Carlos Drummond de Andrade: Nenhum canto radioso?

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: NENHUM CANTO RADIOSO?

Mariana Quadros Pinheiro

2014

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: NENHUM CANTO RADIOSO?

Mariana Quadros Pinheiro

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como quesito para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientador: Prof. Dr. João Camillo Barros de Oliveira Penna

Rio de Janeiro Fevereiro de 2014

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: NENHUM CANTO RADIOSO? Mariana Quadros Pinheiro Orientador: João Camillo Barros de Oliveira Penna Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Examinada por: ___________________________________ Presidente, Prof. Dr. João Camillo Barros de Oliveira Penna ___________________________________ Prof. Dr. Marcelo Diniz Martins, PPG Ciência da Literatura – UFRJ ___________________________________ Prof. Dr. Eucanaã de Nazareno Ferraz, PPG Letras Vernáculas – UFRJ ___________________________________ Profa. Dra. Betina Bischof – PPG Teoria Literária e Literatura Comparada – USP ___________________________________ Prof. Dr. José Miguel Soares Wisnik – PPG Letras Clássicas e Vernáculas – USP ___________________________________ Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza – PPG Ciência da Literatura – UFRJ, Suplente ___________________________________ Prof. Dr. Eduardo dos Santos Coelho – Departamento de Letras Vernáculas – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro Fevereiro de 2014

PINHEIRO, Mariana Quadros. Carlos Drummond de Andrade: nenhum canto radioso?/ Mariana Quadros Pinheiro. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2014. xiii, 236f.; 31cm. Orientador: João Camillo Barros de Oliveira Penna Tese (Doutorado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2014. Referências Bibliográficas: f. 250-257 1. Carlos Drummond de Andrade 2. O amor natural 3. Literatura brasileira moderna. I. PENNA, João Camillo Barros de Oliveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Título.

A meu pai, que gostaria de ter visto esta tese pronta.

AGRADECIMENTOS a João Camillo Penna, pelas lições de integridade intelectual. a Betina Bischof, Eucanaã Ferraz, José Miguel Wisnik e Marcelo Diniz, pela leitura cuidadosa desta tese e pelos comentários enriquecedores. A Betina e a Eucanaã, um novo agradecimento pelas sugestões precisas no exame de Qualificação, sem as quais este trabalho teria outros rumos. a Armando, pela leitura generosa deste texto e pela amizade constante, alegria e descanso em meio à loucura. a Irene, Cristina e Karina, por haverem me permitido roubar um pouco de tempo às aulas para eu escrever este trabalho. a meu pai, que tanto se mostrou ansioso por me ver concluir o doutorado, sem ter tido tempo de acompanhar o fim deste trajeto. a minha mãe e a minha irmã, por haverem cedido a esta tese as horas em que poderíamos ter trabalhado o luto juntas. a Cremilda, por doar parte do tempo que resta para conhecer este percurso. a Deyse e Airton, pelo estímulo de sempre. a Marcelo Diniz, professor primeiro, pelas lições iniciais e pelo diálogo valioso. a Cassiana, Heleine e Milla, com quem pude compartilhar as angústias e as alegrias deste percurso. a Ana Cristina, Antonio, Bruno, Irene, Luciano, Joana, Marcelle, Mariana, Marina, Pedro, Roberto e Thiago, pelo riso. a Gustavo, por dar sentido a estas leituras.

Esta pesquisa foi desenvolvida com o apoio da Capes.

RESUMO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: NENHUM CANTO RADIOSO? Mariana Quadros Pinheiro

Orientador: João Camillo Penna Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura.

Este trabalho tem o objetivo de investigar a interação de O amor natural com o conjunto da obra poética de Carlos Drummond de Andrade. Tendo em vista que, conforme expôs a pesquisa no acervo pessoal do escritor e em alguns arquivos públicos, a poesia erótica atravessou grande parte da produção literária drummondiana, defendemos que o volume pode iluminar importantes aspectos não apenas da escrita das últimas décadas. O amor natural parece revelar traços pouco explorados do legado do autor. Mais do que isso, a coletânea pode ratificar o caráter implacavelmente contestador de toda a literatura de Drummond. Essa hipótese faz com que as leituras apresentadas nesta tese raras vezes se restrinjam aos versos veiculados em livro em 1992, mas interroguem problemas fundamentais da obra poética drummondiana: a luta com a palavra, a posição do sujeito frente a um mundo em desconcerto, as preocupações públicas. Pretendemos revelar que, sob a aparente relação feliz com a linguagem, subsiste o embate com as palavras; junto à evasão feliz dos amantes se delineia a escuridão do mundo fora do quarto; a alegada recusa ao engajamento político se funda em uma leitura lúcida do mundo. Esperamos, assim, iluminar a riqueza e a força crítica dos versos eróticos de Carlos Drummond de Andrade.

Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade – O amor natural – erotismo – literatura brasileira moderna

Rio de Janeiro Fevereiro de 2014

ABSTRACT CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: NENHUM CANTO RADIOSO? Mariana Quadros Pinheiro Orientador: João Camillo Penna Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura.

This work aims to investigate the interaction between O amor natural and the complete poetical works of Carlos Drummond de Andrade. Considering that, as revealed by research in the writer’s personal archives and in some public archives, erotic poetry permeates a great part of Drummond’s literary production, we defend that the book can illuminate important aspects not limited to that of his writing over the last decades. Moreover, it can confirm the relentlessly oppositional character of Drummond's literature as whole. This hypothesis extends the interpretations contained in this thesis beyond the verses published in book form in 1992, interrogating fundamental issues present in the writer’s poetry: the struggle with words, one's place in a world in dismay, political concerns. We intend to reveal how, under the apparently happy relationship with language, a clash with words subsists; how, along with the happy evasion of the lovers, the darkness of the world is delineated outside the bedroom; how the alleged refusal of political engagement is based on a lucid interpretation of the world. We hope, in this way, to enlighten the richness and critical force of Carlos Drummond de Andrade’s erotic verses.

Key-words: eroticism – Brazilian modern poetry – Carlos Drummond de Andrade

Rio de Janeiro Fevereiro de 2014

SINOPSE

Leitura dos poemas de O amor natural tendo em vista sua inserção no conjunto da obra poética drummondiana. Revisão das contribuições de Carlos Drummond de Andrade para o modernismo brasileiro e de sua leitura dos desdobramentos do movimento na segunda metade do século XX. Considerações acerca da crítica da história brasileira por Drummond e de sua importância para a escrita erótica do autor.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO – Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe? ............................ 14 1 PALAVRAS IMPUBLICÁVEIS ............................................................................... 23 1.1 NU ARTÍSTICO ...................................................................................................... 26 1.2 NOTÍCIAS DO CORPO ......................................................................................... 43 1.3 PALAVRA ESSENCIAL ........................................................................................ 63 1.4 A LÍNGUA LAVRA ............................................................................................... 90 2 NA PAZ DE OUTRO HORTO .................................................................................. 92 2.1 ENTRE AS COXAS UM DEUS ............................................................................. 94 2.2 TANTA NUDEZ ME DEIXA NAUFRAGADO .................................................. 114 2.3 UM RELÓGIO DE NÃO MARCAR HORAS ..................................................... 129 2.4 NUNCA É TRÁGICA ........................................................................................... 143 2.5 FORA DESTE MUNDO ....................................................................................... 154 3 PENSANDO NOS OUTROS HOMENS ................................................................. 156 3.1 OUTRO PARTIDO ............................................................................................... 159 3.2 SOMENTE A ROSA CRISPADA ........................................................................ 172 3.3 A RUA DIFERENTE ............................................................................................ 182 3.4 SOBRE OS ESCOMBROS DA OBRA ................................................................ 198 4 A CARNE É TRISTE ............................................................................................... 201 4.1 ABRE-QUE-FECHA-QUE-FOGE ....................................................................... 203 4.2 ABSTINÊNCIA E DEPRESSÃO ......................................................................... 224 4.3 ENCANTOS FURTIVOS ..................................................................................... 236 4.4 E SE CERRAVA ................................................................................................... 242

CONSIDERAÇÕES FINAIS – Agora vou-me. Ou me vão? ..................................... 245 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 250 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ............................................................................. 258 ANEXOS ..................................................................................................................... 265

NOTA EXPLICATIVA Os textos em prosa de Carlos Drummond de Andrade são citados a partir da Prosa seleta, salvo quando não foram incluídos nessa edição. Os poemas publicados de Alguma poesia a Lição de coisas foram colhidos na edição crítica organizada por Júlio Castañon Guimarães. Os demais seguem a Poesia completa. Possíveis dúvidas foram dirimidas a partir das edições preparadas pela Record. Foram adotadas as seguintes abreviações para os livros de poemas de Carlos Drummond de Andrade: Alguma poesia (AP) Brejo das Almas (BA) Sentimento do mundo (SM) José (Jo) A rosa do povo (RP) Novos poemas (NP) Claro enigma (CE) Viola de bolso (VB) Fazendeiro do ar (FA) A vida passada a limpo (VPL) Lição de coisas (LC) Versiprosa (Ve) Boitempo (Bo) A falta que ama (FQA) As impurezas do branco (IB) Discurso de primavera e algumas sombras (DP) A paixão medida (PM) Corpo (Co) Amar se aprende amando (AAA) Poesia errante (PE) O amor natural (AN) Farewell (Fa)

INTRODUÇÃO – Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe? O que primeiro me chamou atenção na poesia erótica de Carlos Drummond de Andrade não foram os poemas de O amor natural. Instigou-me inicialmente um trecho de carta, lida ao acaso, durante pesquisa em 2009 no acervo do autor. Não pensava ainda em realizar esta tese. A atividade no arquivo era uma de minhas tarefas como assistente de pesquisa em um projeto acerca do escritor, o Projeto Memória. Dedicavame então à leitura daquela que é talvez a mais extensa correspondência preservada por Carlos Drummond: a epistolografia trocada com Abgar Renault. Em meio aos muitos documentos consultados, em uma carta de 10 de janeiro de 1954, deparei-me com esta declaração: “A ideia da publicação en secret dos poemas eróticos foi posta de lado: iria desmoralizar-me até a décima geração. Imagine que a notícia chegou a ser publicada nos jornais!”.1 O drama sintetizado no trecho lacônico foi o ponto de partida das reflexões que desenvolverei nesta tese. Antes de mais nada, o excerto revelava a longevidade do problema, que se foi tornando público décadas mais tarde, conforme descreveremos a seguir. Além disso, a passagem inscrevia em um oxímoro as contradições da poesia erótica quando atraída para o espaço social: o escritor pretendeu divulgar os versos, tirálos de sua obscuridade; porém, no mesmo golpe, queria ocultá-los, mantê-los em segredo ou “en secret”, na expressão velada por outra língua. Nos anos 1980, quando as entrevistas concedidas por Carlos Drummond de Andrade já haviam se tornado frequentes, ele passou a recompor em suas declarações públicas o dilaceramento exposto na carta de 1954. De um lado, o escritor divulgou a temporalidade instável dos poemas obscenos, levando a crer que os versos inéditos haviam atravessado sua obra: “esses poemas abrangem uma faixa muito longa de vida, não são de hoje”, afirmou em entrevista de 1984.2 De outro, lançou luz para os textos sigilosos, anunciados como um segredo que ele levaria consigo ao morrer: “Não quis publicar até agora e hesito ainda em publicar – ou antes resolvi não publicar”, titubeou o escritor em entrevista dos anos 1980.3 1

Documento pertencente ao Arquivo Abgar Renault, preservado pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, da Fundação Casa de Rui Barbosa. 2 Um encontro de “Status” com gente muito importante. Status, n. 120, p. 28, jul. 1984. Entrevista concedida a Gilberto Mansur. 3 Entrevista concedida a Maria Lucia do Pazo Ferreira em 1984 e publicada em sua tese O erotismo nos poemas inéditos de Carlos Drummond de Andrade, defendida em 1992 na Escola de Comunicação da UFRJ. O trecho citado está na página 317 da tese. 14

No entanto, a destruição dos versos era desmentida por sua reprodução. Desde a década de setenta, textos eróticos esparsos vinham sendo veiculados pelo autor em edições de arte e em revistas voltadas para diferentes públicos. Esses documentos eram frequentemente lembrados nas mesmas entrevistas em que Carlos Drummond prometia fazer desaparecer o livro obsceno. Um exemplo dessa contradição é verificado na extensa conversa do escritor com Geneton Moraes Neto (2007, p. 32): “Mas publiquei cinco ou seis desses poemas em revistas. Um saiu no Correio Itabirano; um, numa revista de São Paulo; outro, numa revista no Rio”, declarou o poeta logo após garantir que não divulgaria em livro os textos eróticos. Portanto, nem todos os versos estavam fadados à morte quando Drummond sentenciou seu desaparecimento. Nas entrevistas, encontrei o reverso do paradoxo expresso na carta: nesta, o escritor anuncia uma contraditória publicação “en secret” para logo depois descartá-la; naquelas, promete a destruição do que entretanto recorda estar preservado por diferentes periódicos. Diante da diversificação do conflito, tentei formular uma primeira hipótese para o problema do erotismo poético, estabelecendo um arco entre o dilaceramento registrado em diferentes décadas. A respeito do projeto abortado nos anos 1950, cheguei a esta formulação: a publicação restrita talvez permitisse violar o ocultamento dos versos sem infringir seu caráter marginal, foco do prazer transgressivo. Dessa forma, a veiculação dos poemas reproduziria o presumível conteúdo transgressor dos versos. Por outro lado, o anúncio da edição secreta nos jornais inviabilizava a manutenção da face subterrânea daquela escrita. Vi nas publicações esparsas dos anos 1970 e 1980 a realização do plano de dar aos textos uma permanência permeada pelo velamento: as revistas masculinas, perecíveis, e as edições de arte, raras, seriam resguardadas somente por alguns colecionadores ou por arquivos e bibliotecas. Transgredia-se, assim, a morte decretada para os textos sem lhes garantir uma vida pública ampla. Contíguos às páginas voltadas ao consumo do sexo ou em volumes de luxo, os versos teriam um fim próximo ao da matéria de que tratavam: assim como o efêmero êxtase, o gozo dos poemas seria tanto mais intenso quanto os leitores (o autor aí incluído) conhecessem a perecibilidade ou a raridade do material em suas mãos. A hipótese poderia ser validada pela não publicação da coletânea até o momento da morte do poeta. A edição póstuma viria violentar o drama do erotismo drummondiano. Contudo, a pesquisa mostrou ser o problema mais complexo. O escritor entregara a alguns amigos e familiares cópias do conjunto de poemas. Desse modo, ele 15

legava a outrem a decisão acerca da divulgação ampla do material. Em 1985, afirmava que caberia à Maria Julieta dar a palavra final sobre a edição e admitia, rindo, que ela era favorável à produção do livro.4 Os netos do escritor, seus herdeiros, manteriam a posição. Pouco antes de falecer, Drummond parecia, pois, conhecer o destino de seus versos eróticos. Finalmente estava rompido o nó entre ocultamento e divulgação. Os poemas deixavam de ser um problema. A aporia abre novos caminhos, todavia. Se a edição póstuma expõe o erotismo, o escritor protege-se dele graças à morte. O homem ocultado pelo féretro já não pode ser ferido pela repercussão do livro, a lápide preservando-o de conhecer aquela desmoralização temida desde os anos 1950. Entretanto, a publicação após a morte do poeta não exauriu todos os perigos. Algo permaneceu vulnerável: o conjunto da obra drummondiana, uma vez que a coletânea foi veiculada quando Carlos Drummond não podia mais rebater possíveis críticas. Os versos eróticos ficavam assim suscetíveis aos mal-entendidos não previstos ou rebatidos durante a vida do autor. Poesia para a posteridade, O amor natural é o legado que o poeta não quis testemunhar. A partir desse drama, defini uma nova hipótese, em que restringia aos anos 1950 a ameaça à herança drummondiana pelo erotismo obsceno. Obsedava-me a ideia de que os versos de O amor natural poderiam se identificar àqueles anunciados na carta de 1954. Queria ter encontrado os manuscritos dos poemas. Dessa forma, poderia desenvolver a hipótese de que, tendo sido produzidos na década de 1950, os versos eróticos seriam um novo fruto da retração reconhecida na lírica do autor publicada em tal período. Nesse sentido, o erotismo seria a face solar do retraimento social estudado detalhadamente pela fortuna crítica mais atual de Drummond.5 Essa proposição podia ser confirmada pelas declarações do escritor na imprensa resumidas acima, especialmente por aquela que explicitava a temporalidade incerta dos poemas eróticos. Outras fontes pareceram comprovar a identidade entre a escrita erótica de outrora e aquela que veio à luz postumamente. Maria Lucia do Pazo Ferreira, pesquisadora a quem Drummond remeteu seus poemas eróticos inéditos, localiza a gênese dos textos nos anos 1940, em uma cronologia pouco definida: ora os textos são

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Informação divulgada na seguinte entrevista, concedida a Beatriz Bonfim: Drummond: o aprendizado pelo amor e outras poesias a caminho. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 07 abr. 1985. 5 Remetemos especialmente aos livros de Vagner Camilo (2000) e Betina Bischof (2005). 16

situados no pós-guerra, ora entre 1939 e 1945.6 Lygia Fernandes, amante do escritor ao longo de três décadas, é mais precisa: “Não posso provar porque, depois de batidos a máquina, os poemas eram picados e jogados no lixo, mas havia poemas de 1948.”7 Minha hipótese, baseada em declarações pessoais, era sedutora a ponto de cegarme. O documento íntimo, registro com ares de confidência, encanta por parecer um indício irrefutável: uma promessa de verdade imediata. No entanto, a historiografia fezme lembrar os riscos advindos da crença ingênua na autenticidade dos documentos. Estudiosos como Ângela de Castro Gomes, Philippe Artières e Cristophe Prochasson permitiram-me conceber que a manutenção de um arquivo pessoal, mesmo quando assistemática, participa de uma escrita da memória. Mais além, constitui as peças na defesa de um julgamento inconcluso, a ser prosseguido ainda após a morte do autor: O arquivamento do eu não é uma prática neutra; é muitas vezes a única ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como ele desejaria ser visto. Arquivar a própria vida é simbolicamente preparar o próprio processo: reunir as peças necessárias para a própria defesa, organizá-las para refutar a representação que os outros têm de nós. Arquivar a própria vida é desafiar a ordem das coisas: a justiça dos homens assim como o trabalho do tempo. (ARTIÈRES, 1998, p. 31)

Na tentativa de desafiar o julgamento dos homens, o arquivista busca legar um acervo que se possa crer independente de seu controle sobre os documentos preservados. De tal obscurecimento do domínio do autor sobre o arquivo depende o feitiço a ser oferecido ao público: um retrato excessivamente fiel, submisso, vitorioso sobre o tempo, pois faz valer a vontade do escritor mesmo quando sua vida é finda. Os estudos contemporâneos sobre arquivo possibilitaram que eu não ficasse cativa desse fascínio, levando-me a reconhecer a necessidade de chamar atenção para o gesto enunciativo que deu origem ao acervo legado. O avançar das pesquisas fez-me ver como

6

Na página 65 de sua tese (op. cit.), Maria Lucia do Pazo Ferreira afirma: “No após guerra – quando os poemas foram criados – a repressão da sexualidade ainda era vigorosa e a permissão de falar sobre o sexo, resumia-se ao discurso científico.” Na página 218, ela se contradiz: “Conquanto os poemas de O amor natural tenham abordado a feição erótica em diversas épocas – inclusive este ‘No pequeno museu sentimental’ evoque reminiscências do pastoril desde o helenismo – foi na virada do século XX que Drummond produziu esta obra, entre 1939 e 1945.” 7 Entrevista concedida por Lygia Fernandes a Geneton Moraes Neto (op. cit., p. 353). Com sua declaração, ela pretendia provar que os poemas não foram todos feitos em sua homenagem, mas apenas alguns dentre os produzidos após 1951, quando conheceu Carlos Drummond de Andrade. As possíveis motivações biográficas dos textos não serão, no entanto, tema central desta tese. 17

essa etapa seria fundamental para empreender uma leitura que não apenas se submetesse à história do erotismo drummondiano construída pelo autor em cartas ou nos jornais. No processamento dos poemas eróticos por Drummond, o escritor, Lygia Fernandes e Maria Lucia do Pazo Ferreira não são as testemunhas mais confiáveis: os primeiros por serem interessados; a última por conhecer acerca da origem dos textos somente o que lhe informou o escritor. Suas declarações não constituem, portanto, prova suficiente de que reencontremos em O amor natural os poemas eróticos drummondianos de meados do século XX. O problema foi se mostrando mais e mais complexo. O convívio com o material de arquivo impeliu-me a rever o sentido das declarações de Carlos Drummond de Andrade acerca de sua poesia erótica. Percebi ser excessivo propor que ele desejasse lançar luz sobre o projeto abortado em 1954 em suas declarações à imprensa. Significativamente, os indícios do volume secreto foram encontrados em documentos mantidos no acervo de outro escritor, sobre o qual a ingerência de Drummond era minimizada. As peças do processo de arquivamento fogem ao controle do autor. Em sua declaração, inexata – “esses poemas não são de hoje” –, Carlos Drummond apenas expandia a fenda aberta por sua escrita erótica. Além disso, os textos mencionados na carta a Abgar Renault aparentemente não foram conservados. Minha hipótese mostrava-se improvável. Tampouco seria possível comprovar sua falsidade, uma vez que ela partia de um vazio: não temos mais acesso ao erotismo de outrora. A edição póstuma coroa uma trajetória marcada pela mobilidade temporal, sem que isso constitua uma fraqueza que seja preciso superar a todo custo. Ao contrário, a indefinição é um traço que podemos explorar para fazer jus à importância dessa obra. A instabilidade confronta o marco temporal que vem sendo usado para definir o valor de parte da poesia de Carlos Drummond de Andrade. Em 1962, sua “figura de poeta estava completa”, segundo João Alexandre Barbosa (2002, p. 45). Os volumes publicados depois desse período seriam “desiguais e menos definidos que os livros marcantes do período em que nomearam a crista e o arco da história (1930-1962)”, defende Wisnik (2005, p. 24). Esse pesquisador, porém, não deixaria de notar que os livros editados após 1962 trazem “poemas e problemas que os estudos críticos parecem ter abordado pouco.” (idem, p. 24) Talvez essa omissão decorra mesmo de que se haja criado uma falsa totalidade a recusar os volumes produzidos na velhice do autor. O 18

amor natural estaria, por sua data de publicação, entre essas coletâneas. Todavia, a poesia obscena pode ter atravessado a obra de Carlos Drummond de Andrade. Levando isso em conta, seria adequado restringir a leitura dos textos de O amor natural ao momento cronológico em que foi publicado, em 1992, após a edição de Amar se aprende amando e antes de Farewell? Outras pesquisadoras do erotismo drummondiano já levantaram dúvida semelhante, embora restringissem o problema ao lugar instável do volume no seio dos livros publicados a partir dos anos 1970. Em estudo de 1987, Rita de Cássia Barbosa interrogou se alguns poemas originários de O amor natural não teriam sido deslocados para livros dos anos 1970 e 1980. A pergunta partiu da aposição, em publicações na imprensa, de poemas depois incluídos na edição póstuma a textos já divulgados em livros do período. A dúvida foi adensada pela observação da semelhança temática e formal entre alguns textos eróticos e outros de A paixão medida, Corpo e Amar se aprende amando. A estudiosa deixava aberta a questão, reforçando nossa hipótese sobre a instabilidade da coletânea no seio da obra de Carlos Drummond de Andrade. Alguns anos mais tarde, em livro de 1995, Mirella Vieira Lima propôs integrar a poesia obscena à poética drummondiana inaugurada em fins dos anos 1960 e desenvolvida na década seguinte com a divulgação dos volumes que comporiam Boitempo. Para esse cálculo, partiu de um exemplar único de O amor natural confiado em 1977 a José Mindlin e das publicações na imprensa e nas edições de arte, já mencionadas. Ao fazê-lo, ela ignorou os diversos confrontos que se podem estabelecer entre os versos lascivos e os textos editados no período em que se entregou a raridade ao bibliófilo: obliterou a distância a separar o dispêndio próprio ao erotismo e a reprodução das cadeias familiares apresentada em Boitempo; além disso, olvidou a diferença substancial entre a montagem dos poemas eróticos e aquela privilegiada nos livros que traçam uma narrativa biográfica. Por não reconhecer a dificuldade de datar os versos obscenos, o estudo de Vieira Lima não chega a confirmar a radical instabilidade de O amor natural. Apesar disso, novamente vemos um pesquisador frente ao problema lançado pela temporalidade estranha a que foi relegado o volume – após a morte, mas quando em vida? A biografia do livro é a tal ponto incerta que seria possível inverter o ponto de vista adotado pelas pesquisadoras. Teria o poeta direcionado sua escrita dos anos 1970 e 1980 para que o volume temido fosse mais bem assimilado? A pergunta, claro está, não tem resposta. Entretanto, ela evidencia a inadequação de pontos de vistas baseados em 19

marcos temporais quando se quer compreender O amor natural. Concebidos à margem, os poemas eróticos de Carlos Drummond estimulam uma leitura que não os encarcere nos limites da coletânea póstuma ou em uma “fase” da obra do autor, divisão de resto quase sempre questionável. Por isso, não pretendo definir a data dos textos. Ainda menos me importou ao fim encontrar os originais mencionados na carta de 1954. Interessa-me sobretudo compreender a interação desse volume insituável com o restante da poesia de Carlos Drummond de Andrade. Parece-me advir dessa relação grande parte do perigo constituído pela literatura obscena: vergonha, hesitação, adiamento inscrevem nos registros acerca de O amor natural um risco que talvez não decorra apenas do tema, pouco afeito à integração em uma sociedade indecisa entre o conservadorismo e a superexposição da intimidade sexual. É possível que a ameça se estenda ao legado do autor. Tal problema colocou-me frente a interrogações que iam além da leitura dos versos

divulgados

no

volume

de

1992.

Como

compreender

a

anunciada

“desmoralização” do autor pela escrita erótica? De que forma essa ameaça extravasa os contornos da imagem do homem Carlos Drummond de Andrade? O que tal desonra tem a dizer acerca do papel do escritor em uma sociedade que o tornou célebre não apenas por seus livros, mas também por sua intervenção nos jornais e pela participação na vida pública nacional? Aquele misto de vergonha (“en secret”) e de prazer (o erotismo resistindo ao longo de décadas ainda que ameaçador) poderá mover uma nova leitura dos versos eróticos, dos outros versos? Como a obra deixada na obscuridade transgride a escrita legada por Carlos Drummond de Andrade nas coletâneas publicadas desde sua estreia? De fato a transgride? E, se o faz, é graças a procedimentos próprios do erotismo durante anos obsceno? Tendo em vista essas questões, as leituras apresentadas nesta tese raras vezes se restringirão aos versos veiculados em livro em 1992. Lê-los em comparação com o conjunto da poesia drummondiana é uma maneira de ampliar a “figura de um poeta” que refuta limites e oposições baseados em marcos estanques. Ainda mais, tento mostrar como esses textos ratificam o caráter implacavelmente contestador de toda a literatura de Drummond. Para tanto, em cada ensaio, investigo problemas que atravessam a escrita do autor. No primeiro, a partir dos versos e das declarações de Carlos Drummond de Andrade sobre o tema, dedico-me a compreender a especificidade da linguagem erótica 20

apresentada em O amor natural. Parto das transformações no erotismo drummondiano desde Alguma poesia até a coletânea veiculada em 1992. Faz parte desse percurso a observação dos limites entre o erotismo e a pornografia, que parecem se tornar ainda mais tênues no caso dos poemas publicados após a morte de Drummond. Contra a possível confusão, constroem-se os procedimentos mais comuns da escrita obscena do mineiro. Confirmo-o por meio da leitura do poema introdutório do livro: “Amor – pois que é palavra essencial”. Com essa análise, tenciono observar como o combate com as palavras se atualiza no volume póstumo. O segundo capítulo é dedicado à análise da superação em O amor natural dos conflitos mais comuns na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Graças aos prazeres do corpo, o gauche cede lugar a um eu equiparado aos deuses. Ele logra também superar seus conflitos por meio da dissolução extática alcançada com o gozo e por meio da vitória sobre o tempo obtida com a sensação de eternidade vivenciada no orgasmo. A partir dessas conquistas, podemos compreender a superação da cosmovisão trágica predominante na escrita do poeta. Nos dois capítulos seguintes, estudo o retorno dos problemas na poesia aparentemente feliz exposta em O amor natural. No ensaio intitulado “Pensando nos outros homens”, discuto o embate entre o gozo, individual, e a escrita pública do autor. Com esse propósito, leio detidamente dois textos de O amor natural em que o desconcerto do mundo ronda a cena erótica: “Era manhã de setembro” e “O que o Bairro Peixoto”. Também traço brevemente um histórico do desencantamento do escritor com a participação política tendo em vista sua possível relação com o deslocamento das “mãos dadas” para o abraço erótico. Por fim, em “A carne é triste”, analiso o retorno da melancolia após os prazeres expostos nos versos lascivos. A recomposição de um universo sombrio contra o caráter solar da ilha dos amores parece expor o fundo contra o qual ganhou força o isolamento dos amantes na maioria dos textos divulgados em 1992. Se o mundo é uma “teia de problemas”, dele o sujeito se protege no recinto reservado ao sexo. Como os amantes expostos nos versos, os poemas seriam preservados dos conflitos do mundo durante um período limitado, ao fim do qual – previa o poeta – teriam de enfrentar um contexto destruidor. As previsões não se confirmaram, contudo. O amor natural não pareceu macular a herança transmitida por Drummond. Talvez isso decorra apenas da solidez da obra editada pelo poeta até sua morte ou até 1962, segundo 21

o ponto de vista adotado. Invisto em uma outra hipótese, entretanto: quiçá os versos eróticos não hajam abalado o legado drummondiano porque eles também trazem ricas novidades que importa compreender. Esta é a aposta do meu trabalho.

22

1 PALAVRAS IMPUBLICÁVEIS

A poesia de Carlos Drummond de Andrade foi lavrada pelo constante embate com os limites da linguagem. Já no livro de estreia, de 1930, a luta com as palavras assomava. Nessa coletânea, a busca dificultosa por um caminho entre as vertentes modernistas deixava seu rastro por meio da multiplicação de textos a desenvolver poéticas nem sempre coincidentes. Em “Poesia”, o verso, inquieto e vivo, resiste aos esforços do sujeito poético, o qual se cinde graças à pena infensa a seu controle. Contra os anseios de construção, a poesia informe do momento em que se trava o combate literário inunda a vida: Gastei uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro Inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair. Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira.

“Poema que aconteceu” vai em sentido oposto: Nenhum desejo neste domingo nenhum problema nesta vida o mundo parou de repente os homens ficaram calados domingo sem fim nem começo. A mão que escreve este poema não sabe que está escrevendo mas é possível que se soubesse nem ligasse.

Embora novamente se separe do eu, agora a mão pode registrar a escrita involuntária e inquestionada de um tempo sem problemas. Ou ainda questionada: a pena indiferente ao escrito talvez enfatize a inocuidade do próprio canto.8 Procedimento

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Propomos uma análise divergente à de Merquior em Verso universo em Drummond, onde lemos: “A voz lírica de Alguma poesia ainda fala em nome do conceito romântico e idealista da subjetividade metafísica, da consciência-coração ‘mais vasto que o mundo’. O correlato estético desta filosofia é a ideia de que a poesia reside ‘na vida’. A poesia não é uma arte, é uma dimensão dos seres ou dos acontecimentos.” (1975, p. 25). A leitura atenta de “Poesia” permite defender que, embora a vida seja em si poética, o verso depende do desgaste e do confronto com as palavras. Mesmo “Poema que aconteceu”, oposto ao primeiro, segue eminentemente moderno, ao dar proeminência à linguagem em detrimento do autor. Este é um dos traços fundamentais da escrita moderna, segundo Barthes: “[...] o escriptor moderno, tendo enterrado o Autor, já não pode acreditar, segundo a visão patética dos seus predecessores, que tem a mão demasiado lenta para o seu pensamento ou para a sua paixão, e que, consequentemente, fazendo da necessidade a lei, deve acentuar esse atraso e ‘trabalhar’ indefinidamente a sua forma; para ele, ao contrário, a mão, dissociada de qualquer voz, levada por um puro gesto de inscrição (e não de expressão), 23

irônico semelhante ressurge em “O sobrevivente”, em que a inviabilidade da poesia é afirmada – “Impossível escrever um poema a essa altura da evolução da humanidade” – para ser em seguida posta em questão: “Desconfio que escrevi um poema”. Desde o primeiro livro, portanto, os transtornos reconhecidos pelo sujeito em si e no mundo invadiram a forma poética, tornada também ela problema. Ao longo da obra, as aporias se diversificarão. Serão ainda o reflexo do sujeito gauche em um mundo em desconcerto, conforme resumem estes versos polissêmicos de “Segredo” (BA):9 “A poesia é incomunicável./ Fique torto no seu canto.” Adensados os obstáculos, o canto canhestro explicitará a importância do confronto com os significantes. O poeta se tornará, assim, um “lutador”, como lemos no conhecido texto de José, ou um sujeito à procura de palavras multifacetadas, cerradas em mistério, refugiadas na noite, como afirmam os versos de A rosa do povo. O resultado da busca recompõe o problema: a linguagem, sulcando vias dificultosas, despreza a “procura da poesia”. A inquietude daí decorrente avançará a ponto de disseminar a repulsa: “Imaginação, falsa demente,/ já te desprezo. E tu, palavra.”, lemos no texto de abertura de Claro enigma. A interrupção não permite conhecer um efeito único, na linguagem, do desdém pela faculdade criativa. A leitura dos poemas deixa, contudo, a certeza de que não se deve confundir a antipatia com o descuido da forma. Ao contrário, a “oficina irritada” se debruçará sobre as palavras e a tradição literária, escavando nos versos duros a opacidade reconhecida no mundo pelo escritor maduro. A complexidade da poesia drummondiana, entretanto, não permite sua restrição à cena de um severo combate.10 Por vezes a palavra, esquiva, promove uma procura distante do desgosto da perda. A forma, irmanada à festa, revela então a vasta realidade desdobrada pela língua, superior à mesquinhez do real. Não se trata de evasão, mas de reconhecer no rico jogo expandirem-se as possibilidades muitas vezes cerceadas pela

traça um campo sem origem – ou que, pelo menos, outra origem não tem senão a própria linguagem, isto é, aquilo mesmo que continuamente questiona toda origem. (2004, p. 61-62) 9 Para uma leitura mais completa desse poema, confiram-se as análises de John Gledson, em Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade (1981), e de Vagner Camilo, no ensaio “Uma poética da indecisão” (2000). 10 Desenvolvemos proposição de John Gledson, para quem, na obra de Carlos Drummond de Andrade, há uma “tensão contínua entre dois opostos semelhantes: entre um ceticismo intelectual rigoroso e uma intuição – para a qual o poeta não encontra justificação possível – de uma ordem nas coisas, e do valor da poesia para conhecê-la e comunicá-la.” (op. cit., p. 11) De acordo com o crítico, apesar da incredulidade, que se volta também contra o poeta, desconfiado de si mesmo, o escritor é sustentado por “uma confiança real, em parte porque desconfia do próprio ceticismo, que pode ser uma espécie de preguiça ou de não opção entre escolhas necessárias.” (ibidem, p. 11) 24

vida prosaica – ou, nos termos de “F” (LC), de vislumbrar na forma buscada, real embora não possuída, “o largo armazém do factível”. Em O amor natural, há traços da diversificada reflexão do autor acerca da linguagem. Nesse livro, o poeta parece permitir-se a trégua do embate com a língua. Por isso, as palavras raras vezes exigem a travessia custosa de uma pesquisa marcada pelas hesitações e impasses. Também pouco esculpem em seu seio o pensamento angustiado a respeito de um mundo em desconcerto. Parece predominar o gozo do idioma, pervertido pela imaginação do escritor arrebatado. Porém, tal apaziguamento está ao lado da angústia com certos usos da linguagem. Alguns substantivos geram nojo, conforme explicita “Eu sofria quando ela me dizia”. Outras formas de representar o corpo seriam recusadas porque pornográficas, segundo o escritor. A vizinhança equívoca com essas manifestações levariam as dúvidas sobre a validade da poesia a assumir nova face: elas talvez já não constituam o motor do exercício reflexivo da escrita, enriquecida pelas inquietudes drummondianas, mas sobretudo o resultado do olhar melancólico do poeta, que não encontra espaço para seu canto (quase sempre) feliz em meio ao empobrecimento generalizado da linguagem literária. As hesitações parecem se adiar: estão depois do poema e não em seu seio. Para interrogar a validade de tal hipótese, partimos das declarações do escritor a respeito de sua poesia erótica e do tempo em que ela viria à luz: os anos 1970 e 1980, em periódicos e edições de luxo, e após a sua morte, no livro. Em seguida, mostramos como os princípios estéticos e morais expostos pelo autor em cartas, ensaios e entrevistas moveram complexos jogos de exposição e ocultamento dos versos depois reunidos em O amor natural. Com base no contexto e nas condições de publicação dos poemas, avaliamos de que forma os recursos poéticos predominantes no livro póstumo são orientados pelos preceitos literários e morais defendidos pelo poeta. Por fim, analisamos a atualização de tais procedimentos no texto de abertura do livro, que tece a reflexão acerca da linguagem erótica com a concepção elevada do erotismo desdobrada em diversos outros versos da coletânea. Devido à complexidade do poema, algumas reflexões esboçadas neste ensaio, especialmente aquelas concernentes à deificação dos amantes, serão aprofundadas no capítulo seguinte. Interessa-nos por ora sobretudo compreender a abordagem da palavra pela poesia drummondiana quando a serviço da representação do gozo.

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1.1 NU ARTÍSTICO O problema da representação do desejo e do erotismo não é exclusivo de O amor natural. Desde a estreia, em Alguma poesia, Carlos Drummond de Andrade multiplicou as referências a partes do corpo feminino. Confiram-se, a título de exemplo, “Poema de sete faces”, “Igreja”, “Coração numeroso”, “Moça e soldado”, “Iniciação amorosa”, “Cabaré mineiro”, “Sesta” e “Romaria”. Há menção aos seios – tornados inúteis – até mesmo no nada erótico “Outubro 1930”, incluído na segunda edição do volume, de 1942. No primeiro texto do livro, espécie de certidão de nascimento do eu gauche drummondiano, as pernas são alvo de um sujeito, que, isolado, não logra realizar seus impulsos eróticos: O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada.

Apresenta-se pela primeira vez o amor falho e torto, encenado depois em diversos outros poemas do autor. O corpo visado se fragmenta graças à libido insaciada. Daí a metonímia tornar-se o modo predominante de figuração da avidez sexual. O eu também se cinde em decorrência da fratura entre consciência e desejo, marcada pela discordância dos olhos com o coração. Devido ao juízo culposo e à marginalização do sujeito gauche, as mulheres almejadas não podem ser tocadas ou fruídas.11 Em consequência disso, a obra de Carlos Drummond de Andrade foi marcada em seu lançamento pelo “sequestro sexual”, na expressão de Mário de Andrade em carta de 1º de julho de 1930 ao amigo mineiro. O sexo, demonstra Mário, não é plenamente sublimado na obra drummondiana, como evidencia a proliferação das marcas do desejo insatisfeito, “o olhar obsceno e a mão idiota”:12

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A culpa arrefece em “Iniciação amorosa” e em “Esperteza”, caso único no volume devido à autoafirmação jubilosa do eu aí encontrada. Mesmo esse poema, no entanto, confirma a não concretização dos anseios sexuais, já que a alegria advém da vontade do sujeito e não de suas ações. 12 Citamos verso de “Convite triste” (BA), em que Carlos Drummond de Andrade retoma a análise proposta pelo amigo paulista: “depois embriagados vamos/ beber mais outros sequestros/ (o olhar obsceno e a mão idiota)/ depois vomitar e cair/ e dormir.” 26

O outro, o “sequestro sexual”, que é muito mais curioso, você não conseguiu propriamente sublimar, você rompeu violentamente com suas lutas interiores, seus temores, suas dúvidas e preferiu mentir à humanidade, se escondendo dela. Virou grosseiro, virou realista, você, o suavíssimo, e encheu o livro de detalhes pornográficos à (ponhamos) francesa, como a pele picada pelos mosquitos, o dente de ouro da bailarina; ou à portuguesa com as tetas; ou, à você, e nisso está o melhor do sequestro, enchendo o livro de coxas e pernas femininas. (ANDRADE & ANDRADE, 2002, p. 390-1)13

O realismo não fica restrito ao primeiro volume publicado pelo autor. Brejo das Almas difunde a exposição dos impulsos sexuais, quase sempre não consumados. Por sua preponderância, eles se tornam símbolo privilegiado da conturbada relação do sujeito drummondiano com o mundo. Embora ele saiba que o “êxtase supremo” pode se enredar no corpo feminino, a amante que lhe foi destinada está longe e, cruel, ri da sôfrega procura masculina.14 Quando perto, a mulher cobiçada ignora a “vontade garota” do homem “de voar, de amar, de ser feliz”, “de praticar libidinagens”. A frustração fica ainda mais aguda por o sujeito estar dividido entre os anseios de gozo e a vontade de “ser infeliz e rezar”, resultado da culpa ainda resistente em si.15 Por isso, o eu é quase sempre solitário e sua poesia, ostensivamente sensual, o reflexo ora dramático ora humorístico do desejo malogrado de comunhão com o mundo e, sobretudo, com as mulheres. A ostentação dos corpos visados e do sexo se calaria por algumas décadas. Mesmo quando o amor foi tema de destaque, raras vezes a descrição das formas desejadas ganhou vulto desde então. Nos anos 1940, as dificuldades de o sujeito se comunicar com o próximo persistem, mas em chave menos personalista. O eu quer dar as mãos a companheiros unidos pela vontade de superação das mazelas humanas. Graças ao investimento utópico, o encontro amoroso é um assunto preterido por pouco favorável à ampla transformação social almejada.16 Na década seguinte, as reflexões sobre a natureza do amor e os problemas da existência permeiam o lirismo, o que leva ao enfraquecimento – mas não ao fim – da descrição do sexo ou das partes da anatomia

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Essa análise foi ratificada pelo autor, com pequenas alterações, em “A poesia em 1930” (1974, p. 35). Parafraseamos “O procurador do amor” (BA). 15 Citamos trechos de “Girassol”. 16 “O mito” (RP), brevemente analisado no terceiro e no quarto capítulos desta tese, parece contrariar tal concepção do sexo. No entanto, esse texto se distingue de grande parte do conjunto composto nos anos 1940 devido ao enlace de amor e utopia nele encenado. 27 14

cobiçadas.17 O recurso só voltaria a ter destaque nos poemas de Boitempo em que o “menino antigo” recorda a sofreguidão com que aspirava ao sexo.18 Nos anos 1980, quando sobressai o questionamento metafísico sobre o amor e o corpo, há nova suspensão do realismo acerca da fisiologia humana.19 A pausa seria encerrada pela publicação dos textos eróticos, em grande parte silenciados em vida. Nestes, pela primeira vez, o sexo já não parece “sequestrado” e o fausto encontrado nos versos afigura-se como efeito do prazer, vitorioso sobre a culpa. Realmente a perturbação deixa de prevalecer na maioria dos poemas de O amor natural. Neles quase sempre as debilidades da vida entre os homens dão lugar aos prazeres do corpo, vivenciados fora do tempo. Também surge uma confiança nas palavras pouco comum na obra do autor. Dela resultam diversos mecanismos de produção de novos vocábulos a partir do léxico existente, analisados a seguir. Rara também é a fé na legitimidade da obra, criada “com dignidade poética”, segundo o escritor.20 Entretanto, sob a aparente pacificação, talvez resida ainda a inquietude. A despeito de todas as alegações favoráveis ao êxito da idealização sobre o realismo, é possível que conflitos envolvam mesmo os poemas eróticos que elidem a recomposição da “vida menor”21 após a breve elevação dos amantes durante o sexo. As tensões já não parecem invadir os versos, mas certamente permeiam o drama da edição do volume, as condições sociais desfavoráveis ao canto livre e feliz corroendo o ideal de uma escrita erótica inquestionada. Ao menos assim acreditava Carlos Drummond de Andrade, a confiarmos nas entrevistas concedidas por ele nos anos 1970 e 1980. De todo modo, não importam tanto as crenças irrecuperáveis do escritor, mas a história construída por ele de forma esparsa para o volume nos jornais e revistas da época. O primeiro motivo dos receios expressos por Drummond tinha, então, fundo privado: a expectativa de que fizessem dele uma “falsa imagem”, de “indivíduo

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“Canto negro” (CE) e “Sonetos do pássaro” (VPL) confirmam a permanência nos anos 1950 da perspectiva realista sobre os corpos visados. O descritivismo foi, não obstante, excepcional no período. 18 Lembramos a importância de “Passeiam as belas”, “Indagação”, “As pernas”, “Le voyeur”, “A puta”, “Tentativa”, “Confissão”. 19 As únicas exceções são talvez “Corporal” (Co) e “A metafísica do corpo” (Co). Esses textos destacamse dos demais do período por descrever, mesmo que brevemente no caso do último, o corpo erotizado. 20 A expressão se encontra em entrevista concedida por Drummond a Cremilda Medina: Vanguarda, incompreensão, pedras no caminho. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 01 abr. 1980. 21 Expressão encontrada em “A língua girava no céu da boca”, de O amor natural. 28

devasso”.22 Isso poderia ocorrer caso os versos fossem colados à experiência do homem tímido: “Antigamente não pensava em publicar o livro. Iam chamar-me de velho ‘bandalho’. Mas se publicar agora a classificação é outra. Vão dizer: ‘Vejam só um velho de 80 contando suas experiências eróticas’”.23 A interpretação temida viria a ignorar o preceito aprendido tardiamente segundo “Lição” (Co), mas estudado ao longo de todo o percurso poético do escritor: “a ode cristalina/ é a que se faz sem poeta”. Os temores não eram, todavia, infundados: a elisão do sujeito foi antes um anseio do que o resultado obtido pela poética drummondiana. De fato, embora a objetividade “cristalina” tenha confrontado constantemente as pressões do egotismo, muitas vezes a força subjetiva venceu o rigor do juízo repressivo. Ainda mais: não raro ela se revestiu de um teor autobiográfico inegável. Por isso, não seria de todo surpreendente que a obra divulgada a partir dos anos 1980, após a incursão ao passado feita em Boitempo, sofresse a confusão do lirismo com a confidência. Em se tratando dos versos eróticos, tal equívoco se conjugaria com os possíveis juízos decorrentes dos rígidos preceitos a exaltarem os laços monogâmicos, muitas vezes desrespeitados. Diferentemente do que se poderia supor à primeira vista, as razões por que essa espécie de leitura foi recusada superavam em muito a defesa por Carlos Drummond de Andrade de sua biografia. O erotismo participava do amplo projeto artístico em que o autor empenhara sua obra desde a juventude, quando se aproximara dos modernistas. Libertar a linguagem sobre o corpo era, inicialmente, um modo de ampliar as possibilidades poéticas tolhidas por concepções artísticas obsoletas, conforme o escritor esclareceria em uma de suas entrevistas: Com a preocupação de não ser confundido com “esses produtos ordinários”, Drummond diz que o erotismo sempre esteve presente em sua poesia e tudo porque, ao ler poemas antigos, ficou impressionado com a falta de consciência dos poetas ao falarem do ato sexual. Eram sempre poemas artificiais, como na época do parnasianismo, que, em vez de seios, referiam-se a pomas ou golfos. Nossos poetas jamais falavam em púbis e aquilo que Manuel Bandeira teve coragem de dizer, o “triângulo isósceles perfeito”, referindo-se à região pubiana da mulher, não deixou de ser uma inovação. A descrição de uma mulher nua não despertava interesse porque era uma 22

Citamos trechos da entrevista concedida a Gilberto Mansur: Um encontro de “Status” com gente muito importante. Status, São Paulo, n. 120, p. 120, jul. 1984. 23 Drummond: o poeta fala do amor. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 set. 1984. Entrevista concedida a Gilson Rebello. 29

descrição acadêmica. Agora, fazer poesia “pornô”, com termos chulos, também acho errado. Portanto, nem uma coisa nem outra.24

O erotismo drummondiano, enfatiza a declaração do autor, representou mais do que a concupiscência do homem amarrado a uma “prisão individualista”.25 A descrição das partes erógenas dos corpos integrava as batalhas modernistas pelo “imperioso dever” de desrespeitar as “falsas tradições” e “romper com os preconceitos do passado”.26 Os “poemas antigos” pareciam artificiais e acadêmicos. Contra esse equívoco, o escritor fez-se “pornográfico”, na interpretação de Mário de Andrade já citada. De modo ainda mais radical, Drummond proporia a expansão da pornografia contra os problemas de seu tempo: “sejamos pornográficos”, sugeria em “Em face dos últimos acontecimentos”, importante texto de Brejo das Almas. O impacto de tal proposta pode ser avaliado pela hostilidade suscitada pelo poema, cujo refrão tornou-se símbolo de “que a poesia moderna era uma poesia de loucos e indivíduos sem moral”, conforme o escritor relatou em uma entrevista de 1982.27 Ironicamente, os versos atacados elidiam qualquer menção ao corpo. Porém, talvez apresentassem uma importante chave de leitura para os diversos outros poemas do livro de 1934 em que a sexualidade ganhava vulto.28 Em uma sociedade falsamente casta, a pornografia podia ser uma resposta à aguda crise ideológica, dimensionada pela reiteração da temática do suicídio no volume.29 Nos anos 1940, a falta de naturalidade ainda predominava nas representações do corpo, de acordo com Carlos Drummond de Andrade. As críticas ao artificialismo são agora desdobradas, avançando além do âmbito das disputas vanguardistas. Em “Nu artístico”, pequeno ensaio incluído em Confissões de Minas, o escritor perguntaria: “Por

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Trecho da entrevista, já citada, concedida a Gilson Rebello. A expressão se encontra em uma carta, de 1º de janeiro de 1931, em que Drummond faz um duro julgamento de seu próprio individualismo a Mário de Andrade (op. cit., p. 401). 26 Os termos foram retirados de “Sobre a tradição em literatura”, artigo publicado pelo jovem Drummond no primeiro número de A revista (1925, p. 32). 27 “Drummond: ‘O verso é o meu sofá’”. Manchete, Rio de Janeiro, p. 160, out. 1982. Entrevista concedida a Jorge de Aquino Filho. 28 Confiram-se “Boca”, “Sol de vidro”, “Um homem e seu carnaval”, “O amor bate na aorta”, “O passarinho dela”, “O procurador do amor”, “Girassol”, “Convite triste”, “Não se mate”, “Canção para ninar mulher”, “Sombra das moças em flor”, “Oceania”, “Castidade” e “Desdobramento de Adalgisa”. 29 Conforme demonstraram John Gledson, em seu ensaio já citado, e Vagner Camilo, em “Uma poética da indecisão”, a crise registrada nos poemas de Brejo das Almas surge em um contexto de indecisão política e de profundos questionamentos ideológicos por Carlos Drummond de Andrade. Logo, o drama encenado no volume de 1934 não tem repercussão exclusivamente individualista. 30 25

que será que o nu dos pintores quase sempre nos repugna?” A resposta desviava a questão do âmbito moral por meio de argumentos de ordem social e artística: Não creio que seja devido à simples exibição de corpos despidos numa parede, quando eles se mostram assim um pouco por toda parte. Parece antes que o desagrado vem da atitude artificial dos corpos, que quase nunca é a atitude que eles tomam quando em liberdade. (1944, p. 240)

Sob a apreciação estética, denuncia-se o anseio de flagrar um corpo não policiado pela civilização. Os “corpos em liberdade” garantiriam a experiência rara da fuga dos controles exercidos pela vida em sociedade. Essa concepção, não obstante, foi também corroída pelas dúvidas que assolaram Carlos Drummond de Andrade com tanta frequência: Os artistas se esmeram em fixar posições e gestos que não correspondem aos do natural abandono do nu (abandono bem raro, pois o corpo, mesmo só, é extremamente policiado pela civilização), e muito menos a essa atitude mais comum do nu, que é o nu em movimento, o nu rápido, necessário, quase inconsciente, que só uma câmara fotográfica secreta saberia fixar, mas já então, que pena! sem a força individualista da pintura. Resulta daí que os nus pintados são nus fotográficos, no sentido de artificialismo e rigidez, que os torna insuportáveis a um olhar sensível à forma e, sobretudo, aos mistérios do nu. Geralmente, os pintores rodeiam esse mistério; não o penetram. (ibidem, p. 240)

O escritor suspeitava da capacidade de as artes visuais captarem “o natural abandono do nu” (idem, p. 240). Por isso, o corpo em estado natural se afigura inacessível aos artistas plásticos. Tal posicionamento é coerente com a abordagem da natureza pelo autor, para quem ela surge quase sempre capturada pelos mecanismos culturais.30 Desconfiança semelhante acerca da representação do corpo foi explorada em outro ensaio do mesmo livro. Em “Questão de corpo”, o alvo da cisma foi a literatura erótica:

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A esse respeito, é elucidativo “A árvore e o homem” (PI), no qual Drummond defende que o homem e natureza só se podem comunicar a distância, graças à mediação da fotografia. Também podem interessar os poemas “Ante um nu de Bianco” (PM) e “Pintor de mulher” (Co), em que as considerações sobre a pintura desenvolvidas no livro de 1944 se invertem: o corpo segue fechado em seu mistério, dotado de um código; porém, o pintor passa a ser valorizado por sua capacidade de decifrar os signos corporais. 31

Não aprovo as mulheres que cantam em poesia o seu próprio corpo, relatando-nos suas delícias e comodidades. Elas se oferecem indistintamente a cada leitor do livro ou jornal, na rua ou na biblioteca. Mas suponho eu se recusariam a esse mesmo leitor, que, de livro ou jornal em punho, as procurasse para a consumação do ato sugerido ou proposto literariamente. Elas me responderão que literatura é uma coisa e vida é outra. E que o poeta, o escritor não são obrigados a realizar uma vida conforme os seus livros. Que o personagem ‘eu’ de um livro não é necessariamente o autor desse livro. Que dois livros sucessivos se contradizem, e nesse caso em qual deles deveria refletir-se a vida do autor? E sendo a contradição possível nas letras, como não admiti-la na própria vida? E que mal haverá em descrever o corpo sem oferecê-lo, como em oferecê-lo sem contá-lo? E como limitar a um artista o rol dos seus temas, interditando-lhe o grande tema do corpo? Etc., etc. A todas essas interrogações, eu continuo abanando as orelhas e repetindo para mim mesmo que não acho próprio acenar com promessas que não temos intenções de cumprir. Enquanto um instinto irreprimível, diante das manifestações de erotismo mental de certas páginas me segreda: Isto não é literatura. A literatura, mesmo descrevendo o corpo, não o expõe, narrando o amor, não o realiza. (ibidem, p. 225-226)

O moralismo, entretecido em forte dose machista, é a tal ponto impactante que poderia levar à desconsideração das reflexões estéticas desenvolvidas no pequeno ensaio. Não devemos ignorar, todavia, a sobreposição de problemas de ordem moral e artística. Essa fusão está sintetizada no conectivo “enquanto”, que vem coser a avaliação literária à consideração moral. Nos dois âmbitos, prevalece a nostalgia dos limites à liberdade dos artistas. O primeiro alvo das restrições diz respeito à recepção das obras e à sua relação com as autoras, estrategicamente mantidas anônimas. Ao descrever o corpo feminino – e sendo elas próprias mulheres –, as artistas se ofereceriam “indistintamente a cada leitor do livro ou do jornal, na rua ou na biblioteca”. A confusão entre vida e obra, engano evidente, é questionada pelas mulheres ficcionalizadas pelo escritor para logo ser reafirmada na conclusão do ensaio: quando fruto da atividade feminina, a descrição dos corpos os expõe e a narrativa do amor é um modo inaceitável de realização do ato amoroso. A escrita se tornaria nesse caso uma atividade a estimular o erotismo solitário, não nomeado mas pressuposto pela tese do autor: se os textos criticados ao mesmo tempo põem em prática os temas narrados e acenam com uma falsa promessa de consumação do ato sexual, resta a masturbação como resultado da (não) literatura erótica feminina. O escritor, ao contrário, defendia até o final de sua vida que a maior 32

importância da literatura é “a comunhão, a aproximação, que ela estabelece entre seres humanos, mesmo a distância, mesmo entre mortos e vivos”.31 Segundo Carlos Drummond de Andrade, em entrevista concedida nos anos 1970, essa proximidade seria possível graças à transcriação literária de sentimentos e experiências. Ao serem representados artisticamente, afetos e eventos poderiam se tornar alvo da identificação pelo leitor com suas próprias vivências. Desse modo, formar-se-ia uma comunidade por meio da literatura. Trinta anos antes, Drummond já se situava ao lado daqueles que resgatam a existência “pela música de seus versos” (op. cit., 1230) e não pelo realismo das descrições. Nos textos eróticos criados por mulheres na primeira metade do século XX, ele não reconhecia tal tradução artística dos corpos. O resultado seria uma exposição crua dos temas, o que inviabilizaria a comunhão apenas propiciada pelo trabalho literário. Em se tratando de obras que não operam a transformação dos materiais da vida em arte, restaria espaço tão somente para a experiência solitária da leitura e seus efeitos no corpo masculino, excitado sem a chance de consumação do ato sexual. Curiosamente, diversos traços dos textos recusados em 1944 retornariam décadas depois nas falas do escritor a respeito de O amor natural. Os aspectos negados tornar-se-iam temores de leituras equívocas do livro então inédito. Como já exposto, o receio de o público sobrepor biografia e lirismo, confusão sempre negada por Drummond quando o tema eram seus versos eróticos, transformar-se-ia mais tarde em uma das razões por que o escritor adiou tantas vezes a publicação do volume. Outro forte motivo, reiterado a cada declaração sobre a coletânea, relacionava-se à proximidade entre a escrita erótica e a pornográfica, que o escritor gostaria de conjurar. Embora ele não use o rótulo depreciativo para definir os escritos sobre o corpo feminino, há em sua análise de 1944 elementos comumente usados para definir esse gênero, qual o estímulo sexual do público ou o julgamento das obras como impróprias para o universo artístico. Anos depois, esses traços se diversificariam em opiniões cada vez mais acres acerca das formas julgadas degradantes de abordagem do corpo pelo poeta. Ciente de que os limites entre erotismo e pornografia muitas vezes são incertos, Carlos Drummond de Andrade se esforçou por opor radicalmente as duas manifestações: 31

Posição defendida em Tempo vida poesia. In: Prosa seleta, 2003, p. 1229. 33

Pornografia não é uma categoria intelectual. A pornografia é a deturpação do erotismo. O erotismo é santo, é belo. Ninguém pode viver sem ele. A pornografia é uma coisa grossa, um vício. Os autores de filmes e peças pornográficas estão empobrecendo a vida, sujando a vida. Não embelezando-a [sic].32

Embora o escritor alegasse não se sentir ferido em sua moral pelos “produtos que andam por aí” mas em seu gosto e em sua sensibilidade,33 o argumento de que a pornografia empobrece ou suja a vida não pode ser dissociado de uma certa moralização das obras artísticas. O moralismo se oculta sob a imprecisão do raciocínio. A quem a pornografia suja? Que vidas se tornam mais pobres? A dos cidadãos em geral, mesmo aqueles que não optam por consumir pornografia? Diversas pesquisas foram realizadas com o intuito de responder a essas questões sem que tenham sido conclusivas.34 Tampouco a separação entre erotismo e pornografia é tão essencial quanto Drummond quer levar a crer. Os estudiosos do tema tendem a concordar que nessa divisão se intrometem sempre fortes componentes valorativos. Submetidos a uma avaliação objetiva, os critérios adotados mostram-se insuficientes. Um preceito comum às conceituações define que uma representação deve ser explicitamente sexual para ser pornográfica. No entanto, esse traço não é suficiente para definir o gênero, já que há sexo explícito, por exemplo, em obras médicas, etnográficas ou em poemas eróticos, tais quais os lidos em O amor natural. Outros critérios também podem ser problematizados, como aqueles baseados nas reações afetivas ou cognitivas do consumidor. Com efeito, as respostas (de excitação ou repulsa) são variáveis de acordo com as expectativas e experiências dos receptores. Além disso, segundo esse preceito, nenhum dos outros traços usados geralmente para definir a pornografia são válidos, até a representação sexual explícita: como garantir que não excitarão o público mesmo os versos drummondianos em que a descrição do ato sexual é sobrepujada pelas marcas do desejo irrealizado? Nesse caso, a obra publicada em vida pelo autor deverá ser lida 32

Passagem extraída da página 162 da entrevista, já citada, concedida por Drummond a Jorge de Aquino Filho. 33 Declarações encontradas em entrevista concedida a Beatriz Bonfim: Drummond: o aprendizado pelo amor e outras poesias a caminho. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 07 abr. 1985. 34 Sugerimos a leitura de Penser la pornographie, do filósofo Ruwen Ogien (2003), para um desenvolvimento mais completo da tese de que apenas o moralismo, fundado em uma concepção substancial do bem sexual, pode condenar a pornografia. Nesse livro, o autor desenvolve diferentes argumentos a partir do fato de ainda não ter sido comprovado que a difusão de cenas sexuais tenha efeitos psicológicos ou sociais negativos. A argumentação contrária à distinção essencial entre pornografia e erotismo, desenvolvida a seguir, também é guiada pelo pensamento do filósofo. 34

sobre o signo da pornografia, como quis Mário de Andrade nos anos 1930? Deveremos compreendê-la assim a despeito da recusa do poeta? Diante das dificuldades para se definir a pornografia por meio dos participantes da enunciação, poderíamos buscar as definições fundadas nos traços objetivos que costumam ser apontados para distinguir do erotismo o gênero menos nobre. Estilisticamente, aquele seria marcado pela sugestão: sombras, máscaras, véus, pontos de vista distanciados, linguagem indireta, situações sutis etc. Haveria também uma intenção platônica, a de mostrar a alma através do corpo. A pornografia faria o oposto: luz crua, grandes planos sobre os órgãos genitais, linguagem franca e vulgar, situações escabrosas. O consumidor de pornografia teria, ainda, um acesso limitado à alma dos personagens. O critério da personificação também opõe os dois gêneros: no erotismo, os protagonistas seriam inteiros, com uma personalidade, uma identidade; na pornografia, anônimos, fragmentados, reificados, reduzidos a um estado de coisas substituíveis. A sobreposição retorna, não obstante. Contra todas as tentativas de opor os gêneros, as características que acabamos de listar são muitas vezes compartilhadas pelo erotismo e pela pornografia, conforme comprova O amor natural. Os versos eróticos drummondianos por vezes deixam de adotar máscaras, pontos de vista distanciados ou linguagem indireta na descrição do sexo. Tampouco conhecemos a identidade dos amantes, visto que frequentemente lhes é garantido o anonimato decorrente da fragmentação de sua subjetividade e de seus corpos. Apesar dessa coincidência, os parâmetros elencados acima foram diversas vezes opostos por Carlos Drummond de Andrade nas entrevistas nas quais atacou o que julgava ser a degeneração do erotismo em pornografia. Sobretudo a degradação da linguagem foi reiterada em suas avaliações da literatura erótica na segunda metade do século XX. O seguinte trecho é um exemplo iluminador dessa opinião: Você discorda, então, da linguagem que vem sendo empregada na literatura erótica atual? – Eu acho que a linguagem utilizada muitas vezes é suja. Faz-se [sic] muitas referências aos órgãos genitais masculinos e femininos com uma certa grosseria e até com uma certa coprolálica. O livro de Milan Kundera, A insustentável leveza do ser, tem um capítulo falando de fezes. É uma tendência a abordar os lados menos belos. Eu acho que a pessoa que escreve deve ter um sentimento mais puro de respeito às palavras e de respeito ao que elas representam. A insistência nas

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palavras chulas, vulgares, grosseiras, principalmente na prosa e no romance, me parece um pouco degradante.35

Encontramos, quarenta anos depois, a mesma ânsia por restringir a liberdade assumida pelos artistas. No ensaio de 1944, Carlos Drummond de Andrade questionava o tratamento dado ao tema do corpo pelas mulheres. Nos anos 1980, lamentava a linguagem com que o corpo e seus resíduos eram abordados. O desagrado do autor idoso revertia-se em um pensamento de teor normativo, pronto a definir que relação o escritor “deve ter” com as palavras. Nos dois casos, estamos distantes dos objetivos do jovem escritor vanguardista, interessado em forçar as restrições impostas à literatura. O olhar disfórico tem consequências amplas, avançando até a herança legada pelo modernismo. Já em sua análise da abordagem do corpo na literatura dos anos 1940, o escritor recusava uma das maiores vitórias obtidas pelo movimento em que se engajara na juventude: a “expressão livre e arejada”, que permitia a “cada um manifestar-se espontânea e intensamente, no tom e com o sentido que melhor lhe conviesse”, conforme Drummond defendeu em um texto publicado também em Confissões de Minas (idem, p. 194). A própria intenção de restabelecer os limites ao “rol dos temas” pode ser alinhada à leitura nem sempre positiva do modernismo empreendida por Carlos Drummond de Andrade em sua maturidade. Embora não tenha sistematizado as contribuições do movimento, o mineiro legou algumas considerações esparsas acerca da estética que contribuiu para consolidar. De um lado, os ganhos obtidos pareciam ameaçados pela canonização dos autores vanguardistas, tornados “defuntos importantes” quando seria preferível “não ter importância e estar vivo”.36 De outro, a “revolução modernista” virava “cocô de galinha diante da contínua invenção dos jovens”, responsáveis por excessos contra a pontuação e a sintaxe. Nessa última consideração, exposta em carta de 1952 a Abgar Renault,37 evidencia-se o desengano do poeta mineiro quanto a alguns resultados formais do pleito modernista. A visão desfavorável aos desdobramentos da arte moderna era comungada por outros intelectuais envolvidos nas transformações estéticas do início do século. Mário de Andrade nos deixou certamente o mais pungente exemplo desse desencanto em “O movimento modernista” e “A elegia de abril”. Devido à difusão do desengano, inclusive 35

Passagem retirada de: Fala o poeta. Leia, São Paulo, nº 82, p. 22-23, ago. 1985. Declarações encontradas em Tempo vida poesia, op. cit., p. 1227. 37 No texto íntimo, datado de 12 de dezembro de 1952, o escritor julga severamente a poesia publicada em Noigandres. Documento preservado pelo AMLB/ Casa de Rui Barbosa. 36 36

entre aqueles que participaram do epicentro das transformações artísticas e sociais, poder-se-ia obscurecer as raízes próprias do pessimismo de Drummond. Esse equívoco desconsideraria que o tratamento do ideário modernista pelo escritor mineiro jamais foi subserviente, como demonstrou Marlene de Castro Correia (2010). No que tange a estética do “make-it-new”, questionada por Carlos Drummond de Andrade no trecho de correspondência mencionado acima, a posição de Castro Correia é mais uma vez válida. Embora o “discurso da tradição” haja tido também rico desenvolvimento entre os modernistas paulistas,38 no poeta mineiro o passado cultural e literário ganhou novos matizes graças à leitura particular da história mineira e nacional levada a termo por ele. Um dos textos que mais precocemente esclarecem essa característica é o editorial do segundo número d’A revista, dirigida por Carlos Drummond de Andrade e por Martins de Almeida com o objetivo de divulgar as ideias do movimento contestador em Minas.39 O artigo explicita: Na verdade, um dos nossos fins principais é solidificar o fio das nossas tradições. Somos tradicionalistas no bom sentido. Opomo-nos a qualquer desbarato da nossa pequena herança intelectual. Se adotamos a reforma estética, é justamente para multiplicar e valorizar o diminuto capital artístico que nos legaram as gerações passadas. (1925, p. 12)

Talvez por assumir essa finalidade, Drummond reconhecia restrições à liberdade artística mesmo durante a fase “destruidora”40 do modernismo. São de especial interesse suas reservas ao uso de palavrões na poesia. Raras também na escrita dos outros autores de sua geração, as “palavras chulas” ou “grosseiras” parecem expor peculiaridades da obra de Carlos Drummond de Andrade quando comparada ao conjunto dos trabalhos legados pelo modernismo brasileiro. Elas não só estão excluídas de grande parte dos versos publicados por ele em vida, como levaram à supressão de “Ouro Preto”, julgado obra-prima por Mário de Andrade e um dos poemas “mais gostosos” do mineiro lidos 38

A referência evidente aqui é o texto fundamental de Silviano Santiago: “A permanência do discurso da tradição no modernismo” (2002). 39 O artigo, não assinado, é de autoria de Martins de Almeida, segundo informação de Plínio Doyle (1976, p. 90). No entanto, de acordo com o mesmo pesquisador, as ideias aí apresentadas foram aprovadas por Carlos Drummond de Andrade. O episódio é interessante por revelar a proeminência de Drummond no modernismo mineiro, que assume alguns dos traços mais marcantes do poeta como elementos comuns ao grupo. Um desses traços, conforme Fernando Correia Dias (2002), foi justamente o intuito de valorizar criticamente a tradição em vez de negá-la. 40 Expressão usada por Drummond em “Pessimismo de Abgar Renault” (Confissões de Minas, op. cit., p. 194). 37

por Manuel Bandeira.41 Em carta de 18 de janeiro de 1929 a Rodrigo Melo Franco de Andrade, Drummond hesitava em publicar o texto por acreditar que um palavrão poderia torná-lo escandaloso: Os poemas que lhe mandei, há tempos, são todos inéditos. Acho natural a sua preocupação de só publicar matéria original no número de Minas. Aliás, penso que seria excessivo publicar mais coisas minhas além do artigo sobre Sabará e o poema “Romaria”. V. guardará aí os versos restantes, publicando-os, se quiser, em alguma edição de domingo do “O Jornal”. Quanto ao “Ouro Preto”, sou o primeiro a alimentar dúvidas quanto à conveniência de sua divulgação. O cu do pato e o cu do pinto escandalizariam os leitores.42

Despontava o pessimismo que marcou o pensamento de Carlos Drummond de Andrade sobre o tema até os últimos anos de sua vida. Em 1929, o impacto temido não adviria do erotismo mas da seleção vocabular e da irreverência com que um dito popular, pervertido, contribuía para o registro poético da cidade histórica: Procuro na valise os Alpes tiritando Escadinhas saudosas levando pro céu. Esse frio que vem do passado esse ar de mofo. (longe a coreia dos funcionários) E era uma vez uma cidade que foi rainha Entrou pelo cu do pato Saiu pelo cu do pinto Quem quiser que conte cinco.

Décadas após a recusa de “Ouro Preto”, o palavrão talvez já não escandalizasse o público mas feria os princípios artísticos defendidos pelo poeta. Em sua juventude, ele lutara por libertar as palavras sem destruir radicalmente uma tradição que impunha limites à linguagem sobre o corpo. Nessa época, tudo era proibido. Então, o poeta ousava escrever “certas palavras”43 mesmo que apenas para o círculo restrito de alguns

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O julgamento está em carta de 03 de fevereiro de 1926, preservada pelo AMLB/ Casa Rui Barbosa. O poema não faz parte do acervo de Carlos Drummond de Andrade. Há cópia no IEB, visto que os versos compunham o caderno “Minha terra tem palmeiras”, remetido a Mário de Andrade em 03 de junho de 1926 e comentado em 1º de agosto do mesmo ano. 42 Documento preservado pelo AMLB/ Casa Rui Barbosa. 43 Retomamos trechos de “Certas palavras” (Bo), sobre o policiamento da linguagem na infância do escritor. 38

amigos a quem remeteu poemas como “Ouro Preto”.44 Sintomaticamente, os palavrões aparecem também na coletânea em que Drummond recompôs sua infância, quando pronunciar as “palavras-mistério” constituía grave transgressão aos interditos impostos pelos adultos.45 Em sua velhice, o escritor mantinha o posicionamento combativo de outrora embora alterando o alvo. Nos anos 1970 e 1980, em suas declarações à imprensa, ele defendia a recomposição de um apuro estético que cria abandonado. Nada era proibido. Contra tal permissividade, Drummond proscrevia de sua obra algumas expressões. Não obstante, – mesmo que para poucos – perenizava o registro menos nobre ao utilizá-lo em poemas legados a nosso mais conhecido bibliófilo. No exemplar único confiado a José Mindlin em 1977, em “Quando desejos outros é que falam”, surge o substantivo “cu”, recusado décadas antes pelo autor. Nesse texto, assim como nos dois últimos versos de “A moça mostrava a coxa”, aparece “boceta”. O expurgo se confirmaria na versão de “Não quero ser o último a comer-te” remetida a Maria Lucia do Pazo Ferreira nos anos 1980: no original, encontramos “foder” e “foda”, substituídos na última versão. A gênese dos poemas expõe, assim, os efeitos dos embates de Carlos Drummond com a arte de seu tempo. Ao apagamento das expressões de baixão calão, ele somava um mais grave gesto de repúdio ao que julgava serem formas empobrecedoras de democratização da poesia: ameaçava calar seus versos eróticos, conforme lemos em algumas entrevistas: Há uma onda de pornografia, de mau gosto, que dificulta muito a avaliação do que seja a poesia. Aliás, todo mundo faz poesia hoje. A poesia agora não tem nenhuma regra, nenhum princípio. Não tem métrica, não tem rima, não tem ritmo. É só juntar palavras. Sobre essa desordem estética ainda há o mau gosto da exploração da pornografia. Então eu receio que o meu livro, O amor natural, ou passe

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Uma pesquisa mais extensa, que fugiria aos objetivos desta tese, talvez permitisse reconhecer a divulgação restrita de versos obscenos como comum aos modernistas, ao menos em se tratando de textos que associassem os palavrões à temática erótica. Um exemplo parece ratificar a hipótese: em 1986, no segundo número da revista Bric-a-Brac, veio a público o soneto “A cópula”, de Manuel Bandeira, remetido em 1945 a Pedro Nava. Nos versos, reproduzidos também na Antologia pornográfica (2004, p. 229), de Alexei Bueno, encontramos termos incomuns na obra do poeta pernambucano: “cu”, “boceta”, “colhões”, “esporrou-se”, “fodeu”, “rabo”, “porra”, “cona”, “mangalho”. Caso a suposição se confirme, Drummond viria a radicalizar, no caso de “Ouro Preto”, poema nada “pornográfico”, o caráter subterrâneo de certos usos linguísticos. Depois, com sua escrita erótica, complexificaria a prática: os palavrões já não se limitariam a poemas esparsos pela correspondência íntima, mas estariam dispostos em um conjunto para o qual o autor lança luz e sombras. 45 Há palavrões nos seguintes textos de Boitempo: “Primeiro dia”, de onde extraímos a expressão em destaque, “Higiene corporal”, “Contador”, “Briga” e “Marinheiro”. 39

despercebido, ou, se não, que seja considerado mais uma obra pornográfica.46

O posicionamento crítico de Carlos Drummond de Andrade acerca da poesia contemporânea era tão grave que se voltava contra seu livro, que o escritor receava ver confundido com a “moda” pornográfica vigente segundo ele. Drummond se esforçou por esclarecer os aspectos recusados no novo “modismo”. A “linguagem tanto quanto possível correta” adotada em seus poemas contrastava com a poesia destituída de princípios, predominante então de acordo com o autor. A insatisfação com os resultados do modernismo ganhava, assim, um novo enfoque: já não visava à “contínua invenção” dos jovens dos anos 1950, mas ao descompromisso com a pesquisa artística, característico de parte da poesia dos anos 1970.47 Tal descomprometimento foi notado não apenas pelo poeta idoso mas também por críticos mais próximos aos jovens artistas da época, como Heloisa Buarque de Hollanda: Parte significativa da chamada produção marginal já mostra aspectos de diluição e de modismo, onde a problematização séria do cotidiano ou a mescla de estilos perde sua força de elemento transformador e formativo, constituindo-se em mero registro subjetivo sem maior valor simbólico e, portanto, poético. (2007, p. 13)

A diluição da pesquisa estética é um traço fundamental para compreendermos o desânimo de Drummond em relação à produção literária da época. A essa alegada ausência de domínio formal, o escritor somava a presença de um “mau gosto” na seleção vocabular, igualmente recusado, como vimos acima: “Eu não uso nenhum palavrão, não uso palavras que se usam na linguagem falada”, explicitaria em outra entrevista dos anos 1980.48 Os inimigos são quase sempre anônimos. Porém, algumas declarações permitem definir um alvo privilegiado dos ataques, a “poesia pornô”, sobre a qual Drummond

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In: “Fala o poeta”, op. cit. É interessante notar como a decepção de Drummond prolonga, décadas depois, o pessimismo de Mário de Andrade, exposto em “A elegia de abril”: “Muito poucos perceberam a lógica de quem, tendo combatido, não pela ausência, mas pela liberdade da técnica num tempo de estreito formalismo, agora combatia pela aquisição de uma consciência técnica no artista, ou simplesmente de uma consciência profissional, num período de liberalismo artístico, que nada mais está se tornando que cobertura da vadiagem e do apriorismo dos instintos.” (1974, p. 189) 48 Trecho da entrevista, já citada, concedida a Gilson Mansur, p. 28. 40 47

afirmaria: o “próprio rótulo me causa engulho; é uma coisa infecta”.49 A violenta crítica do poeta maduro parte de sua radical repulsa ao negócio.50 Flagrando no título “poesia pornô” um “rótulo”, ele faz ver na irreverente autodenominação do grupo o índice de uma arriscada contiguidade com o universo da mercadoria. Essa vizinhança, não custa lembrar, estava inscrita no próprio étimo “porno-”, retomado pelos jovens.51 Mas o desacordo ia além da simples nomenclatura. Dizia respeito às propostas poéticas daquele movimento artístico, organizado no início dos anos 1980. Contra a repressão vivida por longos anos no país, os signatários do grupo propunham a libertação dos costumes e da linguagem: “A repressão que castra nossos versos é a mesma que censura nossos corpos”, defenderia o “Manifesto corpofágico”, de Leila Míccolis; “Contra as ditaduras; viva a picadura!”, proporia “Mão na festa”, de Caio Trindade. Esse tipo de apelo político não poderia instigar Drummond, para quem engajamento e densidade poética foram quase sempre indissociáveis. Não lhe bastaria criticar a violência testemunhada ao longo das décadas. Seria preciso também abalar a reificante linguagem prosaica.52 Tampouco o “uso generalizado da língua”,53 defendido pelo grupo, poderia ser aceito pelo autor mais velho. Conforme expusemos, quando jovem, Carlos Drummond de Andrade já hesitara em aderir a determinadas formas vindas da linguagem falada, como os palavrões ou certas construções típicas do português do Brasil.54 Em sua maturidade, manteve a posição, talvez a radicalizando: 49

Declarações encontradas em “O poeta Drummond contra-ataca”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 abr. 1985. Ilustrada, p. 44. 50 Essa aversão tem sua síntese mais perfeita nos seguintes versos de “Nosso tempo” (RP): “Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem./ O esplêndido negócio insinua-se no tráfego./ Multidões que o cruzam não veem. É sem cor e sem cheiro./ Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul, vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,/ toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.” 51 O radical “porno-” significa, segundo o Aurélio, “prostituição”, “prostituta”. Não há qualquer critério moral nessa indicação, mas apenas o objetivo de lançar luz para o vínculo estreito entre sexo e comércio na pornografia. 52 Leiam-se, a esse respeito, os seguintes versos de “Consideração do poema”, texto de abertura de A rosa do povo, um dos mais engajados livros de Drummond: “Saber que há tudo. E mover-se em meio/ a milhões e milhões de formas raras,/ secretas, duras. Eis aí meu canto.” 53 Proposta defendida no “Manifesto antropofálico tropicalindo touchezudo”, de Antônio Carlos Lucena. In: KAC, Eduardo; TRINDADE, Caio Assis. Antolorgia. Rio de Janeiro: Codecri, 1984, p. 111. 54 A presença do coloquial foi fruto de grande embate na poesia de Drummond. Na década 1920, ele ousou publicar “No meio do caminho”, escandoloso em grande medida pela escolha – amplamente rejeitada então pelos normativistas – do verbo “ter” em vez de “haver” no refrão “tinha uma pedra”. Na mesma época, porém, o autor hesitava ainda em aceitar a “contribuição milionária de todos os erros” para outro poema incluído em Minha terra tem palmeiras, seleção de versos enviada a Mário de Andrade em 1924. Em carta de 30 de dezembro desse ano, o mineiro rejeitava a construção “O poeta chega na estação”, que havia sido elogiada pelo paulista quando lida no manuscrito de “Nota social”: “Você gostou da regência... Pois eu não gostei, e agora que peguei o erro, vou emendá-lo. Sou pela correção. Ainda não posso compreender os seus curiosos excessos. Aceitar tudo o que nos vem do povo é uma tolice que nos 41

Você já usou hoje a expressão “não tenho cintura” e, agora, acabou de dizer “não é mole”. O que você acha desse modo de falar do povo? Eu uso a linguagem corrente, não é? Não chego a certos exageros, como, por exemplo, quando dizem: “fulana é uma puta mulher”, no sentido de que é uma grande mulher. Acho isso de mau gosto. Também de “encheu o saco” eu não gosto; “porra” eu não falo. Mas o mais eu falo, essa linguagem comum, “é legal”, “tá na cara”, coisas assim. “Pintou”? Não, uso a gíria modesta. Aí é uma coisa de formação de gosto. Realmente, eu não assimilo certos gostos modernos, eu acho que isso aí já é um certo mau gosto.55

O distanciamento dos “gostos modernos” adotados pelos jovens teve como contrapartida os ataques ao poeta.56 Julgado discursivo, junto com um autor da importância de João Cabral de Melo Neto, Drummond teve seus livros rasgados nas escadarias do Teatro Municipal em 1968 pelos partidários do poema/processo. O autor foi alvo também de um poema-objeto de Silvio Spada. A obra consistia em um saco de cinzas com a frase “Sílvio Spada queimou um poema de Carlos Drummond de Andrade”.57 A poesia pornô, por sua vez, rebatia as críticas feitas pelo mineiro, refutando os termos com que o escritor distinguira em mais de uma entrevista o

leva ao regionalismo.” (op. cit., p. 82) A resposta viria dura em 18 de fevereiro de 1925: “Foi uma ignomínia a substituição do na estação por à estação só porque em Portugal paisinho desimportante pra nós diz assim. Repare que eu digo que Portugal diz assim e não escreve só. Em Portugal tem uma gente corajosa que em vez de ir assuntar como é que dizia na Roma latina e materna, fez uma gramática pelo que se falava em Portugal mesmo. Mas no Brasil o senhor Carlos Drummond diz ‘cheguei em casa’ ‘fui na farmácia’ ‘vou no cinema’ e quando escreve veste um fraque debruado de galego, telefona pra Lisboa e pergunta pro ilustre Figueiredo: – Como é que se está dizendo agora no Chiado: é ‘chega na estação’ ou ‘chega à estação?” (idem, p. 100) A influência de Mário de Andrade dobrou o jovem escritor, que manteve o coloquialismo. Desde então, na poesia drummondiana a expressão informal assumiu “valor diacrítico”, nos termos de Merquior (1972, p. 183). Isto é: entrou em oposição com o falar nobre e com o caráter elevado dos temas abordados. Na maturidade do poeta esse veio perderia força. Nos anos 1940, já era apenas uma das vertentes de sua poesia. Com o processo de classicização empreendido nos anos 1950, o emprego diferencial do coloquialismo foi francamente atenuado. 55 Trecho da entrevista concedida a Gilberto Mansur, op. cit., p. 28. 56 Um episódio interessante para se avaliarem as tentativas de aproximação reticente de Carlos Drummond de Andrade em relação aos gostos da juventude está registrado no número de março de 1969 da revista Realidade. Nesse exemplar, divulgam-se traduções feitas pelo poeta para algumas canções do Álbum branco, dos Beatles. Apesar do esforço, chama atenção o tom elevado, distante do registro adotado pelos ingleses, e o desconhecimento de algumas expressões relacionadas à contracultura. As traduções de Drummond fazem parte dos anexos a esta tese. 57 O registro do evento no Teatro Municipal é encontrado no ensaio “Vanguarda: radicalidade e/ou criatividade”, de Eduardo Portella (1971), e em O que é poesia marginal, de Glauco Mattoso (1981, p. 23). Neste opúsculo, encontramos também a descrição do poema de Sílvio Spada. 42

erotismo, sagrado, da pornografia: “sem essa de o erotismo é santo % tudo que é santo é um sacro % sic % por hoje chega % falei e desdisse %”.58 Nesse cenário, de recusa à poesia do escritor e de ataques ao que ele julgava ser o verdadeiro legado modernista, trazer O amor natural a público implicaria finalmente expor o livro aos embates de que vinha sendo protegido por meio de seu ocultamento. Talvez devido a esse ambiente hostil, cada declaração de Drummond reafirmasse o fracasso contextual de uma obra que ele parece haver querido separada, assim como seus personagens, das agruras históricas. 1.2 NOTÍCIAS DO CORPO Pela temática e por sua abordagem pouco afim à predominante na época, os textos eróticos poderiam ser o estopim de diversas leituras em desacordo com o apreço do autor pela coletânea.59 Ademais, restrições à qualidade dos últimos livros do poeta, nem sempre justas, já vinham sendo divulgadas.60 Nesse contexto, os poemas de O amor natural ganharam ares ameaçadores para Carlos Drummond de Andrade. A criação tendia a tornar-se o algoz do criador e a difusão da leitura, amor esparso entre

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Remetemos a trecho da entrevista concedida a Jorge de Aquino, já citada acima. Há declaração semelhante em “80 anos em flor”, publicada por João Máximo (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 out. 1982. Caderno B, p. 7): “acho que a pornografia está tomando o lugar do erotismo, que é santo”. O poema em prosa parcialmente reproduzido, de Eduardo Kac, data de 1982, o que confirma a hipótese do diálogo com o pensamento exposto por Drummond nos jornais. No capítulo seguinte, analisaremos como os textos eróticos drummondianos profanam as imagens sagradas. A obra nem sempre se identifica às declarações do autor sobre ela, aparentemente conservadoras. 59 Embora o livro tivesse grande sucesso de vendas, algumas previsões pessimistas se confirmariam. Entre os especialistas, Rita de Cássia Barbosa acusou a falta de qualidade estética em alguns textos veiculados esparsamente em vida pelo escritor, nos quais ela reconheceu a ausência do “redimensionamento crítico”, “peculiar ao poeta” e “capaz de dar à sua produção dimensão atemporal” (op. cit., p. 43). Esse julgamento seria endossado por críticas divulgadas na imprensa quando da publicação do livro. Entre as mais avassaladoras está “Sexo frágil”, de Veja. 60 Confiram-se, a título de exemplo, as críticas divulgadas por Mário Sérgio Conti a Corpo e a Amar se aprende amando. São elas respectivamente: Em tom menor: pouca emoção nos novos poemas de Drummond. Veja, São Paulo, nº 838, p. 127, 26 set. 1984; Lira outonal. Ibidem, nº 875, p. 110, 12 jun. 1985. Nelas, a nova poesia do autor é julgada uma “repetição diluída” de sua obra principal. Também Haroldo de Campos, em texto já citado, acusa a produção poética de Drummond de ter caído “bruscamente de nível de invenção” após Lição de coisas (op. cit., p. 55). Vale lembrar também as críticas levantadas por Mário Faustino no artigo “50 poemas escolhidos pelo autor”, publicado no Jornal do Brasil em 21 de abril de 1957. Nesse texto, o crítico e poeta argumenta que a linguagem de Carlos Drummond de Andrade seria apenas ocasionalmente poética por nem sempre ser bem distinta da linguagem prosaica e retórica. Ainda mais importante é a alegação de que o escritor mineiro não se interessaria pelo “desenvolvimento da poesia brasileira como forma de cultura”. O incômodo gerado pela crítica no autor mais velho se transformaram, segundo José Maria Cançado (2006, p. 275), em diversos croquis satíricos sobre a página dominical assinada por Faustino. 43

muitos,61 o motivo dos males que poderiam afligir o autor enciumado. Com efeito, ao expor seus receios, Drummond parece dotar de realidade histórica e biográfica o conflito entre autor e leitores, adiando o confronto. Tal batalha, poucas vezes reconhecida pelos partícipes, é imprescindível, contudo, para a existência da obra. Sem esse embate, o texto tende a ser esmagado pelo peso do autor, a cujos desígnios fica condenado, conforme esclareceu Maurice Blanchot: Sem que o saiba, o leitor está empenhado numa luta profunda com o autor: seja qual for a intimidade que subsiste hoje entre o livro e o escritor, por mais diretamente que sejam esclarecidas, pelas circunstâncias da difusão, a figura, a presença, a história de seu autor – circunstâncias que não são fortuitas mas talvez já ligeiramente anacrônicas – apesar de tudo isso, toda a leitura em que a consideração do escritor parece desempenhar um papel tão grande implica num ataque contra ele que o anula para entregar a obra a si mesma, à sua presença anônima, à afirmação violenta, impessoal, que ela é. (1987, p. 193)

Carlos Drummond de Andrade jamais negou a relevância do público leitor. Em entrevista a Maria Lucia do Pazo Ferreira, por exemplo, ele rejeitava o lugar de autoridade sobre seus textos divulgados em vida: “a poesia publicada já não pertence ao autor e sim a uma sociedade, a um condomínio entre o autor e o leitor ou leitores” (op. cit., p. 315). Todavia, para um poeta que tantas vezes registrou suas inquietudes em relação à própria obra, esse condomínio podia se tornar alvo de angústia. Sobretudo na velhice, o autor dramatizou em seus poemas a ansiedade em relação a seu legado para a sociedade e a literatura brasileiras. Em “O nome”, de As impurezas do branco, o escritor encena o sofrimento de quem vê destruído o edifício – ou a obra talvez – que leva sua assinatura. A proximidade da morte consolida as aflições: Ficará em mim o nome que é meu? Ficarei para preservá-lo?

“Papel” e “Declaração em juízo”, do mesmo livro, adensam a exposição do drama. No primeiro, tudo o que o sujeito poético fez ou conheceu revela-se papel, a polissemia sendo amplamente explorada: a existência é jogo de cena e escrita, mas

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Parafraseamos expressão encontrada em “A bela Ninfeia foi assim tão bela”. 44

também o ridículo figurado pelo “papelão”. No segundo, confessa-se a solidão do homem tornado sobrevivente, já sem raízes, abandonado pelo público e pelo “grupo muito antigo” de que participara, mas “de que não há memória nas calçadas/ e nos vídeos”. Não parece despropositada a leitura dos versos como uma representação também da amargura advinda do desbaratamento das conquistas modernistas, lamentado pelo escritor.62 Por vezes, as preocupações ficcionalizadas nos poemas avançaram para as atitudes bastante concretas de Carlos Drummond de Andrade, que em alguns momentos reverteu em desejo de controle a inquietude resultante do abismo entre o autor e seus textos. Sobretudo em suas afirmativas à imprensa sobre o livro ainda inédito, ele pareceu recusar a impessoalidade da obra. Esta, nos termos mais uma vez de Blanchot, “exclui, com a autoridade da indiferença, aquele que, tendo-a escrito, quer ainda reavêla de novo pela leitura” (op. cit., p. 14). Ao contrário, quando o poeta mineiro aborda O amor natural, encontramos a afirmação insistente de seu arbítrio sobre um texto que hesita tornar público. Os verbos usados por ele ao se referir à edição, “penso”, “quero”, “pretendo”, “guardo”, denunciam mais do que o anseio de o escritor ler a obra ou propor uma espécie de ortopedia da leitura. Eles parecem indicar que, no caso dos poemas eróticos, o autor tentou conter a deriva da obra. As tentativas de domínio sobre a memória a ser legada por Carlos Drummond de Andrade não são, em todo caso, esporádicas ou restritas aos poemas obscenos. Há registros de que o escritor tenha intervindo na recepção de outros de seus livros. Um antigo editor da José Olympio, Daniel Pereira, dá conta de que diversas orelhas elogiosas às obras de Drummond teriam sido escritas pelo próprio autor.63 É possível supor que o procedimento tenha se originado nas angústias ligadas à deriva da poesia tornada pública. Nesse sentido, encontramos um arco a unir a proteção dos textos eróticos com a tutela de outras de suas coletâneas pelo poeta. Porém, parece-nos que o caso de O amor natural tem especificidades relevantes: os poemas seriam legados para a publicação post mortem; logo, a leitura do autor não se poderia fazer valer quando da

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Os breves comentários aqui apresentados não podem dar conta da complexidade dos poemas. Para uma análise mais detida, confira-se “Os impasses do tempo”, em que Betina Bischof (2012) traça o complexo quadro de onde emerge o questionamento do lugar da expressão poética por Drummond em As impurezas do branco. 63 O editor, em suas declarações reproduzidas por Geneton Moraes no Dossiê Drummond (op. cit., p. 163164), menciona as orelhas de Passeios na ilha, Lição de coisas, Discurso de primavera e Esquecer para lembrar (Boitempo 3) como frutos da atividade em surdina de Carlos Drummond de Andrade. 45

publicação do livro. Talvez por isso, testemunhemos uma ingerência tal que ameaçava pôr em risco até mesmo a existência da obra. O perigo da destruição seria outras vezes apresentado em registros acerca da construção do arquivo do escritor, de que O amor natural participava como volume inédito. Como na preparação desse livro, os cuidados de Carlos Drummond de Andrade com seu acervo parecem movidos por uma mão diligente empenhada em escrever uma história autorizada de suas atividades intelectuais. Ao organizar seus documentos, o autor se esmerou em apagar registros indesejados, preservar algumas cópias de cartas remetidas a terceiros, combinar imagens de modo a constituir uma narrativa coesa da trajetória de sua vida. Esses gestos parecem constituir o monumento do eu que se quer conjurar na obra literária. A atividade arquivística de Carlos Drummond de Andrade parece fundada, portanto, no pavor da evanescência ou no horror do devir de documentos guardados para além da vida de seu signatário. Entretanto, a destruição a que Drummond submete seus registros é frequentemente exposta, enunciada, ressaltada.64 Nenhuma tentativa, pois, de fazer os futuros pesquisadores acreditarem que o material consignado representasse a verdade absoluta sobre a trajetória do escritor. Estamos diante de forças divergentes: de um lado, a que constitui o arquivo como unidade inteiriça; de outro, a que corrói essa pretensa totalidade, revelando-lhe os vazios.65 Encontramos aí uma hesitação semelhante àquela observada nos discursos sobre O amor natural registrados na imprensa: Carlos Drummond de Andrade se referia constantemente aos poemas como objeto de um todo ainda preservado; no entanto, a cada declaração reafirmava suas intenções de destruir o volume. A imbricação entre o dispêndio e a reprodução dos poemas eróticos convidava os leitores a se interessarem 64

Lembramos, por exemplo, a nota introdutória de O observador no escritório: “Não pensei nisto, anos a fio, ao encher cadernos com anotações sobre o meu dia a dia, que jamais pretendi viessem a ter importância documental, como não têm. O impulso de escrever para mim mesmo, em caráter autoconfessional, ditou os feixes de palavras que fui acumulando e que um dia... destruí. Mas a própria destruição tem caprichos. Do conjunto sacrificado salvaram-se algumas páginas que hoje reúno em livro, depois de tê-las, na maior parte, colocado em minha coluna do Caderno B do Jornal do Brasil.” (2003, p. 965) 65 Em suas declarações e na gestão de seu acervo, Carlos Drummond de Andrade evidencia um conflito essencial a qualquer arquivo, segundo importante ensaio de Jacques Derrida sobre o tema. Em Mal de arquivo, o filósofo enfatiza o poder corrosivo do arquivamento, vigente mesmo no ato de reprodução, já que, em suas palavras, “a própria repetição, e até mesmo a compulsão à repetição, é, segundo Freud, indissociável da pulsão de morte. Consequência: diretamente naquilo que permite e condiciona o arquivamento só encontraremos aquilo que expõe à destruição, introduzindo a priori o esquecimento e a arquiviolítica no coração do monumento. No próprio ‘saber de cor’. O arquivo trabalha sempre a priori contra si mesmo.” (2001, p. 22-23) 46

pelo legado drummondiano enquanto o autor estava ainda vivo. Crescia, por isso, não apenas a curiosidade acerca do conteúdo dos poemas – alvo do voyeurismo do público em face das celebridades e do interesse dos amantes da literatura –, como também a atenção para os critérios adotados pelo escritor na construção de seu legado. A história dessa elaboração tem um de seus capítulos registrados na Biblioteca Nacional. Na divisão de manuscritos, são mantidas as cartas trocadas entre o escritor e Maria Lucia do Pazo Ferreira, a quem ele deu permissão para analisar alguns poemas eróticos em sua tese de doutorado.66 Carlos Drummond de Andrade comunicou-se com a estudante e com sua orientadora, Ester Kosowski. Na correspondência preservada, o escritor indicava os poemas eróticos já publicados em periódicos,67 listava a totalidade dos textos que comporiam O amor natural, sugeria leituras, enviava recortes de jornais, além de haver remetido a correção de uma importante entrevista concedida à pesquisadora.68 Entre as indicações de leitura, há ensaios;69 artigos publicados em

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Compunham a lista: “Amor – pois que é palavra essencial”, “Sob o chuveiro amar”, “O que se passa na cama”, “Tenho saudades de uma dama”, “A castidade com que abria as coxas”, “Você meu mundo meu relógio de não marcar horas”, “De fugitivo hotel na colcha de damasco”, “Esta faca”, “Mimosa boca errante”, “Bundamel bundalis bundacor bundamor”, “Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça”, “A bela Ninfeia foi assim tão bela”, “Mulher andando nua pela casa”, “A moça mostrava a coxa”, “Era manhã de setembro”, “Quando desejos outros é que falam”, “Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”, “Adeus, camisa de Xanto”, “No pequeno museu sentimental” e “Para o sexo a expirar”. Salvo por três textos, “Esta faca”, “De fugitivo hotel na colcha de damasco” e “A bela Ninfeia foi assim tão bela”, garantia talvez da variedade temática do conjunto, a seleção privilegiava o enlevo e a plenitude propiciados pelo sexo. Desse modo, contrapunha-se à degradação do erotismo, questionada por Carlos Drummond de Andrade na literatura erótica contemporânea. 67 Em carta de 22 de agosto de 1984, ele lista: “O que se passa na cama”, publicado em O livro de cabeceira do homem, em 1975; “Esta faca”, “Tenho saudades de uma dama” e “Sob o chuveiro amar”, veiculados em 31 de julho de 1976 no primeiro número de José, revista de literatura e crítica de arte; “Coito”, em um número (não informado) de Status de 1981; “A moça” [“A moça mostrava a coxa”], na edição Status de julho de 1983; “Amor – palavra essencial”, em “Ele & Ela”, de janeiro de 1982. O levantamento não é extensivo, conforme podemos verificar ao cotejá-lo com o divulgado por Rita de Cássia Barbosa em seu livro já citado. Não foram indicados por Drummond: a versão de “Coito” veiculada em Homem de novembro de 1975; “O chão é cama”, em Forum literario (1975-1976), publicação de Los Angeles; “Jardim” [“Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”], no Cometa Itabirano de 26 de outubro de 1983. 68 A entrevista foi parcialmente publicada no suplemento Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, em 08 jul. 2012. Na nota introdutória redigida por Marcelo Bortoloti, consta que o próprio Carlos Drummond de Andrade teria sugerido à Maria Lucia do Pazo Ferreira, ex-vizinha de Lygia Fernandes, que estudasse os poemas eróticos inéditos. Todavia, não há indícios dessa recomendação na entrevista integral ou na correspondência preservada pela BN. É provável que a informação tenha sido fornecida pela pesquisadora, ainda viva. 69 Em carta sem data, Carlos Drummond de Andrade envia dois ensaios publicados na revista Mito, Bogotá, nº 27-8, jan./fev. 1960: “Noctas de lectura”, de Jorge Durán, e a tradução para o espanhol da Introdução de O erotismo, de Georges Bataille. 47

jornais;70 poemas;71 trabalhos acadêmicos;72 verbetes sobre o erótico e o erotismo;73 citações e verbetes de dicionários ou enciclopédias sobre o adjetivo “fescenino”.74 As sugestões vinham quase sempre na forma do recorte ou da cópia datiloscrita de trechos de livros pertencentes ao escritor. Poucas vezes, Carlos Drummond de Andrade se permitia avaliar o material enviado. Prevaleceu o tom lacônico e afetuoso dos cartões “A Lucia, com um abraço amigo do Carlos”.75 Todavia, alguns trechos sublinhados pelo escritor e os raros comentários permitem perceber as preocupações de Carlos Drummond de Andrade em relação a O amor natural. Em carta de 04 de fevereiro de 1985, por exemplo, ele sugere a “Lucia amiga” que observasse a “dignidade de expressão formal e a nobreza do sentimento poético desse ‘hino à luxúria’ de Albert Samain”, enviado à pesquisadora. Em correspondência sem data, Drummond afirma também encontrar em Lamartine um exemplo de “erotismo casto” ou “erotismo revestido de pureza”. Os juízos favoráveis, que ganham vulto devido à escassez das atribuições de valor na correspondência preservada, tendem a conduzir a 70

Entre os documentos preservados no acervo de Maria Lucia do Pazo Ferreiro, está o recorte da edição de Folhetim, suplemento da Folha de S. Paulo, de 25 mar. 1984, com tradução do artigo “Um poema de John Donne”, de Octavio Paz. Em correspondência de 17 de dezembro de 1984, Carlos Drummond de Andrade remete também o recorte d’O Globo datado de 09 de janeiro de 1985 sobre As canções de Bilitis, livro de 1894 em que Pierre Louys traduz uma coletânea de poemas líricos de autora grega contemporânea a Sapho. 71 Junto à tradução do artigo de Octavio Paz, mencionado na nota anterior, há as traduções da elegia “Indo para o leito”, de Jonh Donne, por Augusto de Campos, para o português, e Octavio Paz, para o espanhol. Em carta de 04 de fevereiro de 1985, Drummond também reproduz integralmente “Luxure”, de Albert Samain. Em correspondência sem data, Drummond envia ainda um trecho de poema de Lamartine, sem indicação de título, mas com a referência: Apud Menéndez Pelayo, Historia de las Ideas Esteticas em España, vol. V, pág. 370. 72 Em carta de 03 de junho de 1985, Drummond avisa remeter dois trabalhos, publicados em Momentos da crítica literária III: anais do VI Congresso Brasileiro de Teoria e Crítica Literárias e II Seminário Internacional de Literatura. O escritor “não se permite emitir juízo sobre o valor deles”. No acervo preservado pela biblioteca nacional, resta apenas um dos artigos, intitulado “A existencialidade do erotismo no texto literário: perspectiva da escritora brasileira”, de Telênia Hill, que versa sobre o erotismo feminino, visto como indissociável do rebaixamento social da mulher. Essa perspectiva está silenciada nos textos publicados em O amor natural. Talvez daí decorra a omissão do escritor. 73 O primeiro verbete, encontrado em “velho dicionário de literatura”, segundo o autor, foi remetido junto com carta manuscrita datada de 29 de agosto de 1985. Nela, registra-se a referência bibliográfica: Vapereau. Dictionnaire Universel des Littératures. Segonde [sic] édition. Paris, Librairie Hachette et cie, 1884, p. 722. Alguns meses depois, em carta de 12 de setembro de 1985, “depois da visão acadêmica do erotismo (Vapereau), Drummond enviou novo verbete, portador de “visão surrealista”. Consta também a referência: Adam Biro et René Passeron: Dictionnaire Général du Surréalisme et de ses Environs. Paris, Presses Universitaires de France, 1982, ps. 150-151. Nesse mesma carta, o escritor sugere a pesquisa no verbete do Littré, encontrado na biblioteca do então denominado PHAN. 74 Em carta de 22 de fevereiro de 1985, constam trechos sobre o fescenino extraídos de: Catulle. Poésies. Paris, Société d’Édition “Les belles lettres”, 1949; e verbetes retirados de: Grande Enciclopédie Delta Larousse, vo. 5, 1970 ; de Vapereau, Dictionnaire Universel des Littératures. Paris, Hachette, 1884, p. 783, e de Larousse du XXe siècle, Paris, Larousse, 1930, vol. III, p. 461. 75 Reproduzimos o texto integral de cartão pessoal datado de 07 de fevereiro de 1985, junto ao qual provavelmente foi enviado algum material sobre o tema da pesquisa de Pazo Ferreira. 48

postura da destinatária em favor de determinados usos da linguagem “nobres” ou “puros”. Ao menos, foi este o efeito obtido, dada a insistência com que Maria Lucia do Pazo Ferreira distingue em sua tese a elevação do erotismo drummondiano contra o rebaixamento de autores que exporiam o sexo de forma crua. A sutil condução do olhar de Maria Lucia do Pazo Ferreira ressurge em um recorte de jornal enviado pelo escritor. Em artigo sobre um poema erótico de John Donne, há destaques feitos com diferentes instrumentos: canetas esferográficas azul ou vermelha e hidrocor vermelho. Alguns deles, os riscados com o hidrocor, são certamente obra do poeta, visto que com essa caneta ele anotou a referência bibliográfica na primeira página do recorte. No artigo, o poeta sublinhou: “Tudo isso prova que, apesar do uso e abuso de palavrões com que pretendem assombrar-nos os escritores atuais, as línguas do século 20 são menos viçosas e terrestres, mais pobres e tímidas que as dos séculos 16 e 17.” Ao grifar esse trecho, Drummond evidenciava sua insistente preocupação com o aviltamento da linguagem na poesia erótica recente. Conforme defendemos, essa apreensão tinha fundo não só moral mas sobretudo estético e era uma das razões por que o escritor prometia destruir seu livro de poemas lascivos. Não obstante essa promessa, tamanha era a confiança do autor na diferença de seus poemas em relação à estética predominante na época que ele, como já mostramos, até mesmo ousou divulgar alguns textos eróticos no fim de sua vida. Não sem preservar a restrição do público a que as edições se dirigiam.76 No número de 1975-1976 de Forum Literario, veio à luz “O chão é cama”. Uma vez que o título era impresso em Los Angeles, o poeta certificava a circulação de seus versos sem se expor tanto aos equívocos que afirmava possíveis no contexto da revolução dos costumes e das transformações da literatura no Brasil. Em 1976, no primeiro número de José, dedicada à arte, literatura e crítica, o escritor expôs “Esta faca”, “Tenho saudades de uma dama” e “Sob o chuveiro amar”, depois reimpressos em Amor, sinal estranho. Embora distribuída em bancas de jornais e livrarias, a revista não atraiu um público amplo, conforme comprova a irregularidade das edições a partir do quinto número. Os temas predominantes (arte, ensaísmo, poesia e ficção) acabavam por limitar os leitores àqueles interessados em reflexões densas em vez das notícias rápidas predominantes em alguns

76

Guiamo-nos pelo levantamento divulgado por Rita de Cássia Barbosa em Poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade, op. cit., p.10-11. 49

títulos expostos junto a José.77 Em 1983, n’O Cometa Itabirano, pasquim dirigido ao público de Itabira, o autor divulgou “Jardim”, depois publicado sob o título “Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”. Por desvelar um poema erótico inédito justo na terra natal do escritor, a decisão poderia levar a que “até a décima geração” de Carlos Drummond de Andrade fosse desmoralizada, como ele temia já nos anos 1950.78 No entanto, a opção por versos com forte carga metafórica e linguagem nobre permitia que Drummond revelasse uma face importante de sua poesia sem se expor aos ataques dos moralistas. Os poemas eróticos pareciam também resguardados nas edições de arte em que alguns foram compilados pelo autor. Em Amor, amores, edição com tiragem de 423 exemplares, ele publicou em 1975 o poema “Coito”, cuja versão final, alterada, teve o título “A castidade com que abria as coxas” no livro póstumo. No exemplar único confiado a José Mindlin em setembro de 1977, editaram-se “Amor – pois que é palavra essencial”, “O que se passa na cama”, “Era manhã de setembro”, “A língua girava no céu da boca”, “Mimosa boca errante”, “A bunda, que engraçada”, “No mármore de tua bunda”, “A língua lambe”, “A moça mostrava a coxa”, “Bundamel bundalis bundacor bundamor”, “Quando desejos outros é que falam”, “Sugar e ser sugado pelo amor”, “Ó tu, sublime puta encanecida”, “Para o sexo a expirar”, “A bela Ninfeia foi assim tão bela” e “No corpo feminino esse retiro”. Em Amor, sinal estranho, com 100 exemplares, foram veiculados em 1984 “O que se passa na cama”, “Esta faca”, “Tenho saudades de uma dama”, “Sob o chuveiro amar”, “A moça”79 e “Amor – pois que é palavra essencial”, cujas versões finais fazem parte, com alterações, de O amor natural. Junto a outros versos célebres de Drummond, os textos inéditos em livro deixavam de parecer um aditamento pouco integrado à obra do poeta. Por outro lado, nessas edições, restritas aos escassos leitores aptos a pagar os valores cobrados, os versos eróticos aparentemente assumiam a elitização a que se arrisca o “tesouro estético do mundo”, criticada pelo próprio autor: O tesouro estético do mundo alegra, alimenta, consola os privilegiados, que têm acesso aos seus primores, mas as grandes 77

Restringimo-nos a comentar brevemente o aspecto comercial da revista. Contudo, ela teve importante papel cultural, como expõem os artigos de Simone Regina Dias e Luiz Ruffato informados nas referências bibliográficas desta tese. 78 Retomamos trecho de correspondência a Abgar Renault citada na introdução desta tese. 79 Poema publicado com o título “A moça mostrava a coxa” em O amor natural. 50

massas humanas parecem condenadas para sempre a não participar do festival. Eu pergunto se não há um egoísmo fundamental no criador literário, no artista, que se distrai com as formas da beleza, com o jogo sutil do espírito, enquanto a realidade em volta é apenas o esforço pela sobrevivência, sem qualquer horizonte, qualquer Gioconda de museu.80

Em relação aos poemas obscenos, Carlos Drummond de Andrade não parecia lamentar a exclusão da maioria dos leitores devido aos altos preços das edições de luxo. Talvez em sua velhice ele finalmente aceitasse o privilégio inerente à apreciação dos primores da arte. Essa interpretação é, contudo, negada quando em confronto com as demais publicações dos textos eróticos durante a vida de Carlos Drummond de Andrade. No primeiro número d’O livro de cabeceira do homem, de 1975, “O que se passa na cama” ganhava ampla luminosidade. Impressa pela Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, a revista bimestral participava da luta do editor contra a supressão dos direitos pelo Estado ditatorial. O periódico visava a ser um espaço de debate da realidade brasileira por meio de textos variados, como poemas, contos, letras de música e sobretudo reportagens.81 O poema eleito por Drummond fortalecia, mesmo que de forma oblíqua, as discussões. Sem descrever o ato sexual, os versos mostram a falta de espaço para o prazer em um mundo em que não só é preciso silenciar o êxtase como a paz é atribuída a “outro horto”. Critérios semelhantes parecem ter sido adotados para a divulgação de alguns poemas em revistas masculinas de ampla circulação comercial: “Coito”, veiculado em 1975 em Homem, “Amor – pois que é palavra essencial”, em 1982 em Ele & Ela, e “A moça”, em Status em 1983. Como propunha o poema divulgado no periódico da Civilização Brasileira, os textos faziam as metáforas e o rebuscamento da linguagem obnubilarem a descrição do sexo ou do desejo sexual, tornados parcialmente um “segredo de quem ama”. Além disso, tal qual na publicação bimestral da casa de Ênio Silveira, os poemas instauravam um espaço de reflexão, valorizado pelo poeta nas seções desse tipo de periódico não dedicadas às fotografias de mulheres nuas:

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Declaração extraída de Tempo vida poesia, op. cit., p. 1252. Pauto-me pelas conclusões de Carlos Alberto Farias de Azevedo Filho em “Revista Livro de Cabeceira do Homem: diálogo entre o jornalismo e a literatura em João Antônio”. 51 81

De fato, algumas revistas me pediram poemas eróticos e eu publiquei. Essas revistas têm entrevistado Teotônio Vilela, Antônio Galotti – pessoas da esquerda e da direita, personalidades brasileiras que jamais poderão ser acusadas de pornógrafas. Então eu acho que o nível delas não deve ser avaliado pelas fotografias de mulheres peladas, mas pela variedade de assuntos que eles comportam, inclusive a Literatura e as entrevistas sobre temas políticos, sociais etc.82

Justapostos às entrevistas e aos artigos redigidos por diversos intelectuais, os poemas deveriam distanciar-se do conteúdo explicitamente sexual veiculado nas páginas das publicações escolhidas pelo autor. A reforçar essa intenção manifesta está a repetição, nas edições de luxo dedicadas à lírica amorosa do escritor, dos versos expostos nas publicações populares. Apesar disso, é evidente que a relação com as fotos de mulheres nuas é muito menos equívoca quando se trata de uma entrevista sobre política ou arte do que no caso de poemas eróticos. Por sua temática, eles eram inegavelmente próximos às imagens das jovens expostas nas bancas de jornais. Em espaços dirigidos aos homens graças às imagens femininas, os versos se expunham a um perigo que Drummond afirmava indissociável do erotismo poético contemporâneo: a indesejada contiguidade à pornografia. Neste ponto, é preciso fazer avançar as reflexões acerca dos limites entre erotismo e pornografia. De acordo com Bernard Arcand, embora a distinção entre erótico e pornográfico não seja descritiva, podemos postular as diferenças entre eles desde que as reconheçamos históricas e não ontológicas. Para o antropólogo, como a pornografia (e a sexualidade) muda no tempo e no espaço, ela deve ser vista como um fenômeno social: é pornográfico o que a sociedade considera como tal. No contexto das sociedades modernas, o sexo sem outro artifício (médico, educativo, informativo etc.) é o que define melhor a pornografia. Os corpos não são obscenos, mas a gratuidade de sua ostentação: o gênero é fundado sobre a eliminação progressiva da realidade social a fim de atingir um estado extático em que só há o espaço e o tempo do sexo. Inegavelmente, nos poemas drummondianos expostos nas páginas de Homem, Ele & Ela e Status o mundo se dilui graças à ação dissolvente do êxtase ou à obsessão decorrente do desejo frustrado. Por isso, os versos reiteram a concentração sobre a sexualidade observada nas fotografias veiculadas no interior das revistas. Desse modo, como as imagens, talvez também eles propiciassem o efeito de excitação do receptor, 82

Declaração extraída de: Drummond: a lição do poeta. Diário do Nordeste, Fortaleza, ano II, n. 71, 26 fev. 1984. Suplemento DN Cultura. 52

característica recorrente nas definições modernas do pornográfico.83 A ação da escrita no corpo de quem lê, em seu sexo, poderia aproximar os textos eróticos drummondianos daqueles, não literários de acordo com o autor em “Questão de corpo”, que descrevem a anatomia para realizar o amor. Dessa forma, ao expor seus poemas nas revistas masculinas, o poeta parecia submetê-los ao erro mais de uma vez criticado em entrevistas concedidas na década de 1980: o aviltamento da literatura por meio da promessa de consumação do ato sexual. A aparente incoerência pode ser uma importante chave de leitura não só para os poemas veiculados em vida, mas sobretudo para alguns que viriam a público no livro preparado para a edição após a morte do autor. Ao escolher os textos a serem divulgados nas revistas masculinas, Carlos Drummond de Andrade adensou as contradições, como se registrasse a interseção parcial entre seus poemas e a pornografia para mais bem opor as duas formas de expressão da sexualidade. De fato, os versos selecionados compartilham uma das vias de atuação semiótica do gênero considerado menor pelo escritor: a mimese do coito ou de corpos em poses identificadas como próprias à prática sexual. Por outro lado, a elaboração mimética do sexo nos poemas se afasta radicalmente da fetichização da palavra realizada pela escrita pornográfica. Segundo Lucienne Frappier-Mazur (1999), a palavra obscena atua por meio da denotação, da literalidade, pois, caso privilegiasse o polissêmico ou o conotativo, poderia prejudicar a concentração sexual do consumidor. Nos poemas escolhidos por Drummond, a polissemia e o figurativo predominam. Em “A moça”, por exemplo, a região pubiana feminina e suas fendas se tornam “concha, berilo, esmeralda”, “porta hermética”, “pulcra rosa preta”, “máximo arcano”, “tríplice chave de urna”, “gruta invisa”, “nívea rosa preta”. Além disso, devido à escassez das descrições, os textos publicados nas revistas masculinas pouco favoreciam a evocação de representações corporais, importante estímulo erótico para o consumidor das obras pornôs. A opacidade dos versos, decorrente da rica elaboração formal, também dificultaria o trompe l’oeil que faz apagar o significante pelas imagens sexuais suscitadas. Com 83

Esse critério é comum mesmo em teses opostas a respeito da distinção entre erotismo e pornografia. Confiram-se as opiniões divergentes de José Paulo Paes, em “Erotismo e poesia”, e de Eliane Moraes e Sandra Lapeiz, em O que é pornografia. O primeiro defende: “Supor que um poema erótico digno do nome de poema vise tão só a excitar sexualmente os seus leitores equivale a confundi-lo com pornografia pura e simples” (PAES, 2006, p. 14-15). Moraes e Lapeiz afirmam: “Uma coisa é certa: seja pornografia ou erotismo, a característica essencial deste discurso é a sexualidade, e supõe-se que ele tenha uma certa capacidade afrodisíaca (ou ao menos pretenda tê-la), isto é, que excite os apetites ou paixões sexuais de seus ‘consumidores’” (MORAES & LAPEIZ, 1984, p. 8). 53

efeito, a estrutura clássica de um soneto como “Coito” ou de uma canção como “Amor – pois que é palavra essencial” exige tal atenção para os aspectos construtivos que fica barrado o efeito alucinatório da pornografia, ou seja, a substituição da palavra sobre o corpo pelo corpo bastante palpável – o próprio ou o da parceira – em que o leitor busca escape para a excitação que o texto pornográfico pode fomentar mas não saciar. Portanto, a veiculação dos versos em Homem, Ele & Ela e Status dificilmente reforçaria a promessa de gozo que sustenta em grande medida a venda de revistas do gênero. Os três poemas evidenciam os principais procedimentos do erotismo drummondiano, sempre contraposto à linguagem pornográfica: em primeiro lugar, a opção por um linguajar que recusa muitas vezes o registro baixo ou chulo; depois, o privilégio da metáfora em detrimento frequentemente da abordagem direta do ato sexual; por fim, a rica elaboração formal contra a suposta ausência de pesquisa estética na literatura contemporânea. Em “A língua lambe”, os lábios são “pétalas vermelhas” da “rosa pluriaberta”, bela imagem para a vulva; o clitóris é “oculto botão”; o monte pubiano, “gruta cabeluda”. Em “Você meu mundo meu relógio de não marcar horas”, a vagina torna-se “túnel cova cova cova”. O púbis é figurado por meio de imagens florais em “Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”, “São flores ou são nalgas”, “No pequeno museu sentimental” e “A castidade com que abria as coxas”. O sêmen é “fruto em fogo”, “sumo cálido”, “baba de delícias”, “líquida espuma do prazer” em “Mimosa boca errante”. O ânus, “a outra porta do prazer” no poema com esse título. Substitui-se assim a metonímia, outrora predominante, pela metáfora. Aquela contribuíra em grande parte da obra de Drummond para enfatizar a intensidade do desejo barrado, que levava mulheres intocadas a serem representadas por partes de seus corpos. Agora, quando a libido está quase sempre satisfeita, a figuração metafórica parece estimulada pelo novo interdito vigente: no lugar da repressão e do isolamento que impediam o gauche de realizar seus anseios amorosos e sexuais, estão os limites à nomeação franca e clara do sexo, de que é um aspecto o expurgo dos palavrões que faziam parte de alguns poemas lúbricos divulgados em vida pelo autor. A substituição e a esquiva revelam-se, por conseguinte, o cerne da poética erótica drummondiana. Esse fundamento vige mesmo quando o sexo deixa de ser velado por translações. A crueza é, então, evitada pelo vocabulário elevado ou neutro adotado em quase todas as referências diretas às zonas erógenas: “falo”, “pênis”, “membro”, “vulva”, “púbis”, “castanha clitórida”, “ânus”, “nalgas”, “nádegas”, “penumbra retal” passam a frequentar 54

a pena do escritor. Somam-se à lista algumas expressões populares – mas não chulas: “vara”, “bunda” e “traseiro”. Desvendamos, assim, uma variedade terminológica até então desconhecida na longeva trajetória do erotismo drummondiano, que chamara a atenção de Mário de Andrade já em 1930. As ações descritas também são inovadoras na poética de Carlos Drummond de Andrade, que passa a abordar as mais diversas carícias e gestos sexuais: intercurso vaginal, felação, cunilíngua, intercurso anal, anilíngua, sessenta e nove vêm a frequentar a pena do escritor. Talvez decorram mesmo dessa diferença vocabular e temática alguns dos receios do escritor em relação ao desvendamento dos versos. O possível choque oriundo dessa diferença é, não obstante, em grande medida reduzido devido à elaboração poética, que evita ser o significante apagado em favor das imagens suscitadas. A diversidade métrica e formal chama atenção: no volume, há sonetos, poemas em prosa, formas livres mas com versos regulares, versos livres em textos de dimensão variada, além de títulos que comprovam o aproveitamento espacial do papel. À diferença vocabular em relação ao conjunto da obra contrapõe-se, pois, a reiteração das formas aprimoradas ao longo de décadas de exercício literário e de pesquisa estética. Tampouco a nomeação indireta é exclusiva de O amor natural. Ela tem importante papel na diversificada luta do poeta com as palavras. Há, contudo, novas particularidades relevantes. Na escrita erótica, a nomeação oblíqua deixa os mecanismos de rasura e substituição evidentes como poucas vezes na poesia de Drummond. “A língua lambe” revela mais do que todos os textos do volume essa singularidade, uma vez que não só põe em prática os procedimentos drummondianos de representação do sexo como também reflete sobre os modos como o escritor busca mimetizar a volúpia: A LÍNGUA LAMBE A língua lambe as pétalas vermelhas da rosa pluriaberta; a língua lavra certo oculto botão, e vai tecendo lépidas variações de leves ritmos. E lambe, lambilonga, lambilenta, a licorina gruta cabeluda, e, quanto mais lambente, mais ativa, atinge o céu do céu, entre gemidos, entre gritos, balidos e rugidos 55

de leões na floresta, enfurecidos.

Composto majoritariamente por decassílabos heroicos, o texto inédito até a morte do escritor confirma o predomínio da representação metafórica do corpo, conforme expusemos acima. Além disso, neologismos – “lambilonga”, “lambilenta” e “lambente” – revelam o escavamento da linguagem também quando da representação do sexo. O enriquecimento do léxico é complementado pelo trabalho com a camada expressiva dos sons: o poema tece aliterações e assonâncias para reproduzir o ritmo das carícias realizadas no sexo feminino. Desse modo, os versos drummondianos propiciam um prazer decorrente não só do conteúdo erótico, mas sobretudo da técnica.84 Eles parecem assim atualizar, ademais, um dos sentidos subjacentes ao poema: graças à ambiguidade do substantivo que protagoniza as ações descritas, a língua em ação é também o idioma a lavrar “certo oculto botão”, metáfora talvez não apenas orgânica mas imagem das camadas da linguagem veladas pela representação indireta privilegiada em O amor natural. As considerações metapoéticas não são exclusivas de “A língua lambe”. Versos como os de “A língua francesa” pouco inscrevem o corpo e seus prazeres, preteridos pela reflexão acerca da literatura e da linguagem: A LÍNGUA FRANCESA À margem de La Défense et Illustration de la Langue Française, de Joachim du Bellay, e De la Préexcellence du Langage Français, de Henri Estienne

A língua francesa desvenda o que resta (a fina agudeza) da noite em floresta. Mas sem esquecer, num lance caprídeo, de ler e tresler a arte de Ovídio. 84

Esse tipo de satisfação foi analisada por Freud em Os chistes e a sua relação com o inconsciente. Segundo o psicanalista, em muitos chistes, “o sentimento de prazer do ouvinte não decorre do propósito do chiste nem de seu conteúdo intelectual; nada nos resta portanto senão colocar em conexão o sentimento de prazer com a técnica do chiste. Os métodos técnicos do chiste que já descrevemos anteriormente – condensação, deslocamento, representação indireta etc. – possuem assim o poder de evocar um sentimento de prazer no ouvinte, embora possamos não ter a mínima ideia de como terão adquirido tal poder.” (1996, p. 95) 56

A epígrafe parece convidar a uma leitura pouco relacionada ao erotismo. Não fosse sua aposição no volume póstumo, o texto talvez propiciasse sobretudo a compreensão do desvendamento ali tematizado como o elogio do idioma francês, exaltado por Du Bellay e Estienne. Seria possível também ler nos versos o registro da leitura por Drummond de autores latinos em tradução francesa. A suposição se fundamenta no catálogo da biblioteca do autor, sob a guarda do Instituto Moreira Salles. Ovídio, Horácio, Virgílio, Lucrécio, Estácio foram em grande parte “desvendados” pelo escritor em edições francesas.85 A hipótese é reforçada também quando lembramos que o retorno à tradição greco-romana, de que Ovídio é um notável representante, foi uma das divisas defendidas por Du Bellay e Estienne. A “noite em floresta” poderia ser entendida, nesse contexto, não só como a escuridão das fendas orgânicas e dos pelos pubianos sulcados pela língua do amante, mas também como a obscuridade em que estiveram alguns autores clássicos antes de sua tradução para as línguas vernáculas, cuja importância foi propalada pelos autores citados na epígrafe. Portanto, o poema de Carlos Drummond de Andrade – “fina agudeza” – funde a atualização do prazer sexual com a apresentação do deleite decorrente do acesso à herança clássica, inclusive às vertentes que permitiam o desvelamento dos jogos eróticos. A delícia advinda da literatura não leva, contudo, o escritor a filiar seu poema de forma óbvia à tradição referida: os versos são compostos em redondilhas menores e organizados em quadras, formas à margem da herança greco-romana. Outra ironia chama atenção nos versos: o texto se exime de expor francamente as aberturas orgânicas apesar de ter como uma de suas linhas temáticas o desvendamento das partes erógenas do corpo. Em outros poemas do conjunto, como neste, elas sairiam da noite em que haviam sido mantidas pelo autor: QUANDO DESEJOS OUTROS É QUE FALAM Quando desejos outros é que falam e o rigor do apetite mais se aguça, 85

Destacamos os seguintes títulos: Les métamorphoses, traduzidas por J. Chamonard (1953) ; Œuvres complètes, de Horácio, em tradução de Richard François (1931); L’Énéide, de Virgílio, traduzida por Maurice Rat (1947); De la nature, de Lucrécio, traduzido por Henri Clouard (1931); Silves, de Estácio, em tradução também de Henri Clouard (1935); as antologias Poetae minores, com seleção e tradução de Ernest Raynaud, e Romans grecs & latins (1931), traduzida por Pierre Grimal (1958), além dos estudos Histoire de la littérature latine, de René Pichon, em edição de 1908; Traité de métrique latine classique, de Nougaret (1948), Virgile: poète, artiste et penseur, de Guillemin (1951), e Étude sur Virgile, de SainteBeuve (s.d). Por fim, notamos que o dicionário de latim consultado por Carlos Drummond de Andrade vertia o idioma para o francês: Dictionnaire illustré latin français, de Félix Gaffiot (1934). 57

despetalam-se as pétalas do ânus à lenta introdução do membro longo. Ele avança, recua, e a via estreita vai transformando em dúlcida paragem. Mulher, dupla mulher, há no teu âmago ocultas melodias ovidianas.

Os versos acompanham o intercurso desde o desabrochar do desejo até a transformação do ânus em “dúlcida paragem” pelo “membro longo”. Os orifícios já não estão ocultos sob a noite. Tampouco está escondida a tradição com que o poema dialoga: a do classicismo. Essa herança é duplamente indiciada nos versos: pela forma, composta por decassílabos heroicos, e pela nova menção a Ovídio. Tal retomada poderia conduzir a uma leitura que privilegiasse a harmonia e o fechamento, de acordo com os preceitos majoritários no legado clássico. Esses princípios são subvertidos pelo poema, contudo. Em primeiro lugar, ele remete à parte da obra de Ovídio, a de cunho erótico, mantida na sombra durante alguns séculos – “ocultas melodias ovidianas”.86 Além disso, o texto de Carlos Drummond de Andrade desrespeita um dos “preceitos centrais” da concepção clássica do belo de acordo com Márcio Seligmann-Silva: a “rigorosa censura quanto à representação das aberturas do corpo humano” (1998, p. 97). Ainda segundo o crítico, essa interdição decorre da ruptura, pela imagem dos orifícios humanos, com a concepção totalizante do cosmos e da arte predominante nas principais vertentes do classicismo: As aberturas constituem justamente os locais de transpiração do corpo, de troca com o mundo: de extravasamento, de obliteração dos limites (do corpo e dos limites em geral). A pele contínua, o corpo sem fendas, representa uma totalidade ideal, um todo com as suas fronteiras absolutamente claras e bem delimitadas. (idem, p. 97)

O alegre transtorno aos limites do corpo por meio das diferentes formas de amar reapareceria em outros textos. “A outra porta do prazer” pode propiciar um conhecimento único, colhido na escuridão das fendas orgânicas:

86

Segundo Curtius, em Literatura europeia e Idade Média Latina, na seleção de autores feita por Conrado de Hirsau no século XII, “de Ovídio, os Fasti e Ex Ponto são ‘tolerados’, e repelidas as obras eróticas e As metamorfoses.” (1996, p. 86) A rejeição às Metamorfoses não foi unânime, uma vez que a leitura alegórica permitia a “moralização” (idem, p. 265) do poema narrativo. O mesmo procedimento não serviria tão bem à Arte de amar, citada por Carlos Drummond de Andrade em um de seus poemas eróticos. 58

A OUTRA PORTA DO PRAZER A outra porta do prazer, porta a que se bate suavemente, seu convite é um prazer ferido a fogo e, com isso, muito mais prazer. Amor não é completo se não sabe coisas que só amor pode inventar. Procura o estreito átrio do cubículo aonde não chega a luz, e chega o ardor de insofrida, mordente fome de conhecimento pelo gozo.

Nesse poema, a polimetria modula a reflexão acerca da sabedoria obtida durante o ato sexual. O conteúdo dos versos ecoa no trabalho por eles realizado: o de dar a conhecer a importância, para o sexo e para o saber, das partes do corpo “aonde não chega a luz”. Porém o faz de forma velada, em um jogo de luminosidade e sombra mais denso do que o lido em “Quando desejos outros é que falam”, o qual nomeia abertamente o ânus. Agora o orifício é designado de forma indireta, “estreito átrio do cubículo”. A despeito da diferença entre os dois textos, a gênese de um e outro revela um mesmo pendor para a abordagem oblíqua do corpo. Versão anterior de “Quando desejos outros é que falam”, encontrada no exemplar confiado a Mindlin em 1977, lançava ainda mais luz sobre as fendas eróticas. Nesse original, encontramos as seguintes variantes: v. 2 e o rigor do apetite mais se alonga, v. 3 as pétalas do cu se despetalam v. 6 vai transformando em dúlcida boceta. v. 7 Mulher, dupla mulher, há no teu ânus

“A outra porta do prazer” também teve versão com abordagem mais direta do corpo. Em poema remetido a Maria Lucia do Pazo Ferreira em 1985, o substantivo “ânus” aparece no título e duas vezes nos versos. Apresenta-se um corpo cujos limites estão franqueados, mas por meio de uma linguagem limitada pelos interditos autoimpostos pelo poeta. O problema da referência franca às fendas orgânicas é de tal forma marcante que um dos poemas do conjunto gira em torno do substantivo “cu”, “asqueroso monossílabo” nunca nomeado: 59

EU SOFRIA QUANDO ELA ME DIZIA Eu sofria quando ela me dizia: “Que tem a ver com as calças, meu querido?” Vitória, Imperatriz, reinava sobre os costumes do mundo anestesiado e havia palavras [impublicáveis. As cópulas se desenrolavam – baixinho – no escuro da mata do quarto fechado. A mulher era muda no orgasmo. “Que tem a ver...” Como podem lábios donzelos mover-se, desdenhosos, para emitir com tamanha naturalidade o asqueroso monossílabo? a tal [ponto que, abrindo-se, pareciam tomar a forma arrendondada de um ânus. A noite era mal dormida. A amada vestida de fezes puxava-me, eu fugia, mãos de trampa escorregante acarinhavam-me o rosto. O pesadelo fedia-me no peito. O nojo do substantivo – foi há trint’anos – ao sol de hoje se derrete. Nádegas aparecem em anúncios, ruas, ônibus, tevês. O corpo soltou-se. A luz do dia saúda-o, nudez conquistada, proclamada. Estuda-se nova geografia. Canais implícitos, adianta nomeá-los? esperam o beijo do consumidor-amante, língua e membro exploradores. E a língua vai osculando a castanha clitórida, a penumbra retal. A amada quer expressamente falar e gozar gozar e falar vocábulos antes proibidos e a volúpia do vocábulo emoldura a sagrada volúpia. Assim o amor ganha o impacto dos fonemas certos no momento certo, entre uivos e gritos litúrgicos, quando a língua é falo, e verbo a vulva, e as aberturas do corpo, abismos lexicais onde se restaura a face intemporal de Eros, na exaltação de erecta divindade em seus templos cavernames de desde o começo das eras quando cinza e vergonha ainda não haviam corroído a inocência de viver.

Diferentemente dos outros dois centrados no ânus, o texto aborda o assunto a partir de um ponto de vista pessoal e ancorado em um contexto histórico definido. A narrativa se aviva pelo tom prosaico dos versos, brancos e livres. Quando o puritanismo vitoriano imperava, o eu poético sofria com o desembaraço da mulher a pronunciar a “palavra impublicável”. O horror decorria do descumprimento do papel feminino pela amante, que se recusava a manter-se muda. Devido à ousadia, seu corpo, “vestido de fezes”, transfigurou-se aos olhos masculinos: os “lábios donzelos” simulavam a forma do ânus; as mãos, trapaceiras e fétidas, de “trampa escorregante”, atormentavam a noite do homem. O eu vivia um pesadelo saído de um “mundo anestesiado”. Trinta anos depois, a aflição está acabada. A “nudez conquistada” com a abertura dos costumes 60

permite ao homem gozar com a amante a “volúpia do vocábulo”. O tom eufórico assumido ao abordar o presente chega ao ápice na estrofe final: “o amor ganha o impacto dos fonemas certos” e o corpo já não transfigura um substantivo asqueroso. Ao contrário, a linguagem se torna um órgão erógeno – “a língua é falo, e verbo a vulva”. Sob um aspecto, porém, a lascívia da língua permanece contida. Apesar de os parceiros sexuais usufruírem a recém-proclamada liberdade do corpo e da linguagem sobre ele, o enunciador do poema não avança sobre os “abismos lexicais”, pois desconfia das vantagens de designar as aberturas orgânicas: “Canais implícitos, adianta nomeá-los?”. As dúvidas parecem avançar sutilmente mesmo para a alegria experimentada pelos amantes, caracterizados como consumidores. Os versos atribuem, assim, aos parceiros sexuais uma mercantilização indesejada na literatura erótica pelo escritor, que não queria ver seus versos “explorados comercialmente como se faz com a literatura pornográfica corrente. ‘É o caso dos contos cheios de palavrões gratuitos...’”.87 Entre os amantes apresentados em “Eu sofria quando ela me dizia”, o súbito aparecimento da mercadoria será depois sobrepujado pela “face intemporal de Eros”, atingida pela “sagrada volúpia”. Os versos eróticos não terão, no entanto, a mesma sorte. Eles permanecerão tímidos acerca das aberturas orgânicas, talvez devido ao temor do poeta em relação aos ardis do comércio que rondam a literatura sobre o corpo. Alguns poemas parecem confirmar a hipótese. “À meia-noite, pelo telefone” tematiza os limites dados pela abrasada amante às notícias sobre seu corpo. Sem poder corresponder aos anseios femininos, o homem se cala. O silenciamento ocorre também na gênese dos versos. Outrora a descrição era direta, fazendo contrastar o léxico elevado com a linguagem popular: a amante contava que era “fulvo o seu pentelho” e não “a mata de seu púbis”, como na versão final. Em “São flores ou são nalgas”, o vocábulo raro dilui o olhar detido sobre o corpo. Ademais, as interrogações ali presentes tornam os versos “lascivos arabescos” a girar “em torno do elemento essencial” mas “inacessível”, como expressara poema dos anos 1940 que expõe uma poética do ornato. De acordo com essa visão, a arte “não passa de uma forma do gratuito”, a qual “renuncia a explicar para melhor apreender”, conforme defendeu Merquior em sua leitura de “Fragilidade” (RP) (op. cit., p. 118-119 e p. 184). Parece-nos ser relação semelhante a desenvolvida pelo poema erótico, que dispõe de feixes de palavras em 87

Trecho transcrito da entrevista, já citada, concedida por Drummond a Cremilda Medina. 61

torno do corpo sem nunca expô-lo diretamente. As espirais ao redor do tema abordado tornam-se, assim, o motor de uma poética da profusão estimulada pelo inter-dito. Em poemas como “Sugar e ser sugado pelo amor” e “Bundamel bundalis bundacor bundamor”, a escrita do júbilo faz do idioma um corpo a ser eroticamente manuseado e fertilizado. No primeiro, a exaltação dos amantes ecoa na perversão da língua, a criação de novas palavras por meio da justaposição e da aglutinação ajudando a representar a fusão dos amantes durante o sessenta e nove. “Bundamel bundalis bundacor bundamor” leva o processo ao ápice. A partir do radical “bunda”, criam-se diferentes substantivos emblemáticos da variedade das experiências ofertadas por aquela parte do corpo. As diversas origens dos radicais justapostos e aglutinados (banto, francês, árabe, latim) reforçam a pluralidade. Desse modo, reflete-se na linguagem a mutação/renovação proporcionada pela bunda. Na poesia de Carlos Drummond de Andrade, não são novos tais procedimentos de inovação do idioma.88 O trabalho do escritor teve largo espectro, incindindo sobre as diferentes camadas da língua, desde o arranjo de fonemas ou grafemas até a sintaxe e a organização dos versos e das estrofes. Em “Os materiais da vida”, de A vida passada a limpo, signos referentes a marcas de fábricas são combinados a neologismos de modo a expressar a intromissão do comércio no amor. A perda de consistência do erotismo é também representada pela composição aparentemente aleatória de consoantes. Alguns anos depois, em Lição de coisas, “Amar-amaro” refletiria, através do estilhaçamento da sintaxe e da morfologia, a espostejação da “carne do conhecimento” graças à inconsolável experiência amorosa. A notação do mundo como um “museu do pardo indiferente” será ainda mais aprofundada em “Os nomes mágicos”, de A falta que ama, por meio do predomínio de significantes destituídos de significado. Pervertendo a grafia de palavras existentes e somando-as a algumas criadas por ele, o poeta encena a rarefação do sentido devido à mercantilização da experiência nas sociedades modernas. Poderíamos concluir, a partir desses exemplos, que as práticas de fecundação e transformação da linguagem desenvolvidas em O amor natural apenas retomam um veio fértil da escrita drummondiana, especialmente aquele debruçado sobre as relações humanas e amorosas na contemporaneidade. Uma leitura mesmo breve dos versos, porém, chama atenção para uma diferença fundamental: a mestria da arte combinatória 88

Para uma abordagem mais ampla do tema, confira-se A criação lexical em Carlos Drummond de Andrade, de Nice Seródio Garcia. 62

drummondiana deixa de ecoar a insatisfação e o desconcerto do mundo, como fizera majoritariamente ao longo da obra publicada em vida segundo Davi Arrigucci Jr.: Na verdade, a qualidade artística de sua obra depende do poder de articulação de que ele é capaz. Sua técnica de construção lida com materiais divergentes, mas, ao mesmo tempo, com o mal-estar em face do mundo de onde os retira. Só assim salva a multiplicidade contraditória do mundo e da alma na unidade do poema, sem anular as diferenças, que constituem o pulso vivo das contradições, ou desconhecer o sem-fim das coisas que tendem a escapar ao desejo de totalidade quando se quer dar forma. E, mesmo assim, a aspiração do poeta acaba confinada, sem reconciliação possível com aquilo que por si mesmo é incomunicável, ao reduto do fragmento, ao resíduo do que fica, ao desejo barrado na passagem. (2002, p. 32)

Até ao menos Lição de coisas, defende o crítico, a articulação de material divergente permitia pôr em contato os elementos apartados no mundo contemporâneo sem apaziguar as contradições. Tal permanência das cisões mantinha o “desejo barrado”, estimulando o potencial infinito das novas articulações dos elementos justapostos. Diferentemente, O amor natural, mesmo quando interroga a validade da linguagem sobre o corpo, supera o confinamento das aspirações devido à alegria expressa em um idioma que se goza francamente. Essa outra poética decorre das transformações na condição individual: o sujeito já não é movido na maioria dos poemas pelo contraditório sentimento do mundo, que o levava a tecer fragmentos; fora do mundo, “além do irreal”, o eu parece finalmente experimentar na variedade das sensações a unidade perdida, “que ao número acrescenta uma nova harmonia”.89 A proliferação de novos vocábulos e formas parece dar conta dessa “ordem ideal” que finalmente é trazida para o primeiro plano. A “língua lavra”, desse modo, o “coração numeroso” enfim saciado. 1.3 PALAVRA ESSENCIAL Um poema do conjunto merece uma leitura minuciosa por acrescentar aos expedientes aqui já expostos novos importantes elementos no que diz respeito à poética erótica drummondiana. Trata-se de “Amor – pois que é palavra essencial”, anteriormente veiculado, com alterações pouco significativas, em Amor, sinal estranho 89

Citamos trecho de “Bundamel bundalis bundacor bundamor”. 63

e em Ele & Ela. A divulgação nos meios voltados para diferentes públicos anunciava a centralidade que o título ganharia na coletânea: o texto abre O amor natural. Os leitores da obra de Carlos Drummond de Andrade saberão que a escolha não é vã. Os livros do autor são fruto de montagem cuidadosa, em que o posicionamento dos poemas também se torna objeto de análise. Pode-se lembrar diferentes exemplos. Em Alguma poesia, “Poema de sete faces” já anunciava um princípio válido não apenas para o volume, mas para grande parte da trajetória do escritor: o vínculo entre a dissonância da forma, tornada fragmentária, e as inadequações do sujeito gauche ao vasto mundo. Em A rosa do povo, o contraponto entre os primeiros textos, “Consideração do poema” e “Procura da poesia”, faz conviver o investimento confiante nas palavras com as dificuldades da busca pela poesia. O procedimento, recorrente, pode avançar até as partes marginais dos livros: “Poema-orelha”, de A vida passada a limpo, define o intrincado jogo com as palavras, capazes de afirmar o vivido apenas no momento em que o negam. Os versos iniciais de O amor natural dão mostras do abandono da poética dissonante antes construída: invocado como guia, o substantivo “Amor” parece substituir pelo gozo entre palavras o projeto reflexivo que tensionara a poética do escritor. Essa leitura, superficial, deve ser reavaliada. Talvez, como reconhecemos em grande parte da poesia drummondiana, o sentido unívoco e fácil seja apenas uma armadilha da forma. AMOR – POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL Amor – pois que é palavra essencial comece esta canção e toda a envolva. Amor guie o meu verso, e enquanto o guia, reúna alma e desejo, membro e vulva. Quem ousará dizer que ele é só alma? Quem não sente no corpo a alma expandir-se até desabrochar em puro grito de orgasmo, num instante de infinito? O corpo noutro corpo entrelaçado, fundido, dissolvido, volta à origem dos seres, que Platão viu completados: é um, perfeito em dois; são dois em um. Integração na cama ou já no cosmo? Onde termina o quarto e chega aos astros? Que força em nossos flancos nos transporta a essa extrema região, etérea, eterna? 64

Ao delicioso toque do clitóris, já tudo se transforma, num relâmpago. Em pequenino ponto desse corpo, a fonte, o fogo, o mel se concentraram. Vai a penetração rompendo nuvens e devassando sóis tão fulgurantes que nunca a vista humana os suportara, mas, varado de luz, o coito segue. E prossegue e se espraia de tal sorte que, além de nós, além da própria vida, como ativa abstração que se faz carne, a ideia de gozar está gozando. E num sofrer de gozo entre palavras, menos que isto, sons, arquejos, ais, um só espasmo em nós atinge o clímax: é quando o amor morre de amor, divino. Quantas vezes morremos um no outro, no úmido subterrâneo da vagina, nessa morte mais suave do que o sono: a pausa dos sentidos, satisfeita. Então a paz se instaura. A paz dos deuses, estendidos na cama, qual estátuas vestidas de suor, agradecendo o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

Chama atenção o caráter classicizante do poema. Devido a essa extração, como em outros textos analisados acima, a leitura da tradição se faz fundamental. Se em “A língua francesa”, vimos a reflexão acerca da literatura sobrepujar a representação do sexo, aqui o retorno à herança clássica e a inscrição do gozo se fundem. Esse amálgama fica evidente desde a primeira estrofe, onde, à maneira dos bardos antigos, o amor, além de assunto, é a força a propiciar o canto grandiloquente a respeito do êxtase erótico. Um relevante deslocamento na tradição retomada ocorre já na invocação inicial. No lugar das Musas, dos deuses, está a palavra. A transformação poderia ser compreendida como um artifício retórico pouco relevante, visto que o substantivo assume o lugar de fundamento da cosmovisão e dos conteúdos apresentados no poema. Nesse sentido, não apenas substitui Deus, mas parece assimilar a concepção teológica e teleológica da linguagem. Sob a multiplicidade das palavras, há uma Palavra, a que se deve remeter para atingir a justa significação. 65

A santidade do signo “amor” já fora tema de Corpo. Em “O seu santo nome”, uma sucessão de imperativos resguarda esse substantivo e quem esteja em risco de blasfemá-lo: Não facilite com a palavra amor. Não a jogue no espaço, bolha de sabão. Não se inebrie com o seu engalanado som. Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro). Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra. Não a pronuncie.

O texto é formalmente em tudo diverso do poema erótico. À forma fixa, contrapõem-se os versos livres. À linguagem elevada, o tom leve decorrente de imagens prosaicas, como a da “bolha de sabão”, e do recurso a lugares-comuns, como a expressão “espalhar aos quatro ventos”. Há também distinções importantes na abordagem do tema. A palavra “amor” não é aqui a divindade benfazeja capaz de guiar o fazer poético, mas a instância que se deve temer ou, para retomar os termos ali adotados, com que não se deve facilitar. Apesar das diferenças, o poema pode revelar a transgressão da visada teológica, talvez também corrompida em “Amor – pois que é palavra essencial”. A perversão se estabelece inicialmente no liame entre o título e o conteúdo do poema. “O seu santo nome” introduz um referente ambíguo. “Seu” pode remeter à palavra “amor” e a alguém cujo nome, sagrado, não é apresentado nos versos. Nesta leitura, a santidade do amor fica subjugada à sacralidade do ser amado. Naquela, fica patente a ironia sobre a qual se erige o texto. A nova deidade assume o lugar de Deus, cujo “Santo Nome” não deve ser evocado em vão segundo o mandamento bíblico. Além disso, o contraste entre a inscrição do substantivo no primeiro verso e o interdito da pronúncia da palavra deixa ver o ardil subjacente aos imperativos justapostos: o amor é uma divindade desrespeitada – ou só pode ser cultuada quando se expõem suas contradições. Essa leitura é ratificada ao observarmos que o exílio promovido pela palavra ocorre na Terra, espaço pouco adequado à proteção e à elevação permanentes do Absoluto. O desterro do mundo em desarranjo não será, portanto, o resultado do culto da palavra “amor”. Pronunciá-la conduz à renovação das inquietudes humanas graças à experiência da loucura imiscuída na perfeição.

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Em “Amor – pois que é palavra essencial”, a transgressão do âmbito divino não é tão evidente. À primeira vista, não há ironia. Entretanto, ela talvez resida em um detalhe aparentemente pouco relevante: na interrupção da sintaxe. Falta o complemento que viria a justificar por que “amor” é alçado ao nível das Musas. A palavra é “essencial”, mas para que ou quem? Para a poesia – pode-se supor – ou, mais especificamente, para a escrita de versos eróticos ou, ainda, para os amantes arrebatados. A variedade de respostas é propiciada pela abertura do discurso. O espaço deixado em branco fere, desse modo, a estabilidade que seria preciso reconhecer em um nume tomado como fundamento sólido do discurso. Fosse “amor” a palavra essencial, seria o signo primeiro, principal, o adjetivo permitindo leitura diversa daquela aqui proposta. Sendo apenas palavra essencial, entre outras, o vazio se faz ver. Está abalada a identidade decorrente da linguagem, traço tão caro à tradição atualizada pelo poema.90 A dissonância mantém-se, portanto, na relação do texto com as palavras, mobilizadas de modo a subverter o edifício clássico, apenas aparentemente respeitado. Tal retorno à herança de extração greco-romana não é estranho à obra do poeta. Nos anos 1950, as Musas já haviam ingressado no verso modernista de Carlos Drummond de Andrade. A diversificação formal foi, nesse período, muitas vezes confundida com um retrocesso.91 Alguns reprovariam principalmente o que julgavam ser a demissão das preocupações públicas pelo escritor.92 Em seu “O princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond de Andrade”, Costa Lima, por exemplo, considerou haver uma diminuição da “qualidade de poemas mesmo inteiros” a partir de Claro enigma devido à “repressão da forma mais sensível de revelação do Tempo e da História” (1968, p. 199). A tal julgamento, o crítico acrescentou outra corriqueira

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O percurso aqui traçado, da teleológica concepção clássica da linguagem ao escavamento moderno das palavras, foi marcado pela leitura de As palavras e as coisas, de Michel Foucault, para quem “a partir do século XIX, a literatura repõe à luz a linguagem no seu ser: não, porém, tal como ela aparecia ainda no final do Renascimento. Porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pela qual se achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura.” (2002, p. 61) 91 Vagner Camilo, na introdução de Drummond: da Rosa do povo à rosa das trevas, faz um levantamento extenso das críticas à poética anunciada em Novos poemas e ratificada em Claro enigma, Fazendeiro do ar e A vida passada a limpo. Tendo em vista o objetivo deste ensaio, restringimo-nos a alguns textos elucidativos da polêmica em torno do “modernismo classicizado” de Carlos Drummond de Andrade, como definiu Merquior (op. cit., p. 191). 92 Interessam-nos por ora especialmente as críticas feitas à linguagem adotada por Carlos Drummond de Andrade nas obras em que releu de forma mais evidente a herança clássica. As preocupações públicas serão tema do terceiro capítulo desta tese. Confira-se esse ensaio para uma abordagem mais completa da questão. 67

acusação à poética do período: “não menos certo ser menor sua força; sua inventividade passa a estar inserida nos canais da tradição, em vez de propor sua tradução a novos tempos” (ibidem, p. 204). Esse juízo é elucidativo dos ataques disferidos sobretudo contra os aspectos formais da obra drummondiana dos anos 1950. Em “Drummond: mestre de coisas”, Haroldo de Campos adotou opinião similar. Para ele, a poesia drummondiana dos anos 1950 incorporou a tradição em vez de dialogar criticamente com ela. De tal submissão decorreria o enfraquecimento da poética do autor, julgada o “afélio” no seu itinerário (2004, p. 52). Sintomaticamente, para o concretista, a escrita de Carlos Drummond voltaria a se aproximar do Sol apenas quando, nos anos 1960, deixasse ver – mesmo que à revelia do autor93 – afinidades com as propostas do movimento defendido pelo escritor mais jovem. Encontramos aqui mais um exemplo da “confusão entre teoria e autopropaganda”, recorrente nos concretistas, “sempre empenhados em armar a história da literatura brasileira e ocidental de modo a culminar na obra deles mesmos”, de acordo com o juízo preciso de Roberto Schwarz (1987, p. 61). Pignatari, líder do movimento junto com os irmãos Campos, contrastou também a suposta “noite” da poesia drummondiana com o alegado vigor da escrita concreta, segundo ele a “primeira grande totalização da poesia contemporânea, enquanto poesia ‘projetada’ – a única poesia consequente de nosso tempo (a contar do simbolismo francês e, especialmente, do Lance de dados para cá)” (1973, p. 108). Ao visionarismo dos escritores mais jovens opõe o crítico a incapacidade de Drummond discernir a crise da poesia no pós-guerra. Tal inconsciência – política e poética – teria afetado o valor da obra do autor mineiro: “A guerra-fria vai lançá-lo numa longa noite tartamuda, onde parece perder os fios do projeto e do concreto: formalismo e subjetivismo tomam conta de sua poesia e ameaçam aliená-lo, entregá-lo embrulhado ao misticismo (recuperação do fracasso)” (ibidem, p. 103). As opiniões negativas, quase sempre unilaterais, podem ser contestadas. É já um equívoco supor que a originalidade estivesse ausente da literatura clássica. Certamente o 93

A recusa do concretismo por Carlos Drummond de Andrade está documentada em O observador no escritório. Em registro de 5 de fevereiro de 1957, o escritor confessa seu desinteresse pela “onda concretista”, tida por uma “nova forma de primitivismo”, que “transforma pobreza imaginativa em rigor de criação” (2003, p. 1044). O autor discorda, ainda, de que estejam esgotadas as possibilidades propiciadas pelo verso, como queriam os concretistas da primeira hora (ou como compreendeu Drummond as propostas do movimento vanguardista dos anos 1950). No mesmo ano da publicação de Lição de coisas, incensado por Haroldo de Campos por ser supostamente afim à neovanguarda paulista, a visão ácida acerca do concretismo volta ao diário de Carlos Drummond. Em 30 de abril de 1962, o poeta mineiro anota as piadas feitas por Agripino Grieco em um encontro casual. Entre elas, parece estar um poema concretista “criado” no calor da hora pelo crítico paraibano. 68

novo não assume aí o papel destruidor que lhe foi dado na modernidade. Todavia, o arranjo imprevisto das possibilidades oferecidas pelos tópoi e pelos gêneros literários foi também parte essencial da arte anterior à demolição romântica e vanguardista.94 Ademais, Carlos Drummond de Andrade mobilizou a tradição de forma irônica nos anos 195095 – e depois, como pretendemos deixar claro com a leitura de “Amor – pois que é palavra essencial”. Críticos do porte de Sérgio Buarque de Holanda, José Guilherme Merquior e John Gledson96 demonstraram ser o retorno à tradição um novo impulso assumido pela poesia drummondiana rumo à formalização diversificada das preocupações sociais por meio do investimento inovador na palavra poética. O primeiro reconhece em Drummond o “enlace de tendências à primeira vista contrastantes” (1978, p. 189) no combate à fadiga da sensibilidade moderna: a elevação da poesia acima da desgastada linguagem corrente – “solução hierática”, nos passos de Mallarmé – conjuga-se ao esforço por retirá-la de seu isolamento – “solução demótica” mas não demagógica como sói ocorrer na pior literatura engajada. Formas críticas de ler o presente, ambas as saídas são políticas e tanto mais porque não dissociadas. Merquior e Gledson ajudam a compreender como ocorre tal associação, à primeira vista 94

Francisco Achcar, em Lírica e lugar-comum, ilumina a especificidade do novo surgido a partir dos tópoi ofertados pela tradição de linhagem greco-romana: “Mas, para as poéticas clássicas, a dificuldade de encontrar as portas que deem acesso à expressão nova não se resolve pelo arrombamento das portas conhecidas. O ‘arrombamento’ foi estratégia de uma certa vanguarda romântica oitocentista (lembremos o martelo com que Victor Hugo ameaçava as poéticas clássicas), assim como de vários romantismos de vanguardistas do nosso século (o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo). Contrariamente, na poesia culta, antiga como moderna, essa dificuldade estimula a utilização imprevista, inovadora, das portas conhecidas, as portas das palavras já ditas, procurando-se chegar através dela a passagens que não foram frequentadas, ou abrir nessas passagens outras portas que levem a caminhos ainda inexistentes. Na poesia culta, nunca se abandona o jogo – joga-se com as regras dele.” (1994, p. 18-19) 95 O caso de “Legado” (CE), mal avaliado por Haroldo de Campos como fruto de um “tédio alienante” (ibidem, p. 51), é emblemático da recusa do lugar-comum clássico pelo poeta. Apenas negativamente se pode reconhecer aí o topos da perenidade da poesia, vista como monumentum. Novamente Achcar esclarece com acurácia a inversão da herança clássica no poema: “Não seria o caso de ingênuo neoclassicismo, como o de muitos poetas da ‘geração de 45’: o próprio virtuosismo e o famoso humour de Drummond, que não fora antes um modernista ingênuo, deve afastar a hipótese de qualquer neoparnasianismo desprevenido. Parece ser antes um caso de ironia estilística – tom, forma e linguagem solene fazem mais inesperada e destoante a ruptura com um dos tópoi mais grandiosos da ‘grande tradição’. O parnasianismo, a que o poema alude formalmente, foi um arremedo cômico dessa tradição; mas, se não atingiram a gloire ardente du métier, os parnasianos lograram algumas pequenas glórias de certa perícia artesanal hoje extinta. O poema de Drummond se beneficia desse artesanato e faz dele a trama de um contexto sobrecarregado de estilemas ‘clássicos’. Aí, a grande ironia é a visão desidealizada do trabalho do poeta – o glorioso monumentum vira ‘uma pedra no meio do caminho’, ou pior: ‘uma pedra em meio do caminho’” (ibidem, p. 176). 96 A lista não tem o objetivo de ser extensiva. Importantes ensaios mais recentes, especialmente o livro de Vagner Camilo já citado, demonstraram de forma mais abrangente como as tranformações sofridas pela poesia de Drummond em fins dos anos 1940 responderam às preocupações do poeta com a história de seu tempo e com as tranformações ocorridas na literatura do período. É fundamental ainda a leitura de Razão da recusa, de Betina Bischof, para a compreensão do ensombreamento do verso e dos temas em Drummond como forma de se contrapor a um tempo presente também de sombras. 69

improvável. O ensaísta brasileiro demonstra residir o classicismo drummondiano em uma maior abstração do real. Esta seria o resultado, em grande medida, da decepção do escritor com a “‘militarização dos espíritos’ no tempo da guerra-fria” (op. cit., p. 193). Logo, o desencanto do autor mineiro assume um alcance crítico sem prescindir da sobrevivência de uma utopia mesmo que “ideologicamente desencarnada” (ibidem, p. 193). O crítico inglês faz ver na consciência da precariedade da poesia, dominante nas obras publicadas por Carlos Drummond nos anos 1950, “o resultado da mesma intimidade com o mundo que esses críticos normalmente aprovam” nas obras publicadas pelo autor nos anos 1940 (op. cit., p. 212). A ruptura entre o canto participante e a escrita melancólica subsequente não é tão drástica, portanto. Tampouco a realidade fica de todo alijada da literatura: “Realidade pode ser um conceito relativo e escorregadio, e que o poeta ridiculariza, mas a sua poesia ajudará outros a construir dela a sua versão” (ibidem, p. 217). Não à toa, em “Brinde no banquete das Musas” (FA), Carlos Drummond nos apresenta a poesia – conquanto, ou porque, cancerosa – a salvar em seu “regaço incestuoso” o que é perdido. Durante ao menos duas décadas, as Musas clássicas foram praticamente silenciadas. Nos anos 1960 e 1970, o tom elevado e a poesia meditativa, embora não inteiramente abandonados, cederam espaço para o anedótico e o narrativo, em poemas que denunciam uma incomum fé na palavra. A mudança temática acompanha a transformação formal: o poeta prefere então as formas e os versos livres. Entre os metros regulares, também usuais, é comum a fluência das redondilhas maiores. A poética, bastante variada, dos livros publicados nos anos 1980, viria diversificar esse quadro como parte da renovação constante a que se submete o escritor.97 A paixão medida e O amor natural voltam a visitar de modo mais frequente o legado clássico sem abandonar as formas livres conquistadas pelo modernismo. Agora o olhar retrospectivo já não parece conduzido pela visada melancólica predominante nos anos 1950, quando as formas clássicas reforçavam o desengano do poeta com a realidade contemporânea. Embora a miséria da vida presente não deixe de frequentar a pena de Carlos Drummond de Andrade,98 ele se volta de forma mais evidente para a interrogação da existência e sobretudo do amor. Para tanto, a linguagem 97

Essa sujeição se explicita na epígrafe de Corpo: “O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente.” 98 Confiram-se poemas como “A festa do mangue” (PM),“A cruz e a árvore” (PM), “Eu, etiqueta” (Co), “Os amores e os mísseis” (Co), “Favelário nacional” (Co), além dos poemas de circunstância da seção “Alegrias e penas por aí”, de Amar se aprende amando. 70

deve ser vista não com a desconfiança que caracterizara a classicização do verso realizada anteriormente. Deve ser um meio a permitir um ponto de vista confiável acerca do amor.99 Talvez devido ao espectro amplo propiciado pelo tema, o escritor volte a variar tanto as formas usadas. É possível também que, tendo já experimentado a confiança na palavra – aproximada da festa em Lição de coisas e fiadora do conhecimento nesse livro e em Boitempo –, Carlos Drummond de Andrade leve adiante as possibilidades advindas da fé na potência do fazer poético. Uma delas é certamente a mobilização subversiva da tradição clássica, tantas vezes mitificada. “Fonte grega”, de A paixão medida, não deixa dúvidas a respeito da riqueza daí decorrente: A vida inteira mijando – lastima-se a deusa – e nem sobra tempo para viver. Minha linfa de ouro ao sol, inestancável, impede-me o sono, proíbe-me o amor. Não sei abrir as pernas senão para isto. Para isto fui concebida? Para derramar este jacto morno sobre a terra, e nunca me enxugar, e continuar a expeli-lo, branca e mijadora, fonte, fonte, fonte? A deusa nem suspende veste nem arria calça. É seu destino mijar. Sem remissão, corpo indiferente e exposto, mija nos séculos.

A fonte grega, compreendida como a origem e o modelo para certa tradição artística, exila-se do céu a que fora alçada para tornar-se uma estátua atormentada pela baixeza de sua tarefa sisífica: a excreção, que lhe dota de um corpo paradoxal, perecível como o dos animais mas condenado à imortalidade de deusa. O rebaixamento do ser por definição elevado se desdobra na seleção vocabular, que beira o chulo, registro incomum em Carlos Drummond de Andrade. A duplicidade daí oriunda se inscreve na cisão entre o conteúdo – a imortalidade angustiante – e a forma, moderna por excelência, do poema em prosa. Tornada eternamente corruptível, a herança grega tem sua exclusão da história vencida pela ironia drummondiana. A indiferença do corpo clássico pelos séculos está vingada. Em “Amor – pois que é palavra essencial”, a ironia volta-se sobretudo para a estabilidade atribuída à linguagem pela vertente majoritária do classicismo literário. É significativo que a palavra caracterizada de forma incompleta deva guiar o discurso. Dessa forma, entrelaça-se o princípio ordenador com o sutil desvio na sintaxe. A instabilidade avançará para as outras estrofes. Após a complexa invocação inicial, os 99

Lembramos que a confiança na linguagem manifesta nos versos de O amor natural convive com uma suspeição de fundo acerca da validade da poesia erótica. A esse respeito, confiram-se as duas primeiras seções deste ensaio. 71

versos começarão a tecer polos tradicionalmente afastados: corpo e alma, passagem do tempo e eternidade. Difundindo a alma pelo corpo, o amor manifesta seu caráter integrador: na segunda estância, é força apta a unir sem diluir as facetas individuais; será, na seguinte, o poder de dissolução dos corpos apartados na vida cotidiana. A construção do poema também se deixará afetar pela junção de substâncias distintas ali tematizada. Composta por quartetos regulares, predominantemente em decassílabos heroicos, a forma discrepa da expressão do orgasmo: o grito, limite e dissolução da linguagem. Esse contraponto sintetiza o mecanismo de retomada da poética e do pensamento clássicos em “Amor – pois que é palavra essencial”: movimento espiralado a recuperar formas e temas para lançá-los em um contexto que os modifica substancialmente. Lembramos a importância da contenção para a tradição clássica.100 No Laocoonte, de Lessing, é interdita a representação do grito pelas “artes espaciais”, ou seja, a pintura e a escultura. Nelas, a boca escancarada faria perder as belas linhas visadas pelas obras artísticas. Por isso, os artífices do conjunto formado por Laocoonte e seus filhos reduziram o berro a um suspiro. Desse modo, evitaram repugnar o espectador, o que tornaria a obra incapaz de suscitar a compaixão pela qual poderia purificar os sentimentos do público. Diferentemente, na poesia o grito é permitido. Nesta, a repugnância do feio não seria tão intensa quanto nas artes visuais, pois a imagem poética é mediada pelas palavras. Já a escultura paralisaria o momento de deformação do rosto, signo da animalização do homem quando este perde sua linguagem.101 Além disso, a escrita, “arte temporal”, faria do grito apenas uma ação entre as muitas realizadas pelas personagens. A falta de decoro se tornaria, assim,

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Seria mais correto falar em uma certa tradição clássica, majoritária ou mais compatível às prescrições comuns nas teorias da arte reinantes até fins do século XVIII. Com efeito, um texto como o Laocoonte, de Lessing, citado a seguir, foi contemporâneo de obras pouco afeitas ao teor normativo da representação do grito, como a de Goya. Márcio Seligmann-Silva, em “Arte, dor e Kátharsis ou: Variações sobre a arte de pintar o grito”, um estudo acerca da apresentação artística do berro de dor, explicita a variedade na arte clássica: “A arte, segundo certa concepção clássica, é o campo da fruição do belo e, segundo outra tradição clássica ainda, a arte seria um meio de entender o ‘bem’. Poder-se-ia perguntar, então, se seria possível uma conciliação entre a arte ‘da dor’ e essa visão tradicional da arte? Ora, na verdade isso não só é possível, como também, de certo modo, essa modalidade da arte sempre foi no mínimo tão importante – e ‘clássica’ – quanto a sua face avessa à representação da dor.” (2005, p. 45) 101 Penso nas reflexões de Elaine Scarry em The body in pain: “Physical pain does not simply resist language but actively destroys it, bringing about an immediate reversion to a state anterior to language, to the sounds and cries a human being makes before language is learned” (SCARRY, 1985p. 14). [A dor física não simplesmente resiste à linguagem mas ativamente a destrói, trazendo uma imediata reversão ao estado anterior da linguagem, aos sons e gritos que um ser humano faz antes de a linguagem ser aprendida.] 72

transitória e desculpável diante da grandeza do caráter do herói, segundo defende Lessing: Por mais que Homero, de resto, eleve os seus heróis acima da natureza humana, eles permanecem, no entanto, sempre fiéis a ela quando se trata das sensações de dor e de ofensa, quando se trata da exteriorização dessas sensações pelo grito ou pelas lágrimas, ou pelas invectivas. Segundo os seus atos trata-se de criaturas de tipo mais elevado; segundo os seus sentimentos, verdadeiros humanos. (1998, p. 84-85)

A justificativa para a representação do grito na poesia participa de critérios estéticos e éticos: as personagens heroicas, que guardam características dos deuses e dos homens, podem infringir a justa medida sem se tornarem inverossímeis; no entanto, para a obra poder ensinar além de deleitar, os heróis devem ser caracterizados por virtudes que justifiquem o temporário destempero. Essas qualidades são facilmente identificáveis em narrativas como as epopeias homéricas ou em tragédias. Já em “Amor – pois que é palavra essencial”, o grito de gozo surge sem que o comedimento do sujeito tivesse ainda sido construído.102 Tampouco esse traço será depois apresentado. Aqui a desmedida irrompe, sem mais, em meio à contenção formal. O ordenado edifício do poema domina a força dissolvente do berro, quase sempre circunscrito à superfície temática. Contudo, a expressão do gozo por vezes espraia o transbordamento no arranjo dos versos. Por meio do marcante enjambement na estrofe que anuncia o desregramento da comunicação dos amantes, mimetiza-se o descomedimento simbolizado pelo grito. A reunião de opostos é expressa também pela rima consoante entre “infinito” e “grito”, incomum no texto composto em versos brancos. Tal conjunção fica reforçada pelo posicionamento consecutivo dos versos em que surgem os substantivos rimados. Como analisou Hélcio Martins, na poesia drummondiana a identidade de sons, sempre inventiva, pode representar insuspeitas “correspondências entre significados (por aproximação ou repulsa)” (1968, p. 35). Na estrofe analisada, esse processo se enriquece a tal ponto que já não é possível definir 102

A importância da antecedente apresentação das virtudes do herói e sua confirmação posterior é explicitada por Lessing: “Seria então efetivamente indecoroso para um homem gritar na violência da dor; em que uma tal pequena falta de decoro transitória poderia prejudicar aquele cujas outras virtudes nós já aceitamos nele? O Laocoonte de Virgílio grita, mas esse Laocoonte que grita é justamente aquele que nós já conhecemos e amamos como o patriota mais cordato e o pai mais afetuoso. Nós vinculamos o seu grito não ao seu caráter, mas, antes, apenas ao seu sofrimento insuportável. Apenas esse último nós ouvimos no seu grito; e o poeta pode torná-lo sensível apenas graças a esse grito.” (ibidem, p. 105-106) 73

qual força, de atração ou antagonismo, suscita a harmonia sonora: aproximam-se termos tradicionalmente repelentes, a recorrência dos sons unindo a efemeridade do berro à paradoxal eternidade do instante. Portanto, embora majoritária, a contenção se vê assaltada pelo desregramento da forma. Semelhante subversão do comedimento clássico fora já encenada em um poema publicado na última década da vida de Carlos Drummond de Andrade. O título de “A paixão medida”, texto homônimo à coletânea de 1980, anuncia o controle do êxtase amoroso. Os versos, ao revés, avançam rumo ao desregramento dos sentidos deliciados pelo amor: Trocaica te amei, com ternura dáctila e gesto espondeu. Teus iambos aos meus com força entrelacei. Em dia alcmânico, o instinto ropálico rompeu, leonino, a porta pentâmetra. Gemido trilongo entre breves murmúrios. E que mais, e que mais, no crepúsculo ecoico, senão a quebrada lembrança de latina, de grega, inumerável delícia?

O título mostra-se irônico. A medida não diz respeito à moderação do amante, mas aos metros da poética clássica, pervertidos de modo a melhor descrever a cena íntima.103 “Trocaica”, adjetivo originado do pé de verso “troqueu”, já não guarda seu significado original, salvo talvez o sentido etimológico: “de pés rápidos”, a indicar possivelmente a qualidade da mulher amada, arisca ou inicialmente resistente aos apelos amorosos. “Dáctila” pode, por sua vez, remeter às carícias ternas do amante, visto que o termo grego se refere aos dedos. Além disso, como o “espondeu” do verso seguinte, por ser comum nos poemas épicos, esse adjetivo ajuda a compor o aspecto heroico da conquista amorosa. Seus resultados são também marcantes ou duradouros, conforme parece indicar o terceiro verso com sua remissão ao pé formado por duas sílabas longas. No quarto verso, pela única vez um termo da métrica clássica assume função substantiva. O pé parece aqui assumir seu significado anatômico: pés e pernas entrelaçadas, como nos faz acreditar a semelhança fônica entre a forma portuguesa “iambo” e a palavra francesa “jambe”. “Alcmânio”, tetrâmetro dactílico, leva a crer, no 103

A leitura aqui realizada deve muito às análises feitas por Apolo dos Santos Silva (2010), no ensaio “A estética clássica em Drummond”, e Daniel Soares Duarte (2006), em sua dissertação de mestrado a respeito de A paixão medida. 74

quinto verso, em um dia que aguçou o tato, movimentou os dedos, do eu poético. O ato sexual avança: o instinto “ropálico”, adjetivo a sugerir “fálico”, penetra, com o vigor de um leão, o corpo feminino. Nesse momento, sexo e metalinguagem se conjugam: “leonino” parece comentar a rima interna no verso anterior. A conjunção carnal e a sonora também se sobrepõem: aliterações e assonâncias iteram a comunhão física. A constância dos acentos, incidentes na quinta sílaba desde o primeiro até o sétimo verso, tem efeito semelhante. Devido a esse recurso, os versos, conquanto polimétricos, percutem o ritmo harmonioso da paixão amorosa. A emoção está portanto medida, mas não por meio de prescrições formais anteriores ao poema, como era comum na estética clássica. O sentimento é escandido em uma forma que pode exprimir a intensa recordação subjetiva ao mesmo tempo em que o torna passível de ser tornado público de acordo com recursos poéticos compartilhados pela tradição. A reiteração dos acentos na quinta sílaba só será abandonada quando, a partir do oitavo verso, nomear-se-á a desmedida ansiada uma vez que decline o ecoar dos corpos: “E que mais, e que mais, no crepúsculo ecoico”. Nesse verso, alexandrino, o acento recai sobre a sexta sílaba. Desde então, o poema não retornará ao padrão rítmico anterior, visto que a “quebrada lembrança” do gozo rompe o relativo equilíbrio obtido na primeira parte do texto pela acentuação regular, a qual repercutia a simetria fruída graças ao amor. O arremate parece, porém, fazer o arroubo prevalecer à contenção mesmo quando se evoca o encontro erótico: um verso bárbaro revela que o ato sexual propicia uma “inumerável delícia”. A medida cede à paixão. Em “Amor – pois que é palavra essencial”, não é tão nítido o predomínio do excesso sobre a moderação. Ao longo do poema, o rigor da forma contém a expansão do gozo. As primeiras estrofes apresentam também o controle da paixão pela alerta consciência crítica do sujeito poético. Encontramos aí, apaziguado, um conflito comum na poesia do autor: contra as pressões do sentimento – facilmente tornado sentimentalismo –, a inteligência e a ironia se fazem presentes. Mas a rasura completa dos afetos também teria efeitos ilusoriamente pacificadores: omitiria a difícil constituição do sujeito no mundo moderno, tema essencial da escrita drummondiana. Por isso é comum que, contra os excessos da razão, a experiência afetiva se registre nos

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versos de Carlos Drummond de Andrade. Inteligência e paixão formam os polos de um fértil combate.104 Esse antagonismo, não resolvido na obra publicada em vida pelo escritor, ressurge no texto de abertura de O amor natural embora sob forma menos tensa. Como anuncia a primeira estrofe, a composição participa do cancioneiro lírico. Nesse caso, a exaltação subjetiva, tão comum nas composições do gênero, seria estimulada pelo prazer físico, o amor guiando o verso ao mesmo tempo em que reúne os sexos. No entanto, o poema silencia temporariamente o arrebatamento lírico em favor das interrogações a respeito do amor carnal, apresentadas em estâncias com forte tom argumentativo: a segunda e a terceira. Perguntas retóricas apresentam a tese ali defendida acerca do amor, inevitavelmente duplo, carnal e espiritual, efêmero e permanente. Difundindo a alma pelo corpo, esse afeto manifesta seu caráter integrador: é agora força apta a unir sem diluir as facetas individuais; será, na estância seguinte, o poder de dissolução dos corpos apartados na vida cotidiana. Sobretudo a terceira estância evidencia de que forma o controle da paixão importa para a retomada da herança clássica pelo poema. Graças a esse expediente, os deslocamentos podem incidir também sobre as ideias e conceitos oriundos do classicismo. O trecho explicita a matriz com que dialogam os versos: o platonismo, referido por meio do mito do andrógino, narrado n’O banquete. A passagem deixa clara, além disso, a complexa aproximação com a literatura renascentista europeia, fortemente influenciada pelos desdobramentos dessa linhagem filosófica. Tal afinidade já se expusera ao longo da obra poética do autor, sobretudo por meio da referência à poesia camoniana.105 Partimos da abordagem do texto de Platão, emblemática da enriquecedora retomada do legado greco-romano por Drummond.106 A primeira operação de 104

Tal conflito é enfatizado por Alcides Villaça em seu Passos de Drummond. As palavras do crítico são iluminadoras: “O antagonismo entre a necessidade afetiva de constituição e expressão de um sujeito e a desconfiança de que tal tarefa é mais que problemática traduz muitos dos paradoxos do nosso tempo. O mais ferrenho individualismo, explorado nos limites agudos da autoconsciência, é também a consciência possível do mundo torto. O discurso lírico drummondiano nos faz viver tanto a experiência moderna condutora de uma inteligência pujante, mas irônica, como os desvãos de uma paixão desconsoladora, mas irresistível.” (2006, p. 8-9) 105 A esse respeito, confira-se “A variante expressiva: ‘Cammond Drumões’”, de Gilberto Mendonça Teles (1976) e as diversas análises acerca de “A máquina do mundo” informadas na bibliografia desta tese. Leia-se também o belíssimo “História, coração, linguagem”, poema de A paixão medida em homenagem a Camões. 106 Antes de nós, Mirella Vieira Lima já havia notado, sem se dedicar detidamente ao problema, a “tentativa de superação do idealismo amoroso, de base platônica, e místico-cristã, por uma afirmação dos 76

deslocamento refere-se à leitura de um dos discursos que compõem O banquete: o de Aristófanes, o qual defende ser o amor o fruto da tentativa pelos homens de resgatarem sua unidade original perdida. Um belíssimo mito ilustra essa proposição. Outrora, os seres humanos tinham forma inteiriça, “com o dorso redondo, os flancos em círculo” (PLATÃO, 2012, p. 119). Cada indivíduo tinha duas faces opostas uma à outra e dois sexos. Devido à sua presunção, os homens foram castigados pelos deuses por meio da bipartição de seus corpos e almas, de que redundou a forma por nós hoje conhecida. Os rostos foram voltados para a mutilação a fim de que as pessoas se lembrassem de ser mais moderadas. Graças a essa amputação, cada um anseia restaurar a antiga natureza ao enlaçar sua própria metade. Por isso, arremata o comediógrafo, dá-se à procura e ao desejo do todo o nome de amor. Os termos usados por Aristófanes são retomados de forma bastante evidente pelo poema erótico drummondiano. O comediógrafo imagina Hefesto propondo a dois amantes fundi-los em um ser. A resposta, transfigurada por Carlos Drummond de Andrade no quarto verso da estrofe em questão, confirma o desejo de fusão dos enamorados: “Depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um só diria que não ou demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que há muito estava desejando, sim, unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só.” (idem, p. 125, grifo nosso) Em trecho anterior do discurso do comediógrafo, também haviam surgido expressões apropriadas pelo poema erótico: “[...] envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem [...]” (idem, p. 121, grifo nosso). Até este momento, nenhuma perturbação parece atingir a retomada do mito. Todavia, uma omissão fundamental ocorre aqui: conforme lembrou Lacan (1992), em sua bela leitura d’O banquete, a fusão dos amantes é antes um anseio do que o resultado da busca amorosa, uma vez que os homens são impotentes para suplantar o castigo divino. Ademais, na fala de Aristófanes, a figura do andrógino é derrisória em relação à esfera, imagem da plenitude e da autossuficiência no pensamento antigo desfigurada pelos membros, olhos, orelhas e genitais do mitológico proto-homem. Em Drummond, diferentemente, o abraço cria a forma perfeita, “um em dois, dois em um”. Poder-se-ia objetar que não há qualquer ironia na assimilação parcial do mito oriundo da tradição filosófica. Talvez. Não devemos esquecer, entretanto, que a sentidos. O movimento de ascensio ou elevatio é realizado pelos sexos dos amantes que conseguem atingir o céu, imagem de perfeição e harmonia.” (op. cit. p. 162) 77

narrativa frequentara já a pena do escritor, sem que houvessem sido omitidos, como ocorre no poema erótico, os traços derrisórios do amor andrógino ou a insaciedade do desejo. A “derrisão da esfera” – para usarmos o termo caro a Lacan – é encenada em “O amor bate na aorta”, de Brejo das Almas, no qual o corpo do demônio maligno e zombeteiro se estropia em uma de suas travessuras bastante prosaicas. A falta no coração do desejo surge em “Porque”, de Farewell, que expõe ser perdido o “intento” de misturar os amantes de modo a criar “o mais perfeito andrógino/ nunca citado em lendas e cimélios”. A esse ser perfeito, esfera autossuficiente, contrapõe-se a prazerosa chaga aberta pelo amor. É possível reconhecer ainda outro deslocamento no pensamento platônico quando retomado pelo texto erótico drummondiano. A eleição da fala de Aristófanes no lugar da de Sócrates elide a estrutura hierárquica do simpósio. Precedido pelo encômio de um tragediógrafo e o de um comediante, o discurso socrático revela os limites dos elogios criados pelos antecessores. O Amor não é o anseio de resgatar uma totalidade perdida, como quer Aristófanes, ou uma divindade caracterizada pela pura beleza e delicadeza, conforme defende Agatão. É um gênio intermediário, desejoso do que carece: do belo e da sabedoria. Como mediador, ele permite a comunicação entre os deuses, imortais, e os homens, imperfeitos e transitórios. Daí decorre o desejo de geração no belo. Somente assim podem os seres humanos guardar o equivalente, precário embora, da imortalidade dos deuses, garantindo para si algo da continuidade e da fixação. Ainda mais importante do que a parturição de novos seres, que fecunda os corpos, é a geração na alma por serem mais duradouros seus frutos. Essa outra forma de criação no belo, também merecedora da alcunha de “amor”, garante a continuidade das ideias e a educação da comunidade. Mas esta constitui ainda apenas uma etapa no domínio da precariedade do seres. O último estágio é a contemplação do belo em si, proporcionada pela visão inicial de corpos formosos, mas que a eles abandona em busca da ascensão até o universo intelectivo. Em vez de se confinar no irracional e na mutabilidade do mundo sensível, o discurso de Sócrates parte daí para alcançar a estabilidade das ideias. Portanto, ainda que o amor se enraíze no mundo, avança para além dos limites deste, de suas “muitas ninharias mortais”, nos dizeres de Diotima, pitonisa iniciadora do filósofo no universo do Amor. O poema de abertura da coletânea póstuma parece realizar movimento semelhante. A ascensão ao cosmo inicia-se na quarta estrofe. A integração avança: 78

tendo reunido os fragmentos de um sujeito antes cindido em corpo e alma e superado a descontinuidade entre os amantes, o amor eleva os enamorados até os astros, lugar da eternidade vislumbrada por Platão no mundo das ideias. As interrogações de caráter ontológico serão substituídas a partir de então pela narrativa, em fortes tons épicos, de um percurso vertical que culminará com a deificação dos heroicos parceiros sexuais.107 As ações não se oporão aos questionamentos antes desenvolvidos, mas os ilustrarão. Ao fazê-lo, evidenciarão que a aparente conformidade com o pensamento platônico é sobretudo um recurso para que ele seja mais bem subvertido. Essa perversão se delineia a princípio com o papel assumido pelas personagens da travessia até o céu. O corpo, e não a alma, revela-se o instrumento das forças capazes de romper as nuvens. Tal predomínio poderia ser minimizado caso lêssemos os órgãos sexuais como uma metonímia do sujeito em êxtase, mas a hipótese não nos parece adequada. A potência dos quadris contrasta com o apagamento dos contornos subjetivos, apenas indiciados pelo generalizante “nos” na quarta estrofe. Além disso, uma vez que o amor é capaz de expandir a alma no corpo, corpo e alma são independentes embora se possam comunicar. Já que a ilharga transporta os homens até “a extrema região, etérea, eterna”, membro e vulva tornam-se parte fundamental – veículo – da subjetividade enlevada pelo gozo. Em “Amor – pois que é palavra essencial”, a experiência física e a metafísica compõem um rico amálgama. Essa aliança será a conquista celebrada no poema. Fica abalado desse modo o gradual abandono do mundo sensível, defendido por Sócrates n’O banquete. Está excluída também a via para minimizar o perecimento dos corpos de acordo com O banquete: a geração de novos seres. O sexo em O amor natural é estéril, como atesta “Adeus, Camisa de Xanto”: “que de tudo nem ao menos/ (seria tão bom, no entanto)/ ficou um filho, um filha”. Além disso, o poema exclui a importância do amor para a construção de uma comunidade virtuosa, aspecto fundamental na filosofia de Platão. Já no discurso de Fedro, primeiro do simpósio, o desejo de honrar o amante revelava a importância ética do amor. Em Sócrates, esse sentimento, aspiração ao moral 107

A união de amor e heroísmo participa de longa tradição filosófica e poética. Já em um dos diálogos dos primeiros anos da Academia de Platão, filósofo mencionado na terceira estrofe, o substantivo “herói” encontrava sua origem em “eros”. Não se trata de evolução arbitrária segundo o Crátilo: o étimo se fundamentaria na gênese dos semideuses, frutos do amor dos seres divinos com os mortais. Também os oradores, heroicos, proviriam de eros por serem hábeis na arte de falar (eirein) e interrogar (erotan). Embora a origem não seja endossada pela etimologia, nesse diálogo, do mesmo modo que o amante em “Amor – pois que é palavra essencial”, o herói é digno de louvor por ser um intermediário entre deuses e homens. 79

e essencialmente belo, propicia que o homem modele em si o verdadeiro Homem, com os olhos fitos nas ideias. Dessa forma pode ele atuar de acordo com os preceitos de uma vida social justa.108 No poema erótico, os amantes – na cama ou no cosmo – afastam-se do mundo. A completude alcançada com a experiência amorosa confina-se à subjetividade dos parceiros sexuais.109 A menção a Platão constitui, por conseguinte, outra volta na espiral de retomada e perversão da herança clássica. Contra as expectativas de contenção criadas pela referência ao filósofo, o transbordamento oriundo do deleite dos sentidos avança. A aproximação à poesia renascentista, de extração neoplatônica, tampouco é simples. De fato, a dicção clássica encontrada no poema de abertura de O amor natural – mesmo quando entremeada pela ironia – aproxima-se muito mais de tal linhagem do que do esvaziado ornamento parnasiano, rejeitado por Drummond desde sua juventude. Duas epígrafes do volume, a de Ronsard e a de Camões, confirmam a importância dessa herança para o erotismo drummondiano. Nos versos de “Amor – pois que é palavra essencial”, como nos poetas citados, a riqueza formal se articula à concepção elevada do erotismo. No mesmo golpe, não obstante, o texto atrai o amor, etéreo e eterno, para o terreno bastante material da carne. Pode fazê-lo porque fica de fora a recusa do corpóreo, que permeia a leitura cristã do platonismo.110 Já não se opõem “fraquezas do

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Guio-me pelas considerações de Jaeger em Paideia. Segundo o ele, a geração no belo, propiciada pelo amor, abrange “o bom e o perfeito, o que dá sentido à vida em todos os campos da conduta e do saber” (1995, p. 745). O pesquisador acrescenta: “Para Platão, o conceito do eros torna-se assim a suma e o compêndio da aspiração humana ao bem. Diferentemente de Aristófanes, Sócrates defende que eros não visa apenas a outra metade do nosso ser, a sua totalidade, a não ser que por isso se entenda o bom e o perfeito. A totalidade já não se refere apenas à individualidade fortuita, mas ao verdadeiro eu do Homem, voltado ao Bem. “O eros, concebido como amor pelo Bem, é ao mesmo tempo o impulso para a verdadeira realização essencial da natureza humana, e portanto um impulso cultural no mais profundo sentido da palavra.” (idem, p. 739) 109 Apesar de sua exclusão do poema de abertura do volume, o sentimento do mundo não está expulso de O amor natural, conforme discutiremos no terceiro ensaio desta tese. Remetemos também à primeira seção deste capítulo para a análise das interferências das preocupações públicas de Carlos Drummond nas hesitações em relação à edição da coletânea. 110 No que concerne especificamente à leitura d’O banquete pelo neoplatonismo, o seguinte trecho de Marsilio Ficino é extremamente esclarecedor: “[...] a alma, quando segue o corpo, negligencia a si mesma e não se satisfaz com o uso do corpo. O que ela deseja, na verdade, não é o corpo mas, seduzida como Narciso pela forma corpórea que é a imagem da sua própria beleza, e como não percebe isso, enquanto procura uma coisa e deseja outra, não pode satisfazer o seu desejo. Eis por que esvaindo-se em lágrimas ele se consome, o que significa que a alma, situada fora de si e caída no corpo, é ao mesmo tempo atormentada por paixões nefastas e corrompida pelas máculas do corpo. Ela morre, por assim dizer, porque já se assemelha mais a um corpo do que a uma alma. Também Diotima, querendo que Sócrates escapasse a uma morte como essa, o conduziu do corpo à alma, da alma ao anjo e do anjo a Deus.” (2004, p. 55-56) 80

corpo” a um “pensamento divino”, conforme encontramos em uma canção camoniana.111 Não à toa o trecho do francês é extraído de um poema que prefere o hedonismo às contradições decorrentes do desejo não realizado. Em sentido semelhante, o verso do autor português mencionado na abertura de O amor natural vem do épico Os Lusíadas, onde a euforia supera as passagens que deixam ver o desencanto e o pessimismo comuns no lirismo camoniano. Por isso, Deus, a que recorre Camões em “momentos de profunda crise”, está quase sempre apartado.112 Pela mesma razão, o corpo pode se deleitar, como lemos no trecho do canto IX citado nas epígrafes da coletânea póstuma: “O que deu para dar-se a natureza”. A recomposição do contexto em que surge o verso pode ajudar a compreender a importância da referência para a coletânea erótica. A passagem foi extraída das aventuras de Leonardo, ou Lionardo na grafia camoniana, que ocupam as estrofes 75 a 82 do canto citado, quando os heróis portugueses, regressando à pátria, recebem como prêmio por seus combates o amor das Ninfas. A personagem já aparecera no canto VI. Descansando os portugueses, sem perceberem os sinais da forte tempestade que os atormentaria, Leonardo propõe que sejam narrados contos de amor para os navegantes passarem o tempo. A resposta à sua sugestão é uma veemente recusa da brandura em tempos de aspereza: “Não é (disse Veloso) cousa justa Tratar branduras em tanta aspereza; Que o trabalho do mar, que tanto custa, Não sofre amores, nem delicadeza; Antes de guerra férvida e robusta A nossa história seja, pois dureza Nossa vida há-de ser, segundo entendo, Que o trabalho por vir mo está dizendo.” (VI, 41)

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Trata-se da Canção I, em que lemos: “E se ainda mais quer ver, enfim, pretendo,/ Fraquezas são do corpo, que é da terra,/ Mas não do pensamento, que é divino.” (1955, p. 261) 112 Guio-me pela análise de Antônio José Saraiva em “A ‘fábrica’ de Os Lusíadas”: “Mas, além disto, a mitologia tinha ainda para Camões esta vantagem: é que os deuses pagãos lhe permitiam poupar o deus cristão, e este ponto é muito importante. Deus-Cristo pertencia à subjetividade de Camões e não podia ser tratado como um simples objeto estético. Era coisa demasiado íntima e demasiado séria para ser tratada nesta ficção objetiva e engenhosa que são Os Lusíadas. Camões só fala de Deus em momentos de profunda crise, como chave para o desconcerto do mundo.” (1996, p. 69-70) 81

Nesse ponto da epopeia, amor e heroísmo se contrapõem. Preferem-se aos contos eróticos as narrativas de aventura, mais próprias à vida no mar. Somente quando os portugueses tiverem atingido seu objetivo, a chegada à Índia, a interdição do amor ficará suspensa. Então os marinheiros, por dádiva de Vênus, podem finalmente gozar as delicadezas do sexo. Nesse momento, no canto IX, Leonardo ganhará vulto. Quis a sorte que ele, amante desditoso, buscasse Éfire, bela ninfa “que mais caro que as outras dar queria/ O que deu para dar-se a natureza”. Diante das negaças, o enamorado elabora um comovente convite pelo qual tenta convencer a divindade a mudar a triste ventura até então por ele conhecida. As súplicas e a beleza do canto logram amansar a bela em fuga, que Volvendo o rosto já sereno e santo, Toda banhada em riso e alegria, Cair se deixa aos pés do vencedor, Que todo se desfaz em puro amor. (IX, 82)

Na passagem acima, a conquista amorosa redunda da capacidade oratória do nauta. Conhecemos um heroísmo da linguagem mais do que a bravura dos feitos guerreiros. Graças à remissão ao trecho d’Os Lusíadas, quiçá seja possível entrever também na coletânea póstuma essa forma de heroísmo: como o navegante camoniano, o sujeito poético em O amor natural parece confiar nas palavras, a que recorre como uma divindade. A relação do poeta com a língua, problemática em grande parte de sua obra, dá mostras de se suavizar. Seria a canção lasciva, como a Ilha dos Amores camoniana, o prêmio de extenuantes combates? Talvez. É possível que a escrita erótica, ao longo de décadas, tenha propiciado momentos de pausa no sufocante canto sombrio em que Carlos Drummond de Andrade registrava a negatividade da experiência moderna. Entretanto é também provável que não haja ocorrido o fim definitivo na luta com as palavras. Observamos, antes, o deslocamento do conflito: o embate deixa de se referir à própria poesia drummondiana – o sujeito duvidando de sua capacidade criativa e da linguagem – para se concentrar no confronto com a tradição retomada. Com efeito, há ao menos uma relevante diferença do texto erótico drummondiano em relação à tradição neoplatônica com que dialoga. Drummond reproduz, dos escritores renascentistas citados nas epígrafes, versos em que a recusa do físico deixa de ser o corolário da densa reflexão metafísica desenvolvida pelos 82

neoplatônicos. Volta aos poetas seiscentistas para superar a cosmovisão exposta por eles. As referências constituem um prenúncio da encenação feliz da fusão dos corpos. Porém, como veremos a seguir, em “Amor – pois que é palavra essencial” e em outros poemas do conjunto, a elevação dos parceiros sexuais por meio do gozo é propiciada por um dado ausente do neoplatonismo de outrora: o esvaziamento da transcendência. A perquirição ontológica realizada e a narrativa da ascensão dos amantes ajudam, portanto, a desferir os pequenos golpes na herança relida por Carlos Drummond de Andrade. A partir da quinta estrofe a narrativa, em tons épicos, grandiloquentes, da superação dos limites humanos por meio do sexo proporá uma nova via de acesso à origem dos seres bastante diversa da ascética ascensão de linhagem platônica. As carícias íntimas iniciam a jornada de retorno à originária vitalidade, obscurecida fora do ato sexual. O corpo feminino guarda em si a fonte, agora reencontrada antes mesmo do amplexo amoroso. Favorecendo a penetração da vagina e das nuvens, o toque do clitóris tudo transforma. Superpõem-se a partir de então a trajetória humana e a sobre-humana. Os amantes, “devassando sóis tão fulgurantes/ que nunca a vista humana os suportara”, são alçados ao patamar dos deuses. A transgressão dos limites humanos avança além da narrativa de longínquas personagens empenhadas na conquista da transcendência. Cada vez mais o sujeito poético imprime sua presença: o distanciamento épico e especulativo convive com a recordação lírica. Inicialmente o lirismo se insinua por meio de um “nós” ainda pouco definido ou adequado para representar qualquer amante. Sua intromissão na narrativa de tons épicos se tornará mais marcante com o desenvolvimento do ato sexual. É uma presença ainda tímida na quinta estância, em que se inscreve por meio do dêitico “desse” a indicar a presença de um eu ausente nas estâncias anteriores. Na nona estrofe, depois de a narrativa ter alcançado o gozo, a primeira pessoa do plural inclui inconfundivelmente o sujeito poético. Pela primeira vez também o verbo deixa de assumir o presente histórico para adotar o passado. A ruptura é minimizada pela homonímia dos tempos verbais em “morremos”. Ainda assim, o contexto torna a leitura inevitável. Desse modo, no seio da narrativa a ilustrar o caráter divino dos amantes, irrompe a intensa recordação de um sujeito que não pode ser alijado da cena erótica. Sua presença é tão marcante que parece destituir aquela consciência crítica predominante no

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início do poema. Ao fim do texto, o sujeito, vitorioso, pode expressar as sensações surgidas em um espaço protegido dos conflitos modernos. Essa conquista é uma importante inovação de O amor natural no conjunto da poesia de Carlos Drummond de Andrade. Conforme demonstrou brilhantemente Mirella Vieira Lima em Confidência mineira, a lírica amorosa drummondiana foi impulsionada desde a estreia por forças discordantes: o desejo de transcendência, responsável pelo movimento vertical do amante, e as forças centrípetas, que o levam a aderir às circunstâncias históricas. Talvez não haja poema a demonstrá-lo de forma mais clara do que “Escada”, de Fazendeiro do ar. Esse texto, assim como “Amor – pois que é palavra essencial”, apresenta o erotismo a elevar os amantes sobre as agruras do tempo: E mortos, e proscritos de toda comunhão no século (esta espira é testemunha, e conta), que restava das línguas infinitas que falávamos ou surdas se lambiam no céu da boca sempre azul e oco?

O desterramento é vivenciado euforicamente. Longe da comunhão com os outros homens, os enamorados ganham ares míticos. Por isso podem vencer o interdito de alcançar os céus, rompendo a infinidade babélica das línguas humanas. A comunicação se faz aquém da linguagem. É obra do corpo, tal qual no poema de abertura de O amor natural, cujos personagens gozam, menos do que entre palavras, entre “sons, arquejos, ais”. Tal destruição do idioma graças ao êxtase erótico está sintetizada em “Escada” pela fusão das acepções anatômica e linguística do substantivo “línguas”. Esse significante propicia também o jogo de palavra-puxa-palavra que culminará com a localização do céu, “azul e oco”, no corpo. A transcendência, esvaziada, foi atraída para a matéria, em união semelhante à acompanhada em “Amor – pois que é palavra essencial”. Os textos se aproximam ainda por inscreverem na forma – barroca em um, neoclássica em outro – a comunhão garantida pelo sexo. Em “Escada”, essa experiência incide sobre o registro elevado, que recompõe a ascensão por meio do erotismo, e sobre o movimento espiralado desenvolvido graficamente pelos versos e sintaticamente pelas interpolações de estruturas subordinadas ao longo das estrofes. No primeiro poema da coletânea póstuma, a descrição torna-se mais detalhada devido à menção aos órgãos 84

sexuais sem todavia deixar de encenar, graças ao vocabulário nobre, a trajetória vertical dos amantes. A conjunção ecoa também na camada sonora do poema. Os versos, predominantemente brancos, nos moldes da versificação latina, são atravessados por aliterações e pela recorrência de sons vocálicos. O vigor das oclusivas cadencia a potência do ato erótico, mas o ritmo duro daí decorrente convive com a maleabilidade das sibilantes e dos sons nasais a modular a fusão dos amantes. Logo, como o texto de Fazendeiro do ar, “Amor – pois que é palavra essencial” erotiza a forma a narrar a comunhão fora do século. Porém, a analogia entre os poemas perde vigor à medida que avançamos na leitura dos versos dos anos 1950. Nestes o tempo corrói a escalada proporcionada pelo ato erótico. O esgotamento do gozo leva ao reconhecimento da inevitabilidade da queda. Noturnos, os amantes já não são mais o que antes eram, visto que a escada barroca os conduziu a conhecer o alo mortífero atado ao mito, efemeramente vivido pelos enamorados. Também o veículo da ascensão – erotismo ou escada erotizante – fica contaminado pelo sofrimento dos amantes: E se este lugar de exílio hoje passeia faminta imaginação atada aos corvos, de sua própria ceva, escada, ó assunção, ao céu alças em vão o alvo pescoço, que outros peitos em ti se beijariam sem sombra, e fugitivos, mas nosso beijo e baba se incorporam de há muito ao teu cimento, num lamento.

Corroído pelo desejo frustrado de transcendência – “faminta imaginação atada aos corvos” – e pela dor advinda mesmo do abraço, o éden do gozo cede à concepção apocalíptica da existência humana.113 Já “Amor – pois que é palavra essencial” concentra-se no curso ascendente dos amantes sem deixar entrever a melancolia oriunda da derrocada da potência erótica. Desse modo, como outros poemas depois incluídos em

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As considerações aqui apenas esboçadas devem muito à leitura cuidadosa feita por Mirella Vieira Lima. Sobre “Escada”, ela conclui: “Em vários poemas de Claro enigma e Fazendeiro do ar, o poeta busca no impulso físico uma aventura metafísica e, como coroamento dessa última, uma revelação que, ao mostrar o vazio, gera o lamento do eu. Contudo, no âmbito dessa poesia estritamente erótica, o corpo não é passagem para um espaço apocalíptico, mas já é apocalíptico em si mesmo. Em ‘Escada’, a experiência erótica é questionada enquanto meio de ascensão possível. Ainda que deslumbrado pelo amor, o eu que fala em ‘Escada’ lamenta o esgotamento do impulso amoroso no plano físico e o fato de a revelação restringir-se ao plano dos sentidos.” (op. cit., p. 182) 85

O amor natural, expõe o aspecto apaziguado da inscrição do desejo, problemática desde Alguma poesia. Da “vontade interdita”114 nos primeiros livros até o coito exposto nos poemas eróticos,115 poderíamos observar um percurso de reconciliação com o sexo, tornado força de superação dos limites existenciais e fundamento da escrita poética. Dessa forma, a coletânea póstuma parece elidir a característica fundamental da lírica amorosa drummondiana segundo Vieira Lima: a conflituosa dualidade entre a nostalgia de um mundo ideal e a adesão às angustiantes condições mundanas. É interessante observar que a análise de O amor natural pela pesquisadora não enfatiza haver esse livro ferido os pressupostos tidos por ela como essenciais para a leitura da poesia amorosa de Drummond. Contudo, de acordo com a própria Vieira Lima, o volume seria responsável por uma tentativa de superar o hiato deixado na modernidade pela corrosão da transcendência.116 Daí precisaríamos concluir ser o lirismo amoroso na coletânea essencialmente diverso daquele publicado durante a vida do autor. A leitura da obra de Carlos Drummond de Andrade permite perceber tratar-se de uma novidade contraposta à maior parte da produção lírica do mineiro. Entre a “unidade áurea” perdida e o “verso universo” almejado, a “agonia moderna” se interpôs quase sempre.117 Em caminho diverso, o texto de abertura de O amor natural, mitificando o sujeito, interrompe o “curto-circuito” que caracterizara o discurso drummondiano desde a estreia até ao menos os anos 1960 segundo Alcides Villaça: Para muito além dos limites do eu e da vida imediata projeta-se, com força de ideal, o sentido de uma ordem ampla e verdadeira, que não se representa em lugar nenhum, mas que não deixa nunca de se oferecer como um horizonte. O ressentimento drummondiano origina-se da impossibilidade dessa ordem ideal, recortando-se contra um pano de 114

Citamos um trecho de “Girassol” (BA): “havia também (entre vários) um girassol. A moça passou. / Entre os seios e o girassol tua vontade ficou interdita”. 115 “Coito” é o título do poema publicado no exemplar de novembro de 1975 da revista Homem. O texto foi incorporado, com alterações, a O amor natural sob o título “A castidade com que abria as coxas”. 116 A contradição entre a coletânea póstuma e a leitura proposta por Vieira Lima para o lirismo amoroso drummondiano fica evidente com o cotejamento de algumas passagens de Confidência mineira. Em uma delas, a autora defende ser primordial a tensão entre a nostalgia da transcendência e a certeza de sua impossibilidade no lirismo amoroso drummondiano: “tentativa de recuperar forma e sentido de uma transcendência improvável, a poesia amorosa de Carlos Drummond de Andrade está firmemente enraizada na contingência histórica” (ibidem, p. 15-16). Essa tensão contrasta com o preenchimento do vazio deixado pela transcendência e com o apagamento frequente das condições sociais no volume: “As cenas eróticas poetizadas em O amor natural parecem orientadas pela tentativa de superação desse vazio, de modo que a carência metafísica deve ser obliterada pela intensidade do gozo físico. A expansão da alma passa à condição de metáfora para o mais refinado erotismo. Espera-se que a imanência dos corpos possa preencher o lugar de uma transcendência.” (ibidem, p. 162) 117 Citamos trechos de “Canto órfico” (FA). O problema assim apenas introduzido será abordado com mais atenção no próximo capítulo desta tese. 86

fundo longínquo e afirmativo que, mesmo quando invisível, está suposto na perspectiva do discurso e é a contraface do modo irônico. A precaução da consciência objetivante é a adversária da idealização que anima o sujeito, tanto quanto as cautelas do realismo defensivo que o poeta armazena surgem como óbices para a epifania poética do mundo. Arma-se, assim, o curto-circuito essencial do discurso drummondiano, que se dá entre os polos da condição individual e isolada do sujeito moderno, nos labores da difícil autoidentificação, e a instância mitopoética especulativamente trabalhada pela linguagem lírica. (op. cit., p. 13-14)

Em “Amor – pois que é palavra essencial”, já não parece viger a “difícil autoidentificação” do sujeito drummondiano: ele se tornou divino, assim como seu semelhante, fundidos ambos por meio do gozo. Por conseguinte a ironia, que marcara a reflexão do poema acerca da palavra e do amor, parece ceder no fim do texto. O vazio escavado no seio da linguagem moderna permite tudo dizer até mesmo a plenitude subjetiva, tantas vezes represada na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Cala-se o “eu todo retorcido”. O “realismo defensivo” tampouco parece refrear a idealização no texto de abertura. A mudança é sintomática da complexa relação da escrita drummondiana com a modernidade. Segundo Hugo Friedrich (1978), a idealidade vazia é um traço intrínseco à literatura moderna. Na parcela da obra de Carlos Drummond de Andrade que o celebrizou, corrobora-se esse veio pela impossibilidade de se gozar uma quimérica ordem ideal, conforme Villaça notou certeiramente. Em sentido contrário, na maioria dos textos reunidos na coletânea póstuma o ideal não está sem lugar ou invisível: o éden se localiza no corpo, os sentidos propiciando a experiência afirmativa interdita em grande parte da obra do autor. Poderíamos deduzir daí que o livro participa de um universo avesso ao da tradição moderna. Ou, caso recusemos uma visão limitadora de tal herança,118 poderíamos inferir que ele integra um percurso literário diverso do 118

Apesar de sua inegável produtividade descritiva e sintética, a evolução da literatura moderna proposta por Friedrich vem sendo retificada por importantes críticos. Dentre eles destacam-se Michael Hamburger e Alfonso Berardinelli, concordes em que não se devem generalizar as características literárias consideradas capitais pelo alemão: dissonância, obscuridade intencional, autonomia, pureza, etc. Contra a tradição retratada em Estrutura da lírica moderna, Berardinelli destaca a importância do realismo e da impureza no escritor que teria iniciado a modernidade literária segundo o próprio Friedrich, Baudelaire. Além disso, o italiano defende a revisão do cânone dos precursores da modernidade com a inclusão de poetas como Walt Whitman, sobre quem afirma: “Mas um poeta como Whitman está muito distante do esquema de Friedrich: nele não encontramos abstração ou cerebralismo, nem culto da premeditação intelectualista nem impulso da linguagem em direção a uma transcendência vazia ou fuga da palavra do horizonte do concreto, do imediato, da experiência comum. Seria possível afirmar que a poesia de Whitman apresenta-se, programática e efetivamente, como o exato oposto de tudo isso.” (2007, p. 23) Hamburger avança na sugestão de novos autores e mesmo de outras literaturas para o enriquecimento do 87

trilhado pelas obras modernas que responderam por meio da dramatização da crise ao esvaziamento dos ideais e à insuficiência da realidade a ela contemporânea. Essa resposta foi iluminada por Marcos Siscar: Reivindicada em tom desiludido ou reciclada como estratégia de entusiasmo renovador, a crise é um dos elementos fundantes de nossa visão da experiência moderna. O discurso poético é aquele que não apenas sente o impacto dessa crise, não apenas deixa ler em seu corpo as marcas da violência características da época, mas que, a partir dessas marcas, nomeia a crise – a indica, a dramatiza como sentido do contemporâneo. (2010, p. 10)

Em O amor natural, as “marcas da violência características da época” se tornam em geral negativas: inscrevem-se pelo silêncio. Para corroborar nossa hipótese, lembramos que a crise perpassa a gênese de O amor natural. De fato, sem a corrosão do ideal pela consciência moderna, dificilmente os sentidos figurariam o idílio outrora vislumbrado no mundo suprassensível. Ademais, a instabilidade não está excluída da nova relação com a transcendência, já que esta só pode ser alcançada pelo mais imanente, o corpo. A experiência do infinito se condensa, por isso, em um instante – ideal a trazer em si o prenúncio de seu desvanecimento. No entanto, a efemeridade e a imanência são agora vivenciadas de forma quase sempre eufórica. Em uma virada que constitui quiçá uma das grandes contribuições do livro póstumo à literatura drummondiana e moderna, a dramatização da crise parece substituída por seu avesso: a celebração da bonança. Essa transfiguração, propiciada pelo êxtase, não incide somente sobre os parceiros sexuais. Além deles, o coito “se espraia de tal sorte” que afeta o conceito do erotismo: o poema torna a abstração carne; a ideia de gozar goza. Assim, a atração do transcendente para o universo sensível ganha nova face. Ocorre também mais um golpe contra a concepção platônica do amor, ironicamente referida por “Amor – pois que é retrato até então hegemônico: “não há uma coisa como um único movimento moderno na poesia, inteiramente internacional e progredindo em linha direta desde Baudelaire até a metade deste século (o período coberto pelo livro de Hugo Friedrich). Este não tende a se concentrar numa única linha de desenvolvimento – aquela rumo à poesia ‘pura’, ‘absoluta’ ou hermética – e sua especialização acadêmica é em línguas românicas, nas quais essa linha de desenvolvimento foi muito mais forte do que nas áreas de língua anglo-saxã, eslava ou escandinava.” (2007, p. 43) No que tange ao contexto especificamente brasileiro, é preciso acrescentar que nossa literatura modernista se engajou na pesquisa do meio, que esperava poder transformar. O estudo “Mário, Oswald e Carlos, intérpretes do Brasil”, de Silviano Santiago (2009), é esclarecedor da participação de Drummond nesse projeto. Logo, embora categorias como a dissonância e o esvaziamento da transcendência possam ajudar a compreender escritas como a de Carlos Drummond de Andrade, para a compreensão de sua obra não é possível transpor a tese de Friedrich de forma imediata. 88

palavra essencial”. Nos versos eróticos a geração das ideias deixa de garantir a continuidade e a constância, como queria Platão, pois participa do mesmo destino dos amantes: a eternidade efêmera do gozo. Dessa forma, o conteúdo dos versos reitera a instabilidade a que a palavra essencial parecia conduzir o poema desde a primeira estrofe. Agora sabemos que, apesar de o Amor levar os homens a encontrarem sua essência vigorosa, esta não guarda a permanência com que a tradição clássica retomada concebera o ser. Além disso, em “Amor – pois que é palavra essencial”, o ato sexual afeta até os deuses, símbolos do universo imperecível das ideias no diálogo platônico. Aqui o erotismo, como n’O banquete, pode ser um intermediário entre o âmbito divino e o humano, mas são inesperados os resultados dessa mediação. Os amantes destronam os seres eternos: com o clímax, “o amor morre de amor, divino”; já tornado comum pelo artigo indefinido e pela minúscula inicial, um deus é atravessado pela morte, descobrindo “o que lhe acrescenta” “o amor terrestre”.119 Os heróis amantes finalmente alcançaram seu posto: o leito divinal. O poema está concluído. Ao culminar no destronamento dos deuses, “Amor – pois que é palavra essencial” alça os protagonistas ainda mais alto do que fizera a grande epopeia em língua portuguesa, citada entre as epígrafes do livro publicado em 1992. Como o texto de Carlos Drummond de Andrade, Os Lusíadas narram a entrada de mortais no mundo dos deuses por meio da experiência erótica. A divinização dos navegantes por meio de sua união com as ninfas na Ilha dos Amores precede o prêmio maior concedido ao fim ao líder da esquadra portuguesa: a visão da máquina do mundo, imagem do saber totalizante, que era vedado aos homens comuns. O conhecimento ainda não está em questão no poema de abertura de O amor natural, embora venha a ser tema de outros versos do mesmo livro. No entanto, a conquista dos amantes é talvez mais grandiosa do que a visão concedida a Vasco da Gama, já que eles não são dignificados pela oferta de deuses favoráveis, mas engrandecem os seres divinos ao pôr em ação a máquina ao mesmo tempo perfeita e efêmera do sexo. Assim, não triunfam somente sobre todos os

119

A incapacidade de os deuses, imortais, compreenderem o amor é tema de reflexão por Lacan no oitavo livro de seu Seminário: “A relação destes [dos deuses], ali, é de admiração, falando propriamente, quero dizer também de espanto – eles ficam surpresos com o espetáculo do valor do que lhes oferecem os humanos na manifestação do amor. Até certo ponto os deuses, impassíveis, imortais, não são feitos para compreender o que se passa no nível dos mortais. Eles avaliam a distância, e veem o que se passa na manifestação do amor como um milagre.” (op. cit., p. 60) 89

audaciosos que tentaram superar a medida humana.120 Eles logram avançar além das limitações encontradas nos deuses. A invocação inicial revela finalmente seu significado mais amplo: o recurso ao deus Amor não era apenas uma etapa na retomada da tradição clássica levada a cabo pelo poema. Era já um prenúncio da derrocada dos deuses resultante do ato eróticoheroico rememorado no texto de abertura de O amor natural. De acordo com nossa hipótese acerca da primeira estrofe, a “palavra essencial”, em vez de garantir um universo estável para o poema, solapava o fundamento do discurso por interromper a sintaxe. Essa instabilidade será depois reafirmada quando a linguagem dos amantes regredir aquém das palavras durante o êxtase erótico. Lembramos agora que a língua, pervertida pelo poema, assumira o lugar do deus assim como os amantes farão ao cabo do texto. O amante e a poesia erótica caminham juntos, portanto, na transgressão da visada teológica do mundo e da linguagem. Deus está morto. Então é permitido gozar a escrita do êxtase. 1.4 A LÍNGUA LAVRA Ao tornar a deificação da carne e da palavra o resultado da corrosão da transcendência, os poemas de O amor natural parecem substituir pelo gozo da linguagem a batalha com a língua a que se submetera o sujeito poético drummondiano ao longo de grande parte de sua obra. Talvez por essa mudança substancial, os próprios textos eróticos pareçam uma espécie de arabesco a girar em torno da obra tornada canônica sem a ela se assimilar facilmente. É sintomático dessa distância a pouca atenção

merecida

pelos

versos

eróticos

em

sínteses

recentes

da

poesia

drummondiana.121 Os volteios do que parece inatingível não devem, todavia, ser ignorados ou menosprezados. Sua diferença pode, com efeito, revelar uma face também relevante da obra, um “oculto botão”, para retomarmos um termo lido em “A língua lambe”: o anverso festivo da ironia, o qual sempre esteve presente mas era subjugado pelo realismo drummondiano. 120

Parafraseio trecho da análise de Saraiva acerca d’Os Lusíadas: “Os Lusíadas cantam a história de uma aventura maior ainda que a daqueles precedentes heróis, aventura que ficou vitoriosa com a entrada dos heróis no mundo dos deuses, pela porta da Ilha de Vênus. Os Portugueses triunfaram onde Prometeu, Ícaro ou Faetonte se perderam.” (op. cit., p. 56) 121 Pensamos no silêncio sobre o tema em Coração partido, de Davi Arrigucci Jr., ou em Passos de Drummond, de Alcides Villaça. 90

Não que a outra face exposta postumamente prescindisse da corrosão ou do confronto. Mas agora a ironia se volta com mais frequência contra o discurso do outro – da herança clássica, por exemplo, relida em “Amor – pois que é palavra essencial” ou em “A língua francesa” – e o combate se dirige à poesia contemporânea, cuja recusa moveu a gênese de alguns poemas de O amor natural, dos quais se extirparam termos que poderiam identificá-los à “onda pornográfica” de fins do século XX. O próprio retorno à tradição pode ser compreendido como parte das disputas contra a poesia da época, cujo questionamento das formas canonizadas era visto por Drummond como desleixo ou menosprezo pela pesquisa estética. As armas já não se dirigem contra a própria poesia do autor. Subterraneamente, porém, os conflitos voltavam a ganhar força. A trégua do “lutador” foi assaltada pelas dúvidas em relação à validade da poesia erótica na sociedade moderna. O embate adiado não parece tão poderoso quanto o que se escavou nos versos de tantos poemas drummondianos. Antes o conflito era encenado. Já nos poemas legados para a edição póstuma, as dúvidas estão quase sempre fora da cena. Seu poder não deixa de ser insinuado, no entanto, conforme vimos ao ler “Eu sofria quando ela me dizia”. A multivocidade está ainda presente. Estivera também na poética da crise, predominante na obra editada durante a vida do autor, mas não inteiramente destituída do prazer do embate. Quiçá a partir dos versos publicados postumamente seja mesmo possível retornar à obra canônica e encontrar, até nas figurações da luta, as marcas da alegria de um sujeito que afirmava desejar o poema, perdê-lo, mas ainda assim estar completo.122

122

Parafraseamos trecho de “Consideração do poema” (RP). 91

2 NA PAZ DE OUTRO HORTO

Em sua obra, Carlos Drummond de Andrade fez conviverem, com rara densidade dramática, opostos à primeira vista inconciliáveis. Observador atento do cotidiano, registrou a “confusão de coisas ao crepúsculo”. No mesmo golpe, as teceu com o desejo insistente de “captá-las e compô-las/ num todo sábio, posto que sensível”.123 Intitulada “reunião” pelo autor, essa poesia foi movida pela tarefa de unir a fragmentação à unidade, a existência à essência, a passagem do tempo à eternidade. Os contrários estão a tal ponto amalgamados que não se pode riscar uma face da folha sem deixar de atingir o verso: o “sonho por trás dos fatos”,124 vivido em ilhas abstratas, traz inscrito em si a lembrança dos acontecimentos; as contradições vivenciadas na sociedade contemporânea alimentam a nostalgia de uma experiência, primitiva ou utópica, que as supere. De fato, embora em um “mundo paralítico” restem “poucos encantamentos válidos”, como afirmaria “Canto órfico” (FA), o desencanto não redunda em desistência. Ele move, ao revés, a procura incessante da “unidade áurea”, “que perdemos”. No poema dos anos 1950, o desejo ardente de recompor os fragmentos que compõem a experiência humana é figurado por meio do apelo a Orfeu, símbolo do antigo poder de comunhão pela poesia. Graças a essa invocação, a distância entre o poeta moderno cindido e o mítico artista feiticeiro é, se não superada, ao menos diminuída: só de ousar-se o nome do deus estraçalhado, “já respira/ a rosa trismegista, aberta ao mundo.” A poesia, mesmo quando – ou porque – consciente das insuperáveis fraturas da modernidade, pode propiciar o resgate simbólico da totalidade perdida.125 Por isso, o espaço poético torna-se infinito contra a finitude do mundo, “finito redondo, em que se crispa/ uma agonia moderna”. Em “F”, de Lição de coisas, esse espaço utópico da forma assume os traços de um “largo armazém do factível/ onde a realidade é maior do que a realidade”. Assim caracterizada, a linguagem poética, em festa, é capaz de unir signos tornados inconciliáveis no dia a dia, em um jogo em que “Isso é aquilo” (LC), conforme realiza um poema dos anos 1960.

123

Citamos trechos de “Versos à boca da noite” (RP). Citamos “Passeios na ilha” (VB). 125 A análise mais consistente do tema foi desenvolvida por Marlene de Castro Correia em “A magia lúcida”, ensaio que dá nome a seu livro. Devemos em grande medida as considerações aqui desenvolvidas ao estudo dessa pesquisadora, cuja tese é assim resumida: “O espaço interdito do real é reaberto pela poesia, linguagem de magia lúcida, que resgata a infância ancestral e constrói a idade áurea de reintegração da multiplicidade na unidade – aspiração maior da ironia romântico-moderna de Drummond.” (2002, p. 168) 92 124

A criação literária é indubitavelmente o lugar privilegiado de investimento nas tentativas de alcançar a totalidade almejada pelo sujeito poético drummondiano. Apesar disso, a confiança do autor no poder de conciliação da poesia é muitas vezes abalada.126 O realismo, tão caro a Carlos Drummond de Andrade, levou-o a preferir o múltiplo ao uno. Os anseios de totalidade – “inteligência do universo”, para citarmos novo trecho de “Versos à boca da noite” (RP) – poucas vezes se satisfizeram integralmente. O amor confirma essa tendência como poucos temas explorados pela lírica drummondiana.127 Para o objeto erótico se volta o homem em busca da experiência do ilimitado: “Mariquita, dá cá o pito/ no teu pito está o infinito.”, gravou “Toada do amor”, de Alguma poesia. No mesmo livro, no entanto, “Sentimental” sintetizaria a impossibilidade de levar a termo o idílio amoroso – ou até os devaneios românticos – devido à premência e à dureza do cotidiano. Os desencontros dos amantes, em busca de objetos fugidios, ficariam eternizados nos versos célebres de “Quadrilha”. O sofrimento daí decorrente seria amplamente explorado depois. “Não se mate, Carlos”, a despeito da natureza “sempre triste” e frustrante do amor, sugere um dos poemas de Brejo das Almas. Em “Amar”, de Claro enigma, a “sede infinita” mostra-se o resultado da necessidade humana de amar, nunca satisfeita. Em Lição de coisas, o sentimento é amargo e inconsolável, afeito ao mal-estar de uma realidade caracterizada como um “museu do pardo indiferente”. Ainda nos anos 1980, em Corpo, o afeto e sua capacidade de perenizar o objeto amoroso mostram-se precários. Daí, em “A hora do cansaço”, restar somente um “gosto acre” do “sonho de eterno” propiciado pelo amor. O dissabor também se faz presente em O amor natural. Há, porém, uma mudança significativa: a tristeza pouco participa dos laços entre os amantes. Ela quase sempre irrompe após o gozo. Suplantadas pelos prazeres sexuais, as contradições do amor cedem espaço frequentemente à realização plena do desejo de unidade. Longe dos complexos laços afetivos e sociais, o amante satisfaz por meio do corpo o anseio de completude negado fora dos limites estreitos do quarto. Até então acossado pelas contradições e fraquezas do sujeito gauche, por suas dificuldades de comunicação com o outro e pelas mazelas históricas, o amor não podia evitar o veio corrosivo que mostrava irrealizável o ideal totalizante empenhado nesse afeto. Na maioria dos poemas de O amor natural, diferentemente, ficou distante a razão crítica a cotejar o irreal ao 126

A esse respeito, confira-se o primeiro capítulo desta tese. Para um estudo aprofundado do tema em toda a poesia de Drummond, recomendamos o trabalho primoroso de Mirella Vieira Lima, já citado. 93 127

cotidiano. Os parceiros sexuais escapam às limitações individuais, ao tempo, à incompreensão e à descontinuidade física. Somando a potência do sexo aos poderes da palavra poética, os versos eróticos parecem assumir plenamente a capacidade de alcançar a harmonia impossível na existência diária. O volume aparenta compor, assim, um refúgio onde as cisões que enriqueciam a poesia drummondiana são substituídas pela abordagem coerente mas às vezes também monocórdica das sensações dos amantes. A decepção com os poemas eróticos, anunciados por tantos anos, pode ser superada, todavia. A leitura atenta dos textos revela sutis variações em torno da alegria e do prazer. Além disso, ao compararmos os versos lúbricos com os livros veiculados em vida pelo autor, talvez encontremos nos textos póstumos abordagens apenas insinuadas para logo serem legadas à sombra pelo realismo drummondiano: a exacerbação do egotismo, o anseio de evasão dos vínculos sociais, a superação do tempo. Se a hipótese for confirmada, a aparente monotonia dos poemas eróticos será substituída pela certeza de que o volume póstumo amplia a variedade e a potência da poesia drummondiana ao expor-lhe uma face pouco conhecida. Como as outras, esta, a qual privilegia a “paz de outro horto”, merece leituras que não a isolem do restante da obra. Este é o objetivo do presente ensaio. 2.1 ENTRE AS COXAS UM DEUS Os mais marcantes registros da superação do realismo drummondiano em O amor natural são aqueles dirigidos à deificação dos amantes. Encenada no poema de abertura do volume, conforme expusemos no capítulo anterior, a elevação dos parceiros sexuais até o cosmo leva-os a encontrar a “paz dos deuses”. O erotismo se torna, assim, o espaço de concretização daquela “ordem ideal e verdadeira”, antes corroída pela ironia contumaz do poeta, conforme expôs Alcides Villaça. Por meio da narrativa da ascensão dos amantes, o texto de abertura deixa evidente também um outro importante veio da escrita erótica drummondiana: a recusa da reverência exigida pela abordagem do âmbito religioso. Lembramos que o périplo narrado no poema culmina com a superação dos deuses pelos homens: as novas deidades agradecem pelo que o amor terrestre acrescenta a um deus. Portanto, se o olhar irônico deixa de se dirigir aos anseios de transcender as limitações individuais e históricas, volta-se agora contra o campo sagrado. 94

Em “Amor – pois que é palavra essencial”, como em outro poema do livro, “Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça”, a corrosão a que se submete o sacro lugar antes ocupado pelos deuses decorre do esvaziamento do âmbito divino. Este se torna mera metáfora para a grandiosidade do par erótico. Deus perdeu a consistência. O leitor da obra de Drummond conhece o contexto em que se constrói tal vacuidade. Sobretudo nos anos 1960 e 1970, quando o escritor narrou sua infância e juventude, ele expôs o dilaceramento a que o filho de família tradicional fora submetido graças à formação cristã. O sentimento do pecado fez a criança ser constantemente acompanhada pela “sombra, na consciência”, da visão crepitante do inferno. Esse horror era onipotente, já que a penitência e o perdão apenas alimentavam o “jogo de deus e de diabo” no qual o menino se envolvia: purificado, ele voltava a pecar. A culpa era a tal ponto vitoriosa que o valor individual passava a ser medido pelo tamanho da falta: seria preciso pecar à altura dos Inquisidores, afirma o eu aflito de um dos poemas de Boitempo. Dessa forma, o temor ao Deus do catecismo mostrava sua face angustiante. Ela seria ainda mais aguda, visto que Ele não emitia um único sinal que avisasse o menino pecador de Sua presença. Desprevenida, a criança desrespeitava os preceitos religiosos para logo em seguida lembrar que o preço pelas transgressões seria cobrado posteriormente. Sem conseguir reprimir seus anseios, o menino antigo estava condenado “a fazer e provar/ a pena interior”.128 Contra o ideário religioso, aos medos infantis, testemunho de um mal-estar comum à sociedade de base cristã, somou-se um acontecimento marcante na vida do escritor: a expulsão do colégio de jesuítas. A respeito da injustiça, Drummond registraria em sua “Autobiografia para uma revista”: A saída brusca do colégio teve influência enorme no desenvolvimento dos meus estudos e de toda a minha vida. Perdi a fé. Perdi tempo. E sobretudo perdi a confiança na justiça dos que me julgavam. Mas ganhei vida e fiz alguns amigos inesquecíveis. (op. cit., p. 197).

O “ganho de vida” pode ser iluminado pela leitura de um dos poemas de Boitempo: “Vigília”. O jovem morador de Belo Horizonte, descrente, subverte os preceitos cristãos a seu favor: a certeza de que os padres atendem “a qualquer hora do 128

Lemos, nessa ordem, “Sentimento do pecado” e “Ele”, de Boitempo. Na trilogia, diversos outros poemas registram o horror advindo da fé religiosa. Confiram-se, especialmente, “Terrores”, “O diabo na escada”, “Confissão”, “A impossível comunhão”, “Aspiração”, “O padre passa na rua”, “Começar bem o dia” e “Inventor”. 95

dia ou da noite” a chamados para confissão de agonizantes limita o poder da morte e do pecado. Uma vez que, a despeito das faltas cometidas, o arrependimento na hora final permite ao homem apascentar-se na mão de Deus, a noite se torna o convite “camarada” “a pecar mais um momento, um só, bem lento”. Estando o rapaz longe da “vida vivida sob inspeção”129 na escola de padres, já não lhe é tão duro “usando o corpo/ salvar a alma”, como fora em “Impossível comunhão”. A irreverência em relação ao sagrado não se restringiu ao registro biográfico. Tornou-se um motivo trabalhado desde o lançamento da obra do poeta, constituindo uma das marcas de seu caráter transgressor.130 Considerado uma certidão de nascimento da persona poética drummondiana, o “Poema de sete faces” foi publicado pela primeira vez no Diário de Minas no dia de natal de 1928. Não haveria qualquer provocação nisso não fosse o eu recebido em seu nascimento por um anjo torto. A remissão ao filho das sombras convive com a retomada, algumas estrofes adiante, do brado de Cristo: “Meu Deus, meu Deus! Por que me abandonaste?” (Mateus, 27:46). No novo contexto, a exortação tem seu conteúdo religioso profundamente transformado. No Evangelho, era a súplica do deus encarnado para o Deus em que tinha profunda fé e recebia como resposta os prodígios a confirmar a ascendência divina de Jesus. No poema de Carlos Drummond de Andrade, o efeito é bastante distante do diálogo pautado sobre a consistência da esfera religiosa. Na boca do homem nascido gauche, as interrogações parecem assumir um novo sentido: o questionamento da orfandade dos homens, que já não se podem fiar em uma ordem transcendente, agora esvaziada. Em outras palavras: a morte de Deus. A estrofe seguinte confirmará a sem razão e a contingência, um dos efeitos da deterioração do sagrado. Nesse sentido, o poema inaugural da poesia drummondiana atualiza uma das vertentes mais poderosas da modernidade, segundo Octavio Paz em Los hijos del limo: o “gosto pelo sacrilégio e a blasfêmia”, a “aliança entre o cotidiano e o sobrenatural” por meio da ironia (1997, p. 368). O discurso irônico e a fragmentação do poema levam a que o sagrado e sua derrisão se sucedam rapidamente: logo após as interrogações que poderiam tender ao grave e ao lamentativo, a ausência de soluções para os problemas subjetivos é expressa por meio de um jogo sonoro com forte carga de humor; na estância seguinte, o sujeito gauche pisca os olhos 129

Expressão retirada de “Adeus ao colégio”. Além desse poema, outro de Boitempo narra de forma tocante a dor da expulsão: “Certificados escolares”. 130 A complexidade dos poemas aqui brevemente lidos só poderia ser revelada por análises detidas. Restringimo-nos aos pontos de interesse para o tema desta seção: a abordagem drummondiana do sagrado. 96

para o leitor e o faz lembrar que as confissões antes expostas foram movidas pela lua e pelo conhaque, que o comovem “como o diabo”. Introduzido pela alusão satânica ao Torto, o texto se encerra com a remissão a um demônio esvaziado, parte da expressão tornada comum pelo uso. Deus e o diabo foram assimilados pela mesma engrenagem irreverente e corrosiva. Essa abordagem é reafirmada em outros textos do período. Em “Casamento do céu e do inferno” (AP), enquanto São Pedro dorme, o diabo espreita o sexo de homens e mulheres que vão, todos ou quase, para o inferno. Salvo talvez pelo descuido do santo, poder-se-ia pensar que se trata tão somente de nova representação dos efeitos nefastos do pecado. Caso assim fosse, o poema reforçaria o discurso religioso. Mas o que ocorre é justo o oposto. O texto é radicalmente profanador graças às complexas associações de termos tradicionalmente afastados por ele realizadas. Desde o título, o casamento do céu e do inferno revela a convergência de realidades opostas. Essa confluência será expressa por meio de imagens inesperadas a construir o rebaixamento a que serão submetidas as figuras sagradas: o céu, morada cristã de Deus, degrada-se em “azul do céu de metileno”, referência a um composto químico; a lua “irônica” e diurética”, mera “gravura na sala de jantar”, ajuda a delinear a casa burguesa como o cenário do casamento sagrado; anjos lutam contra mosquitos em vez de combaterem o pecado ou as tentações da carne. A mistura do celeste e do terreno culminará com a revelação final: o pecado é necessário para o cumprimento da vontade de Deus, que ordena a todos – salvo Laura e Beatriz, personagens idealizadas – a pena eterna. Os desígnios divinos e satânicos se conjugam. Desse modo, mais uma vez prevalece a ironia em relação ao discurso religioso. Em “Um homem e seu carnaval”, de Brejo das Almas, o vazio deixado por Deus propicia o gozo. Inicialmente o eu poético parece lamentar a perda de referências: pobre se torna a poesia construída pelos sentidos desnorteados; o desamparo é reforçado pelo desdém dos circundantes em relação ao arrebatamento do eu e pelo escárnio das eternas namoradas, inatingíveis. Todavia, a última estrofe transforma a pena em volúpia: eterna é agora a sensação advinda do gozo permitido pelo abandono por Deus do homem na orgia, no rio de deleite em que vêm a se afogar o eu e a sintaxe esgarçada a reproduzir o êxtase. A orfandade, antes lastimada, culmina na plenitude do sujeito em festa.131 131

Propomos leitura divergente da de Ivan Marques, para quem “as eternas namoradas” “comparecem aí para lembrar – eis o detalhe fundamental – que o desejo, porque irrealizável, é que é eterno e 97

Aos textos acerca da fenda aberta pela ausência de Deus, somam-se as leituras críticas da religiosidade. Em “Igreja”, de Alguma poesia, a distância entre o desejo de atingir o céu e a prática para fazê-lo ecoa na divisão das estrofes. Na primeira, representa-se a construção do edifício que deve se aproximar do espaço divino. O meio bastante concreto – “tijolo areia andaime água tijolo” – destoa do fim a ser atingido. Ademais, o trecho reproduz a ousadia humana punida no episódio bíblico da Torre de Babel. Portanto, o olhar crítico incide sobre um tempo anterior e um espaço exterior ao templo. Na segunda estrofe, estando o prédio construído, o poema pode diversificar a irreverência voltada para as práticas religiosas. Dentro da igreja, o sagrado e o profano convivem. Três versos sintetizam essa operação: “O padre que fala do inferno/ sem nunca ter ido lá./ Pernas de seda ajoelham mostrando geolhos.” A montagem deixa evidente o resultado do desdém pelo discurso do sacerdote: o gesto de humildade diante de Deus torna-se estímulo erótico. Dessa forma, solapa-se a oposição rígida entre os preceitos religiosos e os desejos, pouco elevados, dos fiéis. No espaço exterior à igreja, vigora ainda a subversão da hierarquia entre o divino e o terreno. Embora a Deus e ao ateu estejam reservados lugares antagônicos, a onomatopeia “Bem bão! Bem bão!”, ao mesmo tempo em que reproduz o som dos sinos, parece zombar do exílio – bem bom – em que viveria o homem. Talvez graças a essa recusa afirmativa do divino, os serafins entoem os pedidos de misericórdia que encerram o poema. Em um texto do mesmo livro, ressurge o olhar disfórico sobre a relação entre o humano e o divino. Em “Romaria”, no entanto, parece desaparecer o desafio irônico ao sagrado, marcante em “Igreja”. Persiste a profanação, já que se humaniza Cristo, impotente ante a cobiça humana. Mas o tom tende ao queixoso e o alvo do ataque se altera: dirige-se antes aos homens do que à esfera divina. A tristeza e o sacrifício de Jesus contrastam com a festa em que se envolvem os romeiros, esquecidos dos esforços para purificar seus pecados e se aproximar dos desígnios de Deus. A busca religiosa é indissolúvel.” (2008, não paginado) O crítico defende ainda no mesmo ensaio, “Sejamos pornográficos ou um instante de infinito”: “Se o carnaval do poema parece frustrado é porque o gauche não consegue dissociá-lo de sua condição trágica de “ser amoroso”, que se define pela carência , e da consciência de que a carne é triste, sobretudo após o êxtase, como veremos na poesia de O amor natural.” Parece-nos, ao contrário, que a montagem das estrofes leva a crer na superação da frustração advinda do desejo irrealizado. É sintomático dessa vitória que os “grandes abraços largos espaços” sejam vivenciados “eternamente”, palavra a fechar o poema. Assim, apesar de o isolamento e de a frustração serem predominantes em Brejo das Almas, como defendemos na primeira seção do capítulo anterior, “Um homem e seu carnaval” mostra como a sexualidade pode levar ao gozo dos grandes abraços. Fica patente a dificuldade de encontrar uma via exclusiva para a caracterização do complexo sujeito poético drummondiano. 98

pautada pelo interesse. Logo, mesmo nos espaços em que as pessoas deveriam dobrar-se à fé, as práticas humanas revelam sua pequenez. A profanação dos símbolos religiosos foi estimulada em grande medida pela iconoclastia moderna. Por isso, sobretudo os primeiros livros do autor, em que ele mais claramente trabalhou as conquistas do movimento, ironizou o espaço deixado vazio pela morte de Deus. Nos livros seguintes, como já despontava também em Alguma poesia, sobressaía antes a nostalgia da transcendência. Conforme abordamos anteriormente, em Drummond foi insistente o desejo de uma ordem ideal, projetada além da vida cotidiana: o espaço utópico almejado mas corroído pela consciência crítica do autor. Durante os anos 1940 e 1950, a tensão decorrente da frustração do anseio de “lançar-se a um mar que não existe”132 poupou quase sempre o âmbito divino. Ela foi alimentada preferencialmente pelas contradições históricas, “chão batido” e “relva pobre” de onde sobe a quimera,133 ou pela fragilidade do ser, maculado “ao contato furioso da existência”.134 A corrosão do universo sagrado voltava à baila apenas na série “Selo de Minas”, de Claro enigma. Parte da releitura do passado colonial pelo poeta, poemas como “Evocação Mariana” ou “São Francisco de Assis” faziam a música sacra ou a arquitetura barroca assumirem o poder de elevação reservado a Deus no discurso religioso. No segundo texto, o eu, incapaz de amar ao Senhor, busca os ornatos da igreja em vez do santo a que o edifício é dedicado. O templo e não a Igreja o embalam. No primeiro, a pobreza da construção sacra e da reza nela murmurada é suplantada pelo canto a libertar as almas do “tempo atroz” e a própria nave de “seu peso terrestre”. As obras humanas usurpam, pois, o poder sobrenatural, divino, mesmo nos espaços sacros. Essa valorização do construto, em vez do criador, ressurge em “Hotel Toffolo”: “Não, hoteleiro, nosso repasto é interior,/ e só pretendemos a mesa.” Nas cidades históricas, repletas de símbolos religiosos, o espiritual não é alimentado pela pregação cristã, mas pelo repasto bastante material das ruas e objetos barrocos. No conjunto, singulariza-se “Mercês de Cima”, em que, à maneira de “Igreja” ou “Romaria” (AP), o poeta encena a cisão entre o discurso religioso e as práticas humanas. Em frente à igreja, está a pequena prostituta, “dádiva de corpo na tarde cristã”. O resultado da presença pecaminosa é sintetizado pela bela imagem dos “anjos 132

Citamos trecho de “Leão-marinho” (VPL). Reproduzimos expressões de “Contemplação no banco” (CE). 134 Passagem extraída de “Relógio do Rosário” (CE). 133

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caídos”: ao mesmo tempo ornatos religiosos desprendidos do edifício sagrado e símbolos da prática diabólica, as ambíguas imagens sacras não serão esculpidas pelas obras religiosas – não há “Aleijadinho para recolhê-los”. Serão, entretanto, inscritas no poema a revelar as contradições do homem diante da fé. Nos anos 1960, em Lição de coisas, tais fraturas serão exploradas por meio de textos com forte tendência narrativa. O ressentimento em relação à impossibilidade de uma ordem mais verdadeira torna, então, a dirigir-se marcantemente contra o cristianismo e sua leitura do sagrado. A contradição no seio da fé tem sua mais bela forma em “O padre, a moça”, a que retornaremos adiante. Esse tema é desenvolvido também por “Os dois vigários”, em que dois padres representam forças antagônicas: padre Olímpio, a bondade, a submissão, a piedade; padre Júlio, a maldade, a concupiscência, a arrogância, o pecado. A despeito da oposição, um destino comum é reservado aos dois, fulminados por raios. Mortos os vigários, não se pode distinguir a “celeste preferência”, que atormentava Olímpio. Talvez não haja sequer preferência, mas apenas “divina indiferença”. A conclusão do poema, com a impossibilidade de conhecer a vontade de Deus, torna ainda mais pungente a distância entre as privações e os prazeres de um e outro sacerdote: o padre consumido pela ascese cristã pode ser apenas vítima de um logro. “A santa”, do mesmo livro, reitera o assombro diante das manifestações da deidade: “Por que Deus é horrendo em seu amor?”, questiona o eu petrificado pela deformação de uma mulher a quem se atribuíam milagres. A interrogação dos mistérios oriundos da esfera divina se tornarão mais e mais frequentes nos últimos livros de Carlos Drummond de Andrade. Em A falta que ama, As impurezas do branco, A paixão medida e Corpo, Ele se torna um estímulo tão importante para as interrogações existenciais do autor que um texto, “Único” (IB), inicia-se com o verso “O único assunto é Deus”. Não que o escritor tenha tardiamente recuperado a fé minada durante a vida. Ele afasta essa hipótese em seus poemas e em suas declarações à imprensa. Em entrevista de 1984 concedida à Maria Julieta, Drummond esclarece: – É verdade [que Deus ocupa um espaço importante atualmente em meus versos], mas você não imagina como Deus me chateia. Não creio nele, numa organização superior que tenha esse nome. O argumento de que não existe nada sem um poder gerador não me satisfaz, porque fico matutando que, se Deus gerou o mundo, quem gerou Deus? Ele é, para mim, uma incógnita, que me preocupa no 100

sentido poético. [...] Incluo Deus no grande painel do mistério da vida. Misterioso não é Ele, é a vida, e eu me curvo diante desse mistério, sem adotar explicações metafísicas. Só de uma coisa estou convencido: de que morremos de verdade, morremos mortos.135

Os “mistérios da vida” são variados. Em “O Deus de cada homem”, de As impurezas do branco, exploram-se as várias facetas da relação humana com o sagrado. De um lado, a expressão “meu Deus”, porque torna o divino propriedade do fiel, dota a este de uma grandeza única. Além disso, a invocação faz com que os crentes superem a “desirmandade” predominante nas relações sociais graças à cumplicidade criada entre o fraco, mortal, e o forte, eterno. Por outro lado, o termo revela a orfandade dos homens, roubando-lhes a liberdade que obteriam caso aceitassem a ausência de um Pai legislador. Ademais, o chamado a Deus estimula a ânsia de quem coteja a perenidade divina à “microeternidade” vivida pelos homens. Os traços disfóricos retornam em “Deus triste”, do mesmo livro. Nesse poema, a tristeza do criador torna-se o símbolo e a origem do desalento humano. Os versos parecem, desse modo, inverter a lógica da criação de Deus pelo homem, exposta alguns anos depois em A paixão medida. Imaginado à semelhança dos pássaros, livres e graciosos, Deus ganha autonomia em relação ao pensamento que o concebeu. O destino humano torna-se, então, um joguete da vontade de um Deus indiferente ao homem criador, visto por Ele como criatura. Os versos finais resumem o desencanto do eu em relação à existência e à falaciosa transcendência, ambas cruéis: “O homem arrependo-me/ da criação de Deus,/ mas agora é tarde.”136 “Os deuses secretos”, também da coletânea de 1980, reitera a ambiguidade da figura divina e o conflito do homem com a esfera sagrada. Aos deuses protetores, “ostensivos”, somam-se os perversos que vêm fustigar o eu. Uma vez que estes são secretos, o sujeito contorcido parece impotente: não tem “a quem dirigir/ palavra de ira ofendida”. Essa debilidade é, todavia, passageira devido ao enfraquecimento do âmbito divino: “Sei que é um deus inominado,/ sei que passará,/ e vou respirar aliviado.” A cisão da figura sacra mostra-se, assim, uma imagem das divisões subjetivas. Corpo reforçará o entrelaçamento entre as contradições humanas e o embate do homem com Deus. “Combate” expõe essa luta equívoca, em que um e outro contendor usam táticas covardes sem que obtenham resultados satisfatórios. “Deus e suas criaturas” encena, por 135 136

Carlos Drummond de Andrade fala a Maria Julieta. O Globo, Rio de Janeiro, 29 jan. 1984. Citamos “Versos de Deus”. 101

sua vez, o fundamento da disputa: Deus é duplo, ao mesmo tempo misericordioso e cruel. Apesar da ambiguidade, prevalece o aspecto negativo: os prêmios serão gozados tardiamente, após a vida, enquanto as criaturas estão “condenadas previamente sem apelação a sofrimento e morte”. Contra esse destino o poeta se insurgiu em versos que desnaturalizam as crenças religiosas. Um exemplo é “Rifoneiro divino” (PM), o qual põe em causa máximas da fé por meio da transformação dos rifões acerca de Deus em interrogações. Evidencia-se, dessa forma, a possibilidade de debater o saber tornado axiomático pela tradição judaico-cristã. Tal questionamento profundo das crenças religiosas permite, segundo nossa hipótese, que o significante “deus” surja em contexto radicalmente oposto aos dogmas do cristianismo: em meio ao sexo. Um dos poemas eróticos deixa esse gesto transgressor especialmente claro: SEM QUE EU PEDISSE, FIZESTE-ME A GRAÇA Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça de magnificar meu membro. Sem que eu esperasse, ficaste de joelhos em posição devota. O que passou não é passado morto. Para sempre e um dia o pênis recolhe a piedade osculante de tua boca. Hoje não estás nem sei onde estarás, na total impossibilidade de gesto ou comunicação. Não te vejo não te escuto não te aperto mas tua boca está presente, adorando. Adorando. Nunca pensei ter entre as coxas um deus.

O poema põe em prática, com mestria, aquela arte combinatória que individualizara a poética drummondiana segundo Davi Arrigucci Jr. De acordo com o crítico, como vimos no primeiro ensaio,137 o poder de articulação da poesia de Carlos Drummond de Andrade é demonstrado por sua capacidade de integrar materiais divergentes sem anular as diferenças. Em “Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça”, esse poder decorre sobretudo da cesura dos versos. A interrupção do primeiro é especialmente relevante. Terminado pelo substantivo “graça”, polissêmico, o verso 137

Confira-se a segunda seção do capítulo, especialmente as páginas 62 e 63. 102

vincula o favor humano à misericórdia divina. Os significados religiosos predominam: sem que saibamos ainda a quem se dirige o eu, as acepções sacras se atualizam. A “graça” pode ser a mercê concedida pelo Senhor ou o auxílio Dele para que o homem alcance a salvação. No introito, apenas o uso do “tu”, em vez do costumeiro “vós”, permite saber que, apesar do vocabulário religioso, provavelmente o interlocutor não é Deus, mas um devoto dadivoso. O segundo verso desloca o conteúdo do poema, sem apagar o tema religioso antes apresentado. Complemento do nome “graça”, “magnificar o membro” torna-se parte do ritual encenado no texto. Mais uma vez a polissemia é explorada: “magnificar” tem sentido físico, “intumescer”, e espiritual ou moral, “engrandecer” ou “exaltar”, além de remeter ao repertório litúrgico do magnificat. A sintaxe torna esses significados superpostos mas não idênticos: determinante de um termo do verso anterior, o sintagma depende do nome de valor sagrado; no entanto, devido ao marcante enjambement, o sentido sexual deixa de se integrar plenamente no discurso religioso. Esse convívio parcial é confirmado quando notamos que, salvo pelos segundo, sétimo e último versos, seria possível ler o texto como a representação de um simples ato piedoso e sua permanência na memória do fiel agraciado. Alguns significantes, “membro”, “pênis” e “entre as coxas”, dirigem a compreensão do texto para outro campo, sexual. Espécie de fundamento das significações ali construídas, o falo é como um deus não apenas para o homem, mas também para a concepção do poema erótico. Dominado pela linha interpretativa proposta pelo signo anatômico no segundo verso, o ato de ajoelhar-se deve ser lido como um gesto lascivo embora não haja na terceira e na quarta linha qualquer significante de acepção exclusivamente sexual. Não podemos, no entanto, deixar de ver essa ação também como um ato religioso graças ao termo auxiliar no quarto verso: “em posição devota”. Novamente o enjambement constrói as cisões entre a volúpia e o sagrado. A articulação vai se mostrando, assim, mais complexa. Antes o ser dadivoso ocupava a posição divina, visto que respondia pela graça concedida ao homem. Agora o eu começa também a assumir o lugar de Deus, já que é ele o objeto da devoção. Mulher ativa e homem passivo são ambos sacralizados por meio do sexo. Essa afinidade revela a superação do isolamento e das dificuldades de convívio persistentes em grande parte da poesia de Carlos Drummond de Andrade. “Sozinho de

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nascença”,138 o sujeito drummondiano encontrava a solidão até nas relações amorosas, também elas clivadas por contradições e conflitos. No ato erótico, descartada a complexidade do sentimento, dá-se o raro fenômeno de comunhão plena outrora denunciado como quimera. Fica para trás a agonia dos amantes sob as carícias, pungente imagem do desencontro amoroso lida em “A um varão que acaba de nascer”, de Claro enigma. Agora o erotismo enaltece os parceiros sexuais de tal forma que sua transformação é figurada por meio de um vocabulário litúrgico. A importância dessa escolha começa a se esclarecer: assim como a religião, segundo a etimologia – falsa mas amplamente aceita – do termo, opera a religação do humano com o divino, o sexo promove a reunião dos homens e o reencontro do eu com sua até então ignorada face grandiosa. Compreendemos melhor também por que a articulação entre as duas linhas semânticas não leva à fusão plena do sagrado ao profano: a fratura parcial entre as duas realidades, construída por meio da sintaxe, importa para a encenação da mudança obtida graças ao sexo, mas mantida ainda depois do ato erótico, como evidenciam os versos seguintes. A diferença salva por meio da arte articulatória drummondiana ecoa, assim, o apagamento permanente das contradições vigentes longe do sexo e de sua lembrança. Os versos seguintes delineiam a intensidade da memória dos sentidos. O ato supremo, capaz de deificar os amantes, fica impresso para sempre. Tal persistência é reproduzida pela organização da primeira estrofe. Apesar da mudança no tema e na construção a partir da quinta linha, a duração do êxtase participa da mesma estância que o trecho a encenar o caráter ritualístico da felação. Essa cópula, à primeira vista inapropriada, será arrematada pelo último verso da seção, o qual liga o erotismo, o sagrado e a eternização do prazer. O nó entre o religioso e o sexual é fruto da polissemia do substantivo “piedade”: ele pode se referir ao afeto secular de pena pelo sofrimento alheio ou à prática das leis religiosas. A primeira acepção ganha vulto ao evocarmos o caráter dadivoso da mulher a magnificar o homem por meio de seu membro. Esse sentido é reforçado também quando lembramos que, na poesia do autor, o amor pode ser a “antecâmara da piedade”, o sentimento conduzindo o ser, de outro modo “perdido/ numa aventura sem explicação”.139 No poema erótico, a alegria decorrente dos laços afetivos, quase sempre corroída na lírica drummondiana, é substituída pelo encontro harmonioso de uma devota com um homem que desconhecia sua grandiosidade. A essa 138 139

Trecho do tocante “Homem tirando a roupa”, de Viola de bolso. Citamos “Notícia de Segall”, texto de A falta que ama. 104

significação secular, soma-se a leitura religiosa: a pregnância da figuração sacralizante do gesto erótico, antes reiterada, parece obrigar o leitor a reconhecer ali o significado pio. Este se expande para o caráter sempiterno do prazer sexual, inscrito por meio do tempo presente: o pênis “recolhe”, ainda no momento da enunciação, o beijo dadivoso. Qual um deus, o amante agraciado logra superar os efeitos obliterantes da passagem do tempo. A segunda e a terceira estrofes expandem a paz obtida por essa dádiva. A carícia e sua potência sacralizante permanecem em vigor muito tempo após o ato erótico. Por levar em seu corpo as marcas do encontro perfeito, o homem, mesmo sem poder tocar a amante ou com ela se comunicar, é capaz de superar a disforia da separação. Perenemente adorado, o eu descobrirá, na última estância, carregar em si um deus. Essa conclusão apresenta com ênfase singular o resultado jubiloso do esvaziamento da transcendência, observado a partir de um ponto de vista menos prazenteiro em outros textos do escritor.140 Revela, ainda, a continuidade nos poemas eróticos do veio profanador alimentado ao longo da obra de Carlos Drummond de Andrade. Segundo Agamben (2007b, p. 65), profanar é “restituir ao livre uso dos homens” o que havia sido tornado inacessível porque exclusivo à esfera sagrada. Nas obras iniciais, essa restituição se dava sobretudo por meio da abordagem sarcástica da fé cristã. Nos últimos livros de Drummond, graças ao questionamento do saber humano acerca de Deus. Em “Sem que eu pedisse fizeste-me a graça”, a profanação se dirige às palavras: os signos sagrados estão liberados da indisponibilidade a que haviam sido submetidos pela rede discursiva religiosa. O primeiro índice dessa emancipação diz respeito ao uso, recorrente no volume, do significante “deus” com inicial minúscula. Trata-se agora de substantivo entre outros, livre, disponível. Além disso, respaldado pela profunda descrença do autor e pela moderna libertação da linguagem, o poema pode associar mesmo o mais inviolável significante, “deus”, a uma das partes mais obscenas do corpo. O erotismo participa também, portanto, da longeva tarefa transgressora em que se engajara o escritor desde a juventude: libertar os ídolos religiosos e reverter a empobrecedora sacralização do idioma. Tarefa política – poderíamos acrescentar – na

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A esse respeito, confiram-se sobretudo “Coisa miserável”, de Brejo das Almas, e “O deus mal informado”, de A falta que ama. 105

medida em que, corroendo a aura comumente agregada ao campo divino, “desativa os dispositivos de poder” impressos no sistema linguístico.141 A transgressão se expande para outros poemas do volume, como este: EM TEU CRESPO JARDIM, ANÊMONAS CASTANHAS Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas detêm a mão ansiosa: Devagar. Cada pétala ou sépala seja lentamente acariciada, céu; e a vista pouse, beijo abstrato, antes do beijo ritual, na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado.

Tal qual em “Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça”, a sintaxe tem aqui papel fundamental na articulação entre o sexo e o sagrado. No terceiro e no quarto versos, o anacoluto encena a passagem imediata do corpo ao espaço celeste, do baixo ao elevado, obtida por meio das carícias eróticas. Esse trânsito fora preparado, nos versos anteriores, pela apresentação dos obstáculos necessários ao rito em que se transformou o adiamento do orgasmo. Contra a ansiedade do amante, o corpo feminino ganha voz: “Devagar”. Essa demanda poderia introduzir o conflito no ato amoroso, mas o efeito é o oposto. Tamanha é a harmonia entre os parceiros que não podemos definir quem enuncia os imperativos que se seguem: “cada pétala ou sépala/ seja lentamente acariciada”; “a vista pouse” “na flora pubescente”. O equilíbrio ecoa na forma. Apesar de os versos serem polimétricos, os acentos incidentes na sexta sílaba dotam-nos de regularidade. A constância se desfaz apenas no último verso, em que o substantivo “amor” ganha destaque graças ao deslocamento na acentuação. Apesar da mudança, segue a encenação da harmonia, agora expandida do corpo para o afeto. Respaldado pelo sentimento, “tudo” – adiamento e concretização do beijo ritual – mostra-se sagrado. É preciso compreender o sentido que a sacralidade pode obter aqui. O texto é um dos poucos em que a afeição envolve o ato físico. Por isso, poderíamos supor que o 141

Neste ponto, retomamos a defesa caráter político da profanação por Agamben em seu ensaio citado. Segundo o filósofo, diferentemente da secularização, os gestos profanadores neutralizariam o poder: “A secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (a transcendência de Deus como paradigma do poder soberano) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando, porém, intacto o seu poder.// A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado.” (ibidem, p. 68) 106

caráter sacro do sexo existe sobretudo quando este é legitimado pelo amor. Essa abordagem não é confirmada no conjunto, entretanto. Na maior parte dos poemas de O amor natural, mesmo naqueles que representam o ato sexual como um rito, o sentimento é substituído pela sensação. Essa ênfase fazia parte, inclusive, do programa anunciado por Drummond em suas declarações à imprensa: Eu acho que, até agora, a grande parte, senão a totalidade, das obras literárias que falam de amor procura exaltar ou analisar o amor como uma mistura de amor físico e amor espiritual. Não há a tônica sobre o amor físico como uma expressão digna do amor. Quando nós falamos de amor, nós falamos mais de um sentimento do que de uma práxis, de uma experiência. A minha ideia foi enaltecer o lado físico do amor, numa linguagem poética e com dignidade.142

O predomínio do físico sobre o espiritual pode ser uma importante chave para a compreensão do problema. A elisão do sentimento, em quase todos os textos, deixa entrever um significativo deslocamento nas forças que moviam o lirismo drummondiano. Em grande parte da obra publicada em vida, o amor fora um dos instrumentos com que o eu gauche buscara transcender a realidade material e histórica. Essa tentativa, porém, era obstada pelas contradições do afeto, pelas descontinuidades entre os amantes, pela finitude do corpo e pelas condições sociais. A poesia amorosa tornava-se, então, predominantemente o registro dilacerado do fracassado projeto de recriar a unidade, perdida, e o transcendente, esvaziado. Em O amor natural, o eu poético drummondiano já não parece se inquietar com a impossibilidade de transcender a esfera material. Ao contrário, embora ciente de que o ideal está corroído pela consciência crítica moderna, ele idealiza o corpo, figurado como se fora a transcendência possível – paraíso em vida. Tal operação já havia sido realizada antes na obra de Drummond, conforme expusemos por meio da leitura breve de “Escada” (FA) no capítulo anterior. Contudo, a ascensão dos amantes culminava aí com a revelação do vazio de todo ideal. Somente nas últimas obras, começa a se fortalecer, mesmo que corroída pela dúvida, a concepção que depois prevaleceria no livro póstumo: a aceitação dos limites da matéria graças à mitificação do corpo. Em “Corporal” (FQA), ele se torna um arabesco a inventar “formas aladas”. Em “A metafísica do corpo” (Co), ele permite retornar ao tempo imemorial e sem contradições por que tanto ansiara o sujeito gauche: na “forma breve e 142

Fala o poeta, op. cit. 107

transitiva”, imprime-se a “solene marca dos deuses/ e do sonho”; além disso, o corpo, “invólucro perfeito”, permite o “pensamento/ da unidade inicial do mundo” e resume “outra vida, mais florente”. A novidade trazida por O amor natural é a encenação da experiência que leva a essa “outra vida” em vida. Nesse contexto, as imagens advindas do universo sagrado tornam-se excelentes metáforas para a intensidade do prazer a propiciar a fuga do cotidiano, ímpio. Assim como a hierofania manifesta algo absolutamente diverso do profano,143 o orgasmo leva o amante a uma experiência radicalmente diferente da “depressão” vivida nos tempos de abstinência – conforme leremos em um poema de O amor natural – ou da inquietude e das contradições subjetivas expostas ao longo da obra poética do autor. Essa hipótese pode ser esclarecida quando retomamos um texto publicado em vida por Carlos Drummond de Andrade. Na maioria dos poemas da coletânea póstuma, o isolamento ritualístico dos parceiros sexuais é encenado sem mais. Não há antes ou depois, apenas as carícias até ser atingido o êxtase, profanamente sacro. Por isso, esses versos pouco esclarecem o possível fundo contra o qual se delineia a figuração do sexo à maneira de um ritual: a recusa da religião, desrespeitada, e a evasão das contradições públicas. Diferentemente, “O padre, a moça”, de Lição de coisas, narra o duro percurso dos amantes até conseguirem deixar para trás as crenças cristãs e a violência dos homens. Só então, podem gozar a experiência sexual limite, representada por meio de um vocabulário religioso, como em alguns poemas eróticos publicados postumamente. No texto dos anos 1960, a narrativa do furto de uma moça por um padre suscita uma série de reflexões acerca do amor, do sagrado e da relação humana com a fé cristã. A primeira parte do poema introduz o crime e a miraculosa fuga. O padre e a moça escapam a toda tentativa de captura: “Pedras caem no padre, deslizam”. A estrutura paratática encena a justaposição do cotidiano ao sobrenatural: sem a conjunção a definir a lógica opositiva – caem mas deslizam –, o real e o miraculoso se aproximam da forma mais intensa. Na segunda estrofe, a parataxe também predomina, mas com novo efeito: imprimir velocidade à sobrenatural fuga do clérigo: Lá vai o padre, atravessa o Piauí, lá vai o padre, 143

Guiamo-nos pela definição de hierofania apresentada por Mircea Eliade em O sagrado e o profano: “Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo ‘de ordem diferente’ – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo ‘natural’, ‘profano’.” (1992, p. 17) 108

bispos correm atrás, lá vai o padre, lá vai o padre lá vai o padre lá vai o padre, diabo em forma de gente, sagrado.

O último verso explicita um dos enlaces construídos pelo poema: o sagrado e o diabólico se reúnem por meio da transgressão realizada pelo homem religioso. Essa fusão se difundirá por meio de marcantes antíteses – “Aquele um/ negro amor de rendas brancas” – e por meio das interrogações dirigidas à vontade insondável de Deus: “todo amor é o amor e ninguém sabe/ onde Deus acaba e recomeça” e, adiante, “Mas se foi Deus quem mandou?”. A segunda parte do texto diversifica as vozes que enriquecem a encenação da fuga. Ao assumir a palavra, os perseguidores expõem a distância entre a ação e a fé: na segunda estrofe, conclamam os companheiros a seguir o estudado plano de busca; na terceira e na quarta, ao revés, revelam seu temor e arrependimento por irem contra os poderes e mistérios do representante de Deus: “Perdoai-nos, padre, porque vos perseguimos”. Dessa forma, não só o sagrado, mas também a experiência humana da fé revela-se contraditória e conturbada. O dilaceramento barroco do homem pela religiosidade introduz a terceira parte do poema: “E o padre não perdoa: lá vai/ levando o Cristo e o Crime no alforje”. Alçado ao mesmo patamar do homem santo, o crime é talvez um dos responsáveis pelos milagres apresentados na primeira estrofe do trecho. A dualidade move também a oposição entre a estâncias seguintes. Na segunda e na terceira, os fiéis imploram que não tenham suas filhas levadas pelo padre. Na quarta e na quinta, suplicam justo o oposto: “Padre, levai nossas filhas!”. Impulsionadas ao mesmo tempo pelos rígidos preceitos sociais, que as fazem esconjurar o vício, e pelas dúvidas acerca da vontade de Deus, que as levam a questionar o que é o pecado, as almas se fendem. Na quarta seção do texto, o padre passa a ser o objeto das cisões estimuladas pelo sagrado. “Deus é astúcia”, “Deus é espinho”, diz o poema, e está fincado no amor do padre pela moça como o germe do esgotamento de todo amor humano. Pressentindo a mudança, a moça implora: “Padre, não me digas/ que no teu peito amor guerreia amor, e que não escolheste para sempre.” O aguilhão ressurgirá na sexta parte, transfigurado agora na imagem do diabo, que vem tentar o padre tal qual fizera com Cristo no deserto. No entanto, o Príncipe não é astucioso como Deus. Ele se pauta ainda na categoria cristã do pecado, que não pode mais afetar o padre, isolado do “retintim deste mundo”. Como 109

mostrará de forma tocante a sétima seção do poema, esse homem está “vazio de julgamento”. Por isso, não será a culpa seu ferrão, mas a degradação do amor. Na oitava seção, esta é figurada pela imagem da mula galopante em que se transforma a moça – ou a angústia do padre – por castigo de Deus. Na nona seção, os amantes são duplamente espicaçados: pela corrosão do afeto e pelos homens, que já não creem na santidade de sua relação. A despeito das forças contrárias, o desfecho dá a vitória aos amantes. Na décima seção, a fuga – já sem destino – leva-os a uma gruta caracterizada como um espaço sagrado. Ao nela se enterrarem, os fugitivos devem seguir rituais dedicados aos templos: “entram curvos, como numa igreja/ feita para fiéis ajoelhados.” Em posição devota, o padre penetra a gruta sagrada da amante e também ele se torna sacro ao espalhar o sêmen no leito tornado cova. Desse modo, a negatividade crescente das seções anteriores dá lugar às imagens festivas que fundem o sexo e a morte: os amantes, antes criminosos, conhecem o “perdão mais solene”; a asfixia se torna sacrifício e santidade a cortarem-lhes a respiração; por fim, a “sensação de vida” triunfa sobre a morte, na morte, “empalidecer de humano sopro contingente”. Ato e ambiente comungam, então, uma sacralidade em tudo diversa da fé que movera a perseguição ao padre e à moça: um “cantar angélico” diz de “céus mais que cristãos”, atingidos graças ao coito, decesso eleito pelos amantes. Até mesmo a remissão aos “desfal/ecimentos teresinos”, com que se comparam o “esvair-se de males” das personagens, deixa entrever a corrosão da fé católica, já que o êxtase místico era atingido por Santa Teresa pela via ascética e não graças ao sexo, como nos versos. Sobretudo, a noção de pecado está superada. Por isso, a “presença de Deus feita sorriso” afasta-se profundamente do Deus que outrora se divertia castigando, espinho. Como os perseguidores a se persignarem, essa divindade fica fora da gruta sagrada e erótica. A caverna representa com impressionante clareza a impossibilidade do extraordinário – paixão, elevação, êxtase – sem o abandono radical das condições históricas. Foi necessária a fuga de todas as restrições sociais para que o padre e a moça vencessem “o úmido medo da condição vivente”. Fechados, protegidos, deixando a religião e o pecado para trás, eles puderam concretizar a superação das angústias individuais e das contradições decorrentes do convívio público tantas vezes ansiada na obra do escritor. Nesse sentido, o poema revela os polos que formavam o “curtocircuito” fundamental da poesia drummondiana para, em seguida, expor a sua 110

superação: até a última seção do texto, suplantar o desencanto parecia impossível devido à violência dos homens e às inquietudes subjetivas; no fim, o erotismo, isolado do mundo, logra ultrapassar todas as forças contrárias à elevação dos amantes. Em O amor natural, a experiência erótica terá o mesmo efeito, conforme deixa claro o seguinte texto: MIMOSA BOCA ERRANTE Mimosa boca errante à superfície até achar o ponto em que te apraz colher o fruto em fogo que não será comido mas fruído até se lhe esgotar o sumo cálido e ele deixar-te, ou o deixares, flácido, mas rorejando a baba de delícias que fruto e boca se permitem, dádiva. Boca mimosa e sábia, impaciente de sugar e clausurar inteiro, em ti, o talo rígido mas varado de gozo ao confinar-se no limitado espaço que ofereces a seu volume e jato apaixonados, como podes tornar-te, assim aberta, recurvo céu infindo e sepultura? Mimosa boca e santa, que devagar vais desfolhando a líquida espuma do prazer em rito mudo, lenta-lambente-lambilusamente ligada à forma ereta qual se fossem a boca o próprio fruto, e o fruto a boca, oh chega, chega, chega de beber-me, de matar-me, e, na morte, de viver-me. Já sei a eternidade: é puro orgasmo.

A felação orienta o ritual a revelar o céu no corpo, do mesmo modo que o poema a que este sucede no volume: “Sem que eu pedisse fizeste-me a graça”. Mas aqui o caráter sacro do sexo se vai explicitando aos poucos e não de chofre, qual no outro texto da coletânea. Tendo já se iniciado na sacralização profanadora do erotismo, o leitor acompanha a progressiva caracterização do corpo como ao mesmo tempo sexualizado e santo. Inicialmente, a seleção vocabular, em que predominam termos relacionados à flora, contribui para a representação indireta do ato sexual, amenizando o caráter 111

transgressor da articulação do erotismo à santidade. O leitor atento reconhecerá, não obstante, a apropriação irônica do discurso religioso pelos versos. A referência evidente é o terceiro capítulo do Gênesis, em que Adão e Eva são expulsos do Éden após comer o fruto proibido. Nas Escrituras, eles conhecem a morte e a vergonha graças à desobediência à ordem de não tomar da “árvore da vida”. Para que os homens não voltassem a transgredir a lei divina e assim viver eternamente, querubins passam a defender o caminho de volta ao jardim paradisíaco. Em “Mimosa boca errante”, atualiza-se uma leitura corrente do episódio bíblico, compreendido comumente como uma metáfora para a concretização pecaminosa do sexo. Nos versos eróticos, repete-se o ato castigado por Deus segundo a mitologia judaico-cristã: o “fruto em fogo” será, mais do que comido, “fruído/ até se lhe esgotar o sumo cálido”. O mecanismo de corrosão do discurso retomado já está presente desde aí. Contra a ênfase nas funestas consequências da transgressão da autoridade divina por Eva, os versos reiteram o prazer da boca que erra pelo corpo masculino e recolhe prazerosamente o sêmen. Nenhum pecado. O ato erótico é dádiva a que se permitem os amantes. Nenhuma vergonha. Está longe o “trem imundo” do corpo que conhecera o menino formado de acordo com as normas cristãs.144 Os órgãos erógenos tornaram-se, na poesia erótica, o próprio horto edênico. Na segunda estrofe, ele se tornará também “recurvo céu”. Esse deslocamento é figurado por meio de um aparente paradoxo: o forte confinamento permite a maior abertura, aquela que eleva os homens até o espaço celeste. Há aí talvez uma remissão às práticas de algumas correntes religiosas. Entretanto, o paraíso celestial, desejo máximo do fiel, foi transferido para o céu da boca, revertendo o desprezo pelas sensações físicas propagado pelos ascetas. Além disso, não se trata do isolamento necessário para a beatitude segundo certo ascetismo cristão e sim da prazerosa pressão exercida pela amante sobre o membro rijo. Nesse sentido, a santidade da “boca mimosa”, explicitada na terceira estância, afasta-se daquela que alguns clérigos gostariam de obter por meio do sofrimento decorrente da clausura. A caracterização da boca como uma sepultura também leva adiante a retomada transgressora da simbologia judaico-cristã, já antes empreendida na última seção de “O padre, a moça”. Como no ideário religioso, a aniquilação da individualidade mostra-se 144

Citamos expressão encontrada em “Terrores”, de Boitempo, esclarecedor exemplo do pânico com que o “menino antigo” assimilara os preceitos religiosos e da recusa do corpo daí decorrente. 112

aqui libertadora. Na poesia mística, os versos de Santa Teresa D’Ávila, fiel mencionada no poema de Lição de coisas, iluminam como poucos o escopo dessa libertação para os cristãos: Ó vida, que posso eu dar a meu Deus, que vive em mim, a não ser perder-te a ti e a Ele melhor gozar? Morrendo o quero alcançar, só Ele me basta ter, que morro por não morrer.145

O falecimento se torna a promessa do mais intenso encontro com Deus. Por isso, a vida terrena é encarada como uma forma de morte ou de desterro da verdadeira vida, eterna. A profunda transformação advinda com a adesão à fé também é descrita em outros poemas da religiosa como um aniquilamento libertador.146 De modo similar, em “Mimosa boca errante” surge a figuração da morte como uma vida mais intensa. A princípio, a experiência impactante é temida: vendo-se esvair junto com a perda da semente, o homem implora: “oh chega, chega, chega de beber-me,/ de matar-me”. Rapidamente, contudo, o medo é suplantado pela afirmação da potência – “e de, na morte, viver-me” –, que culminará com o conhecimento da eternidade permitido pela perda dos limites individuais. Parecemos atingir o mesmo resultado do misticismo cristão: o gozo da infinitude em vida. Essa afinidade decorre de que o erotismo drummondiano parece se apropriar de imagens e termos advindos da tradição religiosa como metáforas para o sexo. Metáforas, imagens, mas não a adesão ao ideário místico, como quis Maria Lucia do Pazo Ferreira em sua tese.147 Para que houvesse tal filiação, os textos deveriam

145

Tradução de Wanderson Lima para o original em espanhol de “Vivo sin vivir en mí”: “Vida, ¿qué puedo yo darle/ a mi Dios que vive en mí,/ si no es el perderte a ti,/ para merecer ganarle?/ Quiero muriendo alcanzarle,/ pues tanto a mi Amado quiero,/ que muero porque no muero.” 146 Confiram-se, a título de exemplo, os versos de “Glosa”, na tradução de Wanderson Lima: “Quando o doce Caçador/ me atirou e fui rendida,/ e nos braços do amor/ minh’alma estacou, caída,/ recobrando nova vida/ de tal modo hei mudado/ que o Amado é para mim/ e eu sou para o meu Amado.” [Original em espanhol: “Cuando el dulce Cazador/ me tiró y dejó rendida,/ en los brazos del amor/ mi alma quedó caída,/ y cobrando nueva vida/ de tal manera he trocado,/ que mi Amado es para mí/ y yo soy para mi Amado.”] 147 A hipótese se explicita na introdução do trabalho. Segundo a pesquisadora, a partir da tese histórica de Denis de Rougemont em O amor e o Ocidente, enviado por Drummond a ela, “foi possível estabelecer aproximações entre a expressão dos grandes místicos e o recôndito misticismo destituído de fervor religioso de um agnóstico, como sempre se declarou Drummond.” (op. cit., p. 13) 113

representar a transcendência da natureza. Mas revelam o inverso disso: o gozo intenso do físico é a face feliz do esvaziamento de todo transcendente.148 Com efeito, nos versos eróticos a eternidade é puro orgasmo. Este não prenuncia uma experiência maior almejada após a morte do corpo. Já na mística, ainda quando a terminologia para o encontro de Deus se aproxima do erotismo – vide a ambígua sede de “a Ele melhor gozar” em Santa Teresa –, estamos diante do desejo de superar o material, motor da separação parcial das almas com o Senhor. Lembramos ainda que o poema de Carlos Drummond de Andrade inverte ironicamente o texto bíblico, transgressão condenável se o texto propagasse as imagens da fé. Em “Mimosa boca errante”, comer o fruto proibido redunda no oposto do castigo determinado a Adão e Eva, a quem se proíbe a imortalidade. Figurando o ato erótico como um rito sagrado, os versos pautam-se na perda da consistência do âmbito divino e a ela intensificam por meio da corrosão do discurso religioso. Dessa forma, junto com “Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça” e “Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”, evidenciam que a santidade do erotismo, propalada por Drummond em suas declarações à imprensa, pouco tem a ver com a pureza ou a benevolência esperadas nas práticas pias. Ao contrário, o erotismo é santo porque ironicamente toma da experiência religiosa seus termos: com o vazio deixado por Deus, o poeta pode, à maneira dos eleitos, reescrever a Escritura; sem um Pai vigilante a condenar o corpo, o sujeito poético pode finalmente gozar os prazeres da carne. 2.2 TANTA NUDEZ ME DEIXA NAUFRAGADO A deificação dos amantes é uma significativa imagem da superação das contradições vivenciadas dramaticamente pelo sujeito poético drummondiano em grande parte de sua trajetória. Ao longo da obra publicada em vida por Carlos Drummond de Andrade, as antinomias – “confusa distribuição” de “seda e péssimo”149 – enriqueceram o retrato do eu. As clivagens foram tantas que fica quase sempre frustrada toda tentativa de delinear uma figura coesa. Em um mesmo volume, deparamo-nos

148

com

a

altiva

afirmação

individual

a

conviver

com

o

Antes de mim, já o havia defendido Mirella Vieira Lima em seu excelente trabalho sobre o lirismo amoroso drummondiano. Para a discussão, confira-se o último capítulo desse livro. 149 Expressões encontradas em “Contemplação no banco” (CE). 114

autorrebaixamento.150 No interior de um único texto, o eu pode afirmar suas fraquezas para negá-las logo adiante, em um procedimento encontrado já no poema inaugural da obra drummondiana. A despeito da complexidade, é inegável que na maior parte da obra do autor, a face canhestra do eu foi quase sempre privilegiada. Daí decorre um dos principais dramas encenados nos versos do poeta: o anseio de escapar a um egotismo incômodo o faz retornar de forma autopunitiva ao eu,151 pintado sob as tintas escuras do gauche, do inimigo ou do malvindo. Daí também poder-se reconhecer na “tentativa de desconstruir o ‘gauchismo’”, de superá-lo ou sublimá-lo, a “tônica do fazer poético drummondiano”, como quis Letícia Malard (2005, p. 31-32). Tentativa malograda, poderíamos acrescentar, em grande parte do percurso poético do escritor. A expressão solar ou íntegra, conquanto se tenha delineado em alguns poemas, foi sobretudo uma manifestação do desejo de vencer as diversas limitações registradas pelo realismo que marcou a escrita de Carlos Drummond de Andrade. Em vários poemas de O amor natural, a perspectiva realista está adormecida. Por isso, é possível vencer o “gauchismo”. O eu torto se cala. Foi substituído pelo sujeito deificado ou diluído jubilosamente durante o gozo. A diluição do eu tem manifestações diversas. Em “Mimosa boca errante”, é construída não só pela apropriação do imaginário litúrgico, como também pela retomada da imagética sublime. Esse retorno deixa ver a magnificência do jardim em que se transformou o corpo: o novo éden, ao fim do poema, não tem mais a platitude do idílico paraíso de que haviam sido expulsos os homens segundo o discurso religioso. A natureza reencontrada nos órgãos sexuais é assustadora porque transtorna o eu, fazendoo experimentar o sentimento da morte. Mas esse horror é “deleitoso”,152 visto que a magnitude do orgasmo leva o homem a conhecer o excesso, a perda dos limites, a eternidade.

150

Confrontem-se, a título de exemplo, “Idade madura” e “Consolo na praia”, de A rosa do povo. A referência evidente aqui é o ensaio “Inquietudes na poesia de Drummond”, de Antonio Candido (2004). 152 Retomamos a caracterização do sublime apresentada por Burke em seu ensaio fundamental acerca da questão: “Em todos esses casos, se a dor e o terror estão moderados a ponto de não serem realmente nocivos, se a dor não é levada a uma intensidade muito grande e se o terror não está relacionado à destruição iminente da pessoa, dado que essas emoções livram as partes, quer as mais delicadas, quer as grosseiras, de um obstáculo perigoso e perturbador, elas têm a faculdade de produzir deleite; não prazer, mas uma espécie de horror deleitoso, de calma mesclada de terror, o qual, visto que pertence à autopreservação, é uma das paixões mais intensas que existem. Seu objeto é o sublime.” (1993, p. 141) 115 151

Tal elevação do corpo à categoria do sublime foi compreendida como um prolongamento do Romantismo na escrita erótica de Carlos Drummond de Andrade. De acordo com Mirella Vieira Lima, “Drummond preserva em sua visão do sublime, e do sagrado, os significados que a eles se aderem a partir de uma tradição romântica”(op. cit., p. 175). Essa proposição nos parece parcialmente acertada. É inegável que o conceito caro ao século XVIII anunciava uma importante novidade depois aprofundada pelo Romantismo: o distanciamento em relação aos valores então predominantes da ordem, do equilíbrio e da objetividade. No entanto, podemos contestar um aspecto da análise de Vieira Lima: a recusa do caráter moderno do sublime na poesia erótica drummondiana. Contra o teor regressivo supostamente assumido por essa categoria estética em O amor natural, a pesquisadora opõe a anulação, por Bataille, do que no sublime “poderia ser uma metáfora de fundo romântico ou cortês, através do reconhecimento daquilo que ele considera obsceno e degradante na sexualidade” (idem, p. 174-175). De fato, a dimensão infame do sexo está quase sempre excluída de O amor natural. Essa omissão fica particularmente clara quando lembramos as variadas metáforas com que os órgãos erógenos foram representados no volume. Sobretudo as imagens florais revelam a escolha do elevado em detrimento do baixo, como lemos em “Mimosa boca errante”, onde o fruto é fruído até tornar sublime o corpo, ou em “Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”, no qual as pétalas são acariciadas até revelar o céu na carne. Nada mais estranho à “linguagem das flores”, em que Bataille (1968) reconheceu a distância entre a beleza idealizada no conjunto floral e a sordidez dos órgãos reprodutivos vegetais, a fragilidade da corola e as raízes ocultas no chão. Há nas plantas, segundo o pensador, uma fratura no movimento do solo em direção ao céu. Essa fenda não está representada em um texto como “Mimosa boca errante”. Todavia, nesse poema o caráter sublime do corpo convive com a apropriação transgressora do discurso religioso. Em outro texto do volume, “Ó tu sublime puta encanecida”, estará misturado ao aviltamento da carne. Nesse sentido, se há um prolongamento do Romantismo em O amor natural, o livro retoma o filão corrosivo dessa estética, o qual teria desdobramentos ainda na mais combativa arte moderna.153 153

Confira-se “Modernidad y Romanticismo”, de Octavio Paz. Nesse ensaio, o autor insiste no caráter fundador do Romantismo para a poesia moderna: “La historia de la poesía moderna, del romanticismo al simbolismo, es la historia de las distintas manifestaciones de los dos principios que la constituyen desde su nacimiento: la analogía y la ironía” (op. cit., p. 504). O pensamento de Paz nos é especialmente caro 116

Outro poema do livro não deixa dúvidas acerca da extração modernista dos versos a associar o sexo à diluição da identidade dos amantes. Em “Sugar e ser sugado pelo amor”, o assombro e a grandiosidade oriundos do imaginário sublime dão lugar à tematização do pleno gozo por meio de procedimentos que prolongam o experimentalismo de fins dos anos 1950 e dos anos 1960. Ecoando a fusão feliz dos parceiros sexuais, também as palavras se fundem e o verso se difunde significativamente sobre o papel: SUGAR E SER SUGADO PELO AMOR Sugar e ser sugado pelo amor no mesmo instante boca milvalente o corpo dois em um o gozo pleno que não pertence a mim nem te pertence um gozo de fusão difusa transfusão o lamber o chupar o ser chupado no mesmo espasmo é tudo boca boca boca boca sessenta e nove vezes boquilíngua.

Desde o primeiro verso, inicia-se o processo levado a cabo pelo poema: graças ao infinitivo, que não designa pessoa ou tempo, despersonalizam-se os amantes e indetermina-se o momento do prazer. A ruptura da sintaxe tradicional logo a seguir terá efeito semelhante, já que pulveriza o tempo e as personagens do sessenta e nove. Embora esteja inscrita graças à locução adverbial “no mesmo instante”, a temporalidade do sexo não progride em um discurso fluente. É interrompida pelo espaço não ocupado do papel, a que se segue a expressão a introduzir novo ingrediente do erotismo: o físico fragmentado, figurado por meio da “boca milvalente”. Esse sintagma permite compreender o sentido da dissolução do verso, da língua e da anatomia empreendida no texto. O estilhaçamento da sintaxe, explorado para encenar a simultaneidade das ações e do gozo, articula-se aqui com a potência do corpo – milvalente – e da linguagem, renovada pelo novo vocábulo. “Dois em um”, a palavra, construída com a justaposição, repete o aspecto da anatomia visada durante as carícias sexuais. Tal qual o amante, o poeta goza o idioma plenamente. por revelar o caráter transgressor desses princípios, desdobrados a partir da estética romântica: “Doble transgresión: la analogía opone al tiempo sucesivo de la historia y a la beatificación del futuro utópico, el tiempo cíclio del mito; a su vez, la ironía desgarra el tiempo mítico al afirmar la caída en la contingencia, la pluralidad de dioses y de mitos, la muerte de Dios y de sus criaturas.” (idem, p. 504) 117

Conforme analisamos no capítulo anterior, os procedimentos de inovação vocabular e de dissolução sintática não são exclusivos de O amor natural. Intensificando-se na escrita do autor em fins dos anos 1950 e sobretudo nos anos 1960, o experimentalismo foi reconhecido como prova de que o poeta mais velho haveria assimilado as propostas vanguardistas de meados do século XX. Tal aproximação, contudo, foi reticente, como já exposto por alguns críticos. A violação das palavras por Carlos Drummond de Andrade originou-se, segundo Gledson, na irritação crescente com o idioma, manifestada nos livros dos anos 1950. Decorreu, portanto, não só da atração pelos movimentos estéticos do tempo, mas também da deriva interna da poesia drummondiana. Faz parte desse curso a conjunção problemática da obra com a subjetividade e com o mundo. Em Lição de coisas, onde mais foram apontadas marcas do concretismo, o estilhaçamento da morfossintaxe ajuda a problematizar o poder de representação da linguagem diante das contradições sociais e dos enigmas do amor ou da origem. Nos termos de Mirella Vieira Lima em relação à lírica amorosa do escritor, “justamente quando se afirma o poema como objeto autônomo”, qual fizeram as novas vanguardas, “Drummond atesta a dependência entre a construção linguística do poeta e a experiência do amante. Se o ato de amar não tem sentido na existência, é impossível objetivar esse sentido na linguagem” (op. cit., p. 151-152). A experiência com as palavras deve, pois, ecoar a experiência humana – a impossibilidade de fazê-lo de forma plena estimulando a incessante procura da poesia. Na coletânea póstuma, há marcas do longevo anseio de representar o amor em uma linguagem moderna. Essa aspiração foi conflituosamente registrada desde Alguma poesia e persistiu na obra madura do autor. Privilegiando a face física do laço amoroso em O amor natural, Carlos Drummond de Andrade segue recusando a autonomia do texto poético por meio da abertura implicada na representação do encontro intenso com o outro. Há, porém, um importante desvio nessa lírica impura: a perversão da língua não visa, como outrora, a reproduzir o mal-estar do sujeito em face do mundo.154 Finalmente, a língua parece assumir o valor simbólico buscado pelo poeta ao longo de sua trajetória: o da unidade dos homens. Em “Sugar e ser sugado pelo amor”, o papel

154

Remetemos mais uma vez ao fim da seção “Notícias do corpo”, do primeiro capítulo desta tese e à leitura de “Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça”, na seção anterior. Segundo nossa hipótese, nesse poema, a capacidade articulatória do poeta deixa de estar a serviço do inquietante sentimento do mundo para registrar o jubiloso encontro impresso perenemente na memória do amante. 118

aglutinador da linguagem se inscreve nas palavras – “milvalente”, “boquilíngua” – a reproduzir o abraço erótico e na sintaxe rarefeita a ecoar a fusão dos amantes. Tal união se faz sentir ainda pela representação singular do corpo: ligados pela boca e pelo púbis, os amantes delineiam uma só figura. Os contornos anatômicos, expressão mais clara das diferenças individuais, foram apagados. Desse modo, desfazem-se as cadeias que tanta vezes dotaram de tragicidade o lirismo do autor: aquelas que prendiam o sujeito a si próprio155 e, “mal superior a todos”,156 a outros incapazes de compreendê-lo ou corresponder a seus anseios. Difundidas para os vínculos com os companheiros na luta por um mundo conciliado e para os laços de família, as dificuldades de comunicação invadiram de forma dramática também a lírica amorosa. Quando alijado dos encontros eróticos, o eu registra a impossibilidade de concretizar seus desejos em versos “perversos, inúteis, capengas e lúbricos”.157 Mesmo o encontro amoroso era atravessado pela incompreensão: “os corpos se unem/ e bruscamente se separam”,158 sem que seja descoberta a chave da ansiada unidade. A essas fraturas, somava-se a alteridade encontrada no seio do sentimento amoroso: “O próprio amor se desconhece e maltrata”, lemos em “Tarde de maio” (CE). No texto erótico, ao contrário, a comunicação se realiza da forma mais intensa por meio da fusão dos corpos. Partindo da carne, a integração avançará para o compartilhamento do gozo, “um gozo de fusão difusa transfusão”. Nesse verso, a sonoridade reproduz a aliança que se espraia dos amantes para as palavras. As cisões antes presentes – as dificuldades de expressão, as contradições do amor e o isolamento do homem sequioso – estão superadas. No lugar delas, vige a continuidade gozada graças ao sexo. Para retomarmos a bela imagem batailliana (2004, p. 161), na sexualidade, “os outros não param de ameaçar, de propor rasgões no vestido sem costura da descontinuidade individual”. A essa ameaça se entregam os amantes porque 155

Dois poemas de Corpo expressam com especial clareza a experiência do eu como clausura: “O outro” e “Canções de alinhavo”, de que destacamos os seguintes versos: “Será soberbo desatar-me de laços precários/ que em mim e a mim me prendem e turvam/ a condição de coisa natural. Não serei mais eu,/ nenhum fervor ou mágoa me percorrendo. Plenitude/ sideral do inexistente indivíduo/ reconciliado com a matéria primeira.” 156 Citamos trecho de “A um varão que acaba de nascer” (CE). A passagem de que a expressão foi retirada é particularmente elucidativa da prisão ao outro, a que estamos todos condenados, segundo os momentos mais pungentes da poesia do autor: “Este é de resto o mal/ superior a todos:/ a todos como a tudo estamos presos. E/ se tentas arrancar/ o espinho de teu flanco,/ a dor em ti rebate/ a do espinho arrancado./ Nosso amor se mutila/ a cada instante. A cada/ instante agonizamos/ ou agoniza alguém/ sob o carinho nosso.” 157 Retomamos termos encontrados em “O procurador do amor” (BA). 158 Citamos trecho da segunda seção de “Edifício Esplendor” (Jo). 119

são por ela revigorados. Daí a expressão “sessenta e nove” ganhar um novo sentido ao fim do texto: não mais o aspecto visual do algarismo, mas o valor quantitativo e qualitativo oriundo do potente excesso: “é tudo boca boca boca/ sessenta e nove vezes boquilíngua”. Outros textos do volume diversificariam a expressão da abundância e da intensidade vivenciados no erotismo. Neste poema em prosa publicado postumamente, a potência decorrente da diluição do eu não é mais obtida pela entrega sem óbices dos amantes: OH MINHA SENHORA Ó MINHA SENHORA Oh minha senhora ó minha senhora oh não se incomode senhora minha não faça isso que eu lhe peço lhe suplico por Deus nosso redentor minha senhora não dê importância a um simples mortal vagabundo como eu que nem mereço a glória de quanto mais de...não não não minha senhora não me desabotoe a braguilha não precisa também se despir o que é isso é realmente fora das normas e eu não estou absolutamente preparado para semelhante emoção ou comoção sei lá minha senhora nem sei mais o que digo eu disse alguma coisa? sinto-me sem palavras sem fôlego sem saliva para molhar a língua e ensaiar um discurso coerente na linha do desejo sinto-me desamparado do Divino Espírito Santo minha senhora eu eu eu ó minha senh... esses seios são seus ou é uma aparição e esses pelos essas nád... tanta nudez me deixa naufragado me mata me pulveriza louvado bendito seja Deus é o fim do mundo desabando no meu fim eu eu...

O texto ilumina, como poucos, a paradoxal relação do sujeito drummondiano com o sexo expressa em outros textos do volume:159 o gozo por vezes é ao mesmo tempo o que ele deseja e teme. Em “Oh minha senhora ó minha senhora”, porém, o eu talvez encene o temor e a recusa para mais intensamente gozar. Já antes apresentado em “Mimosa boca errante”, o nó entre horror e deleite é desdobrado, enriquecendo a poética do obstáculo que domina o conjunto da obra do autor. O óbice é interposto aqui pela resistência do eu à investida da “senhora”, mulher ativa e quase cruel em sua dádiva. O significante reiterado remete, aliás, à talvez mais importante tradição do obstáculo em nossa cultura: o amor cortês. Tendo marcado profundamente a sensibilidade e a arte do Ocidente, a cortesia toma como modelo a relação senhorial. O homem torna-se vassalo de uma dama tanto mais desejável quanto mais inacessível. Para possuí-la, ele deverá passar por uma série de provações que garantam suas qualidades à senhora. A relação entre homem e mulher

159

Além de “Mimosa boca errante”, citado a seguir, lembramos o medo do sexo recordado em “Não quero ser o último a comer-te”, analisado no quarto capítulo, e o horror do homem em relação à amante desbocada de “Eu sofria quando ela me dizia”. 120

é, pois, especular: ela, valiosa porque inatingível; ele, valoroso tão somente quando resiste a permanecer distante. Tal centralidade da barreira é resumida por André Capelão, autor do mais importante tratado sobre o amor cortês: Acima de tudo, diz-se que o amor aumenta quando os amantes só podem ver-se raramente e à custa de grandes dificuldades; de fato, o desejo e a paixão serão mais fortes quanto maiores forem os obstáculos a impedirem que os enamorados façam um ao outro ternas demonstrações de amor. (2000, p. 214)

Os empecilhos necessários ao crescimento do amor seriam codificados de acordo com estritos critérios. Ao mesmo tempo uma estética e uma ética, a cortesia permitiria o refinamento dos amantes. Segundo essa lógica, o “amor puro”, sem consumação do ato carnal, é preferível ao “amor misto”, em que se realiza o sexo. Não que o coito esteja proibido, mas este, nos termos ainda de Capelão, “acaba depressa, dura pouco” (idem, p. 163), cessando o aperfeiçoamento perene propiciado pelo amor interruptus. Partindo da importância ética da barreira, a lírica trovadoresca não se cansará de cantar a privação, imposta pelo “parceiro desumano”160 ou “dame sans merci”. A ênfase na falta com que tal poesia tem sido lida desde então marcou de forma profunda a concepção do amor no Ocidente. Tal relevo marca a formulação de Spina (1997, p. 49) ao resumir a poesia cortês como “uma exaltação do amor infeliz” em vez de privilegiar a joi que resulta da contemplação do objeto amoroso.161 Penetra do mesmo modo a tese exposta em O amor e o Ocidente por Denis de Rougemont, para quem as leis medievais do amor “são ainda as nossas sob uma forma oculta e difusa” (1988, p. 20). Essas leis tornariam, segundo o ensaísta, a literatura ocidental o registro dilacerado da coita de amor: O amor feliz não tem história. Só existem romances do amor mortal, ou seja, do amor ameaçado e condenado pela própria vida. O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda

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A expressão “parceiro desumano” foi tirada à aula em que Lacan (2008, p. 182) analisa a barreira necessária à posição da Dama no amor cortês e sua influência sobre a “organização sentimental do homem contemporâneo” (idem, p. 180). 161 Baseamo-nos na análise de Octavio Paz em A chama dupla: “Para os provençais, que nisto seguem Ibn Hazm e a erótica árabe, o amor é o fruto de uma sociedade requintada; não é uma paixão trágica, apesar dos sofrimentos e penas dos enamorados, porque o seu fim último é a joi, essa felicidade que resulta da união entre o prazer e a contemplação, o mundo natural e o espiritual.” (1995, p. 71-72) 121

do par amoroso. É menos o amor realizado que a paixão de amor. E paixão significa sofrimento. Eis o fato fundamental. (idem, p. 17)

O sofrimento parece invadir também “Oh minha senhora ó minha senhora”, em que o eu se menospreza ante a mulher soberana. Nesse sentido, a tese de Rougemont, conhecida por Carlos Drummond de Andrade,162 poderia ajudar a compreender o contexto em que se inseririam as súplicas do amante-mártir. Certamente pode fazê-lo desde que para reforçar o contraponto entre a tradição do “amor condenado” e o “prazer dos sentidos” representado no poema. De fato, é provável que o sofrimento e o obstáculo não passem ali de artifícios a favorecer a prazenteira perda do eu. Também os códigos da cortesia são mobilizados para serem logo a seguir solapados. Em primeiro lugar, a dama abandona a intangibilidade que lhe caracterizara no amor cortês. Se ela resta inacessível é apenas para o leitor do poema, o qual conhece da figura feminina somente o que surge no discurso do homem suplicante. Em seus pedidos, o sujeito poético insiste na manutenção da distância que a senhora preservava na lírica trovadoresca. No entanto, apesar da resistência do amante e de sua inferioridade, a mulher promoverá a realização do ato sexual. A corrosão das leis do amor cortês é evidente e o fica ainda mais quando lemos o seguinte trecho do tratado de André Capelão: Se um plebeu procurar fazer-se amar por uma mulher de alta nobreza, precisará possuir um bom número de eminentes virtudes. Pois, para poder ser digno do amor de uma grande dama, o plebeu deverá ter como riqueza inúmeras qualidades, e convém que ele se distinga por múltiplas ações valorosas. (idem, p. 50)

Nada distingue o amante em cena no poema a não ser sua eleição pela mulher altiva. Contra os rogos masculinos, ela dará importância a “um simples mortal vagabundo”. A expressão assume aqui seus dois sentidos: prestar atenção no homem e literalmente dotá-lo de valor. A primeira acepção evidencia o desejo do amante a despeito da aparência de recusa: se a mulher não deve levar a sério o que ele diz, é porque ele talvez o faça para favorecer o gozo, ansiado. A segunda explicita um efeito outro do ato sexual com a dama eminente: por ter sido eleito por ela, o eu mostra-se merecedor da glória de ligar-se ao ser superior. Assim, parece ocorrer uma manifestação 162

O livro, segundo alega Maria Lucia do Pazo Ferreira, teria sido remetido a ela por Carlos Drummond de Andrade. 122

do “gauchismo” com que o sujeito poético foi tantas vezes marcado para que esta seja desconstruída. A princípio essa superação ocorre pela insistência da dama. Logo será reforçada pela perda dos limites subjetivos. O drama se dilui junto com a ansiada rarefação da subjetividade. A primeira marca da diluição do eu está impressa no esgarçamento do discurso devido ao gozo. Tendo sua manifestação mais evidente na escolha do poema em prosa e na quase completa ausência de pontuação, tal desordem será arrematada pelas interrupções a cindir a fala do homem arrebatado: “eu que nem mereço a glória de quanto mais de...” Nessa passagem, as omissões estão a serviço da desconstrução do “gauchismo” e da abordagem indireta do ato sexual. Não conhecemos o que poderia dimensionar a ausência de valor do homem: ele não é indigno de nada porque se vai mostrando merecedor da eleição da senhora. Além disso, do mesmo modo que para o amante, o obstáculo pode ser visto aqui como o estímulo ao gozo do idioma pelo poeta: interpondo barreiras à nomeação franca do sexo, paradoxalmente o escritor delineia uma poética do êxtase.163 A favor dessa hipótese, lembramos, com Bataille, a importância do interdito para que a transgressão tenha lugar: “A experiência interior do erotismo solicita daquele que a prova uma sensibilidade à angústia fundadora da interdição tão grande quanto o desejo que o leva a enfrentá-la.” (op. cit., p. 59). Assim como o erotismo, a poesia, cuja face transgressora não deixou de ser iluminada na modernidade, quiçá precise dos limites para superá-los. Logo o silêncio será substituído pela descrição das investidas femininas: “não não não minha senhora não me desabotoe a braguilha não precisa também se despir”. Em uma nova volta da espiral composta por interdito e transgressão, a representação direta do ato sexual é confrontada às normas burladas: “o que é isso é realmente fora das normas”. As regras parecem ser desrespeitadas pelo poeta, a descrever as ações relacionadas ao ato sexual, e pelos amantes. Para estes, a transgressão reforça o prazer a tal ponto que, imediatamente a seguir, o amante ficará transtornado, perdendo sua capacidade de contrapor-se ao avanço da mulher: “sei lá minha senhora nem sei mais o que digo eu disse alguma coisa?”. O poeta, por sua vez, abandonará temporariamente a descrição do ato sexual para representar a aproximação do arrebatamento amoroso. Nesse passo, através da confissão do eu poético, explicitará a mudança de paradigma 163

Remetemos à primeira seção do capítulo anterior para uma abordagem mais detida do contexto contra o qual o autor estabelece os interditos em seu erotismo: a alegada vulgarização da linguagem literária na segunda metade do século XX. 123

empreendida em O amor natural: “sinto-me sem palavras sem fôlego sem saliva para molhar a língua e ensaiar um discurso coerente na linha do desejo”. Vale agora não mais o desejo, fundado na privação e cuja expressão primeira, no sentido forte do termo, foi dada pela lírica trovadoresca. O poema encena a superação da falta pelo orgasmo. Ao fazê-lo, o texto de Carlos Drummond de Andrade, após se distanciar em diversos sentidos dos códigos do amor cortês, põe em prática uma complexa operação de retorno à poética medieval, referida pelo reiterado significante “senhora”: como aquela poesia, busca a alegria de vencer os obstáculos por meio da palavra. Conforme expôs Agamben em Estâncias, na Idade Média a “palavra delimita um espaço onde se torna possível a apropriação daquilo que, do contrário, não poderia ser nem apropriado, nem gozado” (2007a, p. 212). Tal compreensão do signo poético como “asilo” para o cumprimento do amor se fundava em uma semiologia radicalmente distinta da que se baseia na fratura entre significante e significado por uma barreira resistente à significação. Esta concepção dominou a abordagem ocidental da linguagem e predomina ainda. Por isso, a poesia posterior deslocará seu centro do desejo para o luto e, ainda segundo Agamben, Eros cederá a Thánatos seu impossível objeto de amor, para o recuperar, através de uma estratégia fúnebre e sutil, como objeto perdido, enquanto o poema se torna o lugar de uma ausência que, no entanto, extrai desta ausência a sua específica autoridade (idem, p. 213).

Sem poder restituir o laço amoroso que unia o referente à palavra na poesia medieval, O amor natural encontra diferentes vias para burlar a impossibilidade de que a união do desejo com o seu objeto seja celebrada. Em poemas como “Bundamel bundalis bundacor bundamor”, brevemente lido no capítulo anterior, ou “Sugar e ser sugado pelo amor”, Carlos Drummond de Andrade apropria-se da cisão do signo a favor do gozo do idioma, fraturado e recosturado como um tecido a ser ampliado por sua imaginação. Até então condenado ao fragmento, o poeta deixa de verrumar a unidade perdida. “Oh minha senhora ó minha senhora” trilha outro caminho: põe em prática a joi d’amor por meio da destruição da linguagem. Nesse texto, o objeto perdido não é o amoroso, mas o próprio discurso e o sujeito. Eles não estão ausentes. São convocados ao poema para serem por ele transtornados. A decomposição da linguagem está presente desde a organização do texto. O poema em prosa, além de talvez enfatizar o abandono 124

dos rígidos esquemas estróficos e rimáticos com que o amor fora cantado na lírica trovadoresca, reitera a desestruturação do discurso devido ao êxtase. Esse arruinamento intensifica-se até a destruição da palavra: “eu eu eu ó minha senh...”, “e esses pelos essas nád...”. Completa-se, assim, um percurso que partia do apagamento dos sinais de pontuação e passava pela interrupção da sintaxe. A dissolução da subjetividade afetará o eu poético e sua percepção da senhora: “esses seios são seus ou é uma aparição e esses pelos essas nád...”, interroga ele. Até então marcada pela vontade soberana, a mulher começa a se desfazer ante os olhos dos leitores, guiados sempre pelo amante arrebatado. Agora não vêm mais a primeiro plano as ações femininas, mas o corpo esfacelado pela percepção do homem. A mulher, antes sujeito, tornou-se objeto. Mas um objeto paradoxal porque escolheu sê-lo e, acima de tudo, porque nega os “limites de qualquer objeto” ao promover a “superação do ser pessoal e de todo limite”.164 Além disso, esse corpo à beira do esfacelamento assume um caráter fantasmático: é uma “aparição”. Ao se transfigurar em imagem, a mulher se despersonaliza ainda mais e justo no momento do maior contato com o homem. Desse modo, surge um fator de resistência à comunhão dos amantes: o domínio da dama sai de cena, mas logo quando ela é transformada em outra, aparição ou espectro. Mais uma vez, aparece o obstáculo, agora sob a figura do fantasma interposto entre o homem e o corpo feminino. Mas também esse óbice será revertido em favor do gozo: mesmo sem acesso direto à carne, ao real, o sujeito arrebatado encontrará na fantasmagoria o caminho para o orgasmo. O termo desse percurso será a destruição do próprio sujeito poético. Não sem resistência, conforme evidencia a reiteração do dêitico ao fim do texto: “é o fim do mundo desabando no meu fim eu eu...”. Espécie de canto do cisne, o retorno ao “eu” constitui uma nova inscrição da poética do obstáculo: embora o aniquilamento seja desejado, o egotismo persistente é necessário à superação do sujeito, reconhecido como faltoso desde o princípio do texto. Com a subjetividade, parecem se dissolver as normas internalizadas que levavam à recusa do gozo. No princípio do poema, quando o homem participava ativamente da batalha contra o prazer, as leis por que lutava eram identificadas com as do discurso religioso: “por Deus nosso redentor”, suplicava. A seguir, ao sucumbir à comoção, ele se dizia “desamparado do Divino Espírito Santo”. Dessa forma, corroía o fundamento teológico que poderia interromper a torrente a que 164

Retomamos os termos com que Bataille definiu o paradoxo implicado no objeto erótico. 125

se entregara com a senhora. Ainda mais significativamente, ao fim do texto, quando está próximo do mais intenso prazer sexual, agradece de forma irônica ao Pai contra todo edifício repressor do judaico-cristianismo: “louvado bendito seja Deus”, afirma o sujeito logo antes de soçobrar. Talvez devido à indissociável destruição do eu e da culpa oriunda do ideário cristão, desabe o “fim do mundo”, remissão ao apocalipse bíblico em uma das leituras possíveis. Em outra, junto com o eu, dissolve-se o mundo. A partir do conjunto da obra de Carlos Drummond de Andrade, podemos questionar se essa destruição manifesta uma preocupação política. Significante recorrente na poesia de Drummond, “mundo” remete ao anseio de totalidade ao mesmo tempo em que marca a irrelevância da busca pelo todo, como demonstrou José Miguel Wisnik.165 É também o sinal de um tenso embate entre a poesia, sem lugar na sociedade moderna, e o mundo, que o escritor insiste em incluir em sua obra. Essa inclusão ocorre, ainda segundo Wisnik, por meio de uma “pertinência desviada, que só se dá quando se revira” (2005, p. 27). Por vezes, o complexo jogo de “exclusão includente” chega ao ponto da diluição do mundo. Tal retirada, fruto daquele tenso embate, pode trazer em si um forte componente crítico. Sintomaticamente, a “fuga do real” e a “fuga de si mesmo” se entreteceram com a “paz no cansaço” justo no volume em que o sentimento do mundo se fez mais rico: A rosa do povo. Em um poema como “Vida menor”, a superação da finitude do eu se transfigurou em aspiração a um nirvana liberado das servidões ao corpo, à palavra e ao tempo. A escrita, por sua vez, tornava-se o motor da dissipação, como lemos em “Ontem”, do mesmo volume. Segundo a minuciosa análise de José Guilherme Merquior, no amorfo o poeta encontrava “um amadurecido paraíso, um éden feito de olvido e de despojamento” (op. cit., p. 96). Nos anos seguintes, o conteúdo quimérico dessa utopia seria denunciado. Em “Composição”, de Novos poemas, o barro não deixa “esperança de escultura”. “Dissolução”, de Claro enigma, embora pareça expressar a aceitação de “uma ordem outra de seres/ e coisas não figuradas”, termina de forma pessimista: “Assim a paz,/ destroçada”. O pessimismo não dilui, contudo, o valor contestatório do nirvana buscado na “vida menor”. O que

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Guiamo-nos pela leitura de “Drummond e o mundo”: “A própria palavra mundo, aliás, constitui-se num signo-chave não porque designe o todo, mas justamente porque é o índice que gravita na periferia de uma palavra total ausente: embora nomeie a totalidade, nomeia aqui a sua falta e a sua impossibilidade, vivendo seu retorno insistente dessa gesticulação. ‘Mundo’ é o conjunto total dos conjuntos do mundo e ao mesmo tempo aquilo que está fora desse conjunto, porque o que o define, na época ‘das concepções de mundo’, é o limite da totalização que o esgota mas também a sua abertura inesgotável. Assim, o mundo – cosmos, natureza, história – está simultaneamente dentro e fora do mundo.” (WISNIK, 2005, p. 31-32) 126

importa é seu “valor antitético, seu poder de repúdio” a um universo agressivo, como defendeu Merquior (idem, p. 136). Seja motivo de dor ou manifestação da vida “em sua forma irredutível”,166 o amorfo reverte qualquer possível celebração da ordem do mundo. Parece-nos haver reversão semelhante em O amor natural. Talvez, conforme chamou atenção Murilo Marcondes de Moura, essa poesia se haja feito libertária contra “um tempo de coletivização forçada, de intimidade arruinada” (2012, p. 156). Tal hipótese se tornará mais clara conforme avancemos na leitura dos poemas. Por ora, atemo-nos à confluência entre a dissolução do sujeito e do mundo. Eles foram indissociáveis ao longo da obra do autor: ante um mundo caduco, o eu verrumou sua impotência, em um diagnóstico de alcance geral.167 Na coletânea póstuma, a debilidade do indivíduo contra a história reverte-se em uma potente retirada do mundo, que chega a ser destruído em um poema como “Oh minha senhora ó minha senhora”. Grande obstáculo ao gozo, a “amargura da política” parece finalmente ceder espaço ao amor, como prometera a utopia inscrita em “Contemplação no banco” (CE),168 estendida a livros mais recentes do autor.169 A nova quimera deslocada para o abraço erótico não é, todavia, fruto exclusivo da paz. Ela depende do obstáculo para que se possa erigir. Tendo marcado a obra de Carlos Drummond de Andrade desde seu lançamento até ao menos Lição de coisas, segundo defendeu Davi Arrigucci Jr., o óbice suscitava a “internalização formal da dificuldade” (op. cit., p. 102) como reflexo da consciência conflituosa do poeta em relação à história. No texto erótico, no qual se dissolveram a história e o mundo, os empecilhos estão parcialmente pacificados: eles são apropriados pelo sujeito em favor de seu próprio arrebatamento. Entretanto, um problema resta intransponível: os limites do discurso à simbolização do gozo. Se na modernidade a joi d’amor apenas pode se 166

Expressão retirada de “Vida menor” (RP). A referência aqui é ainda o ensaio de José Miguel Wisnik citado acima. 168 Fazemos referência à primeira estrofe da segunda seção do poema: “Nalgum lugar faz-se esse homem.../ Contra a vontade dos pais ele nasce,/ contra a astúcia da medicina ele cresce,/ e ama, contra a amargura da política.” As relações entre o erotismo e o sentimento do mundo são objeto do capítulo seguinte. 169 É esclarecedora a esse respeito a análise por Betina Bischof da brecha aberta pelo amor na negatividade dominante em As impurezas do branco: “A contrição daquilo que é passível de carregar valor e sentido constrói uma espécie de refúgio contra a negatividade. É preciso notar, no entanto, a natureza desse caminho: o sentido se deixa recompor, unicamente, em terreno resguardado, como se a redenção do mundo (a vida se salva) só fosse possível no âmbito da subjetividade. O que, se de um lado afasta o poema de um contato com uma realidade mais ampla, de outro (e talvez seja essa a questão mais importante para Drummond) livra seus versos de afirmar um sentido positivo num mundo em que essa possibilidade não está mais dada.” (op. cit., p. 144) 127 167

expressar quando a palavra falha, o êxtase está condenado ao silêncio. Todos os obstáculos podem, pois, ser revertidos, apropriados em nome do orgasmo, menos o referente aos signos: o poema imprime o momento imediatamente anterior ao gozo sem atingir a representação do clímax. Desse vazio inexpresso, tira sua “específica autoridade”, para retomarmos o termo usado por Agamben: o registro da inconformidade entre as palavras e a realização do desejo, o resíduo de mundo subsistente em uma linguagem que não pode abraçar o objeto amoroso. Acreditamos que reside aí uma nova poética do obstáculo, na qual os signos já não cristalizam a dificuldade mas constituem eles próprios a barreira última. Segundo essa leitura, o registro da diluição do discurso no poema não é somente a expressão da violência erótica. Ele talvez exponha a tentativa de se transpor, por meio da destruição das palavras, o bloqueio nelas encontrado. Nesse sentido, a interrupção na fala do homem em êxtase e no poema pode iluminar o destino comum do erotismo e da poesia. Nos termos de Bataille: “A poesia leva ao mesmo ponto que cada forma de erotismo, à indistinção, à confusão dos objetos distintos. Ela nos leva à eternidade, ela nos leva à morte, à continuidade: a poesia é a eternidade” (op. cit., p. 40). A espiral composta por interdição e transgressão revela, assim, o seu vigor: a morte veste seu traje festivo sem que para isso seja preciso mascarar o vazio no seio da linguagem e no interior do texto. É interessante que tal fenda não tenha sido iluminada em um poema estruturalmente bastante semelhante a “Oh minha senhora ó minha senhora”. Trata-se de “Declaração de amor”, publicado em A paixão medida. A fissura no seio da linguagem, a partir da qual e contra a qual cresce a força destrutiva do texto erótico, está exposta na poesia sobre o gozo, resistente à simbolização, mas não naquela dirigida ao amor tranquilo da maturidade. Para representar a confluência encontrada em tal sentimento, a metáfora pode ser um instrumento reiterado. No texto publicado postumamente, há mais em jogo. Encena-se um duplo movimento de libertação: o que possibilita o orgasmo apesar da culpa e o que desorganiza a linguagem, na qual o sujeito encontra um insistente oco. Ego e discurso comungam, dessa forma, de um desejado excesso: tanta nudez os deixa naufragados.

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2.3 UM RELÓGIO DE NÃO MARCAR HORAS Fazendo soçobrar o eu gauche, O amor natural obtém certamente uma das mais fortes vitórias contra as cisões que dotaram o conjunto da obra drummondiana de forte tom trágico. Essa conquista é inseparável do triunfo sobre o tempo. Reiteradamente registrados, ao menos desde os anos 1940, os efeitos da passagem do tempo sobre o corpo – dentadura, rugas, calva – levaram o sujeito drummondiano a reconhecer em si um outro que o consome: é o “inimigo maduro”, que se vai formando no espelho;170 é o velho há muito suspeitado;171 é a alteridade definitiva a ser encarada com o decesso, “outra noite” que “vem descendo/ com seu bico de rapina.”172 A sensação de aniquilamento, fruída durante o gozo, pode ser considerada o primeiro êxito contra o destino a que, seres finitos, estamos submetidos. Vimos tal paradoxal nó entre vida e morte em “Mimosa boca errante”. Nesse poema, explicita-se a potência decorrente da prostração: na pequena morte do orgasmo encontra-se a vida mais intensa. A existência é a tal ponto transfigurada e revalorada pelo sexo que ele possibilita ao amante conhecer a eternidade. Não aquela aterrorizante dos “espaços infinitos”,173 senão a de “tudo aquilo que vive uma fração de segundo/ mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata”, segundo os termos de “Eterno” (FA). O arrebatamento sexual permite, assim, antever a vida “propriamente dita”, a vida “sem nome/ sem limite/ sem rumo” conquistada com a morte.174 A vitalidade decorrente do “suicídio glorioso” realizado durante o ato erótico ganha diferentes figuras neste poema em prosa de O amor natural: VOCÊ MEU MUNDO MEU RELÓGIO DE NÃO MARCAR HORAS Você meu mundo meu relógio de não marcar horas; de esquecê-las. Você meu andar meu ar meu comer meu descomer. Minha paz de espadas acesas. Meu sono festival meu acordar entre girândolas. Meu banho quente morno frio quente pelando. Minha pele total. Minhas unhas afiadas aceradas aciduladas. Meu sabor de veneno. Minhas cartas marcadas que se desmarcam e voam. Meu suplício. Minha mansa onça pintada pulando. Minha saliva minha língua 170

Citamos expressão encontrada em “O retrato malsim”, de Lição de coisas. A referência aqui é a conhecida estrofe de “Versos à boca da noite” (RP): “Há muito suspeitei o velho em mim./ Ainda criança, já me atormentava./ Hoje estou só. Nenhum menino salta/ de minha vida, para restaurá-la.” 172 Reproduzimos trechos de “Habilitação para a noite” (FA). 173 Trata-se de trecho de Pascal referido em “Eterno” (FA): “Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie.” 174 Citamos trechos de “Vida depois da vida” (IB), em que é apresentada uma concepção eufórica da morte. 129 171

passeadeira possessiva meu esfregar de barriga em barriga. Meu perder-me entre pelos algas águas ardências. Meu pênis submerso. Túnel cova cova cova cada vez mais funda estreita mais mais. Meus gemidos gritos uivos guais guinchos miados ofegos ah oh ai ui nhem ahah minha evaporação meu suicídio gozoso glorioso.

A transformação obtida com o sexo, embora revigorante, expõe a dependência do sujeito. Ele conhecerá o gozo desde que se renda à força centrífuga da amante. Em “Você meu mundo meu relógio de não marcar horas”, essa sujeição ganha seu rosto sorridente. O descentramento feliz a que se submete o homem é reiteradamente inscrito por meio da construção “Você meu”, em que a elipse deixa subentendida a identidade dos termos: você é, foi, será meu ou minha..., repete o texto a costurar homem e mulher. A primeira imagem da libertação paradoxalmente obtida graças ao outro incide sobre o mundo, reduzido à amante. Como vimos em relação a “Oh minha senhora ó minha senhora”, a elisão do mundo, quando concebido como o espaço em que se travam as lutas históricas, pode assumir um valor crítico. Em oposição talvez a um universo em que prevalece a “falta de amor”,175 o sujeito se retira para o quarto. Precisaríamos avançar mais para compreender o caráter contestatório desse gesto. Dedicaremos o próximo capítulo a fazê-lo. Por ora, notamos apenas a radical mudança na valoração do sexo: outrora o resultado do “corpo entrançado em outro” era a “tristeza de ser exaurido” e o “peito deserto”.176 Predominava a acusação contra o “amor sem uso”,177 restrito à esfera do eu.178 Agora a culpa parece arrefecer. O “peito deserto” deu lugar à “paz de espadas acesas” propiciada pelo mundo encontrado na amante. Esse novo universo é destituído das marcas sociais do tempo: a mulher é um “relógio de não marcar horas; de esquecê-las”. A imagem parece sintetizar o duplo sobrepujamento atingido por meio da pulverização do tempo. De um lado, ele cala a aproximação do fim individual – “O relógio no pulso é nosso confidente”, afirmara melancolicamente o sujeito poético de “Eterno” (FA). De outro, reitera a dissolução da

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Leia-se “Uma hora e mais outra” (RP), em que a expressão é reiterada: “[...]/ não a do cinema/ hora vagabunda/ onde se compensa,/ rosa em tecnicólor,/ a falta de amor,/ a falta de amor,/ A FALTA DE AMOR,/ [...]”. 176 Citamos ainda trechos de “Uma hora e mais outra”. 177 Expressão encontrada em “Domicílio” (FA). 178 Novamente Mirella Vieira Lima sintetiza com perfeição o problema: “À culpa do desejo torto acrescenta-se a negatividade de um amor inútil, que se perde, ‘esborracha-se’. Uma das maiores tensões dos poemas de amor de Drummond vem da sensação do ‘amor sem uso’, condenado a viver na esfera do próprio eu, sem encontrar expressão. Se, pela perspectiva moralista, o desejo sexual é torto, numa segunda perspectiva ele é torto porque se dirige à construção de uma fantasia onírica, desviando-se do ato.” (op. cit., p. 62) 130

história graças ao sexo. Esse resultado fica mais claro quando lembramos, com Norbert Elias, o caráter social dos marcos temporais: É nessa capacidade de aprender com experiências transmitidas de uma geração para outra que repousam o aprimoramento e a ampliação progressivos dos meios humanos de orientação, no correr dos séculos. É essa função de meio de orientação que hoje concebemos e experimentamos como sendo o ‘tempo’. (ELIAS, 1998, p. 33)

Seria possível objetar que a formulação do sociólogo ignora outras experiências da temporalidade que não as submetidas ao tempo mensurado e linear, dirigido para as premências das obrigações cotidianas. De fato, como insistem os poemas eróticos drummondianos, a percepção subjetiva do tempo muitas vezes supera a abstração impressa nas divisões do relógio. No entanto, na sociedade contemporânea, a duração vem perdendo lugar para os imperativos da pressa, da satisfação imediata, rendida às seduções do mercado.179 Nesse sentido, o relógio – cada vez mais preciso, ritmando em décimos de segundo a adequação dos indivíduos aos rentáveis imperativos de gozo – tornou-se “o que hoje concebemos e experimentamos como sendo o tempo”. A inutilidade e o absurdo do “relógio de não marcar horas” podem ser compreendidos, em tal contexto, como uma nova manifestação da recusa à sociedade de consumo. Essa hipótese pode ser ratificada quando retomamos um poema brevemente lido no capítulo anterior: “Eu sofria quando ela me dizia”. Nesse texto, inscrevem-se algumas marcas da história. Na primeira parte, apresenta-se a repressão reinante desde o século XIX até pelo menos a segunda metade do século XX. O vitorianismo invadia, nessa época, a linguagem sobre o sexo, marcada por duras restrições, e transtornava o amante, aterrorizado pela transgressão da mulher a pronunciar um “asqueroso monossílabo”, não nomeado pelos versos. A segunda parte do poema expõe as transformações decorrentes da passagem do tempo cronológico: trinta anos depois, 179

Maria Rita Kehl, em O tempo e o cão, expôs com impressionante clareza o empobrecimento da percepção contemporânea do tempo: “O tempo, como bem escreve François Julien, é ‘a última figura da transcendência no seio do pensamento ocidental’. Essa última possibilidade de pensar e também de experimentar a transcendência, por meio da multiplicidade dos fenômenos temporais, vem se reduzindo drasticamente. O homem contemporâneo vive tão completamente imerso na temporalidade urgente dos relógios de máxima precisão, no tempo contado em décimos de segundo, que já não é possivel conceber outras formas de estar no mundo que não sejam as da velocidade e da pressa.” (2009, p. 123) Ela conclui: “É evidente que algo do valor da vida se perde quando o tempo, matéria do vivido, passa a ser tributário dos instrumentos científicos criados para sua medição, hoje a serviço de um Mestre que reina sobre quase todo o planeta na forma dos caprichos, sempre misteriosos aos olhos do homem comum, do capital financeiro globalizado.” (idem, p. 124) 131

sendo vitoriosa a revolução dos costumes, “o corpo soltou-se”. Está exposto em “anúncios, ruas, ônibus, tevês”. O sujeito, por sua vez, parece apaziguado. Mas se trata de efeito não confirmado quando lemos os versos com mais atenção. Enquanto subsiste a história, a disforia ainda invade o sexo: os amantes são consumidores. Logo, o corpo continua a ser, durante parte do ato íntimo, o que se tornara nas ruas: mercadoria, exposta em anúncios ou pronta para o gozo nos quartos. Tal inscrição dos problemas públicos contrasta com o resultado do avanço do sexo: graças à sua intensidade avassaladora, supera-se a intromissão da história no abraço erótico. Como em um rito sagrado, dedicado à “ereta divindade” em “cavernames de desde o começo das eras”, a cronologia dará lugar à “face intemporal de Eros”. Também aqui os relógios não marcam mais as horas. Apesar disso, o poema se encerra com a retomada das agruras sociais: se no tempo mítico do orgasmo “cinza e vergonha ainda não haviam corroído a inocência de viver”, no momento histórico a que retornarão após o ápice, os amantes enfrentarão o desgaste promovido pelo retraimento individual ou pelo cinzento reinado da mercadoria. Em “Você meu mundo meu relógio de não marcar horas”, a sombria ordem pública está excluída. O instrumento de aferição do tempo transcriado pelo erotismo ritma uma experiência que se quer distante da velocidade generalizada e dos ditames da vida prática. Para esse gênero de acontecimento não há medidas objetivas. Por isso, a amante não marca horas. Tampouco o faz o texto, em que até mesmo a distinção entre o passado, o presente e o futuro se embaça graças à escassez de verbos flexionados. O momento flagrado pelo poema é radicalmente intemporal. Acronicamente louvada, a mulher ganha diferentes metáforas a ressaltar seu poder de diluição. Entre elas, tomam vulto as imagens que desarticulam o corpo: “minha pele total”, “minhas unhas afiadas aceradas aciduladas”, “minha saliva minha língua passeadeira”, “meu pênis submerso”. Retorna-se ao corpo fragmentado, predominante nos primeiros livros do autor, a que se acrescentam partes da anatomia até então obscenas. Tal mudança advém de que agora o despedaçamento decorra da violência do gozo e não mais da pressão do desejo insatisfeito.180 Apesar dessa diferença, tal qual nos volumes dos anos 1930 o apagamento dos contornos orgânicos 180

Remetemos ao primeiro capítulo para a análise da mudança de paradigma empreendida por O amor natural sobre a representação do sexo. Sobretudo nos primeiros livros do autor, a fragmentação do corpo compunha as cisões subjetivas. Daí a metonímia se tornar predominante. No livro póstumo, o despedaçamento da anatomia revela a libertação dos sentidos graças à diluição da subjetividade durante o sexo. Por isso, a metáfora expõe a conciliação dos corpos, inteiros em cada uma de suas partes. 132

parece se relacionar à ausência do tempo, o qual dimensionara, a partir dos anos 1940, a integridade anatômica. Affonso Rommano de Sant’Anna resume com clareza tal interação da imagem corporal com a consciência do tempo: Nos primeiros livros o corpo aparece desarticulado. O poeta se refere ora aos olhos ou às pernas. Não há o conjunto. À medida que ele mergulha em seu tempo, seu corpo-consciência se articula e aparece descrito inteiramente. Descobre o poeta, inclusive, que seu corpo está no tempo e sujeito à destruição. Começa a anotar as rugas, calvície e um certo frio na pele. Mas essa anotação não é puramente física, senão 181 metafísica.

Por meio da “anotação metafísica” – descontada a imprecisão terminológica –, Carlos Drummond de Andrade registrou

as transformações subjetivas que

acompanharam as mudanças físicas. Assim, graças ao registro temporal, percepção do corpo e conhecimento de si ganharam uma forma e uma história. Em “Você meu mundo meu relógio de não marcar horas”, ao revés, a exclusão do tempo embasa a desconstrução da unidade anatômica, efeito na carne da gradual dissolução do eu. O ápice dessa marcha será atingido com a morte. Imagem última da diluição do tempo e do esfacelamento da integridade pessoal, ela ficará impressa no corpo – tornado cova – e na subjetividade – abalada graças ao gozo. Esse abalo se tornará ainda mais radical pela participação da amante no símbolo máximo do que não se pode usurpar: a morte. Ela se intrometerá até mesmo no ato último da vontade do parceiro, o metafórico suicídio que arremata o texto. Qualificado como “gozoso glorioso”, o decesso autoimposto foi alegremente sequestrado pela mulher. Outro poema do volume resumiria de forma menos eufórica o assujeitamento do eu, encontro possível com o outro: NO MÁRMORE DE TUA BUNDA No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio. Agora que nos separamos, minha morte já não me pertence. Tu a levaste contigo.

Como no poema em prosa, a amante exerce uma força centrífuga a descentrar o homem. Aqui, porém, o curso de diluição extática não se completa: o tempo segue seu 181

SANT’ANNA, Affonso Romano. Poesia como conhecimento do mundo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 out. 1982. Caderno B, p. 2. 133

fluxo, permitindo que a separação se suceda à entrega do sujeito à mulher; ademais, o eu não se dilui, mas está desfalcado. Talvez por isso nesses versos não seja tão evidente o desejo de sujeição, predominante em “Você meu mundo meu relógio de não marcar horas”. A notação impassível da perda deixa em aberto se o resultado da incorporação à amante é o fascínio ou o lamento. No texto em prosa, não há dúvidas: o paradoxal suicídio cometido pelo outro é ansiado, já que, além de propiciar a vitória sobre a morte, nega a descontinuidade entre os seres. Tal diluição passa pelo arruinamento do discurso: “Meus gemidos gritos uivos guais guinchos miados ofegos ah oh ai ui nhem ahah”. Sem isso, dificilmente o amante atingiria a sensação de eternidade tantas vezes louvada nos poemas eróticos drummondianos. Com efeito, mesmo com a elisão das horas, ainda subsistiria um resíduo temporal, um outro tempo, linguístico, ligado ao momento da enunciação. Seu centro é, segundo Benveniste, um presente “reinventado a cada vez que um homem fala” (2006, p. 75). As categorias geradas a partir desse eixo – presente, passado, futuro – são também recriadas continuamente ao longo do discurso em relação a que ganham sentido. “Antes”, “agora”, “depois” podem referir, portanto, qualquer divisão da cronologia e, também por isso, não se submetem a qualquer uma delas, como defende o linguista. Essas diferenças temporais, cujo marco é deslocado incessantemente, não se deixam imobilizar. Dessa sucessão sem amarras parte “Você meu mundo meu relógio de não marcar horas”. Mas o texto vai além: ao encenar uma enunciação em ruínas, desfaz qualquer diferença temporal possível. Sem o presente instituído pelo ato de fala, diluem-se até mesmo as pouco precisas categorias do tempo linguístico. Resta a eternidade vivenciada durante o gozo. Com o elo entre a destruição da subjetividade, da linguagem e do tempo, parecemos encontrar os mesmos destroços figurados no outro poema em prosa do volume: “Oh minha senhora ó minha senhora”. Há uma diferença substancial, todavia. Embora a ruína da linguagem esteja também impressa na forma em si heteróclita e na omissão dos verbos ao longo do texto, em “Você meu mundo meu relógio de não marcar horas” a devastação do idioma é antes uma metáfora para o poder da mulher do que um obstáculo inscrito no discurso do poeta-amante. Não à toa novo fio discursivo se tecerá após a regressão da fala entrar em cena. Portanto, também a poesia sobre o gozo, tais quais os versos sobre o amor maduro e tranquilo, pode enfatizar a confluência sem óbices. 134

Outro poema do volume reafirmaria tal superação das cisões, especialmente as infligidas pelo tempo: NO PEQUENO MUSEU SENTIMENTAL No pequeno museu sentimental os fios de cabelo religados por laços mínimos de fita são tudo que dos montes hoje resta, visitados por mim, montes de Vênus. Apalpo, acaricio a flora negra, e negra continua, nesse branco total do tempo extinto em que eu, pastor felante, apascentava caracóis perfumados, anéis negros, cobrinhas passionais, junto do espelho que com elas rimava, num clarão. Os movimentos vivos no pretérito enroscam-se nos fios que me falam de perdidos arquejos renascentes em beijos que da boca deslizavam para o abismo de flores e resinas. Vou beijando a memória desses beijos.

Os versos imprimem a tensão entre a permanência do passado graças à intensidade das sensações e as perdas resultantes da passagem do tempo. Esse conflito permeia diversos textos do volume, assumindo ares ora serenos ora sombrios. “No pequeno museu sentimental” é particularmente relevante para a compreensão do problema por esclarecer a abordagem prevalecente em O amor natural: a que torna a harmonia e o encontro vitoriosos sobre as privações. A primeira estrofe privilegia o registro da ruína: quase nada resta do corpo feminino visitado pelo sujeito poético. Essa deterioração é enfatizada pela singularidade do terceiro verso, único octossilábico na estância composta de resto por decassílabos heroicos. Expressando o caráter mínimo do laço a unir os poucos pelos pubianos deixados pela mulher, o verso sintetiza a escassez do presente contra a magnitude dos montes visitados outrora. A notação da perda se enfraquecerá a partir da segunda estância, contudo. Os verbos no presente constituem a primeira marca da superação dos desgastes impostos pela distância temporal: a “flora”, que vem a substituir os esparsos “fios de cabelo” da 135

estrofe anterior, continua negra contra o branco vazio deixado pelo tempo extinto. Acariciando essa inesperada vegetação, o homem inicia o processo de recordar o período em que seu corpo “rimava” com o das amantes. Caracterizava-se, então, como um pastor a apascentar o rebanho composto pelos vivos anéis encontrados nos montes de Vênus. O vocabulário próprio à tradição pastoril ajuda a compor o idílio vivido graças ao sexo. Comumente dedicada ao louvor do campo contra as agruras da vida urbana, a poesia bucólica valorizou o locus amoenus. No poema de O amor natural, a evasão no espaço prescinde dos grandes deslocamentos geográficos em direção a um imaginário pasto prazenteiro: o corpo feminino assume esse lugar. Tal caracterização do sexo como consumação da vida afável parece corroborar a elisão da violência no “museu sentimental”. Salvo engano, é este o único poema em que os museus surgem dissociados da catástrofe na obra de Carlos Drummond de Andrade. Na poesia do autor, essas instituições contrariam sua alegada vocação, de preservar a memória: infligem o olvido, sobretudo o que diz respeito à violência histórica. Contra esse apagamento, a escrita de Drummond estabelece um trabalho de “memória do social”, em que importa “compreender a urgência do perigo da perda dos traços ainda atuais, vivos, que comprovam um passado que não estaria verdadeiramente morto”, para nos apropriarmos das palavras de Henry-Pierre Jeudy (1990, p. 2). O brutal passado redivivo surge, por exemplo, em “Museu da Inconfidência”, de Claro enigma. Nesse texto, a “macia flor do olvido” não logra dobrar o “tempo ingovernável”: apesar do esquecimento, restam o pranto e o remorso que permeiam toda a história. “Agritortura”, de Boitempo, reverte a apaziguadora transformação em “graças de museu” dos instrumentos de suplício e de aprisionamento usados contra os escravos. “O museu vivo”, de As impurezas do branco, torna o mundo um “Museu de Erros”, símbolo da espetacularização e desumanização universalizadas. A exposição devoradora revela, assim, sua agressividade: em vez de ser lida pelos homens, ela lê os “visitantes apatetados”, que não podem encontrar ali os resquícios de uma experiência perdida – “arte de amar sem computador” – ou resguardar sua ameaçada humanidade do gigantesco mostruário monstruoso. No poema de O amor natural, diferentemente, o “museu moderno por excelência” foi substituído pela coleção oposta a qualquer

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“catálogo impresso em grito”.182 A exposição é pessoal e guarda tão só as marcas do alegre encontro. Na terceira estrofe, o museu imune aos “remorsos” públicos ganhará um novo poder: ele não apenas remete ao passado por meio dos objetos preservados como permite a atualização da experiência pretérita. Os antigos movimentos dos amantes estão vivos novamente. Os “perdidos arquejos” paradoxalmente renascem. A memória está enfim apaziguada. Não é mais atravessada pelos “cacos”, “buracos”, “hiatos”, “vácuos”, “elipses”, “psius”,183 que prevaleciam na obra publicada em vida. Tal qual em “Intimação”, um dos poemas de abertura da trilogia Boitempo, o sujeito poético, “com volúpia”, torna seu passado presente. Mais: torna-o um corpo a ser também eroticamente manuseado, beijado. Por meio da renovação do passado graças à memória dos sentidos, O amor natural encontra uma via para vencer o tempo sem a diluição do eu. Outro poema do volume, talvez o mais impressionante dele, também terá no sujeito altivo um forte combatente contra a passagem dos dias: PARA O SEXO A EXPIRAR Para o sexo a expirar eu me volto, expirante. Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo. Amor, amor, amor – o braseiro radiante que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo. Pobre carne senil, vibrando insatisfeita, a minha se rebela ante a morte anunciada. Quero sempre invadir essa vereda estreita onde o gozo maior me propicia a amada. Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo quem sabe? enregela-se o nervo, esvai-se-me o prazer antes que, deliciosa, a exploração acabe. Pois que o espasmo coroe o instante do meu termo, e assim possa eu partir, em plenitude o ser, de sêmen aljofrando o irreparável ermo.

Último texto do livro, “Para o sexo a expirar” encerra a luta da potência contra o tempo. “Expirante”, o eu às voltas com o prazer parece por fim registrar sua derrota. Essa impressão inicial levou Ivan Marques a enfatizar o caráter inexpugnável da morte, 182 183

Expressões retiradas de “O museu vivo” (IB). Citamos trechos de “(In) memória” (Bo). 137

o que transformaria “essa poesia erótica num autêntico necrológio, tal como fizeram as desilusões da década de 1930” (op. cit., não paginado). Parece-nos, ao contrário, que as desilusões acumuladas ao longo da vida estimularam o investimento no erotismo como a atividade em que seria possível ao eu sobrepujar as cisões imbatíveis no cotidiano. O derradeiro texto de O amor natural, cremos, ratifica essa hipótese. Os dois primeiros versos estabelecem os termos do combate: contra o fim indesejado, o sujeito a expirar enreda-se na “raiz de sua vida”, o sexo. A contenda será temporariamente interrompida nos versos seguintes, os quais introduzem uma dádiva – a “explicação do mundo” – logo substituída nas demais estrofes pelo prosseguimento dos esforços empenhados na disputa com a morte. Graças a sua aparição aparentemente deslocada, o oferto saber acerca do universo parece pouco acrescentar à compreensão do embate com o tempo. Entretanto, nesse inesperado dom reside o primeiro índice da jubilosa abordagem da aproximação do perecimento pelo poema. Nele o saber do todo advirá do que, como um braseiro, irrompe ardente mas é consumido pelo próprio incêndio. Logo, também esse conhecimento nasce expirante. Fugaz embora, terá ele força suficiente para compor – mesmo que por um átimo – a tão almejada captação da totalidade. O sexo parece promover, assim, a “total explicação da vida” recusada pelo sujeito melancólico nos anos 1950. Em “A máquina do mundo”, de Claro enigma, a verdade perfeita é oferecida, tal qual a explicação universal dada pelo orgasmo no texto publicado com quarenta anos de intervalo. Contudo, ao contrário do sujeito nos versos eróticos, o eu pervagante dos tercetos não tem o vigor necessário à luta. Ele está exausto devido à contínua inspeção do deserto em que vivem os homens e pela infrutífera perquirição da realidade transcendente. Quando ele é interpelado pela visão sublime, a esperança e o anseio de superar as trevas já se haviam abrandado. Por isso, ele, “ser desenganado”, desdenha “colher a coisa oferta”. Segundo Antonio Cicero, o desengano é um importante índice do cunho moderno da recusa encenada em “A máquina do mundo”. A partir de Max Weber, o filósofo lembra que o desencantamento é uma característica da modernidade. Explica também que aceitar a imagem da “máquina do mundo” implicaria o retorno a uma concepção fechada do universo e o consequente sacrifício da abertura epistemológica necessária à crítica. Tal retrocesso é inconcebível para o “claustrofóbico” homem

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moderno.184 Cicero chega, dessa forma, a uma conclusão bastante similar àquela de Merquior em um ensaio publicado em 1965 a respeito do poema célebre: “O caminhante recusa o dom gracioso da máquina do mundo. Desdenha o conhecimento sobre-humano, acima das deficiências insanáveis da medida humana: o conhecimento místico, a graça, o presente de poderes mais altos que o homem. Ao recusá-lo, investese da condição plenamente antropocêntrica, estritamente profana, do homem moderno [...]” (MERQUIOR, 1965, p. 85). Em “Para o sexo a expirar”, a graça torna-se profana. Com efeito, o dom acolhido não advém de um poder sobre-humano ou é o prêmio de uma prática mística. Decorre de uma experiência humana e tanto mais antropocêntrica quanto envolta em um dos legados do desencantamento do mundo: a radical finitude, sem promessas de vida após a morte. Portanto, a dádiva do sexo assume um caráter também moderno. Esse teor se expande pela efemeridade do orgasmo: ainda que ele propicie um conhecimento do todo, é fugaz. O fechamento do saber irrompe ameaçado pela passagem do tempo. Instável, a “explicação do mundo” alcançada no clímax reitera uma especificidade do erotismo drummondiano, segundo a hipótese desenvolvida no capítulo anterior: o investimento jubiloso na imanência do corpo uma vez que a idealidade se mostrou incontornavelmente vazia. A esse respeito, “A máquina do mundo” e “Para o sexo a expirar” são esclarecedores, visto que expõem os extremos da inserção da poesia do autor na tradição moderna. O primeiro põe em cena a rejeição a uma transcendência luminosa que chega tarde, sem lugar na sombria sociedade contemporânea. Daí instituir uma poética da melancolia. Incorporando a perda de um objeto jamais possuído, a poesia se torna melancólica, de acordo com a definição freudiana desse estado.185 O objeto ausente torna-se, então, condição do conhecimento – “avaliando o que perdera”, lê-se no poema – e fundamento de uma cosmovisão que pensa o mundo tão somente porque parece dele se afastar, como bem analisaram Betina

184

Retomo reflexões desenvolvidas por Antonio Cicero em “Drummond e a modernidade”, de Finalidades sem fim. Na página 90 desse texto, afirma o ensaísta: “Claustrofóbico, o homem moderno não consegue consentir em regressar a um mundo essencialmente fechado, nem mesmo quando o fechamento se apresenta como a condição de alguma ‘abertura’, a fechadura a condição de alguma ‘chave’, ou o segredo a condição de alguma ‘revelação’”. 185 Em “Luto e melancolia” (2010, p. 175), assim é definida a relação objetal nesse afeto: “Isso nos inclinaria a relacionar a melancolia, de algum modo, a uma perda de objeto subtraída da consciência; diferentemente do luto, em que nada é inconsciente na perda.” 139

Bischof e Vagner Camilo em suas teses.186 No texto erótico, diferentemente, o homem se permite o contato intenso com o mundo constituído pelo gozo. À exposição das qualidades desse universo, o poema prefere a encenação da luta contra a impotência. Todavia, a partir de textos como “Você meu mundo meu relógio de não marcar horas” e “Oh minha senhora ó minha senhora”, podemos supor que a unidade vislumbrada no orgasmo está distante tanto da história humana quanto de qualquer espaço transcendente. Exclui-se dos versos um mundo refratário ao prazer – e à poesia erótica, conforme analisamos no primeiro ensaio desta tese – para se incluir neles um “outro mundo”,187 o do corpo, em tudo diverso da máquina rejeitada nos anos 1950: se esta era imaterial, a “explicação” agora aceita parte da carne; contra o caráter intemporal da “ciência sublime e formidável” oferecida ao homem melancólico, o saber advindo do sexo participa do destino humano, o perecimento. O incontornável “ermo” aí antevisto, em vez de suscitar a “dramatização da crise”, estimula um prazeroso combate contra a morte. Dessa forma, reverte-se a melancolia e afirma-se o gozo no momento mesmo em que a perda máxima se insinua: o fim da potência, a falência da vida. Semelhante reversão da ruína fora já insinuada em “Amor e seu tempo”, de As impurezas do branco. Como no poema erótico, trata-se do amor carnal, que permite encontrar, em cada poro, o “céu do corpo”. Essa delimitação parece confrontar a proposição exposta no primeiro verso: “Amor é privilégio de maduros”. Dependente do vigor físico, o sexo é, segundo o senso comum, ameaçado pelos efeitos da passagem dos anos. Não no soneto de Carlos Drummond de Andrade. Para o escritor idoso, o erotismo faz valer um “minuto de ouro”. Dessa forma, vence o tempo e as dores nele vivenciadas. Tal prêmio vem tarde porque surge no limite, em contraposição à sabedoria adquirida ao longo da vida. Está eliminada a estabilidade que poderia advir do consolidado “saber de experiências feito”. Tampouco o aprendizado do amor se constrói por meio da avaliação, cerne da ciência melancólica de “A máquina do mundo”. O orgasmo é um “relâmpago cifrado” que se dilui quando o amante o interroga. As luzes assim apreendidas ultrapassam o sujeito cognoscente. Constituem talvez uma gnose dos

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Referimo-nos aos livros já citados desses autores. Em seu trabalho, Vagner Camilo vê na melancolia “a tônica da cosmovisão em Claro enigma”. Op. cit., p. 161. Essa análise pode ser estendida a grande parte da obra poética de Drummond, conforme tese explicitada na página 35 do livro de Bischof: “A obra de Drummond não se compraz nunca no deleite da luz, na contemplação sem arestas e cortes de um mundo oferto e acessível (e o que se evita, com isso, é o falseamento da apreensão do mundo num tom fácil, sem obstáculos e opacidade)”. 187 A expressão está em “O que se passa na cama”. 140

limites do eu, que não pode domar a força do “ganho não previsto”. Dessa limitação advém, não obstante, um ilimitado poder: ao abalar as categorias espaço-temporais a partir das quais o sujeito se relaciona com o mundo, o amor reverte em vibração o “crepúsculo” pressentido pelos maduros. Por causa dessa capacidade de o erotismo ofuscar a “pena e o preço do terrestre”188 por uma prazerosa cintilação, o instrumento da luta contra o fim individual, o sexo, será também a causa por que a contenda se fará tão aguerrida em “Para o sexo a expirar”. A tal combate o poema retorna na segunda estrofe, após a breve apresentação do saber com que se gratificam os parceiros sexuais. O eu envelhecido não aceita abdicar o gozo propiciado pela amante, ganho máximo por prazeroso e por permitir o tão ansiado conhecimento da totalidade. As armas para ele merecer esse prêmio, no entanto, desgastaram-se: a carne está “pobre” e “senil”; o “nervo enregela-se”, avança a estância seguinte na exposição do corpo degradado. Além disso, contra o “sempre” de seu desejo, o homem lembra o momento incerto em que a impotência e a morte certamente interromperão, inacabada, a deliciosa exploração do corpo feminino. O herói parece fadado a fracassar. O destino inexorável é, de fato, o estopim da disputa encenada no soneto. Tema recorrente na obra de Carlos Drummond de Andrade, as cadeias que arrastam o homem para a morte tiveram diversas vezes seu caráter imbatível enfatizado. Diante delas, o eu se fez raivoso porque impotente, conforme lemos no belíssimo “A corrente”, de A paixão medida. Tornou-se também e mais frequentemente pessimista, como sintetizariam com perfeição “A ingaia ciência”, de Claro enigma, e “A distribuição do tempo”, de Fazendeiro do ar. Outras vezes, ele expressaria a aceitação tranquila da “graça da vida, em sua fuga”, segundo os termos de “Ciência” (VPL). “Para o sexo a expirar” acrescenta a essa constelação a postura altiva de um sujeito que enfrenta, apesar de fraco, o fado a que estamos todos submetidos. O embate do homem com forças que o transcendem põe em cena os polos a partir dos quais se erige um conflito trágico. Segundo Marlene de Castro Correia, é este o fundamento da poesia de Carlos Drummond de Andrade, marcada pela tensão entre a “exorbitação individualista, que afirma encontrar-se no próprio eu a medida do homem” e “a concepção antipersonalista, que descobre a medida do homem na sua relação com uma totalidade que o transcende” (op. cit., p. 83). O tempo é certamente uma das forças 188

Expressão retirada de “Amor e seu tempo” (IB). 141

mais proeminentes a desvelar ao sujeito poético drummondiano os seus limites. Nos momentos de maior tragicidade, ele não pode retornar ao passado, pois d’“A casa do tempo perdido” (Fa) ninguém atende a seu chamado doloroso. Tampouco lhe adianta recorrer aos falaciosos poderes sobrenaturais. Em “A carne envilecida” (Fa), o eu tenta burlar o perecimento ao recorrer ao Diabo, pedindo-lhe consolo. Aparentemente submisso, ele não deixa de incorrer no erro do presunçoso herói trágico:189 acredita poder subtrair-se à lei que o transcende, o jugo ao tempo. Com a colaboração satânica, consegue voltar a usufruir os prazeres interditos ao corpo alquebrado. Mas a vil medida humana se recompõe: a carne se envilece graças aos dons infernais, seguindo “sem defesa” contra a passagem do tempo. Por isso, o sujeito, antes iludido, vê-se obrigado a reconhecer sua sujeição à sina mortífera anunciada pelo aroma de “flores calcinadas de horror”. Em “Para o sexo a expirar”, o eu desde o princípio reconhece e expõe suas limitações. Ainda assim, talvez mais claramente do que em outros poemas do autor, incide na hybris trágica por recusar-se a se submeter aos limites impostos pelas forças que constrangem o sujeito. Desse modo, transforma a polaridade entre o homem e a ordem existencial, indispensável à tragédia, em um aberto desafio do indivíduo à lei de destruição no tempo. O conflito não chegará a ter seu termo apresentado pelo poema, contudo. Não sabemos se o esvair das forças será ou não vitorioso. Conforme estabeleceram as premissas do soneto, o sexo constitui uma força vital para que o homem pode se voltar até no momento de seu fenecer. Embora fraca, a carne ainda “vibra insatisfeita”. Logo, mesmo que o decesso seja inevitável, o sujeito pode vencê-lo ao partir no momento potente do gozo. Nesse caso, como expressou “Morto vivendo” (Bo), faleceria tão completo que seria possível questionar o fim: “Aquele morreu?” Da mesma forma, no texto publicado postumamente, o homem, em “plenitude”, espera cobrir de sêmen o ermo deixado pela morte. Assim, apesar de irreparável, o deserto seria vivificado pelo sexo.

189

Fundamento-me nas reflexões de Gerd Bornheim em “Breves observações sobre o sentido e a evolução do trágico”: “O próprio de quem vive entregue ao mundo da aparência é fazer do homem a medida do real, fazendo com que ele recuse uma medida que o transcende. Nessa recusa da transcendência radica o pseudos, a injustiça, a culpa. O homem se torna – enquanto vive, como dissemos, a teimosia de sua particularidade – princípio da lei, e rejeita um princípio (arke) que transcenda a sua particularidade.” (2007, p. 89-90) 142

Sem que haja a reconciliação dos polos do conflito, os fundamentos do trágico estão abalados.190 Na tragédia, a suspensão da crise passa pelo restabelecimento da medida do herói. Ao reconhecer a mentira a que se entregara insistindo em sua particularidade presunçosa, ele recompõe a ordem abalada por sua hybris. Em “Para o sexo a expirar”, fica em aberto se o vigor se manifestará no momento último, como deseja o eu. Caso o faça, o homem degradado pelo tempo terá vencido a força opressora da passagem dos dias. A possível vitória da vida sobre a morte inscreve-se na construção do poema. O soneto, embora tenha sofrido algumas alterações ao longo da história, segue regras que enfatizam seu caráter atemporal. No caso do texto erótico, o edifício se torna ainda mais sólido pelo metro incomum adotado, o dodecassílabo, e pelas rimas regulares, raras nos sonetos de Carlos Drummond de Andrade. A bela forma fixa, pois, a possível vitória do mais corrompido sobre o mais destruidor. Nesse sentido, a rebelião contra a morte não é tão inacessível como quis Ivan Marques. Deixando o fim suspenso, o derradeiro texto de O amor natural afasta o necrológio que atravessa a obra de Drummond ao menos desde os anos 1940. Mesmo preparado para a publicação póstuma, o volume não lega o registro da morte. Deixa antes o anseio de uma vitória – quem sabe? – sobre sua força destruidora. Um êxito já está assegurado, de todo modo: para além da disputa inconclusa encenada nos versos, há a força da enunciação, a qual torna possível afirmar a vida contra a decrepitude. Uma nova potência ganha força: trata-se do vigor da escrita, que se antecipa à morte para anunciar o irreparável orgasmo no tempo sem tempo do poema. 2.4 NUNCA É TRÁGICA O último poema de O amor natural introduz o confronto com o tempo sem resolvê-lo. A maioria dos textos do livro, diferentemente, parte da superação desse conflito. Em alguns, o sexo salva o instante fugaz do orgasmo, que fica para sempre marcado na carne. Em outros, a cronologia se dilui para dar espaço à eternidade vivenciada durante o gozo. Corroendo a inexorabilidade do destino, grande parte do 190

Confiram-se, a esse respeito, as palavras elucidativas de Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet: “É no final do drama que os atos assumem sua verdadeira significação e os agentes, através daquilo que realizaram sem saber, revelam sua verdadeira face. Enquanto tudo não se consumou, ainda os casos humanos continuam a ser enigmas que são tanto mais obscuros, quanto mais os atores se julgam seguros daquilo que fazem e são.” (2008, p. 21-22) 143

volume exclui o dispositivo trágico. Essa elisão é a tal ponto fulcral que se torna tema de um dos poemas da coletânea: A CASTIDADE COM QUE ABRIA AS COXAS A castidade com que abria as coxas e reluzia a sua flora brava. Na mansuetude das ovelhas mochas, e tão estrita, como se alargava. Ah, coito, coito, morte de tão vida, sepultura na grama, sem dizeres. Em minha ardente substância esvaída, eu não era ninguém e era mil seres em mim ressuscitados. Era Adão, primeiro gesto nu ante a primeira negritude de poço feminino. Roupa e tempo jaziam pelo chão. E nem restava mais o mundo, à beira dessa moita orvalhada, nem destino.

Desde o título, o soneto tece termos contraditórios. Ao fazê-lo, poderia levar adiante a centralidade do conflito, tantas vezes reconhecido dramaticamente no sujeito poético drummondiano e no mundo. A poesia do autor, por sua vez, refletiu o pluralismo decorrente dessas fraturas por meio da variada abordagem das contradições. O texto erótico acrescenta um novo aspecto a tal pluralidade: a antinomia expressa aqui o sobrepujamento dos dramas vivenciados pelo eu gauche. O primeiro problema abandonado pelo amante é a culpa, conforme expõe o título a repetir o verso inicial. Visto que abria as coxas, a amante não poderia agir de forma casta, segundo o significado mais comum do substantivo “castidade”: a abstinência dos prazeres sexuais. O termo perde, então, seu fundo repressivo. Nada mais distante da qualidade contraditoriamente almejada e repelida outrora. Em “Castidade”, de Brejo das Almas, a carne era poluída pelo pecado. Cindido entre o desejo e o caminho luminoso que poderia afastá-lo da lascívia, o homem humildemente confessava sua vilania para logo em seguida admitir que tornaria a pecar. Desse modo, o discurso religioso era afirmado ao mesmo tempo em que burlado pela ironia drummondiana: por conhecer um caminho único, a estrela a iluminar o fiel deveria guiá-lo apesar de sua pobreza e da arrogância com que perdoava a si mesmo, como uma espécie de novo 144

Deus. Em “A castidade com que abria as coxas”, obscurecem-se os preceitos religiosos, via reta que poderia definir quais comportamentos representariam os desvios em relação à rota luminosa. “O vício não entra nos amores sublimes”, poderíamos afirmar a partir do poema de Apollinaire citado entre as epígrafes do volume.191 A caracterização dos genitais femininos como uma “flora brava” confirma a presença do sublime também no texto erótico de Carlos Drummond de Andrade. O corpo da amante parece indomável. Ele suscita, assim, tal como defendeu Burke, ideias de dor e perigo “sem que a elas estejamos realmente expostos” (op. cit., p. 58). O deleite daí decorrente se concretizará nas imagens de mansuetude desenvolvidas na mesma estrofe. O corpo feroz expressa, contraditoriamente, a mansidão dos bichos que perderam suas armas de defesa. A natureza manifesta no “amor natural” não tem, portanto, um único aspecto: é reverenciada na medida em que, deliciosa, ameaça o sujeito; selvagem embora, o corpo está entregue como um animal domesticado. Temos aí resumida a rica experiência vivenciada no sexo: paz e arrebatamento, destruição e dádiva se tornam indiscerníveis. A fusão de opostos se manifestará, ainda, na antítese lida no último verso da estrofe. Estrita, a mulher talvez fosse marcada pelo rigor moral. Contudo, ao permitir o acesso à sua fenda estreita, expandia seu universo e o do amante. Esse alargamento, centrado a partir de então nos efeitos do sexo sobre o homem, será o objeto da duas estâncias seguintes. A expansão da experiência graças ao ato erótico é tal que os contornos subjetivos são destruídos. “Morte de tão vida”, o coito, como em diversos textos do livro, leva à sensação de aniquilamento. E, mais uma vez, a ruína é festejada. A prostração libertadora associa-se ao sepultamento das palavras: “sem dizeres”, o sexo encontra uma outra linguagem, a do corpo, em que não vigoram as fraturas existentes nos signos linguísticos. Tema reincidente no volume, a dissolução do idioma faz avançar a composição da cena erótica como um idílio sem obstáculos. De fato, a palavra foi um dos grandes problemas enfrentados por Carlos Drummond de Andrade: ainda quando se aproximava da festa, mostrava-se esquiva. Em O amor natural, a luta com a linguagem segue, dirigida sobretudo para outras poéticas que não a do autor. A escrita continua a ser, pois, um espaço de tensão.192 Diferentemente, no coito, as 191

Tradução literal do verso retirado de “Parce que tu m’as parlé de vice”: « Le vice n’entre pas dans les amours sublimes ». 192 Remetemos ao primeiro capítulo para a análise do predomínio do embate com outras poéticas na coletânea de poemas eróticos em contraposição ao autoquestionamento que predomina na obra do autor. 145

palavras, elididas, deixam de ser um problema para o amante, tocado diretamente pela comunicação plena dos corpos. O poder dessa comunhão é tamanho que não só dilui a identidade registrada pelo nome. Esvai a “substância” do homem, a constituição subjetiva dissipando-se junto com o sêmen. Essa perda permite que o máximo despojamento – “eu não era ninguém” – dê lugar à mais rica pluralidade – “e era mil seres”. Dessa forma, o ato erótico dilui uma outra origem dos conflitos trágicos na obra do autor: o eu. A esse respeito, a leitura de Marlene de Castro Correia é esclarecedora: A prospecção do eu enquanto ocorrência particular da entidade homem, iniciada em ‘Poema de sete faces’ (AP) – ‘Meu Deus, por que me abandonaste/ se sabias que eu não era Deus/ se sabias que eu era fraco.’ – e continuada ao longo da produção poética drummondiana, envolve uma série de reflexões que se constelam numa ‘inteligência do universo’ basicamente trágica. Como núcleo da constelação, o homem em estado de carência, de falta de, frágil e falível, condenado à cegueira no plano do conhecimento, impelido portanto ao erro, a partir mesmo das duas contingências obscuras que lhe demarcam o trajeto existencial.” (op. cit., p. 81)

O homem raramente é frágil em O amor natural. Muitas vezes chega mesmo a alçar-se ao patamar dos deuses ou a fruir a eternidade que lhes fora reservada. Em “A castidade com que abria as coxas”, a desmedida não é levada tão longe. Incide sobre a superação da carência a que Deus condenou Adão e seus descendentes. Com Raquel Cristina de Souza (2006), poderíamos reconhecer nessa desmedida uma nova manifestação do trágico.193 De fato, seria possível conceber a exacerbação do eu como a hamartia do homem não ciente das forças que o sobrepujam e podem massacrá-lo. No entanto, a hybris não terá seu fundo falacioso descoberto. Daí o homem não ser dilacerado pelo reconhecimento de seu erro, fundamental na tragédia. Finalmente ele pode transgredir a lei que o condenava à dor.194 O mito deixou de ser o que transcende o

193

A pesquisadora defende seu ponto de vista nos seguintes termos: “Que o transbordamento de sentidos descrito acima não iluda: neles também o trágico persiste. Basta lembrarmos que a origem da tragédia enquanto gênero dramático se encontra nos ritos de homenagem a Dionísio, deus do vinho (Baco para os romanos). Nesses ritos, o homo dionysiacus, mortal, integrado ao deus pelo êxtase e entusiasmo, comungava com a imortalidade e se liberava dos interditos. É aqui que está a explicação alegórica para a hybris (desmedida) do herói trágico, aquele que ultrapassou seu métron (medida). E a grande desmedida do homem é aspirar à imortalidade divina.” (2006, não paginado) 194 Em Drummond, essa lei supera os preceitos religiosos, questionados, conforme analisamos na primeira seção deste capítulo. Torna-se, mais do que isso, a condenação natural ao sofrimento sintetizada em um poema publicado postumamente: “Unidade” (Fa). 146

indivíduo ou o que leva à repetição eterna da desdita.195 “A castidade com que abria as coxas” apresenta um sujeito a reverter as forças míticas. Por meio do ato erótico, ele retorna à inocência adâmica, anterior ao conhecimento do pecado. A pureza não se restringe, pois, ao gesto de entrega pela mulher. Avança para o homem desnudado da culpa. Logo, se o “eu” pode ser considerado uma ocorrência da entidade homem, não é agora o símbolo da cegueira e da sujeição, mas de uma humanidade redimida da falta atávica. Nessa redenção reside uma virada radical. A culpa foi o cerne da poética do autor nos anos 1940 e 1950, conforme defendeu Antonio Candido em seu estudo incontornável. Em outros momentos, mesmo que as “inquietudes” não se fizessem tão pungentes, a acidez predominou na maneira como o sujeito drummondiano concebia seu retrato e sua relação com a família, a história e a natureza. O solo desse amargor é social apesar de – ou porque – profundamente arraigado na individualidade do filho de fazendeiros. Especialmente na década de 1940, o poeta ansiou participar da destruição das estruturas políticas caducas; reconheceu, porém, sua inserção em uma oligarquia cujas demandas em relação ao Estado foram predatórias. Quando na década seguinte rejeitou o engajamento, pagou o preço de tal recusa pela confissão autoacusatória e pelo desmerecimento da poesia, furtada de seu poder de redenção.196 Mais: tragicamente, descobriu que ele e sua escrita serviriam aos seus ainda quando cressem recusá-los.197 Até em Boitempo e Menino antigo, em que Candido reconheceu um “veio autobiográfico sem amargura” (2003, p. 55), encontramos o registro da violência

195

O contraste com a cosmovisão trágica predominante na obra publicada em vida por Carlos Drummond de Andrade pode ser iluminado pela leitura do capítulo “Elementos de uma cosmovisão trágica” no livro de Vagner Camilo já citado. Sobretudo nos anos 1950, segundo o crítico, as forças míticas são aterrorizantes, já que o poeta não é mais criador de mitos como fora nos anos 1940. 196 Novamente baseamo-nos na leitura de Vagner Camilo: “Se, na fase social de sua lírica, a culpa, embora exposta em toda sua virulência e dilaceramento, ainda podia contar com algum conforto advindo do próprio engajamento, conforme vimos através da autocastração redentora de ‘Mão suja’ e ‘Movimento de espada’, na fase de ‘Confissão’ (CE), obviamente em decorrência da frustração do empenho participante, o que se perde é justamente esse poder de redenção pela poesia. Mais do que nunca, a culpa aflora aqui como uma contradição insolúvel, ligada ao desmerecimento da própria poesia. Embora Drummond tivesse sempre nutrido uma grande desconfiança com relação ao alcance de participação social da palavra poética – inclusive na fase de engajamento, como temos repetido diversas vezes –, esse total desmerecimento para com a poesia só se justifica num momento de frustração absoluta para com o empenho participante.” (op. cit., p. 259) 197 A referência evidente aqui é “Os bens e o sangue” (CE). 147

transmitida pelas gerações de fazendeiros ao menino que “não conhece os bois/ pelos nomes tradicionais”.198 A vivência de um tempo mítico – e anterior ao mito judaico-cristão – no poema erótico indicia o abandono dos preceitos religiosos transmitidos pela família mineira. Junto com eles, encerra-se o embate que cindia o sujeito drummondiano mesmo quando este se excluía da família, nos anos 1930 e em alguns poemas memorialísticos publicados nos anos 1960 e 1970. Ainda que isolado, tal qual o pequeno Robinson de “Infância” (AP), o eu muitas vezes se ressentia do não cumprimento dos estritos valores familiares. Como defendeu Silviano Santiago (1976), o corpo negro em que o menino experimentava o prazer e a negra batina do padre eram complementares. Prazer e febre, pecado e gozo coexistiam.199 O poeta maduro, por sua vez, ciente da trágica impossibilidade de se apartar do clã, remoeu a distância dos prazeres antes vividos no espaço de exclusão da vida familiar. “À beira do negro poço”, como lemos em “Canto negro” (CE), ele nada alcança, pois perdeu “os olhos/ que tinha quando criança”. Essa inocência, vivida uma vez que se excluam as figuras hierárquicas a definir o bem e o mal,200 é recuperada pelo homem diante da “negritude de poço feminino” no poema de O amor natural. Como o Adão ainda ignorante do pecado, ele descobre o corpo da amante como se fora a primeira vez. A inocência parece se estender para a alegre elisão do mundo, cujos conflitos repetidas vezes compungira o sujeito. Como a culpa, sua superação tem um solo histórico. Este pode ser percebido pelo desenho negativo deixado pelo mundo nos poemas eróticos: a considerar a insistência com que se afirma o isolamento dos amantes no livro, não é impossível reconhecer no universo abandonado o avesso da experiência sexual. Se esta permite vencer a culpa, na vida diária o sujeito drummondiano reconhece-se algoz do inocente que não é. Se o corpo feminino pode ser um retiro, longe da cena erótica o indivíduo desamparado passa a querer inutilmente proteger-se 198

Contraste-se “Tentativa”, acerca da fracassada busca de iniciação sexual com uma “negrinha não apetescível”, a “Negra”, em que se denunciam os desmandos dos brancos em relação à escrava, objeto “para tudo”, “para todos”. 199 Nas palavras do crítico: “[...] outra ambiguidade é a que preside a ação no lugar-do-prazer: é este definido paralelamente ao embate amoroso como o lugar onde mais se exige o arrependimento e o propósito de mudar de vida, buscando outros princípios que não os da moral da aventura pregada por Robinson. E não será pois estranho que o corpo em sede de prazer seja também o corpo em sede de martírio. Purificação e prazer se contaminam no poema se abrindo em cilício e gozo.” (1976, p. 64) 200 A referência é mais uma vez Silviano Santiago: “[...] a problemática do bem/mal ligada ao objeto erótico só existe quando a colocação do sujeito com relação ao objeto se dá em vertical, ou seja, quando há efeito de espiritualização, ou então quando entre o sujeito e o objeto se intromete a figura-de-negro do padre” (idem, p. 71). 148

das feridas que rasga nele o acontecimento.201 Além disso, o mundo ameaça a alegria dos namorados com “amarguras humilhantes”202 ou lhes oferece tão somente a “sexalegria industrializada em artigos de supermercado”.203 O erotismo propiciaria, diferentemente, uma outra alegria, aquela que não se subjuga tragicamente aos ditames do comércio generalizado.204 Tal fechamento aos problemas do mundo é reproduzido pela composição circular do soneto, que retorna ao ponto de partida na última estrofe: a região pubiana feminina.205 Imagem da perfeição e da autossuficiência, o círculo formado pelo erotismo exclui os conflitos ao mesmo tempo em que permite a maior abertura: a que, partindo da matéria, atinge o metafísico. Essa conjunção se evidencia no primeiro verso da estância – “Roupa e tempo jaziam pelo chão” –, em que se coordenam, tal qual no ato sexual, termos apenas aparentemente distantes. Desse modo, à beira da “moita orvalhada” pelo homem tornado natureza radiante, desfaz-se outro fundamento da cosmovisão trágica drummondiana: a sina que arrasta os seres humanos para a morte. Os amantes, vivenciando uma efêmera morte jubilosa, esquecem-se de seu perecimento inevitável. Também olvidam a cronologia em que as atividades sociais transcorrem: provisoriamente o homem se liberta do trabalho, com que Adão fora castigado por sua desobediência. O círculo perfeito exclui por fim o destino. Símbolo da submissão do homem a um devir alheio à sua vontade, o fatum é um dos mais importantes componentes do trágico na medida em que obriga o indivíduo presunçoso a reconhecer sua debilidade. Não há fraqueza no poema erótico drummondiano. O amante se torna pleno porque logra interromper a passagem das horas e calar o mundo. Ele se emancipa, além disso, do jugo ao sentimento amoroso, antes tragicamente apresentado:

201

Retomamos os seguintes versos de “Acordar, viver” (Fa): “Como proteger-me das feridas/ que rasga em mim o acontecimento,/ qualquer acontecimento/ que lembra a Terra e sua púrpura/ demente?/ E mais aquela ferida que me inflijo/ a cada hora, algoz/ do inocente que não sou?” 202 Expressão encontrada em “A lamentável história dos namorados” (AAA). 203 Verso encontrado em “O museu vivo” (IB). 204 Além da onipresença da mercadoria no pós-guerra, a frustração do projeto participante compõe o contexto em que se funda a oposição entre o abraço erótico e a vida em meio aos homens. A esse respeito, confira-se o terceiro capítulo desta tese. 205 Parafraseio análise proposta por Rita de Cássia Barbosa: “Abrindo-se e fechando-se sobre a mulher, metonimicamente representada no que a constitui em sua feminilidade – a região pubiana –, o soneto estruturava-se em círculo. Desenha-se, do ponto de vista formal, a plenitude de que se reveste o texto, tematicamente.” (op. cit., p. 46-47) 149

Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor.206

Impotente diante de um afeto que lhe trará uma “sede infinita”, o homem ama compulsoriamente e independentemente da coisa amada. O resultado dessa ânsia é a ampliação dos poderes do “amor que punge”207 e do vazio escavado pelo sentimento no peito do amante desditoso. O alcance de tal lacuna ultrapassa o âmbito biográfico ou emocional. O conflito atinge uma magnitude cósmica: “Amor é compromisso/ com algo mais terrível do que amor?”, perguntaria o “amante curvo” ante as forças que o transcendem.208 Em O amor natural, a escravidão aos dramas do espírito cede espaço à alegria do pleno encontro dos corpos. Jungido à amante em um amplexo perfeito, o sujeito abandona a culpa, os conflitos individuais, o mundo. A volúpia dissolveu a “inteligência trágica do universo”, definida por Marlene de Castro Correia como “uma das marcas por excelência da individuação de Carlos Drummond de Andrade no processo da poesia moderna brasileira” (op. cit., p. 55). Pondo de lado os traços mais marcantes de sua produção, o autor diversifica sua “individuação” em nossa história literária graças à escrita erótica. Essa pluralidade se enriquece pelas diferentes abordagens do fechamento nos poemas do volume. O círculo pode se deslocar do abraço dos amantes para se concentrar em uma simples parte do corpo, autossuficiente e risonha, como no seguinte texto: A BUNDA, QUE ENGRAÇADA A bunda, que engraçada. Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

206

Estrofe retirada de “Amar” (CE). Expressão encontrada em “Entre o ser e as coisas” (CE). 208 Os versos foram extraídos de “Mineração do outro” (LC). A partir desse mesmo trecho, John Gledson resume o alcance amplo do dilaceramento amoroso na obra de Carlos Drummond de Andrade: “A percepção de um desenho por trás do ato sexual imediato, e da presença de áreas do ser de que antes não estava consciente, é a origem do conflito representado em quase todos os poemas que tratam do assunto. O amor é ativo e passivo, momento supremo na vida do indivíduo, mas ao mesmo tempo forçando-o a conformar-se com uma ordem maior do que ele, um drama cósmico; ‘Amor é compromisso/ com algo mais terrível do que amor?’” (op. cit., p. 229) 150 207

Não lhe importa o que vai pela frente do corpo. A bunda basta-se. Existe algo mais? Talvez os seios. Ora – murmura a bunda – esses garotos ainda lhes falta muito que estudar. A bunda são duas luas gêmeas em rotundo meneio. Anda por si na cadência mimosa, no milagre de ser duas em uma, plenamente. A bunda se diverte por conta própria. E ama. Na cama agita-se. Montanhas avolumam-se, descem. Ondas batendo numa praia infinita. Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz na carícia de ser e balançar. Esferas harmoniosas sobre o caos. A bunda é a bunda, redunda.

Estamos no universo do fetiche. Não apenas aquele estudado por Freud (1974) em relação à fixação libidinal em coisas ou partes dos corpos. O feitiço é mais amplo. Como os ídolos, a bunda torna-se o motor de um encantamento crescente que não se restringe ao desejo sexual. Movendo-se a cada estrofe por um novo matiz do corpo sorridente, o texto expõe a ampla felicidade advinda do objeto extraordinário. Ela constitui também a possibilidade de se burlar a falta que funda o investimento erótico. Mas vai além: é a efígie da superação do caos que domina a natureza e a história. Na primeira estrofe, o sujeito ainda mantém certa distância em relação à magia do corpo observado. Esse afastamento é reforçado pelo controle da emoção, evidenciado graças à pontuação no verso inicial: o ponto final substitui a esperada exclamação. Não fosse por essa relativa indiferença, dificilmente seria percebido o caráter cômico das nádegas.209 Temporariamente impassível frente aos encantos eróticos da bunda, o homem acha graça da semelhança dela com um sorriso. A inteligência alerta do observador ri também da estranha articulação estabelecida entre a anatomia e a 209

Guiamo-nos pelas considerações de Bergson em O riso: “Observemos agora, como sintoma não menos digno de nota, a insensibilidade que naturalmente acompanha o riso. O cômico parece só produzir o seu abalo sob condição de cair na superfície de um espírito tranquilo e bem articulado. A indiferença é o seu ambiente natural. O maior inimigo do riso é a emoção.” (1983, p. 8) O filósofo conclui: “Portanto, o cômico exige algo como certa anestesia momentânea do coração para produzir todo o seu efeito. Ele se destina à inteligência pura.” (idem, p. 8) 151

alma que começa a adivinhar no corpo: se as nádegas delineiam um riso constante, nunca são trágicas. A comicidade parece advir, assim, do psiquismo atribuído à bunda a partir de um traço físico rígido: ela sorri em seu contorno anatômico e sobretudo em sua autossuficiência a desdenhar os conflitos humanos. A partir da imagem, conforme propusera um poema publicado alguns anos antes,210 entremostra-se a “alma do corpo”, a qual chama atenção talvez por seu contraste em relação ao universo que a circunda sem atingi-la. A partir da segunda estrofe, o humor permitirá que também o sujeito timidamente impresso nos versos se rebele contra “as provocações da realidade”, para retomarmos a proposição de Freud em seu estudo sobre o tema.211 O texto se torna sorridente como a bunda. Brinca com seu objeto, transmutando o fascínio – já então vitorioso sobre o eu antes distanciado – em um divertido diálogo entre o homem e as nádegas, cujo “psiquismo” foi invadido pelo enunciador. Dele parte a dúvida: “Existe algo mais? Talvez os seios.” Mas à bunda nada falta: ela segue firme em sua recusa de tudo o que não seja seu próprio universo esférico e perfeito. Imunes às suspeitas vindas de fora, as nádegas se bastam. Essa autossuficiência será reiterada nas estrofes seguintes, em que o enunciador volta a assumir uma perspectiva mais afastada. As luas gêmeas notadas no corpo “andam por si”. Mais do que isso, elas cumprem o “milagre” do encontro pleno – “duas em uma” – vislumbrado apenas no abraço erótico em outros poemas do livro. O corpo só, assim como a união dos amantes, garante a experiência da unidade perdida e tantas vezes ansiada pelo sujeito drummondiano. Abdicando a lucidez que fora o reverso da magia impressa em seus versos, Drummond interrompe o deslizamento contínuo dos objetos em direção a uma totalidade que nunca se efetiva.212 O todo enfim se evidencia na carne, ignorante de tudo que a cerca.

210

Trata-se de “A metafísica do corpo” (Co), em que lemos: “A metafísica do corpo se entremostra/ nas imagens. A alma do corpo/ modula em cada fragmento sua música/ de esferas e de essências/ além da simples carne e simples unhas.” 211 A rebeldia do humor contra as reivindicações da realidade e o sofrimento é sintetizada por Freud nos seguintes termos: “Além disso, a pilhéria feita por humor não é o essencial. Ela tem apenas o valor de algo preliminar. O principal é a intenção que o humor transmite, esteja agindo em relação quer ao eu quer às outras pessoas. Significa: ‘Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!’” (1974, p. 101) 212 A esse respeito, confira-se a análise de José Miguel Wisnik: “[...] os objetos em Drummond são como pontos negros que remetem continuamente a algo que escapa e desliza, movidos pelo compromisso inarredável da totalidade que acusa continuamente a sua própria impossibilidade de cumprir-se, fortalecendo-se, no entanto, disso mesmo.” (op. cit., p. 23) 152

Ignorante até mesmo do enunciador, poderíamos acrescentar. E assim o é: “A bunda se diverte/ por conta própria”. Mas quem a observa não se lamenta de sua exclusão do universo pleno das nádegas. Enfeitiçado pela bunda, o enunciador parece reconhecer nela a possibilidade feliz de apropriar-se da irrealidade – ou do que não pode ser real para ele.213 Essa hipótese pode ser ratificada quando lemos a quarta estrofe, única dedicada ao corpo empenhado no ato erótico. As nádegas são aí montanhas a avolumar-se e a mover-se durante o sexo. Em seu meneio, elas tornam-se ondas e o amante, uma praia infinita. A imaginação faz, portanto, com que o sujeito poético participe da plenitude do corpo observado. Grandiosa, a natureza em que se transfigura o homem durante o ato erótico não tem qualquer aspecto trágico: não faz lembrar a matéria em decomposição ou constitui as pulsões a submeterem o sujeito. Tal elevação, na estância seguinte, permitirá que o corpo se dissocie da desordem universal. Nesse trecho, o observador volta a se distanciar do adorado objeto. “Lá vai sorrindo a bunda”, contempla o enunciador. Ela vai, longínqua e superior ao caos. Nele provavelmente está instalado o eu. Porém, os conflitos são vencidos pelo encanto exercido pelo corpo. Apenas mencionada, a irregularidade do mundo não é descrita. Foi preterida ao menos durante o momento em que o enunciador vê passar a bunda. A estrofe final resume a felicidade daí decorrente: “a bunda é a bunda,/ redunda.” De um lado, por meio da tautologia, o trecho itera o fechamento e a riqueza das nádegas. De outro, como deixa claro o uso intransitivo do verbo, exprime o transbordamento da harmonia configurada pelas esferas autossuficientes. Tal extravasamento parece ocorrer em direção ao sujeito, encantado, e ao texto, que assume o caráter risonho de seu objeto. A alegria se incorpora à tessitura das palavras, o jogo sonoro obtido com a repetição de “unda” expressando o prazer decorrente de tematizar mesmo o que desdenha todo o resto. Ao poema não importa se a bunda se dobra sobre si mesma. Como ela, os versos se fazem leves e radiantes para retratar a totalidade até então corroída pela inteligência crítica do autor. 213

Baseamo-nos nas considerações de Agamben em Estâncias. Lembrando que o fetiche não coincide com o objeto em sua materialidade (visto que remete ao sobrenatural ou, em termos psicanalíticos, à ausência do pênis materno), o filósofo vê no fetichismo uma nova possibilidade de relação com as coisas, a que permite a apropriação da irrealidade. Em suas palavras: “Sob esse ponto de vista, o fetiche leva-nos ao confronto com o paradoxo de um objeto inapreensível que satisfaz uma necessidade humana precisamente através do seu ser tal. Como presença, o objeto-fetiche é, sem dúvida, algo concreto e até tangível; mas como presença de uma ausência, é, ao mesmo tempo, imaterial e intangível, por remeter continuamente para além de si mesmo, para algo que nunca se pode possuir realmente.” (op. cit., p. 61-2) 153

O realismo também se cala diante da “bunda maga e plural”, referida em outro poema acerca das nádegas: “Bundamel bundalis bundacor bundamor”, o qual recompõe a experiência ao mesmo tempo vária e totalizante propiciada pelo corpo. Não importa se verdadeira ou falsa. Em sua intensidade explosiva – “opalescente bun/ incandescente bun” –, ela está “além do irreal”. Avança, além disso, para muito além do corpo singular. O prazer extraído do “girabundo” dá contornos cósmicos à superação do desconcerto. Ícone da perfeição do universo, a bunda se torna um refúgio muito mais eficaz do que o simples fechamento do quarto. Ela permite ao homem sair do mundo e “respirar a brisa dos planetas”, conforme lemos em “No corpo feminino, esse retiro”. Desse modo, o amante põe-se ao abrigo de uma história e de uma natureza que foram retratadas sobretudo a partir da destruição e das ruínas na obra do autor. A magia do corpo faz prevalecer a ordem e a criação sobre o perecimento e o caos. O erotismo drummondiano nunca é trágico – ou quase.214 2.5 FORA DESTE MUNDO Grande parte dos poemas publicados em O amor natural situa-se em um cenário bastante diverso daquele a que se habituara o leitor da obra de Carlos Drummond de Andrade. No lugar das inquietudes individuais, em alguns textos encontramos um potente sujeito alçado ao patamar dos deuses. Em outros, a subjetividade se dilui jubilosamente. A deterioração resultante da passagem dos dias é, ademais, substituída pela diluição do tempo ou pela sensação de eternidade vivenciada durante o gozo. O amante está acima da trágica condição a que se submete todo vivente. Talvez se possa denunciar nesse idílio o empobrecimento de uma poesia erigida sobre a força dos opostos. O poeta abandonaria a tensa escrita da tragicidade por uma poética leve mas superficial. O convívio com os textos eróticos leva-nos a outra leitura. O erotismo drummondiano expõe o resultado de pesquisas estéticas empreendidas ao longo de décadas. Daí a diversidade de formas lidas no conjunto e a bela modulação de motivos em torno da alegria. Essas variações revelam o rosto risonho de um poeta acossado pela inteligência crítica. É possível mesmo que a expressão do gozo se erija contra a lucidez imbatível do escritor. Por vezes o realismo se faz tão forte que vem a se insinuar no conjunto dirigido 214

A presença dos conflitos no entorno da cena erótica são tema do quarto capítulo. 154

pela magia e pelo desejo de uma ordem mais verdadeira. No insistente registro da diluição das palavras usadas pelos amantes, podemos reconhecer quiçá o reflexo negativo do caráter problemático da linguagem para o escritor moderno. Se os parceiros sexuais se veem livres dos signos e de suas fraturas, o autor não pode abdicar de seu instrumento fugidio. Precisa, como vimos no capítulo anterior, enfrentar o problemático lugar assumido pela poesia no mundo contemporâneo quando ela pretende manter-se distante dos ditames do onipresente “Deus Kom Unik Assão”. A insistente afirmação da retirada do mundo pelos parceiros sexuais pode, por sua vez, manifestar a permanência das preocupações públicas na poesia erótica de Carlos Drummond de Andrade. O encanto vivenciado no refúgio do abraço será, então, o reverso das perturbações vividas em sociedade, conforme defenderemos no próximo ensaio. Além disso, como veremos no último capítulo, o contraponto melancólico à cosmovisão idílica se insinuará em alguns poemas do conjunto. Nesse sentido, O amor natural não se retira inteiramente do mundo criado pela parcela da obra do autor que tem recebido mais atenção dos críticos. Para a manutenção daquele universo de tensões nos voltaremos de agora em diante. Mas não sem antes reafirmar que, embora persistentes, os conflitos não logram transtornar a face sorridente do amante. Como não poderia deixar de ser em um poeta sensível à riqueza dos contrários, Carlos Drummond de Andrade não omite o negativo de sua oficina irritada. Esse canto radioso expressa um outro mundo, também vigoroso, entre

os

muitos

que

nos

foram

legados

pelo

escritor.

155

3 PENSANDO NOS OUTROS HOMENS

Carlos Drummond de Andrade registrou, com rara coerência, os conflitos vivenciados pelo homem do século XX. Havendo testemunhado grande parte dos acontecimentos centrais do período, o poeta não se limitou a observá-los a distância ou a criar um sujeito poético que apenas ficasse “torto em um canto”. Também seu canto tornou-se torto215 ao inscrever o tiroteio, os anseios pela revolução,

o “Menino

chorando na noite” (SM), o “Favelário nacional” (Co) ou o terrível “estoque de riquezas” podres das crianças e mulheres magras no “Fim de feira” (IB). A poesia fraturada, multifacetada e excêntrica foi o correlato perfeito do gauche, com que o escritor inaugurou sua obra. Deslocado, fora de lugar, o “eu todo retorcido” raramente se retirou do mundo em desconcerto. Desde a ambivalente postura do filho de fazendeiros em relação à modernização incipiente nos anos 1920 até a escrita biográfica da maturidade, quando narrou a violência histórica das oligarquias mineiras, a literatura de Carlos Drummond dramatizou problemas tanto mais universais quanto tecidos nas dores individuais de Carlos, personagem eternizada pela obra drummondiana. Nesse sentido, já no livro de estreia, em que o escritor reconheceu “uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo” (2003, p. 197), encontram-se ecos de anseios e angústias que extrapolam o âmbito pessoal. Em Alguma poesia, estão presentes linhas de força que se desdobrariam nos livros subsequentes: o registro da urbanização destruidora e desterritorializante, a violência urbana, os efeitos nocivos da guerra, os desmandos de governantes. Nos anos 1940, os embates entre literatura e história se tornariam ainda mais densos ao exporem os conflitos de um sujeito em confronto, mesmo se tentava a conjunção, com os outros homens. À procura das mãos dadas, o eu canhestro deparou-se com a ausência de dedos limpos, em “mão incurável” registrada neste poema: Cristal ou diamante por mais contraste, quisera torná-la, ou mesmo, por fim, uma simples mão branca, mão limpa de homem, que se pode pegar e levar à boca ou prender à nossa 215

Retomamos verso de “Segredo” (BA), em que se lê “Fique torto no seu canto.” O possessivo permite depreender a ambiguidade do “canto”, poesia fraturada a inscrever os eventos e o espaço a partir dos quais o sujeito marginalizado observa o mundo. 156

num desses momentos em que dois se confessam sem dizer palavra... A mão incurável abre dedos sujos.216

O anseio de comunicação não era frustrado somente pelas nódoas do mundo, insistentes na escrita drummondiana. O “eu todo retorcido” reconhecia em si faltas insuperáveis. Contrastando com a ordem ideal projetada – inalcançável cristal ou diamante –, o sujeito se apequenava, degradava-se, dando a ver seus culposos dedos sujos. Em “reciprocidade de perspectivas”, nos termos de Candido,217 a deformação subjetiva contaminava o mundo na mesma medida em que se contagiava por ele. A saída para o impasse – sempre temporária – era o sacrifício do sujeito, ritual sintetizado pelo gesto de decepar a mão faltosa: “Depressa cortá-la,/ fazê-la em pedaços/ e jogá-la ao mar!”, diz o poema. “Movimento da espada”, publicado em A rosa do povo, completaria o rito sacrificial: Estamos quites, irmão vingador. Desceu a espada e cortou o braço. Cá está ele, molhado em rubro. Dói o ombro, mas sobre o ombro tua justiça resplandece.

Ao mutilar-se, o sujeito visava a saldar a dívida que reconhecia ter com os outros homens. Oferecendo seu corpo aos desígnios vingadores de seu companheiro ou irmão, podia encontrar a ordem perdida na história, salvando o tempo graças a uma subtração redentora. Esse projeto poético, de uma densidade rara, não perdurou. Nas obras subsequentes, também de grande riqueza literária, ganhou vulto uma visada de tal modo melancólica do mundo, do eu e da palavra que o sujeito já não se reconhecia digno do sacrifício ou confiava suficientemente no instrumento com o qual pretendera intervir em seu tempo. Ainda assim, o desconcerto do mundo se fez sentir. A epígrafe de Claro enigma, que confirmaria o tom melancólico crescente em Novos poemas, não deixa dúvidas acerca da importância dos acontecimentos para o poeta mesmo após sua 216

Citamos “A mão suja” (Jo). A leitura de “A mão suja” foi empreendida por Antonio Candido no ensaio “Inquietudes na poesia de Drummond”, op. cit., p. 76. 157 217

retirada da “praça de convites”: “Les événements m’ennuient”. Quando se dá a devida importância ao sujeito de “ennuir”, não se pode negar que o tédio e a melancolia não são somente a manifestação do olhar disfórico a respeito da condição humana, mas também a resposta subjetiva aos episódios recentes da política nacional e internacional.218 Estes se ofuscariam como tema dos versos para tornarem-se o motor negativo da “ingaia ciência” da maturidade. Os eventos públicos retornariam à superfície dos poemas nos anos seguintes. Perpassariam o experimentalismo de Lição de coisas, os poemas-noticiário de Versiprosa, a narrativa da violência patriarcal em Boitempo e o registro dos resultados daninhos do progresso técnico e das mazelas urbanas nos livros dos anos 1970 e 1980. A mudança parece acompanhar o arrefecimento das desconfianças em relação à palavra poética, novamente apta a registrar os fatos e, quiçá, a intervir no real. Anuncia, sobretudo, uma transformação que se confirmaria em O amor natural: o processo gradual de cerceamento dos poemas acerca do cotidiano em volumes específicos (como a coletânea de 1967) ou em seções próprias (conforme encontramos em Discurso de primavera e Amar se aprende amando). No livro póstumo, essa cisão se tornaria omissão: os ruídos da rua já quase não têm lugar. Envolto pelas flores do púbis,219 o eu parece evitar alegremente o problemático convívio com os homens na “praça de convites”. A análise mais detida não permite defender a total dissolução da história e do sentimento do mundo, no entanto. Uma das epígrafes do livro anuncia: o sexo “contém todos os governos, juízes, deuses, pessoas perseguidas da terra”.220 A presença do tempo histórico no sexo, explicitada pelo verso de Walt Whitman, ecoa também na citação de Apollinaire nas epígrafes: “fazer dançar nossos sentidos sobre os escombros do mundo”.221 Embora o mundo esteja destruído ou reduzido a destroços, ele não deixará de comparecer na coletânea erótica.

218

A esse respeito, confiram-se os trabalhos, já citados, de Betina Bischof e Vagner Camilo. Sobretudo este explicita que acontecimentos poderiam ter levado o poeta ao tédio. 219 Chama atenção a variedade de imagens florais na construção do jardim edênico dos corpos em O amor natural. Um dos textos divulgados na imprensa como prenúncio à coletânea publicada postumamente intitulava-se, aliás, “Jardim”. Como informamos no primeiro ensaio, trata-se de“Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”, publicado anteriormente n’O cometa itabirano. 220 Verso citado em inglês: “Sex contains all, bodies, delicacies, results, promulgations,/ [...]/ All the governments, judges, gods, follow’d persons of the earth,/ These are contain’d in sex as parts of itself and justifications of itself.” 221 Em francês nas epígrafes de O amor natural: “Faire danser nos sens sur les débris du monde”. 158

O leitor habituado à obra de Carlos Drummond de Andrade não se espantará com essa permanência. De fato, na poesia drummondiana, o amor pode ser uma “procura desajeitada de mão”.222 Nos versos eróticos, a busca do outro transmuta-se em encontro: “o corpo dois em um o gozo pleno/ que não pertence a mim nem te pertence/ um gozo de fusão difusa transfusão”.223 O sexo constitui, portanto, uma força de comunhão. Atado ao estreito círculo do abraço carnal, o laço que outrora a poesia drummondiana quisera vislumbrar ou construir no espaço social mais amplo quiçá passe a ser figurado pela cópula. Ruínas, fechamento: o “sentimento do mundo” parece retrair-se, apequenar-se. Em certa medida, esse julgamento é sustentável, mas se faz necessário pô-lo à prova, avaliando sua adequação e também suas fragilidades. Porque talvez, sob o evidente recuo, oculte-se uma nova face das preocupações públicas, a que transforma os fragmentos da sociedade subsistentes em meio ao sexo na imagem de um mundo depauperado. Em um gesto de renúncia aos procedimentos de inscrição do mundo consagrados pelos leitores e pela crítica, O amor natural expõe uma poesia e um sujeito poético que goza contra a distopia generalizada. Essa nova inscrição do mundo terá ainda vigor? A resposta talvez seja negativa, mas não devemos ignorar a questão. Compreendê-la é o objetivo deste ensaio. 3.1 OUTRO PARTIDO Vislumbrar o sentimento do mundo na comunhão dos amantes não é escopo radicalmente distante às reflexões de Carlos Drummond de Andrade acerca da poesia amorosa. Tal expansão dos signos referentes ao espaço público na lírica erótica foi defendida pelo próprio autor em ensaio crítico divulgado em Passeios na ilha. Em “Maria Isabel: canto amoroso”, o escritor observa que o amor em Visão de paz224 “só à primeira vista é físico e individual; logo se adivinha que se reveste de sentido coletivo, e que Maria Isabel ama os homens no seu conjunto, e quer uni-los todos” (1975, p. 131). Ele acrescenta: “Maria Isabel é solidária e fraterna; o fundo de sua natureza se nos revela tanto mais puro quanto mais despida de ênfase socializante é a sua expressão.” (ibidem, p. 132) O trecho, embora se detenha em obra alheia, parece uma defesa do 222

Citamos “América” (RP). Trecho de “Sugar e ser sugado pelo amor”. 224 Coletânea de poemas de autoria da irmã Maria Isabel. O livro foi publicado pela editora Agir em 1948. 159 223

revés sofrido pela poesia drummondiana em 1951, com Claro enigma, e já anunciada em 1948, em Novos poemas. Nesses livros, Drummond afasta-se da “ênfase socializante” de Sentimento do mundo (1940), José (1942) e A rosa do povo (1945). De acordo com excelente estudo de Vagner Camilo,225 embora a tensão entre transitividade e intransitividade do texto literário vigore nas coletâneas da década de 1950, a transformação foi acusada, em diferentes críticas publicadas na imprensa, de alheamento das lutas concretas, subjetivismo, recusa à comunicação. Os ataques ajudam a compor o cenário em que surgem os receios de Drummond a respeito de sua poesia erótica, pungentes ao menos desde 1954, quando o poeta escreve a carta a Abgar Renault citada na introdução desta tese. Ao ocultar seus versos eróticos de outrora, Carlos Drummond não demonstrava somente preocupações acerca da difamação do homem que escreve, mas se inquietava com a leitura de sua poesia. Lembramos que a crítica de esquerda vinculada ao Partido Comunista Brasileiro, fonte de parte dos ataques à obra de Drummond na década de 1950, estigmatizava o amor como tema próprio dos que se entregam a “sobressaltos egoístas”.226 No ensaio sobre o livro de Maria Isabel, o escritor rebate as possíveis acusações de alheamento e individualismo contra poemas centrados na temática amorosa. Conforme fariam depois diferentes estudos sobre a sua poesia dos anos 1950,227 ele reconhece que o retraimento do sujeito participativo é também um fato social. A proposição do escritor poderia ser embasada pelo pensamento adorniano. Em sua conhecida “Palestra sobre lírica e sociedade”, o filósofo alemão postula estar o poder de socialização da lírica na mais densa individuação. Paradoxalmente, na sociedade individualista burguesa, a solidão subsiste como o reduto de onde o poeta pode escutar e compartilhar a voz universal. Por contraponto, o distanciamento da existência expõe o que esta tem de falso. Nos termos de Adorno:

225

Referimo-nos a Drummond: da Rosa do Povo à Rosa das Trevas (op. cit.). É ainda Vagner Camilo quem traça com precisão os embates entre os críticos associados ao Partidão e a novidade instaurada por Claro enigma. Confira-se especialmente, a esse respeito, o segundo capítulo de seu livro: “As razões do pessimismo: sectarismo ideológico no contexto da Guerra Fria”. 226 A expressão, de Cárrera Guerra, é citada por Dênis de Moraes em O imaginário vigiado. Conforme resume o autor, o realismo socialista, endossado pelo PCB, recusava abertamente o erotismo. O principal promotor dessa doutrina estética, Jdanov, reconheceu no misticismo, no clericalismo e na pornografia, “característicos do declínio e da corrupção dominantes no capitalismo” (apud MORAES, 1994, p. 117), as causas da suposta má qualidade da literatura ocidental. 227 As obras de Vagner Camilo (op. cit.) e Betina Bischof (op. cit.) são certamente os ensaios mais coerentes na defesa de tal ponto de vista. 160

Mesmo aquelas composições nas quais não se imiscui nenhum resíduo da existência convencional e objetiva, nenhuma materialidade crua, as mais altas composições conhecidas por nossa língua, devem sua dignidade justamente à força com que nelas o eu desperta a aparência da natureza, escapando à alienação. A pura subjetividade dessas composições, aquilo que nelas aparece harmônico e não fraturado, testemunha o contrário, o sofrimento com a existência alheia ao sujeito, bem como o amor a essa existência – aliás, a sua harmonia não é propriamente nada mais que a consonância recíproca desse sofrimento e desse amor. (2003, p. 70-71)

Desde que inscrito em uma composição em que vigore a primazia da linguagem, o recolhimento subjetivo difunde o antagonismo social, de acordo com as proposições adornianas. Essa concepção da lírica é expressa pela obra de Carlos Drummond antes ainda de sua aparente exclusão do convívio social. Em “América”, de A rosa do povo, o eu poético em busca dos outros homens conclui: Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento. Portanto, solidão é palavra de amor. Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.

A aproximação não pode ser automática, contudo. No pensamento adorniano, quanto menos um poema tematiza a relação histórica entre o sujeito e a objetividade, mais densos são os sedimentos sociais ali observados. Logo, a poesia não comunicativa é a que mais bem abala a reificante linguagem prosaica.228 Nos versos de “América”, a separação entre os homens é um assunto amplamente explorado. Ademais, esse poema assume o caráter fluido da linguagem comunicativa para transmitir a mensagem de comunhão por meio da individualidade. A divergência, de todo modo, ainda não é de fundo. A fluência dos versos cristaliza o curso de um mundo incompreensível, que se deseja em vão representar: “Sou apenas o sorriso/ na face de um homem calado”, conclui um sujeito poético unido aos outros homens pelo silêncio. Por outro lado, imagens conflitantes e a cisão entre as estrofes – apenas tenuemente unidas por um jogo

228

Retomamos a seguinte posição, defendida por Adorno na palestra citada: “Por isso, a lírica se mostra mais profundamente assegurada, em termos sociais, ali onde não fala conforme o gosto da sociedade, ali onde não comunica nada, mas sim onde o sujeito, alcançando a expressão feliz, chega a uma sintonia com a própria linguagem, seguindo o caminho que ela gostaria de seguir” (op.cit., p. 74, grifo nosso). Em “Engajement”, a hipótese se altera um pouco. Embora o filósofo mantenha a defesa da cristalização dos antagonismos sociais como a face contestadora da arte, considera também obras como Guernica autônomas. Nesse ensaio, o autor localiza na forma o problema das relações entre arte e sociedade: “Fica transmitido porém, o aspecto do querer, exclusivamente pela configuração da obra, cuja cristalização se torna metáfora de algo diverso, que deve vir a ser.” (1991, p. 70) 161

de palavra-puxa-palavra – corroem a fluidez observada nas frases. A contraposição entre a transitividade e o fechamento atravessa o livro. Em outros textos, também incluídos no canto participativo de A rosa do povo, a objetividade não se torna assunto dos versos nem a sintaxe tem a limpidez observada em “América”. Parecemos encontrar aí versos em tudo adequados às reflexões filosóficas brevemente expostas. Em um aspecto, no entanto, seria preciso ir adiante ou arriscaríamos ocultar os poemas sob uma teoria tornada rija. Não faríamos jus à poesia de Drummond ou ao pensamento de Adorno. A inadequação parcial decorre da importância da literatura drummondiana para a sociedade e – ao revés – na relevância do contexto para o intelectual Carlos Drummond de Andrade. O testemunho mais contundente do trânsito dessa poesia foi legado por Antonio Candido no belíssimo ensaio “Fazia frio em São Paulo”. Nesse texto, Candido narra o poder aglutinador das cópias de Sentimento do mundo e de poemas de A rosa do povo, divulgados fora do comércio devido ao caráter contestatório dos versos em tempos de ditadura: Naquele tempo Drummond difundia os seus poemas políticos impublicáveis por meio de cópias remetidas aos amigos; estes, por sua vez, as multiplicavam e elas corriam o país, datilografadas e mimeografadas. Assim se espalharam: ‘Depois que Barcelona cair’; ‘Carta a Stalingrado’; ‘Telegrama de Moscou’; ‘Com o russo em Berlim’; ‘Mas viveremos’; ‘Visão 1944’ – recolhidos mais tarde em A rosa do povo, menos o primeiro. Por este meio o chefe de gabinete exercia uma atividade constante e decidida, animando muita gente com o exemplo de uma participação tão alta, naquele momento que para muitos deveria levar ao ‘mundo novo’ que um dos poemas queria ajudar a nascer. (2004b, p. 25-26)

Em nome de sua “atividade decidida” contra o fascismo, Drummond publicou poemas que feririam parte dos preceitos adornianos, especialmente no que tange à linguagem. “Depois que Barcelona cair”, veiculado na Tribuna popular a 17 de junho de 1945 após circular em versões copiadas por amigos, é talvez o exemplo mais óbvio dessa inadequação.229 Poesia sobretudo participante, os versos não apresentam a súmula de preocupação social, inquietação individual e trabalho expressivo que caracterizaria a escrita drummondiana dos anos 1940. Outros poemas também ficariam excluídos do denso universo poético que celebrizou o autor. Reservado para os periódicos e mais tarde para o livro composto pelo diário do escritor, “Poema da anistia” (op. cit., p. 980229

O poema está transcrito nos anexos. 162

981) é mais um texto a imolar a forma em favor da comunicação ampla com os leitores. Nesses conjuntos de versos, podemos reconhecer a espera registrada neste trecho de “A flor e a náusea”: “O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.” “Ainda” o poeta se engaja na construção de uma sociedade mais justa, em um procedimento oposto ao da destruição do mundo, explicitada como princípio poético na parte final de “Nosso tempo”: O poeta declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas promete ajudar a destruí-lo como uma pedreira, uma floresta um verme.

Diferentemente dos versos “construtivos” de “Depois que Barcelona cair” ou “Poema da anistia”, a potente poesia participativa drummondiana profana a linguagem. Daí decorre sua capacidade destrutiva: ao corroer os estereótipos sedimentados na sintaxe ou na semântica corrente, o poema pode liberar o sistema de signos para novos usos. Ou, na bela proposição de Barthes: “instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas” (2001, p. 29). Porém, a ruptura não é permanente. O “mundo capitalista”, que o sujeito poético quer abalar, recompõe-se, assim como a língua captura os novos usos em seu código. Em tal contexto, de acordo com Agamben, aquilo que se dissociou de um fim utilitário passa a expor apenas o próprio vazio ou a dizer o próprio nada. Dessa forma, a capacidade de profanar fica ameaçada, segundo o filósofo: Na sua fase extrema, o capitalismo não é senão um gigantesco dispositivo de captura dos meios puros, ou seja, dos comportamentos profanatórios. Os meios puros, que representam a desativação e a ruptura de qualquer separação, acabam por sua vez sendo separados em uma esfera especial. (op. cit., p. 76)

Tal dispositivo foi por vezes inscrito na montagem das obras drummondianas. A fé no poder dissolvente das palavras, exposta em diversos poemas dos anos 1940, conviveu com as hesitações a respeito da transformação social por meio da poesia. A título de exemplo, comparem-se “Edifício São Borja” e “O mito”, sequentes em A rosa 163

do povo. Após a enumeração, predominantemente caótica, de imagens brutais – corpos “esqueléticos”, “caminho do suicídio”, “caos”, “peste” –, o primeiro texto se encerra com a constituição eufórica de uma comunidade triunfante sobre a violência: “estamos todos presentes/ felizes calados/ completos/ São Borja”. Esse novo tempo é alcançado graças ao poder destruidor da linguagem: “palavras de muita força/ embalsamadas/ explodindo na alva/ futuras verdades ainda sangrentas”. Após a apresentação de tal vitória da claridade sobre a escuridão histórica, “O mito” reintroduz não obstante a mercantilização entre os homens e a intromissão dela no desejo. A redenção social, alcançada ao fim do texto anterior, não se mostra definitiva. É preciso recompor a cena de resistência às falácias do mundo moderno de modo a alcançar a abolição da “cidade/ já sem peso e nitidez” e a instalação de “nossos irmãos vingados” em um “mundo sem classe e imposto”. Todavia, também essa construção é fruto do trabalho de um “poeta precário”. O próprio título do poema pode remeter, portanto, não apenas à altiva musa, mas também ironizar a quimera subjacente aos planos de desmantelamento do imaginário capitalista por meio da poesia. A profanação não se afirma onipotente. Talvez por isso seja contígua de seu reverso, também questionado:230 os versos fluidos, de comunicação mais direta com a sociedade civil.231 Sacrificando sua escrita em favor da comunhão com o público, o autor escreve um novo capítulo da crise da literatura

230

As críticas à qualidade de um dos poemas mencionados são registradas pelo próprio Carlos Drummond de Andrade na parcela publicada de seu diário: “O poema da anistia apareceu simultaneamente no Correio da Manhã, no Diário Carioca, e em O Jornal (iniciativa da campanha pela decretação da medida). João Cabral comenta que onde está ‘anistia’ ficaria bem ‘melhoral’ ou ‘aspirina’.” (op. cit., p. 982) Essas concessões, feitas em nome da comunicação com o público amplo e questionadas no interior da própria obra drummondiana, chegaram a ser apontadas como seu traço central por Flora Süssekind: “É como se o poeta enfatizasse, nesses trechos, a sua trilha preferencial – de poeta-cronista –, num momento em que parecia caber à figura do poeta-crítico a função de personagem-chave da poesia moderna. É como se Drummond, em meio ao trabalho sistemático com parte dos recursos dessa poesia, com o circunstancial, o fato e os efeitos de prosa, se visse obrigado a olhar sempre com certa desconfiança os volteios autorreflexivos da literatura e da crítica contemporâneas, descartando-os em prol de uma maior cumplicidade com o leitor. E, nesse sentido, o seu trabalho como cronista de jornal foi uma peça fundamental na formação desse pacto de não estranhamento, de um modo de ver as coisas, o cotidiano, semelhante ao de qualquer leitor potencial do Diário de Minas, da Tribuna Popular, de A Manhã, do Correio da Manhã ou do Jornal do Brasil, jornais em que trabalhou regularmente desde os anos 20 até 1984 quando abandonou o ofício de cronista.” (2003, p. 281-282) Embora seja inegável a face cronista do poeta Carlos Drummond, não podemos recusar-lhe o título de poeta-crítico. É provável que, justo por sua lucidez, o autor tenha contraposto o factual ao autorreferencial de forma tão aguda. 231 Expandimos aqui a leitura desenvolvida por Iumna Simon em Drummond: uma poética do risco, avançando também para os poemas não publicados em livro. A pesquisadora propõe haver em A rosa do povo o convívio entre a “poesia do risco”, fundada nos perigos da busca da comunicação, e a “poesia da procura”, em que a crítica social se estabelece por meio dos ataques à própria linguagem. A consciência dos perigos do canto transitivo por Carlos Drummond fica comprovada pela recusa à publicação de alguns textos nos volumes editados no período. 164

moderna. Vítima e algoz de seu tempo,232 a “poesia pobre” expõe a chaga aberta pelo “tempo pobre”. De tal fusão decorre a fecundidade da escrita de Carlos Drummond de Andrade. Consciente da crise de que surge e que ajuda a construir, essa poesia estendeu suas inquietações para o contexto de sua publicação: testemunha de importantes acontecimentos artísticos e sociais do século XX, o autor esteve atento às transformações, respondendo a elas de forma muitas vezes irônica. As preocupações contextuais ficam particularmente claras na prosa de Carlos Drummond acerca da lírica erótica. No ensaio já citado, “Maria Isabel: canto amoroso”, o escritor afirma: “Os poetas se iludem como os outros homens, e este livro de Maria Isabel é fruto de generosa ilusão. Ela antecipou a hora da canção feliz” (op. cit., p. 133). Para o poeta mineiro, as circunstâncias sociais impedem a expansão do sentido coletivo subjacente à comunhão pelo amor. O senso de inadequação entre o canto radioso e os tempos sombrios persistiu por décadas. Nova carta de Drummond a Abgar Renault confirma esse pessimismo: Já ia escrever-lhe reclamando o poema do rapaz,233 mencionado em seu último cartão, quando ele me chegou em outro envelope. Gostei da coisa, simples e marcante, mas acho um pouco difícil que alguma revista o publique. Primeiro, porque praticamente não existem mais revistas literárias neste Brasil já tão desenvolvido em petróleo, automóveis e biquínis. Depois, porque uma ou outra publicação que circula por aí, com algum espaço reservado à poesia, continua observando aqueles mesmos critérios morais estritos de antes da era espacial e que são hoje uma forma final de hipocrisia impressa. 234

O texto, datado de 28 de março de 1966, atesta a permanência do ceticismo em relação a leituras poéticas não moralistas. As hesitações registradas em prosa a respeito do erotismo indiciam a especificidade do discurso amoroso no interior da poesia 232

Todas as considerações tecidas neste capítulo acerca do dispositivo sacrificial na obra de Carlos Drummond de Andrade devem muito à leitura de Poesia e crise, de Marcos Siscar. Especialmente no ensaio “Responda, cadáver!”, o crítico resume a importância do sacrifício na poesia moderna. Em suas palavras: “[...] o discurso da crise se realiza, na poesia moderna, graças não apenas a um tema, mas a um dispositivo central, nomeado, figurado e experimentado como sacrificial. Consiste em entregar a própria cabeça, em reconhecer-se como vítima, transformar-se em vítima e, assim, em termos de constituição textual e discursiva, em fazer-se vítima.” (op. cit., p. 43) 233 Infelizmente, não pudemos identificar o poeta citado na carta de Carlos Drummond de Andrade. O texto não está preservado no acervo do escritor. Tampouco há indicações na correspondência enviada por Abgar Renault. 234 Documento pertencente ao Arquivo Abgar Renault, preservado pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, da Fundação Casa de Rui Barbosa. 165

drummondiana, pouco afeita aos acordos ou à submissão ao senso comum. A obra, que imprimiu o desconcerto do mundo através de uma linguagem gauche, celebrizou-se por versos que causaram escândalo, como os de “No meio do caminho”. Ao longo de décadas, o autor não receou macular seu nome com textos transgressores. Apesar disso, Carlos Drummond viu na inadequação ao contexto uma das fraquezas da poesia sobre o amor. A discordância de versos felizes em relação aos problemas de seu tempo estaria ameaçada em um tempo que massifica as diferenças,235 as obras distintas, cindindo os homens? Circunstâncias pouco apropriadas ameaçariam enfraquecer a força subversiva da literatura erótica e do canto amoroso? A partir da interação do epistolário com a escrita ensaística de Drummond, podemos responder que o próprio aspecto jubiloso comum em poemas lúbricos arrisca revelar-se inócuo (uma “generosa ilusão”) caso não se coadune com condições sociais favoráveis à leitura da fusão dos corpos como um modo de comunhão. O erotismo também põe em perigo sua dissonância quando igualado a outras obras que diluem o sexo em uma linguagem simplória, conforme defende o escritor: Já me advertiram que a demora em publicar vai importar talvez num futuro próximo, em que os meus poemas já não ofereçam nenhuma curiosidade porque o tema já estará tão batido, já se esgotou tanto essa série de assuntos e a educação sexual de forma errada ou certa se generalizou de tal modo – na escola, na televisão e na casa de família – que o meu livro de poemas correrá o risco de constituir-se em livro de classe para jardim de infância...236

Os poemas eróticos estão condenados ao descompasso. Se publicados em uma sociedade moralista, terão sido precoces – a imagem de um gozo sem reflexo na vida pública. Quando adiados, arriscam submergir em um contexto no qual terão perdido seu poder transgressor. A desconfiança em relação à potência da literatura erótica recompõe, décadas depois, as hesitações de Carlos Drummond de Andrade a respeito do amor em “tempo de homens partidos”. Na poesia drummondiana dos anos 1940, há uma retração na lírica amorosa, pouco propícia à criação de um “mundo grande” por meio da literatura. Nesse período, o amor e o corpo tornam-se alvo da consciência alerta contra a 235

Pensamos esse contexto a partir das reflexões de Adorno e Horkheimer em Dialética do Esclarecimento: “A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas. Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão [...]” (1985, p. 23). 236 Entrevista concedida a Maria Lucia do Pazo Ferreira, op. cit., p. 317. 166

“subjetividade tirânica”, para retomar a expressão de Antonio Candido (op. cit., p. 68). Em Sentimento do mundo, aquele afeto é rejeitado porque inócuo para a construção da “vida futura”: “Tempo em que não se diz mais: meu amor./ Porque o amor resultou inútil.”, lemos em “Os ombros suportam o mundo”. A recusa é reafirmada em “A noite dissolve os homens”: “E o amor não abre caminho/ na noite. [...]”. Não obstante, o conteúdo rejeitado – subjetividade e corpo insistentes – retornam em versos dedicados a temáticas diversas. No poema que dá título ao livro de 1940, a comunicação se estabelece por meio do sexo: “e o corpo transige/ na confluência do amor”. Em “O lutador”, de José, a luta com as palavras é descrita em termos próprios da conquista amorosa. Além disso, a corrosão do amor é um sintoma da negatividade do tempo “de homens partidos”. Quando o amor, a carne, o beijo não têm importância, também o cântico se torna indiferente.237 A despeito da irônica descrença no poder da poesia, o poeta segue produzindo. A literatura torna-se então um dos meios de criar o tempo em que o amor sairá dos subterrâneos.238 Não sem conflitos. Há um ambivalente adensamento dos laços entre o eu e o mundo: tal conquista favorece a confiança na poesia, embora frequentemente minada pela dúvida; por sua vez, expõe as cadeias de que o sujeito gostaria em vão de se libertar. De um lado, ele pode gritar “sempre/ que abafe um prazer”;239 de outro, deve suportar, como os outros homens, o tempo “de cortinas pardas”, em que a política e o comércio invadem o gozo.240 Essa fusão crescente acaba por resultar, segundo Gledson,241 na poesia dos anos 1950, quando a hipótese da separação entre o eu e o mundo perde valor. Também a fé 237

Parafraseamos versos de “Canção de berço” (SM, op. cit., p. 75-76): “Mas também a carne não tem importância./ E doer, gozar, o próprio cântico afinal é indiferente.” 238 Remetemos a “Congresso Internacional do Medo” (SM, op. cit., p. 73): “Provisoriamente não cantaremos o amor,/ que se refugiou abaixo dos subterrâneos.” A manutenção do investimento na palavra em tempos conflituosos é defendida por John Gledson, em seu belo estudo sobre a poesia de Carlos Drummond: “Nada tem um sentido final, ‘esta vida não presta’. Esta ‘opacidade’ da experiência (servindo-nos do termo de Luís Costa Lima), a sua tendência a levar-nos para um beco-sem-saída, está vigente aqui como em toda a poesia de Drummond; só que aqui é o fundo negro contra o qual a riqueza e a variedade da experiência se destacam. Unimo-nos totalmente só na morte, mas podemos por enquanto ‘evitar a morte’ pelas ‘palavras, intuições e símbolos’ que também unem a humanidade, mostrando-nos a nossa natureza comum.” (op. cit., p. 117) 239 Citamos versos de “Idade madura” (RP). 240 Retomamos estes versos da quarta parte de “Nosso tempo” (RP): “É tempo de cortinas pardas,/ de céu neutro, política/ na maçã, no santo, no gozo,/ amor e desamor, cólera/ branda, gim com água tônica,/ olhos pintados, dentes de vidro,/ grotesca língua torcida./ A isso chamamos: balanço.” 241 Nas palavras do crítico: “Com efeito, as diferenças mais importantes entre as três coletâneas que vamos descrever encontram-se na fusão crescente do eu e do mundo, fusão que chega a um momento crítico em A rosa do povo e que resulta na poesia muito diferente de Claro enigma, onde já não existe mais a hipótese do eu independente. Mas, por precária que ela seja, é esta hipótese que é o núcleo estrutural destes poemas.” (ibidem, p. 115) 167

na palavra está minada a partir de então. A literatura já não se afirma um meio para difundir a solidariedade entre os homens. O sentimento amoroso, por sua vez, é registrado agora em clave distinta da que valorizava sobretudo sua face social, fraterna. Por isso, o vulto assumido pela lírica amorosa pode ser compreendido como uma manifestação da virada subjetivante ocorrida na poesia do período. Vagner Camilo (op. cit.) expôs brilhantemente as articulações entre tal transformação e o contexto político de meados do século XX. O pesquisador demonstrou como a frustração do projeto participante dos anos 1940 é indissociável do radicalismo ideológico do pós-guerra, que levou ao afastamento por Carlos Drummond dos preceitos comunistas. O poeta deixou diversas marcas do sofrimento advindo de sua aproximação ao Partido Comunista Brasileiro, em 1945. As mais contundentes estão publicadas nos trechos de seu diário preservados em livro: O observador no escritório. Os registros traçam a história de um incômodo anterior à decepção com o PCB. Entre o anseio por liberdade e o desejo de participação, o intelectual titubeia: Meditação entre quatro paredes: Sou um animal político ou apenas gostaria de ser? Esses anos todos alimentando o que julgava ideias políticas socialistas e eis que se abre o ensejo para defendê-las. Estou preparado? Posso entrar na militância sem me engajar num partido? Minha suspeita é que o partido, como forma obrigatória de engajamento, anula a liberdade de movimentos, a faculdade que tem o espírito de guiar-se por si mesmo e estabelecer ressalvas à orientação partidária. Nunca pertencerei a um partido, isto eu já decidi. Resta o problema da ação política em bases individualistas, como pretende a minha natureza. Há uma contradição insolúvel entre minhas ideias ou o que suponho minhas ideias, e talvez sejam apenas utopias consoladoras, e minha inaptidão para o sacrifício do ser particular, crítico e sensível, em proveito de uma verdade geral, impessoal, às vezes dura, senão impiedosa. Não quero ser um energúmeno, um sectário, um passional ou um frio domesticado, conduzido por palavras de ordem. Como posso convencer a outros, se não me convenço a mim mesmo? Se a inexorabilidade, a malícia, a crueza, o oportunismo da ação política me desagradam, e eu, no fundo, quero ser um intelectual político sem experimentar as impurezas da ação política? (op. cit., p. 983)

Um abismo separa o ser particular e a impessoalidade do partido. As verdades partidárias revelam-se a Drummond impiedosas. Os homens no interior do coletivo, sectários e domesticados. Contudo, a participação continua a ser um horizonte irrecusável em 1945. O intelectual e sua poesia devem interpretar os acontecimentos das ruas, em um exercício de fragmentação e diluição: 168

Um leopardo vai de roxo claro pela rua. É um navio, uma estátua, um coração perverso, um espectro, um sorriso breve, são muitas coisas desencontradas e súbitas, que cabe à poesia interpretar, desmontar, diluir. Um leopardo sem memória, talvez um pouco ridículo, em todo caso único, e um carro o transporta, e que fazes tu, pequeno-burguês resignado, surdo às vozes da cidade, à voz das eleições de dezembro, a todas as vozes senão a que desejaria sair de ti, e não sai, e se estrangula e muda permanece na impenetrável recordação? (idem, p. 998)

Redigido em segunda pessoa, o trecho cinde o sujeito no auto acusatório. Em outubro de 1945, Carlos Drummond ainda está partido pela culpa decorrente da não comunhão com as ruas. As decisões do PCB tornariam peremptória a recusa de tal conjunção por vias partidárias. O apoio de Prestes a Getúlio Vargas, associado ao sectarismo dos dirigentes, suscitou o rompimento mantido até o fim da vida do intelectual. Contra os partidos, após um longo período de descrença generalizada, o escritor elegerá o sentimento amoroso, dissociado da “teia de problemas” que o caracterizara até o princípio dos anos 1960: Meu partido está tomado. Não da Arena nem do MDB, sou desse partido congregacional e superior às classificações de emergência, que encontra na banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução. Ele não obedece a cálculos da conveniência momentânea, não admite cassações nem acomodações para evitá-las, e principalmente não é um partido, mas o desejo, a vontade de compreender pelo amor, e de amar pela compreensão.

A crônica, publicada a 10 de outubro de 1966 no Correio da manhã, explicita a possibilidade de o afeto redimir um contexto político desolador. O texto foi motivado pela famosa canção de Chico Buarque “A banda”, cuja letra, nas mãos do cronista, tornou-se o estímulo para reflexões a respeito da importância do amor contra o “pó no ar, a falta de ar” durante o novo regime ditatorial. O conjunto de músicos destoa do seu tempo, pois “não vem entoando marchas militares, nem a festejar com uma pirâmide de camélias e discursos as conquistas da violência”. Tradicional, ele recua dos eventos do presente, como deixa claro a remissão à “receita do sábio Anacleto de Medeiros”, maestro que organizou em fins do século XIX a importante banda do Corpo de Bombeiros. A referência anuncia uma inversão da hierarquia brutal do governo militar graças à música: essa outra estrutura militarizada serve para a comunhão por meio do 169

afeto e não da agressividade. Se os grandes movimentos totalitários do século XX conclamaram as massas para a barbárie, o escritor volta-se para uma massificação que, em seus termos, “corrige” a desumanização reinante. Participar da massa confunde-se aqui com render-se à lição, transmitida pela banda, de compreensão entre os homens. Carlos Drummond de Andrade investiu publicamente, portanto, no viés socializante do amor. Afrontando um mundo de “conveniências momentâneas”, esse afeto recusa o cálculo, pois se funda na consonância. Além disso, definindo um grupo – um bando ou uma banda –, o amor expõe a estrutura de banimento ou de exclusão que compõe o corpo político:242 põe lado a lado toda a cidade, “os que têm a responsabilidade de mandar e os que são mandados”. No entanto, a comunhão pelo amor só pode ocorrer quando o partido está tomado: o partido do abandono do partido. O afeto reúne a todos desde que sejam banidos, mesmo momentaneamente, o absurdo e o mal decorrentes das vias partidárias de então. O autor investia no sentimento um poder de transformação em que confiaria até o fim de sua vida. Talvez, por isso, o amor se tornaria mais frequente em seus últimos livros, conforme Drummond explicitou em entrevista de 1985: Antes eu tinha uma espécie de medo, era encabulado, provinciano, coisa de pessoa muito tímida que eu sou até hoje. É como se eu achasse que o amor devia ser uma coisa muito íntima, muito secreta. Hoje, ao contrário, a salvação da vida é o amor. Se a gente não levar a todo mundo uma mensagem de amor, alertando para a necessidade das pessoas cultivarem o sentimento amoroso, não só na escala individual, mas para a humanidade, eu acho realmente que o mundo vai piorar muito, vai acabar se destruindo. Eu falo num amor que atinja a tudo: à beleza da vida, aos animais, que são uma parte da natureza inteiramente entregue à boa ou má vontade dos homens.243

A poesia dos últimos livros participava da tarefa de “levar a todo mundo uma mensagem de amor”, compreendido como uma força de união entre os homens. Há um esforço construtivo nesse projeto, em que – como em alguns versos inéditos dos anos 242

Guio-me pelas reflexões de Agamben em Homo sacer. A respeito do banimento (“bando” em italiano), ele afirma: “Retomando uma sugestão de Jean-Luc Nancy, chamemos bando (do antigo termo germânico que designa tanto a exclusão da comunidade quanto o comando e a insígnia do soberano) a esta potência (no sentido próprio da dynamis aristotélica, que é sernpre também dynamis me energeîn, potência de não passar ao ato) da lei de manter-se na própria privação, de aplicar-se desaplicando-se.” (2004a, p. 35-36) A reflexão do filósofo é muito mais ampla do que a aqui iniciada, pois se estende ao paradoxo do soberano, que está ao mesmo tempo dentro (a ele cabe decidir se a constituição deve ser suspensa) e fora da lei (ele suspende a validade do ordenamento). Importa-nos retomar essa estrutura de exclusão do banido e de composição da norma sintetizada no termo “bando” e em seu cognato “banda”. 243 Fala o poeta. Leia, op. cit. 170

1940 – a densidade poética por vezes se subordina aos anseios de comunicação.244 Embora seja inseparável do mesmo contexto de decepção com as lutas políticas, o erotismo drummondiano – parece-nos – investe em outra via, corrosiva, de relação com a sociedade. Ainda que a comunhão dos corpos possa ser compreendida como uma manifestação do desejo de acordo entre os homens,245 diferentemente do amor, a efêmera união sexual não transforma o mundo, mas o elide temporariamente. Mesmo quando se pereniza na memória do corpo, a alegria individual se fecha ao entorno. Não há “salvação da vida” pelo erotismo.246 Levando adiante as dúvidas de Carlos Drummond acerca da participação política, a coletânea fixa-se no momento em que a carícia sintetiza o avesso da escuridão histórica. Reencontramos aqui a verdade exposta nas epígrafes do livro póstumo: “sobre os escombros do mundo”, os versos eróticos podem traçar o negativo de uma sociedade avessa à conjunção. Muitos anos antes, em chave bastante casta, o autor explicitara tal possibilidade na poética participante de “Consideração do poema” (RP): Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas. O beijo ainda é um sinal, perdido embora, da ausência de comércio, boiando em tempos sujos.

244

Essa perda da força poética se confirmaria sobretudo em alguns poemas de Amar se aprende amando. Todavia, a qualidade dos livros dos anos 1980 supera quase sempre a simplicidade dos termos anunciados na declaração do poeta à imprensa. 245 A esse respeito, é significativo haver o poeta sublinhado este trecho de O erotismo, de Bataille, remetido à pesquisadora Maria Lucia do Pazo Ferreira: “El amor y la literatura coinciden en la búsqueda apasionada – casi siempre desesperada – de comunicación. Rechazamos la esencial soledad de nuestro ser y nos precipitamos caudalosamente hacia los otros seres humanos por medio de la creación e del deseo. Los cuerpos ayuntados son himno, poema, palabra. El poema es acto erótico.” Documento preservado pela Biblioteca Nacional. 246 Com tal postura, o escritor volta a se afastar de concepções vigentes à época e depois. Basta pensarmos nas expectativas utópicas de Giddens ou Marcuse em relação à liberdade sexual. O primeiro afirma: “A transformação da intimidade poderia ser uma influência subversiva sobre as instituições modernas como um todo. Um mundo social em que a realização emocional substituísse a maximização do crescimento econômico seria muito diferente daquele que conhecemos hoje. As mudanças que atualmente afetam a sexualidade são, na verdade, revolucionárias e muito profundas.” (1993, p. 11) O segundo, a partir de fundamentação teórica bastante distinta, propõe igualmente a possibilidade de uma sociedade não repressiva: “Neste estágio da nossa interpretação, em vez de tentarmos reconciliar os dois aspectos contraditórios da sexualidade, sugerimos que eles refletem a íntima tensão irreconciliada na teoria de Freud: contra a sua noção do inevitável conflito ‘biológico’ entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, entre sexualidade e civilização, milita a ideia do poder unificador e gratificador de Eros, acorrentado e corroído numa civilização doente. Essa ideia implicaria que o Eros livre não impede duradouras relações sociais civilizadas que repele, apenas, a organização supra-repressiva das relações sociais, sob um princípio que é a negação do princípio de prazer.” (2010, p. 57) 171

Apesar de fugidio, um sinal perdido, o beijo podia propiciar a experiência fugaz de tempos menos nebulosos. A poesia, atravessada pelo povo, investia então em perenizar esse momento, ajudando a corroer um mundo regido pelo comércio. Após os anos 1940 e até o fim de sua vida, Drummond porá em dúvida o projeto de conjunção da escrita com o povo. Não obstante, a força de corrosão de seus versos continuaria a se manifestar. O mesmo pode ser afirmado, acreditamos, sobre O amor natural. Nesse livro, como em quase toda a obra do poeta, o vigor não advém tanto do tema, de que Carlos Drummond afasta qualquer utopia: o sexo é uma ilha localizada no corpo em vez de uma angra aberta ao mundo. A força do erotismo reside sobretudo na escrita, na linguagem. Esse poder é diverso daquele oriundo da cristalização das contradições sociais: os versos não lavram agora os obstáculos, mas expõem, na multiplicidade das formas e no que “aparece harmônico e não fraturado”,247 a recusa à uniformidade e à falsa alegria do idioma rendido ao comércio generalizado. Um poder em risco, como vimos. Sem inscrever os óbices enfrentados fora da cena erótica, grande parte da escrita obscena de Carlos Drummond de Andrade tem seu efeito transgressor constantemente ameaçado pelas agruras do tempo: o canto feliz não teria ressonância enquanto a repressão fosse “imperatriz”; poderia, por sua vez, ser assimilado à mercantilização da linguagem sobre o corpo depois que a liberação dos costumes foi vitoriosa. O perigo, parece-nos, não se confirmou inteiramente quando os versos vieram à luz. Em muitos poemas, as palavras em festa continuam a se distanciar do empobrecimento da linguagem em nosso mundo. O beijo pode ser ainda um sinal perdido em tempos sujos. 3.2 SOMENTE A ROSA CRISPADA Na maioria dos poemas de O amor natural, o mundo é um objeto ausente. Contudo, como sugerimos acima, mesmo na ausência das representações sociais, Carlos Drummond de Andrade leva adiante a inscrição social de sua poesia, o gozo sendo alcançado contra o desolamento social insuperável. Essa hipótese parece confirmada pela leitura de dois poemas eróticos que apontam de diferentes formas para os conflitos públicos: “Era manhã de setembro” e “O que o Bairro Peixoto”. Neste, a cidade moderna e desumana macula o gozo, apagando a permanência do prazer por meio da memória, que constitui aspecto fundamental do sexo em diversos textos do livro. 247

Retomamos expressão de Adorno citada acima. 172

Naquele, o mundo irrompe no momento mesmo em que é negado. As “razões da recusa” da objetividade histórica, evidente na maioria dos poemas da coletânea, mostram-se amplas: fora do gozo sexual, vige a penosa existência cotidiana. Já não estamos diante apenas da rejeição aos antagonismos sociais por meio da escrita do júbilo: a oposição entre o refúgio no prazer e o mal-estar coletivo torna-se tema dos versos. Por isso, os textos são preciosos para levarmos adiante as reflexões acerca da escrita social no erotismo. Partimos da análise de “Era manhã de setembro”, segundo poema de O amor natural. Nele, a “rosa do povo” cede espaço à “rosa crispada” do corpo. É preciso compreender se essa reversão permite grafar o “sentimento do mundo” ainda no livro póstumo. ERA MANHÃ DE SETEMBRO Era manhã de setembro e ela me beijava o membro Aviões e nuvens passavam coros negros rebramiam ela me beijava o membro O meu tempo de menino o meu tempo ainda futuro cruzados floriam junto Ela me beijava o membro Um passarinho cantava, bem dentro da árvore, dentro da terra, de mim, da morte Morte e primavera em rama disputavam-se a água clara água que dobrava a sede Ela me beijando o membro Tudo o que eu tivera sido quanto me fora defeso já não formava sentido Somente a rosa crispada o talo ardente, uma flama aquele êxtase na grama 173

Ela a me beijar o membro Dos beijos era o mais casto na pureza despojada que é própria das coisas dadas Nem era preito de escrava enrodilhada na sombra mas presente de rainha tornando-se coisa minha circulando-me no sangue e doce e lento e erradio como beijava uma santa no mais divino transporte e num solene arrepio beijava beijava o membro Pensando nos outros homens eu tinha pena de todos aprisionados no mundo Meu império se estendia por toda a praia deserta e a cada sentido alerta Ela me beijava o membro O capítulo do ser o mistério de existir o desencontro de amar eram tudo ondas caladas morrendo num cais longínquo e uma cidade se erguia radiante de pedrarias e de ódios apaziguados e o espasmo vinha na brisa para consigo furtar-me se antes não me desfolhava como um cabelo se alisa e me tornava disperso todo em círculos concêntricos na fumaça do universo Beijava o membro beijava e se morria beijando a renascer em setembro 174

Os versos iniciais de “Era manhã de setembro” apresentam os componentes fundamentais da cena erótica: a felação, reiterada ao longo do poema em um refrão com variantes, e o tempo primaveril e diurno, cujas características serão desenvolvidas em diversas imagens florais e solares. A rima e o segundo verso, monossílabo, explicitam a conexão entre o tempo do sexo e a ação, expostos em redondilhas maiores. A manhã, símbolo tradicional da plenitude subjetiva e social, teve grande produtividade na obra de Carlos Drummond de Andrade. Em “A noite dissolve os homens”, de Sentimento do mundo, a aurora rompe a escuridão, imagem da disforia comum às sociedades e aos homens. Em “Morte do leiteiro”, de A rosa do povo, a “noite geral” se dissolve pela fusão do leite ao sangue do homem sacrificado em nome da propriedade privada. O assassinato transforma-se na imolação que faz surgir a aurora no poema. A manhã é ainda prenunciada, pois a obscuridade social afasta sua presença plena nos versos drummondianos. Em fins dos anos 1940, em “Canto esponjoso”, de Novos poemas, a manhã assume outro valor simbólico: figura o mais intenso êxtase de um sujeito integrado na natureza: “Bela/ esta manhã sem carência de mito,/ e mel sorvido sem blasfêmia.” Contra a escuridão dominante, avança a face solar da poesia drummondiana, que pode finalmente abandonar o anseio do mito, reiterado ao mesmo tempo em que corroído pela acurada e irônica observação da história por Carlos Drummond. Em “Canto esponjoso”, a inatingível plenitude mítica, tantas vezes projetada em uma transcendência que se sabe desde sempre falaciosa, é substituída pela conjunção extática com a matéria. O poema delineia, assim, uma relação com a natureza distinta do terror, fulcro da sacralidade mítica e também do positivismo da ciência moderna, segundo Adorno e Horkheimer.248 O “emaranhado da natureza em face do elemento individual”, para retomarmos a expressão dos dois filósofos (op. cit., p. 29), é vivenciado no poema de forma receptiva e expansiva. Essas duas forças – dissolução antiapolínea e preservação formal – subsistem sem confronto, já que a fusão do eu na natureza constitui um processo que ilumina as “formas constituídas”. Também o sujeito resiste quando de sua passagem ao corpo do mundo, pois mantém sua vontade, como

248

Em seu livro já citado, os filósofos defendem a permanência da angústia mítica no seio do pensamento esclarecido. Aquela suscita a explicação da natureza por meio da animização do mundo. Este, também devido ao terror do desconhecido, tenta tudo explicar por meio de um pensamento ordenador e unificador, cujos critérios numéricos igualam o inanimado ao mundo animado. Nos termos dos autores: “O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica. A pura imanência do positivismo, seu derradeiro produto, nada mais é do que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do ‘fora’ é a verdadeira fonte da angústia...” (op. cit., p. 29) 175

lemos nos últimos versos: “Vontade de cantar. Mas tão absoluta/ que me calo, repleto.” Tal individuação não elimina as forças dissolventes: o desejo absolutiza-se, ultrapassando o sujeito e ameaçando sua integridade. Essa nova manifestação da perda dos limites é mais uma vez expressa de forma extática: o oposto dos desígnios subjetivos – silêncio ao invés do canto – torna-se uma realização plena do eu. O silenciamento permite, portanto, a manutenção das formas – sujeito, valvas ou “curvos pensamentos” – em meio à dissolução. No poema seguinte ao “Canto esponjoso”, “Composição”, o leitor descobre o problema envolvido nas forças exclusivamente decomponentes: o “pó das demolições de tudo” “atravanca o disforme país futuro”. A escrita drummondiana não se fixa, pois, em uma poética do disforme ou em uma escrita das formas perfeitas. A manhã não se tinge de apenas uma cor. O convívio de dissolução e individuação também movem “Era manhã de setembro”. O cotejamento entre a segunda e a terceira estrofes, aparentemente desconexas, dá a ver tal contraponto. Na terceira, acompanhamos a diluição do tempo vivida por um sujeito em êxtase. Na segunda, descobrimos quais elementos mantêm-se íntegros durante o ato sexual: aqueles exteriores à cena íntima – tecnologia, natureza e homens, representados por meio das figuras do avião, das nuvens e do coro. Sua persistência obscurece a manhã sobretudo devido à presença dos coros negros, índice de que fora da cena sexual os homens são submetidos ao conflito trágico. O coral, parte principal do drama grego em seus primórdios, manteve relevante função na tragédia clássica. Elemento discursivo além de musical, ao coro competia unir os episódios e especialmente expressar juízos ou criticar valores morais e sociais, como porta-voz da opinião pública. Surdo aos bramidos do coro, o eu poético de “Era manhã de setembro” afasta a comunidade que poderia confrontar sua desmedida. Desse modo, leva adiante o arruinamento da “inteligência trágica”, a qual marcara a singularidade do poeta em nossa história literária, conforme vimos no capítulo anterior. Vai se tornando cada vez mais claro que o risco reconhecido pelo escritor em suas declarações acerca dos versos obscenos não advinha somente do pudor. Avançava sobre a novidade trazida pelos textos de O amor natural para a obra reconhecida por sua força literária. Sobre o legado do autor, portanto. A recusa ao universo trágico em “Era manhã de setembro” abala dois alicerces da obra legada por Carlos Drummond de Andrade: o conflito do individualismo com o anti-individualismo e a complexa relação entre a poesia drummondiana e o espaço 176

público. Partamos da análise deste último aspecto. Desde seu florescimento, a tragédia sustentou íntima relação com o pensamento social, segundo Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet em Mito e tragédia na Grécia Antiga. Levando adiante as lições de Louis Gernet, os dois helenistas demonstraram como os conflitos dramatizados na tragédia grega recompunham as tensões entre o passado lendário e o pensamento jurídico, em processo de elaboração. Esse confronto incidia sobretudo na distinção, não só poética como também política, entre o herói trágico e o coro, alijado da cena erótica rememorada em “Era manhã de setembro”: de um lado, o coro, personagem coletiva e anônima encarnada por um colégio oficial de cidadãos cujo papel é exprimir em seus temores, em suas esperanças, em suas interrogações e julgamentos, os sentimentos dos espectadores que compõem a comunidade cívica; de outro lado, vivida por um ator profissional, a personagem individualizada cuja ação constitui o centro do drama e que tem a figura de um herói de uma outra época, sempre mais ou menos estranho à condição comum do cidadão. (op. cit., p. 12-13)

Obviamente o contexto social excluído do cenário íntimo não pode ser idêntico ao analisado pelos historiadores. Apesar disso, o poema mimetiza a oposição trágica entre a comunidade e o herói, estranho aos homens “aprisionados no mundo”. Mas a reprodução se interrompe aí. O eu poético nega um diálogo que teria como fruto o reconhecimento de sua hybris, isto é, da hipertrofia de sua particularidade em detrimento da ordem geral. O eu se reafirma a cada estrofe. Avultam os pronomes de primeira pessoa. Além disso, o outro jamais afronta o sujeito, a amante chegando mesmo a ser apropriada pelo eu graças ao sexo: Nem era preito de escrava enrodilhada na sombra mas presente de rainha tornando-se coisa minha circulando-me no sangue e doce e lento e erradio

A rainha, imagem complementar à do imperador, assume o trono no momento em que propicia o gozo ao homem. Submetendo todas as vozes mencionadas no poema, o eu evita um confronto que poderia levar ao reconhecimento trágico de sua desmedida. Sem isso, não há a expiação da culpa e a consequente reconciliação da ordem pública 177

abalada pelo descomedimento.249 Não há mais culpa: os “dedos sujos” dos anos 1940 finalmente se curaram de sua degradação. Tampouco deseja-se reconciliar a ordem: em vez de se imolar em nome de uma sociedade mais justa, o eu goza a nova cidade, “radiante de pedrarias/ e de ódios apaziguados”, reservada para o amante. O sacrifício do sujeito, lido em poemas como “Movimento da espada” (RP), foi abandonado. A interrupção do dispositivo trágico altera radicalmente a dialética entre o particular e o geral, além disso. A unidade do mundo, antes força de atração e dissolução da integridade do eu, fica subjugada pela multiplicidade das sensações. Enquanto em um poema como “Canto esponjoso”, a dissolução decorria da fusão do individual na natureza, em “Era manhã de setembro” a natureza concentra-se no corpo do amante: Um passarinho cantava, bem dentro da árvore, dentro da terra, de mim, da morte

Também a morte, pela primeira vez mencionada no poema, assume aspecto distinto daquele decorrente da “inteligência trágica” drummondiana. Na tragédia, o conhecimento – ou o reconhecimento da desmedida pessoal – advinha de um doloroso processo de recomposição da ordem cósmica às expensas do padecimento do herói. Em Drummond, esse sofrimento se relaciona à lei inflexível de dissolução no tempo, que confirma a submissão dos homens e de suas construções às leis naturais, como lemos nos versos tocantes de “Morte das casas de Ouro Preto” (CE): Não basta ver morte de homem para conhecê-la bem. Mil outras brotam em nós, à nossa roda, no chão. A morte baixou dos ermos, gavião molhado. Seu bico vai lavrando o paredão e dissolvendo a cidade. Sobre a ponte, sobre a pedra, sobre a cambraia de Nize, 249

Mais uma vez recorremos a Gerd Bornheim. Em seu ensaio já citado, o filósofo esclarece a magnitude do erro trágico e a importância de sua expiação para que a ordem seja recomposta. Ele afirma: “Realmente, o erro não pode ser justificado em um prisma puramente subjetivo; ele se mantém, pelo contrário, como objetividade, conseguindo afetar, em consequência, a relação entre deuses e homens, e a própria vida pública.” (idem, p. 75) E acrescenta a seguir: “Herói e sentido da ordem se resolvem, pois, em termos de conflito e reconciliação.” (idem, p. 75). 178

uma colcha de neblina (já não é chuva forte) me conta por que mistério o amor se banha na morte.

Desiludido com o projeto de extrair a “hora mais bela” da “mais triste”,250 em que se engajara nos anos 1940, o autor expande para toda a história humana o destino trágico. Diante da vitória das forças naturais contra o anseio de duração dos homens, o sujeito reconhece os limites de seu conhecimento anterior ao espetáculo da tragédia generalizada. Esse novo saber estende-se para as relações entre o amor e a morte: embora desperte muitas vezes a esperança de transcendência da história por meio do gozo das formas ideais, o amor se mostra aqui submetido à mesma lei de destruição que varre a existência humana.251 Não há escape da tragédia. Em “Era manhã de setembro”, a cronologia impiedosa flexibiliza-se: o tempo é dominado pela primavera do sexo, conforme lemos na terceira estrofe, quando o passado e o futuro “cruzados floriam junto”. A irreversibilidade do tempo, fundamental para a peripécia trágica, foi solapada. O passado pode agora ser abandonado, com sua carga de interditos e de dor: Tudo o que eu tivera sido quanto me fora defeso já não formava sentido

Em outros poemas do livro, a evasão do tempo afirma-se fuga da fatalidade: “E nem restava o mundo, à beira dessa moita orvalhada, nem destino”, diz a conclusão de “A castidade com que abria as coxas”. A irrevogável sorte atava o homem trágico a uma ordem fixada por instâncias indiferentes a seus desígnios: a família, o Estado, os deuses. No sexo, o eu pode experimentar a transgressão desses limites. Por isso, a aniquilação terá valor diverso daquela vivenciada tragicamente: a dispersão atingida com o espasmo é desfrutada nas últimas estrofes. Resistindo à dissolução comandada pela história, o sujeito experimenta uma fusão temporária. É senhor do tempo, que rege por meio de seu corpo: “e se morria beijando/ a renascer em setembro”. 250

Retomamos versos de “Uma hora e mais outra” (RP). Retomo a tese de Mirella Vieira Lima em Confidência mineira. A pesquisadora reconheceu na tensão entre o desejo de transcendência e a desão à história o traço principal da lírica amorosa drummondiana. Em suas palavras: “[...] tentativa de recuperar forma e sentido de uma transcendência improvável, a poesia amorosa de Carlos Drummond de Andrade está firmemente enraizada na contingência histórica” (op. cit., p. 15-16) 179 251

Transitando ao longo de sua lírica amorosa entre o desejo de transcendência e a corrosão do gozo pela história, a escrita de Carlos Drummond de Andrade parece finalmente autorizar a vitória do mito. Até então, o anseio de elevação a uma ordem grandiosa, contraposta à desordem do mundo, fora corroído pela adesão ao presente ou pela concepção trágica do tempo histórico. Assim ocorreu nos poemas que se aproximaram da “praça de convites”, sobretudo nos anos 1940, quando o Encanto “recolhe-se ao livro,/ entre mil palavras/ inertes à espera”.252 A preponderância da objetividade tampouco foi abandonada após o recolhimento do sujeito poético, uma vez que a desconfiança em relação ao gozo evasionista permanece mesmo depois do abandono das “mãos dadas” com os outros homens. “Era manhã de setembro” desinibe o canto extático sobre a dissolução dos limites subjetivos. Pode fazê-lo por tornar mítico o próprio corpo. A primavera dos povos se transferiu para o florescimento do gozo. Por isso, a despeito do registro do espaço público no poema, torna-se fundamental distinguir o “sentimento do mundo” aqui grafado daquele reconhecido em grande parte da obra do autor. Apesar de comparecer nos versos eróticos, a escuridão do espaço público, dos coros negros, está afastada do universo dissolvente do amante. Logo, o mundo mantém-se intacto em sua distância. Também não mais acompanhamos um drama em que a escrita parta de uma subjetividade desde sempre ferida pelos signos sociais. O sujeito poético faz recordar a sociedade fora do cenário intimista, mas se aparta dela de tal modo que pode fechar os olhos para o espaço público e voltar-se para seu próprio prazer: “ela me beijava o membro”. Nesse sentido, delineia-se uma nova forma de relação com o mundo, diversa daquela apontada por Davi Arrigucci Jr. ao analisar a poesia do escritor desde 1930 até 1962: Em termos drummondianos, talvez se possa dizer que o sentimento é a marca que o mundo lavra na alma. A poesia, espécie de mineração, é uma arte de lavrar palavras: inscreve a marca do sentimento numa forma de linguagem. Por isso, ela traz em segredo, feito enigma, como uma cicatriz, algo do sentido do mundo que só sua forma pode conter e, de repente, revelar. (op. cit., p. 17)

Em “Era manhã de setembro”, a cicatriz se expõe em vez de se oferecer como enigma. Os vestígios da ferida social mostram-se no momento de sua elisão, pois o 252

Versos de “Palavras no mar” (Jo). 180

mundo já não será lavrado por meio de um trabalho poético. Processo semelhante é recuperado neste trecho: Pensando nos outros homens eu tinha pena de todos aprisionados no mundo Meu império se estendia por toda a praia deserta e a cada sentido alerta Ela me beijava o membro

O eu poético recorda mais uma vez a lúgubre existência dos homens excluídos da cena erótica. Porém, não se pode associar a eles. O sentimento que lhes dedica foi aquele rejeitado na obra pública dos anos 1940: a pena. “Cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas”,253 o sujeito poético recusava uma identificação debilitadora. Fazia-o não para afastar-se do convívio com os que sofriam. Ao contrário: afirmava como princípio “dar tudo pela presença dos longínquos”, como lemos em um verso do mesmo poema. Não se encarava de forma simplista o processo de presentificar o distante: a possibilidade de comunhão com os homens atingidos pela pobreza era precária, alvo de uma interrogação e de um desejo, conforme perenizou a poesia em prosa de “O operário no mar” (SM). A assincronia entre o passo firme do trabalhador e o hesitante desejo de ação do eu drummondiano impediu-lhe de identificar-se compassivamente a um próximo desditoso, fazendo-o transformar “uma arte toda pessoal, a mais pessoal de todas, em expressão duma época coletivista”, como notou Carpeaux (1978, p. 150). Tampouco a busca por tornar o povo poema passou pelas vias piedosas do padecimento em nome de um grupo abstrato, sem identidade.254 O “sentimento do mundo” se erigiu sobretudo por meio do dilaceramento de um sujeito solitário porque ferido pelas contradições modernas. Na cena erótica, diferentemente, o eu poético domina um império protegido do comércio com o mundo. Já não ocorre a invasão de um egotismo encarado como um erro ou razão para culpa. O tirano é bem-vindo. Calam-se as “inquietudes drummondianas”. Estas, de acordo com o ensaio de Candido já citado, transformavam o 253

Citamos trecho de “Consideração do poema” (RP). Retomamos a distinção entre compaixão e piedade proposta por Márcio Seligmann-Silva em Para uma crítica da compaixão: “Temos compaixão com relação ao que está próximo – assim como temos piedade para com o próximo (pessoa abstrata e sem identidade).” (2009, p. 32) 181 254

trabalho poético em uma síntese das preocupações sociais e individuais. Agora, ao revés, o sujeito não constitui um problema e a sociedade está aprisionada do lado de fora do quarto. O eu reflete sobre ela para rapidamente dispensá-la em favor da recomposição do prazer. As diferenças são de tal modo flagrantes que nos levam a interrogar as significativas transformações instituídas pela coletânea no conjunto da obra drummondiana, tão variada que pode aceitar em seu seio os traços mais díspares. Por um mecanismo de iterações a reforçar os contrapontos, o poema de O amor natural expõe o avesso do “sentimento do mundo”: o corpo imuniza o afeto contra a ferida aberta pelo encontro com os homens. A poesia transmuta-se, em decorrência: deixa de trazer em sua forma o enigma do mundo para revelar os segredos “de quem ama”, como afirma o texto subsequente a “Era manhã de setembro”. Tendo talvez acompanhado subterraneamente a obra publicada ao longo de décadas, os versos eróticos constituem uma espécie de aditamento a iluminar conteúdos e procedimentos reprimidos ao longo da obra editada em vida. 3.3 A RUA DIFERENTE Em “O que o Bairro Peixoto”, o amante não logra afastar o mundo. Nele, o eu recorda as “primícias” sexuais praticadas nas ruas dessa região de Copacabana. Duas estrofes emolduram a cena íntima: a primeira anuncia que a grande cidade olvidou os prazeres relembrados; a última recompõe a consciência do obscurecimento da memória no espaço urbano. Entre elas, nove estâncias de intenso enlevo lírico atualizam o deleite da carne no corpo urbano. O prazer é fruído na superfície das ruas e por elas será apagado. Ao confrontar o gozo da cidade com a crítica à urbe desumana, “O que o Bairro Peixoto” resume a complexa escrita da urbanização pelo autor. Desde Alguma poesia, o elevador, o táxi transportam um sujeito ao mesmo tempo fascinado e desconfiado em relação à modernidade, citadina. O poeta nunca deixou dúvidas a respeito do espaço a partir de que escreveu: a literatura de Carlos Drummond de Andrade é eminentemente urbana. Avançamos pouco na análise da obra do poeta mineiro se com “poesia urbana” compreendemos exclusivamente a representação das cidades nos poemas. Podemos 182

recordar facilmente textos ou versos em que se estabelece o contraponto – e por vezes mesmo a sobreposição – do gozo da experiência urbana à aversão radical por suas contradições. Celebrizada desde o livro de estreia nos versos “No elevador penso na roça,/ na roça penso no elevador”, de “Explicação”, a atitude ambivalente do sujeito poético drummondiano diante do espaço urbano constitui o primeiro sintoma de que a cidade não é apenas o que se dá a ver em sua obra. A experiência urbana torna a poesia uma escrita marcada pelas cisões. As contradições se estabelecem no interior dos textos ou nas relações irônicas tecidas entre eles.255 Tal jogo de deslocamento e embate dos signos poéticos marca a montagem de O amor natural. “O que o Bairro Peixoto”, poema longo composto em versos livres, está situado entre textos temática e formalmente divergentes: em uma quintilha formada por alexandrinos, “De arredio motel em colcha de damasco” narra o encontro fugaz entre dois amantes que simulam uma relação incestuosa; “Tenho saudades de uma dama” compõe, em quatro tercetos octossilábicos, o canto de nostalgia da amante. A variedade métrica e rítmica ecoa a veloz transmutação do espaço urbano. Ademais, os poemas assumem de forma variada a inscrição da multiplicidade de signos citadinos. “De arredio motel em colcha de damasco” tem título polissêmico: “damasco” é uma cor, um fruto e o nome da capital síria. A inesperada preposição “de” no início do poema enfatiza a importância do espaço ao revelar o ponto a partir do qual o sujeito é observado. O valor semântico de origem se expande, permitindo a depreensão desse significado também na expressão “de damasco”, lida como o lugar de onde veio a colcha a encobrir a cena erótica.256 Na cidade ou a partir dela, o sexo assume sua complexa fusão de jogo e violência. Além disso, o contraponto entre a métrica clássica e o tema tabu reitera a assunção das cisões urbanas pela escrita erótica.

255

A análise da ironia na poesia drummondiana foi desenvolvida por Marlene de Castro Correia no ensaio “Drummond, a magia lúcida” e fundamenta em grande medida a leitura dos procedimentos de montagem aqui apenas esboçada. A pesquisadora não restringe a ironia à latência de sentidos opostos em um discurso, mas expande o conceito aos diferentes gestos de autocontestação na poesia drummondiana. Em suas palavras: “O autoquestionamento empreende-se de modo vário ao longo do trajeto de Drummond, consubstanciando a sua independência de ironista romântico-moderno, livre para o fazer-desfazer da própria obra.” (op. cit., p. 125) 256 A hipótese espacial é fortalecida quando recordamos o poema “Damasco”, de Abgar Renault (1990, p. 155), poeta com que Carlos Drummond de Andrade manteve extensa correspondência. Os versos, acerca do ofuscamento da capital síria pelo gozo de um encontro fugitivo, explicitam a ambiguidade do substantivo: “Já não sei qual o tom do solo de Damasco,/ nem a cor das toadas das ruas de Damasco”, afirmam os primeiros versos. “Quando é que esse nome é cor e fruto ou cidade?”, completa um verso da penúltima estrofe. 183

“Tenho saudades de uma dama” tampouco escapa desse mecanismo de contrastes. As contraposições se tornam mesmo um tema: “Não era sequer provocante./ Provocada, como reagia!/ São palavras só: quente, fria.” As cisões avançam ainda para a relação com outros poemas. Localizado após “O que o Bairro Peixoto”, o texto rompe com a versificação livre e com o cenário externo. O movimento de interiorização incide sobre a cidade e o homem: repelem-se as superfícies visíveis em favor da profundidade da casa e do corpo. O espaço está agora restrito ao quarto, à cama, ao âmago do organismo: “Tenho saudades de uma dama/ que me passeava na medula/ e atomizava os pés da cama.”, conclui o texto. Tal espacialização parece confrontar um poema publicado décadas antes. Em “Os poderes infernais”, de A vida passada a limpo, as contradições do amor são apresentadas por meio da oposição entre a interioridade e a exterioridade: “O meu amor faísca na medula,/ pois que na superfície ele anoitece.” A destruição também é comum aos dois textos: “Quando eu secar, ele estará vivendo,/ já não vive de mim, nele é que existe// o que sou, o que sobro, esmigalhado.”, lemos no poema publicado em 1958; “Eram flamas no preto favo,/ um guaiar, um matar-morrer.”, naquele divulgado pela primeira vez em 1976.257 Todavia, há grandes divergências entre os dois poemas graças ao deslocamento do aspecto abordado: no poema erótico, a interiorização desvia-se do sentimento amoroso para atingir o ato sexual. Daí a potência advir não só da permanência do desejo, da falta que torna o amor imune à morte. Ao contrário, decorre do prazer físico e da lembrança da dissolução nele atingida. O confronto da literatura drummondiana consigo é amplo. O mecanismo de contrastes atravessa a literatura do autor. Desde “Poema de sete faces”, a fragmentação – do sujeito e da escrita – constitui um dos modos de a poesia incorporar o caráter múltiplo dos signos que compõem a cidade: o bonde que passa, a solidão dos habitantes, a poesia antimelódica são os trechos do texto urbano convocados para a obra. A montagem dos poemas, já no livro de 1930, torna a inscrição da cidade na poesia ainda mais complexa. “Poema de sete faces” é seguido por “Infância”, em que a velocidade e os objetos urbanos são substituídos pela continuidade narrativa própria da vida no campo. O poema memorialista parece propor um segundo espaço, um novo tempo, uma outra experiência, em tudo divergentes da vida urbana e da poesia a partir dela constituída. Essa hipótese, instauradora de uma dicotomia, pode se fundamentar na

257

Em José: literatura, crítica e arte, Rio de Janeiro, ano I, nº 1, p. 10-11, jul. 1976. 184

história da constituição das cidades. De acordo com Argan,258 a segunda metade do século XX viveu o paroxismo de um longo processo de denegação da natureza. Esta representara ao longo da história ocidental os limites da cidade, o sublime e o aterrador de que o espaço urbano precisava se proteger. Talvez a justaposição do poema citadino à narrativa da infância rural constitua um modo de inscrever na poesia não tanto os limites naturais – pouco comuns na poesia de Carlos Drummond de Andrade –, mas as fronteiras precisas de uma cidade que ainda podia conceber, nos anos 1920, um espaço fora de seus limites. Essa cidade subsiste, contudo, como projeção do passado: “eu não sabia”, conclui o eu poético de “Infância” a partir de um espaço urbano em que reconhece a pureza da vida no campo como afim à ficção. A fratura entre os textos não institui, portanto, o marco de uma diferença paralisada, mas a possibilidade de deslizamento incessante dos significantes na cidade, na escrita. A montagem dos poemas, sua cisão apenas aparentemente dicotômica, faz reconhecer sob a oposição entre a urbe e o campo o desenvolvimento de uma cidade ubíqua. A vida no interior é ainda vida na cidade, na pequena cidade ameaçada pelo domínio das metrópoles, seja ele figurado pela especulação imobiliária, pelos objetivos dos lucros das grandes empresas mineradoras ou pelo avanço das máquinas. A síntese dessa expansão do urbano pode ser lida no último verso de “O boi”, poema de José significativamente sequente ao canto citadino de “A bruxa”: “No campo imenso a torre de petróleo.” Está claro que a poesia urbana de Drummond não se restringe à metrópole, mas faz ver a cidade também no espaço que parece protegido da expansão dos grandes centros. A urbe se quer onipresente, pois já não tem freios em seu avanço ilimitado. A eleição do Bairro Peixoto como cenário do poema erótico amplia o variado registro da invasão citadina mesmo nos espaços que se desejam resistentes. Urbanizada recentemente, em fins dos anos 1930, a área teve o povoamento restringido desde os projetos iniciais para o traçado de suas ruas. O caráter especial da ocupação, pouco densa para os parâmetros de Copacabana, redundou na transformação do Bairro Peixoto em Área de Proteção Ambiental no fim dos anos 1980.259 Todavia, as tentativas de 258

O aspecto da história urbana aqui abordado é desenvolvido por Argan no ensaio “Urbanismo, espaço, ambiente”, publicado no volume História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 211-224. 259 De acordo com o guia de ruas de Copacabana, a urbanização do Bairro Peixoto foi regulada pelos Planos de Alinhamento 2.990 de 14/06/1938, 3.281 de 28/11/1939 e 3.850 de 13/05/1943. A criação da Área de Proteção Ambiental do Bairro Peixoto foi instituída em 12 de maio de 1989 pela Lei n.º 1.390 e 185

preservação malogram diante do avanço urbano, afirma o poema: o Bairro Peixoto é sujeito do esquecimento. O recuo da memória é amplo, visto que o objeto do saber perdido não se limita aos amantes. “O que o Bairro Peixoto sabe de nós e esqueceu” está inscrito nos nomes das ruas a registrar revoltas dia a dia obscurecidas, como tantos acontecimentos na história nacional. Por conseguinte, o dêitico “nós” remete à comunhão do homem e da mulher e aos cidadãos irmanados pela destruição de seu patrimônio imaterial. O registro da generalizada retração da memória torna “O que o Bairro Peixoto” singular no interior de O amor natural. Único texto do conjunto que reconstitui a história social e caracteriza em detalhes um espaço geográfico, o poema põe em cena movimentos até então ignorados: os corpos avançam horizontalmente, em uma fuga necessária às brincadeiras sexuais entre os amantes, ao mesmo tempo em que os versos expandem os signos políticos. Poesia itinerante,260 “O que o Bairro Peixoto” inscreve na coletânea erótica a poética do caminho e do obstáculo, proeminente desde os primeiros escritos de Carlos Drummond de Andrade. Para compreender as relações entre o sexo e a escrita social, seguiremos essas sendas e barreiras. O QUE O BAIRRO PEIXOTO O que o Bairro Peixoto sabe de nós, e esqueceu! Rua Anita Garibaldi e Rua Siqueira Campos. (Francisco Braga, Décio Vilares nos espiando, fingem que não?) O calçadão na penumbra andança que vai e volta voltivai a derivar para o túnel em busca do hímen? Volta: banco de praça. Bambus. Bambuzal de brisa em ais. regulamentada pelo Decreto n.º 9.226, de 13 de março de 1990. Informações disponíveis em: http://copacabana.com/group/bairro-peixoto. Acesso em 23 abr. 2012. 260 A expressão é cunhada por Candido ao analisar “Louvação da Tarde”, de Mário de Andrade. Tomo emprestado a Davi Arrigucci Jr. (op. cit., p. 65) a aproximação entre a leitura do poema do escritor paulista e o estudo da obra drummondiana. 186

O bardo e a garota amavam-se nas guerras da Dependência. Seria brinco de amor ou era somente brinco. 5 de julho (fronteira do reino escuro) à face de casas desprevenidas jogávamos nos jardins e nas caixas de correio volumes indesculpáveis de alheias dedicatórias pedacinhos. Se salta o cachorro? Credo. Saltam quinhentos mastins. Ganem a traça de amor sem regulamento. Prende mata esfola queima. Viu? É dentro de mim, é dentro do bardo que estão ganindo. Bobeira de bobo besta. Passa de nove mil horas, urge voltar ao sacrário de virgem. Só mais um tiquinho. Não. Sou eu, rei sábio, que ordeno. Ri. Rimos de mim. Ficamos. Dedos entrelaçados e desejos geminados no parque tão pueril. Praça Edmundo, olá, Bittencourt de berros brabos. Se acaso nos visse aos beijos babados, reincidentes, protestava no jornal? Menina mais sem juízo rindo riso sem motivo no jogo de diminutivos, sabe o que estamos fazendo? Amor. Não é nada disso. Apenas primícias cálidas. Calo-me. Viajar nos seios. Embaixo. Por trás. Se vou mais longe, quem vai me segurar? Se fico por aqui mesmo, 187

quem vem me resserenar? Passo vinte anos depois no mesmo Bairro Peixoto. Ele que a tudo assistia, nada lembra, no sol posto, deste episódio canhoto.

A exclamação marca o surgimento da cidade como cenário do poema. Desde a primeira estrofe, aparece portanto um sujeito exaltado. O foco inicial de sua afetividade é o corpo urbano, a subtração incidente sobre o espaço público e a memória pessoal. Com esse sujeito convive um outro, a que o poema dá vida: o Bairro Peixoto. As ruas de Copacabana são o motor do saber e do esquecimento tematizados. A partir dessa cidade animada, o poema subverterá a perda intensamente registrada em suas primeiras linhas. A estrofe seguinte é iniciada por dois versos isométricos: “Rua Anita Garibaldi/ e Rua Siqueira Campos.” A identidade formal recupera o paralelismo das ruas. Enlaça, ainda, os revolucionários de diferentes gêneros. O poema reverte, assim, um traçado urbano que separa as figuras irmanadas pela contestação política, em diferentes momentos da história brasileira e mundial. Anita Garibaldi (1821-1849) teve proeminente participação na Guerra dos Farrapos, revolução republicana gaúcha cujo resultado foi a declaração de independência da Província do Rio Grande do Sul, em meados do século XIX. Após a derrota do movimento regional, a jovem ampliou sua ação para além do Brasil. Siqueira Campos (1898-1930) esteve entre os militares revoltosos que enfrentaram as tropas situacionistas na Revolta dos 18 do Forte, ocorrida em 1922. Um dos poucos sobreviventes do levante, uniu-se dois anos depois a Prestes em sua marcha pelo país. A esses versos, contrapõem-se os quatro seguintes, mais curtos, tetrassilábicos: “(Francisco Braga/ Décio Vilares/ nos espiando,/ fingem que não?)”. Entre parênteses, eles cindem o espaço revolucionário delineado anteriormente. Os nomes aqui registrados, de ruas também paralelas, revelam figuras menos afeitas à inovação temática e formal. Francisco Braga (1868-1945) compôs o Hino à Bandeira do Brasil, cuja letra tem autoria do mais famoso poeta parnasiano brasileiro: Olavo Bilac. Décio Vilares (1851-1931) foi pintor e escultor acadêmico, discípulo de um dos mestres do nacionalismo em nossa pintura: Pedro Américo. Esses artistas, símbolos de uma tradição incontestada, encarnam os intrusos da cena ainda não explicitamente sexual. Traçam também os limites da transgressão ou a coexistência de forças conservadoras 188

com as subversivas. A invasão inaugura, por fim, o tempo da recordação: já não o passado da memória apresentado na primeira estrofe, mas o presente de um tempo intensamente revivido. Com esse abandono do “defrontar-se objetivo”, nos termos de Staiger (1997, p. 21), o lirismo atinge o auge. Tal estado apaixonado, que se funde à vida de nossas ruas, constitui um aspecto da escrita poética refratário à imobilização conservadora das cidades. “O que o Bairro Peixoto” obscurece a cisão entre sujeito e objeto, em uma operação próxima àquela proposta por James Hillman ao conceber uma anima mundi. Esse conceito se refere [à]quele lampejo de alma especial, [à]quela imagem seminal que se apresenta por meio de cada coisa em sua forma visível. Então, o anima mundi aponta as possibilidades animadas oferecidas em cada evento como ele é, sua apresentação sensorial como rosto revelando sua imagem interior [...] (HILLMAN, 1993, p. 14).

Hillman reverte, com a anima mundi, a ideia tradicional de projeção: as coisas nos atraem por sua forma visível, independentemente de nossas perspectivas. O ensaísta valoriza a imagem, por meio da qual a realidade psíquica das coisas se manifesta: “Um objeto presta testemunho de si mesmo na imagem que oferece, e sua profundidade está nas complexidades dessa imagem. Sua intencionalidade é substantiva, dada com sua realidade psíquica, reclamando, mas não exigindo nosso testemunho” (idem, p. 15). Em “O que o Bairro Peixoto”, a revelação da anima mundi não se limita à imagem visível de Copacabana. As “possibilidades animadas” residem também no desenho urbano, que dirige os amantes, mas principalmente nos significantes a revitalizar a história de nossas cidades. Na complexidade desses nomes, o testemunho das ruas pode expor a profundidade dos corpos – homens e bairro – em movimento no Rio de Janeiro. As estrofes seguintes tornarão ainda mais abrangente a revitalização urbana por associarem a alma das ruas ao erotismo dos amantes. Graças a esse vínculo inusitado, o poema construirá uma cidade compreendida como objeto de uso, isto é: como espaço valorado, ao mesmo tempo fruto da experiência coletiva e fundamento da vivência individual. Os versos abrem-se, assim, para uma concepção das áreas citadinas que não as reconheça como lugares inertes em um traçado geométrico inanimado. Se, como quer Renato Cordeiro Gomes, o espaço urbano é uma combinação de cristal e chama, de tendência geometrizante e emaranhado de existências, a recomposição apaixonada da memória gravada na urbe pode constituir uma das forças sociais da poesia urbana. 189

Segundo o ensaísta, “romper com o racional é condição indispensável para a realização do humano e suas potencialidades inventivas” (GOMES, 2008, p. 26). Em “O que o Bairro Peixoto”, o poeta-urbanista projeta um espaço humano em contraposição ao apagamento do “emaranhado da existência” nas ruas das cidades modernas. Desse modo, a escrita do poema revela uma importante dimensão política: trata-se de um registro urbano não só pelo tema, mas principalmente porque a linguagem permite a constituição de uma outra cidade, diversas vezes soterrada pelas forças modernizantes. Tal construção, garantida pela subsistência de narrativas distintas no seio do poema, erige-se sobre o caráter heterogêneo da literatura urbana: a cidade é escrita graças à grafia de diversas e divergentes camadas de signos. Ao revés, o convívio da perda subjetiva e social leva-nos também a reler a cidade percorrida pelo sujeito apaixonado: a partir de “O que o Bairro Peixoto”, podemos observar no Rio de Janeiro os signos de diferentes temporalidades, consequência histórica da ocupação espacial. Poder-se-ia sintetizar: os versos nos levariam a ver na capital fluminense o resultado de nosso atraso, confundido com um desenvolvimento aplainador. Não resta, no entanto, uma nostalgia imobilizadora dos resíduos da tradição. O passado é movimentado quando participa da fatura do poema. Dessa forma, as “cidades sucessivas”261 podem se valer das ruínas, multiplicadas pela modernização, para construir outras cidades, mesmo que provisórias ou apenas possíveis. Como afirma Eucanaã Ferraz, talvez a destruição seja a possibilidade da utopia: Vislumbrando, portanto, a instauração de novos/antigos valores e a retomada/ invenção de territórios no devir da cidade, a poesia drummondiana diferencia-se da mais que comum lamentação diante da cidade que “não é mais a mesma” − como se houvera uma como modelo, cidade ideal, eternamente idêntica − conservada para além do tempo e das ações humanas. Quando reconstrói o espaço urbano, a poesia de Drummond considera a destruição, a decomposição, o desaparecimento não apenas como forças negativas, ou ainda, como negatividades em si mesmas, pois, antes disso, entende-as no conjunto de agentes que fazem a cidade viva, no agora, e que podem, talvez, refazêla amanhã, sob a reordenação da utopia. (1992, p. 113-115) 261

A expressão é de Renato Cordeiro Gomes em Todas as cidades, a cidade e designa o trabalho arqueológico realizado pelas obras que escavam a história urbana. Segundo o autor, como um palimpsesto, as “cidades sucessivas” reunidas sob um mesmo nome acumulam escritas ao longo de sua história. O “livro de registro da cidade” recompõe os fragmentos urbanos soterrados, em um trabalho infinito já que novos escombros se multiplicam indefinidamente. Os signos-ruína se tornam, então, ao mesmo tempo objeto e modo de estruturação do texto que dá a ver a cidade, mas também assume seu modo de escrita. A análise que se segue é guiada em grande medida pela conjugação, proposta pelo autor, da leitura da cidade como jogo sígnico à análise dos textos em busca da legibilidade da metrópole. 190

Em “O que o Bairro Peixoto” aparentemente predomina desde a primeira estrofe o lamento pela perda da memória. Não obstante, é do espaço urbano amnésico que parte o eu poético para reconstituir os episódios canhotos de sua história pessoal e de nossa história política. “No sol posto”, o traçado das ruas ainda suscita a recordação dos acontecimentos intensos. Como os revoltosos relembrados pelos versos, o poema pode então dar a ver a permanência da ruína em meio à modernização. É ele próprio canhoto. A reordenação utópica das urbes modernas participa, pois, da escrita literária e da reescrita de uma cidade que oculta os significantes das experiências intensas, de gozo ou violência. Na terceira estrofe, a grafia dessa outra urbanidade se realiza por meio da duplicação dos jogos sexuais no percurso pelas vias cariocas. Tendo partido das ruas Francisco Braga e Décio Vilares, o eu poético dirige-se certamente ao Túnel Alaor Prata, que une Copacabana a Botafogo. Novamente os significantes se desdobram: o nome da via pública homenageia um dos signatários do Manifesto dos Mineiros, contra a ditadura comandada por Getúlio Vargas. Nesse caminho penumbroso, histórico e geográfico, o sujeito tenta investir também no túnel resistente do corpo virginal. A interrogação – em busca do hímen? – expõe a hesitação do amante. O movimento sinuoso, na extensão da cidade e na profundidade orgânica, é recomposto pela métrica. As redondilhas maiores dos primeiros versos, com acentos diferenciados, são seguidas pelo metro curto: “voltivai”. O neologismo e a agilidade do verso trissílabo iluminam a rapidez das ações na brincadeira sexual, que borra a descontinuidade dos gestos. Outro verso curto rompe a deriva em direção ao hímen: “Volta”. De volta ao verso heptassílabo predominante, a estrofe fixa o namoro na praça Edmundo Bitencourt. A variação nos acentos, a oscilação entre vogais médias e altas e a ondulação dos sons nasais ecoam o movimento dos corpos flexionados como os bambuzais ao vento: “banco de praça. Bambus./ Bambuzal de brisa em ais.” Nessa estrofe, o tempo da narrativa é novamente o presente. Ao recordar os jogos amorosos, o sujeito atualiza a prazerosa busca do corpo juvenil. Os dois próximos conjuntos de versos, em contraponto, voltam ao passado. A ironia drummondiana cria um evento histórico de que participariam os amantes: “O bardo e a garota amavam-se/ nas guerras da Dependência.” Diferentemente da luta revolucionária de Anita Garibaldi, retomada na segunda estrofe, os amantes reivindicam a sujeição. Não se trata, no 191

entanto, de afirmar de maneira séria o caráter subjugador dos jogos amorosos: “Seria brinco de amor/ ou era somente brinco.” A brincadeira se diversifica na próxima estrofe, quando ocorre na Cinco de Julho, rua próxima ao Bairro Peixoto cujo nome comemora a data da Revolta dos 18 do Forte. Novamente, a história social e a narrativa amorosa se entrelaçam. Entre parênteses, o eu poético revela os avanços de suas investidas sexuais: “(fronteira/ do reino escuro)”. O bardo se aprofunda no corpo da garota desejada. Ao mesmo tempo, os versos aprofundam a leitura da história brasileira. Marco da violência militar, que determinou a execução dos revoltosos nas ruas de Copacabana, 5 de julho pode ser uma fronteira além da qual se avança na noite, imagem do infortúnio coletivo. Vale lembrar que “as casas desprevenidas” em face do amor também foram pegas de surpresa quando da revolta de 1922. Porém, os volumes lançados foram muito mais aterradores do que as dedicatórias deixadas pelos amantes.262 As estrofes seguintes voltam ao presente. Como no conjunto, predomina a redondilha maior, alternada com versos de metro variado, quase sempre curtos. Reencontramos em “O que o Bairro Peixoto” o compromisso entre o verso livre e a metrificação, já apontado por Mário de Andrade acerca de Alguma poesia. Segundo o escritor paulista (1974, p. 32), em Drummond mesmo os versos curtos assumem a função de versos medidos, pois contêm “noções geralmente completas e acentuações tradicionais”. Contudo, em 1930, defendia Mário, o emprego da metrificação provinha de uma “vontade íntima de aniquilar-se” (ibidem, p. 33). No poema publicado postumamente, ao contrário, o verso medido decorre de uma característica refutada então: a tendência para o sujeito poético socializar-se. Talvez, a partir do texto erótico, possamos mesmo reconsiderar a leitura da métrica por Mário de Andrade, a qual identifica os “versos medidos” ao mascaramento 262

Notícias da época confirmam o pânico da população. Na edição de 06 de julho de 1922, o jornal A Pátria publicou: “O despertar dos moradores dos lindos bairros atlânticos de Copacabana, Leme e Ipanema foi, na madrugada de ontem, terrível. As famílias dispunham-se a abandonar as suas residências apressadamente, na iminência do forte que estava revoltado, ser bombardeado pelas tropas legais. Desde as primeiras horas do dia, um inumerável cortejo de todas as características sociais, em automóveis, bondes, caminhões do Corpo de Bombeiros e carroças, desfilava pela rua Barroso, direção a Botafogo, pelo Túnel Velho.// Os moradores do Leme cujo bairro estava sendo alvejado pelos 7 ½ do forte de Copacabana retiravam-se a conselho da própria autoridade. O forte de cinco a cinco minutos disparava para a entrada do Túnel Novo, onde estavam alojadas as tropas do 3º Regimento de Infantaria. O trânsito ficou, então, interrompido neste trecho. Os bondes passaram a circular pelo Túnel Velho, até as 15 horas, quando não mais atingiram o bairro atlântico, por estar o mesmo sitiado pelas tropas e, na iminência de ser bombardeado pela esquadra, pela aviação naval e pelas tropas de terra – o que talvez se dê esta manhã, segundo informações que tivemos.” Disponível em: http://copacabana.com/group/rua-cinco-de-julho Acesso em: 28 abr. 2012. 192

subjetivo. A revisão é corroborada por trecho de uma carta de Manuel Bandeira de 30 de março de 1925 ao amigo paulista: Entendo que para explicar o verso-livre é preciso partir do conceito tradicional do verso e mostrar depois que ele é um caso particular do verso-livre. Você tem razão nas objeções que fez à definição: ‘Verso é a linguagem metrificada’. Mas não tem razão quando pensa: Antes do verso-livre os poetas metrificavam, nós não metrificamos. O sentido de metrificar é medir, metro é medida. Sim. Mas nunca os poetas mediram. Os poetas têm o sentimento dos ritmos (ritmos de decassílabos, ritmos de alexandrinos, etc.) e não metrificam coisa alguma. Uma ou outra vez rara, quando o ritmo das chamadas medidas ou metros é insólito o poeta mede para verificar, e verifica quase sempre que está na medida. Pela minha experiência pessoal só me lembro de ter me enganado uma vez: fiz como alexandrino o verso ‘Esta casa hoje toda alegria hospitaleira’. O mesmo sucedia com os poetas gregos e latinos. Seguramente eles não ajuntavam as palavras segundo a quantidade: eles tinham no ouvido os ritmos que produziam certas distribuições de quantidades. (ANDRADE; BANDEIRA, 2001, p. 193)

Bandeira parece chegar a uma formulação mais adequada para a interpretação da regularidade métrica em meio à fluidez do verso drummondiano. A constância não aniquila o sujeito, como quer Mário de Andrade; antes ela assegura a combinação entre o sentimento e a comunicação da obra com os leitores e com a história literária. Em relação à lírica amorosa, a regularidade associada ao verso livre – eco da recordação orgânica dos ritmos pelo poeta – garante que a “sede tão vária”263 do desejo ganhe forma legível sem obliterar as nuanças subjetivas. A passagem ao coletivo não prescinde, portanto, da densa exposição da individualidade. As sexta e sétima estrofes do poema são as que mais evidenciam o centramento no eu poético. A primeira desse conjunto introduz um novo intruso, diverso daquele apresentado na segunda estrofe do texto. Não mais figuras históricas como as de Francisco Braga e Décio Vilares ameaçam os amantes. Cachorros em fúria intensificam a brutalidade. A violência também é diversa daquela representada pela vigília dos homens conservadores, visto que os mastins “ganem a traça/ de amor sem regulamento.” “Ganir” torna-se um verbo transitivo com objeto ambivalente: os cães berram o caráter destrutivo, tal uma traça, do amor desregulado ou a consumação do ato sexual, conforme prevê um dos significados populares do verbo “traçar”. O ataque já

263

Expressão encontrada em “O quarto em desordem” (FA). 193

não parte do exterior, mas compõe as brincadeiras sexuais. A potência desestabilizadora do sexo é assim novamente grafada no poema. A agressão se amplia no verso “Prende mata esfola queima”, em que a omissão das vírgulas dá continuidade à gradação dos gestos brutais. Essas conturbações estão centradas no eu poético, cuja proeminência reinará até a estrofe seguinte. Nos dois últimos versos do trecho – “Viu? É dentro de mim, é dentro/ do bardo que estão ganindo.” –, o retorno da pontuação e da cisão entre o eu e a amada interrompem o arrebatamento anterior. As agressões podem ser lidas agora como carícias cujo efeito sobre o eu poético foi a serenidade temporária. O primeiro verso da sétima estrofe – “Bobeira de bobo besta” – leva adiante o foco no eu poético. A reincidência das qualificações negativas poderiam fazer ver, no seio da coletânea erótica, a manutenção das inquietudes drummondianas analisadas por Antonio Candido em seu ensaio já citado. Gostaríamos de abordar um aspecto da questão ainda não suficientemente trabalhado neste capítulo. Segundo o crítico, na poesia de Drummond, a polaridade entre as preocupações sociais e os problemas individuais, ambos referidos sempre às dificuldades da expressão poética, teve como consequência uma espécie de “exposição mitológica da personalidade” (op. cit., p. 68). Uma das provas máximas desse egotismo profundo são as menções ao nome “Carlos” em diversos poemas do autor. Em “O que o Bairro Peixoto” Drummond projeta novos rastros de sua biografia: os passos do escritor que viveu em Copacabana estão hoje ainda registrados em seus textos e nos monumentos construídos em sua homenagem. Entretanto, no poema erótico o eu já não é encarado como um “pecado poético”, o misto de repulsa e gozo que move as inquietudes analisadas por Candido na literatura drummondiana dos anos 1940 e 1950. O rebaixamento do eu faz parte das brincadeiras eróticas e das tentativas de convencer a amante do avanço sexual. Logo será refutado. Além disso, o próprio centramento egoico é temporariamente suspendido. “Urge”, diz o poema, voltar ao corpo da amada, caracterizado como um “sacrário de virgem”. Porque sagrado, o corpo juvenil se defende das investidas do bardo. A disputa – ainda as “guerras da Dependência” – dá caráter dramático ao texto. O corpo feminino ganha voz, contrapondo-se a um amante insistente: “Só mais um tiquinho. Não.” Entre o sacrário alheio e a majestade do eu, o bardo volta a reinar, no entanto: “Sou eu, rei sábio, que ordeno.” Mesmo essa autoconfiança extrema participa do jogo. Em “O que o Bairro Peixoto”, o conteúdo social subsistente sob a narrativa amorosa coexiste com uma euforia imbatível e mesmo “pueril”, como caracteriza o poema. 194

Na oitava estrofe, o retorno dos significantes urbanos carregados de conteúdo histórico se imbrica ao tom lúdico generalizado. Na Praça Edmundo Bitencourt, área central no Bairro Peixoto, os amantes encontram-se em harmonia, com “os dedos entrelaçados” e “desejos geminados”. O sujeito poético dirige-se ao espaço público, novamente dando vida à cidade: “Praça Edmundo, olá,/ Bitencourt de berros brabos”. Ao interpor entre os nomes a interjeição, o eu dialoga também com a figura homenageada pela praça: o fundador do jornal Correio da Manhã, um dos grandes opositores da República Velha. A interpelação ao jornalista “de berros brabos” reitera o caráter destrutivo do amor sem freios: “Se acaso nos visse aos beijos,/ babados, reincidentes,/ protestava no jornal?” Os jogos sexuais a avançar pelas ruas ameaçam a ordem pública. A interrogação deixa aberta a possibilidade de uma resposta negativa, que faça ver no sentimento amoroso seu caráter demolidor, tantas vezes assumido pelo periódico.264 O Correio da manhã manteve a veia combatente até o seu fechamento em 1974, decorrência do repúdio à ditadura militar. Carlos Drummond de Andrade colaborou extensamente para o diário. Publicava em seu suplemento literário já em 1945. Desde 1954 até 1969 manteve no jornal a coluna de crônicas intitulada “Imagens”, editada três vezes por semana. Nesse espaço, o poeta – como Bitencourt – diversas vezes protestou contra as mazelas urbanas: a falta de água, as tragédias advindas com as chuvas, o embrutecimento humano nas grandes cidades.265 O poema erótico marca um novo protesto, urdido a partir de ruas que olvidam as conturbações de outrora. O “riso sem motivo” encenado na estrofe seguinte intensifica a vivacidade dos amantes em um espaço tantas vezes caracterizado pela incomunicação – ou

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A 09 de junho de 1975, na versão publicada de seu diário, Carlos Drummond de Andrade registrou a agressividade dos tempos áureos do Correio da manhã: “O nome do Correio despertava susto e medo entre políticos e governantes, embora o jornal já não fosse o mesmo dos tempos do seu fundador Edmundo Bittencourt, que se distinguiu pela terrível agressividade. A imprensa modernizada já não comportava clima demolidor. Ainda assim, um editorial ou mesmo um tópico do Correio deixava marca na pele do atingido.” (op. cit., p. 1089). O escritor reconhece no Correio um jornal “combatente” (idem, p. 323), “conservador de tendências liberais” (idem, p. 1088). 265 Seguimos reflexão de João Camillo Penna em Drummond, testemunho da experiência humana. De acordo com o crítico, no momento em que a poesia drummondiana tornou-se menos participativa, o escritor voltou sua pena interventiva para os escritos em prosa, publicados no Correio da Manhã: “É no momento em que se fixa a forma-crônica drummondiana que surge paralelamente algo como um Drummond cívico. É ele o cidadão morador da capital do Brasil, interessado nos acontecimentos da cidade, que utiliza a prerrogativa da escrita e do espaço de visibilidade que lhe é conferido para intervir nos negócios da urbe, falando do lugar republicano de qualquer um, e reivindicando os direitos de um qualquer – que se materializará nos anos seguintes na figura de João Brandão, espécie de figura genérica, vazia do cidadão.” (PENNA, 2011, p. 100) 195

“inkomunikhassão”, conforme grafa um poema sobre a solidão subsistente em um mundo hipermidiático.266 Como o texto crítico à modernização transtorna o idioma, também os amantes adotam linguagem especial para sua afetividade: o “jogo de diminutivos”. Qual a fala erótica, tampouco o gesto a romper a racionalidade das ruas é grave ou majestoso. Não assume a dignidade do amor, capaz de reagrupar as “formas naturais”, segundo um verso dos anos 1940.267 Há somente “primícias cálidas”. Esses prelúdios, todavia, geram forte emoção no homem que viaja pela cidade e pelo jovem corpo feminino. As carícias chegam ao extremo, levando o sujeito poético a um impasse: “Se vou mais longe, quem vai/ me segurar?/ Se fico por aqui mesmo,/ quem vem me resserenar?”. A narrativa não segue adiante, pois a estrofe final interrompe a recordação. Ao leitor não é dado conhecer se o amante arrebatado rompe os limites, como fizeram algumas personagens históricas rememoradas pelo poema. Nos primeiros versos do trecho, um sujeito crítico substitui o eu apaixonado. Ele percorre uma área cujo aspecto permaneceu idêntico: “vinte anos depois”, ele passa no “mesmo Bairro Peixoto”. As transformações afetam a escrita da história e não tanto o espaço geográfico, protegido. Nos versos conclusivos, a relação entre o conhecimento e a memória inverte aquela expressa na abertura do poema: na primeira estrofe, convivia o presente marcado pelo saber com o passado de esquecimento; na última, o pretérito caracteriza a percepção enquanto o presente, a perda da memória. O Bairro Peixoto, “que a tudo assistia”, “nada lembra”. A reversão torna-se possível graças ao movimento realizado pelo texto: no princípio, ainda se fazia necessário revelar um saber em vigor nas ruas, mas ocultado pelo olvido; no fim, já se tornou evidente o que não é lembrado hoje pelas vias da cidade. Poderíamos encontrar nessa estrofe um afã puramente restaurador ante a destruição. De acordo com essa leitura, o contraste entre o gozo nos versos centrais e a perda expressa nas estrofes inicial e final teriam o efeito de tornar mais pungente a narrativa do obscurecimento da história. A escrita poética se conceberia, então, como 266

Referimo-nos a “Ao Deus Kom Unik Assão”, de as Impurezas do branco, em que se lê: “E quando não restar/ o mínimo ponto/ a ser detectado/ a ser invadido/ a ser consumido/ e todos os seres/ se atomizarem na supermensagem/ do supervácuo/ e todas as coisas/ se apagarem no circuito global/ e o Meio/ deixar de ser Fim e chegar ao fim,/ Senhor! Senhor!/ quem vos salvará/ de vossa própria, de vossa terríbil/ estremendona/ inkomunkhassão?”. 267 Citamos “O elefante”, de A rosa do povo: “Ei-lo, massa imponente/ e frágil, que se abana/ e move lentamente/ a pele costurada/ onde há flores de pano/ e nuvens, alusões/ a um mundo mais poético/ onde o amor reagrupa/ as formas naturais.” 196

um gesto de salvaguarda dos monumentos uma vez que os mecanismos estatais hajam se mostrado ineficazes.268 Evidentemente, o poema revigora os significantes já disponíveis para a rememoração, mas que se vêm transformando sobretudo em sinais identificadores das vias urbanas. Porém, a celebração daqueles que foram outrora perseguidos por sua força contestadora segue um caminho em tudo diverso ao das narrativas oficiais: a revitalização dos nomes oposicionistas imiscui-se ao jogo, ao erotismo, às atividades quase sempre relegadas, porque egoicas, pelos grandes movimentos revolucionários. Dessa forma, a história social é atraída para o âmbito do vivido, das relações humanas museografadas pelo poema, sem que seja submetida aos marcos monumentais do poder. Com efeito, a poesia de Drummond denuncia antes um anseio de “preservação do social” do que uma tentativa de restauração dos monumentos do passado,269 de acordo com análise desenvolvida por Eucanaã Ferraz a partir de Jeudy: Na poesia de Drummond há uma clara vontade de recuperar certas relações sociais, práticas simbólicas, um desejo de preservação do social que, no entanto, não se confunde com uma tentativa nostálgica de volta a uma cidade e um tempo ideais, nem com uma recusa de viver o presente na cidade do presente. (op. cit., p. 119)

Talvez fosse preciso modalizar o discurso, retificando que a “preservação do social” não se faz sem críticas ao tempo presente.270 Já em Alguma poesia, “A rua diferente” combina a repulsa pelas transformações urbanas com o encanto das novas formas. Os inconformados com a modernização não reconhecem as “exigências brutas” da vida nas cidades. Ao lado da revolta, vigora o prazer de uma criança diante dos andaimes, da luz autógena e do cimento a escorrer na fôrma. Os versos preservam a riqueza das reações humanas em relação às mudanças citadinas, simultaneamente 268

Funcionário do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional durante quase duas décadas, Carlos Drummond de Andrade deparou-se com o péssimo estado de conservação do patrimônio público ainda jovem, graças à influência de Mário de Andrade. Em carta ao amigo, datada de 1928, o jovem escritor mineira indigna-se: “Estou positivamente desolado com o que acaba de suceder. Você me pede fotografias, datas de construção e mais informes sobre igrejas mineiras e eu lhe contesto com quase nada, pois quase nada me arranjaram.” O resultado da pesquisa é desolador: “Acabei verificando que não havia nada, e que a tradição em Minas é uma blague (como eu já suspeitava, aliás).” (op. cit., p. 341) 269 Embora o patrimônio material não seja o assunto deste ensaio, enfatizamos que, em Carlos Drummond de Andrade, mesmo quando a poesia retrata os bens históricos e artísticos, estes são submetidos a um processo de transformação e destruição. Como a cidade e sua escrita, a grafia dos bens patrimoniais deve incorporar o caráter fugidio, em decomposição, da vida dos homens, das coisas, do mundo. Leiam-se poemas como “Voo sobre as igrejas” (BA), “Estampas de Vila Rica” e “Morte das casas de Ouro Preto” (CE) ou “Ataíde à venda?” (DP). 270 O próprio Eucanaã Ferraz o reconhece em diversos momentos de sua Dissertação de Mestrado. 197

aterradoras e fascinantes. Ademais, a reincidência do significante “forma”, presente no verbo “conformar-se” e no substantivo “fôrma”, deixa claro que a preocupação com as metamorfoses do espaço público é acompanhada por reflexões sobre a expressão.271 O avanço urbano e a poesia estão soldados em um canto ambivalente. Do mesmo modo, em “O que o Bairro Peixoto”, a recusa das transformações convive com o gozo das áreas citadinas. No poema, o passado recente, vivido intensamente pelos amantes, é contemporâneo dos signos de uma história de violência. Não prevalece a repulsa ao presente, mas a atualização dos tempos idos pela memória e por uma obra a investir no que lhe é coetâneo. Também agora o gozo revive na literatura. Ainda as disputas sociais se desenvolvem. A rua certamente está mudada: em sua superfície visível não aparecem mais amantes enlaçados ou as lutas sociais; entretanto, esses textos não foram apagados pela cidade. Compõem camadas de signos menos evidentes. A escrita do poema decodifica tal palimpsesto. O sol posto – perda revertida em potência literária pelos versos eróticos – suscita a iluminação dos momentos de gozo individual e de luta política exaltada. A recusa das perdas dá forma, portanto, a um passado renovado, que se conclama a partir da escuridão presente. 3.4 SOBRE OS ESCOMBROS DA OBRA Porque reencena as disputas políticas na guerra amorosa, “O que o Bairro Peixoto” permite-nos refutar ter o erotismo drummondiano representado a recusa da história. Seguindo uma hipótese recorrente em análises dedicadas a O amor natural, em seu estudo sobre a lírica amorosa de Carlos Drummond de Andrade, Mirella Vieira Lima explicitamente nega o conteúdo político dos versos eróticos. Segundo a pesquisadora: “A vitória sobre o tempo histórico, cuja passagem tensiona o mito do amor ao longo da obra poética, é proporcionada afinal pela força centrípeta da experiência erótica, focalizada na perspectiva dos sentidos” (op. cit., p. 175). A autora reconhece em O amor natural o “desaparecimento do mundo” e a “perda dos marcos da cultura” (idem, p. 176). Essa conclusão seria adequada para diversos poemas da coletânea, entre eles “Era manhã de setembro”, mas não para “O que o Bairro Peixoto”. 271

Em Alguma poesia, a poética assume feições anticonstrutivas, conforme demonstrou Gledson em Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. Segundo o ensaísta, o fascínio pelo cimento a escorrer mostra que “o poeta se deixa atrair não pelo trabalho de artesão, e sim, pelo contrário, pelo fato de que os edifícios se formam automaticamente.” (op. cit., p. 82). Não nos aprofundamos no tópico por não ser o objeto desta tese. 198

Procedimentos bastante singulares são encontrados nos versos que percorrem as ruas de Copacabana. O mundo não desaparece: ele se torna o enigma a desdobrar a fala do enamorado. Essa criptografia da história pode ser compreendida como uma nova manifestação das preocupações públicas do autor. De fato, o poema sobre as ruas da região carioca reitera recursos poéticos muito comuns na obra publicada em vida por Carlos Drummond de Andrade. Apesar disso, “O que o Bairro Peixoto” não deve ser lido como plenamente afim à escrita não obscena do autor. Em primeiro lugar, o egotismo perde os freios. Depois, o gozo dos amantes e a violência registrada pelos signos públicos compõem linhas sobrepostas mas não dramaticamente unidas. Sua distinção fere a síntese, realizada anteriormente pela poesia drummondiana, das inquietudes sociais com as pessoais. Não há mais “reciprocidade de perspectivas”: a degradação do mundo apenas se coaduna com a melancolia do eu poético depois que o sexo já se esgotou. Nesse sentido, o “sentimento do mundo” segue abalado. A divergência entre as trocas íntimas tematizadas e a transitividade abrangente do poema é aliás explicitada nos versos: são “indesculpáveis” as dedicatórias legadas pelos namorados aos moradores de Copacabana. A valoração negativa expõe a manutenção das hesitações de Carlos Drummond de Andrade em relação aos embates entre a escrita pública e a subjetividade. O julgamento pode ser atribuído aos cariocas cujas casas são invadidas por correspondências de interesse apenas do casal apaixonado e também a um enunciador avesso a temas de escopo reduzido, ao menos à primeira vista. Dessa maneira, o poema talha em seu seio seu possível limite, refutado tão somente quando se leem as diversas camadas significativas do texto. Estamos distantes de sua poesia participante, desenvolvida quando as “notícias” das correspondências eram tão prementes que “todo homem sozinho devia fazer uma canoa/ e remar para onde os telegramas estão chamando”.272 Desde o sujeito imolado em nome de uma nova comunidade nos anos 1940 até o gozo sacrificado pela cidade moderna no poema erótico, parece ter havido uma reversão. Ela se confirma em “Era manhã de setembro” devido ao impiedoso encarceramento dos homens em um mundo de satisfações frágeis, que permitem exclusivamente a “deleitação convulsa/ de uma carne triste”.273 No livro póstumo, o 272 273

Versos de “Notícias” (RP). Trecho de “Dentaduras duplas” (SM). 199

sexo é o avesso do desconcerto do mundo. Será por isso a poesia erótica oposta ao universo público de grande parte da obra de Carlos Drummond? Não. O “sentimento do mundo”, tal como o conhecêramos, já não dilacera o sujeito. Todavia, a história fende ainda os poemas, que podem cifrar as lutas da esquerda sob a narrativa das carícias sexuais ou registrar a pobreza da experiência moderna mesmo quando o amante a afasta da cena íntima. Permanências convivem com os desvios. Portanto, o erotismo não compõe uma excrescência na herança deixada por Carlos Drummond de Andrade. Ele a enriquece, visto que revela maneiras antes desconhecidas – ou mesmo recalcadas – de o autor registrar problemas centrais em sua poesia. Entre a retomada e o contraponto, o livro constitui um enriquecedor suplemento ao legado drummondiano.

200

4 A CARNE É TRISTE

Muito antes do aliviante fechamento dos amantes na alcova, exposto no livro de poemas eróticos, o amor já representara uma grande promessa de dissolução dos conflitos mundanos na poesia de Carlos Drummond de Andrade. “O mundo acabou para nós!”, afirma o amante extasiado de “Oceania”, de Brejo das Almas. Em um poema famoso do mesmo livro, Adalgisa, desdobrada para satisfazer o homem, é caracterizada como “analgésica”. O sexo tem poder curativo na medida em que apaga o mundo, reduzido à mulher: “Para onde quer que vades,/ o mundo é só Adalgisa.”, conclui o texto. A expectativa de diluir os problemas não foi ingênua, entretanto. Adalgisa e a “garota das ilhas Fiji” são fruto evidente da imaginação e do desejo insaciado. Sobre o anseio de alçar o eu além das limitações ordinárias, ganha relevo a submissão do homem, “de dorso curvo e olhar aceso”,274 a um amor esquivo. Ao longo de grande parte da obra drummondiana, sobressaíram os conflitos a minar o poder de elevação do sentimento e das relações amorosas. Tendo interrogado como poucos a natureza do amor, o poeta expôs a face dilacerada desse afeto, que “não de confiança, de desassossego se nutre”, nos termos de “Estâncias” (NP). “Concha vazia”,275 o amor obriga os homens à trágica busca por uma saciedade impossível. Além disso, os amantes cerram-se em si mesmos ainda quando se desejam: “com se amarem tanto não se veem”, afirma “Destruição” (LC). Não obstante a força do veio trágico na lírica drummondiana, tampouco no logro e no problema o poeta encontrou a verdade última do amor. A “desrazão” desse sentimento delineou-se complexa justo porque ao conflito Carlos Drummond de Andrade contrapôs o idílio, embora utópico. Contra a realidade dolorosa, desenhou-se o sonho de almas a se espelharem, plenas. “Ilhados”, os amantes buscam o “eu imaginário” “que, sendo outro, aplaque/ todo este ser em ser” – a destruição do ego transmutando-se idealmente em “moeda e resgate do eterno”, de acordo com “A um varão, que acaba de nascer” (CE). O rico confronto entre o desejo de evasão e a aderência às condições do mundo por meio do erotismo parece interrompido em O amor natural. A coletânea póstuma apresenta um novo mapa dos lugares protegidos em que o sujeito poético drummondiano quereria habitar: “(Sexo e noite formam ilha.)”, lemos em “Adeus, camisa de Xanto”. Estando quase sempre “a coberto de ventos, sereias e pestes”,276 o

274

Expressão retirada de “O procurador do amor” (BA). Citamos “Amar” (CE). 276 Trecho de “Divagação sobre as ilhas”, Passeios na ilha, op. cit., p. 231. 275

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sexo garante o desejado exílio de um mundo conflituoso a que os amantes não gostariam de retornar. Espaço privilegiado na obra de Carlos Drummond de Andrade, as ínsulas assumiram traçados diversos. Nos anos 1940, como evidencia “Mundo grande” (SM), as distantes áreas “sem problemas” foram recusadas por “perderem os homens” ao excluí-los do contato humano apenas encontrado nas ruas. Alguns anos depois, com o afastamento do poeta em relação à “praça de convites”, as ilhas tornaram-se o exato ponto a assegurar o convívio ideal com os homens: a fuga relativa, “a não muito estouvada confraternização” (op. cit., p. 231). Em O amor natural, as ilhas se apartam ainda mais da “fumaça” e da “graxa do porto” (idem, p. 231). O desterro voluntário se consuma para que, no isolamento do quarto, vigore o contato jubiloso com o parceiro sexual. Na maioria dos poemas do volume, sequer são lembradas as águas agitadas a cercar o éden do sexo. O contorno insular se apaga de tal modo que a cama muitas vezes assume menos o desenho de uma ilha do que o de um outro mundo, reservado aos deuses-amantes. Porém, apesar de menos numerosos, alguns textos fazem recordar a proximidade do tempestuoso entorno da ínsula paradisíaca. Após o fugaz estremecimento advindo do gozo, os amantes enfrentam meses de depressão, revela “Coxas bundas coxas”. Tendo se diluído o “espaço cristalino” onde se desenrolara, fora da história, o ato erótico, eles voltam a enfrentar a “vida menor”, referida em “A língua girava no céu da boca”. Depois do sexo, a tristeza se espraia também para o corpo: “A carne é triste depois da felação”, insiste um dos mais singulares poemas do conjunto. Até mesmo o resguardo garantido pelo sexo se mostrará falacioso em alguns textos. Estando distante do jardim edênico do corpo, o sujeito poético se vê às voltas com o desejo frustrado e com o logro. Talvez por isso sufoque rapidamente quase toda forma de recusa que lhe impeça de adentrar a ilha pacificadora. Quiçá também devido ao malestar testemunhado fora do quarto, evite olhar para além do reduzido perímetro do mundo erigido por meio do erotismo. É possível que a oposição, excessivamente rígida, entre a alegria do sexo e a melancolia vivida sem o orgasmo abale a complexidade da experiência erótica, atravessada por forças conflitantes em grande parte da poesia drummondiana. No entanto, malgrado o empobrecimento de alguns poemas, a tormenta que cerca o idílio vivido durante o ato sexual acaso exponha com impressionante clareza o contexto 202

sombrio recusado pelo sujeito poético que se fecha em seu próprio gozo. Apostando nessa hipótese, seguimos o movimento menos comum nos versos de O amor natural: olhamos de frente a praga do tempo e da solidão, nos esparsos textos em que seu poder se faz sentir. 4.1 ABRE-QUE-FECHA-QUE-FOGE O desejo sexual frustrado foi um importante símbolo das dificuldades não superadas pelo eu drummondiano em sua relação com o mundo. As mulheres inalcançáveis reforçaram a inépcia de um sujeito poético quase sempre à margem. Isolado, ele expôs sua profunda fraqueza: falta-lhe a virilidade dos homens afeitos a brigar e lhe sobeja o desejo por moças com quem não poderá namorar, segundo “Moça e soldado” (AP). Na distância estabelecida graças a essa gaucherie, “cabem todos os abismos”, lemos em “Boca” (BA). Nos anos 1930, o precipício que ameaça o eu é sobretudo o do “desejo torto” e frustrado, fruto maduro “se esborrachando no chão”.277 Ao longo da obra, conforme anunciara o poema de 1929, os abismos abertos pelo isolamento do homem se mostrarão variados. Nos anos 1940, quando ele tentou romper sua solidão, a libido aprisionada revelou a crueza de um “mundo fechado”.278 Nos anos 1950, em que se acusou injustamente um subjetivismo estéril na poesia de Carlos Drummond de Andrade, o escritor adensou a investigação da voragem aberta pelos embaraços no contato com o outro. “Canção para álbum de moça” (CE), a que se tem dado pouca atenção, é um dos poemas que encenam de forma complexa o amplo anseio investido no encontro entre o homem e a mulher. A riqueza dos versos fica, porém, parcialmente obscurecida por sua aparente simplicidade. Construído em sintaxe direta e ritmado por meio da regularidade métrica e das rimas consoantes entre os versos pares, o texto se assemelha a uma canção, quase pueril, acerca de um motivo ingênuo: a busca por resposta a um inofensivo “bom-dia”. Por sua clareza, o poema parece se afastar temática e formalmente do conjunto em que foi publicado. Com efeito, conforme expôs Betina Bischof, em Claro enigma a estrutura do poema foi erigida em impasse. Daí decorreu a obscuridade e o fechamento do verso drummondiano, em uma opção poética 277

Citamos “Sombra das moças em flor” (BA). Remetemos aos seguintes versos de “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin” (RP): “Mundo fechado, que aprisiona as amadas/ e todo desejo, na noite, de comunicação.” 203 278

inseparável de preocupações políticas segundo a pesquisadora: “a própria escolha do caminho dificultoso num mundo ‘retorcido’” dava a ver os “tons de sombra da realidade, sem encobri-la ou falseá-la” (op. cit., p. 11). Em “Canção para álbum de moça”, o obstáculo foi substituído pela fluência, a sombra pelo anseio de luz. Mas porventura também o excesso de luminosidade se erija em óbice à compreensão do conteúdo sombrio subjacente aos versos fluidos. Já na primeira linha a rima coroada instaura a marcante melopeia que, ao longo do poema, sobrepõe-se ao drama desenvolvido nos versos. A princípio o conflito se insinua discreto: o anseio de comunhão parece correspondido, visto que a moça sorria ao sujeito poético – a confluência entre ela e o homem confirmada pela correspondência sonora decorrente da reiteração do ditongo “ia” nos dois primeiros versos. Entretanto, o verbo “sorrir” mostra-se ambíguo: “de longe” talvez a moça apenas agrade ao homem, sem sequer perceber a apaixonada busca masculina. Nesse caso, a harmonia dos sons choca-se com a separação apresentada desde o início do poema. Nos versos seguintes, o abrandamento do significado pelo uso expressivo do significante perderá força diante da crescente exposição da distância entre os fins da tentativa de comunicação e os meios para concretizá-la. O eu se engaja inteiro no esforço de obter resposta: seus olhos e braços repetem, sempre e em vão, bom dia. Difundido pelas diferentes horas, o cumprimento começa a assumir seu valor simbólico, o qual supera a função fática. Conforme expusemos brevemente no capítulo anterior,279 Carlos Drummond de Andrade explorou a simbologia da manhã, imagem de um amanhã a derrotar a escuridão predominante no presente. Sobretudo nos anos 1940, quando a expectativa de um alvorecer social ainda não se havia frustrado radicalmente, o dia nascente vencia a noite, a qual resumiu diversas vezes o desânimo individual e o mal-estar coletivo, indissociáveis.280 Contra um período marcado pela perda e pela dissolução, o amanhecer iluminava um sujeito imerso em sombras e permitia vislumbrar a transformação social: graças a essa promessa, do fundo da miséria individual e pública surgia um sorriso, ponto de partida para que o homem, não mais isolado, se destinasse “a melhor sentido”, segundo “Uma hora e mais outra” (RP).281 Em outro poema do mesmo livro, “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”, a “aurora para todos” também advinha de um sorrir 279

Confiram-se as páginas 175 e 176. “Passagem da noite” (RP) é talvez o texto mais elucidativo da oposição entre o poder solvente da noite e a potência restauradora da manhã. 281 Retomamos os seguintes versos: “Amigo, não sabes/ que existe amanhã?/ Então um sorriso/ nascera no fundo/ de tua miséria/ e te destinara a melhor sentido.” 204 280

vitorioso sobre a distância entre os homens: “entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,/ sozinha, experiente, calada vem a boca/ sorrir, aurora, para todos.” Tal conquista não era, de todo modo, fácil: estava reservada para aqueles, como o artista inglês, cuja força se mostrava suficiente para combater as trevas do tempo. Em “Canção para álbum de moça”, o esforço para travar contato com o outro tem como inimigo a própria fraqueza do eu poético, a despeito de sua persistência: a moça, “de noite como de dia”, está bem longe do poder do homem e de seu “pobre bom-dia”. Essa inépcia advém, em grande medida, da amplitude dos problemas a serem redimidos pela resposta à saudação: o “tempo ingrato” e a “funda melancolia” parecem tornar injustificável o absurdo cumprimento, apesar disso difundido por toda parte. O bom-dia constitui, pois, uma forma de resistência à insatisfação individual e ao ensombreamento da história. Não é uma arma ingênua, contudo: ao mesmo tempo em que garante uma reação ao desejo aprisionado, resume a inquietação vivenciada no ambiente desfavorável, uma vez que em seu cerne reside um “carinho preso”. Tal poder de síntese da disforia generalizada se aguça graças ao contraste entre a tentativa de conter a violência subsistente na já sombria saudação e a indiferença total da moça aos apelos do homem. Distante, ela é incapaz de perceber a noite e a tristeza ocultas sob a expectativa de luz. Nesse contexto, os versos finais, em que pela primeira vez o eu se dirige diretamente à moça, revelam sua ironia: o “mais cristalino dia” surge das sombras; é, ademais, reconhecidamente utópico, fruto da “mais louca nostalgia”. Portanto, a despeito da diferença substancial do poema luminoso em relação ao conjunto sombrio em que foi publicado, também em “Canção para álbum de moça” encontramos a expressão de um “eu todo retorcido” em um mundo torto. Nas décadas seguintes, embora o amor tenha se tornado cada vez mais uma promessa contra o caos,282 o escritor seguiria a registrar a convergência entre as faltas subjetivas e o entorno repressor. Em Lição de coisas, o amor é amaro em um contexto que proíbe “passear sentimentos/ ternos ou desesperados”. Boitempo relacionou sucessivas vezes o “sentimento de pecado” e o desejo frustrado do menino antigo à 282

Leiam-se “Corporal” (FQA), “Parolagem da vida” (IB), “Quero” (IB), “Os namorados do Brasil” (DP), “Nascer de novo” (PM), “As sem-razões do amor” (Co), “Reconhecimento do amor” (AAA), “Além da Terra, além do Céu” (AAA) e “O amor antigo” (AAA). Sobretudo em A falta que ama, As impurezas do branco e Corpo, a alegria expressa nos textos acerca do amor ou do corpo erotizado contrasta fortemente com a negatividade dominante nos demais poemas. Como parece indicar a crônica do autor acerca de “A banda”, lida no capítulo anterior, tal oposição entre luz e sombras pode estar relacionada ao desengano profundo de Carlos Drummond de Andrade com a situação política do país durante a ditadura militar. A análise profunda da questão foge aos objetivos desta tese, entretanto. 205

rigidez moral nas Minas Gerais de princípios do século XX.283 Até nos 1980, quando mais do que nunca celebrou um amor afastado das agruras do mundo, Carlos Drummond de Andrade expôs o sentimento vencido pela violência histórica ou pelos problemas do tempo.284 Tal “reciprocidade de perspectivas”, para retomarmos a expressão de Candido, é o que se perde na abordagem do desejo frustrado em alguns poemas de O amor natural. Graças à negativa da amante, o homem se vê aprisionado do lado de fora da ilha dos prazeres. Entretanto, esse exílio o faz menos refletir acerca da desordem do mundo do que se voltar obsessivamente para o universo de que foi privado. O eu tem, além disso, força suficiente para se insurgir contra o desconforto advindo da recusa da mulher desejada: conquanto se veja condenado à tensão da libido insaciada, o sujeito encontrará outras vias para apaziguar a desordem vivida fora do universo de prazeres sexuais: humor, fantasia, memória. A partir desses recursos, ele logrará expor algum registro prazeroso junto à imagem avassaladora da existência fora da cena sexual, traçada menos pelos problemas da vida comum do que pela conturbada relação entre os amantes. A canção já parece ter pouco a dizer sobre a ingratidão da época. A MOÇA MOSTRAVA A COXA Visu, colloquio Contactu, basio Frui virgo dederat; Sed aberat Linea posterior Et melior Amori. Carmina Burana

A moça mostrava a coxa, a moça mostrava a nádega, só não mostrava aquilo – concha, berilo, esmeralda – que se entreabre, quatrifólio, e encerra o gozo mais lauto, aquela zona hiperbórea, misto de mel e de asfalto, porta hermética nos gonzos de zonzos sentidos presos, ara sem sangue de ofícios, 283

Confiram-se, a título de exemplo, “Classe mista”, “Começar bem o dia”, “O colegial e a cidade” e “Poder do perfume”. 284 Pensamos em “Os amores e os mísseis” (Co) e “A lamentável história dos namorados” (AAA). 206

a moça não me mostrava. E torturando-me, e virgem no desvairado recato que sucedia de chofre à visão dos seios claros, sua pulcra rosa preta como que se enovelava, crespa, intata, inacessível, abre-que-fecha-que-foge, e a fêmea, rindo, negava o que eu tanto lhe pedia, o que devia ser dado e mais que dado, comido. Ai, que a moça me matava tornando-me assim a vida esperança consumida no que, sombrio, faiscava. Roçava-lhe a perna. Os dedos descobriam-lhe segredos lentos, curvos, animais, porém o máximo arcano, o todo esquivo, noturno, a tríplice chave de urna, essa a louca sonegava, não me daria nem nada. Antes nunca me acenasse. Viver não tinha propósito, andar perdera o sentido, o tempo não desatava nem vinha a morte render-me ao luzir da estrela-d’alva, que nessa hora já primeira, violento, subia o enjoo de fera presa no Zoo. Como lhe sabia a pele, em seu côncavo e convexo, em seu poro, em seu dourado pelo de ventre! mas sexo era segredo de Estado. Como a carne lhe sabia a campo frio, orvalhado, onde uma cobra desperta vai traçando seu desenho num frêmito, lado a lado! Mas que perfume teria a gruta invisa? que visgo, que estreitura, que doçume, que linha prístina, pura, me chamava, me fugia? Tudo a bela me ofertava, e que eu beijasse ou mordesse, fizesse sangue: fazia. Mas seu púbis recusava. Na noite acesa, no dia, 207

sua coxa se cerrava. Na praia, na ventania, quanto mais eu insistia, sua coxa se apertava. Na mais erma hospedaria fechada por dentro a aldrava, sua coxa se selava, se encerrava, se salvava, e quem disse que eu podia fazer dela minha escrava? De tanto esperar, porfia sem vislumbre de vitória, já seu corpo se delia, já se empana sua glória, já sou diverso daquele que por dentro se rasgava, e não sei agora ao certo se minha sede mais brava era nela que pousava. Outras fontes, outras fomes, outros flancos: vasto mundo, e o esquecimento no fundo. Talvez que a moça hoje em dia... Talvez. O certo é que nunca. E se tanto se furtara com tais fugas e arabescos e tão surda teimosia, por que hoje se abriria? Por que viria ofertar-me quando a noite já vai fria, sua nívea rosa preta nunca por mim visitada, inacessível naveta? Ou nem teria naveta...

O texto dá centralidade à poética do obstáculo, fundamento também de outro poema da coletânea já analisado: “Oh minha senhora, ó minha senhora”. Como este, “A moça mostrava a coxa” se volta para a lírica medieval, embora de extração bastante distinta daquela relida pelo outro título. O poema em prosa, conforme defendemos, retoma os óbices eternizados pela lírica trovadoresca à concretização do amor. Já o poema longo se volta para a tradição menos aristocrática dos Carmina Burana. A unilos, a releitura a contrapelo da herança retomada. Lá onde o obstáculo, segundo o amor cortês, promovia a ascensão dos amantes, Drummond o torna o artifício a favorecer o gozo; a partir da poesia dos goliardos, que superava os óbices à exposição franca do sexo, ele recria os empecilhos intransponíveis ao ato sexual. Tal deslocamento se evidencia pela epígrafe, que recorta os graus iniciais do exercício erótico – olhar, 208

palavras, carícias, beijos –, mas elide o longo trecho dedicado à concretização do amor em “Grates Ago Veneri”. No texto do escritor brasileiro, o “melhor”, a “meta final”, ficará para sempre obstado pela mulher. Também a nomeação direta do que o eu poético mais almeja está interdita. Esse duplo obstáculo faz com que convivam no poema dois procedimentos distintos de representação do corpo feminino. As partes expostas pela moça são designadas diretamente: coxa, nádega, seios. Já a vagina, escondida com afinco pela virgem, é sempre referida de forma indireta, por meio de ricas imagens a reproduzirem a esquiva da mulher. Em ambos os casos, evita-se a seleção de um vocabulário vulgar. Desse modo, o poema, publicado em vida pelo autor, expõe os procedimentos mais comuns em sua escrita erótica: o registro nobre e o privilégio da metáfora.285 Além disso, a linguagem elevada ecoa o alto valor atribuído pelo homem ao corpo da moça. Tal valorização será revertida por ela em um prolongado jogo de abertura e fechamento. Para a jovem, que ri da avidez com que o amante implora a consumação do ato sexual, a brincadeira é prazerosa. Ele, por sua vez, padece graças ao apetite sexual insaciado, já que as delícias vislumbradas vêm atiçar o desejo insatisfeito às portas de um éden interdito. Do lado de fora, longe da moça almejada, o sujeito poético conhece o “pungitivo brinquedo” “de sentir, mais que o vivido,/ o que pudera ter sido,/ o que é, sem jamais ser.”286 Desse modo, vê-se preso a um universo bastante conhecido pelo gauche: o das dificuldades de comunicação e de comunhão. Em O amor natural, “o que pudera ter sido” mostra-se ainda mais promissor do que o fora na obra publicada em vida. Nesta, o escritor expôs a falta no seio mesmo do encontro amoroso. O “peito oferto” se mostrava, assim, um “monstruário de fomes enredadas” e o amor, uma “teia de problemas”.287 Até nos últimos livros do autor, em que os conflitos amorosos começaram a se diluir, o eu se viu logrado pelos “pactos fingidos” propostos pelo sentimento.288 Apenas na obra editada postumamente, o amor, físico, deixaria de ser de todo um “sinal estranho”.289 Por isso talvez, a impossibilidade de entrar na ilha erótica se torne tão incômoda.

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Confira-se o primeiro capítulo, em que analisamos as publicações esparsas de alguns poemas incluídos em O amor natural. 286 Versos extraídos de “O lado de fora” (Bo). 287 Expressões colhidas em “Mineração do outro” (LC). 288 Expressão encontrada em “O amor e seus contratos” (Co). 289 “Amor, sinal estranho”, título de um poema de Boitempo, depois nomeará a edição de arte publicada pelo autor em 1984 com uma seleção de seus versos amorosos, entre eles alguns textos eróticos inéditos. 209

Em “A moça mostrava a coxa”, esse sofrimento é descrito como uma obsessão a consumir a vida e a esperança do homem. A tortura se tornará ainda mais intensa à proporção que a moça franqueie algumas partes de seu corpo não só à visão mas também ao toque. Sem alcançar seu objetivo último, deprime-se o sujeito, prisioneiro de um tempo vazio. O cárcere pelo pensamento obsessivo é iterado com as repetições intensificadas a partir do verso “Como lhe sabia a pele”. Desde então, os paralelismos sintáticos e as rimas consoantes se tornarão mais frequentes, recompondo o retorno infrutífero do homem à mulher contumaz. A repetição do pedido inútil se mostra, ainda, pela diversificação do espaço e do tempo em que o jogo se estabelecia: “na noite acesa, no dia”, “na praia, na ventania”, “na mais erma hospedaria”, a moça se cerrava. A sedução feminina não culmina no ato erótico. Barrado, incompleto, o erotismo já não constitui o encontro perfeito apresentado em grande parte de O amor natural. À vontade de domínio da moça, exercida pelo desdém com que ela se ri do sofrimento infligido ao homem, o sujeito poético responderá com o anseio de torná-la sua “escrava”. A submissão da voz feminina não é novidade no conjunto, de todo modo. Contra o desconforto advindo da negativa da mulher, o homem se insurge. Algumas vezes ele sai vencedor, logrando adentrar o recanto do sexo apesar dos obstáculos. Em “No corpo feminino, esse retiro”, por exemplo, torna os protestos da amante um estímulo para seu desejo, realizado apesar das queixas: No corpo feminino, esse retiro – a doce bunda – é ainda o que prefiro. A ela, meu mais íntimo suspiro, pois tanto mais a apalpo quanto a miro. Que tanto mais a quero, se me firo em unhas protestantes, e respiro a brisa dos planetas, no seu giro lento, violento... Então, se ponho e tiro a mão em concha – a mão, sábio papiro, iluminando o gozo, qual lampiro, ou se, dessedentado, já me estiro, me penso, me restauro, me confiro, o sentimento da morte eis que adquiro: de rola, a bunda torna-se vampiro.

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Como em outros poemas de O amor natural, o eu se agiganta. Desde a primeira estrofe, sua perspectiva sobre o corpo feminino prepondera. A princípio, essa abordagem, tecida pelo forte desejo, delineia um papel idílico para a anatomia da mulher: seu corpo, como um retiro, propicia o recolhimento e a fuga aos problemas do mundo. Tal sossego ecoa na harmonia sonora obtida pelas rimas internas nos três primeiros versos. Quando a amante deixa de ser uma paisagem, contudo, a relação erótica se revela menos acorde do que se poderia supor no começo. A subjetividade da mulher se insinua graças a suas “unhas protestantes”. Talvez esses protestos façam parte dos jogos de sedução e deles também a mulher obtenha prazer, mas não é possível confirmá-lo, visto que a voz feminina rapidamente se cala em benefício da exposição dos prazeres masculinos. Esse emudecimento deixa espaço para que interpretemos as queixas como uma manifestação da recusa no cenário até então paradisíaco. Nesse caso, o corpo da amante parece ser um retiro somente enquanto é um objeto fragmentado e desumanizado: lugar dominado pelo homem. Além disso, o desacordo, de que o eu se poderia proteger no reconco feminino, retorna à baila mesmo que para ser logo calado pelo egotismo de um sujeito fortalecido graças ao sexo – “me penso, me restauro, me confiro”, lemos no último terceto. Avança-se, assim, mais um passo na elevação do sujeito acima dos problemas do mundo – respiração da “brisa dos planetas”, corpo tornado cosmos a partir do silenciamento, quiçá despótico, dos conflitos. “Esta faca” é outro texto em que o eu tirânico supera os atritos na relação com o outro e com o mundo: “Esta faca foi roubada no Savoia” “Esta colher foi roubada no Savoia” “Este garfo...” Nada foi roubado no Savoia. Nem tua virgindade: restou quase perfeita entre manchas de vinho (era vinho?) na toalha, talvez no chão, talvez no teu vestido. O reservado de paredes finas forradas de ouvidos e de línguas era antes prisão que mal cabia um desejo, dois corpos. O amor falava baixo. Os gestos 211

falavam baixo. Falavam baixíssimo os copos, os talheres. Tua pele entre cristais luzia branca. A penugem rala na gruta rósea era quase silêncio. Saíamos alucinados. No Savoia nada foi roubado.

No poema, de forte tom prosaico, a diferença entre a voz feminina e a masculina ganha destaque singular: as aspas marcam a heterogeneidade dos discursos, reforçada pela divisão das estrofes. Após a primeira estância, a expressão da mulher se apaga gradualmente. Na segunda, quando o homem assume a palavra, o pensamento feminino subsiste como um resto ou como aquilo contra que argumenta o sujeito poético. Retomando o verbo reiterado na fala da amante, ele dá a ver a esperada continuação da listagem arrolada por ela: a consumação do ato sexual se mostraria como roubo, subtração, violência contra a vontade de preservar-se manifestada pela mulher na época em que os namorados estiveram no Savoia. Ou manifestada a posteriori: se “nada foi roubado”, acaso a entrega tenha ocorrido de bom grado. Porém, para a mulher a repressão sexual é uma prisão ainda vigente após a saída do quarto. Por isso talvez sua recordação divirja tanto da apresentada pelo homem. Para ela, importa a ilicitude dos atos cometidos no hotel. Ademais, o conteúdo doméstico de sua fala – restrita a talheres – marca o lugar reservado à mulher no universo repressor apresentado no poema. Possivelmente graças à opressão, a fala do homem obscurece a perda, tornando-a uma pergunta – “era vinho?” – logo após revelar que algo havia efetivamente sido subtraído: a virgindade restou “quase perfeita”. O título assume, desde então, um novo significado: “esta faca” não é mais apenas um utensílio do lar, mas o membro que vem a sulcar o corpo e a ferir o esperado decoro da jovem. Na terceira estância, o corte exercido pelo homem na presença feminina se aprofunda. “Forradas de ouvidos/ e de línguas”, as paredes mal contêm “um desejo, dois corpos”. De um lado, a passagem apresenta o entorno vigilante a ameaçar a ínsula composta pelo quarto. De outro, avança na dominação da mulher: é possível que o desejo dos amantes fosse de tal modo consoante que se tenha feito único; todavia, a passagem permite ler também que apenas o desejo de um dos parceiros sexuais está em

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questão. A considerar o contexto de preservação da decência feminina, não é difícil defender que somente a libido do homem se impõe no Savoia. Essas duas possibilidades de leitura inauguram caminhos divergentes para a compreensão do restante do poema. No primeiro caso, também a mulher consegue transgredir os interditos ao prazer, tornando-os um estímulo. Nada lhe teria sido de fato roubado. No segundo, o silêncio – da amante inclusive – só excita o homem. A angústia da moça estaria, então, calada a ponto de a subjetividade feminina se diluir em um “nós” que a desconsidera. A asserção “Nada foi roubado” revela, desse modo, sua violência: não só os talheres foram furtados, como a possibilidade de expressão da mulher. Parece distante a profunda identificação do poeta com a opressão aos mais diferentes sujeitos, o que o fizera dar voz a uma mulher dilacerada por um homem tirânico em texto célebre dos anos 1940.290 De fato, ao encenar um gozo estimulado pela vigilância em torno do quarto, o poema erótico inflige nova torção ao sentimento do mundo. Conforme analisamos no segundo ensaio, em “Oh minha senhora ó minha senhora”, a diluição do sujeito e do mundo se irmanam. Dessa forma, dissolvem-se dois importantes focos dos conflitos escavados pela poesia drummondiana. Outro poema em prosa, “Você meu mundo meu relógio de não marcar horas”, altera a equação: a mulher – força solvente a que se submete jubilosamente o homem – resume um mundo venturoso, bastante distinto daquele lavrado por grande parte da obra do autor. Segundo nossa hipótese, essas diferentes formas de apagamento do universo a circundar o sexo revelam a recusa crítica a um tempo que desumaniza os homens e confina a intimidade.291 “Era manhã de setembro”, analisado no capítulo anterior, explicita tal rechaço: o eu lembra rapidamente o aprisionamento dos homens a um mundo marcado pelos conflitos trágicos, mas se fecha aos problemas graças aos prazeres sexuais. O sujeito drummondiano, antes afligido pelas perturbações do espaço público, anestesia-se contra as dores advindas do encontro com o outro. “Esta faca” vai além: transforma o controle

290

Referimo-nos obviamente a “Caso do vestido” (RP). Remetemos aos seguintes versos de “Nosso tempo” (RP): “Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,/ mais tarde será o de amor.” A interferência do mundo em desconcerto na intimidade dos amantes continuaria a ser tematizada nas décadas seguintes, quando o autor observa na liberação sexual a comercialização do corpo – “sexalegria industrializada em artigos de supermercado” segundo “O museu vivo” (IB). 213 291

mal contido fora do “reservado de paredes finas” em estimulante. A “exclusão includente”292 do mundo mostra sua face feliz – ao menos para o homem. Poderíamos reconhecer na diferença entre a alegria masculina e a culpa feminina a inscrição crítica de uma das formas de violência ainda vigentes. Realmente a dualidade das vozes no poema expõe as diferentes formas de sentir o mundo e o corpo pelos amantes. No entanto, temos uma relevante transformação em relação ao sentimento do mundo tal qual surgira em grande parte da obra publicada em vida ou ao menos entre 1935 e 1959,293 segundo o referencial adotado: a iniquidade social deixa de acompanhar a deformação do sujeito poético, o qual não mais dramatiza sua culpa. A participação do eu no silenciamento da mulher resta inquestionada. Sem isso, talvez o prazer não se fizesse alucinante e sua recordação fosse conflituosa. É preciso ignorar a violência interiorizada pelo eu para que a reversão do mal-estar em alegria ocorra plena. “A moça mostrava a coxa” leva adiante essa espécie de inclusão pacificada dos conflitos. No poema, o eu – ferido em sua ânsia por possuir a jovem – revela querer dar prosseguimento a uma das mais violentas formas de sujeição: deseja tornar a amante sua “escrava”. Mesmo que esvaziado de parte de seu valor histórico, o substantivo talvez não deixe de remeter à terrível servidão imposta a diferentes povos. Essa hipótese pode ser ratificada quando lembramos que, no encontro solar encenado em “Era manhã de setembro”, a prazenteira apropriação da mulher pelo homem é “presente de rainha” e não “preito de escrava”. O tema foi largamente visitado pela obra poética do autor, além disso. Em sua trilogia memorialística, Carlos Drummond de Andrade expôs a violência de seu clã e o perpetuamento da submissão do negro pelo “menino antigo”. A nódoa do sangue dos escravos torturados se revela indelével em “Mancha”. “Agritortura” lembra o sofrimento extraído das “graças de museu” que se tornariam os antigos instrumentos de suplício contra os cativos. Das “lágrimas e gritos” dos negros brota o “abençoado feijão/ da mesa baronal comendadora”. “Negra” lista as atividades que fazem da mulher escravizada um ser para tudo e para todos, menos para si: às tarefas do campo e domésticas, variadas, soma-se a obrigação de “trepar” com os senhores sem que ela tire disso qualquer “proveito exclusivo”. “Tentativa” recorda a perpetuação desse tipo de uso do corpo da mulher negra pelo eu biográfico drummondiano. “Fria” e “indiferente”, uma “negrinha não apetecível” serve à frustrada primeira experiência sexual do menino 292

Retomamos expressão cunhada por Wisnik em seu ensaio já citado. Esse marco temporal é defendido por Antonio Candido em seu artigo fundamental “Inquietudes na poesia de Drummond” (op. cit.). 214 293

e de seu primo – a presença do parente confirmando a continuidade dos valores familiares naquela busca por prazer em uma jovem apática. O poema dá relevo ao fracasso, entretanto: o sujeito, inexperiente e medroso, não logra incluir-se no clã, na linhagem da barbárie consumada. Há, pois, uma nova manifestação do sujeito gauche, cuja inépcia expôs tantas vezes seu correlato necessário: o desconcerto do mundo. Em “A moça mostrava a coxa”, o anseio de sujeitar o outro, resistente, surge dissociado de qualquer questionamento da opressão histórica. Tal apresentação feliz do relacionamento entre descendentes de escravos e senhores já havia antes sido empreendida pelo autor. Por vezes, as negras participam ativa e voluntariamente do sexo com os herdeiros da casa-grande. Se assim é, abre-se plenamente ao sujeito poético drummondiano a possibilidade do prazer, vivido no espaço-de-exclusão da família segundo Silviano Santiago.294 A “Iniciação amorosa” (AP), com uma lavadeira morena de “tetas imensas”, faz afundar o mundo do menino filho de fazendeiros. A vitória sobre a família por meio do deleite sexual com as negras voltaria à baila em Boitempo. Ao “Ar livre”, os corpos negros e brancos se fundem na urgência de cumprir seu estatuto. Há uma mudança substancial no poema publicado na edição póstuma, não obstante: diferentemente das negras que se entregam de bom grado aos prazeres do corpo, a moça, branca, torna-se soberana por recusar a realização plena do sexo. Parece ser, por isso, porta-voz da repressão. Talvez daí ser vista pelo homem como “louca” em seu “desvairado recato”. Uma vez que o senso crítico do enunciador foi obnubilado pela intensa recordação das antigas frustrações, não há mais lugar para a observação do psiquismo feminino em sua complexidade.295 O sujeito está preso à sua obsessão pelo sexo da moça obstinada. O tempo atua a favor do eu poético, contudo. Ambos os amantes se transformam: ele dirige sua fome para outros flancos; a glória da jovem se esfaz aos 294

Em sua leitura de “Infância” (AP), o crítico afirma: “A conquista do um, da ilha, se faz com a perda do grupo familiar (do clã, como veremos mais tarde), e ainda pela submissão daquele que se salva, habitante da ilha-livro, a uma atividade compensadora da sua solidão e da sua ignorância: a exploração e a leitura. Percebe-se claramente que a individualidade é criada sob o signo do branco que se exclui (ou é excluído) de entre o(s) branco(s), liberdade propiciada pelo acaso do acidente e pela distância do caminhar. A companhia, o encontro com o outro (diferente dos seus) corresponde a uma inclusão tanto do menino quanto do personagem romanesco no domínio estrangeiro que é governado respectivamente pela cor da preta velha e de Sexta-Feira.” (op. cit., p. 56-57) 295 Assim Baudrillard define o poder, propriamente feminino, advindo da sedução: “Poder imanente à sedução de tudo subtrair a sua verdade e de fazê-lo retornar ao jogo, ao puro jogo das aparências e de frustrar daí, num instante, todos os sistemas de sentido e de poder; fazer voltar sobre si mesmas todas as aparências, fazer representar o corpo como aparência e não como profundidade de desejo – ora, todas as aparências são reversíveis; somente nesse nível os sistemas são frágeis e vulneráveis, o sentido é vulnerável apenas ao sortilégio.” (2008, p. 13) 215

olhos de quem já não sabe se sua “sede mais brava” realmente tinha aquela moça como objeto. Chegando ao fim do texto, começamos a compreender o movimento levado a cabo pelo poema: o retorno ao passado angustiante permite ao eu minorar a antiga frustração. Impedido de penetrar a gruta que viria redimir o padecimento vivido às portas da ilha erótica, o sujeito poético rebaixa o que lhe é vedado: o sexo, a amante. Caracterizado na maior parte do livro como uma experiência sublime, capaz de transformar perenemente o corpo, o ato erótico deixa de saciar as “fomes”, multiplicadas por diversos objetos. Portanto, a “mais louca nostalgia”,296 esperança de reencontrar um universo pleno, persistente na obra de Carlos Drummond de Andrade, mostra-se uma quimera. A insaciedade deixa de ser, entretanto, um problema: se o “vasto mundo” não constitui uma “solução” cabal para o desejo, permite ao sujeito poético esquecer – ainda que não para sempre – a obsessão pela moça, uma entre tantas. Ao rebaixamento do sexo e da mulher, soma-se o fortalecimento do homem, que tenta subjugar até o resíduo persistente do antigo desejo. Quando este se insinua, na curiosidade acerca da possível concretização do sexo antes ansiado, o sujeito rapidamente faz a derrota imaginária ser vencida ao questionar se de fato a moça teria “naveta”. A carga metafórica desse substantivo parece levar adiante a caracterização do erotismo como motor de uma satisfação parcial: o eu recorda ser impossível encontrar no corpo feminino qualquer nave, já que o ato sexual não leva a nenhuma parte – é breve parada antes da renovação da vasta busca instigada pela recomposição do desejo. Mas a passagem pode ser lida de forma menos grave, parte do veio humorístico tão marcante na obra do poeta: tendo vedado obstinadamente o acesso ao seu sexo, a moça lança dúvidas sobre sua anatomia.297 Por meio do recurso ao humor, o sujeito poético consegue uma vitória, mesmo que limitada, sobre a impossibilidade persistente de adentrar o espaço já não tão perfeito: tira dos impedimentos uma ocasião para obter prazer.298

296

Retomamos expressão de “Canção para álbum de moça” (CE). O poema teve versão em que essa linha interpretativa se tornava mais evidente: como informamos no primeiro capítulo, no lugar de “naveta” lemos “boceta” na versão de “A moça mostrava a coxa” divulgada no exemplar de O amor natural confiado por Drummond a Mindlin. 298 Parafraseamos Freud em seu estudo sobre o humor já citado: “O ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do humor.” (op. cit., p. 99) 216 297

Também o poeta parece fazê-lo. Temos aqui uma outra poética do obstáculo, distinta daquela subjacente a “Oh minha senhora ó minha senhora”. Nesse texto, o óbice encontrado nos signos, fraturados, era vencido por meio da dissolução da linguagem. Dessa forma, figurava-se a destruição encontrada no orgasmo. Em “A moça mostrava a coxa”, os empecilhos não são diluídos pelo gozo. Tampouco o fazer literário se mostra solvente. O escritor parece criar a partir dos obstáculos autoimpostos como em um jogo: Drummond teceu sua narrativa em exatos cem versos, isométricos; além disso, graças ao interdito à nomeação direta da vagina, fez proliferarem metáforas sobre o órgão inviso. A intermitência entre a palavra e seu objeto ajuda a “abarrotar” “o largo armazém do factível”, dessa forma.299 O “nenhum desgosto” advindo do prazer do texto parece amenizar o sofrimento privilegiado em grande parte do poema. Talvez por isso seja difícil decidir se a impressão final deixada por “A moça mostrava a coxa” seja a de pesar ou a de um sorriso leve no rosto de quem desdobra as dificuldades em humor e poesia. O lúdico pode ser, assim, um importante contraponto às agruras expostas nos versos. Em outros poemas, como “No corpo feminino, esse retiro”, o jogo viria reforçar a superação dos confrontos com a mulher pelos prazeres do eu. Todo rimado em “-iro”, esse soneto estabelece um fio, graças à iteração sonora, entre o contraditório retiro encontrado em um corpo em protesto e sua transformação em vampiro, gesto final de atribuição da tirânica sede masculina à amante. O homem brinca com a distância entre ele e a mulher também neste texto: AS MULHERES GULOSAS As mulheres gulosas que chupam picolé – diz um sábio que sabe – são mulheres carentes e o chupam lentamente qual se vara chupassem, e ao chupá-lo já sabem que presto se desfaz na falácia do gozo o picolé fuginte como se esfaz na mente o imaginário pênis.

299

Remetemos a “F” (LC). 217

O poema tem o tom leve e gaiato lido em outros títulos do livro, tal qual “A bunda, que engraçada”. Como nele, o humor é um dos recursos adotados pelo sujeito drummondiano para se defender dos “traumas do mundo externo”.300 A comicidade é criada em torno das “mulheres carentes”, de que se afasta o enunciador pelo ponto de vista externo e pela atribuição do discurso a um outro, “sábio que sabe”. A metrificação regular parece reforçar a lúcida e lúdica distância entre o observador e o seu objeto. Desse modo, os frutos da falta, risíveis, são colocados do lado de um alvo com que o sujeito poético não quer se identificar. Daí advém uma das singularidades na abordagem do erotismo por “As mulheres gulosas”. No texto lido no segundo capítulo, não só o humor permitia que o eu se rebelasse contra a caótica realidade. O homem também se deixava fascinar pelo corpo perfeito. Dessa forma, podia assumir imaginariamente o caráter sublime das “esferas harmoniosas”. No poema acima, ao revés, como em “A moça mostrava a coxa”, o enunciador se destaca das mulheres observadas, mitigando a origem do prazer e da carência ali apresentados: a imaginação masculina. Um prazer certamente estimulado pelo olhar desejante, motor da erotização das coisas. E uma carência de que o eu parece se defender mal. Não há nessa afirmativa qualquer juízo de valor. Ao contrário, nos véus a encobrirem e revelarem a falta instalada também no psiquismo do observador, reconhecemos um dos interessantes recursos com que o conflito se insinua no, quase sempre edênico, erotismo drummondiano. Como os versos se apoderam da subjetividade e do prazer femininos, o saber das “mulheres gulosas” não se distingue daquele apresentado pelo poema: o conhecimento do tempo e de seu poder de corrosão sobre as delícias advindas da carne. A imaginação das mulheres – fruto, por sua vez, da imaginação do homem – revela a verdade mitigada em quase todos os textos de O amor natural: qual um picolé, a ereção está fadada a se esfazer. Esse destino pode ser apenas adiado pelo afastamento do enunciador em relação à cena cômico-erótica. Não à toa, o poema seguinte a este, “Para o sexo a expirar”, põe em cena um homem, à beira da impotência, em luta contra o tempo.301 O riso posterga a batalha. No entanto, e aí se revela a mestria do poeta, deixa à mostra a realidade dolorosa de que o sujeito quer se defender: a “falácia do gozo” não se reduz à ilusória transformação de picolés em pênis. O próprio orgasmo, porque “fuginte”, traz uma alegria talvez falaz. 300 301

Citamos expressão de Freud em seu artigo já citado: “O humor”. Confira-se, a esse respeito, a análise de “Para o sexo a expirar”, nas páginas 137 a 143. 218

Essa hipótese se confirmará com o retorno, em outros poemas, da ameaça ao júbilo pelo tempo. O ideal terá, então, de conviver de forma mais íntima com o registro da perda, como neste soneto: Ó TU, SUBLIME PUTA ENCANECIDA Ó tu, sublime puta encanecida, que me negas favores dispensados em rubros tempos, quando nossa vida eram vagina e fálus entrançados, agora que estás velha e seus pecados no rosto se revelam, de saída, agora te recolhes aos selados desertos da virtude carcomida. E eu queria tão pouco desses peitos, da garupa e da bunda que sorria em alva aparição no canto escuro. Queria teus encantos já desfeitos re-sentir ao império do mais puro tesão, e da mais breve fantasia.

O soneto é fundado sobre a articulação de termos de valores opostos. De início, urdem-se as qualidades conflitantes atribuídas à mulher desejada. O sublime já não advém, como em outros poemas do livro, da magnificência do corpo. Está agora intimamente ligado à anatomia degradada pelo envelhecimento e pela eleição da mulher mais vil segundo os parâmetros conservadores vigentes ainda. Nessa mistura complexa do elevado ao baixo, mostra-se a modernidade, de ressonâncias baudelairianas, do soneto de Carlos Drummond de Andrade. Mas a “musa venal” do poeta mineiro já não desopila o fígado do povo ou se expõe no “crepúsculo vespertino” das grandes cidades, como em Baudelaire. Ela recusa o antigo amante, abandonando o universo da mercadoria de que fora símbolo no escritor francês. Aí reside a outra junção de opostos realizada pelo soneto de Drummond: a prostituta se fecha em copas e sua virtude tardia não passa de um deserto. Daí advém, ainda, uma marca da complexidade da escrita erótica do autor: o soneto revela uma nova forma de relação com o comércio, diversa daquela elisão que caracterizara grande parte do volume. Em poemas como “Eu sofria quando ela me dizia”, o erotismo protegia os amantes da malquista mercantilização de tudo, inclusive do corpo. Em “Ó 219

tu, sublime puta encanecida”, ao contrário, a negativa da mulher a qualquer transação é que ameaça a alegria. Parecemos encontrar os extremos a partir dos quais se tece a complexa relação da coletânea publicada postumamente com seu tempo. O fechamento do erotismo a um entorno rendido à mercadoria, predominante no volume, não parece distante dos anseios de proteção de O amor natural pelo autor. Como vimos, ele pretendeu produzir uma obra em contraste direto com aquelas que – acreditava – teriam se submetido à mercantilização. Esta foi, entretanto, apenas uma das formas com que Carlos Drummond de Andrade concebeu o lugar de sua escrita na segunda metade do século XX. Tivesse ele tão somente lamentado a perda de espaço e de qualidade da poesia, teria abdicado da tarefa do escritor moderno ao menos desde Baudelaire: reformular e expor a nova condição da literatura em um mundo dominado pela mercadoria.302 Drummond não renunciou a esse imperativo. Porém, como revela “Ó tu, sublime puta encanecida”, sua resposta à crise da poesia moderna assumiu, em vez da imagem da horda a tomar a cidade, a figura de uma fantasia surgida contra o deserto reinante fora das trocas sexuais. Poucos poemas deixam esse contraste tão evidente quanto “Ó tu, sublime puta encanecida”. Os tercetos substituirão a esterilidade criada com a recusa pelo registro do que se perdeu: a alegria advinda dos “encantos” da mulher. Remetendo aos atrativos femininos, esse substantivo parece assumir um significado mais amplo em um livro como O amor natural. Mais do que em nenhum outro, nesse volume o ideal se mostra vitorioso sobre as dificuldades do real. A “palavra Encanto” parece deixar de ser, desse

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Além dos ensaios fundamentais de Walter Benjamin a respeito de Baudelaire, devemos muito à leitura do ensaio de André Hirt sobre o poeta. Acerca da tarefa da poesia diante do triunfo do mercado, ele afirma: « A ce titre, ‘exposition’ signifie reformulation et déplacement de la poésie à l’époque du capitalisme triomphant, ou encore mise en danger, « expérience » de la poésie à un moment où son évanouissement est presque assuré en raison des triomphes affichés de l’utilité, du progrès et du commerce généralisé de toutes choses, moment dans lequel la poésie se doit de ne pas sombrer, comme une grand part du Romantisme, par un lamento ressassé de sa fin, mais au contraire d’évaluer ses ressources de vie, de survie et de puissance. Ce moment d’exposition de la poésie est donc bien celui de sa redéfinition nécessaire, de sa légitimité pour la pensée à travers son souci des vérités, à défaut de l’être pour les cours général des choses, de la société et de l’histoire. » (1998, p. 14) [Nesse sentido, “exposição” significa reformulação e deslocamento da poesia à época do capitalismo triunfante, ou ainda exposição ao perigo, “experiência” da poesia em um momento em que seu desaparecimento é quase assegurado em razão dos triunfos evidentes do útil, do progresso e do comércio generalizado de todas as coisas, momento em que a poesia não deve soçobrar, como em grande parte do Romantismo, por um lamento nostálgico de seu fim, mas ao contrário avaliar suas fontes de vida, sobrevida e potência. Esse momento de exposição da poesia é portanto o de sua redefinição necessária, de sua legitimidade pelo pensamento através de sua fonte de verdade, na falta do ser para o curso geral das coisas, da sociedade e da história.] 220

modo, uma entre outras “inertes à espera”.303 Não em “Ó tu, sublime puta encanecida”. Assim como a escrita erótica de Carlos Drummond de Andrade, o sexo se realiza nesse poema contra um mundo sombrio: o encantamento era vivenciado pelos amantes em um “canto escuro”; com o passar dos anos, não resta sequer o espaço limitado em que, às escondidas, eles fruíam a experiência solar do sexo. Ao expor essa perda, também o canto poético se obscurece. Não será negro, como o fora em parte da obra de Drummond, visto que faz conviver a escuridão da recusa com os traços luminosos do “império da fantasia” ansiado. Ainda assim, o soneto se clivará pelo convívio do tesão com a rejeição, do alto com o baixo. O spleen abraça o ideal. O canto claro-escuro ressurge em outro soneto do volume, contraponto perfeito a “Ó tu, sublime puta encanecida”: NÃO QUERO SER O ÚLTIMO A COMER-TE Não quero ser o último a comer-te. Se em tempo não ousei, agora é tarde. Nem sopra a flama antiga nem beber-te aplacaria sede que não arde em minha boca seca de querer-te, de desejar-te tanto e sem alarde, fome que não sofria padecer-te assim pasto de tantos, e eu covarde a esperar que limpasses toda a gala que por teu corpo e alma ainda resvala, e chegasses, intata, renascida, para travar comigo a luta extrema que fizesse de toda a nossa vida um chamejante, universal poema.

Também aqui a articulação de contrários é o procedimento fundamental. A combinação do alto com o baixo teve como forte aliado nesse texto um recurso depois rejeitado pelo autor: à forma nobre do soneto, opunham-se alguns palavrões na versão enviada nos anos 1980 a Maria Lucia do Pazo Ferreira junto a uma remessa de poemas a não serem divulgados no trabalho acadêmico. As variantes eram estas: Título: Não quero ser o último a foder-te 303

Remetemos à estrofe final de “Palavras no mar” (Jo). 221

v. 1: Não quero ser o último a foder-te v. 2: Se em tempo não fodemos, hoje é tarde. v. 3: Nem sopra a flama antiga nem comer-te. v. 4: aplacaria fome que não arde v. 12: para tentar comigo a foda extrema

Fruto do repúdio do escritor a procedimentos adotados pela literatura contemporânea, a elisão das expressões chulas esfumaça o contraste entre o alto investimento no ato erótico e o objeto envilecido a suscitar o intenso desejo. Esse confronto do solar ao vil é figurado por meio de outros recursos, entretanto. O primeiro deles é a superposição da recusa ostentada no passado a um apetite pertinaz, que se insinua no discurso atual. O homem rechaça no presente a mulher promíscua a quem não pôde possuir. Desse modo, parece esboçar um autorretrato honroso. No entanto, o duradouro desmerecimento do eu se insinua sob o discurso obstinado: a recusa é justificada pela posição indigna a que o sujeito poético se viu relegado; por sua vez, ele foi responsável por não obter os prazeres cobiçados, já que não ousou realizar seus anseios. Além disso, embora alegue que a “flama antiga” não arde, as estâncias seguintes serão dominadas pela recordação do intenso desejo. A boca está ainda seca de querer. A segunda estrofe leva adiante a rica combinação de opostos, fundamental no soneto. O desejo mantido em segredo ganha o maior alarde por meio da rima leonina no segundo verso. Expõe-se também a complexidade do retraimento do eu: saciar a fome equivaleria a um padecimento por ser a mulher “pasto de tantos”. Sobrepor-se-ia, assim, o prazer do sexo ao pesar de um eu humilhado. Porém, ainda que ele adie o ato sexual à espera de que a mulher se purifique, o rebaixamento do sujeito se difunde: trata-se apenas de covardia, revela a conclusão desse quarteto. O soneto parece expor um ponto de vista em tudo oposto ao apresentado em outro poema do autor sobre tema afim: “A puta” (Bo). Nesse texto, apesar de todas as sanções concebidas para a transgressão, o eu menino ostenta seu desejo de conhecer a prostituta da cidade, “a única”, entregue a todos. Embora onde ela habita o ar seja vidro ardendo e as labaredas queimem a língua de quem ousa dizer “eu quero a puta”, ele reafirma seu anseio. Sobressai sua coragem e sua autodeterminação, parte do processo de crescimento da criança e de sua constituição como sujeito independente, explicitada na última estrofe:

222

É preciso crescer esta noite inteira sem parar de crescer e querer a puta que não sabe o gosto do desejo do menino o gosto menino que nem o menino sabe, e quer saber, querendo a puta.

Querer a puta revela ao menino a premência de crescer, possibilidade de transgredir as leis dos adultos não apenas no discurso mas em ato, por meio do corpo. Expõe-lhe também a vontade de autoconhecimento, processo que não prescinde de outrem. No poema de Boitempo, esse outro é tirado do lugar desvalorizado a que muitas vezes esteve presa a prostituta: devido ao desejo da criança, a mulher pública tem o mais elevado retrato. Seu corpo se agiganta e enriquece por ser todo ele sexuado: como uma “mina amanteigada”, ela “se abre toda”, “chupante” e “quente”. Jazida de bens preciosos porque proibida e dadivosa, a puta do livro de memórias afasta-se daquela, suja e rechaçada, apresentada no livro erótico. Ou aparentemente apresentada. Os tercetos farão coexistir representações radicalmente conflitantes da mulher entregue a muitos. De um lado, o eu esperava que ela limpasse os restos do sexo de seu corpo e de sua alma. Raramente referida nos poemas de O amor natural, é possível que a alma inscreva aqui uma concepção moralista, a qual vê no sexo um pecado a contaminar todo o sujeito. Só quando livre da mácula, “intata, renascida”, a mulher poderia participar do ato puro que transformaria a vida dos amantes em um “universal poema”. Esse arremate parece expor uma concepção da poesia como a superação de qualquer contradição: encontro com a unidade perfeita. Por outro lado, o próprio soneto corrói tal visão monolítica. O eu a atualizar seu persistente desejo vê nos resíduos permanentes no corpo feminino a “gala”, o adorno precioso a cobrir ainda o corpo e a alma da mulher. Covarde, o homem abre mão dessas prendas em nome de um ideal excessivamente rígido, que tem como resultado a dilacerante manutenção de um apetite insaciado. Confrontando o medo aos anseios sexuais, as repressões moralistas à valorização do corpo sexuado, o poema constitui o oposto do “verso universo”: expõe o desencontro entre os amantes por meio de uma poesia também atravessada por contradições. A prisão ao mundo de conflitos começa a se mostrar intransponível.

223

4.2 ABSTINÊNCIA E DEPRESSÃO Os problemas surgem mesmo quando o amante logra realizar o ato sexual. Durante o encontro erótico, os conflitos a cercar a cena amorosa ficam, por um breve intervalo, silenciosos. Entretanto, pacientes, esperam a hora de ganhar vulto. Daí os amantes poderem ignorar temporariamente as tormentas que se aproximarão com o fim do ato erótico. Mas elas virão, inexoráveis como a passagem das horas, que os homens, iludidos, acreditaram poder dominar graças ao sexo. Algumas vezes a procela chegará súbita e devastadora. Em outras crescerá de forma sutil, quase imperceptível. Ainda assim, manterá seu poder de transtornar o éden erigido por meio do erotismo, como neste poema: ADEUS, CAMISA DE XANTO Pobre camisa, chora... Eugênio de Castro, “A Camisa de Xanto”

Adeus, camisa de Xanto! Adeus, camisa de Vênus! O sêmen fluiu. Nem pranto nem riso. Estamos serenos. Baixou a noite seu manto sobre a cansada virilha. (Sexo e noite formam ilha.) Adeus, camisa de Vênus, adeus, camisa de Xanto! Já gozamos. Já morremos. E o tempo masca, em seu canto, a garupa da novilha. Que graça mais andarilha tinhas na cama. Eram fenos roçados num acalanto. Era a fava da baunilha que se abria num momento e que se cerrava: trilha do demônio ao lugar santo. Era um desmaio na orilha da praia de gozo e espanto. Adeus, camisa de Xanto, renda de calça, presilha. Adeus, peiticos morenos, e o que brilhava e não brilha no mais úmido recanto. Adeus, camisa de Vênus, amargo caucho, pastilha, que de tudo nem ao menos (seria tão bom, no entanto) 224

ficou um filho, uma filha. Adeus, camisa de Xanto!

O texto não revela ainda toda a dimensão da desordem que cerca o sexo. Nem por isso a sutil participação de um intruso indesejado na cena erótica tem resultados menos relevantes. À espreita, “em seu canto”, o tempo concorre com a serenidade alcançada imediatamente após o gozo. Para os parceiros sexuais, sua presença é discreta, pois fica atenuada pela prostração seguinte ao orgasmo. Como mortos, os amantes parecem estar protegidos do mundo e da passagem das horas pelo sono, “noite” a erigir a ilha paradisíaca encontrada em outros poemas do livro. Para a construção do texto, contudo, o tempo se mostra marcante. O poema, com efeito, pode ser dividido em duas etapas: na primeira, o enunciador atualiza a paz e o prazeroso cansaço advindos do ato sexual; na segunda, a ínsula em que estão os amantes fica no passado e o sujeito rememora a alegria finda. O marco: “E o tempo masca, em seu canto,/ a garupa da novilha.” A partir desses versos, o prazer da rememoração conviverá com o registro das mudanças trazidas pelo trabalho daquele intruso esquivo. Não que o tempo não tivesse participação antes disso. A própria reiteração do “adeus” fazia o fluxo temporal inscrever-se no idílio. Entretanto, na primeira parte do texto, as mudanças eram suaves e a despedida, feliz, já que trazia aos parceiros sexuais o descanso e a proteção – “manto” noturno – contra os conflitos externos. A alegria se expande até mesmo para a epígrafe, a qual à primeira vista parecia inscrever a tristeza na cena erótica. Não é sequer necessário recorrer ao texto citado para vermos o choro se transfigurar em gozo. Sem conhecer o soneto de Eugênio de Castro, o leitor lê a passagem a partir dos significados construídos nos versos de Drummond. A camisa a metaforicamente “chorar” torna-se, nesse caso, o preservativo de que os amantes parecem ter aberto mão. Essa leitura é confirmada não só na “camisa de vênus”, mas também na outra, a de “xanto”. Remetendo ao gênero de plantas que segregam um suco amarelado, essa palavra parece metaforizar o esperma que seria contido pela camisinha não fosse a serena despreocupação dos parceiros sexuais. O conhecimento do soneto revela uma concepção igualmente feliz do sexo.304 O poema do português aborda veladamente os prazeres eróticos: a camisa chora por não 304

Não conseguimos ter acesso à obra de Eugênio de Castro. No entanto, o texto, provavelmente enviado por Drummond, é citado na tese de Maria Lucia do Pazo Ferreira. Op. cit., p. 167. 225

mais tocar o corpo de Xanto, nua há três dias e há três noites nos braços do amante. O tempo foi a perdição da peça íntima feminina, humanizada, mas o fulcro do júbilo duradouro da mulher. Só à camisa dói a finitude do período enquanto sensualmente agasalhava sua dona. A partir da referência ao trecho citado na epígrafe, o primeiro verso do texto de Drummond pode ser lido como o adeus contente aos véus a encobrirem o corpo feminino. Despedida de valor semelhante ressurge, embora residualmente, no segundo verso. Grafando o nome da deusa sempre com a inicial maiúscula, o poeta parece sobrepor ao sentido corrente da expressão “camisa de vênus” uma imagem da beleza da mulher despida pelo homem. A satisfação predomina, ao menos durante a noite. Porém, a suave passagem das horas cederá lugar à força corrosiva do tempo, que ficara à espreita durante o ato erótico. Na segunda parte do texto, a “graça andarilha” da mulher e a idílica constituição do corpo como um pasto feliz ficam para trás. O que nele há de fértil – “fava da baunilha” – se abre e logo se cerra. Esse fechamento pode ser lido como uma metáfora para o sexo estéril, reiterado alguns versos depois. Pode também ser compreendido como uma outra imagem da força destruidora do tempo, a mastigar a alegria vivida apenas por “um momento”. Tal leitura é ratificada pela intromissão do “demônio” no “lugar santo” dedicado ao sexo. Lembramos que os poemas de O amor natural que caracterizam o erotismo como sagrado apresentam-no intemporal: ou os versos flagram o ritual em um presente nunca deteriorado ou registram os efeitos eternos do encontro erótico na memória da carne. Em “Adeus, camisa de Xanto”, diferentemente, o sacrário é profanado pelo gênio mau da passagem dos minutos, horas e dias. Por isso, o “adeus” reincidente ganha, na segunda parte do poema, um novo valor: itera a perda advinda com a distância temporal. O choro da camisa, mencionado na epígrafe, volta a assumir seu sentido desolador. A privação irá se mostrando mais aguda. Se, imediatamente após o sexo, os amantes ficavam prostrados às margens da “praia de gozo e espanto”, serão dela definitivamente afastados devido ao decurso do tempo. Essa exclusão, a que foi condenado o enunciador, torna-se inegável uma vez que a distância entre o passado e o presente fica grafada nos seguintes versos: “Adeus, peiticos morenos,/ e o que brilhava e não brilha/ no mais úmido recanto.” O sêmen vertido não deixa frutos, ampliando a disforia decorrente da passagem do tempo. Infértil, o sexo cava o vazio permanente advindo da expulsão da “ilha dos amores”. 226

A vacuidade pode ser reforçada quando reinterpretamos o poema a partir de uma outra possibilidade de leitura autorizada pela linguagem elíptica e metafórica dos versos: os amantes podem se despedir da camisa de vênus após utilizá-la. O sêmen fluir seria, segundo essa hipótese, o registro elevado da ejaculação, retida pela camisinha, e a camisa a metaforicamente “chorar”, o preservativo donde escorre o sêmen. O lamento pela infertilidade do sexo seria, nesse caso, irônico. Não há recursos capazes de suprir o vazio cavado após a retirada dos amantes da ilha erótica. Essa segunda linha interpretativa tem a vantagem de revelar o ceticismo a partir de que, segundo defendemos, o erotismo drummondiano ganha tamanha relevância: encontrando no convívio social conflitos que não crê poder ajudar a solucionar, o sujeito deles se protege na ínsula erigida por meio do sexo. Um filho ou uma filha o transportariam de volta para a convivência com os homens, para o recusado universo da produtividade.305 Haveria talvez, como expôs “Ciclo” (VPL) com perfeição, apenas a renovação da “promessa contínua” vislumbrada na gravidez mas nunca cumprida no curso da existência. A única reprodução garantida em O amor natural é aquela que mantém a excentricidade do erotismo: embora o sexo seja estéril, dele resulta o poema lúbrico, também ele excêntrico, segundo defendia Carlos Drummond de Andrade. Essa fertilidade se estende para a releitura, ora corrosiva ora alegre, do material disponibilizado pela tradição literária. A poesia já não serve, como nos versos terríveis de “Os bens e o sangue” (CE), a forças que o poeta gostaria de recusar. Livre das cadeias que tragicamente o prendiam ao amor, à família e aos outros homens, ele torna a linguagem o espaço do prazer e da liberdade: as palavras não mais parecem resistir ao escritor sequioso ou trazer de roldão os conflitos com o mundo. Tal poética lúdica se confirma na primeira parte de “Adeus, camisa de Xanto”, em que o lutador cede lugar ao poeta festivo a mobilizar os versos de outro autor em nome da representação do apaziguamento dos parceiros sexuais, fechados aos problemas históricos. Não obstante tal predomínio da alegria, não devemos obnubilar a inscrição, ainda incipiente, da falta a circundar o erotismo. Na segunda parte do texto, os mesmos significantes antes usados para despedir os óbices ao sexo retornam para marcar a 305

O liame entre dispêndio e sexo já havia antes sido tema de um belíssimo poema de Claro enigma: “Rapto”, dedicado ao homoerotismo. Também “Os bens e o sangue”, do mesmo livro, revela a potência advinda da esterilidade: “Inclui-me entre os que não são, sendo filhos de ti./ E no fundo da mina, ó capitão, me esconde.”, implora o eu menino a um ancestral sem descendentes. A infertilidade se mostra então um modo de frear o avanço desolador dos ancestrais. 227

corrosão do refúgio dos amantes. Desse modo, o poeta – que na maioria do conjunto substituíra o registro das contradições históricas pelo da multiplicidade das sensações – começa a deixar as palavras se impregnarem, pela sutil variação em seu uso, das cisões vividas no mundo. Uma vez que os versos se voltem para fora da ilha erótica, a unidade até então reconhecida no sexo e no poema a representá-lo começa a se fender, contrapondo-se a alegria da fusão dos corpos ao vazio da separação. Parecemos encontrar, assim, uma nova manifestação daquela poética do “reduto do fragmento”, decorrente da não submissão das coisas ao anseio de totalidade segundo Davi Arrigucci Jr. (op. cit., p. 32). Neste e em alguns poemas de O amor natural, fica barrado o desejo de proteger a unidade constituída pelo poema e pelo sexo. O todo mostra-se efêmero e circunscrito, uma falácia talvez. Na diferença entre a totalidade encontrada no gozo e as perdas depois reinantes, reside a inscrição do desconcerto de um sujeito que não encontra seu lugar no mundo. Outros poemas de O amor natural exporiam semelhante fratura entre os prazeres eróticos e o sofrimento vivido após o sexo. “A língua girava no céu da boca”, por exemplo, recorda que a mesquinha existência ordinária sucede a “vida maior” experimentada durante o ato erótico:

A LÍNGUA GIRAVA NO CÉU DA BOCA A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único. O sexo desprendera-se de sua fundação, errante imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu. Os dois nos movíamos possuídos, trespassados, eleu. A posse não resultava de ação e doação, nem nos somava. Consumia-nos em piscina de aniquilamento. Soltos, fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados de nós. A custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazigo, se restituíram à consciência. O sexo reintegrou-se. A vida repontou: a vida menor.

O texto corrobora a atração do transcendente para a carne, analisada em outros poemas do livro. Tal deslocamento se inicia desde o beijo, que torna o “céu da boca” o “céu único”. A expressão pode resumir grande parte de nossas reflexões acerca do tema, uma vez que o adjetivo parece ter aí duplo sentido: único é o corpo unido pelo sexo e também o céu exclusivo, restante após o esvaziamento da transcendência. Por essa dupla transformação, o beijo ganha caráter excepcional, conforme explicita a ênfase dada à ação em “Girava!”. 228

A plenitude de tal extraordinária “metafísica do corpo” será apresentada ao longo de grande parte do poema. O sexo se liberta das forças que o prendiam à terra: a organicidade do corpo e a lucidez do espírito. “Errante”, ele atua como o cobre, elemento utilizado em ligas de importância, fundindo alegremente os namorados. Dessa forma, tal qual em outros poemas do livro, as cadeias que prendem os amantes deixam de ser observadas por um viés trágico.306 Os parceiros sexuais já não agonizam sob os carinhos.307 Além disso, embora se pulverizem “no enlaçar-se”, não são mais dois inimigos, como o foram quando sua anulação era incapaz de delir as dores do existido.308 “Possuídos”, eles se diluem de bom grado em favor do puro encontro de seus órgãos sexuais no paraíso descoberto a partir da materialidade da carne. Também a palavra deixa de ser um problema. Se outrora o poeta via transformadas em “serpes irritadas” “toda sílaba/ acaso reunida/ a sua irmã”,309 agora, como o erotismo, a poesia imprime à linguagem “seus traços de cobre”, expondo a fusão dos amantes por meio da junção dos pronomes. Tampouco o metal é o “sinal de menos” da comunicação possível por meio do canto poético: transmissão do que é vago, estranho, nada – “sublimes ossuários/ sem ossos” – em vez do “ouro suposto” nas palavras.310 Em O amor natural, a linguagem é rica e maleável na medida em que ecoa a fluidez e a opulência do ato erótico. Essa ressonância se estabelece por meio de um coloquialismo que aproxima a poesia da prosa em “A língua girava no céu da boca”. No entanto, a mesma fluência usada ao longo do texto para representar as núpcias de falo e vulva expressará, no último parágrafo, a lenta e malquista recomposição dos corpos e da vida cotidiana, caracterizada como “menor” em comparação com a experiência maior do sexo. Tudo se passa como se a forma livre, que antes expressava a junção perfeita – “eleu” –, depois do orgasmo apenas pudesse reinscrever o vazio. Já não se trata agora de expressar a liberdade do corpo, mas de ecoar o indesejado fluxo do tempo. 306

A esse respeito confira-se sobretudo a análise de “Sugar e ser sugado pelo amor”, nas páginas 117 a 120. 307 Parafraseamos trecho de “A um varão, que acaba de nascer” (CE): “Nosso amor se mutila/ a cada instante. A cada/ instante agonizamos/ ou agoniza alguém/ sob o carinho nosso.” 308 Remetemos a “Destruição” (LC). 309 Citamos “Nudez” (VPL). 310 Citamos ainda “Nudez”. A respeito da tensão entre o silêncio e o dito nesse poema, João Alexandre Barbosa conclui: “o que se diz é agora articulado pelo que se deixou de dizer. A descoberta, portanto, se faz não pelo poema, mas pelo espaço, ou intervalo, que foi deixado em branco. Nada. Ninguém, transformando em significação aquilo que restou de uma viagem e de um naufrágio, bem, é claro, na senda mallarmeana.” (op. cit., p. 58) 229

Apesar de tal inscrição da vacuidade e da falta, não devemos atribuir ao poema uma dramaticidade que nele não ganha vulto. De fato, o texto dedica quase toda sua extensão à figuração da “vida maior” experimentada durante o sexo e nada afirma acerca da “vida menor”.311 Mais do que registrar os problemas vividos fora da ilha erótica, ele apresenta a experiência extraordinária do sexo. Estamos bastante distantes do retrato ácido das relações amorosas, privilegiado pelo autor em grande parte de sua obra. O amante não é mais figurado por sua falta ou “procura alguém que não há”.312 Tampouco o poema revela a terrível sina dos amantes: verem seus peitos consumidos pelo deus “reticente e ardiloso” do Amor após haverem se entregado sorridente e cegamente à integração dos corpos.313 Em “A língua girava no céu da boca”, como também em “Adeus, camisa de Xanto”, a existência vivida fora do recanto dedicado ao sexo não chega a resumir os “infernos passados e futuros”. A dissolução do “céu único” do corpo ainda não expõe as angústias do eu diante de um “céu vazio”.314 A fratura no discurso a respeito da alegria erótica parece antes lembrar que as condições da existência se mantêm intactas depois do ato sexual. Que condições sejam estas vem a ser revelado em outros poemas do volume, como neste: COXAS BUNDAS COXAS Coxas bundas coxas bundas coxas bundas lábios línguas unhas cheiros vulvas céus terrestres infernais no espaço ardente de uma hora intervalada em muitos meses de abstinência e depressão.

Assim como “Adeus, camisa de Xanto” e “A língua girava no céu da boca”, “Coxas bundas coxas” é cindido em duas partes. Na primeira, predomina a proliferação das palavras a ecoar a fragmentação feliz dos corpos durante o sexo. Na segunda,

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Embora o significante “vida menor” nomeie um poema de A rosa do povo a encenar o desejo do nirvana, esse anseio, presente em outros textos de O amor natural, não é mais referido aqui pela expressão destacada. A respeito desse tema, confiram-se as páginas 126 e 127. 312 Fazemos referência a “A falta que ama”, do livro homônimo. 313 Citamos expressão de “Véspera” (VPL). 314 Expressão encontrada em “Coisa miserável” (BA). 230

composta pelos três últimos versos, a recomposição da sintaxe expõe a fragilidade do prazer, derrotado pelo terrível trabalho das horas. Terrível não só porque venha a separar os amantes. O tempo da espera por novas experiências sexuais se revela radicalmente vazio. A pungência desse intervalo prescinde de descrições. Está sintetizada pelo verso final, cortante, sobretudo graças ao substantivo “depressão”. Indo contra as variadas promessas de satisfação na sociedade contemporânea,315 a depressão constitui o perfeito contraponto ao êxtase erótico. Este permite ao sujeito retirar-se do mundo por meio do prazer. A tristeza profunda, por sua vez, leva-o a recusar o convívio com os outros homens.316 Ilha erótica e fechamento depressivo compõem, assim, os termos de uma cosmovisão tão desesperançosa que recusa qualquer forma de confronto com o mundo ou com o destino. Esse recolhimento parece ter como fundo comum a elisão do desejo. Como defendemos a partir da leitura de “Oh minha senhora ó minha senhora”, o homem extasiado substitui a falta pela diluição nirvânica na totalidade. “Coxas bundas coxas” revela o resultado terrível da finitude de tal experiência: a passagem das horas faz o sujeito reconhecer que é impossível (re)encontrar a mítica unidade. O resultado profícuo desse reconhecimento seria a recomposição do desejo, ainda que essa experiência fosse dolorosa. Poderíamos vislumbrar, então, a espiral infinita em torno do vazio deixado pelo objeto perdido. A espiral foi substituída, porém, pela estagnação do deprimido. Sem aceitar que as mãos não poderão tocar jamais o “aéreo objeto”,317 ele se vê condenado a errar entre quimeras, a composição passageira do todo reforçando o desespero de um eu que não aceita conviver com as faltas inevitáveis fora do breve instante do êxtase. Nenhum outro poema de O amor natural expressa essa aflição de forma mais aguda do que este: 315

Guio-me pelas reflexões de Maria Rita Kehl em seu livro já citado. Para a psicanalista, a depressão pode ser compreendida como um sintoma social contemporâneo por constituir “uma forma de mal-estar que, ao se expandir contra a corrente das crenças, valores e práticas corriqueiras, interroga as condições atuais do laço social.” (op. cit., p. 217) Segundo Kehl, essa recusa está intimamente relacionada à maneira como o depressivo percebe o tempo: “Nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo vazio. É preciso ‘aproveitar’ o tempo, fazer render a vida, sem preguiça e sem descanso. A esse imperativo, como veremos, o depressivo resiste com sua lentidão, seu mergulho angustiado e angustiante em um tempo estagnado, que lhe parece não passar. Ainda que eles não saibam disso, a inadaptação dos depressivos em relação às formas contemporâneas de aproveitar o tempo pode ser reveladora da memória recalcada de outra temporalidade, própria do ‘tempo em que o tempo não contava’”. (idem, p. 125) 316 Recorro mais uma vez a Maria Rita Kehl: “O depressivo, em sua bem calculada posição de exceção que recusa todas as crenças, acredita piamente na mais tola delas: a de seu desligamento em relação ao laço social.” (idem, p. 236-237) 317 Citamos expressão encontrada em “Bolero de Ravel” (AP). 231

A CARNE É TRISTE DEPOIS DA FELAÇÃO A carne é triste depois da felação. Depois do sessenta-e-nove a carne é triste. É areia, o prazer? Não há mais nada após esse tremor? Só esperar outra convulsão, outro prazer tão fundo na aparência mas tão raso na eletricidade do minuto? Já se dilui o orgasmo na lembrança e gosma escorre lentamente de tua vida.

Após o tremor fugaz do gozo, a ilha de prazer se desfaz em areia – o advérbio “depois” cindindo o tempo do sexo e a temporalidade cotidiana. Esse advérbio marca, além disso, a omissão do enredo sexual, apenas pressuposto como anterior ao poema. Com efeito, diferentemente de muitos textos de O amor natural, este escapa à narrativa. Aqui a reflexão acerca da natureza do gozo sobressai à exposição dos acontecimentos amorosos. Tal preponderância se reflete no ordenamento dos versos, os quais invertem a sucessão de acontecimentos que levaram à conclusão apresentada no início do poema. Somente ao chegar às três últimas linhas, conhecemos a situação que suscitou as interrogações e a tese a respeito da tristeza que sucede inevitavelmente ao êxtase. Nessa passagem, o advérbio “já” transforma o valor do presente verbal adotado ao longo do conjunto. A partir de sua ocorrência, não conhecemos mais interrogações de alcance geral acerca da essência do prazer. O verbo ancora a reflexão na atual melancolia do amante, que vê se esvair o tempo feliz, mas efêmero, do sexo. Neste ponto, poder-se-ia iniciar uma narrativa, visto que finalmente surgem uma personagem e o conflito por ela vivenciado. Mas o texto se encerra no ponto em que permite conhecer a cena a estimular o argumento de escopo amplo sobre o sofrimento humano. O sujeito do drama não se individualiza. É um tipo dominado pela voz reflexiva que perpassa o poema. Devido a esse predomínio, a sintaxe assume papel fundamental no texto. Sobretudo o corte dos versos é significativo. Graças à cesura, as perguntas parecem respondidas no interior de cada linha do poema: “É areia, o prazer? Não há mais nada.” “Após esse tremor? Só esperar.” O isolamento de “outra convulsão, outro prazer”, por sua vez, itera a insularidade da experiência de júbilo em meio à disforia difundida pelos dias. A fugacidade do gozo ganha destaque, além disso, devido à disposição de “na eletricidade do minuto” em um verso próprio. Por fim, o enjambement nos versos finais 232

reproduz a lentidão – tornada quase torturante – com que a gosma se esvai e junto esvai a vida. A difusão da melancolia após os atos sexuais também é representada por meio de um procedimento sintático: o quiasmo nos dois primeiros versos. Tal disseminação é radical, já que se desdobra sobre um outro texto, de Mallarmé: “Brisa marinha”, de onde se recortou a muito citada sentença “A carne é triste”. No texto de Drummond, o fechamento oriundo da conversão corrói a abertura encenada, no poema do francês, a partir da constatação da tristeza da carne. Em Mallarmé, esta é o motor de um libertador naufrágio. Contra o saber livresco e o penar do corpo, o sujeito deseja lançar-se ao mar, entregando-se à potente e destrutiva canção que vem daí. Esse canto pode ser lido não só como a imagem da atraente diluição na natureza, mas também como uma proposição poética. Tal qual as sereias, a poesia deve ao mesmo tempo se fazer entender e se transformar em silêncio. Desse modo, ela pode se colocar como alternativa ao empobrecimento da linguagem de seu tempo e apontar para um quimérico futuro em que teria lugar.318 No poema de O amor natural, o sujeito é prisioneiro de seu corpo, triste. Não se lança a nada. Analogamente, a poética subjacente ao volume, embora afirmativa, convive com as dúvidas do autor acerca do por vir que poderia acolher sua escrita erótica. Sob a festa, reside o recolhimento – se não da poesia – do poeta. Ou também de alguma poesia publicada no livro, poderíamos acrescentar a partir de “A carne é triste depois da felação”. De fato, o texto parece apresentar um outro fazer literário, melancólico. Diferentemente do eu poético apresentado no poema, esse fazer assume a retração para lançar-se produtivamente em direção ao vazio. A melancolia, nesse sentido, constitui o modo de produção poética fundado na certeza de que a realidade jamais será conformada inteiramente pelo artista, como defendeu Peter Bürger a partir de Walter Benjamin: O que Benjamin designa aqui como melancolia é uma fixação no singular, que tem de permanecer insatisfatório porque não lhe corresponde nenhum dos conceitos gerais de conformação da 318

Remeto ao magistral ensaio de Jacques Rancière acerca da obra de Mallarmé: La politique de la sirène. Nesse estudo, o crítico revela a operação política da escrita mallarmaica: assumir o risco de uma poética inadequada para a época em que vem à luz, acenando assim para o futuro incerto em que não reinará a “universal reportagem”. Em seus termos: « Ce que la sirène métaphorise, ce que le poème effectue, c’est alors très précisément l’événement et le risque calculés du poème dans une époque et un ‘milieu mental’ non encore prêts à les accueillir. » (1996, p. 25) [O que a sereia metaforiza, o que o poema realiza, é portanto muito precisamente o acontecimento e o risco calculados do poema em uma época e em um “meio mental” ainda não preparados para acolhê-lhos.] 233

realidade. O devotamento ao sempre singular é destituído de esperança porque está vinculado à consciência de que a realidade escapa ao indivíduo como realidade a ser conformada. (2008, p. 145)

Se o singular – um verso colhido a Mallarmé, por exemplo – não pode esgotar o real, o escritor pode lhe ser devoto ao expor a riqueza da falta no seio da linguagem: os signos tirados de seu contexto podem assumir novos sentidos. O resultado de tal atividade será também insatisfatório. Daí a desesperança. Mas também daí a possibilidade de que o poema se ofereça a novos gestos de fragmentação e recomposição. Diferentemente da escrita deprimida de “Coxas bundas coxas”, a qual se esgota no registro desesperançoso do mal-estar vivido além da alcova, a produção melancólica lança-se para o futuro – ainda que timidamente – ao apontar para o vazio de que parte. Tal abertura passa pelo retorno à tradição e pela inscrição, potente porque nunca satisfeita, do poema na herança literária. O caráter instável dessa participação será acrescido por uma nova forma de investimento na fratura entre as palavras e as coisas. O poema se dobra sobre outro, do próprio autor, veiculado em Corpo: O MINUTO DEPOIS Nudez, último véu da alma que ainda assim prossegue absconsa. A linguagem fértil do corpo não a detecta nem decifra. Mais além da pele, dos músculos, dos nervos, do sangue, dos ossos, recusa o íntimo contato, o casamento floral, o abraço divinizante da matéria inebriada para sempre pela sublime conjunção. Ai de nós, mendigos famintos: Pressentimos só as migalhas desse banquete além das nuvens contingentes de nossa carne. E por isso a volúpia é triste um minuto depois do êxtase.

Os versos finais apresentam, em dicção elevada, asserção bastante semelhante à que introduz “A carne é triste depois da felação”. Esse expediente parece permitir a leitura de que o poema publicado postumamente se inicia de onde o outro para. Dessa forma, o escritor escava o vazio no interior de sua própria escrita, recortada e 234

desdobrada em novos textos. Todos, não só os já assimilados pelo cânone da literatura universal, são alvo do melancólico trabalho de recomposição das obras e do saber, sempre insuficientes.319 O texto editado em 1984 reflete acerca da separação entre alma e corpo. O ordenamento do discurso segue, passo a passo, o desenrolar da meditação sobre esse tema. Nos quatro primeiros versos, afirma-se a barreira persistente entre o espírito e a carne nua. A linguagem estabelecida pelo contato entre os corpos não pode tocar a alma, visto que esta é ainda encoberta pela nudez. Os versos seguintes desenvolvem tal distância: o espírito recusa o “casamento floral”, o “abraço divinizante da matéria”. À carne, divinizada, cabe o céu. À alma, as migalhas do banquete para que não foi convidada. O poema inverte, assim, a concepção tradicional a respeito da dualidade ali desenvolvida.320 A volúpia – marca do corpo na alma – é triste porque os prazeres físicos fazem o espírito pressentir um paraíso de que está para sempre alijado. O texto erótico recompõe essa proposição, mas observa a miséria humana a partir de um ponto de vista sutilmente diverso. Essa alteração é indiciada antes de tudo pela mudança de registro, que passa do elevado ao coloquial e até mesmo ao vulgar de uma expressão como “sessenta-e-nove”. O rebaixamento do vocabulário corresponde ao novo enfoque, pouco nobre, dado ao tema: o poema de O amor natural submete as dores espirituais à vacuidade dos prazeres físicos. Essa abordagem é coerente com a predominante no volume, em que a alma tem pouco lugar. O poema apresenta uma novidade relevante, contudo, em relação à mundividência expressa no livro publicado postumamente. Nele quase sempre a elisão do espírito, conflituoso, era fulcro da alegria exposta nos versos. Já em “A carne é triste depois da felação”, o deslocamento das qualidades da alma para o físico vem a ampliar a tristeza que concluíra o poema de Corpo.

319

Sobre esse “pensamento de humildade” diante do “vasto sistema” não apreendido, Claude-Marie Lambotte tem formulação lapidar: “Sondar os enigmas que contornam o campo de seu pensamento condenando o campo de sua ação, é esta a contradição na qual se atola o melancólico e à qual se abandona não sem dela tirar um certo gozo, em razão da natureza excepcional de sua missão. Por esta missão impossível, o Destino com efeito se responsabiliza; assediado pelo recuo indefinido de uma lógica toda ideal, o sujeito vê-se sem cessar acuado por novos problemas que ele se esforça em resolver até o esgotamento, sustentado em seu esforço de gozo de uma busca impossível e sempre renovada.” (2000, p. 51-52) 320 Essa dualidade foi amplamente propalada pela filosofia platônica, referida talvez pelo “banquete”. Para o embate com esse pensamento, confira-se a terceira seção do primeiro capítulo, dedicada à análise de “Amor – pois que é palavra essencial”. 235

No texto de 1984, a cisão ontológica apresentada garantia que algo se salvasse do pesar constatado após o êxtase: a carne, “inebriada para sempre”, como em alguns poemas do volume de 1992. No poema erótico, diferentemente, o corpo é tido por sede da aflição humana: o sofrimento, “chave da unidade do mundo” segundo um poema de Farewell,321 expande-se mesmo para o que é apenas matéria – planta, flor, pedra, carne. Antes edênica, a materialidade orgânica torna-se infernal, desse modo. Também o espírito o é se lemos na aflição da matéria uma metonímia a marcar o pesar dos amantes, figurados por sua carne. O banquete do corpo, excessivamente rápido, permite a erupção indesejada do sentimento, excluído dos poemas centrados no ato erótico. A barreira entre a alma e o corpo se desfez, portanto, em favor da difusão da tristeza. Nada redime, fora do sexo, a dor difusa. Frágil, a ilha paradisíaca foi arrasada pelo demônio do tempo. 4.3 ENCANTOS FURTIVOS À depressão advinda com a abstinência, soma-se um outro conflito: o homem distanciado da mulher vem a interrogar a experiência vivida. O conhecimento se torna, então, um problema bastante distinto do saber obtido durante o ato erótico. Em “Para o sexo a expirar”, como vimos, o orgasmo oferece a tão ansiada “explicação do mundo”. Em “A outra porta do prazer”, o erotismo é propulsionado por uma “insofrida, mordente” “fome de conhecimento pelo gozo”. Assim caracterizada, a força motriz da experiência sexual revela uma faceta da ciência investida no erotismo diversa daquela apresentada em “Para o sexo a expirar”. Não há qualquer dádiva, uma vez que o apetite deve ser saciado por meio da busca ardente e da penetração cuidadosa. O saber que completa o amor é, pois, fruto de uma ars erotica que não elimina o labor. Ao contrário, ele deve ser obtido em uma experiência transgressora, a provar “coisas que só amor pode inventar”, e a desafiar a escuridão do corpo da amante. Imagem do desconhecido, as trevas tornam o sexo um rito a combater simultaneamente a ignorância e o desprazer. O sofrimento é, porém, imbatível quando o tempo afasta os amantes. Não há mais qualquer unidade, fundamental para a explicação totalizante ofertada pelo gozo. Tampouco se trata de conhecer o corpo ou os limites do prazer. Distante da amada, o

321

Trata-se de “Unidade”. 236

sujeito, inquieto, busca compreender o logro oriundo do intenso desejo, como neste poema: A BELA NINFEIA FOI ASSIM TÃO BELA A bela Ninfeia foi assim tão bela como eu a fazia, se sonho ou me lembro? Em sua garupa de água ou de égua que formas traçava, criava meu membro? A dura Ninfeia de encantos furtivos preparava filtros? Que feitiço havia na pinta da anca, que só de beijá-la a pinta castanha logo alvorecia? A fria Ninfeia zombava talvez da fúria, da fome, do fausto, da festa que o seio pequeno, de bico empinado, em mim despertava, tigre na floresta? A vaga Ninfeia, de esparsos amores (o meu, entre muitos) teria noção do mal que me fez, ou por ela me fiz, pois que meu algoz era minha criação?

Como poucos no volume, o poema exibe o sexo livre de recalques mas ainda entretecido nas hesitações e fraturas subjetivas. Reforça, desse modo, o “curto-circuito” que caracterizou grande parte da obra de Carlos Drummond de Andrade publicada em vida: aquele formado a partir da tensão entre o desejo de transcender as limitações humanas e a certeza da impossibilidade de superá-las. Esse curto-circuito, controlado na maioria dos outros poemas eróticos, ganha aqui grande vulto. O texto se aproxima, assim, do amor falho e torto encenado desde os primeiros livros do autor. É emblemático dessa afinidade que o poema de abertura de Alguma poesia inaugure a cisão entre consciência e desejo, dramatizada décadas depois nos versos eróticos. O problema se torna talvez ainda mais agudo: no texto publicado pela primeira vez em 1928, o coração interroga o porquê de tantas pernas sem duvidar da realidade cobiçada por seus olhos; naquele editado postumamente, o sujeito tenta reconstituir a verdade de um objeto sobre o qual não há qualquer certeza graças ao poder do desejo. Tal confusão é expressa desde o título do poema, em que o quiasmo reproduz a divisão do eu: a primeira ocorrência do adjetivo “bela” assevera o juízo feito antanho a respeito de

237

Ninfeia; a segunda põe-no em questão. Os versos desenvolverão essa tentativa de um homem apaixonado recobrar sua lucidez. Os verbos da primeira estrofe tecem os embaraços para o sujeito discernir a verdade. Ele “fazia” Ninfeia bela em dois sentidos distintos: se “sonha”, parece ser vítima da quimera criada pela paixão; se “lembra”, contrapõe-se à certeza de as qualidades femininas terem sido apenas mentiras. Os dois últimos verbos, “traçar” e “criar”, acrescentam um novo componente às dúvidas: guiado pelo desejo, o homem goza o corpo feminino segundo leitura corrente e popular de “traçar”; devido ao prazer daí obtido, já não pode definir quanto seu discernimento foi deturpado pela volúpia, que talvez “desenhe” ou “crie” a bela figura. Além disso, o sujeito desses verbos – “meu membro” – revela que o eu foi dominado pela lascívia. A desorientação segue na estância seguinte, dedicada ao atordoamento provocado pelo corpo da mulher. As interrogações deixam de se restringir ao conhecimento de Ninfeia pelo enamorado para se dirigir sobretudo à perversidade feminina. Questiona-se como ela teria enfeitiçado o eu. A resposta possível é sugerida pelo adjetivo a qualificar o alvo do desejo: “dura”, a amada tem ao mesmo tempo o caráter cruel e o corpo rijo. Este fascina o homem, que vê nas ancas o alvorecer, imagem da satisfação dos sentidos. O contentamento fica, entretanto, ameaçado pela malícia dos furtivos encantos femininos. As últimas estrofes desfazem a tensão oriunda do descolamento entre a percepção e a quimera, o passado de ilusões e o presente de incertezas. Já não restam dúvidas a respeito do engano. Agora Ninfeia já não é bela ou dura, mas fria e vaga. O terceiro quarteto diversifica as suspeitas. Insensível, a moça talvez zombe do desejo despertado no homem faminto. O qualificativo, a confirmar o juízo feito pelo eu, permite a conclusão disfórica lida na estância final. Aí o sujeito poético está perplexo ante a possível indiferença de Ninfeia, quiçá ciente do sofrimento que viria a causar ao amante quando ele se descobrisse traído. Se o caráter da mulher resta incerto, sua infidelidade já é conhecida. A figura da amante se eleva sobre o eu, ignorante e cativo. Por isso, sua vida se torna, conforme anunciara “Amar-amaro” (LC), “indagação do achado e aguda espostejação/ da carne do conhecimento”. Lido por esse viés, “A bela Ninfeia foi assim tão bela” parece reverter toda a divinização do amante apresentada em alguns poemas de O amor natural. O conhecimento do ser amoroso mostra-se insuficiente e o retrato turvo a duras penas 238

traçado é altamente desvantajoso para o sujeito poético e para a amada. Ele reconhece ter sido incapaz de fazer valer sua faculdade reflexiva a favor do senso de realidade. Ela trai a vocação de se alçar além dos limites humanos, indiciada por seu nome afim ao das deidades da mitologia greco-latina. Não é este um exemplo único de mito feminino aviltado na obra de Carlos Drummond de Andrade. No arquiconhecido “O mito”, de A rosa do povo, o escritor traça ironicamente os limites exíguos restantes para a construção de figuras mitológicas na modernidade. O nome da deusa adorada, Fulana, constitui a primeira marca da força centrípeta a atrair o transcendente para o convívio com a humanidade. A alcunha reproduz a dispersão do mito feminino pelas mulheres anônimas desejadas pelo eu poético. Dessa forma, dota de carnalidade o que seria por definição intangível: “Fulana às vezes existe/ demais”. A concretude e a historicidade da quimera irônica criada por Drummond mantêm-se mesmo quando o eu enfatiza a distância da mulher desejada: o contato com Fulana logo se mostra momentâneo e ilusório, mas é ainda roçar de corpos; além disso, o mito, rindo em “anúncios de dentifrício”, identifica-se às celebridades muitas vezes deificadas pela indústria do entretenimento. A linguagem da propaganda também comparece nos versos para reforçar a intromissão do tempo na figura que se quer transcendente: Fulana é toda dinâmica, tem um motor na barriga. Suas unhas são elétricas, seus beijos refrigerados, desinfetados, gravados em máquina multilite. Fulana, como é sadia! Os enfermos somos nós.

Um abismo separa as qualidades da mulher e as do homem apaixonado. Doentio, obcecado e risível, ele se depara a cada passo com as diferenças entre suas fraquezas e os atributos sobre-humanos de Fulana. Essa discrepância é acentuada pelo desconhecimento que marca a relação do homem e da mulher: Fulana “sequer” vê o homem, ele “sequer” conhece Fulana, ambos “sequer” se compreendem, a repetição do advérbio corroborando as faltas a permear o amor. O imbróglio se agrava com as pressões do sexo, perturbador como em “A bela Ninfeia foi assim tão bela”: 239

Amarei mesmo Fulana? ou é ilusão de sexo? Talvez a linha do busto, da perna, talvez do ombro.

Pungindo o sujeito poético pelo desejo de um objeto sempre cambiável, o corpo não permite um conhecimento seguro. Logo ele se tornará também instrumento de tortura. Inicialmente, será o alvo de gestos masoquistas: Porque preciso do corpo para mendigar Fulana, rogar-lhe que pise em mim, que me maltrate... Assim não.

Depois será o centro de fantasias autodestrutivas cujo resultado seria a punição da mulher indiferente graças ao odor repulsivo do cadáver a que o homem se reduziria por seu amor. Contudo, rapidamente o eu desistirá do conflito com Fulana na medida em que ela é sua criação. Embora precário, o poeta pode recriar o mito feminino, dandolhe todas as faces de seu “sonho que especula”. Como, nos anos 1940, os anseios do eu drummondiano estão mais evidentemente do que nunca voltados para a praça de convites, a transformação ultrapassará o restrito encontro amoroso. Abolem-se as carências dos amantes e as da sociedade moderna, tornada mais justa, “sem classes e imposto”. Enfim o mito e o homem se compreendem: abrasados entre os “irmãos vingados”, realizam no mundo o idílio reservado aos deuses. Por conseguinte, ao fim do poema de 1945, o eu poético é algo bastante diverso do que se apresentara: já não é alvo do escárnio de sua musa, de quem toma algumas características divinas ao se transformar em uma espécie de demiurgo moderno. Nesse momento, parecem cessar as semelhanças com “A bela Ninfeia foi assim tão bela”. No poema erótico, a divindade decaída não será redimida graças ao convívio com os homens, conforme ocorrera em “O mito”. No texto publicado postumamente, o desencanto com o erotismo parece mais agudo. Essa leitura é corroborada quando prestamos atenção ao discurso metapoético desenvolvido nos versos. Junto ao questionamento penoso de sua capacidade reflexiva, o homem logrado interroga sua criação. Essa outra narrativa começa a se construir por meio da polissemia dos verbos usados na primeira estrofe: “fazer”, “traçar”, “criar” significam, em um plano do texto,

240

perceber ilusoriamente, deixar-se enganar; no outro plano, dedicado à poesia, remetem à própria construção da personagem apresentada no texto erótico. A hipótese seria excessiva não fosse ela corroborada nos dois últimos versos da primeira estrofe. A “garupa de água” aí mencionada parece deslocada, ainda mais ao lado da vigorosa imagem da “garupa de égua”, metáfora menos enigmática visto que mais afeita ao campo da sexualidade e já antes presente na lírica amorosa do escritor.322 Poderíamos, claro, analisar a figura atendo-nos somente ao âmbito erótico: o simbolismo aquático contrastaria com a solidez do corpo para reproduzir as múltiplas sensações fruídas durante o ato sexual. Parece-nos, todavia, que o oxímoro tem implicações mais vastas: a expressão paradoxal remete à gênese do nome “Ninfeia”. O substantivo comum, dicionarizado, tem acepção relacionada às águas: é o nome dado a um gênero de plantas aquáticas, de folhas cordiformes. Uma de suas espécies mais conhecidas é o lótus, cuja versão mitológica no canto nono da Odisseia encantou os navegantes gregos, incapazes de lembrar a tarefa de retornar ao lar. Não parece vã a semelhança com Ninfeia, encantadora e responsável pela perda das faculdades reflexivas do homem apaixonado. As implicações do nome escolhido são ainda mais amplas. “Ninfeia” também é um adjetivo referente a “Ninfa”, divindade da mitologia greco-latina que presidia aos rios, fontes, bosques e montanhas. Estamos ainda em campo semântico afim à expressão “garupa de água”. Começamos a nos afastar desse universo quando lembramos a outra acepção do substantivo “ninfa”, referente aos pequenos lábios da vulva. A partir desse significado, a relação entre criador e criatura revela-se especular: ela tem sua identidade construída a partir da genitália; ele elide sua capacidade reflexiva para escrever a partir do corpo, de seu membro, a que está subjugado. Dessa submissão vem o drama encenado no poema: a figura construída é a tal ponto poderosa que o seu estatuto resta incerto: não se sabe se ela é sonho ou lembrança. Mais ainda: não se conhece o responsável pelo mal, se ela ou se o sujeito, como lemos nos versos finais. O eu fendido pelo desejo torna-se, assim, ao mesmo tempo vítima e carrasco. Talvez devido a essa fratura, o criador inscrito nos versos não possa atuar como o demiurgo encontrado em “O mito”. Sem dominar o instrumento de sua escrita, o pênis, e o desenho delineado pela lascívia, ele se vê condenado a interrogar a figura 322

A metáfora equina para o ato sexual foi celebrizada por Carlos Drummond de Andrade nos versos finais de “O quarto em desordem” (FA). 241

ilusória sem chegar a uma resposta definitiva. Assim, conquanto apto a criar uma personagem contígua às divindades gregas, o gênio criador foi duplamente logrado: quando se deixou enfeitiçar pela musa e quando não pôde mais sequer compreendê-la plenamente. Talvez por isso se veja flagelado pela dura certeza de que sua criação tornou-se seu algoz. Os deuses, tão poderosos em diversos poemas do volume, mostram-se agora excessivamente humanos. 4.4 E SE CERRAVA Affonso Romano de Sant’Anna, em seu posfácio a O amor natural, perguntava: “O erotismo nos deixa gauches?” A resposta mais contundente à questão não foi dada por esse crítico, mas por Ivan Marques: Longe de promover a união de opostos (que é um dos milagres do amor), a poesia drummondiana insiste na irresolução das tensões e no nada que é sua principal matéria. O poeta se entrega ao amor, mas sem sair de sua concha, sem desembaraçar-se de sua teia de problemas. Sim – o erotismo nos deixa bastante gauches na vida. (op. cit., não paginado)

A leitura dos poemas leva-nos a defender ponto de vista distinto: como uma ilha, o sexo protege os amantes da teia de problemas que os ronda. Por isso, o erotismo transtorna o valor dado comumente pelo poeta aos materiais a que retornou sempre: o nada é vivido como um ansiado nirvana; o tempo se transforma em uma fração de eternidade; o fechamento subjetivo muitas vezes dá lugar à fusão dos amantes. O recinto onde se refugia o sujeito é extraordinário a tal ponto que suplanta toda forma de conflito: contra a escuridão reinante fora da alcova, o amante imediatamente pode se fechar nos prazeres do corpo; ademais, a linguagem deixa quase sempre de lavrar as contradições sociais para expressar a multiplicidade das sensações fruídas durante o ato sexual. Também a escrita parece desse modo se afastar do universo problemático em que estivera imersa durante décadas. Poderíamos reconhecer nesse isolamento um conformismo estéril. Exausto de lidar com os conflitos vividos em sociedade, o poeta abdicaria do confronto com as palavras, cujo resultado fora a cristalização dos antagonismos sociais. Pensamos de forma diversa, no entanto. Não há esterilidade, visto que a riqueza da linguagem erótica expõe sua distância crítica em relação às formas linguísticas desgastadas pelo uso. Além 242

disso, conforme defendemos neste ensaio, alguns poemas se impregnam pelo sentimento radical de inadequação do sujeito ao mundo. Quando não o fazem, pacificando os conflitos, não deixam de registrá-los. Assim, embora nem sempre propicie uma visão em perspectiva das turbulências públicas como fizera nos anos 1950,323 a ínsula apresentada em O amor natural dá relevo ao que exclui: a tristeza da vida comum se aguça em comparação com a alegria extrema vivenciada no sexo. Esse contraste é tão mais agudo quanto a felicidade fruída na “ilha dos amores” drummondiana é fugidia. Lembramos que, para Drummond, o sexo não participa de um projeto utópico de liberação das repressões a que estão submetidos os homens: mesmo quando a alegria do gozo se mantém na memória, a mudança só atinge o indivíduo e não a comunidade; além disso, em vez de resultados duradouros, o erotismo mais frequentemente garante o efêmero silenciamento das contradições nunca superadas no convívio social. Tão logo acabe o orgasmo, o amante é expulso da ilha, retornando à “fumaça” e à “graxa do porto” de onde havia se evadido. O tempo é a grande tormenta a assolar o mundo reservado dos parceiros sexuais. Nesse sentido, o erotismo circunscreve um reduzido terreno de paz contra um amplo universo de impasses. Após o orgasmo, reencontramos o desencontro, o desencanto e o gauchismo. Talvez erotismo e melancolia constituam mesmo realidades indissociáveis. Essa hipótese pode ser reforçada quando notamos que a escrita festiva e a melancólica adotam procedimentos semelhantes: uma e outra, graças à cisão dos signos e à impossibilidade de figurar o real, voltam-se para a tradição de modo a apresentar variações em torno do que restou inexpresso – gozo ou desespero. Além disso, é possível que o sexo assuma um aspecto tão solar justo porque em contraponto com a escuridão apresentada em alguns poemas do volume. Por outro lado, a abstinência se cola à depressão, visto que apenas no ato sexual o sujeito experimenta a tão ansiada unidade. Nesse contexto, como afirma uma das epígrafes do volume, “vivre sans volupté c’est vivre sous la terre”. Após a leitura do conjunto de poemas, poderíamos acrescentar que para essa escuridão retornará necessariamente o amante após a breve incursão na ilha ensolarada dos amores. Viver é estar quase sempre sob a terra,

323

A esse respeito, confira-se novamente o estudo de Vagner Camilo: “A ilha de Drummond, ao contrário, se implica uma boa dose de evasão e abstração, não chega a aliená-lo de todo, pois pelo menos lhe garante a visão em perspectiva, distanciada da realidade, por mais negra que seja.” (op. cit., p. 94) 243

aprendemos com O amor natural. Resta a esperança de que a efêmera “paz de outro horto”

324

valha

“a

pena

e

o

preço

do

terrestre”.324

Expressão encontrada em “Amor e seu tempo” (PM). 244

CONSIDERAÇÕES FINAIS – Agora vou-me. Ou me vão? Passaram-se quase cinco anos desde que me defrontei com um dos muitos registros do drama a permear o erotismo mantido obsceno por Carlos Drummond de Andrade. De início, mantive-me ao largo dos poemas, interessada sobretudo em um dilaceramento que cindia antes o escritor do que sua escrita. Felizmente, o voyeurismo cedeu lugar à leitura de versos cuja relevância eu talvez não tivesse percebido sem o acesso aos documentos pessoais do autor. Por caminhos oblíquos, fui levada aos textos que aprendi a valorizar. Mais: a amar. A escrita desta tese não se dissociou de tal olhar amoroso. Quando interrogamos a novidade trazida à obra drummondiana pelos textos reservados para a coletânea póstuma, pressupomos haver ali mais do que versos de circunstância ou o canto enfraquecido de um poeta rendido ao corpo. Vimos em O amor natural um volume a expor um rico jogo de contrapontos e reiterações em relação aos traços mais marcantes da poesia do autor divulgada em vida. As dificuldades desse projeto, como não poderia deixar de ser, foram muitas. Primeiro porque não são óbvios ou poucos os “traços mais marcantes” da obra poética de Drummond; depois porque o próprio livro divulgado postumamente resiste à constituição de um todo orgânico graças à diversidade de formas e retratos do ato erótico ali encontrada. Com efeito, no espaço exíguo de um mesmo poema, o deleite pode ser sucedido pelo desentendimento. Além disso, a diversidade dos textos faz confrontarem-se a fusão dos amantes à persistência narcísea do eu, a dádiva do corpo à frustração do desejo. Em meio à variedade de uma poesia inesgotável, tentamos recortar os problemas que mais evidenciariam a singularidade do erotismo legado por O amor natural. Partimos da poética subjacente ao livro. Nele, a intermitência entre a escrita e seu objeto, os prazeres do corpo, permanece muitas vezes inquestionada. Por isso, o poeta se afasta daquela busca cujo “trabalho eterno”325 era estimulado pelas dificuldades de a linguagem penetrar as coisas ou pela autossuficiência das palavras, indiferentes aos esforços do autor. Agora os versos já não são – quase nunca – sulcados pelas dificuldades com a língua. Ao contrário, esta parece se render aos apelos do antigo lutador e se desdobrar em diferentes formas.

325

Expressão retirada de “Ante um nu de Bianco” (PM). 245

Não vimos nesse deslocamento uma novidade absoluta. Reconhecemos antes a continuidade da concepção lúdica que irmanava a forma à festa. Houve, contudo, algumas transformações na relação entre as palavras e o mundo. Ao longo da obra de Carlos Drummond de Andrade, o festivo não implicou recusa ao real. Em sua antologia, o escritor incluiu entre os “exercícios lúdicos” textos em que o jogo se associou intimamente ao combate do poeta com a linguagem e desta com o sentimento do mundo.326 Além disso, segundo a leitura esclarecedora de Gledson (op. cit.), a procura da poesia e o lúdico estabeleceram uma mesma curva em direção ao real, visto sempre como uma criação. Em “Procura” (VPL), o poeta pretendia restaurar “– para outros – na esplanada/ o império do real, que não existe”. Dessa forma, sua poesia contribuía para que se construíssem novas versões da realidade, renovada. Em “F” (LC), ainda de acordo com o crítico inglês, Drummond criava um mundo que era, ao mesmo tempo, um mundo real, “não no sentido de um mundo separado, produto do desejo de evasão, mas no de um mundo que continua sendo, pela língua, pela forma e pelo ‘factível’, real e nosso.” (idem, p. 274-275) Em O amor natural, não podemos negar ser explícito o desejo de evasão. Já no poema de abertura do volume, lido no primeiro capítulo, a ascensão até os astros anunciava a retirada dos amantes do “nível do tumulto”327 das ruas, confirmada em grande parte do livro. Ademais, durante anos o próprio escritor protegeu seus poemas da ampla circulação a que seriam submetidos caso fossem editados comercialmente. O sexo e a poesia erótica pareciam se pôr, assim, sob abrigo em vez de enfrentarem os problemas da época. A insistência com que a alegria do erotismo se opôs ao mundo, substituído pela “paz de outro horto”, não deixa de expressar, entretanto, uma visão crítica acerca do tempo presente. Um dos frutos da decepção de Drummond com as lutas políticas, o isolamento na “ilha dos amores” expõe, pelo avesso, a escuridão histórica e a quimera envolvida na alegria pronta para consumo, oferta abundantemente no estágio avançado do capitalismo. A hipótese poderia ser excessiva não houvesse textos que inscrevem o contraponto entre a falsa luminosidade reinante e o refúgio solar erigido por meio do erotismo. Esses poemas são cindidos pela história embora as agruras públicas e a subjetividade, satisfeita, deixem de se coadunar. Além disso, o tempo presente se faz marcante ainda que o empobrecimento da experiência moderna 326

Trata-se dos poemas reunidos sob a rubrica “Uma, duas argolinhas”: “Sinal de apito” (AP), “Política literária” (AP), “Os materiais da vida” (VPL), “Áporo” (RP), “Caso pluvioso” (VB). 327 Citamos trecho de “Livraria” (IB). 246

deixe de permear a fausta linguagem erótica. Na diferença entre as palavras rendidas ao comércio e a manifestação feliz, potente, da língua reside um dos modos de o volume póstumo inscrever os antagonismos sociais. Vimos nessa divergência também uma forma de o “lutador” se fazer presente em O amor natural. A luta deixou de ter como alvo o idioma ou a própria poesia do autor. Voltou-se para a tradição em combates que nos pareceram enriquecedores. Dirigiu-se, ainda, para a poesia contemporânea, em um confronto frequentemente atravessado por equívocos. Quiçá na leitura desse embate o olhar amoroso tenha demonstrado mais claramente suas fraquezas. Seria possível analisar de forma mais contundente a recusa à pornografia ou à poesia pornô por Carlos Drummond de Andrade. Em suas declarações, não raro transparece um viés antidemocrático – quando ele lamenta que todo mundo “faça poesia hoje” – ou conservador – quando transforma o palavrão em um problema em si. Ao admitir essas deficiências, não podemos deixar de lembrar a proposição lapidar de Lacan: “O amor é o que faz vocês entrarem em pane, é o que os faz fazer fiasco.” (1992, p. 111) Fizemos fiasco? Talvez. No entanto, cremos que trouxemos alguns elementos que podem ser depois retomados por quem queira, mais do que compreender, julgar: o alinhavo de preocupações estéticas e morais que atravessaram décadas, culminando na recusa à exposição excessivamente crua do sexo. Em poucas palavras: o repúdio a um certo realismo graças a uma concepção francamente idealizada do ato erótico. No deslocamento do ideal para o corpo reconhecemos uma importante virada na poesia divulgada no volume póstumo. Como a fortuna crítica de Carlos Drummond de Andrade tem enfatizado, sua escrita foi movida pela tensão do ideal com as dificuldades de capturá-lo no real cotidiano. Por inscrever a fratura entre essas duas instâncias, ela poder ser caracterizada como fruto de uma “magia lúcida”, na expressão de Marlene de Castro Correia. Em O amor natural, a magia aparentemente se sobrepõe à lucidez. Os amantes são alçados ao patamar dos deuses; o tempo se dissolve em uma experiência tão intensa que propicia a sensação de eternidade; o destino se esfaz em favor da escolha pela prazerosa via dos sentidos. Sob a euforia reside, não obstante, a capacidade reflexiva do poeta. O transcendente experimentado no mais imanente, a carne, é talvez uma das formas mais perspicazes de expor o esvaziamento do ideal que caracterizou a experiência moderna. Com uma importante novidade: esse vazio deixa de ser

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apresentado de forma dramática, motor de uma crise, para ser celebrado. Goza-se sobre o nada encontrado no lugar de Deus. O amor natural não se restringe, porém, a apresentar a festa construída a partir de tal ausência. Em alguns poemas, o aspecto aterrador da corrosão do transcendente se faz sentir. Findo o sexo, a abstinência se mostra dilacerante porque o ideal encontrado na carne já não tem lugar. Estamos de volta à melancolia que atravessou os mais conhecidos textos publicados por Carlos Drummond de Andrade. Sua presença, inesperada, indicia a complementaridade do “spleen” ao “ideal”. Talvez a ilha erótica tenha se feito tão luminosa contra uma visão radicalmente sombria da existência cotidiana. Mas quiçá também a visão melancólica tenha sido menos onipresente do que pareceu até naqueles livros em que se fez dominante: o júbilo se insinua mesmo quando o obstáculo, a melancolia, a corrosão parecem predominar. Tal proposição não é absolutamente original. Em sua “Leitura de Campo de flores”, Lafetá encerra as reflexões a respeito das contradições do amor com a interrogação: “Mas o fato de se ter logrado exprimir esta contradição – e me refiro a todo o poema – não é, já, uma posse e uma superação?” (1972, p. 124). Também Vagner Camilo, conclui seu livro, já citado, com esta afirmação do gozo (secundário, embora) em Claro enigma: Assim, o eu melancólico que, em virtude mesmo desse estado de luto patológico, tendia a ver em tudo [...] recuerdo de la muerte, parece nela reconhecer, por fim, um valor compensatório: a superação da dor do existir retratada em ‘ouro sobre azul’, expressão que, curiosamente, designa a ocasião, oportunidade, coisa excelente...” (op. cit., p. 312)

Tendo atravessado a escrita de Carlos Drummond de Andrade durante anos, o erotismo obsceno do autor pode lançar luz sobre a importância do convívio do excelente com a dor, da oportunidade com a perda. Não fomos tão longe. Empreendemos apenas a leitura dos poemas eróticos a partir do sinal de interrogação ou das reticências com que se costumam encerrar as discussões a respeito do júbilo na poesia drummondiana. Tentamos avançar a partir do ponto em que se cala essa problemática. Esperamos tê-la reavivado ao menos no que diz respeito à edição póstuma. Quiséramos ir adiante, iluminar mais do que os poemas de O amor natural. Todavia, o tempo e nossas limitações pessoais fizeram-nos lembrar que o ideal está sempre ameaçado pelo real. “À

248

falta de instrumentos não terrestres”,328 assumimos nossos limites. Encerramos o trabalho. Como não estar aquém da poesia de Carlos Drummond de Andrade?

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Expressão retirada de “Os cantores inúteis” (FQA). 249

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ANEXOS

ANEXO 1 TRADUÇÕES DAS LETRAS DE MÚSICAS DO WHITE ALBUM, DOS BEATLES329 FAREI TUDO (“I will”, John Lennon e Paul McCartney) Desde sempre te amei e bem sabes que ainda te amo. Devo esperar toda a vida? Se quiseres — esperarei. Se alguma vez te vi nem sequer teu nome escutei. Mas isso não faz diferença: sempre a mesma coisa sentirei. Eu te amarei por todo o sempre, sempre, desde a raiz do meu coração e te amarei quando estivermos juntos e te amarei na solidão. Quando finalmente te encontrar tua canção envolverá o espaço. Canta bem alto, para eu escutar. Tudo farei para te dar o braço pois tudo em ti me prende a mim. Bem sabes que farei tudo tudo farei. MELRO (“Blackbird”, John Lennon e Paul McCartney) Melro que cantas no morrer da noite, com estas asas rotas aprende teu vôo A vida toda esperaste a hora e a vez de teu vôo. Melro que cantas no morrer da noite, com estes olhos fundos aprende a ver A vida toda esperaste a hora e a vez de ser livre. Voa, melro, voa, melro, para o clarão da escura noite. Voa, melro, voa, melro, 329

Traduções veiculadas em Realidade, São Paulo, p. 60-61, mar. 1969. 265

para o clarão da escura noite. Melro que cantas no morrer da noite, com estas asas rotas aprende teu vôo A vida toda esperaste a hora e a vez de teu vôo esperaste a hora e a vez de teu vôo esperaste a hora e a vez de teu vôo. A FELICIDADE É UM REVÓLVER QUENTE (“Happiness is a warm gun”, John Lennon e Paul McCartney) Até que essa garota não erra muito oi oi oi oi oi oi oi oi Acostumou-se ao roçar da mão de veludo como lagartixa na vidraça. O cara da multidão, com espelhos multicores sobre seus sapatões ferrados descansa os olhos enquanto as mãos se ocupam no trabalho de horas extraordinárias com a saponácea impressão de sua mulher que ele papou e doou ao Depósito Público. Preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo para baixo, para os pedaços que deixei na cidade-alta, preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo Madre Superiora dispara o revólver Madre Superiora dispara o revólver Madre Superiora dispara o revólver A felicidade é um revólver quente A felicidade é um revólver quente Quando te pego nos braços e meus dedos sinto em teu gatilho, ninguém mais pode com a gente, pois a felicidade é um revólver quente lá isso é. OBLADI, OBLADÁ (“Obi-la-di, Ob-la-da”, John Lennon e Paul McCartney) Desmond tem um carrinho na Praça do Mercado. Molly vocaliza num conjunto. Desmond diz a Molly: Por teu rosto sou vidrado Molly diz-lhe: O quê? e pega-lhe na mão. Obladi, obladá, a vida continua: olá, olalá, como a vida continua! Obladi, obladá, a vida continua... Olá, olalá, como a vida continua! 266

Desmond toma o ônibus, vai à joalheria compra anel de ouro de ofuscar e leva-o a Molly, que espera junto à porta. De anel no dedo, eis Molly a cantar. Em um par de anos terão construído um lar bacana doce que nem cana. Um par de garotos corre pelo pátio desse casal unido. Olha Desmond feliz na Praça do Mercado. Ao lado, os molequinhos ajudando. Molly ficou em casa se enfeitando e à noite ainda canta no conjunto. Olha Molly feliz na Praça do Mercado. Ao lado, os molequinhos ajudando. Desmond ficou em casa se enfeitando e à noite ela ainda canta no conjunto. E se querem se divertir, obladi, obladá! PORCOS (“Piggies”, George Harrison) Viste os porquinhos rebolando na imundície? Para todos os porquinhos a vida está cada vez mais difícil e brincam sempre na sujeira por aí. Viste os mais taludos porquinhos em suas engomadas, alvíssimas camisas? Olha os mais taludos porquinhos em algazarra na imundície com camisas alvíssimas a folgar por aí. Em seus chiqueiros, plenamente protegidos, ao que vai por aí nem ligam. Nos olhos deles falta uma coisinha: precisam mesmo é de suma porcaria. Por toda parte há muitos porquinhos vivendo suas porquinhas vidas. Podes vê-los para o jantar saindo com suas porquinhas mulherinhas de garfo e faquinha para comer presunto.

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E POR QUE NÃO AQUI NA ESTRADA? (“Why don’t we do it in the road?”, John Lennon e Paul McCartney) E por que não aqui na estrada? Não há ninguém para ver nada E por que não aqui na estrada? ANEXO 2 DEPOIS QUE BARCELONA CAIR330 Depois que Barcelona cair, restarão Valência e Madrid, restarão dezesseis províncias por conquistar. Depois de muitos combates, restarão ainda algumas aldeias, algumas praias, depois que Barcelona cair. Depois que Barcelona cair, restarão Marseille, Bordeaux, restarão Lyon, o Havre, Lille, Nancy, Rouen, Nantes, Toulouse, Orleans, Dunquerque, restará, nas duas margens do rio, uma cidade de trabalhadores e sábios: restará Paris. Restarão Liège, Antuerpia e Bruxelas, depois que cair Barcelona. Caída Barcelona, será preciso multiplicar os campos de concentração, será preciso impedir a respiração ofegante de Berlim, Viena, Roma, encher de cruzadores os outrora voluptuosos golfos italianos, será preciso ainda tomar pequeninos países periféricos frígidos onde persistirão homens metódicos e tenazes. Depois que Barcelona cair, restará a China, a China devoradora, indiferente, enorme, a China que não vive no tempo, a China impossível, a indomável China. Depois que Barcelona cair, restarão Rio de Janeiro, Buenos Aires, restará o Chile, o Uruguai, restará Ciudad de Mexico, restarão edifícios, rebanhos, tesouros, montanhas, usinas, quartéis, New York. Depois que Barcelona cair restará Moscou. Restará um mundo: o vosso mundo, trabalhadores. Restarão livros, exemplos, sacrifícios, determinações. Restarão homens, restarão mulheres, gados, plantas, pedras, elementos de luta. Depois que cair esse mundo, restarão olhos na escuridão, espiando. 330

Tribuna Popular, Rio de Janeiro, ano I, nº 23, p. 12, 17 jun. 1945. 268

Restarão operários conspirando em voz baixa. Restará o silêncio cheio de ameaças. Restará a inquietação entre os vencedores. Restará o desejo de recomeçar. Depois que Barcelona cair, restarão os homens.

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