fixado em cem membros, e se encontrava dividido segundo as duas categorias referidas.57 No final do século XVII e princípios do século XVIII, alterações no processo de escolha dos representantes camarários enfraqueceram as atribuições dos homens bons na Bahia, no Rio de Janeiro e em outros domínios, fortalecendo as atribuições dos vice-reis e governadores.58 Na Misericórdia do Rio de Janeiro, ainda que 56 – BOXER, Charles. Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda, 1510-1800. Madison and Milwaukee, The University of Wisconsin Press, 1965, pp. 5-7. 57 – RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed. UnB, 1981, p. 15. 58 – BOXER, op. cit., pp. 74-75 e 176-179; BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 314-317; e GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Poder, autoridade e o Senado da Câmara do Rio de Janeiro, Ca. 1780-1820. Tempo: Revista do Departamento de História da UFF.

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as distinções entre os irmãos das duas condições tenham se tornado menos importantes na segunda metade do século XVIII, as longas provedorias dos vice-reis Marquês do Lavradio e Conde de Resende atestam também a diminuição da autonomia governativa da associação.59 Neste contexto, a preservação dos mecanismos eleitorais nas ordens terceiras pode ter contribuído para reforçar o caráter representativo de tais associações em relação a alguns organismos tradicionais do poder local. Talvez seja este um dos fatores para explicar a atração que as ordens terceiras exerceram sobre as novas elites locais, representadas pelos negociantes.60 Em resumo, as estruturas administrativas das ordens terceiras podem ser analisadas a partir das formas de governo praticadas pelas associações. E, conforme o argumento já exposto, um dos caminhos para se chegar à tipologia das referidas formas pode ser encontrado nos processos de eleição dos dirigentes internos. Assim, a forma “democrática” de participação foi constatada nos estatutos dos terceiros carmelitas do Rio de Janeiro e da Vila do Príncipe, como também entre os terceiros franciscanos do Recife, na medida em que os irmãos destas associações tinham algum grau de participação na escolha dos dirigentes temporais mais elevados. Não obstante, nestas e nas demais associações, havia um predomínio das formas “aristocráticas” de governo, pois o papel das Mesas Administrativas estava presente em todo o processo eleitoral e na maior parte das iniciativas do governo interno. Com relação à escolha dos dirigentes eclesiásticos, os terceiros franciscanos do Rio recebiam dos superiores provinciais a indicação dos comissários. Os terceiros carmelitas do Rio de Janeiro e os irmãos franciscanos do Recife enviavam nominatas contendo três indicações de religiosos para a escolha final dos capítulos Rio de Janeiro, n. 13, jul. 2002, pp. 111-155. 59 – FAZENDA, José Vieira. Os provedores da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Romão de Mattos Duarte, 1960, pp. 237-240. 60 – MARTINS, William de Souza, op. cit., pp. 351-358; MORAES, Juliana de Mello. As associações religiosas enquanto espaços de poder: as famílias paulistanas e a Ordem Terceira de São Francisco (século XVIII). Nuevo Mundo Mundos Nuevos. Coloquios, 2008, pp. 1-12; BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. “Camaristas, provedores e confrades: os agentes comerciais nos órgãos de poder (São Paulo, século XVIII)” In: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Junia Ferreira e BICALHO, Maria Fernanda (orgs.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009, pp. 319-333.

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provinciais. Em Vila Rica e na Vila do Príncipe, a remessa das nominatas era igualmente praticada, ainda que as indicações para os comissariados fossem de sacerdotes seculares. Em Mariana, o processo eleitoral já chegava definido pela Mesa, recebendo apenas a confirmação dos religiosos. E, por fim, na Ordem Terceira de São Domingos da Bahia, a escolha do diretor espiritual era efetuada inteiramente pela Mesa, sem necessidade de qualquer confirmação posterior. Referências Bibliograficas ALMEIDA, Fortunato de. História da Igreja em Portugal. Nova ed. prep. e dir. por Damião Peres. Porto-Lisboa: Livraria Civilização, 1970, v. III. ALVES, Marieta. História da Venerável Ordem Terceira da Penitência do Seráfico Padre São Francisco da Congregação da Bahia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. “Camaristas, provedores e confrades: os agentes comerciais nos órgãos de poder (São Paulo, século XVIII)” In: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Junia Ferreira e BICALHO, Maria Fernanda (orgs.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009, pp. 319333. BOXER, Charles. Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda, 1510-1800. Madison and Milwaukee, The University of Wisconsin Press, 1965. CAMARGO, Maria Vidal de Negreiros. Os terceiros dominicanos de Salvador. Dissertação de Mestrado apresentada à UFBA, sob a orientação de José Calazans. Salvador, mimeo, 1979. CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt. Mentalidade e estética na Bahia colonial: a Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1996. DELGADO PAVÓN, Maria Dolores. Reyes, nobles y burgueses em auxilio de la pobreza (La Venerable Orden Tercera Seglar de San Francisco de Madrid em el siglo XVII). Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, 2009. EVANGELISTA, Adriana Sampaio. Pela salvação de minha alma: vivência da fé e vida cotidiana entre os irmãos terceiros em Minas Gerais – séculos XVIII e XIX. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ciência da Religião da

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Texto apresentado em setembro /2009. Aprovado para publicação em novembro /2009.

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Impressores e Livreiros: Brasil, Portugal e França, idEias, cultura e poder nos primeiros anos do oitocentos1 Printers and Booksellers: Brazil, Portugal and France, ideas, culture and power in the early years of the Nineteenth Century Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves 2 Resumo: O presente artigo apresenta como objetivo principal examinar as ideias políticas e culturais do início do oitocentos, que circularam no Brasil, advindas também de Portugal e da França, por meio da atividade de impressores e livreiros. Nesse caso, os conceitos de livro e de imprensa revestem-se de um sentido amplo: não são apenas relatos de um tempo, que apresentam visões distintas de um mesmo fato, mas sim agentes que podem intervir nos processos e episódios que construíram o Brasil como História. Procura-se mostrar como o impresso no Brasil apresentou ainda uma relação íntima com a conjuntura política do país, quando as tipografias e livrarias, ao fazer circular livros, periódicos, panfletos e folhetos escritos, transformavam-se em locais também de discussão e de sociabildades. Pretende-se, assim, realizar, por meio das obras que impressores e livreiros publicavam e divulgavam, a análise das linguagens fundamentais que caracterizaram as culturas políticas do mundo luso-brasileiro, vistas sempre com uma pluralidade de sentidos, especialmente, no momento das invasões napoleônicas em Portugal e do movimento constitucional de 1821. Palavras-chave: Impressores – Livreiros – Cultura Política – Espaços Públicos – Transmissores Culturais Ativos.

Abstract: The main purpose of this article is to examine, through the activities of printers and booksellers, the political and cultural ideas that circulated in Brazil, as well as in Portugal and France, during the early years of the Nineteenth Century. In this case, the concepts of book and the press have a broader sense: these are not just reports of a time period showing different visions of the same facts; these are agents capable of intervening in processes and events that helped build Brazilian History. It seeks to demonstrate how printed materials in Brazil were closely related to its political situation, when printshops and bookshops also turned into spaces for discussion and socialization by allowing the circulation of books, periodicals, pamphlets and booklets. Therefore, its intention is to help analyze, through the materials that printers and booksellers published and disseminated, the fundamental languages that characterized Luso-Brazilian political culture that were always perceived under a plurality of meanings, especially at the time of the Napoleonic invasions in Portugal and the constitutional movements of 1821. Keywords: Printers – Booksellers – Political Culture – Public Spaces – Active Cultural Transmitters.

1 – Originalmente, esse texto, em forma mais reduzida, foi apresentado como conferência no III Seminário Dimensões da Política na História: Culturas Políticas, Redes Sociais e Relações de Poder promovido pelo Núcleo de Estudos em História Social da Política do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em novembro de 2010. 2 – Professora Titular do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora do CNPq, Cientista do Nosso Estado/Faperj, coordenadora do projeto Pronex Faperj/CNPq (2009-11).

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[...] é impossível descrever bem a vida dos homens sem fazê-la banhar-se no sono em que se submerge [...]. Marcel Proust. O Caminho de Guermantes. Trad. de Mario Quintana. Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo, 1953, p. 61.

Livros, livreiros, impressores, leitores podem se constituir em caminhos diversificados da pesquisa histórica para uma abordagem das práticas culturais e políticas de uma dada sociedade em uma determinada conjuntura histórica. Ademais, a história do livro pode equivaler também à investigação do sentido das mensagens transmitidas pela palavra escrita, pois o livro transforma-se em um meio privilegiado “de diálogo com o passado, de criação e de inovação”.3 Sob esse aspecto, o livro não deve ser visto apenas como memória de um tempo, que narra as diferentes percepções de um mesmo fato, ou como simples ingrediente do acontecimento, no dizer de Robert Darnton4, mas agente que se faz presente nos processos e episódios. Logo, ao analisar-se o circuito da impressão até o produto final – o livro, em suas linguagens e seus conceitos – e até a recepção que despertou, verifica-se que este foi um dos principais instrumentos da criação de novas culturas políticas. Portanto, o livro e o impresso apresentam também sua historicidade. Poderosos elementos de continuidade, os livros também podem ser importantes vetores de rupturas na tradição5. Tal tendência evidencia-se, em especial, ao longo do século XIX, quando o livro – investido de múltiplas missões: de educar, de formar, de criar tanto um espírito de universalidade quanto de edificar as nações particulares – foi mais do que portador desses projetos, passando a assumi-los integralmente.

3 – Jacob, Christian. “Prefácio”. In: Baratin, Marc & Jacob, Christian. O poder das bibliotecas: a memória dos livros no ocidente. [Trad.]. Rio de Janeiro: Editora da URFJ, 2000, p. 11. 4 – Darnton, Robert. “Introdução”. In: Darnton, Robert & ROche, Daniel (orgs.). Revolução impressa. A Imprensa na França, 1775-1800. [Trad.]. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 15. 5 – Ribeiro, Maria Manuela Tavares. “Livros e leituras no século XIX”. Revista de História das ideias. Coimbra, 20: 187-228, 1999, p.187.

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Se o livro não fez a Revolução na França, no dizer de Barbier6, somente ele, de certo modo, por meio de uma relação dialética, a tornou possível. Afinal, não se pode acreditar no poder totalmente aculturante do livro, como já bem afirmou Chartier. No Brasil, verifica-se, também, que o impresso apresentou uma relação íntima com a conjuntura política do país, como ocorreu no momento da Independência ou da crise do primeiro Reinado, quando, ao fazer circular livros, periódicos, panfletos e folhetos escritos, as tipografias – locais também de discussão – tiveram um papel decisivo na produção e difusão da cultura política do período, embora sempre estabelecendo uma pluralidade de sentidos e contribuindo para que a política ultrapassasse o tradicional espaço institucional do poder e se tornasse realmente pública. Esse trabalho pretende, assim, por meio do exame de livreiros, de impressores e dos livros que publicaram e divulgaram nas primeiras décadas do oitocentos, especialmente nos momentos de tensão, como no período das guerras napoleônicas e naquele do movimento constitucionalista de 1821, analisar linguagens fundamentais que caracterizaram as culturas políticas do mundo luso-brasileiro daquela conjuntura. — Em 27 de setembro de 1808, os negociantes da Praça do Rio de Janeiro publicaram na Gazeta, jornal que acabava de inaugurar um novo momento do impresso nesta cidade, uma carta a S. A. R., em que ofereciam seus préstimos à Coroa portuguesa, em tão delicada situação: Senhor – Nós abaixo-assinados Negociantes desta Praça do Rio de Janeiro, pondo de parte a lembrança das excessivas perdas, que temos sofrido pela invasão dos bárbaros usurpadores do Reino de Portugal e pela interrupção consequente da navegação e estagnação do Comérico para sentir em toda a sua força os muitos mais pesados males, que têm sofrido os nossos Irmãos existentes naquele Reino, assim como o sublime entusiasmo e a constante lealdade que dirigiam seus esforços [...] para sacudirem o tirano jugo que os oprimia [...]; comovidos, outrossim, pela consternação e penúria que expressam nos papéis de ofício ultimamente publicados, não menos que pela impossibilidade 6 – BARBIER, Frédéric. História do livro. [Trad.]. São Paulo: Paulistana, 2008, p. 349.

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que a distância nos opõe de acudirmos com os nossos braços para sustentar tão nobres como gloriosos esforços enquanto é tempo; e mais que tudo pelo vivo desejo de prevenir ou ao menos aliviar a Paternal Solicitude de V. A. R. em benefício de tão beneméritos Vassalos, por considerarmos que a conjuntura atual não permitirá que sejam conformes à Real generosidade e as retas Intenções de V. A. R. os socorros que pedem e precisam; humildemente prostados aos Reais Pés de V. A. R. ousamos implorar da Sua Benignididade se digne permitir-nos que nas embarcações que forem destinadas a conduzir os socorros pedidos se recebam os gêneros que cada um dos assinantes abaixo declara para entregar à pessoa, que a esse fim for encarregada e fique responsável a dar conta de sua fiel entrega; gêneros que julgam não só necessários, mas até úteis para provimento dos Exércitos; e que outrossim se digne permitir-nos que possamos abrir um Cofre em que se receba o dinheiro das subscrições voluntárias com que as pessoas de todas as outras Classes queriam concorrer para ser remetido do mesmo modo ou o dinheiro, ou seu produto em gêneros [...] para que aqueles nossos Irmãos vejam o vivo interesse que tomamos no feliz êxito da causa que sustentam, e a fim que o inimigo comum possa convercer-se que não há força na terra que possa destruir um trono, que está firmado no Coração dos Vassalos.7

Por meio de uma prática comum ao Antigo Regime português, em que o monarca absoluto possuía capacidade de conceder benesses e mercês em troca de serviços e favores de seus súditos, como já apontado por diversos historiadores8, as elites mercantis ofereciam seus préstimos em busca de favores e graças honoríficas que permitiriam elevá-los à qualidade de nobreza. Tratava-se de socorrer à Coroa em momento delicado das invasões napoleônicas, mas também de mostrar a seu soberano as dificuldades que tal guerra trazia ao comércio entre a América portuguesa e o Reino. Além desta, outras subscrições permearam o reinado de D. João no Rio de Janeiro: em 1810, uma nova era feita com o objetivo de resgatar 7 – Gazeta Extraordinária do Rio de Janeiro, nº 5, 14 de outubro de 1808. 8 – Para essa questão, ver, entre outros, OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001, pp. 19-33 e HESPANHA, António Manuel. “La economia de la gracia”. In: Gracia del derecho: economia de la cultura em la Edad Moderna. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pp. 151-176.

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os cativos portugueses em Argel e, em 1817, para as expedições militares a fim de conter a revolta de Pernambuco.9 Se essa foi uma prática dos negociantes em socorrer o monarca em suas crises financeiras, o que aqui interessa é verificar a presença de quatro nomes que se fazem presentes nestas listagens: João Roberto Bourgeois, Paulo Martim, Francisco Luís Saturnino da Veiga e Manuel Joaquim da Silva Porto. Tais indivíduos eram negociantes, mas possuíam uma atividade diferencial pois “tratavam em livros”, ou seja, eram livreiros, na explicação do Dicionário de Moraes de 1813.10 Sem dúvida, doando uma quantia bem mais modesta – que girava entre 100 contos e 4 contos de réis – contra as vultuosas somas dos negociantes de grosso trato ou dos traficantes de escravos, que ofereciam 400 contos a 2 mil contos de réis, esses livreiros inseriam-se também nas questões cotidianas ligadas à política da nova Corte e pretendiam ser reconhecidos como homens de distinção na sociedade. É importante frisar que tais negociantes praticavam um comércio especializado de livros, pois era comum haver homens que se dedicavam, com frequência, a outros ramos de negócios, fossem estampas, objetos de luxo, ou produtos ainda mais exóticos, como Imbert de Nagis, negociante francês que, anunciava, anos mais tarde, em 1818, na Gazeta, vender, em sua loja na rua do Ouvidor nº 81, um grande sortimento de livros portugueses, franceses e ingleses mas também móveis, cristais, porcelanas, pianos fortes e o grande Rub Antisiphilitique para os males venéreos.11 No início do oitocentos, a cidade do Rio de Janeiro, certamente, conhecia o comércio de livros. Os requerimentos enviados à Real Mesa Censória, solicitando licença para despachar livros de Portugal, destina9 – Gazeta do Rio de Janeiro, nº 94, 7 de novembro de 1810 e Gazeta do Rio de Janeiro, nº 27, 2 de abril de 1817. 10 – Silva, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. v. 2, p. 232. 11 – Gazeta do Rio de Janeiro, nº 25, 28 março 1818. O “grande Rub Antisiphilitique” era um remédio contra a sífilis, utilizado, em larga escala, até o final do século XIX, à base de um xarope de salsaparrilha, sene, mel, açúcar e outros ingredientes. Cf. BoyveauLaffecteur. Observations sur l’histoire et les effets du rob anti-siphilitique. Paris: Chez l’Auteur, 1810. viii+221p.

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dos a várias localidades brasileiras – como Rio de Janeiro, Bahia, Maranhão, Pernambuco e Pará, eram muito frequentes, sendo mencionados diversos negociantes franceses que atuavam em Lisboa, como, por exemplo, João B. Reycend, Viúva Bertrand & Filhos, Paulo Martin, Borel & Borel e Francisco Rolland. Da mesma forma, a partir de 1808, as licenças concedidas pela Mesa do Desembargo do Paço no Rio de Janeiro aos requerimentos feitos pelos livreiros para desembaraçar seus livros nas Alfândegas, os pareceres emitidos pelos censores régios e os anúncios nos jornais, podem confirmar que diversos livreiros, de origem francesa e portuguesa, atendiam a particulares e negociantes no Brasil.12 Entre estes, destacavam-se aqueles quatro homens que doaram quantias para socorrer a Coroa em suas necessidades financeiras. Quem eram, no entanto, esses indivíduos? Como aqui chegaram? Que tipos de livros negociavam? Como se inseriram nesta nova sociedade de corte? Qual sua verdadeira relação com o poder da Coroa? E como contribuíram, enquanto livreiros e impressores, para moldar as culturas políticas do início do oitocentos uma vez que serviram de intermediários culturais entre os países oriundos dessas obras, França e Portugal, principalmente, e a América Portuguesa? Por meio do Almanaque do Rio de Janeiro de 1799, pode-se ter conhecimento que a cidade possuía duas livrarias, uma delas provavelmente a de João Roberto Bourgeois.13 Este transferira-se para o Brasil, pelo menos desde 1782, pois dos registros de passaporte daquele ano, aos 16 de setembro, constava que não se pusesse 12 – Para uma análise das licenças expedidas em Portugal, cf. VILLALTA, Luiz Carlos. “Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa”. Tese de doutorado defendida no programa de Pós-graduação em História da USP, 1999. Idem. “Censura literaria en el mundo luso-brasileño (1517-1808): órganos censorios y criterios de interdicción y obras prohibidas”. Cultura escrita & sociedad. Universidad de Alcalá-Espanha, 7: 98-117, 2008. Ver ainda ALGRANTI, Leila M.. “Censura e comércio de livros no período de permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro”. Revista Portuguesa de Historia. Coimbra, 23 (2): 631-663, 1999; NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Neves. “Censura, circulação de idéias e esfera pública de poder”. Revista Portuguesa de História. Coimbra, 23 (2): 665-697, 1999 e ABREU, Márcia. “La libertad y el error: la acción de la censura luso-brasileña (1769-1834)”. Cultura escrita & sociedad. Universidad de Alcalá-Espanha, 7: 118-141, 2008. 13 – “Almanaque do Rio de Janeiro para o ano de 1799”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 21: 156, jan.-mar. 1858.

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“impedimento algum a passar-se para o Rio de Janeiro João Roberto Bourgeois, de idade de 28 anos, estatura ordinária, rosto comprido, claro, olhos castanhos, e usa cabeleira; por constar ser português, e ter vindo daquela cidade para se recolher.”14

Segundo a mesma fonte, ele teria retornado a Portugal em 1795, mas, em 1799, sua irmã, Mariana Bourgeois, viúva, viajou para o Rio de Janeiro, a fim de viver em companhia de seu irmão, “ali estabelecido com Casa de Comércio”.15 Logo, sem dúvida, uma das livrarias de 1799 apontada no Almanaque da cidade era a de Bourgeois. Por meio das licenças da Mesa do Desembargo do Paço, verifica-se que se tratava de um negociante de grande importância, cujas ligações, entre 1809 e 1811, compreendiam as praças de Lisboa, Porto, Luanda e Londres; e, no Brasil, São Paulo, Santos e Porto Alegre. Há referências que, na capital portuguesa, mantinha contas com Simão Tadeu Ferreira, conhecido impressor português, que remetia livros não só para o Rio de Janeiro, mas também para Pernambuco. Sua importância também pode ser comprovada, uma vez que possuía o cargo de Administrador das Cartas de Jogar, que se vendiam na cidade do Rio de Janeiro, em 1802. De acordo com o bibliotecário Luís dos Santos Marrocos, Bourgeois, porém, morreu repentinamente, no início de 1814.16 Nos inícios do século XIX, outro nome aparece nessa atividade livreira – era Paulo Augusto Martin, que se tornou um dos livreiros mais famosos da cidade do Rio de Janeiro, graças também às suas atividades como editor, entre o início do oitocentos e 1823. Era filho de uma família francesa, proveniente do vale de Briançon, da aldeia de La Salle, procedência comum a outros livreiros franceses que se estabeleceram não só em Lisboa, mas também em Barcelona, Gênova, Nápoles e Paris. Segun14 – Arquivo Histórico Ultramarino (doravante A.H.U.). Códice 805, Passaportes 1782-1787, fl. 12v. 15 – A.H.U. Códice 807, Passaportes 1791-1798, fl. 127 e Códice 808, Passaportes 17981806, fl. 68. A citação encontra-se nesse último códice. 16 – A.H.U. Ofício do vice-rei do Estado do Brasil. Caixa 205, Documento 14408. 30 de setembro de 1802. MARROCOS, L. Joaquim dos Santos. Cartas do Rio de Janeiro, 18111821. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2008, Carta 64, p. 250.

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do Diogo Curto e Manuela Domingos, a família Martin já se estabelecera seguramente com loja em Lisboa, nos anos setenta do século XVIII, sendo que Paulo Martin, pai, havia se associado, também, a outro livreiro de origem briançonesa – os irmãos Borel, como pode ser comprovado pelo Catálogo de livros que se esperavam de várias partes da Europa e se venderiam na loja de Borel, Martin e Cia, publicado em outubro de 1774.17 A transferência de Paulo Martin para o Rio de Janeiro, no entanto, não se deu de forma tranquila. Em 1799, os negociantes portugueses, numa consulta apresentada pelos Juízes do Ofício de Livreiro à Junta do Comércio em Lisboa, solicitaram que não se concedessem passaportes a Paulo Martin e a Francisco Rolland, filhos, para se estabelecerem em qualquer terra da América. Afirmavam que esses mercadores estrangeiros já lhes tinham causado vários prejuízos e, não contentes, queriam aumentá-los, “intentando estabelecer duas casas de comércio de livros na cidade do Rio de Janeiro, pretextadas pelos nomes de seus filhos nascidos no reino ou naturalizados nele”. Alertavam para a existência de decretos que proibiam aos estrangeiros a abertura de casas de comércio no Brasil, “muito principalmente de livros que no tempo presente são assaz perigosos”. Os acusados responderam que nada havia de ilegal, se quisessem enviar seus descendentes para fixarem-se com algum tipo de negócio além-mar, pois eles já eram considerados portugueses por terem nascido no Reino. Asseguravam ainda que “jamais fora da intenção deles estabelecerem seus filhos no comércio de livros”, porque “o filho de Francisco Rolland, tendo cursado as aulas de pilotagem, embarcava na qualidade de praticante de piloto, [...]; e o filho de Paulo Martin se destinava para caixeiro de uma casa de negócio da cidade do Rio de Janeiro, aonde ia aprender o comércio em geral, e não estabelecer casa de negociação de livros.”18 17 – CURTO, Diogo Ramada, DOMINGOS, Manuela D. et al. As gentes do livro. Lisboa, século XVIII. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2007, pp. 163-164. Segundo Fernando Guedes, Paulo Martin estabeleceu-se em 1778. Cf. Os livreiros franceses em Portugal no século XVIII. Tentativa de compreensão de um fenómeno migratório e mais alguma história. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1998. pp. 60-80. Para o catálogo, cf. Catálogo de vários livros que se esperão de várias partes da Europa... E se venderäo na logea de Borel, Martin & Companhia. [s.l, s.n.], outubro 1774. 18 – ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO (doravante IAN/TT). Junta de Co-

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No entanto, em seu pedido de passaporte, datado de início de outubro de 1799, Paulo Augusto Martim afirmava que pretendia ser caixeiro de José (sic) Roberto Bourgeois, “homem de negócio” e morador naquela cidade. Ora, José Roberto Bougeois nada mais era que João Roberto Bourgeois, que se dedicava justamente ao negócio dos livros.19 Aos 22 de outubro de 1799, porém, mandava o príncipe Regente “que se não ponha impedimento algum a passar para o Rio de Janeiro Paulo Agostinho Martin, de idade de 20 anos, estatura à proporção da idade, rosto sobre o comprido, olhos pretos e cabelo castanho, por conta de ser português, e que vai para caixeiro de uma casa de negócios daquela cidade.”20

Não foi possível verificar o momento em que Paulo Martin iniciou suas atividadades pessoais enquanto livreiro no Rio de Janeiro, mas a Gazeta do Rio de Janeiro, desde seu primeiro número, trazia a indicação de que aquisições e assinaturas podiam ser feitas “em casa de Paulo Martim Filho21, mercador de livros na rua da Quitanda”. Em 1811, o Almanaque da cidade confirmou sua situação de distribuidor oficial da Gazeta, na lista de administradores e empregados. Além dos vários anúncios publicados na Gazeta e no Diário do Rio de Janeiro, alguns de seus catálogos subsistiram, fornecendo uma boa ideia das obras, que se achavam à venda em sua loja e dos folhetos e livros impressos por sua conta. A atividade de Paulo Martin como editor também ficou registrada nas solicitações ao Desembargo do Paço para imprimir a Notícia histórica da vida e das obras de José Hayden, em 1819, indicando, de certo modo, os interesses musicais presentes nos círculos ligados à Corte. Rubens Borba de Moraes afirma ainda que ele foi, provavelmente, o primeiro editor do Brasil. Sem mércio, Livro 132 – Registro de Consultas, 1799-1801, f. 32-33. O parecer da Junta de Comércio foi favorável aos dois livreiros. 19 – A.H.U. Conselho Ultramarino. Caixa 176. Documento 12952. 20 – A.H.U. Códice 808, Passaportes 1798-1806, fl. 54. Quanto ao filho de Rolland não se encontrou nenhuma referência que confirmasse sua vinda para o Brasil. 21 – Apesar de se chamar Paulo Augusto Martin, ele assinava como Paulo Augusto Martin Filho, pelo menos até 1821, quando publicou na Gazeta nº 18 de 3 março de 1821, o seguinte anúncio: ‘Paulo Martin Filho, negociante desta Praça, participa que do dia 17 do corrente mês e ano em diante se assinará Paulo Martin, e não mais Paulo Martin Filho’.

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dúvida, muitos romances, novelas, orações fúnebres e poemas, produzidos na Imprensão Régia, como, por exemplo, O Diabo Coxo (1707), obra de Alain-René Lesage, considerada a primeira novela impressa no Brasil, foram editados por este livreiro. Segundo Borba de Moraes, Paulo Martin era “homem empreendedor, que fazia publicidade de seus produtos”, vendidos em sua livraria na rua da Quitanda.22 Em troca de suas contribuições à Coroa e por sua atuação no mercado livreiro, Paulo Martim obteve a mercê do Hábito da Ordem de Cristo, em 1817.23 Além dessas atividades, Paulo Martin também se envolveu em outros ramos de negócio, que se tornavam atrativos em função do crescimento do comércio do Rio de Janeiro com a chegada da Corte Portuguesa. Assim, em 1818, junto com Joaquim José Pereira de Faro e José Antonio Lisboa, criava a nova Companhia de Seguros Tranquilidade, estabelecida com “um fundo de 600 contos e responsabilidade solidária”, constituída por “muitos dos principais comerciantes da praça do Rio de Janeiro”. Os trabalhos da Companhia eram realizados diariamente na Casa dos Seguros, e na firma de Faro, Lisboa e Martin e Cª.24 O livreiro viria a falecer no Rio de Janeiro, provalvelmente, em finais de 1823 ou inícios de 1824. Não há, contudo, como precisar a data exata da morte daquele. Não se localizou seu inventário ou testamento, no Arquivo Nacional, que pudesse informar o momento de seu falecimento. No Almanaque do Rio de Janeiro de 1824, seu nome não mais fazia parte da lista dos negociantes. No entanto, um anúncio encontrado no Diário do Rio de Janeiro, no dia 17 de abril de 1824, na seção de Notícias Particulares, assinala definitavamente seu falecimento no Rio de Janeiro: 22 – “Almanaque do Rio de Janeiro para o ano de 1811”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 282:230, jan.-mar. 1969. Notícia de algumas obras modernas e constitucionais chegadas modernamente à loja de Paulo Martin, rua da Quitanda nº 33. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, [1821]. 1 f. Catálogo de algumas obras que se vendem na loja de Paulo Martin, rua da Quitanda nº 33, vindas neste último navio de Lisboa. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, [1822]. 1 f. Para a impressão de obras, ver AN-RJ. Mesa do Desembargo do Paço. Caixa 171, pac. 3, doc. 39, 1819. Para a opinião de Rubens Borba de Moraes, ver IDEM. O bibliófilo aprendiz. 3ª ed., Brasília/Rio de Janeiro: Briquet de Lemos/ Livros/Casa da Palavra, 1998. pp. 191-192. 23 – BIBLIOTECA NACIONAL-RIO DE JANEIRO (Doravante BN-RJ). Divisão de Manuscritos. 14, 3, 12. Decretos de Mercês (1816-1819). 24 – Gazeta do Rio de Janeiro. nº 4, 14 de Janeiro de 1818.

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“J. B. Bompard, morador na rua dos Pescadores, nº 14, testamenteiro do falecido Snr. Paulo Martins, roga a todas as pessoas que tiverem dado obras ou alguns papéis para vender na sua loja, hajam de vir buscar, ou seus produtos, com toda a brevidade possível.”

O terceiro livreiro, que também subscreveu todas as listas dos negociantes publicadas na Gazeta, foi Francisco Luís Saturnino da Veiga. Português de nascimento, veio para o Rio de Janeiro, provavelmente, em 1784, tornando-se professor de latim nesta cidade e, também, mais tarde, em Vila Rica. Nesta, teve contato, provavelmete, como afirma Octávio Tarquínio de Sousa, com alguns dos letrados do grupo dos Inconfidentes, chegando às suas mãos, cópias das Cartas Chilenas, que ele as recopiou. Daí, a publicação, quase meio século depois, por seu neto Luís Francisco da Veiga.25 Posteriormente, já no início do oitocentos, voltou ao Rio de Janeiro, tornando-se livreiro, provavelmente, contemporâneo de Bourgeois e Paulo Martim. Seu primeiro anúncio vinha à luz na Gazeta do Rio de Janeiro, em outubro de 1808. Embora se apresentasse como livreiro, anunciava outros produtos: “Quem quiser comprar uns paramentos, e o que mais se precisa para se celebrar Missa, dirija-se à loja do Livreiro Francisco Saturnino Veiga, na Rua do Ouvidor.”26 No ano seguinte, já apareciam anúncios de livros, sendo que, em 1813, informava ao público que sua loja trocara de endereço: “A loja de papel e livros de Francisco Luis Saturnino Veiga, até agora sita na rua do Ouvidor, mudou-se para a rua da Alfândega, pouco acima da Quitanda nº 17 à direita.”27 Importando livros da França – há uma listagem com 97 títulos, mas perfazendo 924 volumes, incluindo obras de belas letras, como a tão popular Aventuras de Telêmaco, História de Gil Blas, Paulo e Virgínia, livros de política, como o Espírito das Leis de Montesquieu, uma série de Dicionários especializados e diversos livros de religião e doutrina, todos em francês; ou vendendo as novidades publicadas no Rio de Janeiro, Sa25 – SOUSA, Octávio Tarquínio de. Evaristo da Veiga. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 25. 26 – Gazeta do Rio de Janeiro. nº 7, 05 de Outubro de 1808. 27 – Gazeta do Rio de Janeiro. nº 69, 28 de Agosto de 1813.

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turnino da Veiga possuía prestígio, pois em 1817, oferecia a quantia de 100 contos de réis a fim de ajudar nas despesas da Coroa para conter a revolta de Pernambuco. Em 1823, quando contraiu segundas núpcias, dividiu a herança com seus filhos – João Pedro e Evaristo da Veiga –, este último, conhecido político e jornalista do Império. Ambos trabalhavam como caixeiros na livraria do pai e, aproveitando a herança, ingressaram no comércio de livros ao comprarem a livraria de Manuel Joaquim da Silva Porto. Tal fato – os filhos estabelecerem-se no mesmo ramo de negócio do pai – pode ser também um indício que o negócio dos livros constituía-se naquela época em um empreendimento lucrativo. Por fim, o quarto livreiro – Manuel Joaquim da Silva Porto. P����� ortuguês, natural do Porto, cidade de seu apelido, como inferiu Innocencio,28 foi livreiro, tipógrafo e autor. Silva Porto encontrava-se no Brasil, pelo menos, desde 1811, quando se localizou o registro do termo de juramentos de testemunhas para justificar sua matrícula na Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação.29 Naquele mesmo ano, recebeu a carta patente do posto de alferes da Companhia de Ordenanças do distrito de Vila Nova da Rainha, em Minas Gerais. Esse título foi, em 1812, transferido para as Ordenanças da Corte, tendo em vista estar estabelecido com “loja de mercador de livros e matriculado na Real Junta do Comércio”.30 Como negociante, construiu uma série de relações com outras personagens, transformando-o em um dos mais importantes livreiros da Corte, ao longo do Brasil Reino e no início do Primeiro Reinado. Sua loja de livros, situada na rua da Quitanda, esquina de São Pedro, era uma das mais conhecidas e frequentadas, na visão de muitos contemporâneos, inclusive de Luís dos Santos Marrocos, que, ao organizar a subscrição da obra Retratos e Eleogios dos varões e Donas que Ilustram a Nação portuguesa, julgou suficiente colocar a dita subscrição em apenas três lojas, por serem as mais 28 – SILVA, Francisco Inoccencio da. Diccionario bibliographico portuguez. T. VI. Lisboa: Imp. Nacional, 1861, p. 22. 29 – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (doravante AN-RJ). Códice 171. v. 1. Junta do Comércio. Matrícula de Negociantes, termos de juramentos de testemunhas de justificações de matrículas. Manuel Joaquim da Silva Porto, f. 84, 27 de junho de 1811. 30 – AN-RJ. Códice 137, Registro Geral de Mercês, v. 16, f. 176 e v. 21, f. 190.

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conhecidas, entre elas, a de Silva Porto.31 Ampliou ainda seus negócios em 1815, quando se associou a Pedro Antonio de Campos Bello, possuidor de uma loja de papel. A sociedade, desfeita em março de 1822, ficou conhecida como Campos Bello e Porto, loja situada na rua do Ouvidor e que passou também a vender livros.32 Em julho de 1821, Silva Porto solicitou licença para mandar vir da Inglaterra todos os elementos necessários para montar uma tipografia no Rio de Janeiro. Para justificar tal pedido, relatava a morosidade do trabalho da Tipografia Régia, que não podia vencer a metade das obras que devia imprimir. Silva Porto possuía há mais de um ano trabalhos para lá serem impressos. Acreditava, assim, que, ao montar uma tipografia, esta podia se transformar em um “útil estabelecimento” para a Corte. A licença para a constituição da tipografia foi concedida, tornando-se, Silva Porto, em março de 1822, o primeiro livreiro da cidade do Rio de Janeiro a ter tipografia própria, ao criar a Oficina Silva Porto e Companhia, situada na rua do Espírito Santo, em associação com Felizardo Joaquim da Silva Moraes, que foi o administrador da referida oficina.33 Paralelamente, Silva Porto exerceu ainda o cargo de administrador e distribuidor da Gazeta do Rio de Janeiro, a partir de 2 de agosto de 1821, como informava o periódico: para “maior comodidade do público, por ser posição mais central, os proprietários da Gazeta removem a venda dela da loja do livreiro Paulo Martin, para a do livreiro Manuel Joaquim da Silva Porto, na rua da Quitanda, esquina de São Pedro”. Aviso semelhante 31 – MARROCOS, L. Joaquim dos Santos. Cartas do Rio de Janeiro ... carta 105, p. 355. Para o anúncio da Gazeta do Rio de Janeiro, ver nº 37 de 7 de maio de 1817. As outras duas lojas que aparecem no anúncio são a de Saturnino da Veiga e Manoel Mandillo. 32 – Cf. HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil: sua história. São Paulo: T. A. Queiroz/EDUSP: 1985. p. 3. IPANEMA, Marcello & Cibelle de. “Subsídios para a história das livrarias”. Revista do Livro. Rio de Janeiro, 11 (32): 23-31, 1968. Para um estudo aprofundado sobre Silva Porto, ver IPANEMA, Cybelle & IPANEMA, Marcello. Silva Porto: livreiro na Corte de D. João – Editor da Independência. Rio de Janeiro: Capivara, 2007. 33 – Para o início das atividades, cf. o número 11 de A Malagueta, já impressa na tipografia de Silva Porto. Para a localização da tipografia, ver “Almanaque do Rio de Janeiro para o ano de 1824”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 278: 320, jan.-mar. 1968.

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foi publicado no Diário do Rio de Janeiro.34 Em dezembro de 1821, em uma advertência na Gazeta, afirmava-se ser Silva Porto administrador dela. Uma pergunta, no entanto, pode ser formulada: qual o motivo da mudança do distribuidor da Gazeta? Afinal, Paulo Martim era seu distribuidor oficial desde seu �������������������������������������������������������������� primeiro número. Deve-se destacar que a justificativa apresentada pela Gazeta não era convicente, uma vez que a loja de Paulo Martin ficava na rua da Quitanda nº 34, pois apenas em dezembro de 1822, transferiu-se para outro local, situado à rua dos Pescadores (atual Visconde de Inhaúma).35 Nesse sentido, talvez possa ser levantada uma outra suposição para justificar-se a mudança de distribuidor e de administrador e não apenas a localização da loja: uma questão política. Naquele momento, já havia ocorrido a partida de D. João para Portugal, estando como regente, o príncipe D. Pedro. A livraria de Silva Porto, não só uma das mais conhecidas e frequentadas, era também ponto de encontro de muitos que articulavam a política daquele período, como o grupo de Gonçalves Ledo, próximo ao príncipe regente. Além disso, ele redigira diversos escritos em homenagem ao soberano, como seu súdito fiel. Tais fatos poderiam justificar tal mudança de distribuidor e administrador da Gazeta. A Tipografia de Silva Porto manteve-se em atividade, provavelmente, até o ano de 1825, data de suas últimas publicações36, enquanto sua livraria, como já se assinalou acima, foi comprada em outubro de 1823, pelos irmãos João Pedro e Evaristo da Veiga. A partir dessa data, encontram-se apenas alguns anúncios de Silva Porto relacionados à sua tipografia. No entanto, há ainda um escrito de sua autoria, em homenagem a Pedro I, publicado em 1826, pela tipografia de Plancher.37 A partir daí, os rastros de Silva Porto começam a desaparecer. O Almanaque Plancher para 1827 não mais trouxe o nome de seu estabelecimento. Em 3 de março de 1828, 34 – Diário do Rio de Janeiro, 2 de agosto de 1821. 35 – Para a mudança da loja de Paulo Martin, cf. anúncios no Diário do Rio de Janeiro, sendo o primeiro em 2 de dezembro de 1822. Gazeta do Rio de Janeiro, nº 128, 25 de dezembro de 1821. 36 – Cf. anúncios em Diário do Rio de Janeiro. 37 – Relação dos publicos festejos que tiverão lugar do 1. de abril até 9. pelo feliz regresso de SS.MM.II., e A.I. voltando da Bahia à Corte Imprerial do Rio de Janeiro... feita por ordem do Conselheiro Intendente geral da Policia... Rio de Janeiro: Imperial Typographia de Plancher, 1826. A poesia de Silva Porto encontra-se às pp. 119-123.

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encontra-se na Intendência Geral da Polícia da Corte um aviso informando que “Manuel Joaquim da Silva Porto, natural do Porto, súdito brasileiro, idade de 40 anos”, partia para a cidade da Bahia.38 Segundo o dicionarista Francisco Inocêncio, Silva Porto teria deixado o Brasil em 1835. Anos mais tarde, ainda foi possível encontrar a tradução de três obras realizada por este letrado – A gastronomia ou prazeres da mesa, Enciclopédia industrial e Methodo facil de escripturar os livros –, datados, os dois primeiros de 1842 e o último, de 1854, publicados, no entanto, na cidade do Porto, do outro lado do Atlântico, o que pode comprovar a hipótese que Silva Porto teria regressado a Portugal, reestabelecendo-se em sua cidade natal.39 Se estas foram as trajetórias desses livreiros, o que eles publicavam e como se inseriam em função dos fatos políticos daquela época? É possível aqui destacar dois momentos da atuação desses homens ilustrados, considerados enquanto intermediários culturais entre o Brasil e o outro lado do Atlântico, possibilitando uma circulação mais intensa de idéias, e também enquanto indivíduos, que contribuíram para a formação de um espaço público de discussão no início do oitocentos40. Esses dois momentos foram: o das guerras napoleônicas e o do advento das ideias liberais e constitucionais ao longo do ano de 1821������������������������������ . Naquela ocasião������������� , livros, impressores e livreiros, inseridos no ritmo diverso das conjunturas históricas e compreendidos a partir das múltiplas funções que desempenharam ao longo dos tempos, converteram-se em instrumentos fundamentais para a transmissão do saber e das novas ideias políticas. 38 – AN-RJ. Códice 422. Intendência Geral da Polícia. Livro 7, fl.181. 39 – SILVA, Francisco Inoccencio da. Diccionario bibliographico portuguez ..., T. XVI, p. 235. 40 – Para a discussão sobre espaços públicos de discussão, ver GUERRA, François-Xavier; LEMPÉRIÈRE, Annick et al. Los espacios públicos en Iberoamérica: ambigüedades y problemas. Siglo XVIII-XIX. México: Centro Francés de Estudios Mexicanos y Centroamericanos / FCE, 1998; HABERMAS, Jürgen. L’Espace public. Archéologie de la publicité comme dimension constitutive de la sociéte bourgeoise. [Trad.] Paris: Payot, 1993; MOREL, Marco. As transformações dos Espaços Públicos. Imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade Imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005; NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das. “Leitura e leitores no Brasil, 1820-1822: o esboço frustrado de uma esfera pública de poder”. Acervo. Rio de Janeiro, 8 (1-2): 123-138, jan.-dez. 1995.

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Na esteira das guerras napoleônicas e do medo dos abomináveis príncipios franceses, principalmente, entre 1808 e 1815, começaram a surgir diversos anúncios, na Gazeta do Rio de Janeiro, sobre a venda de livros, folhetos e panfletos escritos contra Napoleão Bonaparte e a França imperial, bem como acerca de obras panegíricas ao príncipe D. João, aos chefes militares ingleses, espanhóis ou portugueses, aos próprios exércitos lusos e à restauração de Portugal e, ainda, escritos de cunho histórico, no perfil de memórias e relatos acerca dos principais acontecimentos à época das invasões francesas.41 Diversos anúncios, publicados por João Roberto Bourgeois, Paulo Martin e Saturnino da Veiga, faziam menção de “obras novas”, que já haviam sido impressas em Portugal ou reimpressas no Rio de Janeiro. Bourgeois, entre 1810 e 1813, divulgava uma série de folhetos, como Portugal desafrontado, Diálogo entre hum Official francez da legião do Meio-Dia e hum Ecclesiastico da Província de Entre-Douro-e-Minho (1808), Partidista contra Partidista e Jacobinos Praguejados (1809), entre outros.42 Todos destinavam-se a combater e a denegrir Napoleão Bonaparte, considerado, pelos homens de época, o continuador da Revolução Francesa. O último folheto – Partidista contra Partidista e Jacobinos Praguejados – apresentava-se sob a forma de diálogo, seguindo o modelo clássico do Spectator, do século XVIII, de Addison e Steele.43 No diálogo, entre um partidarista e um verdadeiro amigo de sua pátria, este último pintava o retrato de um “Jacobino ou Partidarista de Napoleão”: “um indivíduo falso à sua Pátria”; “um traidor do seu Soberano”; “um vil assalariado por promessas”; e, ainda, “um Sectário de um homem sem Lei”. Este era também 41 – Para uma análise de alguns desses escritos ver NEVES, Lucia Maria Bastos P. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal. São Paulo: Alameda, 2008; D’ALCOCHETE, Nuno Daupiás. Les pamphlets portugais anti-napoléoniens. Arquivos do Centro Cultural Português. Paris, 11: 7-16, 1977. 42 – Para os anúncios, ver, entre outros, Gazeta do Rio de Janeiro, nº 79, 2 outubro 1813, nº 5, 17 janeiro 1810 e nº 52 de 27 de junho de 1811. 43 – P. Gay. The Enlightenment: The Science of Freedom. N. York: Norton, 1977, pp. 5255. Ver também M. Lúcia Pallares-Burke. The Spectator. O Teatro das Luzes. Diálogo e imprensa no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1995.

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“um inimigo dos seus compatriotas, [...] um indivíduo sem Religião alguma, um mortal, que só se alimenta de peçonha, que não respira, senão veneno, com que empesta as Leis e os costumes, e por isso propenso a ser um cruel assassino, um desenfreado ladrão e um verdugo da humanidade, que de tudo o que tem faz vítimas.”44

O partidarista, arrependido, terminava por abjurar os franceses, escrevendo uma poesia – Jacobinos Praguejados – contra a maldita seita dos seguidores de Bonaparte. Saturnino da Veiga anunciava outro tipo de publicação mas que, também, se relacionava com a conjuntura da época. Eram escritos que adquiriam a forma de odes e orações que celebravam as vitórias do reino português: Oração, que em 22 de Janeiro do presente ano recitou o Reverendo Eduardo José de Moura, vigário colado da Freguesia de S.Salvador dos Campos dos Goitacazes, na solene ação de graça pela feliz Restauração do Reino de Portugal ou Ode pela feliz Restauração do Porto oferecida a S.A.R., ambas anunciadas na Gazeta em 1809. Esta última narrava a total derrota dos franceses pelas tropas inglesas, oferecida pela “nação portuguesa”, descrevendo, assim, o imperador dos franceses: Debalde o fero Corso sitibundo Horror da natureza, D’homem e fera produção medonha, Que a França acolhe e a seu trono eleva ...45

De todos esses livreiros, no entanto, destacou-se Paulo Martim não só por seus múltiplos anúncios na Gazeta de obras nesse gênero, mas também por ter impresso diversas à sua custa, como consta do primeiro Catálogo das obras impressas, que se acham à venda em sua loja, na rua da Quitanda. O Catálogo foi publicado junto com a obra O Plutarco 44 – Partidista contra partidistas e Jacobinos Praguejado. Lisboa: Off. de Simão Thaddeo Ferreira, 1809, p. 19. Anunciado na Gazeta, nº 5, 17 de janeiro de 1810. 45 – Ode pela feliz Restauração da Cidade do Porto, e total derrota dos franceses neste Reino, conseguida pelos exércitos das duas nações inglesa e portuguesa ... oferecidas pela voz da nação portuguesa em sinal dos mais generosos acontecimentos. Rio de Janeiro: Imp. Régia, 1809, p. 6. Para a venda da obra, cf. Rio de Janeiro. Gazeta do Rio de Janeiro. nº 95, 9 de agosto de 1809.

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Revolucionário. Esta constituía-se em um texto que continha as vidas de Madame Bonaparte e outros membros desta família, traduzido do inglês. Por meio desse catálogo, pode-se verificar que o livreiro-editor publicava quase exclusivamente, naquela época, os folhetos de sucesso – em um total de 36 títulos, 24 refereriam-se a tal gênero. Alguns haviam sido publicados em Lisboa nos anos de 1808 e 1809 e a sua reedição, no Rio de Janeiro, comprovava seu êxito e, portanto, um pequeno risco econômico para o editor.46 Entre estes, pode-se destacar a obra ��������������������� “mui jocosa”, denominada Sonho de Napoleão. Tratava-se de um escrito que ���������������� narrava um pesadelo do imperador, quando se anunciaram as “indigestas notícias de Madri”, em julho de 1808: submergindo em profundo sono, sua imaginação, por demais sobrecarregada “de vivas e interessantes ideias”, agita-lhe a bílis e o sangue, e, como um sonâmbulo, levanta-se e, desembainhando a espada, começa a dar “grandes golpes e grandes berros”, motivando “tal estrondo, como que faria uma legião de diabos se tivesse ali vindo buscar o que de direito lhe pertencesse”; e, assim, nada escapa de seu furor – “o lustro grande”, o “grande espelho Imperial”, “nem coisa alguma que fosse grande”, repetindo, à sua maneira, a cena de combate de D. Quixote de la Mancha contra os odres de vinho.47 Anunciava, ainda, Ulisséia Libertada: “drama heroico” que seria apresentado no Real Teatro, “em obséquio ao Nome de S. A. R. o Principe Regente”. A peça era vendida a 480 réis, com “capa de papel pintado”.48 Verifica-se, portanto, que naquele momento de tensão política, os livreiros aqui apresentados exerciam seu papel de propagar não os novos valores de uma sociedade liberal mas aqueles que continuavam a moldar a cultura política do Antigo Regime. Os panfletos e textos que veicularam, permitindo uma ligação entre os dois lados do Atlântico, invocavam 46 – “Catálogo dos Folhetos impressos à custa de Paulo Martin, filho, que se achão na sua loja da rua da Quitanda nº 33”. In: O Plutarco Revolucionário na parte que contem as vidas de Madama Buonaparte e outros desta família (traduzido do inglês). Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1808. 74 p.+3 p. Para a transcrição do catálogo, ver M. B. Nizza da Silva. Cultura no Brasil colônia. Petrópolis: Vozes, 1981, pp. 147-148. 47 – Sonho de Napoleão. Lisboa: Off. de João Evangelista Garces, 1809, p. 1. Grifo do texto. Anunciada na Gazeta do Rio de Janeiro, em 24 de junho de 1809, nº 103. 48 – Para a sua divulgação, cf. o Catálogo, publicado em O Plutarco Revolucionário ...

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uma certa herança do passado, alicerçada nas ideias do Antigo Regime e impregnada por valores tradicionais. As novidades francesas introduzidas com as invasões napoleônicas no mundo luso-brasileiro não foram capazes de propiciar o desgaste daquelas estruturas antigas. Por conseguinte, as crenças do mundo do Antigo Regime, embora começassem a entrar em agonia em alguns pontos da Europa, não davam sinais de enfraquecimento no Império português. Uma outra conjuntura, no entanto, delineou-se entre 1821 e 1822. Propiciada pelo advento das ideias liberais e constitucionais, divulgadas pela Regeneração Vintista, iniciada em agosto de 1820, na cidade do Porto, estas, rapidamente, se propagaram no Brasil, no início do ano seguinte, por meio da adesão ������������������������������������������������ ao movimento constitucionalista����������������� de diversas províncias, como o Pará e a Bahia, que mantinham comunicação direta com Lisboa e, por fim, do Rio de Janeiro. Era uma literatura de circunstância, que traçava um caminho entre a história e a política, introduzindo novas palavras e ideias, fazendo com que a linguagem se politizasse e entrasse na vida pública. Transformavam palavras antigas em conceitos novos, que passaram a ser chaves interpretativas para reconstituir os processos de maior duração, como por exemplo, a própria edificação do Império brasílico. Tais conceitos serviram, portanto, para articular de forma significativa as diversas experiências sociais, formando redes discursivas que cruzaram épocas, na visão de Koselleck. Tornam-se, portanto, expressivos a partir de 1821, como resultado das polêmicas a respeito das ideias políticas de então.49 Naquele contexto, dois livreiros – Paulo Martin e Manuel Joaquim da Silva Porto – ocuparam lugar de destaque: no caso do primeiro, pela venda dessas “obras modernas”; em relação a Silva Porto, pelo papel que 49 – Cf. Koselleck, R. História/História. Madrid, Ed. Trotta, 2004. Para uma análise dos folhetos políticos da independência ver NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência do Brasil (1820-1822). Rio de Janeiro, Revan/Faperj, 2003; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Movimento constitucional e separatismo no Brasil: 1821-1823. Lisboa: Livros Horizonte, 1988; FAORO, Raymundo (int.). O debate político no processo da independência. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973.

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as livrarias e tipografias passaram a exercer na formação de um novo espaço público de discussão. Paulo Martim touxe à luz dois catálogos datados de 1821 e 1822, considerados os primeiros que um editor-livreiro mandou fazer separadamente, sendo anunciados na Gazeta e, em um novo jornal, o Diário do Rio de Janeiro. Tais catálogos eram uma simples folha, que devia ser pregada nas paredes ou distribuídas por moleques escravos, como se fazia na venda de outros produtos. Em geral, relacionavam uma série de panfletos políticos, ����������������������������������������������������� sendo chamados de “folhetos constitucionais” pelo livreiro e que possuíam a clara preocupação de explicar para os cidadãos a verdadeira importância do sistema constitucional e de certos pontos fundamentais do vocabulário político liberal. Naquela ocasião, os indivíduos julgavam que a divulgação dos impressos atribuía uma significação nova a todos os termos, em relação aos quais “um dicionário não nos serve para nada”, devendo-se observar a conduta dos políticos para entender essa “nova linguagem”.50 Entre os diversos títulos apresentados nos catálogos, alguns podem ser exemplificados, como, Constitucional justificado, Catecismo Político Constitucional e A Constituição explicada, �������� que examinava o pensamento de Benjamin Constant. O último desses catálogos ostentava oitenta e nove títulos, com quase 70% destes ligados a temas políticos. Incluía diálogos jocosos a respeito do despotismo, estampas que representavam alegorias relacionadas à Regeneração Portuguesa, retratos de alguns deputados portugueses, além de outros livros sobre assuntos diversos, como moral, ciência econômica, história e dois dicionários.51 Paulo Martin, ao vender tais escritos, contribui para fomentar o clima febril que as discussões políticas propiciavam. Mesmo em seus anúncios, publicados em jornais, havia uma preocupação em orientar o ������������ público lei50 – Diário do Governo, nº 105, Rio de Janeiro, 12 maio 1823. 51 – Para os catálogos, cf. Notícia de algumas obras modernas e constitucionais chegadas modernamente à loja de Paulo Martin, rua da Quitanda nº 33. Rio de Janeiro, Typografia Nacional, [1821]. 1 f. Catálogo de algumas obras que se vendem na loja de Paulo Martin, rua da Quitanda nº 33, vindas neste último navio de Lisboa. Rio de Janeiro, Typografia Nacional, [1822]. 1 f´. Para a venda dos catálogos, cf. MORAES, Rubens Borba de. O bibliófilo ... pp. 192-192.

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tor a respeito dos acontecimentos mais recentes: “������������������������������������������������������������������� Saiu à luz o Projeto da Constituição da Monarquia Portuguesa, reimpresso no Rio de Janeiro. Vende-se a 400 réis na loja da Gazeta, na de Campos Bello, e Porto, rua do Ouvidor, na de Paulo Martin, rua da Quitanda nº.33 [...]. Os editores, em continuação ao referido projeto, prometem publicar em volume separado as emendas, a que der lugar a discussão de cada um de seus artigos para se tirar desta obra toda a possível utilidade.”52

Dessa forma, concretizava-se a visão de um importante redator – Hipólito da Costa, que publicava ainda naquele momento seu periódico Correio Braziliense em Londres. Para este, “o primeiro dever do homem em sociedade é de ser útil aos membros dela”, cabendo a este espalhar as luzes, que “tiram das trevas ou da ilusão aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano”.53 Por fim, ainda deve-se destacar que Paulo Martim estava atento às vicissitudes do movimento político de então. Em sua loja, aceitavam-se subscrições de outros periódicos, como O Espelho, ou de alguns jornais baianos – Idade d’Ouro, Semanário Cívico e Diário Constitucional.54 Preocupado com a opinião do público, no entanto, mandou suspender, em agosto de 1822, quando dos primeiros conflitos em relação à independência, a venda dos dois primeiros jornais da Bahia, favoráveis às Cortes de Lisboa. Solicitava, assim, aos seus assinantes que “concorresem a receber a quantia que lhes pertencem”, pois eles só seriam novamente vendidos quando a província da Bahia fizesse “causa comum com as províncias coligadas do Reino do Brasil”.55 Igualmente, Paulo Martin procurava divulgar grandes novidades, como demonstrou em 10 de novembro de 1821, quando, um pouco mais de dois meses após o decreto da liberdade de imprensa (28 de agosto de 1821), anunciava nos jornais que se encontrava à venda em sua loja O 52 – Gazeta do Rio de Janeiro. nº 99, 18 de outubro de 1821. 53 – Correio Braziliense, nº 1, junho de 1808. 54 – Para a venda do primeiro jornal, ver Gazeta do Rio de Janeiro nº 90, 27 de setembro de 1821. Para os demais, Diário do Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1822. 55 – Diário do Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1822.

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Contrato social de Rousseau, em francês, como obra “outrora proibida”, mas que “nas atuais circunstâncias se torna mui interessante”. Ora, considerando-se que, em média, a viagem de travessia do Atlântico levava de seis a oito semanas, parece, na melhor das hipóteses, extraordinário que o pedido do livreiro e a remessa da mercadoria tivessem tomado menos de onze, quando o mínimo esperado seria de doze, sem contar o tempo para despachar a mercadoria e as inevitáveis irregularidades na partida dos navios. Isto sugere que a obra já se encontrava em seu estoque ou, pelo menos, encomendada sous le manteau no momento em que a lei foi sancionada.56 Menos de dois meses depois, também oferecia Direito das Gentes e do Foro ou Princípios da Lei natural, adaptados às circunstâncias presentes de Vatel, em 3 volumes, na língua francesa, a preço de 6$400 rs. Obra outrora proibida, era considerada, pelo livreiro no anúncio, como clássica e “necessária a toda a classe de pessoas que estão sendo citadas e apontadas em todos os escritos e obras verdadeiramente constitucionais”.57 Já para Manoel Joaquim da Silva Porto cabe destacar, além de sua atividade comercial, em que vendia diversos desses folhetos constitucionias, sua atuação profissional e política, que pode ser inserida nas atividades de escrita de obras, edição de livros, publicação de periódicos e venda de livros. Trata-se, portanto, de buscar os pontos que permitem compor a trama da trajetória de um letrado, que contribuiu para divulgar as luzes e as novas ideias entre a sociedade luso-brasileira. Na época do movimento constitucionalista do Rio de Janeiro, em 1821, escreveu e mandou imprimir Desde que a aurora política raiou no berço da monarquia portuguesa, texto que traduzia com perfeição a visão de uma época que acreditava nas Luzes como instrumento de regeneração política. Naquele momento, a ideia ainda era da permanência de um império luso-brasileiro, constitucional e liberal, uma vez que “os corações de todos os seus irmãos” regozijavam-se pela “gloriosa luta da 56 – Gazeta do Rio de Janeiro. n º 109, 10 de novembro de 1821. Para a expressão em itálico, ver ROCHE, Daniel. Les Républicains des lettres: gens de culture et Lumières au XVIIIe siècle. Paris: Fayard, 1988. 57 – Diário do Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1822.

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sua Regeneração e Liberdade constitucional”.58 A partir de junho de 1822, demonstrando a sintonia de sua livraria com os acontecimentos da conjuntura política, anunciava e imprimia em sua tipografia alguns textos que já aventavam a possível separação do Brasil de sua antiga metrópole. Não foi, portanto, sem razão, que políticos mais moderados considerassem ��������������������������������� os estabelecimentos de Silva Porto – tanto a tipografia, quanto a livraria – como locais de reunião dos sujeitos mais curiosos de novidades políticas, ou, nas palavras de José da Silva Lisboa, uma “Caverna de Cíclopes forjando raios para antitrovejar a Jove”. Na época, também, na visão do grupo coimbrão, liderado por José Bonifácio era esta livraria “o ponto de união dos mais exaltados demagogos”, pois ali ajustavam o que iam escrever e ali combinavam os meios a utilizar para os seus planos, discutidos a “sós ou com a maior publicidade”, tramando-se os golpes a favor da república e contra o futuro do Império brasileiro.59 Sem dúvida, podemos asseverar que na tipografia encontrava-se, à noite, o grupo de Joaquim Gonçalves Ledo, conforme declaração deste estampanda no Diário do Rio de Janeiro: “[...] procurou-me na tipografia Silva Porto e Comp. (onde muitos outros se achavam e viram) dizendo que assim procedia porque indagando do já citado Muzi, onde poderia encontrar comigo, este lhe disse, que era fácil, na dita Tipografia, e de noite. [...] A este tempo saía de um quarto da mesma Tipografia o redator do Correio [do Rio de Janeiro] e o marechal Morais que nele estiveram fechados.60

Além disso, deve ser ressaltado que foi na Tipografia de Silva Porto 58 – Desde que a aurora política raiou no berço da monarquia portuguesa. (Por Manuel da Silva Porto). Rio de Janeiro, Tip. Régia, 1821. p.1. 59 – Para o opinião da livraria, ver SOUSA, Octávio Tarquínio de. Fatos e personagens em torno de um regime. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia, EDUSP, 1988, p. 145. Para a opinião e Silva Lisboa, cf. LISBOA, José da Silva. Memorial apologético das Reclamações do Brasil. Parte III. Rio de Janeiro: Tip. Nacional, 1822, p. 9. Para a visão do grupo coimbrão sobre a livraria, ver Processo dos cidadãos Domingos Alves, João da Rocha Pinto, Luis Alves de Azevedo, Thomas José Tinoco ... pronunciados na devassaa que mandou proceder Joze Bonifacio d'Andrada e Silva para justificar os acontecimentos do famozo dia 30 de outubro de 1822. Rio de Janeiro: Tip. Silva Porto, 1824, p. 21. 60 – Diário do Rio de Janeiro, 6 de julho de 1822.

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e na loja da Gazeta – naquele momento, a livraria de Silva Porto – que foi deixada para assinatura do povo a Representação em que se pedia a D. Pedro a convocação de uma Assembleia Geral das províncias do Brasil. Forjava-se, assim, um cunho popular, ao convidar-se o público, por meio de um anúncio estampado no Diário do Rio de Janeiro e no Correio do Rio de Janeiro, a comparecer a estes estabelecimentos, nos dias 21 e 22 de maio, “desde às 8 horas da manhã até o meio-dia, e desde as duas até às seis da tarde”, trazendo memórias e planos a este respeito, ou para simplesmente “ver, ler e assinar a representação a ser enviada a Sua Alteza Real”.61 Demonstrava-se também que estas casas revelavam sua importância entre o público, pois elas também funcionavam como um novo espaço da esfera pública, ponto de encontro e de conversas de uma elite política e intelectual. Em relação à sua atividade editorial, podem ser arrolados títulos diversos publicados por sua editora, além de diversos periódicos, embora, nem sempre todos os números tenham sido publicados na tipografia de Silva Porto – Correio do Rio de Janeiro, Despertador Constitucional/ Despertador Constitucional Extraordinário, Diário Mercantil, A Estrela Brasileira, O Macaco Brasileiro, A Malagueta, Revérbero Constitucional Fluminense, O Sylpho, O Tamoyo, Semanário Mercantil e Sentinella da Liberdade. Sem dúvida, em função do início de sua atividade como tipógrafo estar inserida em um momento de inquietação política, as obras publicadas constituíam-se, em grande parte, de pequenos impressos e folhetos políticos. Eram escritos constitucionais, narrando eventos em várias partes do império, e textos laudatórios acerca de alguns fatos, como a instalação da Assembleia Constituinte, proclamação da Independência e a coroação de Pedro I. Contribuía, assim, para a divulgação de uma linguagem política constitucional e liberal, ligando-se, inclusive, a alguns grupos mais radicais que acabaram por se envolver em devassas pronunciadas por José Bonifácio, em 1822.62 61 – Diário do Rio de Janeiro, 21 de maio de 1822 e Correio do Rio de Janeiro, 18 de maio de 1822. 62 – Para a abertura da devassa, cf. Decreto de 30 outubro de 1822. [Rio de Janeiro]: Imp. Nacional, 1822. Edital do Intendente de Polícia. 4 novembro de 1822. [Rio de Janeiro]:

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Impressores e Livreiros: Brasil, Portugal e França, ideias, cultura e poder nos primeiros anos do oitocentos

— As colocações acima permitem, à guisa de conclusão, ressaltar alguns aspectos das práticas políticas e culturais do período analisado, ou seja, os anos iniciais do oitocentos. Em primeiro lugar, embora não se disponha de dados concretos, parece evidente a existência de um público consumidor bem superior ao que reconhece a historiografia tradicional, baseada exclusivamente em relatos de viajantes. Principalmente, se for levado em consideração não só a existência de livrarias especialializadas como também a concorrência dos negócios, o volume de anúncios desses livreiros e os catálogos apresentados. Sem dúvida, era um público formado por uma elite educada, com certeza, sob as Luzes portuguesas, que crescera bastante com a transferência da Corte para a América, mas cuja autonomia intelectual mostra-se bem mais difícil de avaliar. De qualquer forma, fica evidente o papel de negociantes desses quatro livreiros e sua importância nessa atividade, inclusive, por sua associação a outros ramos afins do comércio de livros – loja de papel, de estampas, processo de impressão de livros e tipografias. Em segundo, esses livreiros e impressores funcionaram como “transmissores culturais ativos”, na expressão de Diana Cooper-Richet63, que contribuíram para a circulação de ideias entre o Brasil e os países do outro lado do Atlântico, indicando a existência dos diversos intercâmbios culturais, ocorridos naquele momento do início do oitocentos. Aqueles homens que “tratavam em livros”, Bourgeois, Paulo Martim, Saturnino da Veiga e Silva Porto, tinham em seus estoques livros especializados para abastecer uma livraria que pretendia atender a uma clientela “cultivada” da cidade. Em terceiro, pode-se também ressaltar que as livrarias e tipografias, a partir dos anos 20 do oitocentos, com o advento do movimento constitucionalista e da liberdade de imprensa, passaram a ter uma outra atividade Imp. Nacional, [1822]. Portaria de 11 novembro de 1822. [Rio de Janeiro]; Imp. Nacional, [1822]. 63 – COOPER-Richet, Diana, MOLLIER, Jean-Yves & SILEM, Ahmed (orgs.). Passeurs culturels dans le monde des médias et de l’édition en Europe: XIXe e XXe siècle. Villeurbanne: E.N.S.S.I.B., 2005.

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– tornaram-se espaços públicos possibilitando que a política ultrapassase o tradicional espaço institucional do poder – a Corte – e se tornasse realmente pública. Portanto, o livro e o impresso transformaram-se em instrumentos tanto da difusão do saber quanto da formação de novas sociabilidades. Por fim, pode-se ainda destacar que livreiros, impressores e textos, no período em tela, contribuíram para a formação de novas linguagens políticas, apresentando uma relação íntima com a conjuntura política do país. Os folhetos, panfletos e jornais divulgados e vendidos por esses livreiros a partir de 1821 possibilitaram o conhecimento de conceitos novos – ou que adquiriam um significado distinto daquele do Antigo Regime – como Liberdade, Constituição, Cidadão, Eleição, Direitos, entre outros, permitindo a formação da opinião pública, que os debates acerca desses impressos propiciaram, e aplainando o caminho para o advento dos liberalismos no Brasil. As ideias transformavam-se em mercadoria e se constituíam em ideologia.64 Texto apresentado em novembro /2010. Aprovado para publicação em dezembro /2010.

64 – Para o conceito de ideologia, ver FURET, F. & OZOUF, J.. Trois siècles de métissage culturel. Annales. Economies, Sociétés. Civilisations. Paris, 32 (3): 488-502, mai.-juin. 1977.

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Política de terras, latifúndio e projetos de reforma: colonialismo, iluminismo e percursos liberais

Política de terras, latifúndio e projetos de reforma: colonialismo, iluminismo e percursos liberais Land policy, large landed estates and land reform projects: Colonialism, Enlightenment and liberal courses Marisa Saenz Leme 1 Resumo: O presente artigo objetiva analisar a política de terras que se desenvolveu durante a configuração da América Portuguesa e o transcorrer do Império Brasileiro, recuperando-se as propostas de transformação da estrutura da propriedade da terra que se fizeram presentes, na metrópole e na Colônia Brasil, durante o século XVIII, bem como em diferentes momentos da existência do Império, no século XIX. Para tanto, avaliam-se temas referentes à produtividade agrícola e à expansão populacional, problematizando-se a vinculação entre latifúndio e escravismo, numa comparação com os Estados Unidos da América do Norte. Palavras-chave: Latifúndio – liberalismo – reforma – imposição social.

Abstract: This article aims to analyze land policies developed since the shaping of Portuguese America and during the period of the Brazilian Empire, through the evaluation of proposals to transform the structure of land ownership, then in force both in the metropolis and in Colonial Brazil during the Eighteenth century. It also will analyze those conditions during the various stages of the Empire in the Nineteenth century. With that purpose, issues concerning agricultural productivity and populational increase will be reviewed, as well as the linkage between large landed estates and slavery, having in mind a comparison with the United States of America. Keywords: Large Landed Estates – Liberalism – Reform – Social Obligations.

Em meados do século XVIII, o magistrado, político e diplomata português D. Luís da Cunha Zacaria de Aça2, já no fim da sua vida e de uma 1 – Professora Assistente do Departamento de História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/Franca. 2 – Nascido em 1662, D. Luís da Cunha iniciou sua carreira como desembargador da Relação do Porto e depois da Casa de Suplicação de Lisboa, tendo recebido a comenda da Ordem de Cristo. Junto com o Conde de Tarouca, foi enviado Extraordinário e Plenipotenciário de Portugal para o Congresso de Utretcht. Prosseguiu sua carreira diplomática, residindo 40 anos fora de Portugal, como embaixador português às cortes de Londres, Haia, Madri e Paris, onde viveu longamente e faleceu em 1749, um ano antes da morte de D. João V. Cabe ressaltar, a elaboração do testamento foi contemporânea à do Espírito das Leis, de Montesquieu, que veio à luz em 1748. Dados biográficos extraídos de: BAIÃO, Antonio. Prefácio à primeira edição impressa de Instruções Inéditas de D. Luís da Cunha a Marco Antonio de Azevedo Coutinho.Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929; LEONZO, Nancy. Introdução ao TESTAMENTO POLÍTICO ou Carta Escrita pelo Grande D. Luiz da Cunha ao Senhor Rei D. José I antes do seu governo. São Paulo: Editora

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longa carreira de serviços prestados à Coroa portuguesa – durante a qual viajara longamente, tendo residido nas principais capitais do continente europeu – escreveu um “testamento político”3, voltado para a análise da realidade portuguesa, sob o enfoque da Ilustração, da qual fora ele, aliás, um elemento de proa em território lusitano. Como se sabe, esse testamento, “dirigido ao Senhor Rei D. José I antes do seu governo”, quando já se antevia um próximo passamento de D. João V, adquiriu fama como um roteiro das reformas ilustradas em Portugal, que passaram a ser executadas com a ascensão ao poder de José Sebastião de Carvalho, futuramente Conde de Oeiras e depois Marquês de Pombal. Saliente-se que Carvalho, embora naquele momento malquisto na corte joanina, durante anos a ela prestara serviços diplomáticos4 tendo sido explicitamente citado por D. Luís, em seu “testamento”, como o elemento mais indicado para presidir a administração do reino após a morte do rei. ALFA-OMEGA, 1976. Biblioteca Alfa-Omega de Ciências Sociais, série 2ª. vol.1. 3 –1Tendo circulado em exemplares manuscritos no século XVIII, a sua primeira aparição em letras impressas se deu, sintomaticamente, no ano da Revolução Liberal do Porto (1820), em Londres, ao ser reproduzido no jornal O Investigador Portuguez, de oposição à Regência. A primeira edição em livro ocorreu logo no ano seguinte, como o tomo I das Obras Inéditas, organizadas por Antonio Lourenço Caminha. Somente em 1943 voltou a ser reeditado, nos Cadernos da Seara Nova. Para tanto, ver: ALMEIDA, Luís Ferrand de. “A propósito do testamento político de D. Luís da Cunha com prefácio e notas de Manuel Mendes”, in Revista Portuguesa de História, Coimbra, 1947, p. 469. Por sua vez, embora em texto menos conhecido e comentado, escrito há mais de dez anos antes do Testamento, os projetos ilustrados de D. Luís da Cunha também foram desenvolvidos nas Instruções Inéditas de D.Luís da Cunha a Marco Antonio de Azevedo Coutinho. Azevedo Coutinho fora embaixador português em Londres; era parente de Sebastião de Carvalho, que o substituiu na função, tendo sido ele chamado a ocupar a Secretaria de Negócios Estrangeiros e da Guerra de Portugal. Companheiro de D. Luís da Cunha na Embaixada de Paris, solicitara ao último as referidas instruções que, contudo, não chegaram às suas mãos, devido à desistência do autor. As instruções permaneceram com o sobrinho de D. Luís da Cunha, D. Luís da Cunha Manoel, que posteriormente faria parte do governo pombalino, na mesma secretaria antes ocupada por Azeredo Coutinho. As Instruções permaneceram manuscritas até 1923, quando mandadas imprimir pela Academia das Sciências de Lisboa. Antes, apenas uma parte, a relativa às corporações religiosas, fora reproduzida em 1822, no periódico O Analista Portuense. Para os dados desta nota, vide: BAIÃO, Antonio, op. cit..; AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e sua época. São Paulo: ALAMEDA, 2004. 4 –1A atuação diplomática do futuro Marquês de Pombal ocorrera fundamentalmente em Londres e Viena. Para a temática, ver: AZEVEDO, João Lúcio de, op. cit.

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No diagnóstico ilustrado do diplomata a respeito dos problemas da sua terra natal, vasculharam-se diversos terrenos, os da magistratura e da burocracia, os da questão judaica, bem como os da dinâmica interna da economia e sociedade portuguesas. E, nesse último plano, a questão da terra – em suas dimensões jurídico-institucionais de propriedade e status, bem como nos aspectos de produtividade e ocupação populacional – adquiriu grande relevância na identificação dos entraves estruturais da economia metropolitana. Naturalmente, as diferentes dimensões da questão da terra5 articulavam-se entre si, o que ficou bem expresso no texto de D. Luís da Cunha. Após fazer uma indicação geral a respeito da usurpação de terras “ao comum das cidades, vilas e lugares”, que deveriam ser restituídas “às comunidades” e, bem ao gosto dos fisiocratas, afirmar ser “rara” a terra “de que se não pode tirar alguma utilidade”, como no caso das “muitas terras incultas por serem montanhas ou puras charnecas”. Em reforço dos seus argumentos, citou o exemplo das ordens religiosas, “principalmente bernardos e bentos”, que haviam recebido fartas doações de terras por parte dos reis, que as supunham “matos incapazes de produzir algum fruto”; mas os religiosos “as cultivaram de maneira que hoje são fertilíssimas e fazem a grande riqueza dos seus conventos”. Propôs o diplomata a realização de estudos para o adequado aproveitamento do solo, reforçando o pensamento de que “na geral cultura das terras consiste a de todo o reino”. Realização essa impedida, na sua avaliação, pela mentalidade dos proprietários que, a persistir, deveria ao seu ver ser combatida à força. Alinhavou então o que na época corresponderia a uma reforma agrária, pregando a intervenção, se preciso, violenta, por parte do Estado. Sendo os proprietários “rústicos e preguiçosos”, seria necessário

5 –1Temas abordados entre as páginas 61 e 75 da edição utilizada, em que se encontram os termos, expressões ou pequenas frases entre aspas.

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“forçá-los a procurar o seu mesmo proveito, de que se segue, se o proprietário ou rendeiros de tais terras incultas, sem atenderem ao lucro futuro por se pouparem às despesas presentes, as não quiserem cultivar, seria justo que se lhes tirassem, vendendo-se ou aforando-se a quem se obrigasse a frutificá-las, tanto quanto lhe for possível, porque importa pouco que se faça uma injustiça a certo particular, quando dessa resulta a utilidade comum [...]”6

Observe-se que para o diplomata, ao afirmar ele que “a salvação dos povos consiste na cultura das terras”, o bem público se sobreporia ao interesse particular, cabendo ao estado uma intervenção legítima nas posses territoriais. Embora de origem aristocrática, D. Luís, neste como em outros aspectos, investia contra o parasitismo, que na sua visão tanto prejudicara a sociedade portuguesa, e indicava o contraponto burguês da postura aristocrática em relação à terra: o critério da produtividade. Cabe assinalar, porém, que a valorização da terra não excluía, no seu pensamento, o desenvolvimento da manufatura. Pelo contrário, no seu diagnóstico, reclamou amargamente do retrocesso que nesse sentido sofrera Portugal em sua dependência da Inglaterra. Na defesa da agricultura, era o metalismo o alvo D. Luís da Cunha: assim, para Portugal, “suas melhores minas consistiam nos mesmos braços que trabalham e aumentam a produção de suas terras”7. Pois também não se tratava de qualquer agricultura, mas da sua diversidade. No mesmo diapasão em que condenava o metalismo, condenou a exclusividade da produção vinícola: “esta grande exportação de vinhos não é tão grande como se imagina, porque os particulares converteram em vinhas as terras de pão, tirando delas maior lucro, mas em desconto a generalidade padece maior falta de trigo, de centeio e cevada, de sorte que se o vinho sai de Portugal, é necessário que de fora lhe venha maior quantidade de pão.”8

De modo amplo, atacava a mentalidade imediatista e predadora dos homens de posses em Portugal. E exemplificou: 6 –1Op. cit., p. 62. 7 –1Op. cit., p. 71. 8 –1Op. cit., p. 66.

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“O senhor rei D. Pedro, querendo sustentar as fábricas de seda, ordenou que todos os ministros obrigados a dar residência, nela mostrassem que cada qual da sua jurisdição tinha plantado uma amoreira no seu quintal, ou na terra que trazia arrendada; o que se observou alguns anos, e há muitos que se não pratica, porque o paisano que um dia plantava uma amoreira, no outro a arrancava, podendo tirar dela o proveito de lhe vender a folha.”9

Quanto à Colônia Brasil, o diplomata reformador a deixou praticamente omissa no seu “testamento”. Embora afirmando que dela “tiramos tantas riquezas” – tendo sugerido, em 1736, ainda sob o trauma da União Ibérica, que D. João V transferisse a sede do Império para o Brasil e nomeasse um vice-rei para cuidar de Portugal –, enfatizou a drenagem, sobretudo devido às minas, de braços da metrópole, no contexto de um pensamento em que a intensificação do povoamento era considerada elemento fundamental para a riqueza de um território. Aventou, para tanto, uma solução herética para a postura colonial dominante no mundo ibérico de então: que o Brasil, embora sob o controle da metrópole, fosse povoado por estrangeiros... Como se sabe, ao se assenhorear do poder, o herdeiro político de D. Luís da Cunha, José Sebastião de Carvalho, procurou conceber, na teoria e na prática, Portugal e Brasil como um todo, estabelecendo princípios básicos para a realização do que se veio a conhecer como o projeto de um “império luso-brasileiro”10. Por sua vez, o executar de semelhante integração de ambos os lados do Atlântico português seria pautado, como condição da sua viabilidade, pelas reformas impressas no ideário do que se convencionou chamar de “ilustração luso-brasileira”11, envolvendo 9 –1Op. cit., p. 62. 10 –1A análise mais abrangente do tema do “poderoso império” encontra-se em LYRA, Maria de Lourdes Vianna. A utopia do poderoso império. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994. 11 –1Para tanto, ver o trabalho seminal de DIAS, Maria Odila Silva. “Alguns aspectos da Ilustração no Brasil”, originalmente publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico, vol. 278, 1968, e republicado em Interiorização da Metrópole e outros estudos. São Paulo: ALAMEDA, 2007.Também trazem informações e análises importantes: LYRA, M. L. V., op. cit.; e NOVAES, Fernando. O reformismo ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos. In: Revista Brasileira de História,, n. 7. Especificamente para a questão agrária,

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um conjunto de transformações, quer se tratasse das relações metrópolecolônia, quer dos mecanismos de estruturação interna das respectivas sociedades. No nível jurídico, cabe ressaltar a importância da Lei da Boa Razão para a tentativa de se implementarem os referidos planos reformistas. Publicada em 1769, consistiu ela um instrumento jurídico básico – no sentido do estabelecimento de diretrizes gerais – que deu ao “direito subsidiário uma nova dimensão no preenchimento das lacunas existentes no campo do direito privado”, acabou “com a relevância do direito canónico nos tribunais civis” e reduziu “ o domínio da aplicação do direito romano ”12. Como se expressa no trecho abaixo transcrito: “...Mando...que aquella boa razão ... não possa nunca ser o da authoridade extrínseca daquelles Textos do Direito Civil, ou abstractos...; mas sim, e tão somente: ou aquella boa razão, que consiste nos primittivos principios, que contém verdades essenciaes, intrinsecas, e inalteraveis... ou aquela boa razão, que se funda nas outras regras, que de unânime consentimento estabeleceo o direito das Gentes para a direcção, e governo de todas as Nações civilisadas; ou aquella boa razão, que se estabelece nas Leis Políticas, Economicas, Mercantis, e Marítimas, que as mesmas nações Christãs tem promulgado com manifestas utilidades, do soccego publico, do estabalecimento da reputação, e do augmento dos cabedaes dos Povos ... sendo muito mais racional, e muito mais coherente, que nestas interessantes materias se recorra antes em casos de necessidade ao subsidio proximo das sobreditas Leis das Nações Christãs, illuminadas, e polidas, que com ellas estão resplandecendo na boa, depurada e sã jurisprudencia; em muitas outras erudições uteis, e necessarias, e na felicidade; do que hir buscar sem boas razões, ou sem razão digna de attender-se, depois de mais de desesete seculos o socorro ás Leis ... (romanas).”13 ver: WEHLING, Arno. “O fomentismo português no final do século XVIII, Doutrinas, Mecanismos, exemplificações. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 316, jul.-set. 1977. Disponível no site: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php. 12 –1SERRÃO, Joel. Dicionário da História de Portugal. Verbete: “Leis, Cânones, ������ Direito”. Porto: Iniciativas Editoriais, 1971, p. 671. 13 –1Lei da Boa Razão, parágrafo nono. In: TELLES, José Homem Correia. Commentario critico á LEI DA BOA RAZÃO. Lisboa: typ. de Antonio José da Rocha, 1836, pp. 27-28.

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Tratou-se de um “olhar que privilegiava o mérito individual, a função, a competência e a revogabilidade da indigitação; a esse novo entendimento do ofício repugnava a ideologia do benefício, a patrimonialização e a acumulação de cargos”14. A nova lei foi “uma das peças fundamentais do iluminismo pombalino”15, tendo, no plano administrativo, apontado, “inequivocamente, para uma ´nova constitucionalidade´, para uma outra forma de entender as relações de serviço no âmbito do dispositivo administrativo da Coroa.”16 Nesse contexto, a gestão ilustrada do Marquês de Pombal investiu juridicamente contra a propriedade aristocrática da terra, em Portugal e no Brasil, pois o respeito aos princípios expostos na Lei da Boa Razão favoreceria a agilização das trocas mercantis no campo e, em decorrência, as possibilidades de diversificação da produção. O que, por sua vez, estava em consonância com o espírito de pesquisa científica dos recursos naturais da terra, estimulada pela “ilustração luso-brasileira”. Contudo, como referiu Vera Ferlini17, no século XVIII foram poucos os resultados decorrentes da combinação desses processos, legais e científicos, não apenas na colônia, mas também na metrópole, onde ainda era muito forte a condição de resistência da nobreza18. 14 –1CARDIM, Pedro. Resenha do livro O Desembargo do Paço, de José Maria Louzada Lopes Subtil. Analise Social, vol. XXXIV, (Inverno). Lisboa: 2000, pp. 756. Disponível no site: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1224151870F9bWQ9vd3Ib39OO8.pdf. 15 –1NOVAES, Fernando. A extinção da escravatura africana em Portugal no quadro da política pombalina. In: Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: COSACNAIFY, 2006, p. 99. Para os estudos sobre Pombal, ver: MAXWELL, Kenneth. Pombal: o paradoxo do iluminismo. 2ª. ed.: São Paulo: Paz e Terra, 1997; AZEVEDO, João Lúcio, op. cit. 16 –1CARDIM, Pedro, op. cit., p. 756. 17 –1A questão agrária no pensamento reformista luso-brasileiro do século XVIII: estrutura fundiária, legislação territorial e propostas de mudanças. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no Império Português. São Paulo, Alameda, 2005. 18 –1No mesmo ano em que surgiu a Lei da Boa Razão, publicou-se também uma nova lei sobre as sucessões, facilitando a partilha da propriedade e a sua consequente comerciali����������� zação. Mas houve um intenso processo de “reações e transações” ocorridas entre governo e nobreza, nos próprios tempos pombalinos e a seguir, nas várias fases do reinado de D. Maria I, prejudicando-se, em muito, uma ampla e efetiva aplicação da lei em todas as suas consequências. WEHLING, Arno e Maria José. Racionalismo ilustrado e prática jurídica

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Na Colônia Brasil, passados cerca de trinta anos da promulgação das referidas leis pombalinas, ainda no contexto da “ilustração luso-brasileira” – já agora na sua fase pós-pombalina, sob a égide de D. Maria I – surgiram, por parte de um português radicado na Colônia, professor régio de grego em Salvador, Luís dos Santos Vilhena19, análises muito significativas a respeito da questão fundiária no Brasil, que permaneciam no mesmo diapasão de pensamento exposto por D. Luís da Cunha para Portugal, e que Pombal buscara colocar em prática também na Colônia. As referidas análises fazem parte das Notícias soteropolitanas20, escritas em “cartas”, na forma da época, e enviadas a um “amigo”, real ou a imaginário, para terem divulgação pública. Trata-se da 24 . carta, a última da série, endereçada ao “amigo e senhor” Patrifilo, na qual o professor régio discorreu sobre “alguns pensamentos políticos, aplicados em parte às colônias portuguesas do estado do Brasil”, visando às reformas que poderiam consolidar a dominação metropolitana no quadro de problemáticas do que posteriormente se concebeu como a crise do antigo sistema colonial – o direito das sucessões no Brasil (1750-1808). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 159, n. 401, out./dez. 1998. Disponível no site: http://www.ihgb. org.br/rihgb.php. 19 –1Luís dos Santos Vilhena nasceu em 1744, em Portugal, na vila de Santiago de Cassino e, após ter alternado suas atividades profissionais entre o serviço militar e o magistério, veio para Salvador em 1787, aos 43 anos de idade, assumindo a cadeira de professor régio de grego, de acordo com Leopoldo Jobim, em substituição a José Maira Lisboa, que fora o primeiro ocupante do cargo. Faleceu em 1814, em Salvador, aos setenta anos de idade. De acordo com Emanuel Araújo, as “informações sobre a sua vida são poucas e fragmentadas”. Para mais informações, ver: JOBIM, Leopoldo. Luís dos Santos Vilhena e o pensamento iluminista no Brasil. Dissertação de mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/PUC-RS. (Este trabalho foi posteriormente publicado sob o título: Ideologia e colonialismo. Forense Universitária, 1985.); ARAÚJO, Emanuel. Introdução. Pensamentos políticos sobre a Colônia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1987. 20 –1As Notícias Soteropolitanas foram escritas entre 1798 e 1802. As primeiras vinte cartas surgiram entre 1798 e 1799, dedicadas ao Príncipe Regente D. João e ao amigo fictício Filipono. A XXI ficou sem dedicatória e as três últimas foram dedicadas a D. Rodrigo de Souza Coutinho e a outro amigo fictício, Patrifilo. Apesar da forma, Vilhena sabia que não seriam elas publicadas. Tiveram forma impressa apenas 120 anos depois, em 1922, em Salvador, pela Imprensa Oficial da Bahia, por iniciativa de Brás do Amaral. Embora tratassem grandemente da Bahia, parte das cartas estenderam-se para outras capitanias da Colônia.

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colonial21. Os “pensamentos políticos” abordavam tanto os controles socioeconômicos internos à Colônia quanto a definição e preservação das fronteiras da América Portuguesa em relação aos domínios sul-americanos da Espanha. De acordo com Emmanuel de Araújo, o pensamento nessa carta exposto consistiu “uma espécie de programa de uma nova política colonialista”22. Por sua vez, considerando as Notícias em seu conjunto, avaliou Leopoldo Jobim ter Vilhena se proposto a “uma reforma política do Brasil”, devendo-se valorizar o texto sob o ângulo de “um projeto político”, no qual fez uma “avaliação geral da colonização”23. Para Carlos Guilherme Mota, o professor de grego foi “um dos representantes mais brilhantes” da “versão colonial do reformismo ilustrado... Nele encontram-se, ao mesmo tempo, o colonizador e o crítico da colonização”24. O autor de Pensamentos Políticos escrevia passados mais de vinte anos da realização do tratado de Santo Ildefonso (1777), que considerava lesivo ao que no seu entender constituíam legítimos direitos de Portugal sobre partes do território do atual Rio Grande do Sul e áreas da bacia do Prata25. Preocupado com a consolidação e expansão dos espaços legal21 –1A obra clássica para a caracterização da temática é a de Fernando Novaes: Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Hucitec, 1979. Ver também: MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa. A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808. 3ª. ed.: São Paulo: Paz e Terra, 1995. 22 –1Op. cit., p. 11. 23 –1Op. cit., pp. 122 e 119. 24 –1Idéia de revolução no Brasil. São Paulo: Cortez, 1989, p.75. Embora Vilhena e as Notícias Soteropolitanas sejam bastante citados na historiografia, lamentara José Honório Rodrigues, em História da história do Brasil (conforme reprodução de Leopoldo Jobim, op. cit.,p. 79), não ter “a historiografia incorporado a informação e interpretação... da obra 23 de Vilhena... ao conjunto da história brasileira” . São até hoje muito poucos os trabalhos especificamente dedicados às interpretações de Vilhena: na atual pesquisa, localizaram-se apenas os títulos já trabalhados de JOBIM e ARAÚJO e um artigo de MOTA, Carlos Guilherme. Mentalidade ilustrada na colonização portuguesa: Luís dos Santos Vilhena. In: Revista de História, 35 (72): 405-416. 25 –1Tratava-se de territórios cuja inclusão na América Portuguesa, anteriormente estabelecida pelo Tratado de Madri, havia sido revogada no tratado posterior. Para a questão das fronteiras, ver: SOARES, José Carlos de Macedo. Fronteiras do Brasil no Regime Colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939, em particular os capítulos: V – “Fronteiras entre os domínios de Portugal e os da Espanha – 1750”; VI – “O Tratado de Santo Ildefonso – 1777”.

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mente definidos como da América Portuguesa, centrou Vilhena na questão da agricultura a sua análise sobre as possibilidades de se cumprir a “necessidade imperiosa” de se ocuparem as zonas fronteiriças: Portugal não tem refletido como devera na natureza e índole dos seus vizinhos e menos tem olhado para os seus interesses, que lhe podiam ser provenientes desta parte das suas colônias, pois que se [o] houvera feito povoando, fortificando e guarnecendo a capitania do rio Grande...teria a agricultura e o comércio feito florescer aquele país, e o receio da oposição [rigorosa] teria encurtado muito os passos aos espanhóis26.

No contexto das posturas teóricas e práticas a respeito da defesa das fronteiras, é de se ressaltar a diferenciação do pensamento de Vilhena que, de acordo com os preceitos da Ilustração, embora reconhecendo a importância da defesa militar, enfatizava o polo da ocupação socioeconômica como o fator preponderante para o equilíbrio geopolítico, dada a sangria, como a seu ver mostravam as experiências históricas, que a manutenção de exércitos permanentes trazia para a gestão do estado, provocando simultaneamente o incremento dos impostos e a esterilização das atividades econômicas. O seu modo de pensar a questão levava ao reforço da paz como um meio para se garantir a expansão territorial portuguesa na América27. Ampliando-se essa perspectiva, a ocupação socioeconômica, na visão do autor, era fundamental para todo o território da América Portuguesa que, independentemente de ameaças fronteiriças imediatas, havia que ser efetivamente conquistado a partir do seu próprio interior, desenvolvendo-se as áreas nominalmente pertencentes a Portugal. Com esse intuito, Vilhena iniciou a referida “carta” com uma longa exposição das delimitações territoriais da América Portuguesa, historiando as disputas com os espanhóis. Enfatizando a importância da ocupação populacional para as diversas regiões coloniais, afirmou: 26 –1Op. cit., p. 44. 27 –1O pensamento de Vilhena sobre a questão desdobra-se entre as páginas 63 e 66 do texto analisado, com o subtítulo “ o peso da guerra”, aposto por Emmanuel Araújo.

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“Qualquer destas capitanias, povoada e cultivada como pede a sua extensão e qualidade de terreno, portos e rios que as regam e fazem a muitas comunicáveis, nada teria a invejar a qualquer dos florescentes Estados da Europa, quando unidas todas seriam um dos grandes impérios do mundo.”28

Ressalte-se a afirmação de Vilhena a respeito da Colônia Brasil tornar-se “um dos grandes impérios do mundo”, indicativa da visão ilustrada sobre a superioridade da unidade, em detrimento da fragmentação. Naturalmente, no seu posicionamento, tratava-se de um assenhorear-se a serviço da glória metropolitana: “se vê claramente que tem a Coroa portuguesa onde poder, sem controvérsia de vizinhos inquietos, fundar um poderoso e rico império, uma colônia que possa competir com as melhores que se conheçam em qualquer parte do mundo.”29

Cabe salientar que o professor régio concebia uma agricultura diversificada, comportando tanto os produtos de exportação quanto aqueles de consumo interno e, no espírito da ilustração luso-brasileira, beneficiada pelos cuidados técnicos decorrentes do conhecimento científico. A ênfase na agricultura não o fez descuidar, porém, da pecuária, também avaliada de modo muito positivo no que se refere às suas possibilidades na colônia30. Quanto aos obstáculos ao cultivo, apresentados por determinadas áreas de terreno em diferentes regiões do Brasil, argumentou Vilhena – de modo semelhante ao que no passado fizera D. Luís da Cunha – serem eles superáveis. Baseou-se para tanto em exemplos históricos de ocupação humana em terras inóspitas e, também, na comparação entre as condições nesse sentido existentes na colônia e na metrópole. No seu modo de pensar, a questão fundamental para o desenvolvimento agrícola não residia 28 –1Op. cit., p. 47. 29 –1Op. cit., p. 47. 30 –1Op. cit., p. 50. Para a questão do gado ver os comentários do professor Emanuel Araújo, p. 27.

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na natureza do terreno, mas em que “em primeiro lugar se estabelecera um verdadeiro sistema de agricultura”31. De acordo com o apresentado por Leopoldo Jobim, o professor Jock H. Galloway32 – que também incluiu o pensamento de Vilhena nas suas análises sobre iluminismo e reforma no mundo rural da Colônia Brasil – estabeleceu um esquema teórico para a compreensão das reformas no campo, em que separou as propostas de reforma “agrícola”, a partir do melhoramento técnico, das de reforma agrária, envolvendo a estrutura da propriedade. Na Colônia Brasil da segunda metade do século XVIII, houve todo um empenho, por parte do estado e da elite intelectual, em relação ao seu melhoramento agrícola33, melhorias essas, conforme esse autor, que constituiriam o limite dos projetos de reforma passíveis de se apresentarem para um mundo colonial34. No entanto, observa-se que as propostas de Vilhena apontam exatamente o contrário. No seu discurso, a realização das projeções de ocupação populacional da colônia por intermédio do desenvolvimento agropecuário, tão favorável à evolução do “poderoso império”, encontrava um forte óbice na estrutura da propriedade fundiária. O professor régio percorreu todo um raciocínio para chegar a tanto. Iniciou a sua exposição discorrendo sobre a “estreita correlação” entre existência humana e meios de subsistência, afirmando ser “axioma inegável que sem homens não há sociedade e sem meios de subsistência não pode haver homens, para a seguir afirmar a importância dos legisladores proverem “à necessidade da multiplicação de homens como objeto o 31 –1Op. cit., p. 47. 32 –1Agricultural Reform anda the Enlightenment in Late Colonial Brazil. Agricultural History, vol. 53, no. 4, 1979. Universidade de Toronto, Canadá. In: JOBIM, Leopoldo. Reforma Agrária no Brasil Colônia. 33 –1Para estudos mais recentes sobre a temática, ver: MARQUESE, Rafael Bivar de. “A ‘geração dos ilustrados’ e a agricultura colonial: a administração das propriedades rurais escravistas brasileiras nas letras coloniais, 1780-1820”, in: Administração & escravidão: idéias sobre a gestão da agricultura escravista brasileira. São Paulo: Hucite/Fapesp, 1999; LOURENÇO, Fernando Antonio. Agricultura Ilustrada: liberalismo e escravismo nas origens da questão agrária brasileira. Campinas: Unicamp, 2001. 34 –1Reforma Agrária no Brasil Colônia. São Paulo: Brasiliense, Tudo é História, 1983.

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mais necessário[...] a todos os estados e qualidades de governo”. Nesse contexto, colocava-se a questão da terra, pois, conhecendo-se ser ela “a verdadeira subsidiária dos viventes”35, tornava-se essencial prover o seu acesso aos mesmos. Na relação do homem com a propriedade da terra percebia Vilhena as bases para a constituição da cidadania, para o fortalecimento da nação e para o amor pátrio. Comparando as posturas dos antigos e modernos legisladores a respeito da questão, elogiou os primeiros e condenou os segundos que, na sua opinião, teriam “perdido de vista aquelas bases do governo político quando deram com profusão a dez, deixando dez mil sem uma porçãozinha de terreno [...]”36. Em partes do seu discurso, o professor de grego recorreu à associação entre indivíduo e propriedade, fundamentadora do liberalismo, para justificar suas concepções sobre a necessidade de se repartir a propriedade das terras entre um maior número de pessoas. Considerando que “quem gera o cidadão é a propriedade e o receio de perdê-la é quem o une à pátria” e que “a sociedade política compõe-se de proprietários”, postulou o alargamento dessa base social para o fortalecimento da nação e do estado, o que, cabe lembrar, nas concepções esposadas pelo autor, decorria fundamentalmente do tripé: “população, agricultura e comércio”. De acordo com o autor das Notícias Soteropolitanas, a proliferação familiar, tão cara à multiplicação humana, era muito mais afeita ao “cidadão-proprietário” do que ao “cidadão-jornaleiro”37. Por sua vez, em decorrência do vínculo com a propriedade, os indivíduos se empenhariam em tornar suas terras produtivas e rentáveis. Como não poderia deixar de ser, Vilhena condenou longamente as leis do morgadio. A perspectiva ilustrada da valorização humana e política pela propriedade em Vilhena foi também realçada por Leopoldo Jobim, ao reproduzir os conceitos desenvolvidos na Encyclopédie, de acordo com os quais “todo proprietário está interessado no bem do Estado [...] e é sempre 35 –1VILHENA, L.S.Op. cit.,pp. 51 e 53. 36 –1Op. cit., p. 53. 37 –1Op. cit., P. 54.

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como proprietário, é em função das suas propriedades que ele deve se fazer ouvir38. Ainda Carlos Guilherme Mota ressaltara semelhantes vinculações , ao indicar que em Vilhena “surgem intimamente relacionados [...] a família, a propriedade, a noção de pátria e a organização do trabalho”39. Em outros momentos, contudo, as referências do professor de grego para subsidiar o seu raciocínio sobre a posse40 da terra foram adstritas à organização social que predominara durante a vigência do estado moderno. Dessa maneira, destaca-se a sua assertiva de que “as grandes propriedades ... prejudiciais a muitos e profícuas a um só”, deveriam ser transformadas para que muitos pudessem cultivar a terra e dela tirarem a “subsistência de tantas outras famílias” o que teria, entre outras decorrências, a de produzir “outros tantos seminários de vassalos para os estados”41. Independentemente contudo das concepções mais gerais sobre as relações entre sociedade e estado, manteve-se em Vilhena a mesma postura em relação à terra, no sentido da exigência da reforma da estrutura fundiária. É de se salientar, também, que, mesmo quando esposava conceitos liberais sobre as relações socioeconômicas, o professor régio indicava sempre a necessidade de intervenção do estado, por vezes, de maneira dramática. Observando a Colônia Brasil no contexto da relação entre propriedade da terra e ocupação populacional, Vilhena avaliou nela haver, comparativamente à Europa, “muito menos proprietários”. Ao mesmo tempo, no Brasil abundavam os “que não são proprietários nem querem ser jornaleiros”, o que levava à constituição de uma população ociosa, dominada pela preguiça. Uma vez parcialmente compensada essa carência de mão de obra pela escravidão, a postura de recusa ao trabalho se enraizara na população pobre e livre da colônia com muita tenacidade, compondo um quadro grandemente desalentador para uma perspectiva de transformação: 38 –1Op. cit., p.189. 39 –1Op. cit., p. 85. 40 –1Utilizo aqui o termo em sentindo amplo, sem me ater às questões da posse ou propriedade, em contraposição às datas de sesmaria. 41 –1VILHENA, L.S. Op. cit., p. 53.

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“de tal forma campeia o ócio que, se sucedera repartirem-se terras por todos os que não a têm, carecia obrigá-los por lei a trabalhar e, ainda, segundo a frase vulgar, com sentinelas à vista, ou desterrar por uma vez de entre eles os escravos, pela persuasão em que estão de que cavar e lavrar é só da repartição daqueles miseráveis, sendo tal a tenacidade desta errada persuasão que até se pega como visgo aos que para ali passam de Portugal, onde nada mais souberam que lavrar e cavar de jornal.”42

Em que pese a desolação do quadro acima descrito, Vilhena ainda cria, contudo, na possibilidade da ação humana se impor ao meio, no sentido da reforma. Nos seus dizeres, “tudo se consegue havendo deliberação e vontade”. Desse modo, haveria a “necessidade que o chefe do mesmo Estado queira abolir a ociosidade dos homens e das terras...”. Nesse diapasão, o professor régio sugeriu, como “meio primário”, a formulação de uma “lei agrária”43, cuja execução implicaria uma ampla reforma das bases em que se assentava a propriedade rural na Colônia, atingindo vários objetivos simultaneamente: desenvolveria a produtividade, a ocupação populacional, a defesa das fronteiras, e permitiria, de acordo com o autor, quebrar o quadro de ociosidade reinante na colônia. De acordo com o projeto, as terras públicas seriam distribuídas “pelas famílias que se achassem em cada um dos distritos”, em que se dividissem as circunscrições administrativas da colônia, “com limitação de tempo” para se testarem as efetivas implementações por elas realizadas nos espaços que lhes fossem concedidos. Simultaneamente, após um prazo previsto de dois anos, para que “se povoassem”, seriam progressivamente recortadas as “exorbitantes datas que se têm dado de sesmarias a quem nunca preencheu as condições de povoá-las.”44 42 –1Op. cit., p. 55. 43 –1Com interpretações diversas, vários autores que se estenderam sobre a questão da história da reforma no campo brasileiro referiram-se à “lei agrária” proposta por Vilhena. Para uma abordagem bastante recente, ver: PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato. Uma história da vida rural no Brasil, Rio de Janeiro, Ediouro, 2006. Capítulo 11, “Ambigüidades da reforma agrária”. Ver também para a temática da reforma agrária em Vilhena: ARAÚJO, Emanuel, op. cit., pp. 17ss.; JOBIM, Leopoldo, op. cit., 177ss. 44 –1Op. cit., p. 57.

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Com semelhantes medidas, de acordo com o professor régio, criar-se-iam condições para que no campo se absorvesse a população que se aglomerava nos centros urbanos. Nesse sentido, pregou ele a adoção de meios coercitivos, “para fazer evacuar das cidades os preguiçosos vadios e povoar de agricultores as campanhas”. Cabe frisar, as concepções esposadas pelo autor dos “Pensamentos políticos” a respeito do povoamento não se referiam a uma simples reprodução humana em larga escala, mas à multiplicação de um tipo especial de população, voltada para o trabalho produtivo, quer na categoria de “cidadãos” ou de “vassalos”45. Dessa maneira desenvolveu-se o pensamento de um ilustrado, no mundo luso-brasileiro, em relação à questão da terra. No seu diagnóstico, no devido equacionamento dos fatores povoação, desenvolvimento agrário com diversificação da produção, e redistribuição da posse/propriedade fundiária residia a possibilidade de superação dos entraves para que Portugal realizasse, por intermédio, sobretudo, da prosperidade e riqueza da colônia Brasil, o sonho do “poderoso Império”. O professor de grego pode, assim, ser considerado como um intelectual orgânico46 daquilo que os estadistas portugueses do século XVIII e início do XIX projetaram como a melhor saída para a existência pátria. Embora nesse momento também se desenvolvesse o pensamento de liberais “puros”, como José da Silva Lisboa e Azeredo Coutinho – que, inclusive na questão da terra, tudo deixariam ao gosto de Adam Smith, por conta da “mão invisível” do mercado –, o pensamento de Vilhena, como apontou Leopoldo Jobim, constituiu a expressão máxima de todo um clima intelectual que lhe foi contemporâneo, reinante nos estertores da Colônia Brasil. Outros projetos 45 –1Op. cit., p. 59. Para a questão de como os “vadios” foram concebidos e utilizados no século XVIII, na Colônia-Brasil, ver SOUZA, Laura de Mello e. Os desclassificados do ouro. 2ª. ed.: Rio de Janeiro: Graal, 1986. Para a temática da produção e abastecimento alimentar ver: LINHARES, Maria Yedda; SILVA, Francisco Carlos Teixeira. A proble������� mática da produção de alimentos e das crises numa economia colonial, in História da agricultura brasileira: Combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1981. 46 –1Utiliza-se o conceito gramsciano de “intelectual orgânico”, como aquele que elabora ideologicamente as diversas demandas societárias – econômicas, políticas e culturais – dos segmentos de classe, agrupamentos políticos ou instituições a que pertençam. Para tanto, ver: GRAMSCI, Antonio. “A formação dos intelectuais”, in: Os intelectuais e a a organização da cultura. 5 . ed.: Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1985.

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que envolviam a reforma fundiária, no interior do colonialismo, surgiram no mesmo período, como o de Toledo Rendon em São Paulo e do jesuíta João Daniel para a Amazônia47. Com as transformações políticas ocorridas na década de 1820, a instituição do estado liberal em Portugal – em que pesem os percalços para a sua consolidação nesse país – possibilitou solucionar parte dos problemas da sua estrutura fundiária, decorrentes das determinações jurídicas do Antigo Regime, que entravavam o desenvolvimento agrícola da então metrópole48. Contudo, no Brasil, a estrutura da propriedade fundiária colonial permaneceu como um eixo de longa duração na organização socioeconômica do Império. O que não se deu, porém, pela falta de propostas por parte das lideranças autonomistas nos seus projetos de estado. Dessa maneira, José Bonifácio elaborou seus Apontamentos sobre as sesmarias do Brasil, em que propunha a contenção da propriedade nos limites da produtividade. Nos dizeres de Miriam Dolhnikoff, fizera ele “a defesa de uma espécie de reforma agrária [...] (como um) caminho seguro para a produtividade agrícola, mas também para a penetração do Estado no interior da nação, na medida em que ... permitiria o povoamento do território nacional [...].”49

Em moldes semelhantes aos apresentados por Vilhena para o domínio imperial português, no momento da construção de um Brasil independente, ainda por se configurar como um estado-nação nos marcos territoriais da ex-colônia, a política de terras surgia como fundamental para a devida ocupação dos espaços geográficos a serem consolidados na nova dominação política. Em julho de 1822, um mês após a convocação da Assembleia Geral Constituinte das Províncias do Brasil, a concessão das sesmarias foi 47 –1JOBIM, Leopoldo. Reforma agrária no Brasil-Colônia, p. 38ss. 48 –1FERLINI, Vera. Op. cit., pp. 306-7. 49 –1Introdução. Em: DOLHNIKOFF, Miriam (org.). José Bonifácio de Andrada e Silva. Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 26.

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suspensa, transferindo-se para esse organismo a “procura de uma solução para a situação de indefinição que imperava no campo brasileiro”50. Para tanto, foram importantes os apontamentos do então Ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros, José Bonifácio de Andrada e Silva. Mas, não apenas José Bonifácio tratou da questão, o que poderia indicar uma preocupação isolada de um elemento de grande projeção nacional. Em pelo menos dois espaços provinciais de magnitude diferenciada para o processo de Independência, como os do Rio Grande do Sul e de São Paulo, projetos de teor semelhante também foram elaborados por elementos que procuravam construir, nas suas esferas, as instâncias de poder regional caracterizadas nos Conselhos Gerais de Província. Legalmente instituídos pela Constituição de 1824, esses Conselhos eram eleitos pelo mesmo modo como se davam os pleitos parlamentares e poderiam desenvolver forte influência tanto junto ao executivo provincial quanto ao governo central.51 Do ponto limítrofe do Rio Grande do Sul – cabe lembrar, que tanto ocupara as atenções de Vilhena em relação aos domínios portugueses em face dos espanhóis – foi de um charqueador, próximo à região de Pelotas, José Antonio Gonçalves Chaves, que surgiram as Memórias econômico-políticas sobre a administração pública do Brasil, uma “reflexão teórica sobre os problemas do Estado brasileiro em formação”, em que se destaca uma “preocupação dominante ... com os problemas decorrentes da má distribuição fundiária”, com todo um capítulo dedicado à temática, em que se propunha a desapropriação das terras “pertencentes a proprietários abarcadores...com muitas léguas sem cultivar”52. No Pri50 –1SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: Efeitos da lei de 1850. Campinas, Unicamp,1996, p.82. Ver também: aLIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. 4 . ed.: São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura, 1990. 51 –1Para tanto, ver: LEME, Marisa Saenz. Dinâmicas centrípetas e centrífugas na formação do Estado monárquico no Brasil: o papel do Conselho Geral da Província de São Paulo. Revista Brasileira de História, v.28, pp.197 - 215, 2008. 52 –1JOBIM, Leopoldo. Reforma agrária no Brasil-Colônia, pp.73-77. José Antonio Gonçalves Chaves era português de nascimento, tendo iniciado sua vida no Brasil como caixeiro. É caracterizado como um elemento dinâmico, empreendedor, responsável, entre outras iniciativas, pela implementação da primeira linha de navegação a vapor no Rio

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meiro Império, como membro do Conselho Geral da Província, defendeu ele seu projeto de reforma agrária que, elaborado nas Memórias em 1817, em pleno governo joanino, tomou como um dos eixos da sua atuação representativa. Por sua vez, para São Paulo, é importante observar que os posicionamentos de José Bonifácio refletiam a mentalidade da elite política provincial em relação à temática. Nas Lembranças e apontamentos do Governo Provisório de São Paulo para os deputados da Província às Cortes de Lisboa – tão marcantes para a construção de um princípio de unidade para as “Províncias do Brasil” lá reunidas53 – colocava-se claramente a questão, no capítulo segundo do documento, intitulado “Negócios do Reino do Brasil”. No seu artigo 11, pedia-se “uma nova legislação sobre as chamadas Sesmarias”, que se pode designar como uma proposta de “reforma agrária”: implicava ela em desapropriação, indicando-se que “as terras que foram dadas por Sesmarias, e não se acharem cultivadas, entrem outra vez na massa dos bens Nacionais [...]”54. A argumentação pautava-se também pela produtividade e ocupação do solo: “Considerando quanto convém ao Brasil em geral e a esta Província em particular, que haja uma nova legislação sobre as chamadas Sesmarias, que sem aumentar a Agricultura, como se pretendia, antes tem estreitado e dificultado a Povoação progressiva e unida; por quanto há Sesmarias de 6,8 e mais léguas quadradas, possuídas por homens sem cabedais e sem escravos, que não as cultivam, mas nem sequer as vendem e repartem por quem melhor as saiba aproveitar; originando-se daqui, que povoações do Sertão se acham muito espalhadas e isoladas por causa dos imensos terrenos de permeio, que se não podem repartir e cultivar por serem Sesmarias, seguindo-se também daqui viver a gente do Campo dispersa, e como feras no meio de brenhas e matos com sumo prejuízo da administração da justiça, e tal civilização do Pais [...].”55 Grande do Sul. 53 – Para os deputados do Brasil nas Cortes, ver: BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato: deputados do Brasil nas Cortes Portuguesas, 1821-1822. São Paulo: Hucitec/ Fapesp, 1999. 54 –1In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil, p. 508. Textos disponíveis no site: http://www.cebela.org.br. 55 –1Doc. cit.,, pp. 507-8.

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No sentido mercantil, estipulava-se que, dali em diante, não fossem mais concedidas terras em Sesmarias, mas que “se vendessem em porções ou lotes”. As exceções seriam para abrigar a pobreza, “para se favorecer a colonização de Europeus pobres, índios, mulatos, e negros forros, a quem se dará de Sesmarias pequenas porções de terreno para o cultivarem e se estabelecerem [...].”56 Pode-se argumentar que as Lembranças decorreram da influência, senão da própria pena, de José Bonifácio. Mas a avaliação de que as assertivas contidas nesse documento correspondiam à mentalidade reinante entre as principais lideranças políticas provinciais se evidencia na sequência dos acontecimentos. No Primeiro Império, propostas com teor reformista da propriedade fundiária surgiram por parte daqueles que faziam oposição aos Andradas, tanto no campo interno da Província como em âmbito nacional. Assim, logo na constituinte de 1823, Nicolau Campos Vergueiro fez “uma indicação à consideração dos seus pares”, expondo “um projeto de lei sobre terras públicas”, no ato de suspensão das “datas de sesmarias”57. Por sua vez, uma das primeiras propostas vindas à luz em São Paulo, com a instalação, em 1828, do seu Conselho Geral da Província, versou sobre a regulamentação agrária, em projeto para as “datas de terras”, de autoria do futuro regente Diogo Antonio Feijó58. Num momento em que a questão da terra ainda estava longe de galvanizar as atenções do governo central – na época às voltas com fatores considerados preponderantes, como a Guerra da Cisplatina, o ordenamento jurídico-criminal do país em formação e a construção da sua própria legitimidade – o tema da terra foi levantado numa das províncias-chave para o modo como se processara a independência do Brasil. Tratou-se de um longo projeto em cinco títulos e cerca de cinquenta artigos minuciosamente estabelecidos. Entre outros 56 –1Doc. cit., p. 508. 57 –1SILVA, Lígia Osório, op. cit., p. 83. 58 –1Conselho Geral da Província de São Paulo. Livro destinado ao registro de Propostas originais apresentadas pelos Conselheiros, ou Comissões, de acordo com o Regimento interno do Conselho. Arquivo Público do Estado de São Paulo. L01650 -Atas 1828-1831. Feijó era então membro desse Conselho.

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fatores, tinha-se nele em vista a organização da propriedade em função da cidadania: “A segurança da propriedade é tanto mais necessária quando dela resulta não só a tranqüilidade pública, como a existência, conservação e prosperidade da sociedade. A injusta partilha, pela qual um Cidadão se arroga o terreno que podia, e devia ser destinado à subsistência talvez de centenares de indivíduos transtorna todos os fins da associação política. Para assegurar, portanto, o direito que tem todo o Cidadão a viver dos bens da comunidade, a que pertence; e para assegurar sem obstáculos, o mais tranqüilamente possível, o terreno, que lhes (co) mpetir, offereço o seguinte Projecto [...].”59

Em que pese o fato da regulamentação da propriedade fundiária ter se constituído em forte preocupação para segmentos significativos das elites políticas no processo da independência e primeira formação do estado imperial, é notório o vácuo legal em que a questão das terras permaneceu até meados do século, passando-se cerca de 30 anos para que pela primeira vez se normatizasse o assunto. Mormente, a persistência da escravidão entre nós é tida como a responsável pela permanência, no Brasil independente, da questão da terra em moldes coloniais. Contudo, a comparação com os Estados Unidos da América, também escravista, é elucidativa para se acentuarem outros fatores, menos explorados, como decisivos nesse processo. Como bem observou Alexis de Tocqueville, foi “a propriedade do solo hereditariamente transmitida”60que, acima de outros fatores, como os privilégios e o nascimento, implementou e manteve a existência da aristocracia:

59 – Conselho Geral da Província de São Paulo. Op. cit.. Especificamente para a análise deste projeto, ver: MORAIS, Letícia Viana de. O que não tem limite: a organização das terras no Império (1828-1850). Trabalho de Conclusão de Curso, UNESP-FRANCAFHDSS – Curso de História, 2009. 60 –1A Democracia na América.4ª. ed.: Belo Horizonte, Itatiaia, 1998, p. 31.

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“Uma nação pode apresentar fortunas imensas e grandes misérias; se, porém, essas fortunas não chegam a ser territoriais, vêem-se no seio dela pobres e ricos; mas não existe, a bem dizer, a aristocracia.”

Nas colônias inglesas na América do Norte, foi, na visão desse autor, o entendimento da liberdade burguesa que prevaleceu desde o início, opondo-se, dessa forma, à concepção aristocrática da terra. Embora matizasse, dadas as características próprias das plantations, semelhante assertiva entre o que predominava na Nova Inglaterra e colônias centrais, de um lado, e nas colônias sulinas, de outro, o fato é que, com a Independência das treze colônias, a terra como objeto mercantil tornou-se um dado de realidade geral. De um lado, toda a terra para além do território dos estados constituídos havia se tornado propriedade do estado federal que, entre outros fatores, a adquiria das populações indígenas, cabendo-lhe ainda proporcionar a divisão e venda dessas terras61. Por sua vez, haviam se extinguido as leis de sucessão que, com base na legislação inglesa, mantinham intactas as grandes propriedades, destinando-as somente aos primogênitos. Medida legal essa que levou a uma fragmentação fundiária, por intermédio da partilha, ao menos em tese igualitária, das propriedades entre todos os herdeiros62. Na época da visita de Tocqueville aos Estados Unidos da América, em todos os estados da União as leis de sucessão haviam se transformado no sentido apontado. Em que pesem algumas diferenciações específicas, conforme a legislação de cada estado da União, a se matizar a utilização do termo “igualitário”, sobretudo no que se refere ao sexo, a transformação na lei das sucessões impulsionou grandemente o sentido geral do processo de divisão territorial e as suas consequências para o fluir mercantil. Como afirmava 61 –1Um regulamento para o governo dos território dos Estados Unidos a noroeste do Rio Ohio”. Lei federal de 13-07-1787. In: MORRIS, Richard Brandon. Documentos básicos da história dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964, pp. 57 a 64. 62 –1Em TOCQUEVILLE, Aléxis de, op. cit., adendo G, p. 553s. O reagrupamento das propriedades fundiárias ocorreu, posteriormente, em significativas parcelas do território estadunidense, mas, agora, sob a égide do grande capital, com relações de trabalho marcadas pela extração da mais-valia, objetivando, portanto, os grandes lucros decorrentes da produtividade.

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um legislador da época da Independência, propugnando pela transformação da lei de sucessões: “Nossos princípios gerais em matéria de governo tendem a favorecer a livre circulação da propriedade.”63 É fundamental, para os propósitos do presente texto, salientar que foi na Virginia, por intermédio de uma moção apresentada por Thomas Jefferson – preocupado com a concentração fundiária desenvolvida no sul – que primeiro se aboliu a lei inglesa das sucessões, no próprio ano da Declaração da Independência, em 1776, sendo que um Estado como Nova Iorque veio a fazê-lo apenas dez anos depois, em 1786. Dentre os estados escravistas, por intermédio de procedimentos diversos, aboliram semelhantes leis, primeiramente, a Carolina do Norte e a Geórgia, entre os mais antigos, e o Tennessee, entre os recém-criados; seguindo-se a Carolina do Norte e o recém-adquirido Estado da Louisiana. Observa-se dessa maneira que, nos Estados Unidos da América do Norte, perpetuação do escravismo e formas de propriedade da terra decorreram de fatores entre si distintos, não se estabelecendo naquele país um vínculo causal entre escravidão e latifúndio. A diferenciação entre formas de propriedade da terra no Brasil e nos Estados Unidos já fora apontada por Hipólito da Costa, no início do século XIX, ao criticar o modo como no governo joanino se lidava com a questão da imigração. Tomando nesse sentido os Estados Unidos por modelo, enfatizava o jornalista, entre um conjunto de avaliações político-administrativas para o favorecimento da imigração, o aspecto da mercantilização da terra. Criticava o fato das terras no Brasil não serem vendidas num sentido efetivamente capitalista, não se verificando no Vice-Reino “o mesmo espírito de especulação que é tão dominante nos Estados Unidos”. Comparação essa que se dava num contexto de denúncia da arbitrariedade do governo joanino, sobressaindo, para a imigração, a “falta de confiança no governo” devido às dúvidas quanto à “segurança pessoal e à inviolabilidade da propriedade particular”64. 63 –1TOCQUEVILLE, Aléxis de, op. cit., p. 553. 64 – Emigração para o Brasil. Correio Brasiliense, jul. 1818. Edição fac-símile da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, vol. XXI, pp. 216-18, 2001. Além dos Estados

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Na contramão da perspectiva esposada pelo editor do Correio Braziliense e contrariando as demandas de segmentos socioeconômicos que instavam por uma regulamentação da propriedade da terra viabilizando a sua mercantilização65, D. João VI – em que pesem as suas inovações no plano urbano, como o fim da proibição das manufaturas e a criação do Banco do Brasil – desenvolveu largamente no campo a forma da estrutura fundiária anterior, com ampla concessão de sesmarias, processo pelo qual se deu a ocupação do Vale do Paraíba e a expansão da cultura cafeeira. Como se sabe, com a Independência, as sesmarias perderam o seu estatuto de legalidade, gerando-se um vazio no ordenamento jurídico da propriedade agrária, pois nada substituiu imediatamente a legislação anterior, favorecendo-se a simples ocupação das terras, processo que, já bastante desenvolvido no século XVIII, se acentuou sobremaneira com a expansão do café. Geraram-se assim novas camadas de posseiros enriquecidos, por vezes, muito enriquecidos. Para o contexto socioeconômico do Brasil de meados do século XIX, com a efetiva proibição do tráfico de escravos à beira de se concretizar, a substituição da mão de obra escrava pela do imigrante – limitando-se o acesso deste à aquisição das terras devolutas que passariam à posse do estado com a demarcação legal das propriedades fundiárias – constituía problema de imensa magnitude, tendo adquirido grande visibilidade nos estudos a respeito das diferentes temáticas subjacentes à Lei de Terras. Mas a questão básica que antecede à própria necessidade de uma Lei de Terras – a da delimitação em si da propriedade da terra, passo primeiro para o desenrolar das suas outras dimensões – precisa ser devidamente enfatizada, na busca de se compreender a permanência do latifúndio no Brasil66. Unidos da América, também as Províncias Unidas eram modelo para as avaliações de Hipólito da Costa. 65 – Para tanto, ver: OLIVEIRA, Cecília Helena. A astúcia liberal, em particular o capítulo: “A dinâmica do mercado”. Bragança Paulista: EDUSF e ÍCONE, 1999. 66 – Para a questão da lei de terras: formulação, debates, promulgação, consequências, implementação, e outros aspectos, ver: SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Unicamp, 1996.CARVALHO, José Murilo de. “A

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As sesmarias de per si, enquanto concepção de Antigo Regime, não redundariam necessariamente na constituição do latifúndio. Pelo contrário, segundo Lígia Osório Silva, a intenção do legislador era exatamente a de evitá-lo, vinculando a permanência da concessão à sua ocupação produtiva67. Por meandros vários da forma de organização da sociedade colonial, foram contudo se configurando, sob esse aparato legal, grandes áreas de “propriedade” de terras improdutivas, criando-se uma realidade socioeconômica e, mesmo, cultural, inconteste. O projeto original da Lei de Terras confrontou essa situação, ao propor a produtividade como critério para a delimitação da propriedade, instituindo, ainda, impostos territoriais. Cabe frisar, esse projeto que, conforme José Murilo de Carvalho, “implicava uma autêntica reforma agrária”68 partiu do Conselho de Estado. Tratou-se, portanto, de um trabalho realizado por elementos classificáveis como intelectuais orgânicos da Coroa, mesclando-se nesse diapasão vontade política dos estadistas e a sua apresentação ideológica para a sociedade. Socialmente, quando da elaboração, discussão e votação da primeira Lei de Terras para o Brasil independente, na década de 1840, opuseram-se em diferentes níveis os interesses dos antigos sesmeiros e dos posseiros, novos e antigos. Mas, como se sabe, o projeto oriundo do Conselho de Estado69, ao se apresentar, com pequenas modificações, ao Parlamento, foi grandemente política de terras: o veto dos barões”, in:Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro)/ Vértice, 1988. COSTA, Emília Viotti da. “Política de terras no Brasil e nos Estados Unidos”, in: Da Monarquia à República: momentos decisivos. 2ª ed.; São Paulo. Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. LOPES, Maria Aparecida de S.; GUTIÉRREZ, Horacio. Legislación agraria y tenencia de la tierra em el Brasil decimonónico: La Ley de Tierras de 1850. In: ORTELLI, Sara; SILVA, Héctor Cuauhtémoc Hernández (orgs.). América en la época de Juarez (1854-1872). México: Universidad Autónoma de “Benito Juárez” de OAXACA/ Universidad Autónoma Metropolitana, 2007. 67 – Op. cit., capítulo II: “O sesmarialismo”. Por sua vez, como mostrou Costa Porto, em Estudo sobre o sistema sesmarial (Recife: Imprensa Universitária, 1965, pp.59 a 63), a disposição jurídica das sesmarias permitia tanto o latifúndio como a pequena propriedade, havendo por sua vez inúmeras ações de compra e venda das datas de terra assim doadas. 68 – Op. cit., p. 98. 69 – Existiram na realidade dois projetos semelhantes, sendo o primeiro de 1841. Para tanto, ver: SILVA,Osório, op. cit. No presente artigo refere-se como “projeto original” aquele que efetivamente se apresentou ao Parlamento, em 1843.

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implodido no transcorrer do seu trâmite nesse nível institucional – mais especificamente, no Senado –, transfigurando-se os quesitos da produtividade e abolindo-se a proposta da instituição de impostos. Ainda, uma vez aprovada a lei e a sua regulamentação, em que pese algum sucesso na sua aplicação junto a terras indígenas e em regiões ao sul do país70 – onde, desde o início, a estrutura da propriedade fundiária teve outras bases, com suporte na produtividade –, em grande parte das regiões brasileiras tornou-se muito difícil a sua execução. Os embargos na prática colocados pelos proprietários rurais à própria delimitação da propriedade impediam a mercantilização da terra. Isto, apesar da lei do morgadio, formalmente extinta em outubro de 1836, não ter sido de maior aplicação na Colônia Brasil, em que “as propriedades eram, em geral, divididas entre os filhos e até mesmo as filhas, como dote”71. Assim, embora dotado o Brasil como país independente de uma legislação agrária própria, politicamente fruto da consolidação de uma monarquia constitucional, liberal, não se alteraram, substancialmente, em grande parte das regiões brasileiras, as condições do trabalho na terra, em suas dimensões de produtividade agrícola e de ocupação populacional, que nesse sentido permaneceram semelhantes às dos tempos coloniais. Nos exemplos clássicos dos países de desenvolvimento capitalista, na Europa e nos Estados Unidos da América, a transformação da propriedade agrária, da estrutura aristocrática e/ou colonial para a burguesa, ocorreu por formas variadas, em diferentes combinações, entre a ação dos segmentos sociais envolvidos, muitas vezes violenta, e a intervenção do Estado, por vezes bastante enérgica. Mas, naqueles países, com a institucionalização e desenvolvimento do estado liberal, a regulamentação e 70 – Para tanto, ver: LOPES, Maria Aparecida de S.; GUTIÉRREZ, Horacio. Legislación agraria y tenencia de la tierra em el Brasil decimonónico: La Ley de Tierras de 1850. In: ORTELLI, Sara; SILVA, Héctor Cuauhtémoc Hernández (orgs.). América en la época de Juarez (1854-1872). México: Universidad Autónoma de “Benito Juárez” de OAXACA/ Universidad Autónoma Metropolitana, 2007. 71 – SILVA, Lígia Osório, op. cit., p. 85. Especificamente sobre a temática, ver: PEDROZA, Manoela. Estratégias de reprodução social de famílias senhoriais cariocas e minhotas (1750-1850). Análise Social, vol. XLV (194), pp. 141-163.

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o funcionamento da propriedade aos poucos acabaram ficando, nos seus traços dominantes, por conta do mercado. Diferentemente, na estrutura socioeconômica advinda da Colônia Brasil, a regulamentação da propriedade fundiária, na consolidação do estado liberal, não pode ocorrer pelo mercado. Nesse contexto, as medidas visando à delimitação da propriedade rural, a produtividade agrícola, a ocupação populacional e a garantia política do território, não somente deveriam surgir, mas se desenvolverem e consolidarem, com base numa forte intervenção do estado. O qual, por razões várias, mostrou-se incapaz de fazê-lo adequadamente. Desse modo, na questão da terra, observa-se uma continuidade de propostas que perpassaram a existência do estado imperial, em suas diferentes épocas. Como exposto no presente texto, importantes próceres do estado liberal, constitucional, em formação no Brasil da época da independência, pensavam, no que tange às reformas agrárias e agrícolas, de modo muito semelhante aos seus antecessores ilustrados e colonialistas. Por sua vez, a ����������������������������������������������������������� tensão entre formulações liberais e ilustradas não se dirimiu com a promulgação e regulamentação da Lei de Terras72. Pelo contrário, ao se findar o Império, cerca de noventa anos passados das formulações de Vilhena, as mesmas questões realçadas nos seus escritos se colocavam, senão como diretrizes políticas dos partidos – que pragmaticamente evitavam confrontar as questões mais profundas das estruturas socioeconômicas do país – ao menos nas formulações de alguns de seus próceres mais idealistas, como os liberais e abolicionistas Joaquim Nabuco, André Rebouças e José do Patrocínio. Tome-se nesse sentido o pensamento paradigmático de Joaquim Nabuco, exposto no contundente diagnóstico da realidade brasileira feito em O Abolicionismo, e em diversos escritos, discursos, conferências e palestras da campanha pelo fim da escravidão. Embora naturalmente se 72 –1Para uma relação completa e comentada das medidas e formulações econômicas em relação à terra no Império brasileiro, ver: LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. História político-administrativa da agricultura brasileira, 1808-1889. s.c.p., s.d.p.

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evidencie o peso do escravismo nas análises do autor, também para ele a estrutura da propriedade latifundiária emergiu com grande força final, explicativa da pobreza e da estagnação em que se encontrava o Brasil pré-abolição: “O período atual não é de conservação, é de reforma, tão extensa, tão larga e tão profunda que se possa chamar de revolução; de uma reforma que tire este povo do subterrâneo escuro da escravidão onde ele viveu sempre, e lhe faça ver a luz do século XIX. Sabeis que reforma é essa? É preciso dize-lo com a maior franqueza: é uma lei de abolição que seja também uma lei agrária. Não sei se todos compreendeis e se avaliais até onde avanço neste momento levantando pela primeira vez a bandeira de uma lei agrária, a bandeira da constituição da democracia rural... não há outra solução possível para o mal crônico e profundo senão uma lei agrária que estabeleça a pequena propriedade... Esta congestão de famílias pobres, esta extensão da miséria... estes abismos de sofrimento não têm outro remédio senão a organização da propriedade da pequena lavoura (grifos meus).”73

Enfatizou Paula Beilguelman como, em Nabuco, a par da crítica ao escravismo, “o baixo nível de vida da massa foi relacionado com o monopólio do solo”, tendo ele evidenciado a “relação espoliativa da grande propriedade para com o sertanejo”, e mostrado como a “grande propriedade territorial” onerava a agricultura”74. Mais uma vez, em que pesem as diferenças de concepção sobre as relações sociedade-estado entre ilustrados e liberais, já agora, nas versões do liberalismo do último quartel do século XIX75, observam-se semelhanças entre as premissas adotadas por Joaquim Nabuco e aquelas no século anterior expostas por D.Luís da Cunha e Luís dos Santos Vilhena. Dessa forma, considerava o abolicionista ser a “riqueza nacional uma relação 73 –1In: BEIGUELMAN, Paula (org.). Joaquim Nabuco.São Paulo: Ática, 1982, p. 121. 74 –1Joaquim Nabuco: teoria e práxis. Introdução. BEIGUELMAN, Paula, op. cit., pp. 27 e 28. 75 – Embora não se desenvolva a temática no presente texto, assinalem-se as ponderações sobre os limites sociais à propriedade que passaram a ser apontados por pensadores ����� liberais, como Stuart Mill, limites aos quais Joaquim Nabuco se mostrou bastante sensível.

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entre a produção e a população”, e lamentava o quadro devastador do mundo rural brasileiro: “As vastas regiões exploradas pela escravidão colonial têm um aspecto único de tristeza e abandono: não há nelas o consórcio do homem com a terra, as feições da habitação permanente, os sinais do crescimento natural... A população não possui definitivamente o solo...”76

Por sua vez, de acordo com o liberal, não seria o mercado a direcionar a constituição da pequena propriedade rural, mas o Estado. Considerando a “Monarquia o único poder independente que há entre nós”77, julgava ele necessário que os brasileiros possam ser proprietários de terra e que o Estado os ajude a sê-lo... O que pode salvar a nossa pobreza...é o cultivo da terra, é a posse da terra que o Estado deve facilitar aos que quiserem adquiri-la...78. Profundamente marcado pelo quadro nacional que assim diagnosticava, propôs-se Nabuco a, se eleito, não separar “mais as duas questões, a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. Uma é o complemento da outra. Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão.”79 Como é evidente, o que o grande abolicionista considerava na sua época como “obra da escravidão” perpetuou-se apesar dela, pois o fim da escravidão em nada transformou a história profunda da estrutura da propriedade fundiária entre nós. Essa permanência de longuíssimo prazo constitui uma das questões mais instigantes para a compreensão da sociedade brasileira, com a sua superposição de tempos históricos, em que as mediações entre classe proprietária de formação colonial, estado, governo e intelectuais-estadistas precisam ser sobremaneira elaboradas. 76 – BEIGUELMAN, Paula (org.), op.cit., pp. 117 e 118. o 77 – Segunda conferência no Teatro Santa Isabel. Recife, 1 /11/1884. In: Conferências e discursos abolicionistas, p. 285. Obras completas, vol. 7. 78 – Discurso na Praça da Sé de S. José do Ribamar, Recife, 05-11-1884. Op. cit., p. 271. 79 – Op. cit., p. 286.

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Como se procurou mostrar no presente texto, figuras de proa na condução política do Estado e/ou intelectuais orgânicos dos respectivos governos, em Portugal do século XVIII, na Colônia-Brasil, no Brasil da Independência e do Império consolidado do século XIX, bateram-se, sem resultados, por uma transformação de teor capitalista do campo. De acordo com as máximas do pensamento liberal, a associação, no caso brasileiro, para o mundo rural, da noção de propriedade como fundamentadora do próprio estatuto do indivíduo, esteve presente desde as formulações ilustradas de um Vilhena, tendo ainda ficado muito clara num “liberal radical” como Feijó. Mas, dada a realidade das formas de se obter e ocupar a terra na Colônia, a sua efetivação em propriedade demandava, nas concepções apresentadas, do início ao fim do Império, por liberais com significativa projeção política, uma intervenção direta do Estado, fazendo com que as suas propostas se formulassem, nesse sentido, de modo bastante semelhante ao dos ilustrados. E ainda hoje, apesar das notórias transformações socioeconômicas ocorridas a partir da segunda metade do século passado, na questão da terra continua presente no Brasil, na expressão de Vilhena, o “teatro dos vícios” dos tempos coloniais, com seus diagnósticos de superação. Referências Bibliográficas 1. Fontes impressas CUNHA, Luís da. TESTAMENTO POLÍTICO ou Carta Escrita pelo Grande D. Luiz da Cunha ao Senhor Rei D. José I antes do seu governo. São Paulo: Editora ALFA-OMEGA, 1976. Biblioteca Alfa-Omega de Ciências Sociais, série 2ª. vol.1. COSTA, Hipólito da. Emigração para o Brasil. Correio Brasiliense, jul. 1818. Edição fac-símile da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, vol. XXI, pp. 216-18, 2001. LEI DA BOA RAZÃO.. In: TELLES, José Homem Correia. Commentario critico á LEI DA BOA RAZÃO. Lisboa: Typ. de Antonio José da Rocha, 1836. TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América. 4ª. ed.: Belo Horizonte, Itatiaia, 1998.

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Texto apresentado em outubro /2010. Aprovado para publicação em novembro /2010.

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Caminho Novo – Fazendas de Petrópolis

II – comunicações

NOTIFICATIONS

Caminho Novo – Fazendas de Petrópolis “Caminho Novo” (New Road) – Rural Properties in Petropolis Fernando Tasso Fragoso Pires 1 Resumo: Com a mineração aurífera, a coroa portuguesa providenciou a construção de um Caminho Novo, que encurtaria a viagem entre o Rio de Janeiro e Vila Rica. Dela originaram-se variantes. Uma destas, a do Proença, atravessava o território que mais tarde seria Petrópolis. Ao longo desta via, propriedades agrícolas surgiriam de modo a suprir as necessidades das caravanas de tropeiros e de viajantes. Três dessas fazendas, embora dos anos setecentos, tiveram suas sedes preservadas pelo tombamento federal. São elas: Padre Correya, Samambaia e Santo Antonio. A primeira foi frequentada por Dom Pedro I acompanhado das três mulheres de sua vida – as duas imperatrizes e Domitila, a favorita – e filhos respectivos. Sua presença frequente na serra fez da Fazenda do Padre Correya o Palácio de Verão do Primeiro Império, que precedeu o Palácio de Verão do Segundo Império; hoje, para encantamento dos turistas, o admirado Museu Imperial. Palavras-chave: Caminho Novo – Palácio de verão – Segundo Reinado – Petrópolis – propriedades rurais

Abstract: With the coming of the golden age, the Portuguese Imperial government undertook the construction of a New Road that would shorten the distance between Rio de Janeiro and Vila Rica. A few alternate roads originated from the main one. One of these was the “Proença”, which crossed the territory that would later become Petropolis. Many rural properties were installed along this road to cater for the needs of cattle drivers and travelers in general. Though dating from the Eighteenth century, three of those properties were protected as national monuments: Padre Correya, Samambaia and Santo Antonio. The first one was frequented by Emperor Dom Pedro I, accompanied by the three women in his life – two Empresses, his favorite mistress Domitila, and their respective children. Because of the Emperor’s frequent visits, Padre Correya’s property became the Summer Palace of the First Empire, which preceded the Summer Palace of the Second Empire, nowadays the much admired Imperial Museum. Keywords: Caminho Novo – Summer Palace – Second Empire – Petrópolis – Rural properties.

No coração do distrito petropolitano de Corrêas, um casarão setecentista acoplado a uma graciosa capela na extremidade guarda um pedaço importante da História e a verdadeira origem do surgimento da cidade imperial de Petrópolis. A beleza serena e imponente da edificação quando 1 – Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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isolada na planície é contemplada na tela de Hagedorn, do acervo do Museu Imperial. Trata-se da fazenda do Padre Correya. Escondida hoje atrás de muros altos que obstam a visão e delimitam o cenário, já despojada de suas terras, encravada no meio das muitas construções de um populoso bairro é talvez por isso mesmo muito pouco conhecida e nunca visitada, apesar de inscrita como monumento histórico, no Livro do Tombo do Patrimônio Nacional, ao tempo em que a ainda incipiente política preservacionista não guardava os entornos do bem tombado, como acontece hoje. Denominada inicialmente fazenda da Posse ou Posse do Correya, a fama do segundo proprietário, o Padre Antonio Thomas de Aquino Correya lhe outorgaria o nome definitivo pelo qual desde sempre ficou conhecida.

Relembrando a História. Primórdios do século XVIII. O Caminho Novo das Minas Gerais fora aberto por Garcia Rodrigues Paes para favorecer a ligação entre o Rio de Janeiro e Vila Rica, no clima da empolgação da Coroa portuguesa com a nova riqueza: ouro e diamante. Substituía o Caminho Velho, que, para evitar os contrafortes da Serra do Mar onde ela era mais íngreme, contornava-a. Partindo de Paraty, alcançava o vale do Paraíba pelo território paulista, rio acima. O Caminho Novo objetivava tornar menos demorada a viagem. Para isso, galgava a serra do Tinguá, atravessando toda a imensa freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Inhomirim, que ia desde a baía da Guanabara até o vale do rio Paraíba do Sul. Cerca de 1720, Bernardo Soares Proença abriria uma “variante” que ficou conhecida pelo seu nome, de modo a diminuir a viagem em 4 ou 5 dias. Esta subia a serra da Estrela e atravessava o território que cem anos depois seria Petrópolis, reencontrando a estrada principal na região onde cruzava o rio Paraíba do Sul.

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Ao longo deste caminho, várias propriedades agrícolas surgiriam, fundadas com a finalidade de suprir as numerosas caravanas de tropeiros em suas necessidades básicas, como alimentação e hospedagem, além de pouso, trato e pastagem para os animais que conduziam, no frenético movimento de ir para e vir da capitania mineira. O estabelecimento do padre Correya se notabilizaria como estação de remonta, criatório de equinos de montaria e burros de carga, verdadeiro complexo dotado de ferraria para fabricação de ferraduras e cravos, de tal modo afamada que tornar-se-ia como que um símbolo da fazenda: desenhos em formato de ferradura com os sinais dos furos dos cravos encontram-se insculpidos na madeira entalhada do altar da capela da fazenda. Importante papel teria também a variante “do Proença” anos mais tarde, no ciclo do café, como via de escoamento da extraordinária produção cafeeira do vale do Paraíba e muito especialmente de Cantagalo, para os diversos portos do Recôncavo Fluminense, tais como Estrela, Iguassu, Pilar e Caixas, de onde em barcaças atravessava a baía com destino ao Rio de Janeiro. Todos esses portos foram como que vilas de comércio, tal o movimento na época, até que o advento das ferrovias os tornasse inúteis e condenasse ao desaparecimento. A área original da propriedade consta das Memórias Históricas de Monsenhor Pizarro, na relação da freguezia de Inhomirim. Concessão originalmente efetivada por Gomes Freire de Andrade, conde de Bobadela, “... uns sobejos de terras devolutas e sem dono à beira das estrada de Minas”, como consignado na “Relação das Sesmarias da Capitania do Rio de Janeiro”. Manoel Correya da Silva foi o primeiro dono desta fazenda, assim como de quase todas as demais na região. Minerador enriquecido na extração de Goiaz, curiosamente não foi sesmeiro, mas ao se fixar na região casou-se com a filha do sesmeiro Manoel Antunes Goulão, Brites Maria da Assunção. Seriam respectivamente pai, avô e mãe do padre Correya. Ressalve-se que Manoel Correya, homem de avultados recursos, era mais sócio do sogro do que genro. Comprou muito mais do que herdou. Os

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Goulão/Correya constituem o clã pioneiro de todas as iniciativas agromanufatureiras ao longo do Caminho Novo, dos limites de Petrópolis e no sentido da correnteza até Pedro do Rio e Secretário, onde começava a sesmaria de Garcia Rodrigues Pais, propositalmente requerida pelo construtor, no meio geográfico do Caminho Novo. A presença do clã está na abertura e na exploração de diversas fazendas, e certamente nas três remanescentes que sobreviveram ao tempo, preservadas que foram pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Padre Correia, Samambaia e Santo Antonio. Essas, e mais as desaparecidas, mencionadas como seguem: Rio da Cidade, a primeira, a mais antiga, a fazenda-berço, onde nasceram todos os filhos de Manoel Correya e Brites, no vale ao longo da atual estrada do Contorno de Petrópolis; Olaria, no lugar onde a família Oscar de Teffé construiu o Castelo São Manoel; Engenhoca, no hoje Sanatório de Correias; e Arca de Noé, loteamento na Estrada das Arcas. Muitos viajantes estrangeiros conhecidos por seus testemunhos, muitos deles sábios e naturalistas, conheceram a fazenda do Padre Correya e dela trataram em seus registros, fazendo-o por duas razões especiais: por ser parada obrigatória na viagem para Minas e pela notória hospitalidade do fazendeiro. São muitos os testemunhos, como alguns alinhados adiante: John Mawe em 1809 elogia a hospedagem do padre e observa “uma grande casa com capela”; J.B. Spix e K.F. von Martius em 1817 comparam as lavouras a “verdadeiros jardins”; Theodor von Leuthold em 1819 surpreende-se com o denso povoamento da fazenda entre livres e cativos, e com as lavouras de cana de açúcar, maçã, pêssegos, marmelo, morango e cereja, ressalvando “...contudo menos saborosos que os congêneres da Europa.”; o major G.A. von Schaeffer em 1821 menciona a produção de uvas e figos; Alexandre Caldcleugh, transcrito por Afonso Taunay, fornece informação relevante, a de que o padre “...dedicava real afeto a seus escravos por quem era adorado...” e consigna a seu próprio respeito que “o bondoso padre ainda o obsequiou no momento da partida com uma bela galinha, já preparada para a ceia.”; o comerciante John Luccock, o pastor inglês R.Walsh e o alemão von Eschwege são unânimes no enal-

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tecer a fidalguia do tratamento, que também é objeto de referências de James Henderson e George Gardner; finalmente, last but not least, os muito conhecidos Auguste François Provençal de Sainte-Hilaire e Georg Henrich von Langsdorff se mostram admirados com a produção agrícola do estabelecimento do clérigo. Muitos anos depois, Richard Francis Burton, o intrépido explorador e tradutor inglês fez parada na fazenda do Padre Correya. Desta viagem para Minas resultou seu livro Explorations of the Highlands of the Brazil, traduzido em dois volumes intitulados Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho e Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico, narrando o percurso que fez, de ida a cavalo e de volta em canoa, descendo o rio das Velhas e pelo São Francisco atingir o litoral baiano. Da fazenda recordaa “Mencionada com gratidão por muitos viajantes”, e do “Bom padrefazendeiro que morreu há muito tempo...tão celebrado por seus pêssegos ” e da “...casa que antigamente recebia a realeza...” O padre Correya nasceu em 1759 na fazenda da família, a Rio da Cidade. Ao destinar a vivenda da Rio da Cidade para outra finalidade, qual seja, a de alojar serviçais, os Correyas transladam-se para a Posse do Correya, realizando nesta fase uma necessária obra de ampliação da casa e embelezamento da capela. Manoel Correya da Silva morreu em 1784, mas Brites viveu o bastante para com a fortuna herdada e grande mérito pessoal montar uma fazenda completa e produtiva para cada filho. O século XVIII ainda não se findara e todas as magníficas casas-sedes com suas requintadas capelas estavam construídas, sendo que as três remanescentes com a feição que hoje se apresentam. Ao filho padre Correya tocou a Posse, onde primeiro na companhia de sua mãe, e depois na de sua irmã Arcângela, nela sempre residiu e trabalhou, as almas e a terra. O imperador Dom Pedro I foi o mais ilustre entre os muitos hóspedes da Fazenda do Padre Correia. Seguidamente, durante todos os anos de seu curto reinado no Brasil. Dom Pedro, ainda príncipe mas quase im-

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perador, conheceu a fazenda e o fazendeiro em março de 1822, antes do Ipiranga, quando, em clima de efervecência política, se dirigia para Vila Rica. Pernoitara primeiro na fazenda da Cordoaria – ainda existente em Fragoso, na raiz da serra de Petrópolis, pela estrada primitiva, muito perto da fazenda da Mandioca, desaparecida, mas famosa quando de Langsdorff, – e na noite seguinte na Padre Correya. Em companhia do príncipe nesta viagem vinha Estevão Ribeiro de Resende, futuro marquês de Valença e grande produtor no Vale do Café. Em março do ano de 1830 Dom Pedro I passaria sua última temporada no Correya, na companhia da segunda imperatriz Dona Amélia. Foi quando receberam a notícia da morte da rainha Dona Carlota Joaquina, o que os fez retornar à Corte e guardar luto fechado de oito dias, não sem antes, por indicação de D. Arcângela Correya, comprar a vizinha fazenda Córrego Seco, como noticia o próprio ao marquês de Barbacena – “ Meu Marquez... Já comprei o Córrego Seco por 20:000$000” – , em cujas terras o herdeiro do trono fundaria a sua cidade: Petrópolis. Depois disso, D.Pedro I nunca mais voltou. Pelos motivos conhecidos no turbilhão de sua vida, partiu para sempre. O lugar só lhe deixara as mais agradáveis recordações. Verões e estadas inesquecíveis. Encantado com o clima da montanha, com tudo o que viu e com tudo o que sentiu, o arrebatado imperante viveu intensamente os benefícios do campo. Nas coisas simples do agreste, desfrutou de tudo quanto estivesse ao seu alcance, inclusive na manutenção de um particular congraçamento com os súditos, num relacionamento respeitoso que ficaria na memória de muitos, funcionários das diferentes castas, altos figurões da governança e até de humildes pagens, passando por ouvidores, oficiais, escoltas e regimentos. Não obstante as proporções evidentemente modestas da edificação, a fazenda foi como que o palácio de verão do primeiro Império, onde não faltavam nem mesmo banhos no rio encachoeirado, banhos imperiais, famosos ainda hoje, em trecho que recebeu o nome adequado: “Poço do Imperador”. Dom Pedro I passou os verões de 1824 e 1825 na fazenda, na companhia da imperatriz Dona Leopoldina e da filha Dona Paula Mariana, nascida em 1823. A princesa não gozava de saúde e buscava recuperação

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nos ares da montanha. Lamentavelmente moléstia insidiosa se revelaria fatal aos 10 anos de idade. A primeira filha, princesa Maria da Glória, nascida em 1819 e destinada a ser rainha, já era crescida. Um ano antes de Paula Mariana nasceu a princesa Januária, em 1822, a futura condessa D’Áquila. Depois de Paula, em 1824, a princesa Francisca, a futura princesa de Joinville. No mesmo ano viria ao mundo Isabel Maria de Alcântara Brasileira, a duquesa de Goiaz, filha de D. Domitila de Castro Canto e Melo. O príncipe herdeiro Dom Pedro nasceria em 1825, no mesmo ano que o meio-irmão Rodrigo Delfim Pereira, o filho imperial de Maria Benedita de Castro Canto e Melo, irmã da marquesa, e baronesa de Sorocaba... Como anotado por Paulo Setúbal (Maluquices do Imperador) e Pedro Calmon (O Marquês de Abrantes), o imperador cultivara estreita amizade com o padre Correya, que a par da recepção calorosa prestada à família imperial e de proporcionar conforto e toda sorte de serviços indispensáveis aos passantes, era dotado de uma personalidade extremamente acolhedora e agradável. O mesmo prazer e encantamento com o veraneio na fazenda demonstrava a primeira imperatriz. Com seu gosto pelas ciências naturais, a botânica, a zoologia e a mineralogia, a austríaca sentia-se maravilhada com a beleza do panorama e com o frescor da atmosfera. Da fazenda escrevia aos parentes em Viena: “O país é encantador, cheio de paisagens deliciosas, de montanhas muito elevadas, de campos verdejantes, de florestas das mais raras e magníficas árvores, semeada das mais belas flores, onde se vêem esvoaçantes pássaros, incomparáveis devido a sua plumagem.”

E ressalvava a imperatriz: “É preciso dizer que a América portuguesa seria um paraíso terrestre se não houvesse um calor insuportável e muitos mosquitos que são um verdadeiro tormento.” Sobre o calor não pode haver dúvida, mas também os mosquitos por certo que também se referia aos de São Cristóvão... À Maria Luiza, a imperatriz relata com entusiasmo excitante excursão nas montanhas da Serra dos Órgãos, em

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que anota o “...canto do amável e fagueiro rouxinol, o rugido de onças, de porcos-espinhos e o grunhido dos grandes e barbudos monos urradores.” Padre Correya faleceu em 1824, deixando a fazenda em legado para um sobrinho, o cônego Alberto da Cunha Barbosa, filho da irmã Arcângela, que, continuando a residir na fazenda, se torna a partir de então a anfitriã da família imperial, entre os anos de 1825 e 1830, não obstante ela fosse a herdeira da fazenda Olaria, na outra margem do rio. Arcângela era viúva de José da Cunha Barbosa, que vem a ser tio do muito conhecido cônego Januário da Cunha Barbosa, um dos autores da proposta que resultou na fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A morte prematura da imperatriz Dona Leopoldina ocorrida em 1826 não interrompe as imperiais visitas. Já no ano seguinte Dom Pedro volta a “Serra dos Correyas” como chamava, desta feita na companhia de D. Domitila, marquesa de Santos. A versão de que D. Arcângela se recusara a receber a favorita foi desfeita por documentos. Octavio Tarquínio, na biografia sobre o imperador, cita uma carta de Dom Pedro remetida da fazenda para a viscondessa de Castro, mãe da marquesa, na qual manda recomendações da filha. A historiadora Maiza Salgado, citando Carlos Rheingantz, revela carta de D. Arcângela à filha Ana Leocádia dando notícias de Isabel Maria de Alcântara Brasileira, a pequena Goiaz. Interessante, observa Maiza Salgado, que D. Arcângela, nas narrativas epistolares, trata Isabel como “Senhora duquesa” enquanto se refere à Domitila como “a rainha”, ironia reveladora de um evidente constrangimento. Conquanto inexista registro documental e cronológico dos imperiais hóspedes da fazenda, a julgar por referências esparsas e confiáveis é lícito presumir que todos os príncipes e princesas do primeiro Império frequentaram a fazenda em verões, exceção apenas para os nascidos em fase posterior: Maria Isabel (I) de Alcântara Brasileira, duquesa do Ceará, com apenas cinco meses no verão de 1828 faleceria em outubro do mesmo ano; Maria Isabel (II) de Alcântara Brasileira, a futura condessa de Iguaçu pelo casamento com o filho de Barbacena, nascida em 1830, e a princesa Maria Amélia de Bragança, nascida em 1831. Um séquito acompanhava a família imperial nas temporadas campestres, tendo à frente Mariana

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Carlota de Verna Magalhães Coutinho, a querida “Dadama” do príncipe herdeiro, que em 1844 lhe outorgaria o título de condessa de Belmonte. Junto com ela sua filha Maria Antonia. Sabe-se do empenho de Dom Pedro I em criar as filhas com a marquesa de Santos conjuntamente com os filhos de Dona Leopoldina de Habsburgo em São Cristóvão, não obstante as resistências. Assim terá acontecido, de maneira mais discreta, distante dos olhos críticos, com toda a tranquilidade, na fazenda do Padre Correya. É conhecida a afeição que a segunda imperatriz Dona Amélia dedicava ao enteado príncipe herdeiro. D. Arcângela relata por escrito que em sua companhia o futuro Dom Pedro II veraneou na fazenda em 1829, com 4 anos portanto, ocasião em que brincava com os netos da anfitriã. Com eles, a enferma princesa Dona Paula Mariana. Segundo admirável informação colhida de Antonio Machado nos históricos publicados em sete volumes pela Comissão do Centenário de Petrópolis, evento celebrado em 1943, a ama de leite da princesa Paula, Maria Catarina Equey – suíça robusta chegada entre as famílias de colonos destinados a Nova Friburgo – amamentou também o então príncipe herdeiro Dom Pedro. Uma curiosidade: Dom Pedro I nutria especial estima por Maria Catarina, a ponto de se oferecer para batizar um dos filhos da suíça que nasciam anualmente, como os do imperador.... E os pequenos príncipes batizaram os demais nascidos da dedicada ama. Destarte, Maria Catarina veio a ser ao mesmo tempo comadre do imperador do Brasil (Dom Pedro I) e da rainha de Portugal (Dona Maria II da Glória). Chegada jovem ao Brasil com o marido em 1819, morreria no Paço com 80 anos, sob a proteção imperial. Depois de D. Arcângela e do cônego Alberto – ambos passariam a residir na Corte a partir de 1842 – a fazenda permaneceu na família Correya por mais duas gerações, sendo adquirida por Domingos de Sousa Nogueira, rico proprietário na região e que dá nome à localidade de Nogueira. Quando da construção da Estrada União Indústria entre Petrópolis e Juiz de Fora, em meados do oitocentos, esteve arrendada para depósito e alojamento. A partir de então passou por fases alternadas de abandono e aproveitamento. No século XX voltou à União Indústria, R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (451):291-305, abr./jun. 2011

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foi Colégio São José, do benemérito padre Siqueira, o mesmo do Asilo do Amparo em Petrópolis; foi sanatório; e na década de 1920 foi Hotel D. Pedro I, frequentado pela melhor sociedade do Rio na época e preferido de casais em lua de mel. Nos dias presentes, arrematada em leilão, pertence à Congregação das Irmãs de Caridade de São Vicente de Paulo. Tem-se pois que as paredes da mais que bicentenária fazenda do Padre Correia relembram período importante da jovem nação brasileira em tempo de consolidação da independência, servindo de residência imperial, de palácio de verão, e com toda a certeza palácio de despachos também –, portanto, patrimônio do maior valor histórico cuja preservação se impõe à sociedade civilizada. O imperador Dom Pedro I sem dúvida conheceu o máximo da felicidade na propriedade, frequentando suas instalações com as três mulheres de sua vida: a primeira imperatriz Dona Leopoldina de Habsburgo, a marquesa de Santos, D. Domitila de Castro Canto e Melo, e a segunda imperatriz Dona Amélia de Leuchtenberg, sendo que no caso das duas primeiras, com os respectivos filhos do imperador.

Fazenda Samambaia – Localiza-se na margem direita do rio Piabanha, confinando no passado com a fazenda Corrego Seco, depois a cidade de Petrópolis, com a fazenda Santo Antonio, na atual estrada de Teresópolis, e com a fazenda do Padre Correya. Manoel Correya da Silva e sua mulher Brites, antes referidos, fundaram Samambaia. Conhecida nos primórdios com o nome de Belmonte, foi entregue à filha mais nova, Maria Brígida da Assunção, irmã portanto do padre Corrêa. Casada com Pedro Gonçalves Dias, Maria Brígida morreu viúva na fazenda em 1829, herdando-a os três filhos: Brígida, casada com José Cândido Fragoso; o cônego Luiz

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e o agricultor Tomaz. Deixa de pertencer ao clã quando vendida em 1871 a Ana Gregório Gusmão de Miranda Pinto, que foi baronesa de São Vicente de Paulo depois de viúva. Por herdeiros da baronesa, Samambaia foi vendida em 1891 para um Correya de sangue novamente, sobrinhobisneto do padre, o advogado carioca Horacio Moreira Guimarães, fase em que a fazenda viveu intensa vida social, recebendo convidados, como Joaquim Murtinho, Capistrano de Abreu, Nilo Peçanha, Marechal Hermes da Fonseca e Lauro Muller. Em 1930 torna-se propriedade de José Eduardo de Macedo Soares, que, ignorando a história e a arte, comete uma violência. Apesar de observar respeito à arquitetura setecentista do casarão, sua magnífica capela é simplesmente desmontada e as imagens doadas, bem como o altar, primorosa obra de talha em madeira. Afortunadamente, porém, a fazenda é mais tarde adquirida pelo empresário Antonio Leite Garcia, que, localizando o altar da capela de Samambaia na Congregação das Irmãs Angélicas em Teresópolis, tem a ventura de conseguir trazê-lo de volta para Samambaia, onde felizmente permanece conservado. Na família Leite Garcia esteve a fazenda bastante tempo, até que em anos recentes herdeiros a venderam para o atual proprietário, que desenvolve meritório trabalho de divulgação da história e de preservação ambiental e patrimonial.

Fazenda Santo Antonio – Dos três estabelecimentos agrícolas petropolitanos considerados monumentos históricos pelo IPHAN, Santo Antonio foi durante a sua existência o mais adequadamente preservado. Localiza-se no início da estrada que liga Itaipava/ Petrópolis à cidade de Teresópolis, estrada essa inaugurada pelo rei Alberto da Bélgica em

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1920, quando o “rei soldado” visitou o Brasil no governo Epitácio Pessoa. Agostinho Corrêa da Silva Goulão, filho do casal Manoel Correya e Brites, personalidade eminente, irmão do padre Correya da fazenda de mesmo nome e irmão de Maria Brígida, da fazenda Samambaia, recebeu Santo Antonio inteiramente formada, inclusive com o belo casarão. Como visto, obra de sua mãe Brites. Formado em Coimbra em 1777, inteligente e culto, Agostinho dedicou-se ao magistério no Brasil lecionando Retórica e Filosofia; participou ativamente do movimento da independência financiando o jornal Reverbero Constitucional Fluminense do sobrinho de seu cunhado José da Cunha Barbosa, que era o cônego Januário da Cunha Barbosa, muito próximo de Dom Pedro I; dedicou-se à política como deputado representante da Província Fluminense; especialista em Direito Constitucional, integrou a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império depois da independência; e dedicou-se à Agricultura desde 1788 ao assumir a direção da fazenda Santo Antonio, que primeiramente se chamou Soledade, ou Engenho de Nossa Senhora da Soledade, produtor de açúcar. Agostinho desfrutou do respeito e da amizade de Dom Pedro I e viveu até avançada idade, morrendo em 1848 aos 93 anos. A partir de então a fazenda passa por vários donos inclusive o visconde de Mauá, pela firma Mauá & Cia. Quando da falência de Irineu, em 1878, a propriedade é transferida ao comendador Francisco José Fialho, opulento proprietário, dono de muitas terras na capital, inclusive da área que depois se tornaria o bairro de Copacabana. Morava na fazenda enquanto era visitado pelo conde D’Eu e pelo visconde de Taunay, ambos seus amigos. A magnífica capela no final da varanda lateral, como de resto o casarão, se conserva em perfeito estado como originalmente. Certamente a mais autêntica com os adornos e imagens originais, graças aos donos que teve. Em 1932 é comprada por Argemiro Hungria Machado, que realizou as obras de conservação exigidas pelo edifício bicentenário e foi seguido por seu filho, o arquiteto Paulo Hungria Machado, um abnegado preservacionista. Nos dias presentes, seus donos, filhos de Paulo e netos de Argemiro: Theodoro, Sylvia Amélia, Ana Clara e Maria Paula honram seus antecessores, atuando como um exemplo a ser imitado na utilização de seu patrimônio, valorizando-o como merece, como se fosse um bem público, e como tal,

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fator de identidade cultural da nação, desde que monumento histórico. A propriedade é mantida com total respeito ao traçado e características originais, tanto na aparência das edificações que tem como ponto alto a bela capela como no que concerne à integridade territorial, tudo a ponto de ter as atividades relacionadas com a cultura, a história e o meio ambiente na fazenda reconhecidas pela UNESCO., que outorgou à Santo Antonio o certificado de “Reserva da Biosfera da Mata Atlântica do Brasil”.

OS ALTARES – Surpreendentemente, os altares das capelas das três fazendas remanescentes e tombadas existem, como sobrevivem as imagens. A mais antiga, da Rio da Cidade e depois da Padre Correya, a belíssima imagem de Nossa Senhora do Amor Divino, hoje com 250 anos de idade, traz uma característica própria da incomum devoção: o emblema do Espírito Santo nas mãos da Virgem. Na Samambaia, a imagem era de Nossa Senhora da Assunção, e a de Nossa Senhora da Soledade na Santo Antonio, sendo certo que a fazenda se chamou engenho da Soledade quando nos anos setecentos produziu açúcar. A julgar pelos detalhes artísticos observados nas obras, tem-se que todas as peças foram manufaturadas pelo mesmo artista, que ao que tudo faz crer, foi Valentim da Fonseca e Silva, o genial Mestre Valentim, que foi para o Rio de Janeiro o que o não menos genial Aleijadinho foi para Minas Gerais. Assegura-o a autoridade de Maria Luiza Guimarães Salgado, a antes citada Maiza Salgado, estudiosa de arte, antiga funcionária do IPHAN e da quinta geração da família Correya, de cuja saga é inigualável conhecedora. Baseia-se ela no fato de que o então prior da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo no Rio de Janeiro – onde se encontra trabalho dos mais

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notáveis do Mestre Valentim – era ninguém menos que José da Cunha Barbosa (1734-1811), marido de Arcângela Correya e portanto genro do casal Correya/Brites. Nada mais natural que fruto da convivência próxima, o prior encomendasse ao artista a elaboração das capelas na serra, bem como de altares, oratórios e imagens. Em trabalho intitulado “Mestre Valentim e a Serra dos Correyas”, Maiza Salgado mostra com minúcias e fotografias comparativas, a semelhança flagrante dos acabamentos e desenhos em porta-almofadadas, frontal da mesa do altar, enfeites diversos, alto-relevos, colunas, balaústres e muito mais, das capelas dos Correyas com a Igreja do Carmo no Rio de Janeiro. E não só. Também a mesma semelhança é mostrada na comparação com o altar do Convento de Santa Tereza, um cartão-postal do Rio de Janeiro, igualmente de autoria do Mestre.

Registre-se para o conhecimento geral, que o altar da capela da fazenda do Padre Correya está na igreja de Corrêas, construída na década de 1930, transladado em fase de extrema decadência da histórica fazenda. Embora despojado de seus adornos dourados, raspado e envernizado, existe a possibilidade de ser restaurada a relíquia e, quem sabe, devolvê-la à capela da fazenda do Padre Correya, agora em perfeito estado de conservação. A imagem de Nossa Senhora do Amor Divino que se encontra neste altar é a original antes referida, ainda da fazenda Rio da Cidade. O altar desta desaparecida fazenda foi transportado pela família Correya

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para a também desaparecida fazenda Olaria, que, quando demolida, teve o altar, não a imagem, transferido para a família Alqueres, em cuja guarda se encontra. José Luiz Alqueres é interessado no estudo do café fluminense e grande divulgador das antigas fazendas, sendo um dos artífices do extraordinário “Inventario das Fazendas do Vale do Paraíba Fluminense”, uma iniciativa da Light com o Instituto Cidade Viva e o Estado através do INEPAC. Cumpre aos brasileiros conhecer melhor, divulgar, valorizar e conservar essas sedes de fazendas remanescentes, três monumentos históricos diretamente vinculados à fundação de Petrópolis, a Cidade Imperial. A atenção conferida pela nacionalidade à preservação de seu Patrimônio Cultural é referência para avaliar seu estágio de civilização. Texto apresentado em dezembro /2010. Aprovado para publicação em janeiro /2011.

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Do interior mais distante: uma história de poder e paixão

DO INTERIOR MAIS DISTANTE: UMA HISTÓRIA DE PODER E PAIXãO From the distant backlands: a History of power and passion Lena Castello Branco Ferreira de Freitas 1 Resumo: A História do Brasil tem sido escrita do ponto de vista das regiões hegemônicas do país. No livro de minha autoria, Poder e paixão: a saga dos Caiado, estuda-se a história do longínquo e isolado continente goiano, tendo como ponto de partida a história da família Caiado, ali estabelecida no século XVIII. Na obra, enfocam-se momentos marcantes da História do Brasil e de Goiás, suas correlações e intersecções. Consultaram-se arquivos públicos e privados e, nestes, acervos familiares, pessoais e iconográficos, inclusive cartas que dão voz aos “decaídos” – os políticos vencidos de 1930. O estudo estende-se até a transferência da capital federal para Brasília, em 1960, por força da Lei Emival Caiado (Lei n.3.273 de 1º.10.1957). Palavras-chave: História da Família – Família Caiado – História de Goiás.

Abstract: Brazilian history has been written from the point of view of influential regions of the country. My book, “Poder e Paixão: a saga dos Caiado”2, tells the story of the distant and isolated Goiano3 territory. The starting point is the Caiado Family, established therein during the Eighteenth century. The book focuses on significant aspects of Brazilian History and that of Goiás, their correlations and intersections. Public and private archives were researched, including family, personal, photographic materials, as well as letters that give voice to the “fallen” – politicians who were defeated in 1930. The study goes as far as the transfer of the country’s capital to Brasilia, in 1960, as per Law Emilio Caiado (Law nº 3273, Oct. 10, 1957). Keywords: Family Histories – The Caiado Family – History of Goiás.

A História do Brasil tem sido escrita do ponto de vista das regiões hegemônicas do país. Da parte dos historiadores mais conhecidos, há pouco ou nenhum interesse pelo interior distante, visto como cenário de fatos e pessoas inexpressivas, dominado pelo marasmo e pela rotina. Nas regiões centrais – à exceção de Minas Gerais, objeto de estudos mais detalhados – é conhecido unicamente o período áureo da mineração em Mato Grosso, na Bahia, em Mato Grosso e em Goiás. Como regra geral, privilegia-se a fugaz opulência das minas, pela sua contribuição à economia da metrópole e da Europa ocidental. A ocupação e a colonização do remoto sertão deixam de ser objeto de atenção, a partir da 1 – Sócia emérita do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. 2 – “Power and Passion: a saga of the Caiado Family”. 3 – Reference to the State of Goiás.

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decadência dos veios auríferos e consequente esvaziamento do interior, conquistado que foi pela cobiça dos que buscavam fortuna fácil. Em Goiás, com maior razão, manifesta-se esse desinteresse. Localizado no coração do continente, a antiga capitania e província de Goiás não oferecia o risco de fronteiras desguarnecidas, como ocorria em Mato Grosso, onde se cuidava de prevenir e deter as incursões dos espanhóis. Isolado pelas distâncias e pelas dificuldades de comunicação e transporte, Goiás restou quase esquecido do poder central. Não obstante, o continente goiano atuou como ponto de interligação na consolidação da unidade territorial brasileira, bem como de integração das rarefeitas populações interioranas à cultura ocidental de raízes ibéricas. De igual modo, no despertar da nacionalidade, essas populações aderiram à causa da independência e internalizaram incipientes noções de brasilidade. Vila Boa, ex-capital de Goiás, foi erguida em 1739, junto a minas de ouro que se revelaram pródigas. Antes do Tratado de Madri, marcou a presença portuguesa além da linha de Tordesilhas, vindo a tornar-se a capital do vastísimo sertão interior, como sede administrativa, política, religiosa e cultural. Distando mais de duzentas léguas de Salvador, do Rio de Janeiro e de São Paulo, sua área de influência estendia-se ao sul do Pará e do Maranhão, ao leste de Mato Grosso e ao oeste da Bahia. A despeito de obstáculos quase insuperáveis, as rarefeitas populações dispersas no isolado continente goiano conseguiram manter vivos os fundamentos da língua, da religião e da civilização. Momentos houve em que isso parecia impossível, ante a agressividade do meio físico e os percalços da vida na fronteira. Há relatos de viajantes que, passando por isoladas fazendas goianas, encontraram descendentes dos desbravadores que tinham esquecido a língua portuguesa e não mais sabiam rezar as orações cristãs. As carências eram tais, que em Goiás não se chegou a conhecer a ação das escolas e colégios dos jesuítas, nem se contou com a presença das santas casas de misericórdia, de tão marcante presença no império lusitano.

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Iniciando-se com a turbulência da corrida do ouro, no século XVIII, a sociedade goiana adquiriu feição agropastoril em decorrência da dispersão das populações, que se seguiu o esgotamento dos veios auríferos. Das antigas datas de terra, de meia légua em quadra, chegou-se à formação de enormes propriedades rurais, onde predominava um sistema de poder familiar fechado, dominado pelo senhor, no Império, ou pelo coronel, na Primeira República. Em um primeiro momento, as alterações introduzidas pela Revolução de 1930 mantiveram-se epidérmicas, dada a longa duração das características gerais da economia e da sociedade goianas, ainda marcadas pelo isolamento e pela pobreza. A História de Goiás é pouco conhecida fora do Estado, a despeito da existência de bons trabalhos pioneiros. Na atualidade, adquire relevo a produção acadêmica decorrente da existência de universidades locais, que oferecem cursos de História e disciplinas correlatas, em nível de graduação e pós-graduação. O livro de minha autoria Poder e paixão: a saga dos Caiado4 tem por objetivo resgatar a História de Goiás, tendo como ponto de partida a história da família Caiado, de antiga presença na política estadual e nacional. Busca-se, pela consulta a fontes inéditas e mediante a releitura de versões consagradas, dar voz aos vencidos e silenciados e iluminar zonas de sombra da história dita oficial. No desenvolvimento do tema, estudaram-se as articulações e intersecções entre a História de Goiás e a História do Brasil. Dentre outros temas, foram enfocados momentos marcantes, tais como: o papel dos “rosseiros” (agricultores) nos primeiros tempos da colonização; o engajamento dos goianos na luta pela emancipação política do país; sua participação no front ocidental de Mato Grosso, na Guerra do Paraguai; a busca de caminhos e o sonho das hidrovias; o engajamento nas ideias liberais e na formação de uma imprensa nacional; as campanhas abolicionista e republicana; a sequência de revoluções e sedições na Primeira República; 4 – FREITAS, Lena Castello Branco Ferreira de. Poder e paixão: a saga dos Caiado. Goiânia: Cânone Ed., 2009. 2v. 1.140 p.

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o enfrentamento entre a Coluna Prestes e a Coluna Caiado; a atuação de tropas goianas combatendo a Revolução Constitucionalista na fronteira mato-grossense; a mudança da capital federal e a contribuição dos goianos à sua efetivação. Arquivos públicos e privados foram pesquisados em Goiás, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Foi possível trabalhar com o rico acervo da família Caiado, disperso em muitas mãos, sobretudo mãos femininas. Trata-se de um corpus documental significativo, com destaque para o estudo da Velha República e os anos iniciais da década de 1930. Parte do acervo diz respeito ao coronelismo e pertenceu ao arquivo do Partido Democrata, que dominou a política regional entre 1912 e 1930. Outra parte compreende anotações e cartas pessoais e familiares, sendo particularmente expressivas as que foram escritas nos anos subsequentes a 1930, constituindo-se em vívidos depoimentos sobre os políticos “decaídos”, ou seja, depostos pela Revolução. A documentação iconográfica é igualmente relevante. Na seleção das personagens que formam o fio condutor da narrativa, privilegiaram-se os perfis emblemáticos de homens e mulheres que, exemplificando a atuação e os valores da família Caiado, mostram-se representativos do contexto histórico em que viveram e atuaram: 1. Manoel Cayado de Souza, o primeiro da família a estabelecer-se em Goiás, era português de Caria, povoado do concelho de Belmonte, distrito de Castello Branco. Filho de Manoel Dias e Maria Cayada, obteve a concessão de uma sesmaria nas Matas da Paciência, em Vila Boa de Goiás, cujo registro data de 1770. Seus antepassados, por linha paterna, são da Beira Alta, em Portugal; por linha materna, os Cayado (Caiado) provêm dos Gamboa, de antiga nobreza espanhola originária de Guipúzcoa, no País Basco. Por motivos políticos emigraram para Portugal, onde se estabeleceram em Lisboa. Fixando-se em Goiás, Manoel Cayado de Sousa não se deixa seduzir pela miragem do ouro, preferindo dedicar-se à agricultura. Casa-se com a filha do sesmeiro vizinho; estabelece-se na Fazenda Europa, cuja

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casa-sede data de 1776 e ainda está de pé. A vida que levam é trabalhosa e árdua; documentos relativos à cobrança de dízimos indicam ser ínfima a produção da fazenda e modestos seus rendimentos. Dos filhos – Antônio e José Cayado de Souza – pouco se sabe. Continuaram a cultivar a terra, inclusive em propriedades de terceiros. 2. Antônio José Cayado foi o neto mais velho do casal pioneiro. Na juventude, tentou a carreira militar como praça de pré, mas logo voltou à vida civil. Exerceu atividades de tropeiro e de fazendeiro, com engenhos de cana e de farinha; tornou-se empreiteiro de obras e abriu estradas em direção ao norte goiano. Economicamente bem-sucedido, é o primeiro da família a ingressar na política, na década de 1860, quando se associa à ascendente oligarquia dos Bulhões, chefiada por José Leopoldo de Bulhões Jardim, deputado, senador e duas vezes ministro da Fazenda. Reconhecendo faltar-lhe “educação literária”, Antônio José Caiado lidera o braço agrário do Clube Liberal em Goiás. Durante a Guerra do Paraguai, é nomeado tenente-coronel da Guarda Nacional e comandante do regimento da capital. Como seus companheiros de política, adere ao federalismo e defende a representação autóctone das províncias no parlamento. Na República, sendo vice-presidente e exercendo a presidência do Estado, cabe-lhe dar as boas-vindas à Missão Cruls, que irá proceder aos estudos necessários para a escolha do local da futura capital da República, no Planalto Central. Eleito senador, vem a falecer no exercício do mandato. 3. Torquato Ramos Caiado é o filho primogênito de Antônio José Caiado e Tereza Maria da Conceição de Barros Caiado. Como outros goianos de famílias preeminentes, vai estudar em São Paulo, onde se matricula no Curso Anexo, com vistas a ingressar na Academia de Direito. Frequenta rodas boêmias e literárias, sendo contemporâneo de Joaquim Nabuco e de Castro Alves, dos quais se aproxima.

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Ingressa na Academia de Direito de São Paulo, mas não conclui o curso jurídico. Casa-se com Claudina Fagundes de Azevedo, descendente de fundadores de São Paulo, cuja linhagem remonta a Maria da Grã, nome cristão de Terebê, filha do cacique Tibiriçá. Retornando a Goiás, engaja-se Torquato na campanha abolicionista, ao lado do Amigo e poeta Antônio Félix de Bulhões, o Castro Alves goiano. Fazendeiro e funcionário público, ingressa na política elegendo-se sucessivamente deputado à Assembleia Legislativa e senador estadual. 4. Antônio Ramos Caiado, filho de Torquato Caiado e Claudina Fagundes de Azevedo Caiado, faz o curso de Humanidades no Liceu de Goiás e vai estudar em São Paulo. Concluídos os preparatórios, matricula-se nos cursos de Ciências Jurídicas e de Ciências Sociais da Faculdade de Direito. Com a deflagração da Revolta da Armada, ingressa no Batalhão Acadêmico e segue para a capital federal, onde luta na defesa da República. Em reconhecimento de atos de bravura, recebe as patentes de alferes e de tenente honorário do Exército. Destaca-se pela beleza física e pelo carisma pessoal. No Rio de Janeiro, conhece Iracema Pimentel de Carvalho, jovem da alta sociedade carioca, educada na Itália. Apaixonam-se e casam-se em elegante cerimônia celebrada na residência dos pais da noiva, em Santa Tereza, com a presença de familiares e convidados ilustres. Irão residir na cidade de Goiás: a viagem dura dois meses, de trem, a cavalo e em banguê. Chegando à capital goiana, a bela história de amor converte-se em tragédia. Totó deixa-se absorver pelas atividades de fazendeiro e de político; Iracema vive praticamente sozinha. À paixão, seguem-se a estranheza e a desilusão. Depois de sucessivas gestações e da perda de dois filhos recém-nascidos, ela adoece gravemente. No Rio de Janeiro, para onde veio em busca de melhores recursos médicos, Iracema morre aos 29 anos de idade, deixando três filhas pequenas. Totó Caiado casou-se em segundas núpcias com Maria Adalgisa de Amorim (Mariquita), com quem teve numerosos filhos. Elege-se deputa-

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do federal em 1909, mas o clima político em Goiás é de agitação. Irrompe uma revolta local liderada por Eugênio Jardim, Leopoldo de Bulhões e Totó Caiado, com vistas à deposição do governo estadual. Forma-se a Legião Rubra, com a participação de chefes políticos locais e de voluntários provenientes de todos os pontos do Estado. A exemplo do que acontece em Mato Grosso, Rio Grande do Sul, São Paulo e Ceará é pedida a intervenção federal em Goiás. A morte do presidente Afonso Pena e a desimportância do estado conspiram para que não seja molestado o governo que fora instalado pelos rebeldes, que assim se consolidam no poder. O Partido Democrata, fundado em Goiás após a Revolução de 1909, organiza-se em diretórios disseminados pelos principais municípios. Na Comissão Executiva, presidida por Eugênio Jardim, estão representados os grupos familiares que o integram e que se enredam através de laços de parentesco, de compadrio e de interesses. As oligarquias locais são formadas de familiares e de correligionários; no plano federal, mantêm proximidade com Pinheiro Machado – que chegou a visitar Goiás – e com os grupos palacianos de Hermes da Fonseca e Epitácio Pessoa. A chamada oligarquia dos Bulhões, de origem urbana, rompe com o grupo ascendente dos Caiado, predominantemente voltado para as atividades agropastoris. Neste, sobressaem os irmãos Antônio (Totó), Brasil, Leão e Arnulpho; quatro irmãs casam-se com quatro irmãos da família Alves de Castro – a exceção é Diva, que desposa Eugênio Jardim, dirigente máximo do partido. A oposição que se forma ao grupo dominante provém de idêntico estrato social: são ex-correligionários ressentidos, que tiveram interesses contrariados, como aconteceu com os Wolney, no norte do Estado, e os Borges/Ludovico, no sudoeste.

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Ressalte-se o papel da imprensa livre na Primeira República, assim como a importância dos jornais em Goiás, Estado de tão poucos leitores. Poder-se-á cogitar de certo poder mágico atribuído à palavra escrita, até mesmo por aqueles que não conseguem decifrá-las. As campanhas políticas são apaixonadas e devastadoras, desenrolando-se através de periódicos: O Democrata é órgão da situação; o periódico oposicionista, Voz do Povo, pela linguagem vitriólica, torna-se conhecido como “soda cáustica”. Alguns jornalistas goianos publicam violentos ataques aos políticos governistas do seu Estado nos periódicos do Rio de Janeiro. Tais matérias jornalísticas são reproduzidas em Goiás com foros de credibilidade; forma-se, assim, o mito da maldade absoluta, personificado no deputado, depois senador Antônio Ramos Caiado (Totó), que seria o protótipo do político atrasado e violento. Esse perfil demonizado é colado na família Caiado e no próprio imaginário do coronel interiorano: todos seriam ignorantes, sádicos e desonestos. A sociedade goiana é majoritariamente rude e iletrada, nela predominando os valores do autoritarismo, do machismo e da coragem pessoal, traços identificáveis na personalidade de Totó Caiado e de muitos dos seus correligionários – sem os exageros com que a paixão política as deturpou. Na década de 1920, intensificam-se as revoltas e sedições, a par da exacerbação das paixões políticas: na turbulência das idas e vindas da Coluna Prestes; nos trágicos enfrentamentos em São José do Duro; na violência abortada na Serra do Cafezal; na frustrada tentativa de invasão no sudoeste do Estado – que, em 1930, defende-se dos revoltosos com os Camisas Vermelhas, voluntários recrutados pelo senador Totó Caiado, executor do estado de sítio por designação do presidente Washington Luiz.

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Com efeito: Goiás é o último a depor armas frente à Revolução – e só o faz quando Carlos Pinheiro Chagas, comandando a Coluna Mineira, chega à capital goiana e recebe o governo das autoridades vencidas. A oposição local colhe os louros: depois de integrar uma breve Junta Governativa, o médico e ex-preso político Pedro Ludovico é nomeado interventor federal. Os momentos iniciais do ciclo histórico que se inicia são relatados de forma contrastante pelos vitoriosos e pelos derrotados, conforme analisado no livro. Com alguns dos seus familiares, o ex-senador Antônio Ramos Caiado (Totó Caiado) é levado para a capital federal, onde permanece preso sob palavra, tendo por menagem a cidade do Rio de Janeiro. Em Goiás, como nas demais capitais brasileiras, instala-se a Comissão de Sindicância que tem por objetivo receber denúncias de crimes e arbitrariedades cometidas pelos integrantes da “situação decaída”. No Arquivo Nacional, localizaram-se 26 processos originários da Comissão de Sindicância de Goiás; no Fórum da cidade de Goiás, mais três processos-crime versam sobre temas correlatos. Encontrou-se um único processo contra Totó Caiado e irmãos: é de tal forma inconsistente, que vai sumariamente arquivado a mandado da autoridade competente. Neste como nos demais, inexistem denúncias de violência, de sadismo, ou de quaisquer crimes hediondos; as acusações registradas são consideradas irrelevantes e não resultam em penalização dos denunciados. Os processos de conteúdo mais significativo dizem respeito a crimes eleitorais que, sendo amplamente generalizados em todo o País, são objeto de anistia geral em 1931. 5. Consuelo Caiado é a filha mais velha de Antônio Ramos Caiado (Toró) e de Iracema de Carvalho Caiado. Farmacêutica e líder cultural, preside o Gabinete Literário Goiano e é figura de proa no universo feminino de Goiás, cujas peculiaridades incluem o amor às artes, em especial o cultivo da literatura e da música.

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A convite da feminista Bertha Lutz, Consuelo Caiado funda a Federação Goiana para o Progresso Feminino. Enquanto o pai permanece detido no Rio de Janeiro, cuida dos interesses familiares e mantém-no informado dos acontecimentos políticos e sociais em Goiás. Alguns documentos do acervo de Consuelo Caiado são particularmente expressivos: cartas recebidas de Leonor Borba, ex-colega de faculdade, que escreve de Formosa da Imperatriz; refletem as ideias de uma jovem que, depois de concluir o curso superior na capital, retorna à sua pequena cidade interiorana, onde predominam a rotina e a mesmice de uma vida sem horizontes; cartas de Consuelo ao pai, detido no Rio de Janeiro; versando sobre o cotidiano da família e da cidade de Goiás, referidas cartas dão voz aos “decaídos” da política, silenciados e perseguidos nos anos pós- revolução de 1930. Trabalhar com acervos pessoais e familiares requer postura metodológica diferenciada e suscita questões éticas que exigem sensibilidade e discernimento. Como “fontes de enfeitiçamento” que são, documentos dessa natureza, por sua autenticidade e fidedignidade, permitem aclarar zonas de sombra da narrativa histórica tradicional. Outros conjuntos de documentos privados foram explorados: cartas de Mariquita ao esposo, Totó Caiado, nas quais ressalta o perfil da esposa e mãe de numerosos filhos, mulher cuja religiosidade e serenidade faz contraponto ao autoritarismo do marido; cartas de Totó Caiado aos filhos; duas delas são especialmente significativas: uma, dirigida ao filho Edenval, ainda criança, expressa os valores que norteiam as ideias e ações do signatário; outra, endereçada ao filho Emival, candidato a deputado, versa sobre segurança pessoal no ambiente tumultuado da política estadual.

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6. Emival Ramos Caiado, filho de Totó Caiado e Maria Adalgisa de Amorim Caiado (Mariquita), tem 12 anos em 1930, quando seus familiares são destituídos do poder em Goiás. É o início de longo período de ostracismo, agravado com a demonização da família Caiado na versão dos vencedores, disseminada pelos órgãos de propaganda do governo. No período de exceção que se prolonga durante quinze anos, com breve interregno constitucional, não há como exercitar o direito de defesa; as assembleias estaduais e o Congresso Nacional não funcionam; os partidos políticos foram extintos e a imprensa é censurada. A tais percalços, somam-se as dificuldades financeiras que afetam o exercício de profissões liberais por opositores do regime: para os Caiado, a alternativa de sobrevivência são as atividades agropastoris. Depois do forçado interregno rural, a nova geração prepara-se para dar continuidade à presença da família na política. Enquanto estuda na Faculdade de Direito de Niterói, Emival mora no Rio de Janeiro, onde é descoberto por caçadores de talentos para o nascente cinema brasileiro. Participa como galã do filme “Pureza”, da Cinédia, dirigido por Chianca de Garcia – mas não dá prosseguimento à promissora carreira artística. Retorna a Goiás e ingressa na política, elegendo-se sucessivamente deputado estadual, deputado federal e senador. Em sua longa e bem-sucedida atuação parlamentar, teve participação decisiva na luta em prol da mudança da capital federal para o Planalto Central. Emival Caiado gravou longo depoimento, versando sobre suas reminiscências da infância e da juventude, bem como sobre a política em Goiás, depois da redemocratização (1946); escreveu, outrossim, a primeira parte de suas memórias, as quais intitulou “Do laço ao Senado”. De forma precisa e minuciosa, detalhou as fases da luta parlamentar que resultou na aprovação das leis necessárias para que se efetivasse a construção de Brasília e a instalação do governo na nova capital da República. Como deputado federal eleito pela oposição – filiado que era à UDN (União Democrática Nacional) de Goiás – sua atuação fez-se sentir em

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todos os momentos dessa batalha, ou seja, da discussão e elaboração do substitutivo ao projeto Santiago Dantas à fixação da data de inauguração de Brasília, através da Lei Emival Caiado, de sua autoria ( Lei n. 3.273 de 1º.10.1957). Capítulo à parte diz respeito às resistências à mudança da capital, encontradas em seu próprio partido, afinal vencidas, graças à persistência e habilidade da suprapartidária “bancada mudancista”, reunida na Frente Parlamentar Mudancista, da qual Emival Caiado foi presidente. O livro tem início e conclui-se com a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960, quando começam a expandir-se as novas fronteiras, mediante a efetiva ocupação do vasto continente interior do País. Novos caminhos revelam novos espaços a desbravar e integrar. Em Goiás, finalmente, rompe-se o secular isolamento que manteve o Estado distanciado dos centros de decisão nacional. No trabalho desenvolvido ao longo de dez anos, confrontam-se emblematicamente o tempo quase parado da velha capital de Goiás e a trepidação da moderna Brasília, a capital da esperança. Com vistas ao interior mais distante, espera-se que o estudo ora concluído contribua para o melhor conhecimento da história regional inserida na História do Brasil. Texto apresentado em dezembro /2010. Aprovado para publicação em janeiro /2011.

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Veredas de Brasília – O papel do IBGE Brasilia Pathways – The Role of IBGE1 Nelson de Castro Senra 2 Resumo: JK não começa Brasília do zero. Muita coisa foi feita antes, sob pena de não lhe ter sido possível construí-la em quatro anos. Entre as muitas realizações anteriores, várias tiveram a chancela do IBGE, com realce às expedições geográficas demarcadoras em 1947-1948. Mas não só, o IBGE esteve presente também no que seguiu no tempo, com a oportuna e competente atuação de vários de seus melhores técnicos. E mais ainda, com realce, a inolvidável catequese mudancista do fundador do IBGE, Mário Augusto Teixeira de Freitas. Pois, para recuperar essa história, o IBGE houve por bem editar o livro Veredas de Brasília. As expedições geográficas em busca de um sonho, aqui relatado e divulgado.

Palavras-chave: Juscelino Kubitschek (JK) – Brasília – Ações prévias – Expedições Geográficas – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Teixeira de Freitas.

Abstract: Former President Juscelino Kubitschek (JK) did not create Brasilia from scratch. A lot had been done before, otherwise he would not have been able to build it in a period of four years. Among many of the previous achievements, some were undertaken by IBGE, in particular, the geographic demarcation expeditions in 1947-1948. In addition, IBGE was also present further along through its experts’ timely and competent performance. Furthermore, a special mention should be made to IBGE’s founder, Mario Augusto Teixeira de Freitas, for his unforgettable campaign towards the move to Brasilia, as the country’s new Capital. In order to recover this history, IBGE has decided to publish the book, “Veredas de Brasilia: As expedições geográficas em busca de um sonho”3, reported and revealed in this article. Keywords: Juscelino Kubitschek (JK) – Brasília – Previous actions – Geographic Explorations – Brazilian Institute of Geography and Statistics – Teixeira de Freitas.

Brasília não começa com Juscelino Kubitschek. Antes dele, muitos e muitos a quiseram e lutaram para torná-la uma realidade. A ideia de mudar a capital para o interior remonta ao período colonial, passando pelo Império e seguindo pela Primeira República. No início, duas foram as razões básicas da mudança: primeira, a defesa contra ataques externos, pois estar no litoral a tornava vulnerável; segunda, a ocupação do interior, como forma de melhor distribuir a população, e de aumentar a produção, garantindo, dessa forma, a integridade territorial. Em suma, eram duas razões estratégicas. Com o passar do tempo, estar no litoral deixou de ser problema, e a razão central tornou-se a ocupação do 1 – Brazilian Institute of Geography and Statistics 2 – Pesquisador e Professor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 3 – “Brasilia Pathways: Geographic Expeditions in Search of a Dream.”

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interior, de modo a promover-lhe transformações modernizadoras, o que, de fato, ocorreu, sem dúvida alguma. JK a teve como meta-síntese do seu ousado Plano de Metas, em que o Brasil deveria avançar 50 anos em cinco. Ele tomaria a peito a mudança já em 1956, tão logo toma posse, e a conclui em cinco anos (na verdade, quatro e meio anos). Foi ousado, foi corajoso, foi incansável, e isso é meritório, a merecer indiscutível reconhecimento. Mas não partiria do nada, do zero, ou seja, bom caminho já estava andado. Claro, fazer uma cidade em tão pouco tempo jamais teria sido possível se muita coisa não já estivesse concluída, a começar da escolha do local em que a capital deveria ser construída. Esta decisão teria que contar com estudos técnicos, não podendo e nem devendo ser uma decisão política, coisa do tipo, põe-se aqui, põe-se ali. Sem respaldo técnico haveria um sem-número de posições sugeridas, atendendo a diferentes interesses. E bem se sabe, para serem sérios, tendo respaldo em técnicas e técnicos de ponta, esses estudos sempre tomam tempo, muito tempo. E, feita a escolha do local, se a área não já estivesse declarada de interesse público, haveria inevitável especulação, tornando elevado o preço da terra, talvez mesmo proibitivo, bem assim, se não já houvesse planejamento da infraestrutura devidamente encaminhada, ao menos esboçada, não haveria como começar a construção. Pois, a tudo isso, JK recebe pronto e decidido. Então, não reste dúvida, JK encontrou um bom caminho já andado por outros, e todos eles merecem glórias e honras. Entre muitos, vários foram do IBGE, e isso poucos sabem. Aliás, para além de ter tido vários de seus técnicos envolvidos nos trabalhos técnicos que antecederam a construção, a própria instituição, ela mesma, por sua alta direção empenhou-se pela mudança, a começar dos esforços de Mário Augusto Teixeira de Freitas, o inolvidável idealizador do IBGE. Por sua pena, lutou pela mudança da capital, e tanto a queria no interior que, ao achar que se levaria muito tempo para fazê-la no Planalto Central, como os estudos técnicos sugeriam, propôs uma mudança provisória, e indicou Belo Horizonte como a cidade

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ideal para ser a nova capital do Brasil. E há dele, um novo mapa do Brasil, com novas divisões políticas (sob cuidadosa e pertinente argumentação), onde esta capital provisória está apresentada. E foi para contar essa história, hoje esquecida injustamente, realçando sua presença na história da capital, que o IBGE idealizou e elaborou o livro Veredas de Brasília. As expedições geográficas em busca de um sonho, lançado em 19 de abril último, e já disponível em várias livrarias e na loja virtual em seu portal www.ibge.gov.br. Obra ricamente ilustrada (com 160 imagens) e belamente encadernada, com projeto editorial primoroso, contém textos de consagrados pesquisadores, de vários centros de pesquisa. Uma obra, enfim, que não pode faltar aos estudiosos, e também aos curiosos, interessados na verdadeira história do Brasil, da qual o IBGE é parte proeminente. A história mais antiga Após a Independência, já na Constituinte, José Bonifácio recuperou e reciclou ideia antiga, do tempo colonial, e propôs a mudança da capital para o interior. Atribui-se a ele o nome Brasília, mas é possível que já antes se o falasse; houve ainda os nomes de Pedrália, Petrópole, Petrópolis. Contudo, não obstante os debates havidos, a primeira constituição brasileira não trataria do assunto. Ainda no Império valerá realçar a figura do historiador Francisco Adolpho de Varnhagem, o Visconde de Porto Seguro, com seu livrete A questão da capital: marítima ou no interior?, onde defende a mudança da capital ao interior, seja por comparações internacionais, analisando a localização de outras capitais, seja por sua própria vivência de viajando ao interior, no vasto sertão à época bastante desconhecido; uma viagem em condições difíceis, bem aos moldes dos viajantes dos séculos anteriores. Adiante, na primeira constituição republicana, a ideia da mudança torna-se um preceito constitucional. E em nome deste preceito constitui-se uma comissão para delimitar no Planalto Central a melhor posição

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para se edificar a nova capital. Sua chefia seria atribuída ao astrônomo Luiz Cruls. Sempre estudada, com seus relatos sempre reeditados, essa comissão ganha continuidade histórica ímpar. Tão visível se mantém, que acaba por ofuscar os trabalhos realizados por comissões que se lhe seguiram, e mesmo atualizaram suas proposições. Não haja dúvidas dos méritos dessa primeira comissão, ao retomar as práticas das expedições tradicionais, mas fazendo-o amparado nas ciências, e em sofisticados instrumentos, sem olvidar os homens que a integraram, autênticos cientistas. Por ela o Brasil se viu bem e foi mais bem visto, inclusive no exterior. O perímetro selecionado, o conhecido “Quadrilátero Cruls”, permeou as próximas comissões, e, de certa forma, moldou pensares futuros, estabelecendo memória coletiva. Mas as novas comissões, com suas expedições também contam, e merecem os holofotes da história. Mais que isso, a Primeira República pouco realizou em prol da mudança da capital. Restando, no contexto da comemoração do centenário da Independência, em 7 de setembro de 1922, por ordem do Presidente Epitácio Pessoa, a colocação de uma placa (num obelisco) onde seria a futura capital da República. A constituição seguinte, de 1934, manteria o preceito da mudança, mas não a constituição de 1937, só voltando na constituição de 1946. A história mais recente Ao tempo da redemocratização, a constituição de 1946 recuperaria o preceito da mudança, dando ensejo a uma série de novas ações oficiais, num evidente continuum com a comissão Cruls, cujos relatórios serão lidos atentamente. Em 1947-1948, o governo do general Eurico Gaspar Dutra constitui a comissão dirigida pelo general Djalma Polli Coelho (do Serviço Geográfico do Exército), em cujo contexto serão realizadas duas expedições geográficas, ambas emanadas do Conselho Nacional de Geografia (então

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um dos três órgãos máximos da estrutura do IBGE, a par com o Conselho Nacional de Estatística e do Serviço Nacional de Recenseamento). Elas trouxeram novidades científicas, e a mais marcante, sem dúvida alguma, foi o olhar dos geógrafos, os observadores por excelência do território, dos vastos espaços. Eles viam, refletiam, e moldavam conceitos, para, depois, em livros, moldarem gerações e gerações. Pois, as referidas expedições contaram com geógrafos de nomeada (alguns, ainda avantla-lettre), nacionais e internacionais; sim, à época, vários geógrafos estrangeiros prestavam consultoria ao referido Conselho, trazendo-lhe suas sapiências. Infelizmente os relatórios dessas expedições nunca foram editados, a menos de textos deles derivados publicados em vários números da Revista Brasileira de Geografia, também do IBGE. Nem os relatórios da comissão, como um todo, foram objeto de publicação formalizada, com ampla circulação (apenas partes saíram como anexos de Resolução do Conselho Nacional de Estatística (um dos órgãos máximos do IBGE, como visto antes), sob inspiração de Teixeira de Freitas. A primeira expedição foi chefiada pelo geógrafo francês Francis Ruellan, e a segunda pelo geógrafo Fábio de Macedo Soares Guimarães, sob orientação científica do geógrafo teuto-americano Leo Waibel. Inúmeros notáveis da geografia, já àquele tempo, e mais ainda depois, participaram das expedições. A promoção dessas expedições e sua organização são devidas ao engenheiro-cartógrafo Christóvam Leite de Castro, secretário-geral do Conselho Nacional de Geografia. Em 1948, com base nos resultados dessa comissão chefiada por Polli Coelho, ainda no governo Dutra, mensagem presidencial ao Congresso Nacional propõe um local para a futura capital do Brasil. Debates havidos, forças políticas equilibradas, em 1953 surge uma área em caráter oficial, o chamado “Quadrilátero do Congresso”, uma enorme área de 52 mil km². Era preciso estudá-la em minúcia.

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Adiante, já sendo presidente Getúlio Vargas, uma terceira comissão é constituída. Para presidi-la seria nomeado o general (futuro Marechal) Aguinaldo Caiado de Castro, que toma uma decisão importante: a contratação de serviços técnicos de aerofotogrametria do “Quadrilátero do Congresso”, de modo a nele definir-se com precisão o sítio mais próprio a se construir a Capital. Desta forma, métodos indiretos de observação do território, mais sofisticados, são trazidos aos debates, e às decisões. Agora, os engenheiros serão predominantes; mas também haverá a presença de geógrafos importantes, todos do IBGE, com realce a Fábio de Macedo Soares Guimarães, de novo, e a Allyrio Hugueney de Mattos. Feitas as fotos, por uma empresa nacional, a empresa norte-americana “Donald J. Belcher and Associates” será contratada para analisá-las, ao fim e ao cabo, sugerindo cinco sítios como adequados, dois quais, o Azul e o Castanho já haviam sido sugeridos pela expedição dirigida por Francis Ruellan, a serviço do IBGE, em 1947. Entrementes, o governo Vargas tem o conhecido desfecho trágico, e Café Filho nomeia o marechal José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque como novo dirigente daquela comissão (Caiado de Castro declina o convite para continuar presidindo-a). E será ele que receberá os estudos feitos pela empresa norte-americana. E será sob seu comando que os membros da comissão escolhem o Sítio Castanho como o mais apropriado para construção da nova capital. O marechal sugere o nome de Vera Cruz para a nova capital, que não vingará, ficando mesmo Brasília. O novo Distrito Federal teria uma área de 5.800 km², e o Plano Piloto (de Lúcio Costa) estaria nele definido. O resultado é entregue ao presidente da República que nada decide, ou seja, Café Filho não se empenharia pela mudança. O marechal José Pessoa, então, acorda com Pedro Ludovico, à época governador de Goiás, a declaração de utilidade pública daquela área, o que evita especulação imobiliária (depois a União ressarciria Goiás, passando a detentora da área). Em seguida, já com o senador Nereu Ramos no exercício da presidência da República, a comissão presidida pelo marechal José Pessoa é tornada a “Comissão de Planejamento da Construção e Transferência da

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Capital”, e segue sob seu comando até maio de 1956. Afora ter obtido a decisão política da declaração de utilidade pública para a área, a nova Comissão inicia os estudos de zoneamento e de infraestrutura, e a alguns começa a executar. O Marechal se desentende com JK, que queria iniciar e concluir a construção em seu termo de governo, como de fato fez, ao passo que o Marechal defendia uma construção mais lenta, menos onerosa. Ele se demite, e é substituído pelo seu segundo em comando, o também militar Ernesto Silva. Logo aquela Comissão será extinta dando lugar à “Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil” (a famosa Novacap), com homens notáveis, e sob o comando do mineiro Israel Pinheiro (futuro prefeito de Brasília e, adinate, futuro governador de Minas Gerais). Em suma, visto tudo isso, o livro mostra, à grande, que Brasília não começa com Juscelino Kubitschek. Tem início muito antes, seja na ideia, seja nas bases políticas e técnicas lançadas cuidadosamente, ao longo do tempo, em especial nos últimos tempos, logo antes do início do seu governo. Então, nessa história, não se lhe negue o mérito, mas não se dê apenas a ele o mérito. Que se dividam as honrarias: a ele, sim, mas também a Luiz Cruls, a Polli Coelho, e aos geógrafos Christovam Leite de Castro, Fábio de Macedo Soares Guimarães, Francis Ruellan, Leo Waibel, e muitos outros, sem olvidar o grande pensador do Brasil, Mário Augusto Teixeira de Freitas, criador do IBGE, a Caiado de Castro e a José Pessoa. Todos eles têm seu quinhão de glória. O IBGE, enfim, esteve presente desde a comissão chefiada por Polli Coelho, tendo papel de realce na definição da melhor área para a nova capital. E, já ao tempo da construção, seguiu presente, primeiro, fazendo o primeiro mapa oficial do Distrito Federal, nele estando realçado o Plano Piloto, e, segundo, fazendo um censo em 1960, pelo qual desvelou a população candanga e sua habitação, origem das futuras cidades satélites. E mais ainda, desde o início da capital, já inaugurada, vem fazendo estudos da fauna e da flora do bioma Cerrado, que até hoje realiza na Reserva Ecológica do Roncador.

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Enfim, o livro Com esse livro, passou-se a história a limpo, revelando, uma vez mais, a ampla atuação do IBGE, distintamente presente na história do Brasil, para além das estatísticas que elabora com tanta precisão e qualidade. Ele apresenta, na primeira parte, estudos de Nísia Trindade Lima, da Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (Brasília: a capital no sertão), de Moema de Rezende Vergara, do Museu de Astronomia e Ciências Afins (A Comissão Cruls e o projeto de mudança da capital federal na Primeira República), de Sergio Nunes Pereira, da Universidade Federal Fluminense (na boca do sertão ou integrada ao ecúmero? Militares, estatísticos e geógrafos e a localização da nova capital), de Luiz Henrique Castiglione, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasília, codinome Vera Cruz: a Comissão engenheira que fundou as bases da construção da nova Capital). E, na segunda parte, apresenta os estudos de Luiz Antonio Pinto de Oliveira (em 1959, o censo experimental na alvorada de Brasília), e de Mauro Lamberth Ribeiro (Geografia de esperança: a reserva ecológica do IBGE e a nova capital), ambos técnicos do IBGE, ainda em atividade intelectual intensa em suas funções. Além disso, apresenta valiosos testemunhos: de Cybelle de Ipanema, de Pedro Geiger, de Walker Roberto de Moura, e de Alain Ruellan (este, filho de Francis Ruellan). E mais os perfis dos principais envolvidos (Luiz Cruls, Djalma Polli Coelho, Francis Ruellan, Fábio de Macedo Soares Guimarães, Leo Waibel, Aguinaldo Caiado de Castro, e José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque), todos feitos por Marco Santos (técnico do IBGE, também em atividade). Em anexo, mas não por menos importância, como fecho do livro, há vários textos de Mário Augusto Teixeira de Freitas em sua cruzada pela mudança da capital, num primeiro tempo para Belo Horizonte, até que se pudesse construir uma cidade no Planalto Central (vale notar que o novo mapa do Brasil, com Belo Horizonte marcado como capital federal, está entre as demais ilustrações do livro; e vale

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notar ainda que na capa do livro utilizou-se o primeiro mapa da capital, feito no IBGE).

Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação em outubro /2010.

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III – documentos documents

UM MANUSCRITO INÉDITO DO NATURALISTA JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA: A MEMÓRIA SOBRE O MELHORAMENTO DOS PAUIS PARA A SUA CULTURA. S/d., S/l. An unpublished manuscript by naturalist Jose Bonifacio de Andrade e Silva: “Registry of the Improvement of the Swamp Areas and its Cultural Effects” Alex Gonçalves Varela1 Resumo: José Bonifácio de Andrada e Silva ficou conhecido na historiografia em função da sua atuação na vida política brasileira. Contudo, ele foi um renomado naturalista e ocupou diversos cargos importantes no Império Português. Um deles foi a função de Superintendente do Rio Mondego, e Obras Públicas da Cidade de Coimbra, espaço de produção de conhecimento, no qual elaborou diversos estudos que permaneceram inéditos até os dias de hoje. Um deles foi a MEMÓRIA SOBRE O MELHORAMENTO DOS PAUIS PARA A SUA CULTURA. S/d., S/l., que se encontra em meio aos seus manuscritos na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e que por agora resolvemos publicar dada a importância do mesmo para a História das Ciências luso-brasileiras.

Abstract: Jose Bonifacio de Andrada e Silva became known in Brazilian History for his role in the political scene. However, he also was a renowned naturalist and held numerous important positions in the Portuguese Imperial Government, such as Superintendent of the Mondego River and Public Works of the City of Coimbra. In this locus of intellectual production several studies were undertaken and remained unpublished to this day. Among these, the Registry of the Improvement of the Swamp Areas and its Cultural Effects, s/d, s/l, which can be found among his other manuscripts at the Rio de Janeiro National Library. The decision to publish it was taken recently, given its importance for the History of Luso-Brazilian Science.

Palavras-chave: José Bonifácio; Portugal; Rio Mondego.

Keywords: Jose Bonifácio; Portugal; Mondego River.

I – APRESENTAÇÃO DO MANUSCRITO A presença do ilustrado José Bonifácio de Andrada e Silva na bibliografia especializada se dá em função do seu perfil de político, evi1 – Bolsista de Pós-Doutorado Júnior no Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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denciando a sua atuação como ministro e parlamentar. Tais análises dão relevância à atuação do personagem no período da Independência e quando atuou como deputado na Assembleia Nacional Constituinte de 1823, deixando de incorporar sua dimensão de naturalista. José Bonifácio notabilizou-se não apenas como homem público, mas também como estudioso e pesquisador do mundo natural. Ele participou de viagens científicas, foi sócio de inúmeras sociedades científicas europeias, publicou diversas memórias no âmbito da História Natural e administrou espaços governamentais portugueses ligados diretamente à mineração e à agricultura. Desse modo, em que pese a densidade da bibliografia a seu respeito, há lacunas que estimulam o caminho da reflexão em novas direções. Ao deslocar o foco de análise sobre a trajetória de vida de José Bonifácio do político para o estudioso das ciências naturais, localizamos, em diversas bibliotecas e instituições arquivísticas, inúmeros manuscritos do naturalista que permaneceram inéditos até os dias de hoje e passamos a transcrevê-los e publicá-los.2 Dentre esses, podemos mencionar a Memória sobre o melhoramento dos pauis para a sua cultura, s/d., s/l., localizado na Seção de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Coleção José Bonifácio. Propomos, então, fazer uma apresentação do manuscrito e publicá-lo. José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu em Santos, em 1763. Era filho de dona Maria Bárbara da Silva e Bonifácio José de Andrada. O pai era alto funcionário da Coroa, embora também tivesse outras atividades, como o comércio, e possuía a segunda maior fortuna de Santos. Tinha outros irmãos, dentre os quais se destacaram Martim Francisco e Antônio Carlos. Ele ingressou na Universidade de Coimbra no ano de 1780, nos cursos de Direito Canônico e Filosofia Natural, juntando-se às elites cultas 2 – VARELA, Alex Gonçalves et alii. Os minerais são fontes de conhecimento e de riquezas: as memórias mineralógicas produzidas por José Bonifácio de Andrada e Silva. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, vol. 9, pp. 405-426, 2002.

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da metrópole que ali estudavam.3 Após receber o grau de bacharel, José Bonifácio conseguiu entrar para a Academia Real das Ciências, sendo logo agraciado com uma pensão real para participar de uma “viagem filosófica” por diversos países da Europa Central e Setentrional com o intuito de obter os modernos conhecimentos mineralógicos. Essa viagem complementou a formação recebida em Coimbra e especializou as atividades profissionais do jovem, que se tornaria, como ele próprio afirmava, um “metalurgista de profissão”. Ao regressar a Portugal, passou a integrar o grupo de naturalistas que gravitava ao redor do todo-poderoso ministro da Marinha e do Ultramar dom Rodrigo de Souza Coutinho, líder dos chamados racionalistas esclarecidos, que concebiam o mundo como um espaço para a atuação da razão e da vontade daqueles dotados das verdadeiras Luzes, de modo a transformá-lo, à medida das necessidades e conveniências dos homens.4 D. Rodrigo foi o responsável por elaborar a nova política de modernização do Império Português. Esse projeto contaria com a colaboração dos ilustrados do Reino e das colônias, inclusive José Bonifácio, que foi convidado para ocupar diversos cargos estratégicos no âmbito do programa político-reformista por ele encabeçado, como o de Superintendente do Rio Mondego, e Obras Públicas da Cidade de Coimbra (Alvará de 13 de julho de 1807) e o cargo de Provedor dos Marachões do Rio Mondego. No governo de D. Maria I houve um esforço de regularizar o curso do Mondego, inserindo-se esta política no conjunto de reformas das comunicações terrestres e fluviais do Reino. O Alvará de 28 de março de 1791 determinou o encanamento do rio Mondego, dada a sua importância para a navegação e para a agricultura. Neste período foram elaborados estudos por Domingos Vandelli e pelo padre Estevão Cabral.5 3 – SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura luso-brasileira: da reforma da universidade à Independência do Brasil. Lisboa: Editorial Estampa, 1999. 4 – NEVES, Guilherme Pereira das. Em busca de um Ilustrado: Miguel Antônio de Melo (1766-1836). Revista Convergência Lusíada. Real Gabinete Português de Leitura. Rio de Janeiro, 2º semestre, nº 24, 2007. 5 – NETO, Margarida Sobral. O ordenamento de recursos nas áreas litorâneas e fluviais: a problemática do regime de propriedade. In: Atas do Seminário O Litoral em Perspectiva

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O cargo de superintendente do Rio Mondego foi um espaço de produção de conhecimento sobre um determinado recurso natural do Reino, o rio Mondego. Nesse locus de produção científica, Bonifácio elaborou diversas memórias científicas, fruto do trabalho de campo realizado pelas regiões do território luso por onde o rio passava. Alguns desses estudos permaneceram manuscritos até os dias de hoje, como a Memória sobre a Reforma dos Pauis Sobre a Sua Cultura, s/d., s/l. No estudo, Bonifácio examinou as razões que levam à formação dos pauis (pântanos) e os meios de transformá-los em áreas próprias para a agricultura. Na primeira parte, o autor expôs as causas físicas da sua formação e do seu aumento prodigioso em Portugal, fato que vinha provocando o detrimento da Agricultura lusa. Na segunda parte, o autor apresentou os meios de melhorá-los e cultivá-los em prol da Agricultura e da saúde humana. Numa das passagens do estudo chamou a atenção dos homens de governo para a atenção que o Estado português deveria dar a esta matéria e não deixar em mãos de “terceiros, que deixam tudo em desmazelo”: “O Estado perde, e padece incalculavelmente todos os anos em não dar as providências necessárias para enxugar e reduzir os pauis a cultura, deixando este cuidado aos Senhorios, que de ordinário deixam tudo em desmazelo. Da minha parte tenho cumprido o meu dever, como bom cidadão e bom patriota em manifestar os meus sentimentos, e em expor os meios que me aprecem mais adequados para que possa conseguir este benefício nacional; esperando que o Nosso Soberano, Nosso Pai Benéfico haja de tomar isto na Sua Alta Consideração Nomeando um Magistrado para cada um dos rios que tenham campos ou pauis, que tome este ramo da Agricultura debaixo da sua imediata Inspeção, com autoridade de adjudicar, e compensar os terrenos precisos para abertura das valas; mandar fazer portas e máquinas, aonde forem precisas por pessoas inteligentes: tudo a custa dos senhorios e dos colonos, que tiverem terras no nos sítios dos pauis, e vantagem do público.”6 Histórica (Sec. XVI a XVIII). Porto: Instituto de História Moderna, 2002, pp. 177-184. 6 – SILVA, José Bonifácio de Andrada e Silva. Memória Sobre o Melhoramento dos Pauis Para a Sua Cultura. Loc.: FBNRJ – Seção de Manuscritos I-47,33,27 / Cofre 50,1,7, folha 30.

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A preocupação de Bonifácio em transformar os pauis em áreas de cultivo agrícola deixa transparecer a importância que o ilustrado conferia à atividade agrícola. Este tema foi uma constante nas memórias elaboradas pelos integrantes do grupo de naturalistas liderado pelo paduano Domenico Vandelli na Academia Real das Ciências de Lisboa.7 Este último naturalista considerava que a agricultura era a fonte capaz de tornar a natureza útil ao homem. A agricultura seria o braço utilitário do mundo da natureza, uma vez que ela seria capaz de contribuir com grandes lucros para Portugal. Essa afirmação de que a agricultura era uma fonte de riqueza constitui-se num dos indícios das apropriações das ideias agraristas-fisiocráticas (a terra era vista como única fonte de valor) pelos integrantes do referido grupo.8 Uma das partes mais interessantes da dissertação diz respeito ao conceito de natureza com que Bonifácio operou, conceito este que seguia aquele presente na obra de autores como Georges Leclerc Buffon, John Woodward, Peter-Simon Pallas e Nalmont Bomare. Tomando como exemplo um dos autores acima referidos, Buffon, em sua obra intitulada As Épocas da Natureza, operou com uma definição da palavra épocas como sendo as diferentes mudanças pelas quais havia passado a natureza da Terra ao longo dos tempos. Como o próprio Buffon argumentou, “a natureza tem passado por diferentes estados. A superfície da Terra tem tomado sucessivamente diferentes formas, os céus têm mudado, e todas as coisas do universo físico estão, como as do mundo do espírito, em um movimento contínuo de variações sucessivas”.9

7 – MUNTEAL FILHO, Oswaldo. Domenico Vandelli no Anfiteatro da Natureza: a cultura científica do reformismo ilustrado português na crise do Antigo Sistema Colonial (1779-1808). Rio de Janeiro: PUC-Rio (Dissertação de Mestrado, Departamento de História), 1993. 8 – CARDOSO, José Luís. O pensamento econômico em Portugal nos finais do século XVIII (1780-1808). Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988. 9 – BUFFON, George Leclerc. Las épocas de La naturaleza (1779). México: Alianza Editorial, 1997, p. 143.

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Por sua vez, a natureza foi definida como algo não absolutamente uniforme, uma vez que admitia variações notáveis, sofria alterações progressivas. O estado presente da natureza era, segundo Buffon, totalmente diverso do que ela era no princípio do mundo e do que foi se convertendo na sucessão dos tempos. Utilizando-se da referência teórica da obra de Buffon, José Bonifácio também partilhava a tese de que a Terra havia passado por diferentes estágios até chegar ao atual. Grandes mudanças e alterações em épocas distintas caracterizaram a formação da constituição atual do planeta. Lugares que antes eram montes, deixaram de ser. Onde existiu mar, passou a ser terra. Rios, ribeiros e regatas que antes tinham uma determinada direção, passaram a possuir outra. Estas mudanças ou alterações foram provocadas, segundo José Bonifácio, por causas naturais diversas e diferentemente combinadas, entre as quais citou os dilúvios, os terremotos, as chuvas, o derretimento da neve das latas montanhas, os ventos, entre outros. Todos estes elementos produziram “ora mudanças rápidas, ora mudanças irreversíveis; mas grandes na superfície do continente. Donde se vê que ele se acha sujeito a uma contínua vicissitude, ora maior, ora menor, ora rápida, ora palatina. As leis físicas assim o demonstram, e os fatos observados por todos os naturalistas assim o confirmam”.10 O estudo de Bonifácio serve para exemplificar a atuação ativa dos naturalistas “portugueses naturais do Brasil” no programa reformista político-científico do governo de D. Maria, programa este liderado pelo ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Este último se aliou aos estudiosos da História Natural para colocar em prática o seu programa de reformas que visava modernizar o Reino Português. E, Bonifácio teve uma ação fundamental para a concretização do referido programa, ao ocupar cargos e funções, e apresentar estudos que viabilizassem as reformas.

10 – SILVA, José Bonifácio de Andrada e Silva. Memória Sobre o Melhoramento dos Pauis... Op. cit., folhas 1-5.

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II – O MANUSCRITO MEMÓRIA SOBRE O MELHORAMENTO DOS PAUIS PARA A SUA CULTURA. LOC.: FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO (FBNRJ) – SEÇÃO DE MANUSCRITOS I-47,33,27 / COFRE 50,1,7 &. 1º De qualquer sorte que se formasse o nosso globo, é certo que ele se acha constituído de duas grandes massas: uma sólida; e outra fluida. Aquela ocupa o centro e forma o continente; e a fluida ocupando a superfície e as cavidades do continente dividem-se em outras duas grandes massas: uma líquida que chamamos água, ocupa e cobre grande parte do continente, e outra aeriforme chamada atmosfera, rodeia e ocupa toda a superfície sólida e líquida do globo. &. 2º A constituição atual do nosso continente mostra que ele tem sofrido grandes mudanças e alterações em épocas muito remotas, e muito distantes umas das outras, e tais que escapam a imaginação humana. Montes existiram que hoje não se conhece, e outros apenas os deixam conhecer que foram da primeira criação.11 A maior parte deles são filhos de grandes mudanças e alterações posteriores. Existiu mar, aonde hoje não se conhece, e atualmente navegam barcos e navios onde foi continente. Rios, ribeiras e regatos têm mudado a direção do seu curso. Rios em que outro tempo foram navegáveis deixaram de o ser, e vice-versa. Existiram fontes, lagos, lagoas, e pauis, que desapareceram, e outros se formaram onde não os havia. Estas mudanças, estas alterações tão grandes, e tão espantosas foram e podem ser reproduzidas por causas naturais diversas e diversamente combinadas.

11 – Buffon. Hist. Natur.; Woodward; Delices; Dallas. Observação Sobre a Formação das Montanhas; Nalmont Bomare. Dicionário de História Natural.

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&. 3º Num cometa avizinhando-se ao nosso continente em alguma parte do giro da sua órbita pode alterar muito as nossas leis físicas e diminuir daquela parte, e aumentar a centrífuga; a massa fluida do nosso globo mais apta a obedecer a esta alteração, desvia-se mais do centro da Terra. Por esta razão as águas do mar podem subir, e cobrir uma grande parte da superfície do nosso continente dantes descoberta. Este fenômeno deve acontecer na razão da massa do cometa, e da sua vizinhança ou proximidade. Eis aqui uma causa, por felicidade nossa rara, dos grandes dilúvios. Esta se pode aumentar, combinando-se com a ação do sol e da lua, e muito mais ainda sendo favorecida pela direção e violência dos ventos. As águas do mar entrando por estas áreas pelo continente antes descoberto, e favorecidas pelos ventos, desfazem uns montes, e formam outros novos; fazem novas cavidades, e enchem outras de terra, e finalmente deixam uma nova superfície no continente quando se retiram.12 &. 4º O terremoto é uma das causas principais da mudança da superfície do nosso globo, e a mais frequente se bem que menos geral do que a referida (&. 3º). Os seus terríveis e horrorosos efeitos se manifestam com frequência em diversas partes do nosso continente. Por esta causa se tem visto montes submergidos, cidades devoradas em um instante; montes tornados em vales, vales tornados em monte saltos, separarem-se continente de continente; tornar-se em mar a terra habitada, e aparecer terra onde não havia. O terremoto tem feito secar fontes, lagos e rios, tem feito mudar o seu curso, e tem feito aparecer novas fontes, novos ribeiros e novos rios.13 &. 5º Os regatos, ribeiros e rios são causas permanentes da superfície da Terra; as águas pela sua fluidez, e pelo seu peso correndo constantemente

12 – Os mesmos autores. 13 – Os mesmos autores antecedentes. Buffon. Épocas da Natureza.

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do mais alto para o mais baixo terreno ganham maior ou menor velocidade, segundo o declive dos terrenos por onde passam. &. 6º As chuvas aumentando a massa fluida dos regatos, ribeiros e rios na razão da sua cópia e duração, aumentam prodigiosamente os efeitos da causa referida. (&. 5º) Além desses formam correntes de enxurros maiores ou menores segundo a cópia da chuva, a sua duração e a extensão da superfície do continente, que abrangem as águas vertentes. Estas correntes, correndo com maior ou menor precipitarão segundo a declividade do terreno, aí causam as mesmas mudanças na superfície da Terra, que as causas acima referidas. &. 7º A neve que se acha em grandes e enormes massas nas altas montanhas, derretida ou dissolvida por chuvas quentes e rápidas, causam grandes e rápidas cheias nos ribeiros, e rios de suas vertentes, e por conseguinte produzem os mesmos efeitos, que as chuvas (&. 6º). O mesmo deve-se entender da desgelação súbita de grandes massas d´água gelada. O gelo, pois, e a neve são causas naturais da contínua mudança da superfície do nosso globo. &. 8º O mar agitado e outros ventos, e quebrando em umas com mais violência do que em outras e remando em uns sítios mais do que em outros desune, movem e levam a terra de uma parte das suas margens para depositá-la naquelas, onde remansa; e por esta forma desfalca em umas partes o continente para acrescentar em outras. Eis aqui outra coisa sempre ativa na mudança da superfície da Terra, que é maior ou menor segundo a impetuosidade dos ventos, e a continuação da sua direção. &. 9º Os ventos não somente aumentam os efeitos das causas antecedentes, mas nos terrenos móveis e arenosos produzem mudanças notáveis. Em poucas horas formam novas serras e montes de area, e desfazem outros

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que existiram. Lugares habitados, e matas inteiras têm sido submergidas em area, e aos mesmos viandantes (?) tem acontecido esta catástrofe. A Arábia nos mostra exemplos frequentes e notáveis; e semelhantes efeitos se manifestam em algumas partes da nossa costa marítima. &. 10º Todas estas causas (&. 9-10) obrando umas momentâneas e outras perenemente produzem ora mudanças rápidas, ora mudanças irreversíveis; mas grandes na superfície do continente. Donde se vê que ele se acha sujeito a uma contínua vicissitude, ora maior, ora menor, ora rápida, ora paulatina. As leis físicas assim o demonstram, e os fatos observados por todos os naturalistas assim confirmam. Os pauis são compreendidos entre as alternativas do nosso continente; e eu tomo por objeto desta memória examinar as causas pelas secas da sua formação, e os meios de melhorá-los em benefício da Agricultura. Portanto, na primeira parte desta memória, exporei as causas físicas da sua formação e do seu aumento prodigioso em Portugal com tanto detrimento da Agricultura; e na segunda parte mostrarei os meios de melhorá-los e cultivar em grandíssimo benefício da Agricultura e da saúde humana. PARTE 1ª Das causas físicas da formação dos pauis, do seu aumento prodigioso em Portugal, com grandíssimo desenvolvimento da Agricultura. &. 11º Entendemos por paul toda aquela porção de terreno coberta d´água que por falta de declive suficiente não se esgota naturalmente para o rio cujas águas encontra. Todos sabem que o rio consta de água em grande cópia perenemente corrente de muitos regatos, que se ajunta em um leito ou álveo comum, pelo qual vai desaguar ao mar. &. 12º É evidente que se o álveo do rio for estabelecido até o mar entre poucos distantes, e firmados sobre rochedos, será de todos o mais constante e permanente; porque as partículas térreas e arenosas, conduzidas pelos

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regatos ribeiros, não deixarão de ser movidas no álveo e conduzidas pelas águas até o mar, e muito particularmente nas ocasiões de cheia, em que a força das águas correntes em álveo constante14 se aumenta na razão direta da massa d´água aumentada. O Douro é um rio desta natureza. &. 13º Porém se o rio correr por entre montes distantes e separados por planícies, ou campos, o seu álveo será mutável, e mais ou menos inconstante segundo a largura da planície, em que tiver estabelecido; porque sendo a força das águas dos rios razão das declividades dos terrenos por onde passam, como é claro, e sendo o declive destes rios cada vez menores ao passo, que entrando pelos campos se avizinham à sua foz, e vice-versa; é evidente que a sua força será tanto menor quanto mais se aproximar à sua foz; e a maior será antes de entrar nas planícies. Além disso, como a força das águas (sendo o declive o mesmo) cresce na razão da sua cópia ou massa, e diminui na razão da sua diminuição, e como os rios, de que falamos correndo por planícies, tem o seu álveo sustido por margens pouco altas, e pouco firmes, e por conseguinte incapaz de conter se não certa quantidade d´água, segue-se, que havendo cheias transbordava as suas margens, dividir-se-á em vários regatos e riachos, e se espalharão enfim as suas águas pelos campos; e por conseguinte a força das águas que vinham juntas no álveo até as planícies, diminuir-se-á na razão dos regatos, e riachos em que o rio se for dividindo nas mesmas planícies, ou em geral na razão da superfície do campo coberta pelas águas transbordadas do rio. Donde se segue. 1º Que os corpos térreos movidos e conduzidos pelas águas do rio (segundo as causas referidas &. 5º, 6º e 7º) das origens do mesmo rio, se depositarão sempre em maior cópia no fundo do seu álveo desde a sua entrada nas planícies até o mar, não somente em razão da sua menor declividade aí, mas em razão do transbordamento das águas, em cujas razões perde o rio a sua força, como acabamos de ver. 14 – Álveo constante é aquele em que o rio não transborda nas cheias ordinárias, de outra forma não pode ser constante, como abaixo veremos.

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2º Que pelas duas razões, que acima referimos, os depósitos térreos serão mais abundantes, onde o declive for menor, e as águas mais divididas, e sobretudo onde estas duas causas se combinarem; e como isto deve acontecer na entradas dos rios, nos campos, e no encontro das suas águas com as da maré, segue-se que, neste sítios, se fará a maior cópia do depósito térreo, o que é conforme a observação. 3º Que os corpos térreos mais grossos e pesados, movidos pela força decorrente destes rios, devem por causa do seu peso rolar sobre o fundo do álveo, e aí depositar-se, logo que pelas razões sobreditas a força da corrente do rio se diminuir; portanto, primeiro este depósito se fará sempre no fundo do álveo. Segundo, será em maior cópia nas primeiras lagoas do álveo estabelecido nas planícies. O rio Mondego nos dá uma prova manifesta de tudo isto. 4º Que os corpos térreos menos pesados, mais tênues e móveis se depositarão pelas margens e planícies cobertas d´água, e particularmente naqueles sítios dos campos, onde as águas perdendo a maior parte do seu movimento, tornam-se como estagnadas, e onde as águas do rio encontram a maré. Isto é claro e conforme a observação. 5º Que por todas estas razões o álveo de semelhantes rios deve-se entulhar quotidianamente, e com particularidade nas ocasiões das cheias até que ponha quase a da superfície do campo, em que está estabelecido. Neste caso, as águas do rio recebendo qualquer aumento, transbordarão, e correndo vagamente pelos campos farão quebradas, ou riachos maiores ou menores conforme a declividade, e ao tesão ou firmeza do terreno. Estas quebradas ou riachos, diminuindo a força das águas no álveo do rio na razão do seu número e grandeza, favorecerão o entulhamento do álveo na mesma razão, até que as águas, não podendo conter-se no antigo álveo, são obrigadas a fazer outro álveo novo por onde forem favorecidas pelas circunstâncias mais aptas do terreno. Eis aqui, pois, a causa física e necessária da inconstância do álveo dos rios correntes por entre planícies,

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cuja inconstância será mais ou menos determinada segundo o maior ou menor concurso das causas acima referidas, e da sua grandeza.15 15 – O rio Mondego nos oferece um exemplo assaz curioso. Desde a Vila de Pereira até a Vila de Montemor, o Velho, há indícios evidentes de que ele tem feito três álveos: o mais antigo, de que há notícia, é o que existiu no sítio onde chamam o rio Velho, que parte da incha que chama do Conservador, e se dirige, fazendo várias curvas serpentinas para o Norte, atravessa o campo de Sul para o Norte na distância de uma légua vai encontrar o monte da Carapinheira, desce encostado a ele até a ponte da Cal, e daqui para a ponte nova junto a Montemor, aonde atravessa o Rio Novo (agora Rio Velho). Desde a ponte da Cal até a ponte nova ainda se conserva um álveo assaz espaçoso e fundo, em que se ajuntam todas as águas dos ribeiros do lado do Norte deste campo, o qual ainda conserva o nome de Rio Velho. Da ponte da Cal até a ponte da Carapinheira não é tão visível o álveo antigo, por estar entulhado, e cortado por várias valas, para enxugar o campo da ponte do Norte. Desde a ponte da Carapinheira está o álveo antigo reduzida a campo até a ínsua do Conservador, e cultiva-se atualmente; porém títulos antigos de terras que confirmavam com o rio quando por ali corria, e uma leixa de terras por entre marcos, e fazendo várias curvas serpentinas desde a dita ínsua até a ponte da Carapinheira é uma prova incontestável de que o Mondego teve por ali o seu álveo antigamente. O outro álveo é aquele que existiu no sítio chamado hoje a Mondeguinha, que se dirige pelo meio do campo mais para o sul, e vai até a ponte nova, aonde se encontra com o rio Velho, o nome o indica, e a tradição e títulos antigo o confirmam. O terceiro álveo é o chamado agora Rio Velho, que ainda existe, e corre ao sul do encanamento. Da Arsilla até a Vila de Pereira em menos de um quarto de léguas há três álveos todos ainda bem manifestos. O Rio Velho de Pereira que está quase todo reduzido à cultura: o Rio Novo (antes do encanamento) que se acha entulhado de areias, e ainda inculto; e o Rio Novo atual feito pelo encanamento. Do sítio do Laranjal, ou Ínsua de Lourenço de Mattos até Arsilla há outros 9 álveos ainda bem visíveis, e de Coimbra até o segundo Laranjal há outros nove álveos bem patentes. Não falo em outros álveos, cujas provas exigem averiguações mais amiúdas e impertinentes. A respeito do prodigioso entulhamento dos álveos do Mondego, e dos seus campos há provas incontestáveis. No caminho de Arcos entre Montemor e Alfarelos, no campo de Burralha entre Montemor e Verride, e no campo do (sic) entre Montemor e Maiorca há ainda terras salgadas, e vestígios existentes de Marinhas, por onde se vê que em outro tempo chegavam ali marés vivas, e água salgada capaz de dar sal, hoje porém apenas chegam a Montemor as grandes marés do verão. Estes sítios chegam a estar quatro léguas distantes de Coimbra. Examinando-se a estrutura do monte, em que está edificada esta cidade, e a do monte oposto, em que estão edificados os conventos de S. Francisco e de Santa Clara, por entre os quais montes corre Mondego; e quem refletir sobre a forma da ponte atual de Coimbra, e sobre as causas dos seus ângulos, ou torturas, deve com muita verossimilhança concluir, que a ponte atual é a quinta edificada sobre duas antecedentes, designadas estas pontes pelos três ângulos, ou voltas, ou torturas, que tem. Porquanto em um construtor, por (sic) que fosse, se lembraria jamais fazer uma ponte entremonte e monte com nove voltas no meio que aumentando assim a extensão da ponte, e a sua espera, pois todos sabem que a linha reta é a mais curta entre dois pontos. Portanto deve-se concluir que a primeira porca direita da ponte do lado da cidade é edificada entre a parte da segunda ponte firmada sobre a primeira, e que por conseguinte a primeira ponte não tinha senão aquela extensão. A segunda tortura indica o acrescimento da segunda ponte

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&. 14º É evidente que as mesmas causas (&. 13º) devem ter lugares e obras nos ribeiros e rios menores que desaguarem no álveo comum; os quais ver nelas mesmas razões dois sítios de entulhamento mais sensível nos desde o fim da primeira até algum ponto firme do monte do lado de (sic) ganhar a largura do álveo do rio aumentada pelo entulhamento sobre o qual acrescentamento está também edificada a ponte atual. A terceira tortura que é do O da Ponte da S. Francisco, de de (sic) o acrescentamento da ponte atual sobre a 2ª porquanto o álveo do rio aumentado pelo entulhamento; e não passaram muitos canos, que não seja preciso edificar outra quarta ponte sobre a atual, por estar esta quase entulhada. As igrejas antigas dos conventos de Santa Clara junto à Ponte e do Colégio de S. Domingos por detrás da sua de S. Sofia, das quais apenas se descobrem os cumes hoje em dia, provam evidentemente, que o Mondego correu em outro tempo por um álveo baixo do que o atual pelo menos 100 palmos; porque as torres destas Igrejas não deviam ter de altura menos de 60 a 70 palmos, e como estes edifícios se julgavam perpétuos, deviam ser edificados em plano de terra tal, que se julgasse inacessível às cheias maiores, e por conseguinte, o 27 terreno devia estar mais levantado do que o álveo de Mondego 30 a 40 pelo menos: ora como atualmente não só se acha entulhada a altura deste plano, mas também a altura das torres das igrejas (sic) se que o álveo atual do Mondego está mais alto ou levantada pelo menos 100 palmos, do que no tempo em que se construíram aqueles edifícios. Debaixo do torrão atual da ponte acha-se um vão abobado, sobre que se firma o pavimento do atual aclive plano da ponte, o qual não é sem contradição a parte superior do vão do torreão da outra ponte sobre a qual se edificou a ponte atual; porque além dos mais sinais, ainda conserva de um e outro lado para aporte da ponte, ou do rio uma pedra furada, e firme na muralha, em que encaixavam os cones superiores das portas, com que se fechavam a ponte, ou a cidade. Ora, este já está de tal forma entulhado, que apenas pode um homem de ordinária estar nele em pé, e, por conseguinte, desde a abóbada até o pavimento atual já não é mais que 10 palmos de alto; o seu terreno ou pavimento não está mais do que a superfície d´água senão 10 palmos; porém como este torreão não deve ter menos de 30 palmos de altura desde a abóbada até o pavimento, em que foi edificado com a ponte, e como a ponte então edificada não devia ter menos de 100 palmos, desde o seu plano superior até a superfície d´água, atendendo-se as cheias, a passagem livre dos barcos com seus mastros, e sobretudo ao entulhamento do Mondego, de que haveria já assaz experiência, segue-se que o Mondego, desde a época da construção da ponte sobre que está edificada a ponte atual, tem entulhado o oco leito ou álveo pelo menos 110 palmos, por conseguinte corre agora em leito mais levantam outros tantos palmos. Ora, como o declive do Mondego desde Coimbra até o mar pouco mais é de 100 palmos, segue-se que, em outro tempo, chegavam as marés à Coimbra. Que notável conseqüência! Sem dúvida evidente, mas à primeira vista, paradoxa, e mesmo absurda porque muito reflete, e não conhece a Natureza ou as suas leis. Neste vão do antigo torreão acha-se instituída uma capela com a obrigação de Missa todos os dias santos de guarda cujo (sic) atual é o Des. José de Magalhães Castelo Branco; e o instituidor declara não poder-se mudar ali a capela por motivo algum exceto no caso inesperado de não poder ali celebrar-se missa por embaraço das cheias. Hoje, porém, apenas se pode nela celebrar missa no verão, porque de inverno quase sempre está impedida pelas águas do Mondego.

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seus álveos respectivos: o primeiro sítio será na entrada da sua planície respectiva, e o segundo no sítio do encontro das suas águas com as águas do rio principalmente na ocasião das cheias, em que as águas do rio, em razão da sua maior cópia, faz recuar as dos seus ribeiros, ou rios menores; e por esta espécie de estagnação as partículas térreas pela sua gravidade específica maior devem depositar-se em tanta maior cópia aí quanto as cheias dos rios forem maiores e mais duráveis, do que as dos ribeiros, ou riachos. Isto é evidente. &. 15º O primeiro sítio do entulhamento dos ribeiros ou riachos (&. 14º) deve ser mais ou menos distante das margens do rio ou álveo comum, segundo a maior ou menor declividade dos campos, ou planícies parciais, por onde correm, e a distância deste sítio ao mesmo álveo comum. Por exemplo, se um riacho entrando na sua planície, ou campo parcial, por onde vai encontrar as águas do rio, perder-se sensivelmente a sua declividade em sítio uma légua distante do rio, neste sítio se fará o primeiro depósito maior dos carpos acarretados pelas suas águas. O segundo sítio deve ser, sem dúvida, próximo às margens do rio, por ser aí onde se faz o encontro das águas do riacho com as do rio, e, por isso, ficando elas aí como estagnadas, são depositadas as partículas térreas trazidas por umas e por outras águas; e por conseguinte neste sítio se fará maior depósito térreo, do que em outra qualquer parte das margens planas do rio; logo, a margem do rio será mais entulhada do que em outra qualquer parte da mesma barragem onde não houveram as mesmas substâncias. &. 16º Do que vimos (&. 15º) segue-se que havendo dois sítios de mais pronto e progressivo entulhamento por depósitos térreos entre os riachos e o rio, deve a superfície do sítio intermédio àqueles tornar-se necessariamente baixa, e por conseguinte, coberta d´água. Esta causa combinada com o entulhamento progressivo do álveo do rio (&. 13º) dá origem aos pauis maiores ou menores segundo o concurso e grandeza acima referidas. Eis que pois as causas físicas e necessárias da formação dos pauis, que por estas razões sempre são próximos ao álveo dos rios correntes por R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (451):329-359, abr./jun. 2011

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entre grandes planícies, e que aí recebem águas de ribeiros, ou riachos. Donde se deve concluir que o esgotamento dos pauis é naturalmente impossível, e que só pode ter lugar quando o rio, mudando de álveo, receba as águas deste ou aquele paul em distância tal, na qual a superfície do rio venha ficar no mesmo nível, ou mais baixa do que a superfície térrea do paul. &. 17º Tendo a observação mostrado que o terreno dos pauis é o mais fértil de todos, os homens deste tempo imemorial fizeram sempre todo o esforço para o reduzir a cultura, e, por isso, conseguiram esgotar muitos pauis por um meio muito óbvio. Consiste em fazer uma vala, a que chamam Vala Real, para receber as águas do ribeiro ou riacho que vem ter ao paul, e conduzidas ao lado deste para desaguar no rio em um sítio tal, que tenham bom escoante. Esta vala serve para desviar do paul as águas vivas, ou correntes do ribeiro. Como por esta vala desviam sim as águas correntes do paul, mas não podem esgotar as águas estagnadas, fazem outra vala a que chamam vala de enxugo, ou vala do meio, que atravessa pelo mais baixo do paul, e vai desaguar no rio, ou na vala real, onde possa dar escoante as águas mortas ou estagnadas; e a esta vala do meio vão ter outras valetas ou desaguadouros parciais conforme a precisão delas. Assim, abc (figura 1º) é o rio que atravessa o campo t u a (sic): g o p l m é o paul: d e m f é a vala real, que desvia do paul as águas vivas, que nele entravam do riacho d d e as deságua no rio em f: a vala g h i m é a vala de enxugo, que leva as águas mortas do paul para a vala Real em m e podia desaguar no rio junto à Vala Real quando fosse preciso: p l o h n i são as valetas ou desaguadouros parciais para a vala de enxugo. &. 18º Este método é o mais óbvio e o melhor sem contradição quando é praticável para esgotar os pauis, e reduzi-los à cultura; porém é preciso 1º que a vala real tenha uma suficiente capacidade para conter as águas do ribeiro ou riacho, e que as suas margens sejam de tal sorte fortificadas com moitas, que possam conter as cheias, que muitas vezes acontecem, quando o paul está afructado. 2º que na vala do enxugo hajam portas para

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deter as águas da vala real ou do rio em caso de cheia, ou crescimento de suas águas, para que estas não retrocedam pela vala de enxugo, e entram para o paul. 3º que hajam igualmente portas tanto na vala de enxugo como na vala real quando as suas águas encontrarem as águas da maré; em ambos os casos devem-se fechar as portas logo que repontarem as águas tanto da cheia, como da maré, e abrir-se logo que as águas da cheia, ou da maré tiverem rebaixado no mesmo nível das águas anteriores às portas, ou em geral todas as vezes que as águas de uma e outra banda das portas estiverem no nível; porque então sendo as pressões iguais, as portas se levantam com facilidade e não oferecem outra resistência do que a do seu peso, o que não acontece quando há diferença de nível, porque a pressão d´água mais alta sobre as portas embaraçam muito a elevação destas por causa do atrito, o qual é tanto maior, quanto maior for a diferença das alturas das águas de um outro lado das portas. Estas devem ser levantadas por duas cordas presas a um sanilho, como se vê na figura 2ª, e o número das portas deve-se aumentar quando a largueza das valas assim o exigir. &. 19º Em Portugal não usam de ordinário senão dos meios referidos (&. 17º e 18º) para esgotar os pauis, e reduzi-los a cultura: em algumas partes porém há nisso mesmo grande desmazelo. Não falo de outros pauis, que podendo ser esgotados e cultivados pelos métodos referidos (&. 17º e 18º) deixaram de o ser por embaraços até agora quase inumeráveis; porque sendo mister para isso alongar mais as valas, tanto real como de enxugo, e para esse fim atravessar com elas terrenos de vazios proprietários, não se pode isto conseguir pela oposição, que se acha nos ditos proprietários, que olhando mais para os seus interesses próprios, do que para os comuns, e mesmo por um certo egoísmo caprichoso não consentem na abertura das ditas valas: e ainda que a nossa legislação favoreça a adjudicação e compensação de semelhantes terrenos necessários para o dito fim, contudo os meios ordinários e usados para isso permitem delongas tantas, e tantos subterfúgios, que de ordinário torna-se de nenhum efeito toda e qualquer tentativa para esse fim. Acresce a isto a pouca providência, e economia de quase todos os senhorios territoriais, que encarando mais os interesses

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presentes, do que os futuros e de seus sucessores fogem à despesa de novas valas; e antes não querem os interesses por elas provenientes, do que mandá-las abrir, e se contentam com os módicos ou nenhum interesse, que atualmente recebem com gravíssimo prejuízo seu, e do público, privado deste importante ramos de Agricultura. Temos muitos exemplos de semelhantes pauis em Portugal, tais como o paul de Anobra, o de Arzilla, o de Cermozelhe, o de Vila Nova D´Arcos, e parte do paul do Louriçal, como também a paul da Madriz, todos ao lado do sul do Mondego, afora o da Póvoa, o das Minas, o de Montemor o Velho, o de Soja, e outros do lado do Norte. A maior parte destes pauis foi já cultivada, e hoje apenas se cultivam minguadas porções de alguns. &. 20º Apesar do método das valas (&. 17º e 18º) eficaz em outro tempo para muitos pauis em Portugal, observa-se hoje em dia que eles sensivelmente se vão tornando menos cultiváveis, e que alguns se acham presentemente quase incultos. Qual será pois a causa deste fenômeno? Se refletirmos no que dissemos acima (&. 13º, 14º, 15º) veremos que assim deve acontecer pela razão de se entulhar continuamente o álveo de semelhantes rios, e dos seus ribeiros ou riachos; e como pela vala real em grande parte, ou totalmente se desviam dos pauis as águas dos ribeiros, ou riachos, segue (&. 19º, n.º 5 e 4) que os álveos dos ribeiros, e rios serão mais entulhados e levantados nos tempos das cheias, de que o fundo dos pauis (sic) maior desproporção, do que se as águas dos ribeiros e riachos corressem desembaraçadamente, e em direitura para os pauis na ocasião das cheias: porque os corpos térreos acarretados pelas cheias seriam em tal caso depositados nos pauis, e levantariam o seu fundo em muito maior proporção, do que sendo desviadas dos mesmos pauis pela Vala Real. Eis aqui pois a causa evidente por que os nossos pauis são hoje muito menos cultivados do que em outro tempo em grandíssimo prejuízo da nossa Agricultura; sendo certíssimo, que mais produz uma geira de terra de paul, do que se de outra qualquer terra por boa que seja. E como em Portugal não usam ordinariamente senão do método das valas (&. 17º) para esgotar os pauis, segue-se que o prejuízo da nossa Agricultura será cada vez maior se não

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houver qualquer outro meio de os esgotar constantemente ou por valas, ou por algum outro método combinado, o que fará o objeto da 2ª parte desta Memória. Parte 2ª Dos Meios de Esgotar, Diminuir ou Terrear os Pauis &. 21º Quando o fundo do paul se achar a nível da superfície do rio em qualquer sítio do seu curso, é claro, que se poderá esgotar o dito paul fazendo-se duas valas, uma real, e outra de enxugo, assim como dissemos (&. 17º) que venham desaguar naquele sítio do rio. Este método será sempre preferível, quando lhe não obtém as causas referidas (&. 19º) que nunca serão superadas, senão autorizando-se algum Magistrado, que tenha uma particular Inspeção sobre este interessante ramo da Agricultura, para que possa sumariamente adjudicar, e compensar à custa de quem deva ser, os terrenos necessários, para por eles passar as valas referidas até desaguar no rio no sítio acima dito. Estabelecida esta autoridade pelo soberano nas comarcas, poder-se-á esgotar, e cultivar a maior parte deles, tendo-se de resto atenção ao que dissemos (&. 18º). $. 22º Se as marés chegarem ao sítio do rio, que se acha a nível do fundo do paul, poderá este ainda ser esgotado, praticando-se somente portas para deter as águas da maré, mas também abrindo-se valas maiores, e capazes de conter as águas vivas do ribeiro ou riacho de tal sorte, que não transbordem por todo o tempo do crescimento da maré. As portas se abrirão na nascente logo que as águas de um e outro lado das portas estiverem a nível pela razão referida (&. 18º) e para que as valas desaguem na nascente.

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&. 23º Quando porém o fundo do paul se achar mais baixo do que a superfície do rio por todo o seu curso até mesmo na baixa maré, não se poderá ele esgotar pelo método das valas (&. 21 e 22), por ser evidente, que por este método não se poderá dar escoante às águas. Neste caso porém devemos recorrer aos meios seguintes não usuais em Portugal. &. 24º Se a diferença horizontal das alturas do paul e do rio não for grande devem-se abrir as valas referidas (&. 17º) para esgotar as águas do paul, quanto for possível, e se o resto da água morta, que ficar, não forem demasiada cópia, podemos nos acabá-la de esgotar pelo método dos tabuleiros, o qual consiste em frear na vala morta ou de enxugo um marachão de terra c e figura B, mais alto 2 ou 3 palmos, do que a flor d´água, e feito em sítio tal, que a água lançada para diante do marachão, não possa retroceder para o paul: metem-se 2 pés direitos d e, g f, mas bordas d, e g da vala a b, uma defronte da outra, e nas suas extremidades a, e f firma-se uma travessa e f com um gancho no meio n o, ao qual se prende a corda t u, que em u se divide em duas u p, e u q presas em p, e q no eixo p q do tabuleiro da tábua m l i h de 9 ou 10 palmos de cumprido, e de 5 de largo, o qual tabuleiro é dividido em duas partes iguais pelo eixo p q, e tem um bordo ou resalto de 4 ou 5 dedos nas margens l m, m h, e h i para conter a água recebida. Suspende-se o tabuleiro m h i l pela corda t u no gancho n o de maneira, que fique mais alto do que a superfície d´água 2 ou 3 palmos. Então dois homens um na margem d, e outro na margem que da vala pegam um com a mão direita na extremidade do eixo p q, e outro homem com a mão esquerda na extremidade q do eixo qp, depois disso mergulham a porção e l i n do tabuleiro, e levantando a água que nele podem apanhar a despejam para além do marachão cc, isto é, para a parte da vala b, para daí escoar para o rio por não poder retroceder para o paul, que fica do lado a da vala. Por este modo se esgotam com facilidade 2 até 3 palmos de altura d´água no paul, o que basta de ordinário para enxugar semelhantes pauis, e cultivarem-se. O número de tabuleiros pode-se aumentar segundo a cópia d´água, e a brevidade com que se deve enxugar o paul.

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&. 25º Mas para que este método tenha lugar, assim como os seguintes, é mister circundar o paul com duas valas tais que recebam as águas correntes dos vales dos montes em torno do paul, e que as lancem no rio sem que encontrem as águas mortas, ou estagnadas do Paul. A vala real pode servir ao mesmo tempo por uma destas valas. Assim no rio a b vão desaguar todas as águas, que vão ter ao paul e n p r figura 4ª: umas águas pela vala real c d b, e outras pela vala do lado oposto h i l m, a que chamam vala do monte, e finalmente as outras águas mortas pela vala de enxugo e q q d, a qual vão ter as valetas, ou desaguadouros parciais n o, p f, e r g. É manifesto, que o fim destas valas é que o paul não receba águas algumas correntes, e que só tenha as águas ali depositadas pelas cheias e chuvas, e para que estas águas uma vez esgotadas (quanto for possível) pela vala de enxugo e g d, e pelo método dos tabuleiros (&. 24º) não possa o paul depois de enxuto, ou esgotado receber água de parte alguma; aliás será incomodado, e até inútil este método. &. 26º Em lugar de tabuleiros movidos por homens podemos usar de roda tabuleirada figura 5ª tocada por bois: a b c é uma roda formada por um canal circular de 2 palmos de altura de cada lado, e outros 2 de largura, lapado da parte interna, e aberto da lado externo, e cheio de divisões postas na direção dos raios da roda, que dividem o canal circular em outras tantas cavidades separadas. Esta roda está mergulhada verticalmente com a porção c e u na valeta t t u, que encaminha a água da vala de enxugo l k x, e é sustentada a roda pelo eixo horizontal d f, apoiado em d e f, este eixo junto a f tem carrete g h, que é tocado pela roda dentada g h l i, que está posta horizontalmente no eixo vertical f g, o qual eixo em s tem a perna s r; sendo em r onde anda o boi para tocar a máquina. Os eixos d f, e f g acham-se apoiados em f no dormente, ou viga de pau n f o, firmada em n e o nas colunas de pedra m n, e o p. A parte da roda mergulhada n´água anda por dentro de uma porção de canal circular u u de comprimento de 5 até 6 palmos firme na valeta t u no sítio u; de maneira que movendo-se a roda na direção de c u a levanta a água, que se acha nas cavidades circula-

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res até a altura a, e a lança em a para a valeta u x, para dali escoar para o rio pela vala do enxugo y k x, a qual não pode retroceder para o paul por estar a vala de enxugo tapada em y com o marachão y. É claro pois que o boi posto em x, e fazendo mover a roda dentada g h l i e está tocando o carrete em h fará mover a roda vertical mergulhada n´água a b c e, a qual continuamente lançará água em a para a valeta u x. É fácil circular a cópia d´água, que esta roda pode lançar em cada um giro; porque sendo o seu diâmetro de 14 palmos, será a circunferência de canal circular de 44 palmos, que sendo dividido de 2 em 2 palmos por uma plano de tábua, que chama de tabuleiro, terá 22 tabuleiros, ou cubos, que lançando cada um ½ almude, ou um cântaro d´água, lançará a roda em cada giro 11 almudes d´água. Também é fácil de ver que esta roda pode ser tocada por água em lugar de bois todas ás vezes que as águas correntes da Vala Real sejam capazes de tocar uma roda de penoras, e que as águas mortas do paul se possam encaminhar por uma valeta feita de propósito até aproximadamente à margem, ou moita da Vala Real; neste caso a roda de pernas movidas pelas águas da Vala Real pode tocar a roda tabuleirada, que levantará as águas do paul conduzidas pela valeta acima dita, e as despejará para a outra valeta mais alta, que as conduza para a Vala Real. &. 27º As bombas podem muito bem ter lugar para enxugar os pauis, que se não podem esgotar por valas b t a figura 6ª é a vala de enxugo, que se vai encontrar em a com a Vala Real a a. Depois de esgotada por ela toda a água, que for possível, tapa-se em c com um marachão c c para que a água não retroceda de a para b: abre-se com t uma valeta, que dirija a água morta do paul para o reservatório s p q r; neste reservatório colocam-se 2, 3 até 6 bombas Yi, Yi, Yi, que tenham os seus respectivos êmbolos iz, iz, iz presos no eixo de ferro m zzzzzzn presos, digo, nos sítios zzzzzz do dito eixo por um anel móvel: o eixo deve ter as torturas, que representa a figura, de maneira que as pontas z z distem da linha reta, que passaria pelo centro do eixo de m para n um palmo e meio, até 1 palmo, para que dê aos êmbolos um movimento de 3 ou 4 palmos, como é fácil de conceber: o dito eixo está apoiado em m e n nas colunas m l, e n o; e tem um carrete

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em u. É manifesto que estas bombas podem ser tocadas pela roda nada de pernas d d d movida pelas águas correntes da Vala Real a a; ou também por uma força viva, como por um boi aplicado a uma roda dentada horizontal, que toque o carrete em u, como vimos na roda dentada h i l g da figura 5ª. A roda de pernas d d d figura 6ª movida pelas águas da Vala Real a a toca as bombas em virtude da roda dentada x x posta no eixo f g, que toca o carrete x u do eixo, que move os êmbolos das bombas. Porém, a roda de pernas só pode ter lugar, quando há águas correntes na Vala Real, e quando há declívio suficiente, o que em muitos pauis não acontece. &. 28º As bombas funiculares não têm para isto as vantagens que seu autor lhe quis atribuir; são pouco eficazes: as bombas espirais são as de maior vantagem, quando a altura d´água, que se não pode esgotar por valas, não excede de 4 a 5 palmos, o que de ordinário acontece: a a a b b b figura 7ª representa uma pirâmide cônica truncada inversa verticalmente vista; a a aa é o círculo do seu vértice = ab, ab, ab são umas espiras côncovas pela parte de cima, que unidas à superfície interna da pirâmide, sobem espiralmente do vértice para a base, e terminam na margem externa da borda ressaltada, que a pirâmide tem na base. Esta pirâmide com as suas espirais situadas interiormente deve-se conceber metida em outra pirâmide cônica trancada inversa, firme ou imóvel: de sorte que devem-se imaginar 2 pirâmides cônicas truncadas inversas, uma interna, ou inscrita coma s espirais referidas, e outras externa ou circunscrita; a interna é móvel dentro da externa imóvel; a externa com uma borda ressaltada na base, e côncava, bem capaz de receber toda a água, que subir pelas espirais da interna, e se entornar pela borda da base da pirâmide interna ou inscrita. &. 29º Isto sim bem concebido, faça-se o marachão D D figura 8ª na vala de enxugo R B, depois que por ela se não poder mais esgotar o paul: para a parte do paul em S abra-se a valeta Sp, que dirija a água do paul para p e aí se firme a pirâmide cônica truncada inversa circunscrita ou externa com a pirâmide inscrita móvel como vimos (&. 28ª figura 7ª): p m o é um eixo vertical, no qual está firme a pirâmide inscrita pelos diâmetros hh, R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (451):329-359, abr./jun. 2011

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nn, este eixo com a pirâmide inscrita move-se em p sobre o centro de uma diâmetro do círculo do vértice da pirâmide truncada circunscrita, e em o move-se no dormente ou viga e o a firme em c e a, nas colunas cd, ab, e tem o mesmo eixo um carrete q q, o qual carrete é tocado pela roda dentada rr qq, a qual está firme no eixo vertical u x e, que tem em x a almanjarra x o por onde esta máquina é tocada por um boi, o qual, tocando a máquina de modo que faça valer a pirâmide cônica truncada inversa inscrita para a parte da cavidade das espiras, e sair em i para a valeta i k, donde correrá para Vala Real a b c. Eis aqui pois o que chamo bomba espiral máquina assaz útil, e quase sempre aplicável para o esgotamento dos pauis, quando há só 3 ou 4 palmos d´água, que se não pode esgotar por valas. &. 30º Os meios referidos até aqui (&. 17º-29º) são, na verdade, para esgotar os pauis, e reduzí-los à cultura com maior ou menor dispêndio; porém, como pelas causas naturais referidas (&. 20º) os pauis devem-se atirar de cada vez de mais difícil esgotamento, é manifesto que a sua cultura se tornará à proporção mais dificultosa e dispendiosa, se não houver algum meio de os diminuir, quero dizer, entulhando-os, ou levantando o seu terreno. Certamente levantar o terreno de um paul, e pô-lo a nível da superfície d´água do rio, em que vai desaguar, parece uma empresa da última dificuldade, e que o mais poderoso braço dificilmente poderia conseguir, pois, enfim, parece tentar-se uma luta contra as leis do Criador. Contudo, os recursos da Natureza são imensos, e o observador que miudamente espreitas as suas leis imperiosas, mas nem sempre patentes à primeira vista, acha de ordinário meios de conseguir muitos fins úteis, sabendo fazê-las obrar em seu proveito. Dos meios de aterrar, ou levantar o terreno dos pauis &. 31º Na verdade, ninguém duvidar, que as leis físicas serão sempre da mesma forma em circunstâncias iguais, por conseguinte as observações que tenho feito nas margens do Mondego devem me guiar a respeito de todos os rios, e campos análogos. Portanto, observando eu, que as causas do entulhamento do álveo deste rio, e por conseguinte da inconstância

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necessária do seu álveo, como também que as causas da formação dos pauis que existem aos seus lados, e, finalmente, que as causas do aumento progressivo dos mesmos pauis eram todas conforme as que acima referi (&. 19º-29º); devo, sem dúvida, concluir, que as mesmas causas há de obrar em todos os rios, e pauis análogos, e que somente poderá haver diferença em graduação. Ora, refletindo eu no modo por que se formaram os pauis dos campos do Mondego, refletindo nos seus ribeiros e riachos, e nos depósitos térreos de uns e outros, que em geral fazem-se, como disse, (&. 19º-20º), vim no conhecimento de um mais assaz, fácil e eficaz de terrear os pauis, isto é, de os entulhar, e levantar o seu terreno. Consiste o referido meio em fazer várias portas em diversos sítios da margem da Vala Real, pelas quais passam todas as águas da vala correr para o paul, o que sempre será possível, porque o fundo do álveo desta vala costuma em uma grande extensão dela ser sempre mais alto, do que o paul fazer também outras tantas portas na Vala Real para tapar as suas águas, e obrigá-las a correr pelas portas da margem para o paul, quando for preciso. Por exemplo, na Vala Real do paul c d e f b figura 9ª façam-se as portas laterais ii, hh, gg na margem do lado do paul l m n o o, e as portas d d, ee, ff, opostas à corrente d´água de c para b; de maneira que aberta a porta ii, e tapada a porta dd, as águas deixem de correr pela vala, e corram pela porta ii para o paul l m n oo, e fechada a porta ii, e aberta a outra d d, deixem as águas de correr para o paul, e corram pela Vala Real para o rio a b; o mesmo se deve entender das portas hh, ee, gg, ff. &. 32ª É certo que os enxurros, e geralmente todos os corpos térreos acarretados pelas águas da Vala Real nas ocasiões das cheias, sendo encaminhadas diretamente para o paul pela porta ii, depositar-se-ão no fundo do mesmo paul, logo que as águas da Vala Real perderem a sua velocidade pelo seu encontro com as águas do paul16, e, por conseguinte levantar-se-á 16 – Porque não estamos no caso do &. 16º; porquanto ali supõe-se o paul formado pelos riachos, e rios correndo naturalmente à discrição pelos álveos, que se formam nos campos, e sem um leito constante, e aqui supomos os riachos dirigidos por um álveo constante, ou Vala Real formada com altas e seguras moitas, e por isso conservando as suas águas com pouco diferença a mesma força desde quem entram no seu campo respectivo até o paul,

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o terreno do dito paul na razão da quantidade do dito depósito; e como o referido depósito deve-se fazer maior cópia na aparte do paul mais próxima a porta ii no lugar do encontro das águas, como é evidente; por isso, depois de levantado o terreno do paul suficientemente neste sítio; tapar-se-á a porta ii, e abrir-se-á a porta dd para terrear o paul mais adiante fechar-se-á a porta ee, e abrir-se-á a porta hh nas ocasiões da cheias seguintes para que as águas corram para o paul por esse sítio, e se levante o seu terreno fronteiro à porta hh. Conseguindo-se o mesmo benefício, fecha-se a porta hh, e abre-se a porta ee, e pratica-se o mesmo antecedentemente com as portas ff, e gg, até entulhar-se parte do paul fronteira à porta gg. Finalmente conseguindo levantar o terreno do paul deste lado, continuando-se para isso na mesma manobra; encaminham as águas da Vala Real c b para a vala do lado oposto p q r, o que sempre é possível, e nela deve-se praticar o mesmo, que se tenha praticado na Vala Real c b; e esta alternativa deve sempre alteando o terreno do paul. Por este método conseguem-se vantagens incalculáveis, como são 1ª Dirigir à nossa vontade todos os enxurros e corpos térreos trazidos pelas cheias do ribeiro, ou riacho para o paul para nele se depositarem, onde for mais conveniente, ou preciso. 2ª Levantar o terreno do paul na razão dos depósitos das cheias, que são imensas. 3ª Conservar a Vala Real desentulhada, e evitar-se por isso o grande dispêndio de desentulhá-la e abri-la repetidas vezes; porque dirigindo-se as águas sujas, e de enxurro para o paul, então deixando correr pela vala senão as águas claras, é evidente que não é ocasião de se entulhar a dita vala. 4ª Conseguir, passados anos, esgotar os pauis por meio das valas somente, o que é de suma vantagem.

conduzem para aqui todos os corpos térreos, que não se depositarão até a sua entrada nos campos.

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5ª Evitam-se as quebradas, que são freqüentíssimas na Vala Real, causadas pelas cheias; porque tendo as águas saída pelas portas para os pauis, não tem lugar de fazer as quebradas tão freqüentes, e prejudiciais; estas equivalem o quádruplo do dispêndio das portas. 6ª Não se embaraça a navegação, antes e facilita nos ribeiros ou rios laterais, porque na ocasião de cheias navega-se pelas águas do paul, e entra-se para a Vala Real pelas portas laterais, que se acham então abertas; e, por este modo, evita-se levar os barcos contra a força da corrente das cheias na vala, que é um grande obstáculo à navegação. E quando porém não há cheias, e as águas correm claras, tapam-se as portas laterais (porque então não é mister que as águas corram para o paul, e abrem-se as portas das valas, por onde navegam os barcos nas águas juntas). 7ª As mesmas portas podem servir em muitos sítios para fazerem a presa das águas no verão para a rega dos campos vizinhos, evitando-se assim os marachões de terra, que fazem para represar as águas para a regra, que não sendo nunca bem desfeitos de inverno, causam freqüentes quebradas, entulham as valas, e embaraçam a navegação. 8ª Conseguindo-se por este meio o esgotamento e diminuição dos pauis consegue-se igualmente a diminuição da causa das febres intermitentes e remitentes, como confessam maior parte dos médicos, o que não é pequena vantagem para saúde humana. &. 33º Também há outro meio de levantar o terreno dos pauis entre nós já usados, que não é para desprezar; o qual consiste em dividir o terreno do paul em pequenos, estreitos tabuleiros de terra, e entre uns e outros abrir valetas, ou barrocas, e com a terra tirada das barrocas, ou valetas levantar o terreno intermédio. Tenho pois exposto as minhas reflexões sobre esta matéria, feliz me julgarei se elas puderem servir de alguma utilidade à minha Pátria comum, a cuja utilidade me dedico. O Estado perde, e padece incalculavelmente todos os anos em não dar as providências necessárias para enxugar e reduzir os pauis a cultura, deixando este cuidado aos Se-

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nhorios, que de ordinário deixam tudo em desmazelo, como vimos (&. 19º). Da minha parte tenho cumprido o meu dever, como bom cidadão e bom patriota em manifestar os meus sentimentos, e em expor os meios que me aprecem mais adequados para que possa conseguir este benefício nacional; esperando que o Nosso Soberano, Nosso Pai Benéfico haja de tomar isto na Sua Alta Consideração Nomeando um Magistrado para cada um dos rios que tenham campos ou pauis, que tome este ramo da Agricultura debaixo da sua imediata Inspeção, com autoridade de adjudicar, e com pensar os terrenos precisos para abertura das valas; mandar fazer portas e máquinas onde forem precisas por pessoas inteligentes: tudo à custa dos senhorios e dos colonos, que tiverem terras nos sítios dos pauis, e vantagem do público, praticando-o o que vou a dizer no &. seguinte. &. 34º Os pauis ou pertencem a certos proprietários, que pagam aos senhorios diretos o 5º ou 4º da sua produção; ou pertencem a enfiteutas; ou são próprios dos territórios. Indagada a natureza da obra precisa para o esgotamento, e cultura do paul, e orçado o seu importe; deve-se no 1º caso exigir do senhorio a sua quota parte na razão do redito, que perceber; depois dito exigir 1/10 do orçamento de quem vai receber o 1/10 dos frutos daquele terreno, e resto dividir-se pelo número das aguilhadas dos colonos, ou proprietários úteis, que ali possuírem terras; e feita esta finta proporcionada, suave útil para todos, o Magistrado mandará pôr em execução a obra necessária. Por exemplo, suponhamos que a obra foi orçada em 600$000 reis, que a Senhoria percebe o ½ dos frutos do paul, e que o paul tem 600 aguilhadas de terra; e será a quota parte do senhorio 600.000/3, isto é 200,000 r., a quota parte de quem recebe o dízimo será 400.000/10, isto é 40.000 r., e o resto, que são 360.000, dividir-se-á pelas 600 aguilhadas de terra, que tem o paul, e por conseguinte pertencerão 600 r., a cada uma aguilhada; e, por isso, os colonos pagarão a proporção do número de aguilhadas, que tiverem no paul. &. 35º No segundo caso (&. 34º) suponhamos que o foro é de 30.000 r.: sendo neste caso 30.000, 600.000, a 20 r. dividir-se-á 600.000 restam

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598.500; a quota parte de quem receber o dízimo será 598.500/10, quero dizer 59,580 r., que subtraídos de 598.500 restam 538.650, a qual quantia deve pertencer ao proprietário. No 3º caso (&. 24º) deve pertencer a quem receber o dízimo 60.000 r., e o resto já são 540.000 ao Senhorio. Os dois últimos casos entre nós são raros. &. 36º Finalmente, se os senhorios não se atreverem ou não quiserem empreender as obras necessárias para o esgotamento e cultura dos seus pauis deverão ser compelidos admitir de si o domínio senhorial a favor de quem se obrigasse a cultivá-los com algum módico reconhecimento, ou enfim sejam obrigados a vendê-los para se cultivarem, pois desta forma se tornariam os pauis úteis, a quem os comprasse, e ao público, e sendo incultos são prejudiciais ao público, e inúteis ao seu dono. III – ANEXOS

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IV – RESENHAS

REVIEW ESSAYS BARROS, José D’Assunção. Teoria da História – 4 volumes Petrópolis: Editora Vozes, 2011. 319 p.; 246 p.; 328 p.; 447 p. Monike Garcia Ribeiro 1

Teoria da História, em quatro volumes, é o título da coleção que acaba de ser publicada por José D’Assunção Barros, autor que já é conhecido na área de Teoria e Metodologia da História por alguns artigos e, sobretudo, por dois livros anteriormente publicados pela EditoraVozes: O Campo da História (7ª edição) e O Projeto de Pesquisa em História (7ª edição). Assim como os livros anteriores, a nova coleção de livros pretende responder a demandas importantes do ensino de graduação e pós-graduação, no que concerne à área de Teoria e Metodologia da História. Trata-se de oferecer ao público, e particularmente ao leitor especializado ao qual se dirige, textos que primem por uma linguagem clara e acessível, mas sem sacrificar a complexidade exigida pelos objetos da historiografia. A obra se organiza em quatro volumes. Pode-se dizer que os três primeiros volumes apresentam conteúdos já clássicos de Teoria da História – tais como a discussão dos conceitos pertinentes à área ou à apresentação dos grandes paradigmas historiográficos – enquanto o último volume surpreende pela proposta de uma nova abordagem, ainda experimental, que traz a novidade de buscar enxergar a complexidade da historiografia através de uma imaginação musical. O primeiro volume da coleção – intitulado Teoria da História: Princípios e Conceitos Fundamentais – parte da ideia de que a Teoria da His1 – Doutoranda e bolstista (CAPES) do Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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tória e a Metodologia da História são as duas dimensões fundamentais para a formação do Historiador, bem como para a sustentação de qualquer pesquisa histórica dentro dos quadros atuais de exigências deste âmbito profissional e do campo disciplinar da historiografia. Neste sentido, o contraste entre Teoria e Metodologia, buscando esclarecer o que pertence a um âmbito e a outro, é um dos pontos importantes do volume, que busca também discutir o que é Teoria da História, em que aspectos as ‘teorias da história’ se diferenciam das ‘filosofias da história’, e de que elementos se constitui a ‘matriz disciplinar da História’ nos dias de hoje. Conceitos como o de ‘paradigma’, ‘escola histórica’, ‘campo histórico’ são discutidos em profundidade, preparando o estudo que se desdobra nos demais volumes da coleção. Ao mesmo tempo, o autor discorre sobre algumas questões fundamentais para se pensar a Teoria da História, nos dias de hoje. Quais são limites entre a ‘liberdade teórica’ e as imposições da ‘coerência teórica’, nos atuais quadros do desenvolvimento historiográfico? Como se pode aplicar o princípio da historicidade à própria Teoria da História? Será a História uma Ciência, e exclusivamente uma Ciência, ou o conhecimento historiográfico também deve ser pensado nos termos de uma dimensão estética, discursiva, ou mesmo artística? Os volumes II e III da coleção avançam para a discussão de questões mais específicas, algumas das quais envolvendo também a própria história da historiografia. Quais os grandes paradigmas historiográficos que, ontem e hoje, se colocam à disposição dos historiadores? Quais as características essenciais do Positivismo, do Historicismo, do Materialismo Histórico, dos modelos historiográficos relativistas? Uma classificação das produções historiográficas em termos de paradigmas será suficiente para compreender em toda a complexidade um pensamento historiográfico? Estas são algumas das questões que o autor percorre nestes dois volumes. Trazer uma discussão atualizada acerca dos paradigmas Positivista e Historicista é a proposta do volume II – Teoria da História – os primeiros paradigmas: Positivismo e Historicismo. Trata-se não apenas de examinar estes paradigmas do ponto de vista de uma história da historio-

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grafia, como também de dar a perceber quais podem ser as contribuições desses paradigmas para a historiografia contemporânea. Para além desta discussão historiográfica, que estabelece um contraste entre os paradigmas Positivista e Historicista, a grande questão que atravessa o volume é a da relação entre Objetividade e Subjetividade na construção do conhecimento histórico, de modo que também são examinadas algumas correntes relativistas da historiografia que aprofundam a reflexão sobre a relatividade historiográfica encaminhada por alguns setores do Historicismo. Além disso, o volume se abre com uma discussão sobre a refundação da História como conhecimento científico, na passagem do século XVIII ao século XIX, e, para tal, o autor optou por desenvolver também uma digressão inicial sobre os modos como se pensava a História antes de que a historiografia ocidental passasse a se revestir de uma intenção bastante clara de cientificidade. O terceiro volume – Paradigmas Revolucionários – dedica-se a discorrer sobre os outros dois paradigmas que surgem ainda no século XIX. Em um primeiro capítulo o autor apresenta o Materialismo Histórico, discutindo nas suas várias nuanças, e através de diversos autores, questões como a dialética, o conceito de modo de produção, os posicionamentos diante da noção de determinismo histórico, as definições de ‘classe social’ e sua articulação com a ‘luta de classes’. Trata-se de mostrar como o Materialismo Histórico se desenvolveu em múltiplas direções, desde o século XIX, e sobretudo no decorrer do século XX. A segunda parte do volume aborda o que o autor denominou “Paradigma da Descontinuidade”, partindo das críticas de Nietzsche às noções de progresso e finalismo, e chegando às propostas de Michel Foucault. Se os três primeiros volumes da coleção Teoria da História oferecem um conteúdo já tradicional no estudo da Teoria e Metodologia da História, já o quarto volume da série – que foi chamado de Acordes Historiográficos: uma nova proposta para a Teoria da História – é francamente inovador. A experiência proposta por José D’Assunção Barros é a de entender a complexidade da historiografia e da teoria da história a partir de uma imaginação musical, trabalhando mais especificamente com a metáfora R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (451):361-365, abr./jun. 2011

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do “Acorde Teórico”. Partindo desta nova proposta de análise que é a de conceber a complexidade de um pensamento autoral através da metáfora do acorde, o livro examina, sucessivamente, o pensamento de alguns historiadores e filósofos da história, tais como: Walter Benjamin, Ranke, Droysen, Max Weber, Paul Ricoeur, Koselleck e Karl Marx. A proposta de operacionalização do conceito de “acorde teórico” (que, segundo o autor, pode ser utilizado também para a análise de pensamentos filosóficos, sociológicos, antropológicos, ou autorais de modo geral) ou de “acorde historiográfico” (mais especificamente referente aos pensamentos sobre a História) é introduzida por um capítulo no qual é discutida a abordagem, e que precede as diversas análises específicas que são desenvolvidas com esta nova perspectiva. Conforme ressalta Barros, um acorde, na Música, é um som formado por diversos outros sons (as notas musicais), que, interagindo mutuamente, terminam por produzir um novo resultado sonoro. A ideia básica do livro de José D’Assunção Barros é comparar a complexidade autoral de historiadores e filósofos da história a acordes musicais complexos. Um autor, mesmo que apresente uma base de pensamento bem identificada com um dos paradigmas tradicionais ou com as diversas correntes do pensamento historiográfico, pode apresentar em sua identidade teórica diversas outras influências autorais (que o autor chama de ‘notas de influência’), ou características diversas que se tornam tão importantes para a sua singularidade teórica como o pertencimento a determinado paradigma. Assim, na identidade teórica de um pensador como Karl Marx existiriam muitas notas para além daquelas que poderiam ser caracterizadas como inerentes ao paradigma do Materialismo Histórico – que ele mesmo, aliás, ajudou a fundar com Engels. Isso ajudaria a perceber o que, no pensamento de Marx, é desdobramento de sua inserção no campo paradigmático do Materialismo Histórico, e o que seria já específico de Marx. A utilização da metáfora do acorde para compreender pensamentos autorais também possibilita entender pensamentos autorais em movimento, através das diversas obras ou fases de um mesmo autor.

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A inovação teórica proposta por José D’Assunção Barros neste último volume de sua série – certamente produto da dupla formação do autor, que além de historiador é também músico – deve ser saudada como uma tentativa de enxergar os tradicionais objetos da historiografia de uma nova maneira, de modo a resolver impasses que aparecem quando simplesmente nos limitamos a situar um autor dentro deste ou daquele paradigma. A coleção, a entender pela apresentação do próprio autor, ainda não está concluída. No prefácio da série, registra-se o plano de completar a coleção com mais dois volumes, discutindo a historiografia contemporânea, inclusive a mais recente, através dos conceitos de “escolas históricas” e “campos históricos”. O sexto volume, conforme a planificação do autor, retornará ao âmbito dos conceitos operacionais para a historiografia, discutindo temas como o Tempo, o Espaço, a Memória, bem como o uso de hipóteses na História-Problema. Texto apresentado em dezembro /2010. Aprovado para publicação em janeiro /2011.

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A Serra e a Cidade: O Triângulo Dourado do Regionalismo.

ROCHA TRINDADE, Maria Beatriz. A Serra e a Cidade: O Triângulo Dourado do Regionalismo. Fotos de Jorge Barros, prefácio do Prof. João Alves das Neves. Lisboa: Ed. Âncora, 2009, p. 144. Carlos Francisco Moura 1

A Prof.a Maria Beatriz Rocha Trindade é uma pessoa admirável. Socióloga, doutorada pela Universidade de Paris V (Sorbonne), Catedrática da Universidade Aberta, de Lisboa, ela foi a introdutora, em Portugal, do ensino da Sociologia das Migrações, faz parte de várias instituições científicas nacionais e internacionais, e é autora de vasta obra que abrange os temas de migração entre Portugal e Brasil, comunidade chinesa em Portugal, interculturalidade, museologia, festas regionais. Junte-se à capacidade intelectual, um dinamismo e um entusiasmo difíceis de encontrar, e temos a razão de ela ser detentora de vários títulos, entre eles o de Chevalier, da Ordre du Mérite, da França, e o de Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública, de Portugal. Sua mais recente publicação intitula-se A Serra e a Cidade, e o subtítulo “O Triângulo Dourado do Regionalismo” refere-se aos três concelhos que são objeto do estudo: o Conselho de Arganil, o de Góis e o de Pampilhosa da Serra. Situados na Cordilheira Central, nas faldas da Serra do Açor, ecologia, situação econômica e social figuram “entre as mais desfavoráveis do país”, mas esses concelhos “mesmo assim, pela iniciativa das suas gentes, têm conseguido sobreviver e progredir, em muitos aspectos”. As pesquisas e levantamentos foram feitos in loco: “palmilharam-se caminhos e veredas, trepou-se pelo íngrime das encostas, vislumbraram-se cristas e vales, bosques e penedias, terras arroteadas e matagais”. A beleza agreste da Serra do Açor, que “pode ser um regalo para os olhos de quem aprecia a natureza”, contrasta com os problemas que seus 1 –1Sócio correspondente estrangeiro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Carlos Francisco Moura

habitantes enfrentam, como a falta de “redes de saneamento, de abastecimento de energia, de transportes e de comunicações, hospitais, escolas, infantários e asilos”. Essas carências, e a falta de oportunidades de trabalho, forçaram a uma progressiva migração, principalmente para Lisboa e arredores, mas também para o exterior. O decréscimo da população nos três concelhos é documentado estatisticamente. Em Lisboa os serranos foram exercer os ofícios mais humildes, e, depois de estabelecidos, chamavam parentes e amigos para trabalhar juntos, ou para encaminhá-los a outros empregos. Muitos progrediram e se tornaram grandes empreendedores. Mas não perderam a ligação com a terra de origem, que visitam periodicamente por ocasião das festas e comemorações locais. As vicissitudes desses deslocamentos são estudadas no capítulo “História de uma Migração Interna”. No Capítulo “O Associativismo Regionalista”, que tem como subtítulo “O Regionalismo: Primeiro Organizado, Depois Instituído”, a Dr.a  Maria Beatriz descreve a admirável rede de solidariedade que se foi formando, espontaneamente, na Serra. Quase não há localidade sem associação, seja Comissão de Melhoramentos, União, Clube, Grupo, Liga. Não só as freguesias, como os menores lugares, contam com essas associações. O Concelho de Argamil engloba 18 freguesias e tem 60 associações. O de Góis, 5 freguesias e 50 associações, e o de Pampilhosa da Serra, 10 freguesias e 63 associações. Além das associações que pontilham a serra, os Regionalistas criavam, em Lisboa, a  Casa da Comarca de Argamil. Para evitar dúvidas a Dr.a  Maria Beatriz explicita a distinção entre Regionalização e Regionalismo.A Regionalização constitui a divisão do País em Regiões Administrativas, estabelecida governamentalmente. Está

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A Serra e a Cidade: O Triângulo Dourado do Regionalismo.

prevista na Constituição Portuguesa, mas foi rejeitada em referendo realizado em 1998. Quanto a Regionalismo, “nada tem a ver com a criação de Regiões Administrativas ou com a organização dos poderes do Estado”. É “um sentimento que resulta da iniciativa civil, logo, de natureza estritamente não-governamental”. Os eventos regionalistas, as pontes de solidariedade entre a Cidade e a Serra, os pioneiros “Pais do Regionalismo”, também mereceram a atenção da Dr.a Maria Beatriz. E o livro termina com O Futuro do Regionalismo, e com Uma lufada de ar fresco, que é um hino de louvor ao Regionalismo das gentes da Serra do Açor. “O milagre do Regionalismo protegeu-os do trauma do afastamento físico das origens e impediu que pudesse instalar-se neles o egoísmo do presente ou o esquecimento do passado”, e “Os Regionalistas da Serra construíram e deram à luz uma forma modelar de iniciativa da sociedade civil, sem por isso menosprezar o poder do Estado, não são súbditos ou servos – são parceiros de direito pleno”. O livro tem ainda a valorizá-lo belas fotografias de Jorge Barros e  um importante prefácio do Prof. João Alves das Neves, um dos principais Regionalistas da Serra do Açor. Texto apresentado em outubro /2009. Aprovado para publicação em novembro /2009.

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Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro INSTRUÇÕES AOS AUTORES

1. A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro é uma publicação de caráter cientifico, voltada para a difusão do conhecimento histórico, assim como de outras disciplinas e áreas afins, no âmbito dos estudos brasileiros. Recebe contribuições em fluxo contínuo, a saber: artigos e ensaios, resenhas, comunicações, notas de pesquisa, bem como documentos de valor histórico acompanhados de comentários críticos. A Revista pode ainda publicar dossiês temáticos ou seletivos, elaborados por especialistas nacionais e/ou estrangeiros. 2. Os órgãos de gestão da Revista são o Conselho Editorial, o Conselho Consultivo e a Comissão de Redação. 3. É de responsabilidade do Conselho Consultivo a elaboração de pareceres sobre as contribuições submetidas para fins de publicação, podendo ainda o Conselho Editorial ou a Comissão de Redação submeter-lhe outros assuntos de interesse da Revista. 4. A publicação de toda e qualquer colaboração dependerá da observância das Normas Editoriais e da avaliação do Conselho Editorial, da Comissão da Revista e/ou assessores ad hoc. Os artigos são submetidos a dois pareceristas, sempre solicitados a manifestar eventual impedimento, que obste a emissão do respectivo parecer. Havendo julgamentos divergentes, o editor enviará o trabalho a um terceiro avaliador. Todos os pareceres têm caráter sigiloso. 5. Os conceitos emitidos nos trabalhos editados são de inteira responsabilidade dos autores. 6. Os textos serão publicados mediante cessão, pelos autores, de direito de publicação concedido à Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tanto por meio impresso quanto eletrônico. 7. A Revista privilegia os seguintes tipos de contribuições:

7.1. Artigos: textos analíticos ou ensaísticos resultantes de estudos e pesquisas concernentes a temas de interesse para a R.IHGB. (até dez mil palavras). 7.2. Comunicações: intervenções realizadas por sócios ou convidados nas sessões do IHGB (até quatro mil palavras). 7.3. Notas de Pesquisa: relatos preliminares e resultados parciais de investigações em curso (até cinco mil palavras). 7.4. Documentos: fontes históricas, de preferência inéditas ou que receberam tratamento recente (até dez mil palavras). 7.5. Resenhas críticas, balanços bibliográficos, bibliografias temáticas, seletivas ou comentadas (até duas mil palavras, sem necessidade de resumo e/ou abstract).

NORMAS EDITORIAIS • •

As contribuições deverão ser inéditas e destinar-se exclusivamente à R.IHGB, escritos em português, inglês, francês, espanhol ou italiano. Exceto os trabalhos dirigidos à seção Bibliografia, os autores deverão, obrigatoriamente, apresentar títulos e resumos nos idiomas português e inglês, independentemente do idioma do texto original, e caso este não esteja em português ou inglês, acrescentar resumo na língua original, não podendo ultrapassar 250 (duzentos e cinqüenta) palavras, seguidas das palavras-chave, mínimo 3 (três) e máximo de 6 (seis), representativas do conteúdo do trabalho, também em português e inglês, e no idioma original quando for o caso.

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Documentos enviados para publicação devem estar transcritos e assinalados o códice ou indicação arquivística equivalente de onde foram copiados, acompanhados de uma introdução explicativa. A Revista reserva-se a oportunidade de publicação de acordo com o seu cronograma ou interesse, notificando o autor a aprovação do mesmo ou a negativa para a publicação. Não serão devolvidos originais. No caso de aprovação para publicação, o autor terá quinze dias para a devolução do termo de autorização, contados da data de envio da correspondência pela R.IHGB. Os autores receberão 10 volumes da revista quando publicada sob os auspícios da Gráfica do Senado Federal.

APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS •

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Digitação original em disquete de alta densidade ou CD, devidamente identificado com o título do trabalho e nome (s) do (s) autor (es), e três cópias impressas, inclusive tabelas e referências; em formato A4, margens 2,5cm, entrelinha de 1,5cm, em uma só face do papel, fonte Times New Roman corpo 12, e numeração consecutiva. Deverá ser utilizado o editor de texto Microsoft Word ou compatível. Caso haja imagens, identificar no texto os locais das figuras ou outras formas de ilustração. Ilustrações e legendas devem ser relacionadas em folhas separadas. As imagens deverão ser escaneadas em 300 dpi no formato jpg e dimensionadas no formato de aproximadamente 5 x 5 cm; Página de rosto: todo artigo deverá ter uma página de rosto com o título, nome completo do autor e instituição de origem. O rodapé da página deverá mencionar o endereço completo e o e-mail do autor, a quem se encaminhará a correspondência. Somente nesta página constará a identificação do autor, para fins de sigilo. As traduções, de preferência inéditas, deverão estar acompanhadas de autorização do autor e do respectivo original do texto. As notas deverão ser colocadas em rodapé e a bibliografia no final dos trabalhos. Ambas devem obedecer às normas ABNT. As principais diretrizes são as seguintes: Livro: SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, nnp. Capítulo ou parte de livro: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome. Título do livro: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. nn-nn. Artigo em periódico: SOBRENOME, nome. Título do artigo. Título do periódico, Cidade: Editora, v. nn, n.nn, p. nn-nn, ano. Trabalho acadêmico: SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo. Tese (Doutorado em...)- Instituição. Cidade, ano, nnnp. Texto obtido na internet: SOBRENOME, Nome. Título. Data (se houver). Disponível em: www...... Acesso em: dd.mm.aa.

Somente serão aceitos os trabalhos encaminhados de acordo com as normas acima definidas. Endereço para correspondência: Revista do IHGB/IHGB Avenida Augusto Severo, 8 – 10º andar – Glória 20021-040 – Rio de Janeiro – RJ E-mail: [email protected]

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro GUIDE FOR THE AUTHORS

1. The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro is a scientific publication, focusing on historical knowledge diffusion, as well as other subjects and related areas, in the scope of Brazilian Studies. It receives contributions, such as: articles, essays, notifications, review essays, research notes, as well as documents of historical value with critical comments. It can also publish thematic and selective dossier, organized by Brazilian and foreign specialists. 2. The management organs of the Revista are the Editorial Board, the Advisory Board and Editorial Committee. 3. The Advisory Board is responsible for the evaluation about the contributions submitted for publication. 4. The publication of each and every collaboration will depend on the editorial rules compliance and the evaluation of the Editorial Board, the Editorial Committee and/or advisors ad hoc. The articles are submitted to two reviewers who are always asked to express any impediment that precludes the issuance of the respective feedback. In case of conflicting judgments, the editor will send the text to a third appraiser. All feedbacks are confidential. 5. The concepts expressed in works published are entirely the authors’ responsibility. 6. The texts will be published through the authors’ cession of publication copyright given to the Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, both through print and electronic. 7. The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publish the following kinds of contributions:

7.1. Articles: it includes analytical texts or essays which are resultant of studies and researches concerning the themes that are interesting to the R.IHGB. (up to ten thousand words). 7.2. Notifications: is destined to the publication of brief interventions, made by partners or guests in the sessions of the IHGB (up to four thousand words). 7.3. Research Notes: it focuses on preliminary reports and partial results of ongoing investigations (up to five thousand words). 7.4. Documents: it publishes sources, preferably unpublished or the ones which have been improved recently (up to ten thousand words). 7.5. Bibliography: besides the publication of review essays, bibliographic balances, thematic, selective and commented bibliographies are emphasized, (up to two thousand words, summary and/or abstract are not necessary).

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The contributions must be unpublished and exclusively written to R.IHGB, in Portuguese, English, French, Spanish or Italian. Except works addressed to bibliography section, the authors must, mandatorily, present titles and abstracts in Portuguese and English, independently of the language of the original text. If it is not in Portuguese or English, it will be necessary to add the abstract in the original language as well. The abstract cannot have more than 250 (two hundred and fifty) words, followed by the keywords, minimum 3 (three) and maximum 6 (six), in English and Portuguese, representing the content of the work. Documents sent to publication have to be transcribed and have the codex or archival indication from where they were copied, followed by an explanatory introduction. The R. IHGB limits the opportunity of publication according to its schedule and interest, notifying the

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approval or disapproval of the publication to the author. The original texts will not be returned. If the contribution is approved, the author will have fifteen days to give the authorization term back, from the date R.IHGB has posted it . The authors will receive 10 volumes of the Revista when the publication is supported by the Gráfica do Senado Federal.

TEXTS PRESENTATION •

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Original typing in high density disk or CD, properly identified with the title of the text and name(s) of the author(s), and three printed copies, including tables and references; in format A4, margins 2,5cm, space between lines 1,5cm, on one side of the paper, font Times New Roman size 12, and consecutive numbering. The Microsoft Word text editor or a compatible one should be used. If there are images, identify in the text the places of the pictures and other types of illustration. Illustrations and captions have to be put in separate sheets of paper. The images have to be scanned in 300 dpi in format jpg and approximately dimensioned in format 5 x 5 cm; Front page: all the articles should have a front page with the title, the author’s whole name and the institution they come from. The footnote has to mention the complete address and e-mail of the author, to whom the mail will be sent. Only on this page the author’s identification will appear, for the secrecy. The translations, preferably unpublished, should have the author’s authorization and the respective original text. The notes should be put in the footnote and the bibliography at the end of the texts. Both have to follow ABNT standard. Norms for presenting footnotes: Books: LAST NAME, First Name. Title of the book in italics: subtitle. Translation. Edition. City: Publisher, year, p. or pp. Chapters: LAST NAME, First Name. Title of the chapter. In: LAST NAME, First Name (ed.). Title of the book in italics: subtitle. Edition. City: Publisher, year, p. nn-nn. Article: LAST NAME, First Name. Title of the article. Title of the jounal in italics. City: Publisher. Vol., n., p. x-y, year. Thesis: LAST NAME, First Name. Title of the thesis in italics: subtitle. Thesis (PhD in …..) Institution. City, year, p. nn-nn. Internet: LAST NAME, First Name. Title. Available at: www….., consulted dd.mm.yy.

Only the texts presented accordingly to the rules defined above will be accepted.

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ESTA OBRA FOI IMPRESSA PELA GRÁFICA DO SENADO, BRASÍLIA/DF, EM 2011, COM UMA TIRAGEM DE 700 EXEMPLARES

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